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r. Assumimos a estratégia panorâmica, cientes de que qualquer tentativa de exa ·-· "
questão seria improdutiva e ineficiente, ainda mais nos limites de um capítulo. Além · ,
buscamos a sintonia com o projeto mais amplo deste livro, pensando a figura da lésbica 11,
contexto dos cinemas mundiais.
trama de in/visibilidade que as imagens em movimento operam. Colo-
camo-nos, pois, o desafio de pensar a questão lésbica em alguns filmes
narrativos incontornáveis para o debate sobre a sexualidade lésbica no
cinema em diversos contextos de produção. Para isso, iniciaremos com
2
uma disc~são teórica sobre o lesbianismo e sobre os modos como as
histórias do cinema reverberam estruturas como a heterossexualidade
compulsória para, em seguida, mostrar como personagens e espectado-
ras lésbicas agenciam o paradoxo da imagem da lésbica no cinema. Sem
deixar de considerar também de que maneiras as realizadoras lésbicas
que investem na agência da subjetividade lésbica em suas narrativas ne-
gociam esse paradoxo.' O pessoal, nesse caso, torna-se parte potenciali-
zadora das leituras que identificam a resistência das lésbicas no cinema,
no intrincado esquema de in/visibilidade que as circunda.
Em ensaio escrito em 2001 sobre o feminismo das mulheres
racializadas nos Estados Unidos no contexto do n de setembro, a escri-
tora lésbica xicana4 Cherríe Moraga chama a atenção para o fato de que a
existência queer não pode permanecer na ordem do privado enquanto sua
proteção não for assegurada na esfera pública (20n, p. 31). Logo, não ha-
vendo um lugar seguro para o lesbianismo, não havendo sequer reconhe-
cimento da J ésbica na esfera pública, sua existência parece mesmo fadada
ao des/aparecimento. É por isso que se torna imperativo enxergá-la no
contra-luz, tornar pública a política de sua presença/ausência para com
isso resistir às forças desse apagamento. Mas esse esforço de leitura não
pode se confundir com um gesto de "resgate", como se uma simples cons-
tatação das instâncias da vida lésbica no cinema fosse suficiente. Importa
pensar o que resta no intervalo das "aparições", na política do estar e não
2. Preferimos o termo "lesbianismo" por não entendermos que haja consenso sobre uma su-
posta medicalização da palavra nos moldes do que aconteceu com "homossexualismo". Den-
tro da academia e dos movimentos sociais, "lesbianismo" é ainda um termo aceitável, mesmo
que haja o uso alternativo da palavra "lesbiandade",
3. E se acabamos por não discutir com maior verticalidade como as atrizes reconhecidamente
lésbicas podem, mesmo que involuntariamente, perturbar os limites do filme com seu
extracampo atravessado de imagens e discursos de lesbianismo, é por pura falta de espaço.
4. Derivado de mexicana e da forma curta 'chicana', esta usada para designar os cidadãos
originários do México no contexto estadunidense, o termo 'xi cana', grafado com x, resulta de
uma postura política que reconhece no x a herança náuatle de formação do povo mexicano.
estar, do ser e não ser, do (não) ver e (não) ser vista, que coloca a questão
lésbica na real condição de sua marginalidade em relação à heteronor-
matividade predominante no cinema narrativo industrial, ainda que não
restrita a esse registro.
Com Wittig (1991), entendemos que a lésbica constitui em si
um ato político, na medida em que recusa a empresa patriarcal, não parti-
cipando do "contrato ,terossexual', uma vez que seu desejo não se dirige
ao homem, de quem ela não precisa e com quem não se relaciona afetiva e
sexualmente. Se na compreensão do patriarcado, a mulher heterossexual
pode ser vista de forma subalterna ao homem, a lésbica existe ainda mais
à margem, justamente porque dele prescinde.5 Não é à toa que o cinema
narrativo, que tende a ser predominantemente heteronormativo, relega-a
ao anonimato, ou, para sermos mais justas, costuma puni-la pela ousadia
de recusar essa ordem. Sob tal lógica, ainda que penalizada, a lésbica ne-
cessariamente escapa à ordem normati/lizadora dos desejos, tais como
repetidos e perpetuados pela narrativa cinematográfica mainstream. É por
tal razão que não basta contabilizar a presença (ou ausência) da lésbica no
cinema, nem simplesmente analisar sua trajetória na narrativa, sem levar
em consideração as mais variadas implicações da dinâmica de in/visibi-
lidade que a construção da linguagem audiovisual lhe coloca. Na dobra
dessa dinâmica, temos a complicação de uma hipervisibilidade, que pode
ser relacionada a uma tentativa de domesticação da lésbica através de um
enquadramento no desejo masculino.
Pensemos, por exemplo, como o excesso de visibilidade em
filmes como Azul é a cor mais quente (Abdellatif Kechiche, 2013) e A cria-
da (Park Chan-Wook, 2016) instala uma nova complexidade no paradoxo
da in/visibilidade lésbica. Em princípio, tais filmes parecem "resolver" a
questão da ausência ao colocar um relacionamento lésbico no centro da
narrativa e reconhecer visualmente sua atividade sexual, destacada em
minuciosas cenas de sexo. Entretanto, porque filmadas com as câmeras
9. Estamos falando aqui de um filme que foi possível no contexto alemão imediatamente
anterior ao Terceiro Reich. Com a ascensão do nazismo na Alemanha, a indústria
cinematográfica alemã passou a ser utilizada para propaganda por Adolf Hitler,
introduzindo um viés ideológico que desprezava qualquer arte "pervertida".
mulher na indústria hollywoodiana a contrapelo. Uma importante con-
tribuição, nesse sentido, é The work of Dorothy Arzner: Towards a [emi-
nist cinema, editado por Claire johnston, que, em seu capítulo "Dorothy
Arzner: critical strategies", discute a inversão de papéis operada pela di-
retora, em cujos filmes os homens aparecem como elemento estranho, já
que as narrativas são focadas no universo feminino, subvertendo, assim,
as codificações da linguagem clássica cristalizadas segundo os preceitos
e a perspectiva masculina.
De um ponto de vista materialista, não podemos ignorar
que os meios de produção de um longa metragem comercial são de
difícil acesso às mulheres em geral e às lésbicas em particular. Não sur-
preende que cineastas lésbicas adotem um modo de produção indepen-
dente, com valores de produção mais baixos. Além disso, no circuito
crítico e curatorial mundial, prevalece uma atitude modernista que, ao
reforçar a noção de uma esfera autônoma e universal da arte, parece
sempre querer dizer "Desculpe, mas não estamos nem aí para o que
vocês fazem na carna"." Diante desse quadro, White (2008, p. 4ro) de-
fende um cinema lésbico menor, pois "se as lésbicas são raramente o
tema ou as autoras de longa metragens de longo alcance comercial, nós
temos, ainda assim, feito uso do menor de maneira bem sucedida" (grifo
nosso). Menor, para White, refere-se tanto a filmes feitos sem preten-
são de carreira comercial e destinados ao circuito mais estrito de festi-
vais, quanto a obras que "empregam uma certa 'pobreza' - em termos
de produção ou abordagem estética - e que se desviam da demanda
do público por histórias familiares, finais felizes, prazeres repetíveis,
identidades asseguradas'?' (2008, p. 4n). Esse sentido de menor usado
por White aproxima-se da definição de textualidade queer, delineada
por De Lauretis, que chama de "queer um texto de ficção - literário ou
audiovisual - que não apenas trabalha contra a narratividade, contra a
10. Fabienne Worth (1993, p. 55) relata sua experiência como espectadora lésbica do Festival
lnternational de Films de Femmes em Créteil, França, onde uma debatedora respondeu ao
questionamento sobre a falta de representatividade lésbica no festival da seguinte forma:
"Sinto muito por você. Mas não estamos nem aí para o que vocês fazem na cama. A gente
quer saber é de arte".
n. Todas as traduções feitas dos textos originais são nossas.
pressão de gênero de toda narrativa em direção ao fechamento e com-
pletude do significado, mas que também perturba a referencialidade da
linguagem e a referencialidade da imagem" (zorr, p. 244).
É preciso reconhecer que a proposta de um cinema menor
lésbico de White e a definição da textualidade queer de Lauretis estão ao
mesmo tempo aquém e além do campo das obras audiovisuais feitas por
e a respeito das lésbicas. No entanto, como reconhece White, "elas atuam
de modo crucial na interseção entre autoria e espectatorialidade, entre
forma e conteúdo, e entre desejo e identificação" (2008, p. 244). Estando
à margem de uma produção hegemônica, realizadoras lésbicas fazem uso
de estratégias que resistem, ou simplesmente ignoram, o poder cultural
do cinema maior.
'\ A realizadora francesa Germaine Dulac, por exemplo, pode
ser considerada uma das pioneiras desse cinema menor. Reconheci-
da por sua provocação surrealista A concha e o clérigo (1927) e pelo
pioneirismo feminista de A sorridente Senhora Beudet (1923), Dulac
teve uma carreira muito mais profícua do que essas referências tra-
dicionais podem deixar transparecer. Atuou na crítica e na teoria do
cinema, no documentário, no cinema experimental e no cinema co-
mercial. Sua busca por um "cinema puro" e sua percepção da criação
do choque através da justaposição de planos anteciparam reflexões
e práticas que, quando posteriormente propostas por André Bazin e
Sergei Eisenstein, tornaram-se fulcrais para o cinema no século XX.
Williams (2014) aponta algumas obras de Dulac onde o desejo não-
-heteronormativo desponta em meio às experimentações estéticas da
diretora: La belle dame sans merci (1921), A concha e o clérigo (1927),
L'invitation au voyage (1927), La princesse mandane (1928). Operando
principalmente ao nível do subtexto (WlLLlAMS, 2014, p. n8), esses
filmes de Dulac permitem-nos começar a questionar a forma como
desejo e autoria se imbricam.
A pulsão experimental, o desafio ao modo de produção nar-
rativo representativo industrial e sua estrutura narrativa fechada, bem
como a tomada de posição autoconsciente que parte do reconhecimento
da diferença lésbica foram aprofundados anos depois por uma série de re-
alizadoras como Barbara Hammer, Jan Oxenberg, Yvonne Reiner, Ulrike
Ottinger, Su Friedrich, Sadie Benning, Monika Treut. Barbara Hammer,"
cineasta, artista do vídeo e da performance, já na década de 1960 come-
çou a desenvolver o que viria a ser um dos mais importantes conjuntos
de filmes experimentais sobre a vida e a sexualidade lésbicas. Sua saída
do armário coincidiu com o início da carreira artística, de forma que sua
sexualidade nunca se descolou da prática artística. Seus filmes, vídeos e
performances são formas de explorar práticas e estéticas do corpo lésbico,
ao mesmo tempo em que testemunham o que significa ser uma mulher
homossexual ao longo dos últimos 40 anos. Várias artistas contemporâ-
neas a Hammer colaboraram com homens e construíam, através da arte,
relações românticas heterossexuais, enquanto as artistas lésbicas reluta-
vam em tornar pública sua sexualidade. Já Hammer, desde o início, abra-
çou a sexualidade lésbica como parte essencial de sua arte. Dyketactics
(1973), por exemplo, mostra um grupo de mulheres no campo que, nuas,
se engajam em pequenos gestos, toques, carícias, e um casal (Hammer e
Poe Asher) em intenso ato sexual sob a suave luz da tarde, colocando o
corpo e a sexualidade lésbicos no centro da imagem. Não há a procura
por subtexto nem uma luta com a ambiguidade em Dyketactics: o cinema
saiu completamente do armário, compondo o rarefeito arquivo de ima-
gens do sexo lésbico que não estão atreladas a processos de reificação e
fetichização.
Realizado quase contemporaneamente a Dyketactics, Come-
dy in six unnatural acts (1975), de [an Oxenberg, também se engaja em
colocar a lésbica no centro do filme, desta vez organizando seis seg-
mentos em que o modo de vida lésbico é apresentado com humor, par-
tindo da manipulação de expectativas em relação a estereótipos como
a relação butch/femme. O cinema de Oxenberg está no limite da preca-
riedade técnica, o que não impede que, em Comedy in six unnatural acts,
ela exponha a ideologia patriarcal que, diante de uma imagem de uma
mulher, não espera encontrar a imagem de uma lésbica, como em uma
das sequências do filme em que uma adolescente, em um bailinho da
12. Uma discussão um pouco menos abreviada da carreira de Hammer e uma análise mais
detida do filme Menses pode ser encontrada no texto "Pedagogías do corpo feminino:
Réponses de femmes e Menses" (Sousa, 2016).
escola, mostra interesse por alguém que está fora do campo. Essa "pa-
quera" dura bastante tempo até ser revelado que se trata de uma outra
garota que lhe despertou interesse.
Realizadoras como Hammer e Oxenberg tentam não apenas
criar imagens que resistem ao desaparecimento da lésbica mas, também,
oferecer uma crítica à heterossexualidade compulsória e ao machismo es-
trutural. Em suma, são filmes lésbicos feministas que trabalham tanto em
uma chave mais experimental e poética (Hammer) quanto explorando o
limite da linguagem audiovisual hegemônica (Oxenberg). Nos anos 1980,
na Alemanha, Monika Treut, com seu Die jungfrauen Maschine (1988) e
Ulrike Ottinger, com Johanna d'Arc of Mongolía (1989), também mobili-
zam o desejo lésbico em suas narrativas, apostando na invenção formal.
Nessa mesma época, nos Estados Unidos, obras como Nas-
cidas em chamas (Born in Flames, 1983), de Lizzie Borden, e She Must Be
Seeíng Thíngs (1987), de Sheila McLaughlin, preparam terreno para um
fenômeno que também partiu da invenção formal e da provocação so-
cial, mas que acabou por se tornar convencional: o chamado New Queer
Cinema (NQC). Rich (2013) descreve o surgimento do NQC no início
dos anos 1990 como um conjunto de filmes gays e lésbicos de produção
independente que toma de assalto festivais e mostras. De acordo com
Rich (2013, p. 18), "definitivamente afastando-se de antigas abordagens
humanistas e de filmes e fitas que acompanham a política de identi-
dade, essas obras são irreverentes, cheias de energia, alternativamente
minimalista e excessivas".
Dentro do NQC, cineastas e filmes lésbicos acabaram tendo
pouco espaço; ainda assim, pelo menos uma obra importante emerge
nesse contexto: O par perfeito (1994), de Rose Troche. Filmado em preto
e branco, O par perfeito apresenta uma série de dispositivos narrativos
"esquisitos"," como o uso de um coro grego - espécie de "júri" de lésbi-
cas que comentam não apenas a trama, mas também aspectos políticos e
sociais. Esses dispositivos estão em constante conflito com uma história
que parte de situações clichês de comédias românticas e tais clichês de
13. Lembremos que uma possível tradução para a palavra queer é, exatamente, esquisito.
encontros e desencontros românticos ganham outra dimensão diante de
uma iconografia que traz corpos não-normativos. Muito da força do filme
vem dessas tensões e ambivalências.
Também em Su Friedrich, como aponta Mayne (2000), a ex-
ploração do desejo lésbico vem acompanhada de uma complexa ambi-
valência. Em Sink ar Swim (1990), para citarmos um exemplo, Friedrich
explora a complicada relação com seu pai. O filme é composto de 26
partes que correspondem cada uma a uma letra do alfabeto, combinan-
do imagens de filmes caseiros, da vida cotidiana e planos poéticos, na
maioria das vezes acompanhados por uma voz de criança que reflete
sobre a infância e a relação com o pai. lmagem e voz, no entanto, não
são redundantes. Pelo contrário, friccionam-se. O trecho intitulado
"virgindade", por exemplo, traz imagens de águas correntes em uma
sarjeta, enquanto a voz narra como a imaginação da menina transfor-
mava a água da sarjeta no Rio Nilo e a sua casa na árvore virava um
"harém cheio de lindas mulheres vestidas de seda e cobertas de jóias",
anunciando a emergência do desejo lésbico. lnteressantemente, o tre-
cho termina com a voz louvando a beleza do pai. Friedrich não nos
entrega resoluções fáceis e narrativas lineares, mas, antes, como argu-
menta Mayne (2000, p. 208), "uma reflexão sobre a especificidade do
desejo lésbico e a impossibilidade de fixar tal desejo em uma narrativa
ou imagem específica".
Filmes como MURDER and murder (Yvonne Rainer, 1996), All
over Me (1997), de Alex Sichel, e Nunca fui santa (1999), de Jamie Babbit,
mostram o painel diverso e a lenta, mas contínua, consolidação de um
cinema lésbico independente nos Estados Unidos, que caminha ao lado
dos avanços e retrocessos nas conquistas políticas. Essa é, aliás, uma im-
portante questão que deve ser levada para o pensamento sobre o cinema
lésbico: a maneira como o cinema se relaciona com as formas como são
nomeados o gênero e a diferença sexual que, por sua vez, estão imbrica-
das em processos transnacionais usados por grupos marginalizados para
nomearem-se na construção das noções de nação, racialização, coloniza-
ção e classe. É necessário que reconheçamos que o significado e os des-
dobramentos políticos existenciais que acompanham o termo lésbica não
podem ser universalizados.
Por isso é importante pensar como a ideia ocidental de les-
bianismo tem, de certa maneira, colonizado o pensamento sobre o ci-
nema não-ocidental. Fogo e desejo (1996), da diretora indiana-canaden-
se Deepa Mehta, ao imaginar a possibilidade de uma relação afetiva e
sexual entre duas mulheres que não corresponde a valores tradicionais
da sociedade indiana, problematiza a universalização da experiência
lésbica". No filme de Mehta, os laços familiares são esgarçados quando
as cunhadas Radha e Sita, frustradas em seus respectivos casamentos,
encontram afeto e satisfação sexual uma com a outra. Apesar do filme
dar uma narrativa de resistência e de afirmar um final feliz para as pro-
tagonistas, sua lógica, como bem aponta Desai (2004), dá a entender
que as duas protagonistas buscam uma à outra porque seus maridos
não lhes satisfazem; em suma, trata-se de uma questão de "escolha":
se os maridos não lhes satisfazem, elas podem, sendo de classe mé-
dia, escolher uma à outra. Fogo e desejo, para Desai (2004, p. 172), "no
seu contexto político e econômico, ressoa mais as possibilidades de
um mercado liberal do que as possibilidades generificadas de agência e
subjetividade no estado-nação pós-colonial". Seguindo esse raciocínio,
é importante termos em mente que uma noção liberal do desejo e da
sexualidade vai enfatizar exatamente a questão da "escolha" individual,
como se existisse um "mercado" de desejos dispostos em uma pratelei-
ra prontos para serem escolhidos e consumidos.
Um olhar cuidadoso pode reconhecer, em parte da produ-
ção cinematográfica contemporânea com temática lésbica, uma tendên-
cia, por um lado, para colocar a experiência lésbica como uma questão
de escolha no mercado liberal dos desejos e, por outro lado, para definir
tal experiência a partir da sua relação com o homem (seja por insatisfa-
ção conjugal, violência ou abuso). Os filmes de Shamin Sarif, The world
unseen (2007) e 1 can't think straight (2008), ilustram essa tendência. As
duas obras, no entanto, dialogam com outra tendência do cinema lésbico
mundial: as narrativas transnacionais. Tanto The world unseen quanto 1
can't think straíght trazem personagens na diáspora e/ou em deslocamen-
to cultural. A experiência do cruzamento de fronteiras está diretamente
ligada à experiência lésbica, como bem lembra Anzaldúa, para quem tan-
to a fronteira quanto a vulva são feridas abertas, a fronteira como o marco
divisório que fere e machuca, e a vulva como abertura ao mundo na busca
pela cura dessas dores (apud MORAGA, 20n, p. 121).
14. Fazemos menção a esse único filme brasileiro não por acreditarmos na inexistência de
um cinema lésbico no Brasil, mas por uma questão de recorte da discussão, que se pretende
mais próxima dos cinemas mundiais. Na verdade, acreditamos que uma discussão mais
panorâmica sobre a história do cinema brasileiro, incluindo o problema do desejo lésbico,
ainda está por ser feita.
15. A associação entre o desejo não-normativo e a monstruosidade é corrente na teoria
queer e na teoria do cinema (cf. WEISS, 1992; BENSHOFF, 1997). Em uma perspecti-
va ativista, Bertha Harris afirmava: "Lésbicas são tubarões, vampiros, criaturas da lagoa,
godzillas, bombas de hidrogênio, invenções de laboratório, lobisomens - todos assombran-
do Beverly Hills à noite. Christopher Lee, de drag, no período intermediário da Hammer
Films, é a minha lésbica ideal." (1977, p. 10)
de Satã" (Mario Bava, Itália, 1960), Vampyros lesbos (Jess Franco, Ale-
manha/Espanha, 1971), Escravas do desejo (Harry Kümel, Bélgica/Fran-
\ça/Alemanha, 1971), A noiva ensanguentada (Vicente Aranda, Espanha,
1972), Fome de viver (Tony Scott, EUA, 1983), entre tantos outros. É pos-
sível que a reivindicação da identidade lésbica feita por Weiss para es-
ses filmes seja desafiada do ponto de vista da bissexualidade. Boa parte
das personagens vampíricas desses filmes demonstra um apetite sexual
que transcende o desejo lésbico (e que acaba por reafirmar o estereó-
tipo da mulher bissexual como a predadora insaciável). Mais recente-
mente, filmes como Thelma (Joachim Trier, Noruega, 2017) retomam
narrativas de gênero (no caso, terror) que tematizam o desejo lésbico,
agora em uma chave em que a descoberta do desejo está associada à
natureza. Seja na estética camp dos anos 1950/60, na hiperestilização
dos anos 1970/80, ou na forma refrescada de filmes como Thelma, o
grande paradoxo da figura da lésbica monstruosa é que, mesmo quan-
do a pedagogia do monstro nos ensina que desviar das normas leva à
exclusão e ao extermínio (pois o monstro deve sempre morrer para que
a ordem seja restabelecida), a lésbica-monstro contrabandeia desejo e
fascinação que trabalham contra essa demonização. O cinema nos en-
sina a desejar o monstro e, até certo ponto, a desejar o desejo lésbico.
Lançamo-nos, neste artigo, ao desafio de apresentarmos al-
gumas questões sobre o cinema lésbico e sobre as imagens da lésbica no
cinema. Ao comentar o aumento de número de filmes gays e lésbicos
na esteira do New Queer Cinema, Rich (2013, p. 42) afirma não querer
cometer "o erro de caber naquela velha e confortável caixinha da víti-
ma, reclamando da ausência em meio à presença. Não somos mais in-
visíveis." Contudo, como a própria Rich reconhece, maior visibilidade
não implica em um cinema que vá além da "identificação, opressão, ou
história de saída do armário". Não se trata, pois, da contabilidade da
representatividade, ainda que essa possa ser importante arma política.
É preciso pensar nos paradoxos e ambiguidades do cinema lésbico se
quisermos entender sua potência.
16. A atriz britânica Barbara Steele, protagonista do filme de Bava, viria a interpretar vam-
piras em vários outros filmes da onda de terror gótico dos anos 1960.
Não apenas temos consciência de que não esgotamos as
questões possíveis de serem formuladas, como também sabemos da
incompletude das respostas que aqui apresentamos. Há de se pensar,
por exemplo, no circuito contemporâneo de circulação de imagens,
onde filmes independentes de nicho, com difícil acesso à exibição em
salas comerciais, acabam tendo como principais canais de distribuição
as vendas de DVD online e, principalmente, o downloadjstreaming na
internet. É exatamente a internet que tem estimulado (muitas vezes
ilegalmente através de downloads "piratas") a formação de uma cultura
cinéfila lésbica. É preciso pensar nessa cultura, bem como na economia
específica de distribuição e circulação do filme lésbico e as condições de
participação no circuito de festivais, temáticos ou não. A complexidade
do tema, enfim, exige um esforço do pensamento centralizado sobre a
"questão lésbica" e como esta se desdobra em inquietações estéticas e
políticas. E, para retomar a epígrafe de Susan Griffin, nunca esquecer
que por trás de todo filme que como lésbicas assistimos, existe um filme
ainda não realizado, o filme que queríamos, que queremos.
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