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“Cinema de Mulheres como Contra-Cinema”, Claire

Johnston
Tradução: Aline Garcia. Texto original publicado no livro Notes on
Women's Cinema (1973).

1. Mitos sobre Mulheres no Cinema

“...ali surgiram, distinguíveis [identificáveis] através de estética, comportamento e atributos


padronizados, os marcantes tipos de Vamp e da ‘Puritana’ [Straight Girl] (talvez os
equivalentes modernos mais convincentes das personificações medievais dos Vícios e
Virtudes), o Homem de Família e o Vilão, este último marcado por um bigode preto e uma
bengala. Cenas noturnas eram gravadas em filme azul ou verde. Uma toalha de mesa
xadrez significava, definitivamente, um ambiente ‘pobre porém honesto’; um casamento
feliz que em breve sofreria ameaças das sombras do passado, simbolizadas pela jovem
esposa servindo café ao marido; o primeiro beijo invariavelmente anunciado pela moça
ajustando a gravata borboleta do parceiro e invariavelmente acompanhado pelo levantar
de sua perna esquerda. A conduta das personagens era predeterminada conformemente.”
1 2
(Erwin Panofsky em Estilo e Mídia nos Filmes , 1934, e em Filme: Uma Antologia , editado
por D Talbot, Nova York, 1959).

A detecção, por Panofsky, dos estereótipos primitivos característicos do início do cinema


poderia ser útil para discernir como mitos sobre as mulheres se deram no cinema: porque a
imagem do homem sofreu rápida diferenciação enquanto os estereótipos femininos se
mantiveram, com pequenas modificações. Muito do que se escreveu sobre essa
estereotipificação toma como ponto de partida uma visão monolítica da mídia como repressiva e
manipulativa: nessa perspectiva Hollywood tem sido vista como uma fábrica de sonhos
produzindo um produto cultural opressivo. Essa visão super-politizada pouco tem a ver com as
ideias sobre arte expressas seja por Marx ou Lenin, ambos que apontaram para uma ausência
completa de conexão entre o desenvolvimento de arte e a base material da sociedade. A ideia
da intencionalidade da arte que essa visão sugere é extremamente enganosa e retrógrada,
estragando a possibilidade de uma crítica que poderia se provar útil para desenvolver uma
estratégia para o cinema de mulheres. Se aceitamos que o desenvolvimento de estereótipos
femininos não foi uma estratégia consciente da máquina de sonhos hollywoodiana, o que nos
restaria? Panofsky localiza as origens da iconografia e do estereótipo no cinema em relação a
uma necessidade prática; ele sugere que nos primórdios do cinema a audiência tinha muita
dificuldade em decifrar o que aparecia na tela. Iconografia fixa, naquela época, foi introduzida

1
Style and Medium in the Motion Pictures.
2
Film: An Antology.
para amparar no entendimento e fornecer à audiência fatos básicos para a compreensão da
narrativa.
Iconografia como um tipo específico de signo ou grupo de signos baseados em certas
convenções dentro dos gêneros de Hollywood tem sido parcialmente responsável pela
estereotipização de mulheres no cinema comercial em geral, mas o fato que há uma distinção
bem maior de papeis para os homens do que para as mulheres na história do cinema relaciona-
se com a ideologia sexista propriamente dita e a oposição básica que coloca o homem dentro da
história e a mulher fora dela e eterna. Ao longo do desenvolvimento do cinema, a estereotipização
do homem foi interpretada cada vez mais como contrária à realização da noção de “caráter”; no
caso da mulher, não foi o que aconteceu; a ideologia dominante apresentou-a como eterna e
imutável3, exceto por modificações relacionadas a moda, etc. Em geral, os mitos regendo o
cinema não são diferentes daqueles que regem outros produtos culturais: eles correspondem a
um sistema padronizado de valores que informa todos os sistemas culturais em determinada
sociedade. O mito faz uso de ícones, mas o ícone é seu ponto mais fraco. Além disso, é possível
utilizar ícones (ex.: configurações convencionais) diante e contra a mitologia comumente
associada com eles. Em seu trabalho magistral sobre mito (Mitologias,4 Jonathan Cape, Londres
1971), o crítico Roland Barthes examina como mito, enquanto o significador de uma ideologia,
opera, ao analisar toda uma gama de itens: um prato nacional, um casamento social5, uma
fotografia da revista francesa Paris Match. Em seu livro, ele analisa como um signo pode ser
esvaziado de seu significado denotativo original e ter um novo significado conotativo sobreposto
nele. O que era um signo completo constituído de um significante mais um significado torna-se
o mero significante de um novo significado, o que sutilmente usurpa o lugar da denotação original.
Dessa maneira, a nova conotação é confundida pela denotação natural, óbvia e evidente: isso é
o que o transforma no significante da ideologia da sociedade em que é utilizado.
O mito então, como forma de narrativa ou discurso, representa os modos como as
mulheres tem sido usadas no cinema: ele transmite e transforma a ideologia do sexismo e a torna
invisível – quando é perceptível, desaparece – e, portanto, natural. Esse processo coloca a
questão da estereotipização das mulheres em uma perspectiva diferente. Primeiramente, essa
visão do modo como o cinema opera desafia a noção de que o cinema comercial é mais
manipulativo da imagem da mulher do que o “cinema arte”. Pode-se argumentar que,
precisamente por causa da iconografia hollywoodiana, o sistema oferece certa resistência às
influências inconscientes do mito. A ideologia sexista não é menos presente no cinema de arte
europeu devido à estereotipização aparecer de forma menos óbvia; está na natureza do mito
drenar o signo (a imagem da mulher/a função da mulher na narrativa) de seu sentido e sobrepor
outro que, assim, parece natural: de fato, um ponto favorável poderia ser feito ao filme de arte
que convida uma invasão maior do mito. Essa perspectiva assume importância considerável em
relação ao emergente cinema de mulheres. A noção convencional sobre mulheres trabalhando
em Hollywood (Arzner, Weber, Lupino, etc) é a de que elas tiveram pouca oportunidade para
expressarem verdadeiramente dentro da ideologia sexista dominante; eram “mulheres

3
Segundo o texto de Ana Catarina Pereira, ”Arte e Política: do espectador universal à passividade da
mulher que assiste”, que retoma este texto de Johnston, seria uma visão “feérica” (esplêndida, mágica,
fantástica).
4
“Mythologies”.
5
Por convenção, aristocrático, burguês.
simbólicas” e nada mais. Inclusive, pela iconografia oferecer maior resistência a caracterizações
realistas, as qualidades míticas de certos estereótipos tornam-se bem mais fáceis de remoção e
podem ser utilizadas como atalho para fazer referência a uma tradição ideológica e fornecer uma
crítica sobre ela. É possível separar os ícones do mito e então trazer reverberações dentro da
ideologia sexista em que o filme é feito. Dorothy Arzner certamente fez uso de técnicas como
essa e o trabalho de Nelly Kaplan é particularmente importante a respeito disso. Como uma
diretora europeia, ela compreende os perigos do mito invadindo o signo no cinema de arte e
deliberadamente faz uso da iconografia hollywoodiana para contrariar isso. A utilização de
“comédias malucas”6 por algumas diretoras (como Stephanie Rothman) também deriva dessa
perspicácia.
Ao rejeitar uma análise sociológica da mulher no cinema, nós rejeitamos qualquer
perspectiva em termos de realismo, já que isso envolveria uma aceitação da aparentemente
natural denotação do signo e envolveria uma negação da realidade do mito em operação.
Inserida em uma ideologia machista e um cinema dominado por homens, a mulher é apresentada
como aquilo que ela representa para o homem. Laura Mulvey em seu mais útil texto sobre o
artista pop Allen Jones (“You Don’t Know What You’re Doing Do You, Mr. Jones?”, Laura Mulvey
em Spare Rib, fevereiro de 1973), chama atenção que a mulher, como mulher, é totalmente
ausente nas produções de Jones. A imagem fetichizada representada se relaciona somente ao
narcisismo masculino: mulher representa não a si mesma, mas através de um processo de
deslocamento, o falo masculino. É provavelmente correto dizer que, apesar da enorme ênfase
que foi dada ao tema ‘a mulher como espetáculo no cinema’, a mulher como mulher se encontre
ausente deste. Uma análise sociológica baseada no estudo empírico dos papeis e temas
recorrentes levaria a uma crítica em termos de uma enumeração da noção de
carreira/lar/maternidade/sexualidade, a um exame das mulheres como figuras centrais na
narrativa, etc. Se enxergarmos a imagem da mulher como signo dentro da ideologia sexista,
veremos que a representação da mulher é meramente um item, sujeito à lei da verossimilhança
que diretores trabalharam a favor ou reagiram contra. A lei da verossimilhança (que determina a
impressão do realismo) no cinema é precisamente responsável pela repressão da imagem da
mulher como mulher e a celebração de sua não-existência.
Esse argumento torna-se mais claro quando observamos um filme que gira
completamente em torno de uma mulher e da ideia da (mulher) estrela de cinema. Em suas
análises de Marrocos, de Sternberg, os críticos da Cahier du Cinema delinearam o sistema que
está em operação: para que o homem mantenha-se no centro do universo em um texto que foca
na imagem da mulher, o autor é forçado a reprimir a ideia da mulher como uma mulher social e
ser sexual (sua Outridade7) e negar a oposição homem/mulher completamente. A mulher como
signo, então, torna-se o pseudo-centro do discurso fílmico. A oposição verdadeiramente imposta
pelo signo é de homem/não-homem, que Sternberg estabelece pelo uso de roupas masculinas
envelopando a imagem de Dietrich. Esse disfarce indica a ausência do homem, uma ausência
que é simultaneamente negada e recuperada pelo homem. A imagem da mulher torna-se
meramente o traço da exclusão e repressão da Mulher. Todo fetichismo, como Freud observou,
é uma reposição do falo, uma projeção da fantasia narcisista masculina. O star system por inteiro

6
Screwball comedies, gênero fílmico chamado por Johnston como “crazy comedies”.
7
“Otherness”.
dependia da fetichização da mulher. Muito do trabalho feito no star system concentra-se na
estrela como foco para sonhos falsos e alienantes. Essa abordagem empírica está
essencialmente preocupada com os efeitos do star system e a reação da audiência. O que a
fetichização da estrela indica é a fantasia coletiva do falocentrismo. Isto é particularmente
interessante quando nós olhamos para a persona de Mae West. Muitas mulheres interpretaram
sua paródia do star system e sua agressão verbal como uma tentativa de subverter a dominação
masculina no cinema. Se prestarmos atenção, existem diversos traços de reposição do falo na
persona dela que sugeriria o contrário. A voz em si é fortemente masculina, sugerindo a ausência
do homem, e estabelece uma dicotomia homem/não-homem. O vestido fálico característico
possui elementos do fetiche. A imagem da mãe, elemento feminino que é introduzido, expressa
a fantasia edipiana masculina. Em outras palavras, no nível inconsciente, a persona de Mae West
é consistente com a ideologia machista; não subverte de modo algum os mitos existentes, mas
os reforça.
Em seu primeiro editorial, as editoras da revista Women and Film atacam o conceito da
teoria do autor, descrevendo-a como “uma teoria opressiva que transforma o diretor em uma
superestrela como se o processo de fazer um filme fosse uma façanha de um homem só”. Esse
não é o ponto. Claramente, alguns desdobramentos da teoria do autor tendem a idolatrar a
personalidade do diretor (homem), e Andre Sarris (o principal foco do ataque) é um dos piores
infratores nesse quesito. Seu tratamento depreciativo de diretoras na The American Cinema
indica claramente seu sexismo. Entretanto, o desenvolvimento da teoria do autor marcou uma
importante intervenção na crítica cinematográfica: suas polêmicas desafiaram a visão
consolidada de Hollywood como monolítica e, desfeita de seus aspectos normativos, a
classificação de filmes através da direção tem se provado um modo extremamente produtivo de
ordenar nossa experiência no cinema. Ao demonstrar que Hollywood era pelo menos tão
interessante quanto o cinema-arte, ela serviu como um importante avanço. A validação de
qualquer teoria deveria ser a capacidade em produzir novo conhecimento: a teoria do autor
certamente conseguiu esse feito. Outras elaborações da teoria do autor (ver Peter Wollen, Signos
e Significados no Cinema8, Secker & Warburg, Cinema One Series, Londres, 1972) destacaram
o uso da teoria para delinear a estrutura inconsciente do filme. Como Peter Wollen disse, “a
estrutura associada com um único diretor, um indivíduo, não porque ele tem desempenhado o
papel de artista, expressando a si mesmo ou a visão dele no filme, mas é em suas preocupações
que um significado inconsciente, não intencional, pode ser desvendado no filme, geralmente para
a surpresa do próprio indivíduo”. Desse modo, Wollen separa tanto da noção de criatividade que
domina a noção de “arte”, quanto da ideia de intencionalidade.
Em um exame breve dos mitos da mulher subjacentes aos trabalhos de dois diretores
hollywoodianos, Ford e Hawks, e fazendo uso das descobertas e dos insights derivados da
análise de autores, é possível perceber que a imagem da mulher assume significados bem
diferentes dentro dos textos fílmicos de cada autor. Uma análise sobre a presença ou ausência
de figuras “positivas” de heroínas ao longo das obras de um mesmo diretor resultaria em uma
perspectiva bastante diferente. O que Wollen refere como “forças das preocupações do autor”
(incluindo as obsessões sobre mulheres) é gerada pela história psicanalítica do autor. Essa rede
organizada de obsessões está além do alcance da decisão do autor.

8
Signs and Meaning in Cinema.
Hawks vs Ford
Os filmes de Hawks celebram a solidariedade e o valor do grupo exclusivamente
masculino, dedicado à vida de ação e aventuras, além de uma ética profissional rígida. Quando
mulheres invadem seu mundo, elas representam uma ameaça à própria existência do grupo.
Entretanto, mulheres aparentam ter características “positivas” nos filmes de Hawks: elas
constantemente são mulheres profissionais e demonstram sinais de independência e
agressividade em relação ao homem, particularmente em suas comédias malucas. Robin Wood
destacou bem que as comédias malucas apresentam uma versão invertida do universo de
Hawks. O homem muitas vezes é humilhado ou retratado como infantil ou retrógrado. Filmes
como Bringing Up Baby9, His Girl Friday10 e Gentleman Prefer Blondes11 combinam, como Wood
disse, “farsa e horror”; eles são “perturbadores”. Para Hawks há somente o homem e o não-
homem: para ser aceita no universo masculino, a mulher deve tornar-se homem;
alternativamente, torna-se “mulher-fálica”12 (caso de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem
as Loiras). Essa característica perturbadora nos filmes de Hawks tem relação direta com a
presença da mulher; ela é uma experiência traumática que deve ser negada. O universo de Ford
é bem distinto, onde mulheres desempenham um papel fundamental: é entorno de suas
presenças que se centram as tensões entre o desejo pela existência errante e o desejo de
assentamento, a ideia de imensidão e a ideia de ordinário. Para Ford, mulher representa o lar e
com ele a possibilidade de cultura. Ela se torna o vazio no qual Ford projeta sua atitude
profundamente ambivalente sobre os conceitos de civilização e “completude” psicológica.
Enquanto o retrato de mulheres por Hawks envolve um confronto direto com a
problemática (traumática) presença feminina, uma confrontação que resulta em sua necessidade
de reprimi-la, o uso, por Ford, da mulher como um símbolo para civilização consideravelmente
complica toda a questão da representação da mulher em seu trabalho, deixando espaço para
elementos mais progressivos surgirem (ex.: Seven Women13 e Cheyenne Autumn14).

2. Rumo a um Contra-Cinema
“Não existe algo como escrita, filmagem ou transmissão não-manipulada. A questão,
portanto, não é se as mídias são manipuladas, mas quem as manipula. Um plano
revolucionário não deveria requerer que os manipuladores desapareçam; pelo contrário,
ele precisava tornar cada pessoa um manipulador.” (Hans Magnus Enzensberger em
15
Constituintes de Uma Teoria de Mídia , New Left Review nº 64).

Enzensberger sugere que a maior contradição funcionando na mídia é aquela entre sua
constituição atual e seu potencial revolucionário. Nitidamente, um uso estratégico da mídia e de

9
No Brasil, Levada da Breca (1938).
10
Jejum de Amor (1940).
11
Os Homens Preferem as Loiras (1953).
12
“Woman-as-phallus”.
13
Sete Mulheres (1966).
14
No Brasil, Crepúsculo de uma Raça (1964).
15
“Constituents of a Theory of Media”.
filmes, em particular, é essencial para disseminar nossas ideias. No presente momento, a
possibilidade de feedback é baixa, apesar de que o potencial já existe. Em face de tais
possibilidades, é particularmente importante analisar qual é a natureza do cinema, e qual uso
estratégico pode ser feito dele em todas suas formas: do filme político ao comercial, de
entretenimento. POLEMICS para [a favor?] criatividade feminina são aceitáveis desde que nós
saibamos que são POLEMICS. A noção da criatividade de mulheres per se é tão limitada quanto
a noção da criatividade dos homens. Basicamente, é uma concepção idealizada que eleva a
ideia de “artista” (envolvendo a queda do elitismo) e destrói qualquer visão de arte como algo
material dentro de um contexto cultural que a forma e é formado por ela. Todos os filmes ou
objetos artísticos são produtos de um sistema existente [gerido por] relações econômicas, em
uma análise final. Isso se aplica igualmente a filmes experimentais, políticos e comerciais
(cinema de entretenimento). Filme também é um produto ideológico – o produto de uma ideologia
burguesa. A ideia de que arte é universal e, portanto, potencialmente andrógina é basicamente
uma noção idealista: arte só pode ser definida como um discurso dentro de certa conjuntura –
tratando-se do cinema de mulheres, a ideologia burguesa e sexista de um capitalismo dominado
pelo masculino. É importante assinalar que os funcionamentos da ideologia não envolvem um
processo de enganação/intencionalidade. Para Marx, ideologia é uma realidade, não uma
mentira. Tal equívoco pode ser extremamente ilusório; não há como eliminarmos ideologia com
força de vontade. Isso é profundamente importante quando se trata da discussão do cinema de
mulheres. As ferramentas e técnicas do cinema em si, como parte da realidade, são uma
expressão da ideologia prevalecente: elas não são neutras, como muitas realizadoras parecem
acreditar. É uma mistificação idealista acreditar que a “verdade” pode ser captada pela câmera
ou que as condições de produção de um filme (por exemplo, um filme feito coletivamente por
mulheres) podem refletir essas condições por si próprias. Mero utopismo: novos significados
devem ser fabricados dentro do discurso fílmico. A câmera foi desenvolvida para reproduzir
fielmente a realidade e garantir a noção burguesa de realismo que estava sendo substituída nas
pinturas. Também pode-se discernir um elemento sexista regendo o desenvolvimento técnico da
câmera. Na verdade, a câmera leve foi desenvolvida já na década de 1930, na Alemanha nazista,
por motivos de propaganda; a razão porque não se tornou comum até os anos 1950 mantém-se
obscura.
A maioria do emergente cinema de mulheres pegou sua estética da televisão e das
técnicas do cinema vérité (como Three Lives16, Women Talking17); o documentário Portrait of
Jason, de Shirley Clarke18, tem sido citado como uma influência importante. Esses filmes em
grande parte retratam imagens de mulheres falando para a câmera suas experiências, com
pouca ou nenhuma intervenção por parte da realizadora. Kate Millett resumiu a abordagem em
Three Lives: “eu não queria mais analisar, mas sim, expressar” e “o filme é um jeito muito
poderoso de alguém se expressar”.
Claramente, se aceitarmos que o cinema envolve a produção de signos, a ideia de não-
intervenção é pura mistificação. O signo é sempre um produto. O que a câmera capta de fato é

16
Documentário de 1971.
17
Série televisiva de 1967.
18
Portrait of Jason é um filme documentário de 1967 dirigido, produzido e editado por Shirley Clarke e
estrelando Jason Holliday (pseudônimo de Aaron Payne, 1924-1998). Sendo trechos de uma entrevista
de 12 horas, Payne conversa sobre o que é ser negro e gay nos Estados Unidos da década de 1960.
o mundo “natural” da ideologia dominante. O cinema de mulheres não pode se dar ao luxo de tal
idealismo; a “verdade” da nossa opressão não pode ser “captada” em celuloide pela ‘inocência’
da câmera: tem de ser construída/manufaturada. Novos significados devem ser criados
rompendo com a estrutura da ideologia burguesa masculina dentro do texto fílmico. Como Peter
Wollen aponta, “realidade é sempre adaptativa”. Aqui, o método eisensteiniano é instrutivo. Em
seu uso da fragmentação como uma estratégia revolucionária, um conceito é gerado através do
encontro de duas imagens específicas, para que então sirvam como um conceito abstrato no
discurso fílmico. Essa ideia da fragmentação como ferramenta analítica é bem diferente do uso
da fragmentação sugerido por Barbara Martineau em seu artigo. Ela vê a fragmentação como a
justaposição de elementos díspares (ver Lion’s Love19) para evocar reverberações emocionais,
mas essas não fornecem um modo em si para compreensão. No contexto do cinema de
mulheres, tal estratégia seria totalmente recuperável pela ideologia dominante: de fato, pela sua
dependência na emoção e no mistério, ela convida a invasão da ideologia. A lógica definitiva
desse método é escrita automática desenvolvida pelos surrealistas. Romantismo não irá nos
prover com as ferramentas necessárias para a construir um cinema de mulheres: nossa
objetificação não pode ser superada simplesmente por examiná-la artisticamente. Só pode ser
desafiada através do desenvolvimento de modos de questionar o cinema burguês masculino.
Além do mais, um desejo por mudança só pode ser realizado através da fantasia. O perigo de
desenvolver um cinema de não-intervenção é que ele promove a subjetividade passiva às custas
da análise. Qualquer estratégia revolucionária deve desafiar o retrato da realidade; não é
suficiente discutir a opressão da mulher no texto fílmico; a linguagem do cinema/o retrato da
realidade também deve ser questionado para que a ruptura entre ideologia e texto seja efetivada.
Sobre isso, é informativo perceber filmes feitos por mulheres dentro do sistema hollywoodiano
que tentaram, nos modos formais, trazer um deslocamento entre a ideologia machista e o
discurso do filme; tais compreensões podem provar-se diretrizes úteis das quais o emergente
cinema de mulheres pode beber.

Dorothy Arzner e Ida Lupino


Dorothy Arzner e Lois Weber eram basicamente as únicas mulheres que, trabalhando em
Hollywood durante as décadas de 1920 e 1930, conseguiram construir uma carreira consistente
no cinema: infelizmente, sabe-se muito pouco sobre seus trabalhos até hoje. Uma análise de um
dos últimos filmes de Arzner, Dance, Girl, Dance (A Vida é uma Dança), feito em 1940, dá alguma
ideia de seu caminho no cinema de mulheres dentro da ideologia machista hollywoodiana. Com
uma história vaudeville20 convencional, A Vida é uma Dança é centrado nas vidas de um grupo
de dançarinas miseráveis. As personagens principais, Bubbles e Judy, são representativas do
primitivo retrato iconográfico das mulheres – vamp e puritana – descrita por Panofsky. A partir
desse estereótipo básico, Arzner consegue gerar, dentro do texto fílmico, uma crítica interna a
ele. Bubbles consegue um emprego e Judy se torna mera “escada” em sua performance,
dançando balé para entreter uma plateia inteiramente masculina. A crítica de Arzner centra-se

19
O Amor dos Leões, filme de 1969 dirigido por Agnès Varda.
20
“Gênero de entretenimento de variedades predominante nos Estados Unidos e Canadá do início dos
anos 1880 ao início dos anos 1930” (Wikipédia).
no conceito da mulher como espetáculo, como uma dançarina dentro do universo do homem. As
figuras centrais aparecem como uma paródia da performance, representando polos opostos do
mito da feminilidade – sexualidade versus graça & inocência. A contradição central, ao articular
suas existências como dançarinas para a satisfação dos homens, é uma com a qual a maioria
das mulheres se identificaria: a contradição entre a vontade de agradar e a expressão pessoal –
Bubbles precisa agradar o homem, enquanto Judy busca se expressar como uma bailarina. Ao
decorrer do filme, um processo unilateral do espetáculo é firmemente estabelecido, envolvendo
a humilhação de Judy. Mais para o final, Arzner produz seu triunfo, abrindo a estrutura do filme
por completo e expondo a atuação da ideologia na construção do estereótipo da mulher. Judy,
em um ataque de raiva, volta-se para a audiência e diz como ela os vê. Esse retorno do
escrutínio, a partir do qual o filme é presumido como um processo unilateral, constitui um ataque
direto à plateia dentro do filme e ao público do filme, tendo o efeito de desafiar diretamente toda
a noção da mulher como espetáculo.
A entrada de Ida Lupino no cinema de mulheres é um pouco diferente. Como produtora
e diretora independente trabalhando em Hollywood nos anos 1950, Lupino escolheu lidar
majoritariamente com o melodrama, um gênero que, mais do que qualquer outro, apresenta uma
versão menos reificada da mulher e, como indica o trabalho de Sirk, é maleável por expressar
ao invés de incorporar a ideia da opressão feminina. A análise de Not Wanted (1949), o primeiro
longa de Lupino, dá alguma noção da ambiguidade perturbadora de seus filmes e da relação que
estabelecem com a ideologia machista. Ao contrário de Arzner, Lupino não se preocupa em
aplicar meios puramente formais para alcançar seu objetivo. Na verdade, é duvidoso se ela opera
de maneira consciente a subversão da ideologia sexista. O filme conta a história de uma garota
jovem, Sally Kelton, de um ponto de vista subjetivo e filtrado por sua imaginação. Ela tem uma
criança ilegítima que é em pouco tempo adotada. Incapaz de aceitar a perda do filho, ela pega o
bebê de um carrinho e é apanhada pelas autoridades. No final, Sally encontra o substituto para
a criança em um jovem aleijado que, através de um processo de castração simbólico – no qual
ele é forçado a persegui-la até não mais aguenta, ao que ela o toma nos braços enquanto ele
faz gestos infantis –, proporciona o “final feliz”. Apesar dos filmes de Lupino de modo algum
atacarem explicitamente ou exporem o funcionamento da ideologia sexista, repercussões dentro
da narrativa provocadas pela convergência de duas vertentes irreconciliáveis – mitos
hollywoodianos da mulher versus a perspectiva da mulher – causam uma série de distorções
dentro da própria estrutura da narrativa; a marca da deficiência coloca o filme sob o signo da
doença e da frustração. Um exemplo desse processo é, por exemplo, o “final feliz” invertido do
filme.
A intenção por traz de demarcar o interesse em diretoras hollywoodianas como Dorothy
Arzner e Ida Lupino é dupla. Em primeiro lugar, é uma tentativa polêmica de resgatar o interesse
por Hollywood após os ataques que sofreu. Em segundo, uma análise do funcionamento do mito
e das possibilidades de subvertê-lo na indústria cinematográfica poderiam tornar-se úteis para
determinar uma estratégia de subversão da ideologia em geral.
Talvez algo devesse ser dito sobre o cinema de arte europeu; sem dúvidas ele é mais
aberto à invasão do mito do que o filme de Hollywood. Isso torna-se óbvio quando analisamos o
trabalho de Riefenstahl, Companeez, Trintignant, Varda e outros. Os filmes de Agnès Varda são
um exemplo particularmente bom de uma obra que celebra os mitos burgueses sobre a mulher
e, com eles, a aparente inocência do signo. Le Bonheur21, especificamente, quase demanda uma
análise Barthesiana. O retrato da fantasia feminina por Varda constitui-se de uma das estimativas
existentes no cinema que mais se aproximam das condescentes ilusões perpetuadas pela
publicidade. Seus filmes aparentam total inocência ao mito; inclusive, é a finalidade do mito
fabricar um sentimento de inocência em que tudo se torna “natural”. A preocupação de Varda
com a naturalidade é uma expressão direta dessa fuga da história: a história é transmutada,
eliminando todas as questões porque tudo parece “natural”. Não há dúvida que o trabalho de
Varda é reaccionário: na sua rejeição da cultura e na colocação da mulher fora da história, os
seus filmes marcam um passo retrógrado no cinema realizado por mulheres.

3. Conclusão
Qual tipo de estratégia, portanto, é apropriada no atual momento? O desenvolvimento do
trabalho coletivo obviamente é um enorme avanço. Como forma de adquirir e compartilhar
habilidades, constitui-se em um desafio formidável ao privilégio masculino na indústria
cinematográfica: como expressão de irmandade, sugere uma alternativa viável às estruturas
hierárquicas rígidas de um cinema dominado por homens e oferece oportunidades reais para se
dialogar sobre a natureza do cinema de mulheres de dentro delas. Nesse momento, uma
estratégia deveria ser desenvolvida abarcando ambas as noções de filmes como instrumento
político e como entretenimento. Por muito tempo eles têm sido tratados como polos opostos, de
poucas semelhanças. No sentido de contrapor nossa objetificação no cinema, nossas fantasias
coletivas devem ser liberadas: o cinema de mulheres deve incorporar o funcional através do
desejo – tal objetivo demanda o uso do filme de entretenimento. Ideias derivadas do filme
comercial, portanto, devem informar o filme político e as ideias políticas deveriam informar o
cinema de entretenimento: um processo de mão dupla. Por fim, a afirmação, repressiva e
moralista de que o cinema de mulheres é uma realização coletiva, é enganosa e desnecessária
– nós devemos buscar operar em todos os níveis: dentro do cinema majoritariamente masculino
e fora dele. Esse ensaio buscou demonstrar o interesse de filmes de mulheres feitos dentro do
sistema. Voluntarismo e utopismo devem ser evitados caso qualquer estratégia revolucionária
venha a surgir. Um filme coletivo não pode refletir, por si próprio, suas condições de produção.
O que métodos coletivos fornecem é a verdadeira possibilidade de examinar a ideologia: será a
partir desses insights que surgirá uma concepção genuinamente revolucionária de contra-cinema
para a luta das mulheres.

21
As Duas Faces da Felicidade (1965).

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