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De tal maneira, há ainda algo mais instigante nesse tipo de arte, pois é
possível que, através dela, a depender da forma que tais imagens forem
manipuladas, se conte uma história que represente mais do que “somente” a visão
autoral, mas também um sentimento de comunidade ou de parte da sociedade.
Dentre as várias formas de tais identificações ocorrerem, destaco duas.
Outra forte relação de vivência e memória proposta pela artista é a partir das
inserções pontuais de imagens de janelas – sempre de dentro a olhar para fora – de
locais em que viveu ou trabalhou em Glasgow, na Escócia. Ainda assim, tendo a
total percepção de que ela está no interior de um ambiente e sabendo o caráter
autobiográfico de sua própria visão de mundo em suas imagens, não há nunca uma
visão nítida para o externo. Em todas as inserções de tais lugares tão íntimos a ela
ainda carregam barreiras, linhas ou pilares.
Prodger, por sua vez, com sua vivência queer, expressa tamanha inquietação
de forma diversa à Ismailova, visto que são pessoas que, além de distinguirem entre
si em nas variadas questões culturais, possuem experiências identitárias muito
distintas e isso, claramente, tende a modificar não apenas a mensagem em si, mas
também a forma de expressão da mesma. Ainda mais visceral, usando o seu corpo
e construção pessoa como objeto de expressão e imagem, ela reconstrói uma
narrativa a partir de uma subjetividade que, quando contextualizada, demonstra
fisicamente em sua própria estrutura todo o conceito de fragmentação, busca da
memória, contrastes e identidade, trabalhados pela artista.
Mas, ainda sim, tal fator não exclui a potência da construção narrativa de
Saodat, pois estamos a falar de uma sociedade oriental ainda mais oprimida e
conservadora pelo próprio Estado e suas convicções sociais. Em tal contexto, ao
meu ver, a forma da autora fixar este questionamento a cerca dessa angústia
moderna atual para as espectadoras de seu país, de modo à mensagem ser
reproduzida, compreendida e, talvez, absorvida, não poderia ser de outra forma,
visto como a história quando contada a partir de imagens não apenas demonstra e
ilustra, mas também tem o poder de eternizar tais ideias.
Assim, nas duas obras fílmicas destacadas, o que se infere é que são
representatividades extremamente distintas, que, ainda sim, carregam similaridades
e linguagens extremamente próximas entre si. A vivência de Saodat Ismailova e
Charlotte Prodger, com todas as dezenas diferenças culturais, geográficas,
regionais, físicas e religiosas, se encontram no local da agitação de se ver como
parte da resistência dentro de uma comunidade predominantemente dominada por
uma forma padrão de ser e que se aborrece por qualquer deturpação dentro desse
parâmetro tido como “normal”.
E é nesse local que se nota como o pertencimento das minorias dentro das
múltiplas sociedades atuais é um conflito universal e o, ao fim, o que muda são
apenas pormenores, em comparação à multiplicidade de sentimentos associados a
tanto. A angústia, assim, torna-se um sentimento moderno e conflituoso e tenho
certeza que seguirá sendo assim por muito mais tempo, visto que a movimentação
urbana e social tem sido feita com ainda mais rapidez e com ainda mais recursos da
tecnologia, não nos dando tempo de conscientizarmos do agora, já a pensar no
futuro a todo momento. O objeto de tal sentimento ainda será pauta para muitos
estudos a seguir, isso é um fato, e, então, o que se permanece é apenas o
questionamento:
até quando?
REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS E BIBLIOGRÁFICAS
LONG, Declan - Artforum. Nova Iorque, EUA. [Consult. 16 dez. 2022]. Disponível
em WWW: <URL: https://www.artforum.com/print/reviews/201603/charlotte-prodger-
58144>.
LUX – Lux.org. Londres, Reino Unido. [Consult. 18 jan. 2023]. Disponível em WWW:
< https://lux.org.uk/work/stoneymollan-trail/>.
SAODAT, Ismailova - Her five lives [Registro vídeo]. Uzbequistão: 2020. Digital
vídeo (13min., 44 seg.): preto e branco.
SEARLE, Adrian – The Guardian. Londres, Reino Unido. [Consult. 18 jan. 2023].
Disponível em WWW:
<https://www.theguardian.com/artanddesign/2015/oct/26/charlotte-prodger-
stoneymollan-trail-elegy-to-time-loss-and-casual-sex>.