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Análise dos filmes “Sangue do meu sangue”, “O cavalo

de Turim” e “O retorno”
Pedro Miguel da Conceição Faísca

A análise de um filme é sinónimo de o decompor. Isto é, separá-lo em


determinados fundamentos e depois analisá-los individualmente. Obviamente, que numa
última abordagem ele será analisado como um todo. Este texto procura refletir sobre a
análise dos três filmes vistos na aula e debater sobre as metodologias utilizadas. Contudo,
antes das análises, farei um estudo sobre a imagem-movimento e imagem-tempo de Gilles
Deleuze.
O cinema é objeto de estudo de diversos campos do conhecimento, tais como
filosofia, teoria literária, semiologia ou psicanálise. O que o teórico Gilles Deleuze tem a
dizer sobre esse tema dá-se de forma diferente do que ocorre na maioria dos casos: para
o filósofo, o cinema não é um objeto de reflexão teórica, mas sim um campo de
conhecimento que atua de forma conjunta com outros domínios do pensamento, tais como
filosofia, literatura ou artes plásticas. Ou seja, o cinema é uma forma de investigar os
procedimentos que os cineastas utilizam para pensar, utilizando os seus filmes – como as
composições dos planos, os movimentos das personagens, os cortes. Desta forma,
algumas obras cinematográficas conseguem alargar conceitos como tempo, espaço,
movimento. Deleuze expõe esse esse princípio e seus desdobramentos distinguindo a
imagem-movimento da imagem-tempo, que se referem, respetivamente, ao cinema
clássico e ao moderno.
Em relação à imagem-movimento, Deleuze interpreta-o através de três teses, que
ele entende existirem na teoria de Henri Bergson. Na primeira, trata-se de distinguir
espaço percorrido e movimento, sendo que o primeiro seria algo passado e sujeito a
divisões, enquanto que o movimento é sempre presente à medida que é o ato de percorrer,
e, portanto, indivisível. Posto isto, os espaços percorridos pertencem a um mesmo espaço
homogéneo, enquanto os movimentos são heterogéneos. Na segunda tese, o pensamento
do movimento é distinguido a partir da filosofia antiga e a moderna. A filosofia antiga
pensava o tema a partir da passagem de uma forma imóvel a outra, ou seja, como uma
ordem de instantes privilegiados. Já na filosofia moderna, a principal mudança é a
compreensão do movimento enquanto uma variável separada do tempo. Utilizando essa
proposição diretamente nas artes, Deleuze explicita:
“A dança, o ballet, o mimo, abandonaram as figuras e as poses para
liberar valores não de pose, não pulsadas, que referiam o
movimento ao instante qualquer. Com isso, a dança, o ballet, o
mimo, passavam a ser ações capazes de responder a acidentes do
meio, quer dizer, à repartição dos pontos de um espaço ou dos
momentos de um acontecer. Tudo isso comungava com o cinema.”
(DELEUZE, 1984, p.20)
Bergson entende que o cinema se baseia na filosofia moderna como sendo um sistema
que reproduz o movimento em função de ocasiões e, portanto, que o movimento dá a
impressão de continuidade. A terceira, e última, tese o autor defende que o movimento é
um corte móvel da duração, logo, do todo. Consequentemente, se a duração é uma
mudança, o movimento exprime essa mudança na duração ou no todo. Isso implica dizer
que o movimento é uma translação, ou seja, uma alteração de posição no espaço.
O pensamento na imagem-tempo consiste fundamentalmente em uma rutura com
o esquema sensório-motor, resultando em temporalidades indistinguíveis,
acontecimentos desligados uns dos outros, personagens que vagam e hesitam,
indeterminação entre instância da narrativa e instância da personagem. Sendo assim, o
que ocorre é um intervalo entre duas imagens, na qual cada uma delas cederá um espaço
fora do filme, voltando, depois, a entrar nele. Não se trata, portanto, de uma operação de
associação entre as partes, mas sim de diferenciação, na qual, a relação entre duas
imagens produzirá uma terceira no filme, que não elas próprias.
O primeiro filme a ser analisado é o “Sangue do meu sangue” realizado pelo João
Canijo. Este filme deve ser analisado a partir da construção do argumento porque
apresentou um método diferente do habitual. Uma abordagem que Canijo decidiu utilizar
onde o contributo dos atores foi o mais importante. Existe quem escreva um guião e
depois pense na pessoa certa para ele, adaptar a pessoa ao argumento. E quem o faça
diferente, escolhe a pessoa e depois escreve, ou seja, adaptar o guião à pessoa. Mas neste
caso foi “escrito” pelos atores. Coloquei as aspas porque ele não foi literalmente escrito
por eles, mas tiveram uma boa participação. O método consistiu na troca de ideias. O
realizador juntou os atores e deu-lhes liberdade para criarem a sua personagem. Houve
vários ensaios à base do improviso, e aquilo que o Canijo achava interessante apontava.
É um método que acabou por funcionar muito bem, principalmente, por causa da
experiência dos seus atores. Outro fator importante neste filme é o trabalho de câmera,
que entra como o elemento central na organização das cenas, abrindo e fechando o espaço
e o tempo em que se movimentam as personagens. Sem esquecer a elaboração do
enquadramento, principalmente, naqueles planos onde as duas histórias entram em
simultâneo, em locais diferentes, mas os dois enquadrados. Calculo que a intenção dele,
ao colocar aquela enorme confusão, com tanta pessoa a falar ao mesmo tempo, seja
obrigar o espetador a procurar a história que mais lhe interessar. Provocando uma surpresa
na resolução da história que o público prestou menos atenção. Isso espelha-se na
narrativa, a representar a tragédia grega, e no modo como o núcleo familiar se divide entre
a mãe e a filha de um lado, a tia e o sobrinho do outro. Canijo procura dar um sabor real
ao seu filme. Não apenas com o ambiente do bairro, que vai para além das imagens, o
som também é muito bem utilizado, mas também pelas histórias das personagens. Onde
sente-se uma forte presença do real, do verdadeiro, uma narrativa com problemas
familiares discutidos na hora de refeição. Canijo explora os meandros da tragédia humana
no Portugal real. Este filme aparenta estar muito próximo da imagem-tempo composta
pelo Deleuze.
O segundo filme a ser analisado é “O cavalo de Turim” realizado por Béla Tarr e
Ágnes Hranitzky. Neste filme, o cineasta húngaro explora o destino de um velho cavalo,
que poderia, ou não, ser o mesmo que teria sido salvo por Nietzshe das violentas
chicotadas aplicadas pelo seu dono na cidade italiana de Turim. Após este episódio
catártico para o filósofo, Nietzsche teria permanecido em silêncio por dois dias antes de
suas últimas palavras conscientes: “Mãe, eu sou um tolo”. Béla Tarr, no entanto, não se
mantém atento apenas ao cansado cavalo, supostamente italiano. Fixa-se também nos
supostos novos proprietários do animal, um idoso húngaro lacônico (János Derzsi) e sua
filha adulta reticente (Erika Bók), únicos integrantes de uma pobre família rural carente
de figura materna. O filme é em preto e branco e com raros diálogos, a narrativa é
basicamente audiovisual. Ele acompanha seis dias na vida desta família, através de uma
muito boa fotografia e de movimentos de câmera arrojados. Graças a eles, Béla Tarr
reforça redundâncias quotidianas quando exibidos diferentes tons da vida comum. Porém,
ainda mais importante é a capacidade dos realizadores em utilizar recursos técnicos
formais, como trilha sonora tensa e repetitiva, fades obscuros, travellings fantasmagóricos
e planos-sequência persecutórios (ou seu oposto, paralisantes) para depurar a composição
dos personagens. O filme foge muito do mesmo, a filha a vestir o pai diariamente de
forma automática e silenciosa, e da mesma como faz para guardar o cavalo. Na
confluência entre a fugacidade da vida e a permanência das tarefas diárias, a monotonia
de pai e filha só é quebrada em dois momentos. Para mim este filme apresenta indícios
próximos da imagem-movimento.
O terceiro filme é “O Retorno” do Andrei Zvyagintsev. Neste filme, os filmes
Andrey e Ivan vivem obstáculos normais da puberdade: a necessidade de aceitação, o
querer ser independente. Contudo, o retorno do pai, que esteve 12 anos desaparecido,
muda essa rotina. Os irmãos não se recordam do pai e para piorar são obrigados a ir de
férias pescar com um homem que nem explicou o porquê de se ter afastado. A relação
que se estabelece entre o pai e os filhos é um verdadeiro ensaio pedagógico. A resposta
do Andrey à aproximação do pai será diferente da do Ivan. Pequenas coisas como o jeito
que o pai olha para uma mulher na rua, o jeito como pede comida no restaurante e o jeito
como diferencia os dois filhos tornam-se motivo para novas desconfianças. O pai tenta
impor respeito. Dessa forma, o conhecimento não se dá por trocas mútuas, mas por atritos.
Andrey apanha por desobedecê-lo, mas em seguida é recompensado com o direito de
dirigir o carro. Contrário a esse tipo de "educação", Ivan resiste. Assim, o irmão mais
novo, que antes era ridicularizado pelos outros garotos, sofre a duras penas a formação
da sua maturidade. O realizador abusa da bela fotografia explorando, através da câmera,
a contemplação da paisagem inóspita, enaltece o tom misterioso da trama valorizando os
momentos de silêncio e dirige bem os atores obtendo atuações vigorosas, principalmente
do Ivan. Este filme também apresenta características de imagem-movimento.
Estes três filmes acabam por ter uma particularidade em comum na sua narrativa.
O meio familiar e o que está envolvido à sua volta, tal como os ensinamentos e repreensão
do mais velho, normalmente, a mãe ou pai. Para além disso, o detalhe da realidade, a
questão de explorar a tragédia humano e problemas reais que acontecem nas pessoas,
acontecimentos do quotidiano e o estilo de vida são desenvolvidos nos três filmes.

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