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3) IMAGEM, CORPO E HISTÓRIA

Se Merleau-Ponty deu ênfase à estética moderna pelo modo como ela privilegiou de maneira
autêntica a exploração do mundo percebido, a finalização do módulo I abriu uma possibilidade de
ilustrar concretamente o sentido desse ato perceptivo no filme “Nós que aqui estamos por vós
esperamos”, de Marcelo Masagão. Como exposto por Merleau-Ponty, “perceber é compreender um
espaço organicamente vinculado ao homem, em que a relação dos sujeitos e coisas se sintetiza numa
relação sensível, num corpo vivido”. Dessa maneira, a ideia de imagem deve ser concebida em seu
movimento de sucessivos e intermináveis instantes no tempo. A captura de um sentido do espaço
não se daria, por exemplo, através de uma mera transposição/conversão de um mundo em imagem
integrada, como os clássicos sugeririam, pois ali há uma noção de captura de espaço absoluto que
não compreende o lado criativamente humano da experiência perceptiva, sugerindo no lugar apenas
um olhar assujeitado e fixo. O espaço clássico, portanto, permitiria apenas capturar um instante
isolado – “uma paisagem eterna” -, mas que de todo modo rompe, ele mesmo, com o “modo natural
de ver”, pois tenta dominar tal paisagem a partir de inúmeras sobreposições dos instantes, a fim de
fixar uma totalidade que é, na experiência perceptiva, impossível, pois supõe dela a retirada do
corpo vivido. Este instante isolado, não natural, afirma M.-Ponty, “suprime sua vibração e sua
vida”.
Ora, a obra de Marcelo Masagão ilustra bem a diferença dessas noções de espaço e
percepção. A princípio o objetivo de seu filme é claro e transparente: contar a história do século
XX. Objetivo ousado, é verdade, mas cuja ambição passa despercebida. Pois são os meios que usa
para realizar a tarefa que se tornam essencial aqui. Ao invés de mostrar grandes histórias de grandes
personagens, revelando ao público imagens conhecidas, imagens congeladas no tempo, isoladas de
tal maneira que cada uma pudesse ilustrar em sua própria forma os aspectos significativos do século,
Masagão adota a ideia de mostrar ao público “grandes histórias, pequenos personagens” e
“pequenas histórias, grandes personagens”. Mas um mero show de imagens isoladas mostra não
dar conta de segurar os eixos dessa proposta: para expressá-los é necessário um movimento.
O documentário, à primeira vista, parece estranhar o público, pois mostra inúmeras cenas
ora banais, ora extremamente chocantes, de diferentes lugares, épocas e períodos do séc. XX. O que
as liga? O estranhamento vem justamente porque o elo que as associa precisa ser investigado:
isoladas não fazem sentido. Mas é a proposta de “grandes histórias, pequenos personagens” e
“pequenas histórias, grandes personagens” que define o elo. Pois junto às imagens, fotografias e
vídeos aparentemente tão desconexos há sempre uma legenda que as acompanham, cujo intuito é o
de recontar uma pequena história do envolvido na imagem, no evento.
A coleta dessas infindáveis pequenas histórias unifica a proposta histórica de Masagão. A
história do século XX (ou a história no sentido mais geral) não é composta por eventos isoladamente
significativos, cujas somas definem determinado espírito do tempo. Ela é composta por narrativas.
E as narrativas, fundamentalmente, mesmo pequenas, mesmo banais, movimentam à sua maneira
todo evento no tempo (seja ele cotidiano, violento, chocante, frívolo, fútil, desumano, etc.), pois
são elas a matéria e a textura das memórias. Se história é memória, a necessidade de captar uma
linguagem que dê conta do espaço do corpo vivido torna-se essencial. Assim, o que importa ao
conceito de história aqui? Simplesmente mostrar-nos uma imagem isolada de um determinado
evento histórico chocante e marcante que já propõe encapsular tudo aquilo que já quer dizer por si
mesma? Ou seria, antes de tudo, ratificar que houve (e sempre haverá) uma narrativa própria e
íntima ligada a todos esses eventos, isto é, sempre haverá ali a presença de um corpo, de uma relação
sensível? Parecemos às vezes esquecer dessa última dimensão fundamental: é daí provavelmente
que se justifica a qualidade do choque, confusão e estranhamento que se tem à primeira vista. O
filme quase que resgata a possibilidade de nos relembrar da nossa condição de corpo vivido.
Portanto, o corpo não está na história, mas ele é a história; está aí o fundamento da obra. A memória
está inevitavelmente vinculada ao processo perceptivo. Ela se engendra também como parte de um
espaço vivido que se pode tatear.
É somente quando essa proposta é compreendida que o córrego das imagens no filme fecha
uma direção de sentido e norteia a análise que se pretende dar. Por outro lado, esse fechamento de
sentido na percepção só é possível na medida que o filme insiste em tomar seu recurso imagético
por meio de movimento, montagem e articulação, ao invés de tomar seus aspectos isoladamente. O
filme não faz sentido recortado; ele perde sua acepção se visto de fora de sua própria fluência.
Explica-se ele, portanto, somente na medida em que se pode insisti-lo na sua dimensão temporal.
Este essencial aspecto parece estar em concordância com as noções de percepção discutidas
ao longo do módulo. Ao apresentar-nos um filme cuja perspectiva só se manifesta verdadeiramente
quando adota e reconhece para si um movimento sucessivo de instantes diferentes, ao invés de uma
captura fixa e isolada, o módulo aproxima de forma ilustrativa o processo fenomenológico da
percepção. Pois na obra de Masagão não há um olhar absoluto que busca reconstituir a paisagem
do século; não estamos no campo do espaço clássico. As imagens em movimento são suas, mas
essencialmente o olhar é nosso. As imagens demandam ser olhadas para serem constituídas, mas o
olhar também depende do ato de ser reconhecido pelas imagens, a fim de garantir dadas perspectivas
possíveis. Nesse sentido, o processo da percepção não se fecha completamente se não compreender
para si o público: o sujeito.
As fotografias, imagens e vídeos em fluxo não fecham um sentido-em-si, de maneira
independente. Tampouco um olhar capturaria seu sentido de forma isolada, a partir de recortes que
assujeitariam o objeto. O ato de explorar o filme, ou melhor, explorar o mundo percebido, só se
funda na medida em que há este espaço organicamente vinculado a nós, como Merleau-Ponty
articulava. Há, no processo de assistir ao filme, uma melhor compreensão do que é essa relação
sensível de sujeito-objeto, visto que de um lado as imagens articuladas por meio da montagem
convidam e supõe a participação do corpo vivido, da mesma forma que este corpo tem a todo
momento um papel criativo para com o advento de uma perspectiva, conforme se desenrola o
movimento autêntico das imagens. A percepção, portanto, ora na obra cinematográfica, ora na vida
mesma, mostra-se de fato formada na própria relação sensível e não no isolamento das imagens
ou do espectador; enfim, não no isolamento do sujeito ou das coisas...

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