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Proposta de investigação para o projeto de tese

Título: Camadas de Mim

Sumário:

Para a minha tese proponho-me a autorretratar a minha identidade e intimidade


através da fotografia. Apesar da dificuldade da fotografia em ir para além do literal,
quando esta é colocada num conjunto, conseguimos ver ligações para lá do que está
retratado. Então proponho-me a criar um livro de fotografia que apresente a minha
existência como composta de estratos interiores e exteriores, que de algum modo, me
representam. O livro terá o formato de um atlas e será um corte no meu arquivo pessoal
e familiar, por um lado, e por outro a encenação e construção de um retrato da minha
intimidade. Pretende enquadrar a exploração desse retrato no âmbito de uma
investigação mais abrangente sobre a identidade de género e a sua relevância na
resposta à pergunta “Quem sou eu?”

A potencial interatividade entre o objeto fotográfico criado e o utilizador que


com ele se cruzar expande o projeto para lá do objeto, e pretende estimular conexões
com as inquietações de pesquisa que são o motor principal desta proposta de
investigação pela prática artística, a saber: Como pode a intimidade ser acedida e
partilhada? O que nos diz ela sobre nós próprios e a nossa identidade? Como se
relaciona com outros processos de subjetivação, como os associados à afirmação de
uma identidade queer? Qual o papel do media fotográfico na exposição e construção da
intimidade e do seu autorretrato?

Palavras-chave: (4-6)
Identidade – intimidade – retrato – representação – camadas – tempo
Estado de Arte: (máximo 500 palavras)

Na sua instalação “Untitled (Portrait of Ross in L.A.)” de 1991, Félix González-


Torres constrói um retrato do seu parceiro composto por diversos rebuçados coloridos
colocados em monte com um peso conjunto aproximado de 79 kilos. Esta peça está em
constante alteração pois é dada a opção aos visitantes de retirarem um rebuçado do
monte. Ross faleceu devido a complicações derivadas de SIDA, e 79 kilos seria o seu
peso ideal, peso este que foi diminuindo ao longo do tempo até que faleceu. Com esta
peça González-Torres não retrata só Ross como também todas as outras vítimas da
epidemia de SIDA, comparando a perca de peso causada pela doença com a perca de
peso da obra, a cada rebuçado retirado. Na verdade, não se sabe se essa era a intenção
de Félix, deixando assim a instalação aberta a inúmeras interpretações. Este estilo de
retrato trabalhado por González-Torres é representado em outras das suas instalações,
como a “Untitled (Portrait of the Magoons)” de 1993, onde apenas através de texto e de
datas específicas, o artista consegue retratar o casal Magoon, ao enumerar todos os
acontecimentos históricos relevantes para aquele casal, como a Guerra Fria que está
ligada indiretamente a eles. Apesar do falecimento do artista, esta instalação continua a
ser replicada e até a ser atualizada com mais datas, como por exemplo “Police Brutality
2020”. Ambas estas instalações têm a potencialidade de poderem ser replicadas, isto é, a
mesma instalação pode existir em vários espaços diferentes desde que seja construída
segundo as instruções deixadas pelo artista. Esta coexistência de várias versões
verdadeiras do mesmo objeto em vários lugares e tempos diferentes em conjunto com a
possível interatividade do público com as obras transportam estes “retratos” para lá de si
próprios, dando assim um novo significado à peça.
Nan Goldin é uma fotógrafa que sempre trabalhou a intimidade, quer a sua quer
a dos outros. “The Other Side” é um desses exemplos. Nos anos 70, aos 18 anos, Nan
Goldin foi ao bar de dragqueens “The Other Side” em Boston, com os colegas de casa e
alguns amigos que costumavam lá ir todas as noites. Foi durante esses tempos que a
fotógrafa partilhou as vidas deles através da fotografia. Aqueles retratos não retratam
apenas a intimidade daquelas pessoas, ou aquela cultura queer, como também retratam
um pedaço da vida de Nan Goldin durante aquele período. Os retratos de outros servem
para a retratar a ela própria. “Completely devoted to my friends, they became my whole
world” diz ela no livro que criou com este projeto.
Trabalhos do fotógrafo Nobuyoshi Araki, como “Sentimental Journey” , “Winter
Journey” ou “Sentimental Sky” foram feitos através do arquivo fotográfico pessoal do
próprio, isto é, no caso destes projetos, o projeto em si veio depois da ideia de
fotografar. Estes três projetos manifestados em livros de fotografia retratam três
diferentes períodos da vida do fotógrafo, sendo o primeiro “Sentimental Journey” em
celebração do seu casamento com Aoki Yoko, o segundo “Winter Journey” sobre a sua
morte de cancro nos ovários, e o terceiro “Sentimental Sky”, um livro composto por
apenas fotografias do céu que representa a ausência de Aoki Yoko na vida de Araki. O
Sentimental Journey e o Winter Journey vieram do desejo de Araki de querer
documentar a sua vida ao lado da esposa, e o Sentimental Sky veio do desejo de querer
fotografar o céu: nenhum dos projetos foi feito pelo desejo de querer criar um projeto.
Este movimento de primeiro criar e depois voltar a pegar no que já se criou para lhes
dar uma estrutura, um novo propósito, é algo que me interessa muito no trabalho deste
fotógrafo, principalmente por partirem do simples desejo de querer capturar memórias
daquilo que gostamos e achamos belo.
Objetivos

Com esta tese quero dar mais visibilidade à censura que eu como pessoa sinto no
meu dia-a-dia. Como membro da comunidade queer, todos os dias sou confrontado com
a luta interna de querer ser eu e ter medo de sofrer à custa disso. Ao criar este retrato em
camadas mostro que todos nós somos feitos pelo nosso passado, pelos nossos interesses,
pelos aspetos mais pequenos e pelos aspetos maiores da nossa vida, e que tudo isso faz
de nós quem somos. Isto é, sempre que nos tentam forçar a esconder uma parte de nós,
estamos imediatamente a perder um pouco da nossa identidade. Ao permitir que o
recetor interaja com o livro, essa relação entre os outros e nós torna-se ainda mais
direta, pois estou a incentivar os outros a interagir com aquilo que me representa e a
levar um pouco disso consigo, literalmente ou não. Esta interação representa a forma
como a nossa identidade é vista aos olhos dos outros.
Para além disso, este projeto também me é importante porque me dá a
possibilidade de representar quem eu sou agora. Existem diferentes versões de mim,
dependendo do tempo, dependendo da perspetiva, e neste livro eu quero representar a
minha versão de mim, quem é o Marco que ainda estudas nas Caldas da Rainha,
podendo assim retratar a minha identidade, a minha intimidade e todas as ligações que
me formam, criando uma nova ligação: a que se cria com o recetor. Durante todo o meu
percurso académico procurei dar formas a conceitos que me são importantes, a
diferentes partes de mim, e tentei responder a questões sobre mim. Para finalizar esta
etapa, gostava de representar a soma de todo esse percurso: vou parar de tentar explicar
e passar a mostrar.
Descrição Detalhada

Como referi na minha sinopse, no meu projeto de tese pretendo criar um livro de
fotografia. Esse livro será dividido em duas partes: uma primeira parte onde irei criar
uma espécie de “atlas” de mim, composto por fotografias feitas por mim, fotografias de
arquivo de momentos, ou coisas que se relacionem comigo como desenhos ou textos
que me retratem de alguma forma; e uma segunda parte composta por apenas
fotografias de partes do meu corpo que representam como eu sou agora. Da mesma
maneira que a primeira metade vai estar repleta de sinais do tempo (por exemplo
fotografias do arquivo familiar, fotografias recentes, desenhos da infância), a segunda
metade também quer abordar essa questão do tempo ao mostrar os sinais que o corpo
produz com o tempo (cicatrizes, estrias, barba, calvície). Enquanto a primeira parte do
livro me ajuda a dar uma representação à minha identidade e à minha intimidade, a
segunda ajuda-me a aceitar que o meu exterior também vai sofrendo alterações ao longo
dos anos: não é só uma descoberta do interior como também uma aceitação do exterior.
O livro vem como sequela do filme que realizei no primeiro ano do mestrado,
“Caminho por Definir”, onde tento definir o que é a intimidade. O que concluí é que a
intimidade é algo que não se deve definir, só se deve sentir. A intimidade está presente
nos momentos de partilha: partilha de tempo, do toque, de palavras, de carinho.
Neste livro, quero tentar mostrar um pouco da minha intimidade sem recorrer à
palavra para o explicar. A fotografia em si só tem muita dificuldade em passar para lá
do literal, pois a única leitura que temos de uma fotografia é com base naquilo que se
vê, no superficial, mas em conjunto com outras fotografias ou com outros tipos de
informação já conseguimos fazer uma leitura para lá do superficial, já conseguimos
criar ligações e detetar padrões, como Lev Kuleshov demonstrou. Kuleshov demonstrou
que ao colocarmos duas imagens lado a lado, criamos algum tipo de ligação entre elas,
como por exemplo uma imagem de uma pessoa triste ao lado de uma imagem de um
prato de sopa dá-nos a ideia de que a pessoa tem fome ou não gosta da sopa. As ligações
que quero criar são mais além das ligações óbvias, serão ligações mais abstratas e
emocionais, isto é, a ligação que eu criar entre duas fotografias muito provavelmente
não será a mesma ligação que outra pessoa criará entre essas mesmas fotografias. As
leituras variarão consoante o tipo de ligação que a pessoa tem ao projeto, às imagens, a
mim; criando assim muitas variáveis possíveis para o tipo de leitura.
A divisão do livro em duas partes serve para que esse caminho pela minha
intimidade seja feito de dentro para fora, isto é, começando pela minha existência, no
meu interior, e terminando no corpo, no meu exterior; mostrando que a verdadeira
intimidade não é a que existe quando o corpo fica nu, mas sim quando a alma é deixada
a nu, como diz Byung-Chul Han no livro “A Sociedade da Transparência”. Para mim,
deixar a alma a nu é despir qualquer barreira e deixar que as pessoas nos vejam como
quem somos, tudo de bom, tudo de mau, tudo de bonito e tudo de feio. Esta divisão tem
outro propósito: o livro não terá as páginas presas à lombada, dando assim a liberdade
ao recetor de alterar a ordem das páginas como desejar e poder ver a folha inteira que
compõe duas páginas em vez de só ver página a página. Ao ver a folha inteira, o recetor
seria confrontado com uma página da primeira parte do livro, com outra página da outra
parte do livro, como está exemplificado em anexo. Estas páginas ao estarem assim
dispostas na mesma folha criam a ligação de que ambas representam uma parte de mim
a níveis diferentes: para retirar uma parte, temos de retirar a outra também; para amar
uma, temos de amar a outra também.
A transição dos meios audiovisuais para os meios somente visuais como o livro
de fotografia serve para criar uma ligação mais direta com os recetores do projeto. Ou
seja, com este tipo de dispositivo eu crio uma ligação direta entre as diferentes partes do
livro ao permitir que o recetor possa interferir diretamente na ordem deste e que possa
pegar numa folha e ver as duas partes lado a lado; mas também cria uma ligação entre
eu, a pessoa retratada, e o recetor através dessa interação deste com o objeto. O tato, a
remontagem, as diferentes interações possíveis (até a nível da instalação que
mencionarei de seguida) criam uma proximidade que o vídeo devido às suas
especificidades técnicas não permite: existiria sempre algo a separar o recetor das
imagens.
Durante o processo de construção da primeira metade do livro terei de dedicar
parte do meu tempo a procurar com os meus pais e outras familiares fotografias do
arquivo familiar para incluir no projeto. Toda essa procura será documentada em vídeo.
Ao procurarmos as fotografias, possivelmente surgirão conversas sobre o passado, sobre
a minha infância, sobre a juventude dos meus pais, e eu gostava de ter esses momentos
documentados para o meu arquivo pessoal e para, se for útil, criar um pequeno vídeo de
“making-off” desta parte do projeto. Da mesma maneira que quero mostrar que somos
feitos por camadas de tempo, também quero mostrar quem estava lá durante a criação
dessas camadas, e talvez perceber que há camadas que se intercetem, que se calhar
tenho mais em comum com as minhas raízes do que achava.
Também penso em realizar uma instalação dando a oportunidade aos visitantes
de poderem levar uma folha do livro consigo. Este ato de retirar uma folha ao livro
levantará questões como “ao retirar uma folha, estou a deixar o livro incompleto?”. Ora,
se o livro é a representação de alguém, ou seja, o retrato de alguém, ao retirar uma folha
estaríamos efetivamente a deixá-lo incompleto fisicamente (ia-lhe faltar uma folha),
mas o que significa para a instalação? Estará agora aquele retrato incompleto, ou estará
aquele retrato a espalhar a sua impressão nos outros? Se o livro ficar vazio, o retrato
também ficou vazio ou elevou-se? Ao tornar o livro parte desta instalação, não só
represento os ideais de identidade, intimidade e retrato (neste caso, autorretrato), como
também represento através da participação as diferentes dinâmicas presentes em
relações sociais. Porém, acho que um dos elementos mais importantes neste tipo de
instalação é o inesperado e a sua abertura: eu sinto que este tipo de ligações e reações
vão acontecer, mas cada pessoa poderá ter uma leitura diferente, poderá ter uma
interação diferente, deixando assim o projeto aberto a ligações nem o artista imaginou.
Com isso dito, também é relevante mencionar que com o desenvolvimento do
projeto eu possa vir a perceber que uma instalação não será o melhor dispositivo para
mostrar o projeto, porém a interação entre o recetor e o objeto será sempre importante,
resta concluir qual a forma ideal dessa interação.
Cronograma e outros Anexos:

Durante os meses de setembro e outubro vou estabelecer os elementos


fundamentais da tese: decidir os objetos que vou produzir, como os vou produzir e
como os apresentar; e definir os campos que quero estudar e abordar no relatório e no
desenvolvimento da tese. Isto para que no dia 24 de outubro, dia da apresentação da
proposta de tese, eu já tenha tudo pronto para começar a desenvolver trabalho.
Após a apresentação da proposta de tese (finais de outubro), e até janeiro vou
recolher as imagens que quero incluir no livro e a ir testando opções de montagem das
páginas deste. Este processo de recolha de imagens poderá estender-se até março.
Durante a interrupção letiva de dezembro vou recolher as fotografias de arquivo e
documentar todo o processo.
Nas primeiras semanas de janeiro vou imprimir uma primeira maquete do
livro para apresentar no dia 15 desse mês.
Caso não tenha conseguido filmar tudo o que queria ou caso queira recolher
mais fotografias de arquivo, vou aproveitar a interrupção letiva de final de semestre
entre janeiro e fevereiro para finalizar essa etapa.
Depois da apresentação da maquete, vou continuar a fotografar e montando o
livro aos poucos e em março começo a fazer testes de impressão para que no início de
maio, na exposição de finalistas, tenha uma primeira versão do livro em instalação em
conjunto com o vídeo.
Após a exposição, vou focar-me em fazer os ajustes finais ao livro (acrescentar
ou retirar fotografias, alterar a disposição de algumas páginas) para que em setembro
tenha a versão final impressa.
Figura 1 - Exemplo de 2 páginas da 1ª metade do livro

Figura 2 - Exemplo de 2 páginas da 2ª metade do livro


Figura 3 - Exemplo de uma folha do livro
Referências bibliográficas:
Bellour, R. (1997). Entre imagens. (inserir o capítulo)
Medeiros, M. (2000). Fotografia e narcisismo: o auto-retrato contemporâneo.
Han, B.-C. (2014). A Agonia de Eros.
Han, B.-C. (2014). A Sociedade da Transparência.
Smith, D. (2018). Don't Call Us Dead: Poems.

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