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A inquietação em ser: um ensaio sobre “Her Five Lives” e

“Stoneymollan trail” como objeto de análise de sentimentos e


vulnerabilidade social.

A iniciativa em investigar uma obra artística subjetiva é sempre um desafio


enorme por si só. As representações na arte são sempre plurais e diversificadas,
visto que não há como unificar a vivência de cada artista em um estilo ou escola a
se seguir. As complexidades tornam-se ainda maiores a partir da observação sobre
obras que exploram conscientemente um local tão íntimo e familiar quanto as
produzidas por minorias, visto que se torna impossível desconsiderar em seus
resultados tamanha carga histórica de subjugação e silenciamento por tantos anos.

O fato da construção de obras a partir da representação audiovisual carrega


elementos ainda mais complexos, pois imagens em movimento são objetos
totalmente livres para serem manuseados e montados para a produção de qualquer
narrativa que interesse à determinado artista. São várias as formas em que tais
arquivos podem ser manipulados, visto que são infinitas as formas de construir
imagens em movimentos – ilustrações, arquivos, registros e sonoridades são apenas
alguns desses exemplos – e, em consequência, têm-se também inúmeras visões
pessoais em cada obra visual.

De tal maneira, há ainda algo mais instigante nesse tipo de arte, pois é
possível que, através dela, a depender da forma que tais imagens forem
manipuladas, se conte uma história que represente mais do que “somente” a visão
autoral, mas também um sentimento de comunidade ou de parte da sociedade.
Dentre as várias formas de tais identificações ocorrerem, destaco duas.

A primeira se dá a partir da própria imersão intrínseca da nossa sociedade


sobre o que é audiovisual e a forma que, quase instintivamente, lemos e o
decodificamos imagens e sons. Somos rodeados por essas a todo tempo, não há
nada mais familiar do que os aspectos imagéticos que nos rodam e, em
consequência disso, ao assumirmos o local de espectadores de um filme, já
tendemos a nos tornamos parte daquele meio sem nem tanta consciência racional.
A segunda, essa ainda mais relacionada com a análise a seguir, é a partir do
caráter documental por si só. O que se imprime na tela, rapidamente pode se tornar
parte da construção de uma verdade, de um registro. Nós, como sociedade, por
sermos seres tão visuais – fatos expostos anteriormente - tendemos a usar imagens
muitas vezes como documentos que representam a história e a nós mesmos. Ou
seja, há uma facilidade em crer naquela representação como reflexo de algo que
nos é familiar e, assim, sentirmos eternamente vinculados a aquele contexto.

A análise aqui proposta são percepções acerca de obras visuais de duas


realizadoras, sendo estas “Her five lives” (2020), da uzbequistanêsa Saodat
Ismailova e “Stoneymollan trail” (2015), da escocesa Charlotte Prodger. As
concepções obtidas por cada uma destas carregam detalhes únicos sobre a sua
percepção da sociedade que, mesmo sendo obras com pontos de vistas e
pretensões totalmente diferentes entre si, se encontram em um mesmo local: o da
inquietação.

Em “Her five lives” há a contextualização de um movimento, a partir da


demarcação de cinco tempos históricos distintos vividos pelo país. O tempo
transcorrido na história e, em simultaneidade, as conjunturas políticas que
atravessaram o Uzbequistão, afetaram toda uma sociedade na cultura, nos
costumes e na própria construção pessoal. Em tão específico caso, torna-se
impossível não reconhecer as causas e efeitos geradas em uma sociedade que
experimentou mudanças tão drásticas de mudança para um regime comunista e as
imposições externas repentinas que vieram em consequência de tal comando.

Nota-se, assim, como a história do Uzbequistão se construiu sob um


sentimento de liberdade farsante, uma ideia de “progresso” forçado e induzido por
um novo contexto ali inserido compulsoriamente, em que não existia espaço para a
construção de interesses comuns. Então, de que forma os sujeitos de tal momento
lidaram com esse movimento compulsório? Seus direitos e interesses foram
respeitados? E, especialmente, de que forma a parte mais submissa a tamanho
fluxo de transfigurações – as mulheres uzbequistanêsas – foram consideradas?
Houve tempo, espaço e consideração para tais partes? E as consequências
históricas de tais posicionamentos na atualidade, no que se resultaram?
A intencionalidade de Ismailova em traduzir e transmitir a história da mulher
na sociedade uzbequistanêsa a partir da literal re-produção de enxertos de filmes
nacionais de heroínas, segmentados por contextos sociais e as mudanças culturais,
a partir de cada acontecimento, é demasiadamente óbvia. Não há motivos ocultos,
ou conceitos abstratos para tanto, pois o seu processo criativo nega a opacidade e é
a todo momento construído e reforçado explicitamente pela realizadora, pois é de
sua total intencionalidade deixar o mais explicito possível esta construção de uma
ideia de caminho e cadência pseudo-evolutiva da mulher na sociedade.

Os aspectos da montagem, os compassos musicais, os aspectos visuais e


textuais vão nos guiando para uma ideia de passagem, um proposito, uma
libertação. Um fim? Ou apenas o meio? Ao meu ver, nem um nem outro, mas sim
para a consciência do abismo estagnado emocional que as segue desde os
primeiros registros da first life, até a confused idependence do contexto moderno. E
é neste ponto que a realizadora mostra a genialidade da obra, pois faz-nos chegar à
uma conclusão dura e relacionável: a mulher não esteve e continua a não estar livre.

Notoriamente, há um maior distanciamento da posição subjugada pelas


agressividades masculinas demonstradas ao início do filme - e até causa-nos a
percepção de um aspecto mais “livre” com a representatividade de uma maior
participação no mercado de trabalho, o direito ao lazer e até mesmo uma autonomia
sexual, durante o decorrer das seguintes décadas - mas, ainda assim, o desenlace
segue a esbarrar na conflituosa identidade de ser mulher e as implicações
emocionais que isso resulta nos tempos modernos. É algo tal como uma
inquietação, um incômodo, um eterno desencontro de si mesma no espaço.

Tais complexidades em estão também presente na obra autoral da artista


queer Charlotte Prodger, porém, essa sendo apresentada com um olhar
extremamente pessoal em toda a sua narrativa. Em seu filme não há alguma
menção objetiva sobre a sua vivência como pessoa LGBTQIA+ e as condicionantes
resultantes de resistir em um universo tão hostil a tais pessoas, porém é preciso
enxergar o peso que a construção de sentido em suas imagens carrega durante todo
o filme, visto o nível de pessoalidade que as mesmas adquirem em sua
representação.
Os objetos fílmicos tem significados tão íntimos a si e à sua lembrança que,
várias das imagens utilizadas na construção de seu trabalho são filmagens da
própria artista de décadas atrás. Algumas destas, por sua vez, trazem um arquivo
“corrompido” por pixels em algumas extremidades da tela, devido ao tempo e
problemas na visualização pelo formato “obsoleto” de gravação, tomando forma, em
um contexto tão íntimo e pessoal, a mais um reforço dos aspectos de memória que a
artista trabalha durante o projeto.

Prodger, assim, tem em seus registros “defeituosos” através dos grandes e


evidentes pixels a representação figurativa do que se constrói o seu ser. São partes
e fragmentos de algo em constante movimento, diverso e contrastante, originados
das reminiscências de si própria durante toda a vida e que ali estão e persistem a
serem vistos. Há também elementos contrastantes – neve e sol; estrada e
cachoeira; natureza e progresso – que representam toda a frágil ambiguidade em
que ela se expõe, e é assim que a mesma decide por compartilhar a sua história.
Tão íntima é sua expressão artística que ouvimos, por muitas vezes, frases com sua
própria voz que descrevem as imagens impressas à tela ou relatos de ações
sequenciais tão confusas que nos transporta diretamente a um universo difuso e
pulsante, algo tal como o próprio inquieto cérebro da artista.

Outra forte relação de vivência e memória proposta pela artista é a partir das
inserções pontuais de imagens de janelas – sempre de dentro a olhar para fora – de
locais em que viveu ou trabalhou em Glasgow, na Escócia. Ainda assim, tendo a
total percepção de que ela está no interior de um ambiente e sabendo o caráter
autobiográfico de sua própria visão de mundo em suas imagens, não há nunca uma
visão nítida para o externo. Em todas as inserções de tais lugares tão íntimos a ela
ainda carregam barreiras, linhas ou pilares.

Em qualquer das oito localidades há o bloqueio da visão ampla, reforçando,


mais uma vez, como esse íntimo é composto por partes justapostas que completam
um todo, ainda que esse todo seja moldado sempre com bloqueios e inserções entre
as partes. Inclusive, a forma com que essas inserções são feitas, e até a unidade no
aspecto de design na representação gráfica de cada uma das ruas, também marcam
o filme tal como capítulos, partes de um todo que se junto com essas “barreiras” do
olhar. A própria construção da obra torna-se ainda mais um elemento de linguagem
a reforçar o conceito de fragmentação pessoal da autora.
Cabe ainda o destaque para as poucas partes em que se vê fisicamente
Charlotte em seu próprio filme. Como há de se apresentar a realizadora, a partir de
sua fisionomia, se já seguimos durante o filme todos os aspectos emocionais e
internos da mesma? Para tanto, quando opta por dar rosto a aquele olho que
captura e registra as imagens, nunca há uma visão lúcida.

Quando o universo é a de expressão do íntimo, seguimos uma lógica de


acontecimentos que nos guia aos seus mais profundos e tortuosos caminhos, mas,
quando há a face por poucos segundos, literalmente, não há nenhuma forma de
estabilidade. Quando fora do campo fechado, Prodger está encoberta por reflexos
do sol; quando no interior, há inquietação, uma câmera irritadiça que não se
encontra, não enquadra e não se acalma.

Em suma, Ismailova constrói sua ideia a partir da representatividade feminina


de outrem, personagens em obras cinematográficas do Uzbequistão, mas que, ao
fim, nada mais são do que várias representações de ideias falsas de liberdade e
progresso de suas ascendentes e de si mesma. A história do Cinema acompanha a
história a partir de todos os contextos e mudanças culturais, narrativas e
tecnológicas e, por isso, reforço, torna-se o melhor espelho do registro de uma
sociedade.

Ao fim, a realizadora conta nada menos do que a história de si mesma, com


imagens femininas carregadas de sutilezas, detalhes e sensibilidades tão
perceptíveis que se tornam quase tão autobiográficas quanto as de Charlotte. Em
conclusão, é possível inferir através das representações finais que ainda não há
sentimento de pertencimento ou de encontro identitário da mulher, visto que a
história não deu – e, ao que tudo indica, continuará a não dar - tempo para o
encontro de sua parte nesta sociedade extremamente excludente e patriarcal.

Prodger, por sua vez, com sua vivência queer, expressa tamanha inquietação
de forma diversa à Ismailova, visto que são pessoas que, além de distinguirem entre
si em nas variadas questões culturais, possuem experiências identitárias muito
distintas e isso, claramente, tende a modificar não apenas a mensagem em si, mas
também a forma de expressão da mesma. Ainda mais visceral, usando o seu corpo
e construção pessoa como objeto de expressão e imagem, ela reconstrói uma
narrativa a partir de uma subjetividade que, quando contextualizada, demonstra
fisicamente em sua própria estrutura todo o conceito de fragmentação, busca da
memória, contrastes e identidade, trabalhados pela artista.

E assim, a função do Cinema como ferramenta de registro e identificação,


detalhadas ao início do texto, tende-se a tornar ainda mais íntima em Charlotte, visto
que seu ser se tornou tela e parte principal da representatividade de uma angústia
sentimental e que não há artifícios “escondidos” em personagens ou representações
imagéticas, apenas ela mesma, ali a expor seu íntimo.

Mas, ainda sim, tal fator não exclui a potência da construção narrativa de
Saodat, pois estamos a falar de uma sociedade oriental ainda mais oprimida e
conservadora pelo próprio Estado e suas convicções sociais. Em tal contexto, ao
meu ver, a forma da autora fixar este questionamento a cerca dessa angústia
moderna atual para as espectadoras de seu país, de modo à mensagem ser
reproduzida, compreendida e, talvez, absorvida, não poderia ser de outra forma,
visto como a história quando contada a partir de imagens não apenas demonstra e
ilustra, mas também tem o poder de eternizar tais ideias.

Assim, nas duas obras fílmicas destacadas, o que se infere é que são
representatividades extremamente distintas, que, ainda sim, carregam similaridades
e linguagens extremamente próximas entre si. A vivência de Saodat Ismailova e
Charlotte Prodger, com todas as dezenas diferenças culturais, geográficas,
regionais, físicas e religiosas, se encontram no local da agitação de se ver como
parte da resistência dentro de uma comunidade predominantemente dominada por
uma forma padrão de ser e que se aborrece por qualquer deturpação dentro desse
parâmetro tido como “normal”.

E é nesse local que se nota como o pertencimento das minorias dentro das
múltiplas sociedades atuais é um conflito universal e o, ao fim, o que muda são
apenas pormenores, em comparação à multiplicidade de sentimentos associados a
tanto. A angústia, assim, torna-se um sentimento moderno e conflituoso e tenho
certeza que seguirá sendo assim por muito mais tempo, visto que a movimentação
urbana e social tem sido feita com ainda mais rapidez e com ainda mais recursos da
tecnologia, não nos dando tempo de conscientizarmos do agora, já a pensar no
futuro a todo momento. O objeto de tal sentimento ainda será pauta para muitos
estudos a seguir, isso é um fato, e, então, o que se permanece é apenas o
questionamento:

até quando?
REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS E BIBLIOGRÁFICAS

BERGEN KUNSTHALL. Bergen Kunsthall – Bergen, Noruega. [Consult. 26 jan.


2023]. Disponível em WWW: < https://www.kunsthall.no/en/exhibitions/bridgit-
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GLASGOW FILM – Glasgow Film.org. [Consult. 15 jan. 2023]. Disponível em


WWW: < https://glasgowfilm.org/shows/charlotte-prodger-stoneymollan-trail-nc-15>.

LONG, Declan - Artforum. Nova Iorque, EUA. [Consult. 16 dez. 2022]. Disponível
em WWW: <URL: https://www.artforum.com/print/reviews/201603/charlotte-prodger-
58144>.

LUX – Lux.org. Londres, Reino Unido. [Consult. 18 jan. 2023]. Disponível em WWW:
< https://lux.org.uk/work/stoneymollan-trail/>.

SAODAT, Ismailova - Her five lives [Registro vídeo]. Uzbequistão: 2020. Digital
vídeo (13min., 44 seg.): preto e branco.

SEARLE, Adrian – The Guardian. Londres, Reino Unido. [Consult. 18 jan. 2023].
Disponível em WWW:
<https://www.theguardian.com/artanddesign/2015/oct/26/charlotte-prodger-
stoneymollan-trail-elegy-to-time-loss-and-casual-sex>.

WHARRAL-CAMPBELL, Frances – Another Gaze. [Consult. 18 jan. 2023].


Disponível em WWW: < https://www.anothergaze.com/queer-subjectivity-charlotte-
prodgers-bridgit/>.

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