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CINÉTICA

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SOBRE A REVISTA

Tradução de “Por uma nova cine lia” (Girish S


 28 de abril de 2020  cinetica  cinefilia, manifesto, tradu
Colaborações especiais, Ingá, Rodrigo de Abreu Pinto

Este texto  foi publicado originalmente na revista Film Quarterly em ma


De partida, agradecemos a autorização do autor Girish Shambu e da Fi
pela possibilidade de trazer aqui uma versão dele em português. A esc
recente manifesto sobre os ambientes cinéfilos atuais para publicação
dá por alguns motivos. Interessou à nova composição da editoria pens
mutações que o campo da reflexão sobre cinema passa nos últimos an
sintetiza as linhas gerais de certos impasses de tal espaço discursivo.  O
publicação desta tradução não é sinônimo de um consenso em relação
aponta, mas sim uma aposta justamente no seu potencial de dissenso
produtivo. Assim, ele oferece um conjunto de ideias que funcionou com
disparador de questões na redação, que se materializou numa convers
publicaremos em quatro partes logo em seguida.  O método da troca e
redação discutindo o texto de Girish Shambu foi trabalharmos livre e a
num documento compartilhado online entre 24 de março e 8 de abril d
documento coletivo, a diferença das vozes se afirmava não apenas nas
defendidas e nas diversas referências convocadas, mas nas maneiras d
léxico particular de cada uma. Ao mesmo tempo em que o processo ap
variação das vozes, rejeitávamos uma vinculação estrita entre voz e per
apostando em uma escrita coletiva que pudesse fazer vacilar um pouco
“autoria”, cara a ambas as cinefilias definidas pelo texto que vocês lerã
Portanto, o texto de Girish Shambu é o primeiro de uma série de cinco
publicados durante esta semana e a próxima,  onde discutiremos tal es

Parte 1 – Binarismos e cisões

Parte 2 – Os filmes “problemáticos”

Parte 3 – Autorias e políticas

Parte 4 – Pontos de fuga

Por uma nova cine lia (Girish Shambu)


1

A velha cinefilia é a cinefilia que tem dominado a cultura cinematográf


setenta e cinco anos. Sua história de origem narra sua ascensão na Fra
Segunda Guerra Mundial, com sua consagração do autor e seu culto à
Ao longo dos anos, essa história produziu uma marca profunda na cult
cinematográfica da Europa Ocidental, e passou a se instalar como a na
hegemônica do amor ao cinema, ponto. Um truque de mágica: o que e
tornou, silenciosamente, universal.

A nova cinefilia reconhece duas coisas sobre essa história de origem: q


narrativa de amor ao cinema entre inúmeras outras no mundo; e que f
majoritariamente por uma minoria: homens cis brancos. Em resposta a
cinefilia quer multiplicar uma diversidade de vozes e subjetividades, e u
constelação de narrativas sobre a experiência cinéfila. A nova cinefilia,
confortavelmente tanto na URL (na internet) quanto na IRL (in real life,
uma cinefilia consciente de si mesma, e que põe em evidência a situaci
social – a posicionalidade subjetiva – dx amante de cinema. Para isso, d
escrevo essas palavras como um homem, hétero, cinéfilo do sul asiátic
E.U.A.

Os prazeres no coração da velha cinefilia são predominantemente esté


cinefilia tem uma definição mais ampla de prazer: valoriza a experiênci
cinema, mas demanda mais. Ela também encontra prazer numa curios
pelo mundo e no compromisso crítico com ele. O cinema nos ensina so
humano e não humano através de caminhos novos e poderosos. O pra
tradicional é privado, pessoal, interiorizado; é também isso que Laura M
importante manifesto, pretende destruir. A nova cinefilia irradia para o
impulsionada por um espírito de busca e desejo de transformação soci
Não à toa, várixs realizadorxs enaltecidxs pela nova cinefilia – mulhere
queer, índigenas, pessoas não-brancas – se interessam pela militância
cinema como parte de um projeto mais amplo de ativismo cultural. Tam
toa que, comparativamente, poucos cineastas cis brancos compartilham
característica.

O ato de avaliar é central para a velha cinefilia. Elaboração de listas, cla


criação de hierarquias e níveis – essas atividades, em larga medida reco
uma propensão masculina, são importantes para a velha cinefilia. (Um
sagrados, The American Cinema de Andrew Sarris, definitivamente ilus
impulso). Na cultura cinematográfica, o valor flui do prazer e, visto que
cinefilia privilegia o prazer estético, há muito tempo esse tem sido o pr
de valor dos filmes. Para a nova cinefilia, através da sua compreensão a
prazer e valor, os filmes que privilegiam vivências, subjetividades, expe
universos de pessoas marginalizadas se tornam automaticamente valio

O autorismo é a pedra angular da velha cinefilia. Ao sustentar a posiçã


François Truffaut) de que o pior filme de um “autor” é inerentemente m
interessante do que o melhor filme de um “não-autor”, o autorismo se
eficiente mecanismo para multiplicar sem cessar o discurso sobre um
limitado de realizadores, quase sempre homens. O autorismo, em outr
[1]
tornou uma máquina de manspreading . O mito da escassez de filmes
de homens, tal como alimentado pela política dos autores, está finalme
explodido pela nova cinefilia. A atitude da nova cinefilia perante o auto
ambivalente: por mais que tenha favorecido os realizadores masculino
há nada necessariamente masculino no autorismo. Ele também pode s
usado como um método fértil para gerar análises, textos e discussões a
especialmente, de cineastas mulheres e cineastas não-brancos.

A velha cinefilia reivindica que é aberta e eclética. Aqueles que aderem


se satisfazem em espalhar suas redes para incluir tanto o cinema come
cinema de arte, filmes contemporâneos e antigos, nacionais e internac
uma variedade ampla de gêneros. Embora esse seja um impulso admir
chegou a cumprir, na realidade, suas promessas de inclusão. A cinefilia
privilegia o formato do longa-metragem narrativo de ficção. Outras for
como a televisão seriada, os curtas-metragens, as séries e vídeos da int
trabalhos experimentais e até mesmo os filmes documentários não têm
espaço cativo. Realizadores de grupos marginalizados – isto é, que não
homens cis – enfrentam barreiras muito mais altas na realização de lon
de ficção, razão pela qual gravitam para outras áreas e plataformas. Iss
formas não-dominantes da imagem em movimento, nas quais esses ar
geralmente trabalham, não recebem a mesma atenção.

A nova cinefilia atende ao chamado de So Mayer pela “justiça represen


aspirando a uma verdadeira inclusividade e abraçando a maior varieda
[2]
formas e artistas que produzem imagens em movimento . Isso não sig
mesma atenção para todos os cineastas e todas as criações, já que esse
atitude morna e liberal que atribui “a mesma voz para todos os lados”.
uma vez que a velha cinefilia há muito tem privilegiado cineastas perte
camadas sociais dominantes, a nova cinefilia concentra seus esforços n
social e politicamente marginalizados, assim como nas formas instituci
marginalizadas que lhes são mais acolhedoras. Cada ato cinefílico de fa
citar deve ser um ato que intervenha sobre um mundo desigual.

Uma certa tendência da velha cinefilia: ela tem uma veia conservadora
Experiências cinéfilas (especialmente da infância à adolescência) são es
sacralizadas, guardadas em um lugar especial ao longo da vida. Como S
tem argumentado, cinéfilos frequentemente experimentam uma postu
defensiva quando seus investimentos estão em perigo, quando seus pr
[3]
ameaçados . Para lembrarmos um conhecido exemplo: quando femin
demandaram uma redução da atenção crítica e cinéfila ao trabalho de
Woody Allen e Roman Polanski, elas encontraram uma resistência pode
reacionária a qualquer sugestão que se insinuasse nas fileiras da cultur
cinematográfica (especialmente a autorista).

A nova cinefilia reconhece a instabilidade inerente aos juízos de valor s


seus trabalhos. O valor de um filme pode crescer ou diminuir com o pa
dependendo não apenas dos critérios formais, mas também dos ideoló
devemos sempre estar abertos à possibilidade de redimensionar valor
renunciar aos nossos objetos previamente adorados à luz de novos con
novas consciências e novos imperativos. Nesse presente momento, tod
cinema se mostra diferente para o olho da nova cinefilia em um mundo

7
A velha cinefilia é infinitamente fascinada pelas representações do mau
comportamento masculino: obsessivo, dominador, abusivo, violento. A
cinematográfica deu apoio e incentivo a essa propensão, colocando a s
vocabulário de endosso, encorajamento e consagração. “Obscuro”, “dis
“provocativo”, “disruptivo” são palavras usadas mais frequentemente p
um cinema feito por (e sobre) homens do que mulheres. A nova cinefil
atenta a ela quanto saturada dessa sobrerrepresentação, à qual ela res
propondo uma cinefilia da recusa. A nova cinefilia não sente qualquer
continuar se sujeitando ao cinema da patologia masculina.

Você já deve conhecer a velha cinefilia pelo som de suas preocupações


cinematográfica do nosso tempo é “politicamente correta demais”, “mo
orientada” demais e “tudo é política identitária”. Supostamente fragme
atomizada pelas linhas da identidade, a comunidade dos amantes do c
mais unificada como outrora (supostamente) esteve.

Para a nova cinefilia, contudo, essa unidade da cultura cinematográfica


nostálgica, uma ficção propagada e sustentada pela imposição de um f
universalismo. Somente privilegiando certas identidades (branca, masc
heterossexual) em relação a outras é que a cultura cinematográfica Eur
historicamente se capacitou para construir sua ilusão de integridade e
que está sendo verdadeiramente lamentado pela velha cinefilia é a (mi
de autoridade cultural e de influência por seus grupos identitários dom

A velha cinefilia e a nova cinefilia não são apenas práticas, elas são tam
ideologias. Cada cinefilia tem seus valores e crenças – maneiras de ver
partir das quais fluem seus gostos e sensibilidades. Ainda assim, é imp
perceber que as duas cinefilias não formam um sistema simples ou seq
invés disso, ambas vivem, em graus maiores ou menores, em cada cine

10

“A vida organizada em torno dos filmes” é uma definição amplamente a


cinefilia tradicional. Mas nesse momento, quando o mundo está em eb
planeta à beira de uma catástrofe, tal concepção de amor ao cinema so
irresponsável, até narcisista. O que precisamos agora é de uma cinefilia
pleno contato com seu momento presente global – que o acompanhe,
viaje com ele. Não importa o quão ardente e apaixonado seja nosso am
meio, o mundo é maior e vastamente mais importante do que o cinem
Notas:
I. Originalmente, o termo designa o hábito de homens sentarem com
abertas, ocupando um espaço excessivo, especialmente nos transpo
II. So Mayer, Political Animals: The New Feminist Cinema (London: I. B.
III. Sarah Keller, “Cinephobia: To Wonder, to Worry,” LOLA, no. 5 (Novem
www.lolajournal.com/5/cinephobia.html ↑

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nova cine lia| Parte 1 –
Binarismos e cisões

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