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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

LIVIA BERNARDES MARCIANO


Nº USP: 13860773
FLM0580 - Literatura e Cinema (noturno)

A espacialidade e isolamento em: Safe (Todd Hynes) The Shining


(Stanley Kubrick) e Melancholia (Lars von Trier).

A espacialidade é um critério essencial para a análise cinematográfica. É a partir


dela que podemos analisar as relações humanas e as relações com o ambiente
propostas por cada obra. O cinema é a arte do espaço, da sua apropriação e
representação de forma singular.
Na análise a seguir, avaliaremos essa dimensão nos filmes Safe (1995), de Todd
Haynes; The Shining (1980), de Stanley Kubrick; Melancholia (2011), de Lar von
Trier, e como as tramas se desenrolam para estabelecerem, em algum ponto de
cada obra, um lugar amplo - uma grande propriedade mas ao mesmo tempo, um
espaço limitado, aprisionante, restrito.
Faz-se importante, inicialmente, delimitarmos essas diferentes noções. Por espaço,
entenderemos as definições apontadas por Freitas (2008)
“O espaço no cinema, então, se identifica com a realidade em dois
patamares: por um lado, o espaço físico mais facilmente sugere-se como real
por causa das suas próprias características, que não invocam do espectador
qualquer atividade imaginativa.
Do outro, os espaços psicológicos, que, embora impossíveis de existir, são
identificados com a realidade a partir da introspecção do espectador na
história e seu envolvimento emocional com ela, com a percepção da
plausibilidade daquele espaço, considerando a carga fictícia que o
deformou.” (p. 65)

Para além, por lugar, o definiremos


“como uma porção de espaço significada e nomeada pelo humano, que nela
costuma desenvolver práticas e atividades. É o caso, para dar exemplos
aleatórios, de uma cozinha, uma rua, uma colina, um edifício, um porto, etc.
O lugar é, segundo o dicionário geográfico de Michel Lussault e Jacques
Lévy, a unidade básica da relação dos seres humanos com o espaço." (Lévy;
Lussault, 2013, p. 613 apud Zan, p. 4, 2022).

Em Safe (1995), acompanhamos Carol White, uma clássica dona de casa do


subúrbio Sul Californiano da década de 80, regada por superficialidade e relações
plásticas com outras donas de casa, e, até mesmo, com sua família, composta por
seu marido e enteado. A aparência é central na primeira metade do filme, regendo
seu universo. O movimento do enredo se altera quando Carol descobre uma alergia
a produtos e itens do uso doméstico. Ao se isolar, buscando tratamento de sua
“alergia ambiental”, seus valores e concepções são colocados à prova por uma
conduta paranoica, causada pela sensação de perigo iminente. “Você é alérgico ao
século XX?”, o filme nos indaga através de um cartaz.
Os enquadramentos de Carol, quando em cena, são essenciais para transmitirem,
ao que parece, uma sensação constante de distanciamento, utilizando-se de
ângulos abertos; nos momentos de interação com outras personagens, a
característica permanece: frequentemente, ela está “dividida” por linhas horizontais;
a posição da câmera se encarrega por ocultar as reações da protagonista nas
conversas corriqueiras com seus empregados, atendentes, etc. O teto está visível a
maioria do tempo, corroborando para uma sensação de aprisionamento e de
encarceramento em um recorte suburbano de dissimulação.

Na segunda parte do filme, quando Carol chega a Wrenwood, Peter faz um discurso
inicial do ideal do retiro: a intenção de criar um lugar seguro, de acolhimento e de
amor. É somente nesse momento que a vemos retratada próxima fisicamente de
outras pessoas, buscando um contato, mesmo que superficial, com outros
moradores do retiro. Em contraponto, a ideologia imposta estabelece um controle
total sobre os locais internos e externos.
A câmera, nesse momento, se aproxima mais de Carol, se preocupando com suas
expressões e reações a partir dos diálogos, reuniões e conversas, contudo, continua
propondo enquadramentos mais amplos. Enquanto personagem e protagonista, o
silêncio é um marcador central da sua postura, reafirmando seu isolamento do
mundo.
Na cena final, observamos a consolidação do isolamento de Carol, no iglu,
renegando o ambiente e as relações externas em busca da auto aceitação por meio
da “ideologia positiva” divulgada pelo retiro. O espaço, ao longo da trama, se
restringe. A protagonista vai do máximo (sua casa e as diversas relações
interpessoais) ao mínimo (sozinha, em um dormitório pequeno), rejeitando o “mundo
externo doente” em troca de um suposto processo de “consciencialização”. A
doença parece operar num processo repetitivo, tolhendo sua autonomia física e de
pensamento. A escolha asséptica é o seu fim.
Em Melancholia, filme de 2011, o fim do mundo é iminente. Justine, diretora de arte,
acabou de se casar e se divorciar em menos de 24 horas. Claire, preocupada com o
quadro depressivo apresentado pela irmã, assume os cuidados da casa, filho,
marido e agora, de Justine, até o impacto do planeta - homônimo à obra - com a
Terra.
A câmera de Lars von Trier parece ter uma dinâmica próxima da protagonista,
retratando-a em quadros próximos, em close-ups, acompanhando-a e importando-se
com suas preocupações e desejos. Na parte I, o espaço parece enclausurante e os
movimentos “tremidos” de câmera são cruciais para essa sensação, uma busca
incessante ao longo do filme inteiro como espécie de incerteza de “qual” espaço
retratar, se aproximando a uma indefinição do espaço psicológico da protagonista.
Durante a noite do casamento, Justine se encontra rodeada de outras pessoas,
mesmo que, internamente, se entenda solitária.
A passagem de tempo é desenvolvida a partir da perspectiva de Justine, se
apresentando confusa ao telespectador. É através da lente dela que vemos as
relações se desenrolarem, de forma superficial, sem afeto e um tanto melancólicas.
Os amplos retratos espaciais, nesse sentido, servem para relembrar da pequena
escala em que nos localizamos quanto ao desconhecido, nisso, podemos imputar
uma justificativa para a percepção apática da família nuclear representada e as suas
relações plastificadas.
Na parte II, centralizada em Claire, as cores passam de claras e quentes para
escuro e pálido. Nesse momento, o filme retrata uma cronologia menos espaçada e
entendemos algumas pontas soltas: o planeta Melancholia se aproxima da Terra,
causando um clima de instabilidade e medo na família. O núcleo, a partir desse
momento, não possuiu qualquer outro contato humano e nem com nenhuma casa ao
redor, se isolando em um único local: a mansão. Nessa parte, o cenário é pouco
explorado, a câmera se preocupa com emoções e reações das irmãs, colocando-as
em plano de destaque. O espaço, aqui delimitado como a Terra, não é passível de
controle, mesmo que o local aparente estar.
Na cena final, temos mais uma consolidação do máximo ao mínimo: o fim, para essa
família instável física e psicologicamente, é na cabana imaginada. O espaço externo,
magnânimo e deformado pela percepção psicológica, transborda para o físico. O
lugar, cada vez mais restritivo, coloca a relação das irmãs como complementares a
partir das dinâmicas de apatia e desespero.
No último filme, aqui analisado, vemos em destaque os labirintos mentais e físicos.
Em The Shining (1980) de Stanley Kubrick, Jack é contratado como zelador do hotel
Overlook durante as férias de inverno. Sua mulher e filho acompanham-no.
O filme se inicia claro, com tons quentes, vivos e amplos enquadramentos, além de
cenários detalhados. Porém, ao deixarem a cidade para trás e se isolarem em um
local labiríntico, aos poucos, Jack vai enlouquecendo, gerando um transbordamento
nos enquadramentos. Kubrick transpõe o enclausuramento para os ângulos e
espaços apertados, especialmente nos corredores, além de ambientes mais
escuros.
O hotel Overlook, com uma estrutura magnânima, é o local central do desenrolar dos
fatos que levam Jack a tentativa de assassinar sua família, repetindo “a profecia” do
zelador anterior. Além da câmera que valoriza o movimento em cenas importantes
através de close-ups, buscando o olhar indireto das personagens, o teto quase
sempre está presente, limitando os ambientes que os Torrance circulam, mesmo que
saibamos serem amplos.
Um dos ambientes centrais para compreensão das estruturas narrativas da obra é o
labirinto, localizado na área externa do hotel. Através dele propomos um
espelhamento tanto para a área interna, quanto para o psicológico de Jack. A
câmera nos guia pelos corredores - do Overlook ou do labirinto - de formas
inebriantes, confusas e perdidas, marcadas por linhas horizontais que propõem o
lento distanciamento da família em cena. O diretor, ao escolher os ângulos,
enquadramentos e ritmos, cria uma tensão constante a partir da instabilidade do
ambiente.
O ponto central nas três tramas é desenhado pelo isolamento, delimitando os
lugares em que as personagens centrais se encontram a partir de suas psiques
deturpadas. Ao voltarmos para os três filmes aqui analisados encontramos três
obras localizadas em tempos distintos e com temáticas diferentes, contudo, vemos
três espaços cinematográficos limitados por câmeras fechadas, arquiteturas
grandiosas mas, ao mesmo tempo, enclausurantes e psiques delirantes.
REFERÊNCIAS
FREITAS, Marcello Raimundo Barbosa de. Panoptismo no cinema: a construção
do espaço através do olhar. 2008. PUC-RIO. Rio de Janeiro, 2008. Cap. 3.
MELANCHOLIA. Direção: Lars von Trier. Dinamarca, 2011, 136m.
SAFE. Direção: Todd Haynes. Estados Unidos, 1995, 119m.
THE SHINING. Direção: Stanley Kubrick. Inglaterra, 1980, 146m.
ZAN, Vitor. Espaço, lugar e território no cinema. Galáxia, São Paulo, v. 47, p. 1-23,
2022.

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