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Woody Allen, o incompreendido

Módulo: História do Cinema


Formador: António Silva
Formando: Pedro Faísca
Woody Allen é um cineasta americano, mundialmente conhecido e completamente
aclamado pela critica do mundo cinematográfico. Mas o que os filmes de um comediante
têm a ver com filosofia? Ora, a obra cinematográfica de Woody, além dos seus trabalhos
como escritor, e comediante stand-up, sempre trazem camuflados em algum tema, teorias
filosóficas tão dispares entre si, como o existencialismo, a teoria do utilitarismo, etc...
Seus filmes são um retrato interessadíssimo de neuróticos perdidos em um mundo de
ilusão, que buscam explicações em psicanalista que nada falam ou ajudam, o
religiosíssimo judaico, cristão; ou seja, faz um cinema com seus filmes, com força diante
do absurdo existencial, que talvez, assuste os que não entendem do filosofar.
Não que todos os seus filmes sejam incoerentes entre si, ou relacionados com o mesmo
tema, mas as circunstâncias filosóficas dos filmes de Woody Allen extasiam qualquer um
que tomar em si, consciência que ali há um filosofar estreito, sincero, e, no entanto,
embalado em um humor caótico, judaico, sentimental, puro, que para alguns, seja até
preconceituoso, em relação a alguns temas, que o cineasta aborda de forma direta. O sexo,
a angústia diante da existência de Deus, o sentido da vida, o nexo entre o amor e o não-
se-amar, o suicídio, o porque da existência das artes, o terrível livre-arbítrio, nossas
escolhas, as falhas do destino, o sentido da angústia, o prazer de ser, o não querer ser, o
modo como devemos levar a vida. Tudo isso são temas que aproximaria e aproxima
Woody Allen da filosofia de filósofos como Freud (a sexualidade e a psicanálise),
Kierkegaard (o conceito da angústia), Sartre (somos condenados a liberdade).
É claro que se tratando de um cineasta, o preconceito em torno de aceitar os temas no
filme de Woody, podem ser grandes, mais devemos levar em conta o todo da sua obra,
sua vida etc., assim teremos já um estabelecimento mental diante das angústias dos seus
personagens e suas próprias.

Nascido no dia 1 de dezembro de 1935, Allan Stewart Königsberg desde pequeno já se


envolvia no mundo do entretenimento. Aos 15 anos, já como Woody Allen, o jovem
começou a escrever para colunas de jornais e programas de rádio. Ao mesmo tempo,
frequentava a Universidade de Nova York, contudo nunca chegou a terminar. Seu pai,
Martin Konigsberg foi livreiro e restaurador de livros.
Em 1964, Woody já era um respeitável comediante, ao ponto de um disco
chamado Woody Allen, com as gravações de seus shows, ser indicado ao Prêmio Grammy.
A sua primeira experiência cinematográfica aconteceu no ano seguinte, quando em uma
dessas apresentações conquistou um produtor de cinema que o chamou para escrever e
estrelar “What's New Pussycat?”, uma paródia de um filme de James Bond.

O primeiro filme premiado de Woody Allen foi Annie Hall, que recebeu quatro Óscares
(três para Allen, de melhor filme, argumento e direção, e um para Diane Keaton, de
melhor atriz).

Apesar de não ter comparecido em nenhuma das cerimônias em que estava concorrendo,
Woody conquistou outro prêmio de melhor argumento original, por Hannah and her
Sisters, e recebeu outras 18 indicações em diversas categorias. Em 2002, no Óscar
seguinte aos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, Allen finalmente
compareceu à cerimônia para fazer uma homenagem à cidade de Nova York.

Nova Iorque é o cenário de praticamente todos os seus filmes e lá é rodado outro clássico
do cineasta, Manhattan, que recebeu diversos prêmios e conta com as presenças de Meryl
Streep e, novamente, Diane Keaton, com quem teve um relacionamento.

A vida amorosa de Allen sempre deu que falar à imprensa. Antes da fama, Woody Allen
já havia tido dois casamentos e, por consequência, dois divórcios, com Harlene Rosen e
Louise Lasser. Depois da fama, namorou várias importantes atrizes, que sempre ficavam
com os papéis principais de seus filmes, até se firmar com Mia Farrow. Com a atriz teve
um relacionamento de 1980 até 1992, quando começou um polêmico relacionamento com
Soon Yi, filha adotiva de Mia com Andre Previn, com quem se casou em 1997.

No entanto isso são apenas factos da sua vida, para conhecer bem Woody Allen é preciso
entender a sua comédia, e principalmente a sua filosofia. Um bom exemplo disso é uma
cena desconcertante no filme magistral Annie Hall (1977): o personagem interpretado por
Woody Allen está numa fila de uma bilheteira de cinema; encontra um casal amigo e
começam a falar, naqueles discursos intelectuais sobre arte e cultura, muito ao gosto do
realizador. O homem divaga sobre a teoria de Marshall McLuhan (o mesmo que lançou
o conhecido conceito de “Aldeia Global”) e o personagem de Woody Allen, farto de ouvir
tantas baboseiras redundantes e pseudo-académicas, replica sarcasticamente: “Desculpe,
mas o senhor é um pedante e não percebe nada do verdadeiro pensamento de
McLuhan”, ao que o homem responde: “Sim? E como tem essa certeza?”. Woody Allen
sai da fila da bilheteira e vai buscar pelo braço o próprio e verdadeiro Marshall McLuhan
(que se encontrava escondido atrás de um cartaz!) que diz ao pretenso intelectual: “É
verdade, o senhor não percebe nada da minha teoria!”. Então, Woody Allen olha para a
câmara (para nós, espectadores) e remata de forma seca e resignada: “Se a vida fosse
assim tão fácil!…”.
Neste belo excerto entendemos como, através de um olhar humorístico cirúrgico, a ficção
e a realidade se entrelaçam num filme. Woody Allen, ao longo da sua já extensa carreira,
sempre revelou saber transformar-se em paradigmas distintos de humor. Profundamente
influenciado pelo seu herói do humor anárquico, Groucho Marx, tem sido um contínuo
renovador da comédia cinematográfica. Não se cristalizou com as modas passageiras dos
tempos, antes reinventou-se na construção de novas abordagens, misturando habilmente
o legado de uma certa comédia clássica burlesca com o legado de Marx. Allen foi
arquitetando várias formas de ser palhaço (palhaço-absurdo), desde os tempos em que
fazia stand-up comedy para sobreviver ou escrevia textos de humor para outros dizerem.
As suas primeiras obras cinematográficas dos anos 60 denotam um enraizamento na
tradição da comicidade física, mas já com um forte cunho autoral. Allen interessou-se por
trilhar um caminho no qual a dinâmica dos gags fazia implodir os mecanismos
convencionais do humor. Era um Woody Allen apalhaçado com uma forte noção
dos timings de comédia, repleto de tiradas intelectuais e mensagens filosóficas sobre o
absurdo da vida e da morte.
Mas Allen foi aperfeiçoando e desenvolvendo o seu modelo de intervenção cómica ao
longo dos anos. Começou a questionar o papel da realidade no seu mundo de ficção. E o
resultado foram dois magníficos filmes nos quais o realizador subverte a lógica narrativa
ortodoxa (muitas vezes influenciada pelo neo-realismo italiano e por temas sérios à
Bergman): The Purple Rose of Cairo(A Rosa Púrpura do Cairo, 1985), em que um actor
de um filme que é exibido numa sala de cinema sai, literalmente, do ecrã para se apaixonar
por uma rapariga da “vida real”; E Zelig (1983), fascinante exercício de falso
documentário e um dos menos lembrados filmes do cineasta de Nova Iorque. É também
um dos mais estranhos, originais e criativos de toda a sua carreira. Talvez seja pouco
(re)conhecido pelo facto de ser um filme conceptual, muito estilizado e de não se encaixar
facilmente nas categorias convencionais de cinema, menos ainda, no típico registo de
comédia habitual de Woody Allen. Aqui o realizador arrisca e ensaia uma experiência
estética inaudita (desde logo por ser a preto e branco), onde a comicidade ganha novas
texturas pelo entrelaçado entre a realidade e a ficção. É de novo um Woody Allen
apalhaçado, mas muito mais sofisticado e corajoso. Quem mais, senão Woody, poderia
conceber uma personagem chamada Leonard Zelig que foi um indivíduo que ficou muito
famoso nos anos 1920/30 devido ao facto de possuir uma estranha e invulgar capacidade
– a de adquirir a aparência física e mental daqueles com quem convivia. No meio de
negros, Leonard Zelig ficava um negro; no meio de pessoas gordas, tornava-se gordo;
com índios, ganhava aparência de índio; ao lado de psicólogos, passava-se por psicólogo,
no meio de judeus ortodoxos, idem… Só não conseguia transformar-se em mulher devido
à “extrema complexidade atribuída ao sexo feminino”. Esta capacidade de se transformar
tornou Zelig numa espécie de camaleão humano, suscitando o interesse científico de
médicos, políticos, jornalistas e psiquiatras. Ou seja, Woody Allen camaleão espelha na
sua arte uma realidade camaleónica.
Neste filme de rara inteligência e humor Woody Allen assume três funções: argumentista,
realizador e ator. O filme é todo ele filmado como se se tratasse de um verdadeiro
documentário, recorrendo a imagens e fotografias de arquivo dos anos 20 americanos,
com testemunhos de figuras da cultura como Susan Sontag ou Saul Bellow, que contam
as peripécias de Zelig. Leonard Zelig consegue conviver com figuras históricas
como Hilter, o Papa Pio XXI, Al Capone, Charlie Chaplin, James Cagney, entre muitas
outras. Só a doutora Eudora Fletcher (magnífica Mia Farrow) consegue compreender o
distúrbio de Zelig, tentando ajudá-lo a superá-lo com uma terapia que vai desencadear
uma aproximação amorosa entre ambos. Visualmente, Zelig é um trabalho de pura
mestria plástica e técnica. Para tal muito contribuiu um dos maiores diretores de fotografia
de sempre, Gordon Willis (nomeado ao Óscar pela fotografia). Para recriar imagens que
pudessem passar por cenas de um verdadeiro documentário, Gordon Willis filmou com
câmaras de 8mm e colocou os negativos numa banheira cheia de água. Raspou-os no chão
e submeteu-os ao frio, ao calor e à humidade, para os desgastar e, assim, ficarem com a
aparência de imagens com 60 ou 70 anos. Zelig é, pois, um objeto cinematográfico que
desafia regras e convenções, está repleto de humor subtil, coloca
questões freudianas sobre a personalidade e lança críticas à sociedade de massas dos EUA
(a dissolvência da identidade individual face ao coletivo social).
Depois há outra fase da carreira de Woody Allen na qual sofre uma mutação trágico-
cómica, fruto do seu pessimismo existencial. O cineasta larga a capa de palhaço leviano
e subtil e veste a do palhaço soturno e sorumbático. Filmes como Interiors (Intimidade,
1979), Crimes and Misdemeanors (Crimes e Escapadelas, 1989), Stardust
Memories (Recordações, 1980) ou Another Woman (Uma Outra Mulher, 1988). Filmes
feitos por um “palhaço triste”, vencido, que refletem o olhar negro do imaginário de
Woody, ainda que, a espaços, possa haver momentos de uma suave e melancólica doçura
humorística. Nesta senda o Woody Allen mais extremo é, quiçá, Match Point (2005),
um retrato negríssimo da alma humana, da casualidade da vida, da imprevisibilidade do
amor e dos efeitos hediondos da ambição revestida de obsessão. Os dilemas morais e
existenciais, as angústias e medos interiores que perpassam por este filme tomam
proporções emocionais insuportáveis. Para os personagens e para os espectadores. É uma
obra de um pessimismo pragmático (longe das habituais coordenadas do humor nonsense)
que olha a condição humana com uma frieza perturbante e cínica, pejada de pecados
infames, sem apaziguamentos de qualquer ordem moral, sem esperança nem redenção. É
como se autores pessimistas como Schopenhauer, Emile Cioran, Nietzsche e Thomas
Bernard contaminassem o espírito de Woody Allen, sugando-lhe as réstias de sangue
humano quente (leia-se optimismo, humor, comédia). É a veia mais lúgubre e arrasadora
de Woody Allen, que destila crimes sem sentido, mortes por “obrigação moral”, ódios
mundanos e metafísicos, desnorte existencial e pitadas de um ténue e cirúrgico humor
negro. É o Woody Allen mais existencialista que se possa imaginar, sem esperança de
redenção nem fé no que quer que seja, com um olhar clínico sobre o desejo, a morte, o
medo, a consciência, o pecado, o perdão.
Woody, apesar de um enorme humorista acaba por utilizar a sua comédia como máscara
para esconder o seu pessimismo sobre a vida. Grande parte dos seus filmes conseguimos
encontrar o seu modo de pensar sobre a vida e a morte. Contudo ele consegue fazê-lo de
uma forma inteligente e com um humorismo que supera a racionalidade regular. Por essa
mesma razão os seus filmes têm tanto de inabitual como de interessante. E a sua forma
de pensar leva-nos a crer que o mundo não deve seguir o sistema.

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