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Religião e Cinema: a espiritualidade e as tradições religiosas

presentes em Baraka

Paulo César Giordano Nogueira - mestrando em Ciências da Religião

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP

Resumo:

Para quem trabalha com educação e está envolvido com o universo


acadêmico, expressões artísticas como o cinema, a fotografia e a música
podem- e devem- servir de complemento às teorias aplicadas em aula. Mais do
que isso, conseguem transmitir um conhecimento que seria inacessível se
baseado somente na literatura; uma imagem ou uma sonoridade são muitas
vezes portadoras de mensagens que a escrita sozinha não alcança.

Se pensarmos que a religião é também uma prática, nada mais


conveniente e oportuno do que transmitir a sabedoria e as manifestações das
diversas culturas religiosas através das imagens, não abrindo mão,
evidentemente, do referencial teórico.

Nossa proposta é mostrar como Baraka consegue explorar essa idéia: a


de que a imagem, longe de querer substituir a escrita, serve como excelente
coadjuvante no estudo dos fenômenos religiosos.

Palavras-chave: religião; filmes não-verbais; imagens; Baraka.

Abstract

For those who deals with education and are involved with the academic
universe, artistics expressions such as movies, photograph and music can be
seen as complementaries subjects that help to increase the theories studied in
class. More than this, they are also helpful to transmit knowledge that could be
unapproachable if focused only on literary texts.

We believe that religion is, above all, a practice, and nothing more
convenient that play with this idea. That’s why we choosed Baraka to explore
this concept: images as an excellent resource to explore the religious
phenomenon.

Keywords: religion; nonverbal films; images; Baraka.


Religião e Cinema: a espiritualidade e as tradições religiosas presentes
em Baraka

Uma viagem tem sempre o poder de transformar uma pessoa. Por


necessidade ou por prazer, o ser humano sempre pôs os pés na estrada e
desde há muito registra suas impressões em diários de viagem, que nos abrem
um mundo fascinante e cheio de aventuras, cada vez mais explorado pelos
apaixonados por esse tipo de leitura, que leva o nome de Literatura Odepórica,
um gênero literário que começa a ganhar campo nos estudos acadêmicos a
partir da década de 1980. Cunhado por um estudioso italiano entusiasta dos
relatos de viagem, Luigi Monga (1941-2004), odepórico, do grego hodós,
caminho, senda, e poreuo, viajar, ganha conotação de adjetivo, ao significar
algo “referente a viagem” e de substantivo, ao ser interpretado como “narrativa
de viagem”.

Essas narrativas de viagem muitas vezes são desprezadas por


estudiosos de literatura, que as consideram um sub-gênero, quando muito. Mas
a verdade é que a literatura odepórica permite-nos tomar conhecimento do
mundo através dos olhos de quem teve a chance de testemunhar situações,
lugares, pessoas, animais, natureza, ou seja, a vida mesma, numa perspectiva
e num momento em que não nos teria sido possível de outra maneira por uma
série de fatores.

Em uma de suas obras sobre a narrativa de viagem, Monga discorre


sobre como a viagem influencia nossa percepção do mundo e do outro:

[...] Os contatos de cruzamento cultural de viajantes criam uma


autoconsciência coletiva e uma subsequente compreensão da
alteridade dos outros. (...) Descobrir a “alteridade” é um processo
complexo; isso envolve encontrar o outro em nós mesmos e resulta
em incontáveis ramificações: suspeitas e medos, crise de valores, ou
mesmo orgulho infundado. (MONGA, 1996: 33;35)

Mas a literatura odepórica não é o caminho pelo qual nos


enveredaremos nesse trabalho. Nossa temática se prende mesmo à sedução
da imagem, e em como essa narrativa visual nos leva a compreender melhor o
outro. Nesse sentido, a viagem na qual embarcamos em Baraka se assemelha
àquela da literatura odepórica, com a diferença de que, no suporte de uma tela
de cinema, a imaginação flui de maneira diferente em relação à praticada nas
páginas de um livro; pode não ser a mesma coisa, mas como toda e qualquer
forma de viajar, leva a reflexões de ordem estética que de certa maneira, em
maior ou menor grau, acarretam em mudanças na forma de se enxergar o
mundo.

E o que isso tem a ver com religião?

A experiência estética, escreveu Rubem Alves, está muito próxima da


experiência religiosa, porque “[...] ambas têm a ver com a imaginação” (ALVES,
1979: 56). O autor faz essa afirmação para dar início a um raciocínio muito
interessante, que tem relação com o fato de que o belo, assim como a
experiência religiosa, é inefável.

Aprofundando o raciocínio de Rubem Alves, temos o seguinte:

[...] A consciência só sente o belo quando tocada por algo que


vem de fora. O prazer estético é uma resposta emocional de um
sujeito a um objeto. O belo não se encontra, assim, nem no sujeito e
nem no objeto, mas no momento em que a dicotomia que os
separava se dissolve. No êxtase estético sujeito e objeto se unificam
numa mesma estrutura significativa. (ALVES, 1979: 57-58)

Esse exemplo que tomamos de Rubem Alves nos faz recordar dos
princípios da fenomenologia da religião, para a qual o fenômeno é aquilo que
aparece, que se mostra ao sujeito. O fenomenólogo está interessado em
descobrir a essência (eidos) desse fenômeno, e isso só é possível se ele tiver
algum tipo de contato com o objeto, em outras palavras, vivenciar a experiência
religiosa. A crítica surge daí, pois ao entrar em contato com o objeto,
praticando uma suspensão momentânea do juízo (conhecida como epoché), o
fenomenólogo deixa de praticar ciência. Por outro lado, há os que questionam
tal afirmação, como Aldo Natale Terrin:

[...] O problema, contudo, é ver se para fazer ciência é


necessário o distanciamento do objeto e, mais ainda, se é possível
uma relação com o objeto de estudo que não implique algum
pressuposto, alguma maneira de antecipar e orientar o sentido da
pesquisa, até mesmo a pesquisa científica. (TERRIN, 2003: 24)
O que intencionamos mostrar, sem nos aprofundarmos muito na questão
da fenomenologia, é que o fenômeno religioso só se dá quando o sujeito entra
em contato com um objeto, sendo muitas vezes difícil este sujeito- quando não
impossível- expressar em palavras o sentimento gerado através desse contato.
Por isso a questão do inefável, e é a partir dessa idéia que optamos por
estudar o documentário Baraka, a nosso ver uma excelente oportunidade para
se abordar o fenômeno religioso através de sons e de imagens numa viagem
pelos cinco continentes.

O sopro divino

Baraka, etmologicamente, é um desses termos de difícil tradução. Sabe-


se que vem do vocabulário sufi (ramo místico do islamismo) e, de modo geral,
costuma ser traduzido como “benção”. Achamos que o termo “sopro divino”,
que encontramos como outra possível tradução, é além de mais poético, mais
fiel à evocação de seu real significado.

Lançado em 1992, o documentário Baraka é sem dúvida o mais belo


representante dos nonverbal films (filmes onde não há elenco, atores, ou
roteiro definido) e o que tem causado mais impacto desde que esses filmes
começaram a ser elaborados.

O primeiro filme do gênero não-verbal, Koyaanisqatsi (1983) deu início a


uma não programada trilogia (segundo afirma seu diretor, Godfrey Reggio),
conhecida como “trilogia qatsi”, com fotografia a cargo de Ron Fricke (que mais
tarde dirigiria Baraka). A estranha palavra provém do vocabulário indígena da
tribo dos Hopis e significa “vida sem equilíbrio”. Koyaanisqatsi levou seis anos
para ser filmado, sendo três apenas para conseguir as tomadas
impressionantes de Ron Fricke. Nesse filme, experienciamos uma visão
apocalíptica de duas realidades distintas: a vida urbana e sua tecnologia versus
o meio-ambiente, uma temática muito presente ainda hoje.

O segundo filme da trilogia, Powaqqatsi (1988), cujo significado é “a vida


em transformação” é uma celebração do empreendimento humano, da arte, da
espiritualidade e da criatividade que define uma cultura particular; dos três
filmes, é o que mais se aproxima, em todos os sentidos, de Baraka.

Naqoyqatsi, traduzido por “violência civilizada”, foi lançado em 2002 e


fecha a trilogia. A temática recai sobre a tecnologia e os tempos modernos e
mostra como a guerra é tida como um modo de vida para grande parte da
população mundial.

É interessante ter uma noção da gênese de Baraka porque, de certa


forma, esse filme faz parte de um todo orgânico; há uma linha tênue que une
Baraka à “trilogia qatsi”, um discurso onde o que se pretende é mostrar o papel
do homem no mundo, sobretudo o que ele próprio tem feito com o planeta que
o abriga, e nesse ponto é inevitável não nos lembrarmos da Teoria de Gaia de
James Lovelock: a Terra é um ser vivo que sofre e pede socorro, mas os seres
humanos parecem não conseguir ouvir o seu apelo- pelo menos não aqueles
que possuem o poder de mudar algo em benefício do planeta.

Mas talvez o maior mérito de Baraka seja o de fazer com que possamos
refletir, através das imagens que se nos apresentam, quase como que nos a
enfeitiçar, sobre a condição humana. Sobre a relação de homens e mulheres
com Deus, ou mais propriamente com aquilo que chamam de Sagrado. A partir
do momento em que paramos para prestar atenção ao outro e ao modo como
este se relaciona com o sagrado, começamos a entender melhor a própria
relação que temos com aqueles que nos cercam e com a nossa religiosidade
(ou espiritualidade, se for o caso).

É fácil compreender a absoluta falta de necessidade das palavras num


filme como Baraka. O silêncio, aliás, é quase sempre diegético1, porque o
espectador viaja todo o tempo ouvindo uma sonoridade arrebatadora que faz
com que as imagens ganhem ainda mais vida, o que nos leva a refletir,
também, sobre o papel fundamental da música dentro das tradições religiosas
(como não se deixar envolver pelo canto gregoriano no interior de uma
catedral, pela sonoridade melódica dos mantras nos ashrams, ou pelo batuque
que induz ao transe nos terreiros de candomblé?). Em uma das cenas mais

1 No cinema e nas linguagens audiovisuais, diz-se que algo é diegético quando


ocorre dentro da ação
narrativa ficcional do próprio filme. Exemplo: a música incidental e a música
externa; seria diegética a
música externa, que é aquela que o personagem ouve, por exemplo, ao ligar um
aparelho de som.
marcantes de Baraka, assistimos ao ritual do Kecak (pronuncia-se keh-chahk),
onde uma centena de homens, no templo de Tampaksiting, em Bali, fazem
uma cacofonia de sincronizados “chak-achak-achak” enquanto balançam o
tronco e as mãos num inacreditável efeito de transe induzido pelo canto do
coral. É preciso ver- e ouvir-, para se poder ter uma idéia do que se trata.

Isso serve de pretexto para nos aprofundarmos na importância da


imagem e do som para uma abordagem mais global das tradições religiosas,
como se pudéssemos estar presentes em ritos e práticas espirituais no
momento mesmo em que estes estivessem acontecendo, mas sem a ingênua
impressão de que isso tenha o mesmo peso de uma pesquisa de campo. Na
realidade, filmes como Baraka e certos documentários que abordam o
fenômeno religioso não substituem a presença do pesquisador durante a
prática devocional, mas certamente preenchem uma lacuna quando só se pode
contar com a escrita, por si só muito limitada porque carente de outros
sentidos.

O diretor da “trilogia qatsi”, Goddfrey Reggio, diz que o empenho em


produzir esses filmes não-verbais nasceu em 1972; Reggio foi co-fundador do
IRE (sigla em inglês para Instituto para a Educação Regional), e teve a idéia de
arrecadar fundos para criar um filme não-verbal com o desejo de mostrar como
a tecnologia poderia ser usada para controlar o comportamento, usando uma
colagem non-stop de imagens da vida real. Essa fixação pela imagem é
explicada pelo t:

[...] A linguagem não mais consegue descrever o mundo no


qual nós vivemos. Com idéias antiquadas e velhas fórmulas, nós
continuamos a descrever o mundo que não mais se faz presente.

Nessa perda de linguagem, a palavra cede espaço à imagem


enquanto linguagem de troca, onde o pensamento crítico desaparece
frente a um diabólico regime de conformidade- a imagem onipresente,
hiper-real.(Reggio, 2007)

Essa ideologia de Reggio foi totalmente transferida para a dinâmica dos


filmes não-verbais. Em Baraka o resultado atinge o seu máximo esplendor,
talvez pela qualidade da filmagem em 70mm, pela escolha das tomadas, pela
inserção quase mágica das músicas mas, principalmente, por permitir uma
leitura muito mais aprofundada do aspecto interior dos ser humano. Talvez
Baraka nos interesse mais do que a “trilogia qatsy” porque nele sentimos o
“sopro divino” muito mais presente do que nas outras obras, gerando uma
empatia imediata àqueles que têm uma predileção especial pelo tema religioso,
embora esse não seja o único olhar sobre a película; ao não deixar muito claro
sua intenção, acaba por sugerir algumas chaves de leitura, de modo que
Baraka funciona como uma obra aberta, passível de múltiplas interpretações, o
que lhe confere uma particularidade especial: a de incentivar o diálogo.

A imagem facilitadora do diálogo: Baraka como instrumento didático

Há uma coerência em Baraka que algumas pessoas parecem não notar,


achando que o filme é uma simples sucessão de imagens desconexas; é um
risco a que os filmes não-verbais estão sujeitos, o de não serem bem
compreendidos pelo público em geral. De certa forma, faz-se necessário um
olhar um pouco mais aguçado para que se possa perceber certas nuances que
dão ao filme aquela nota original, que em Baraka ocorre em diversos
momentos.

Talvez um olhar mais treinado, e isso pode acontecer na terceira ou


quarta vez em que se assiste ao filme, conseguirá perceber que existem muitas
metáforas entre uma cena e outra e também que certas imagens são
arquetípicas, portanto dizem respeito às mais arcaicas lembranças do ser
humano sobre a Terra. Não é difícil perceber que Baraka possui um rico
instrumental simbólico, bastante apropriado para levantar questões sobre como
o ser humano se relaciona com o outro, com a natureza e com Deus (ou, de
maneira genérica, com o que se costuma denominar como sagrado). A
vantagem da ausência de texto é que o receptor cria a sua própria definição
daquilo que observa na tela, mesmo que não entenda com exatidão aquilo que
lhe é mostrado; o interessante é que a imagem tem o poder de atingir muito
prontamente certos aspectos do inconsciente que vêm à tona, por exemplo,
quando se discute uma determinada passagem da obra junto com um grupo de
pessoas.
Entretanto, por mais agradável que a experiência possa parecer, se não
houver alguém capacitado para direcionar o raciocínio dos alunos, por
exemplo, caso o uso do filme seja feito em sala de aula, a experiência se dilui
em idéias desconexas e devaneios, perdendo-se uma ótima oportunidade de
diálogo e reflexão.

O cientista da religião Hans-Jürgen Greschat (2006, p. 64), que valoriza


muito a imagem, os objetos, as viagens, a arte em geral, no estudo e na
pesquisa do objeto religioso, diz que “[...] um diapositivo projetado na parede
por dois minutos livra o professor de longos discursos e evita mal-entendidos
por parte dos alunos”. Esse é o grande trunfo de Baraka, o de permitir múltiplas
leituras sobre o objeto religioso, podendo ser utilizado em aulas/palestras de
acordo com a intenção de quem o projeta.

Um exemplo didático: nas primeiras cenas o filme mostra um amanhecer


no Nepal e logo em seguida passamos a observar várias tomadas de pessoas
praticando suas abluções, orando, meditando, condutas típicas de praticantes
de alguma religião; tem-se a impressão de que o objetivo dessa “abertura” foi o
de mostrar que, à parte as diferenças de costumes próprios de cada religião,
no fundo a essência de todas é a mesma. Veremos sadhus iogues lendo seus
livros sagrados à beira do Ganges, judeus ortodoxos fazendo o mesmo em
frente ao muro das lamentações, padres católicos, monges budistas e fiéis
muçulmanos em atitude de contemplação, tudo isso podendo ser aproveitado,
por exemplo, para se discutir temas tais como meditação, mistério, oração,
prática religiosa, entre outras abordagens. Todas as grandes religiões foram
enfocadas no filme e, assim que termina a última cena, temos a sensação de
haver passado um par de horas observando o mundo através das lentes de um
caleidoscópio multicolorido.

Que fique claro que em momento algum queremos afirmar que a


imagem é mais importante do que o texto impresso; o que lhe confere valor é a
associação com o texto, de modo que o papel da imagem é antes de tudo o de
complementar o das palavras e não o de substituí-las. Muitas vezes a imagem
alcança de imediato um ponto que o texto sofreria muitas horas para atingir, tal
qual um ditado conhecido na tradicional medicina chinesa que diz algo como “a
moxa faz milagres onde a acupuntura não alcança”, como querendo dizer que
não existe uma técnica “menor”, já que o que importa de fato é o uso adequado
que se faz dela.

Ao comentar o papel dos cientistas da religião, no que tange ao seu


instrumental de trabalho, Greschat (2006, p. 77) afirma que:

[...] Cientistas da religião que trabalham apenas com textos são


como cegos que falam de paisagens que lhes foram descritas, em
palavras, por pessoas que podem ver. Abandonando essa postura,
esses cientistas parariam de se referir às religiões alheias “de olhos
fechados”. Deveríamos usar todo nosso instrumental sensório nessa
tarefa, uma vez que os seguidores de religiões diferentes da nossa
não omitem nenhum dos sentidos quando as praticam.

A religião é sobretudo uma prática, e a observação sobre a prática


religiosa do outro faz com que consigamos apreender certas particularidades
que fatalmente se perdem se o que se conhece dessa religião se prenda
apenas àquilo que estiver no papel ou na tela de um computador. Quanto mais
oportunidade tivermos de usar nosso instrumental sensório, como escreve
Greschat, tanto mais informações obteremos sobre o nosso objeto de
observação. Nesse ponto, é claro, até a imagem se torna limitada: como
descrever o cheiro do incenso a quem nunca teve contato com um? E o som de
uma batucada de terreiro, o modo como a pulsação de um tambor mexe com
nosso corpo? Que dizer, então, a quem nunca comungou, o sabor de uma
hóstia que se dissolve na boca do fiel? Tudo tem um limite, mas existem
diversas alternativas de se explorar um fenômeno, ainda que sempre deva
prevalecer a ética e o respeito à identidade e tradições alheias.

Voltando ao texto de Hans-Jürgen Greschat (2006. p. 64)

[...] Os objetos de pesquisa mais importantes para um cientista


da religião encaixam-se dentro de uma das seguintes categorias:
primeiro, há obras por meio das quais pintores, desenhistas e
escultores exprimem sua própria religiosidade; segundo, existem
utensílios religiosos de todos os tipos, fabricados e usados por fiéis,
que europeus levaram para seus museus; terceiro, há documentos
sobre a religiosidade alheia- imagens pintadas, registros fotográficos
e audiovisuais feitos por europeus.
2 Disponível em: http://www.mrrena.com/cutecast/cutecast.pl?forum=5&thread=69.
Acesso em: 19
ago.2007

Nosso objetivo nesse trabalho é o de tentar mostrar que os filmes não-


verbais são excelentes suportes para a prática do diálogo e da dinâmica da
alteridade, partindo do princípio de que muitos preconceitos, senão todos,
nascem da ignorância que se tem do outro. Essa é uma questão fundamental
se nos atentarmos ao fato de que o mundo islâmico está cada vez mais
abrangente e o preconceito em relação aos muçulmanos não parece diminuir,
pelo contrário, já que frequentemente a religião islâmica (na mídia) aparece
associada ao terrorismo e a grupos radicais fundamentalistas. Será que um
pouco desse cenário não poderia ser mudado se desde já começássemos a
mostrar às gerações que chegam um outro lado dessa fé? O mesmo
poderíamos aplicar localmente, face ao preconceito ainda existente no Brasil
com relação aos cultos afros, só para citar um exemplo.

Não é de hoje que Baraka vem sendo utilizado no meio acadêmico, mas
sua presença no país ainda parece ser tímida em relação aos países europeus
e aos Estados Unidos. Deste último, descobrimos uma interessante pesquisa
feita com alunos de uma universidade, parte dela disponível na internet, onde o
professor usou Baraka em aula obtendo um resultado “surpreendentemente
positivo”, de acordo com suas palavras, ficando tão encantado com o retorno
de seus alunos que o filme passou a fazer parte regular dos seus cursos desde
então.

Como parte do trabalho, os alunos deveriam escrever diários sobre suas


observações à respeito de Baraka e de como o filme lhes havia tocado.
Vejamos algumas das impressões encontradas2:

[...] Senti-me muito feliz e esperançoso. Acho que foi porque


Baraka consegue fazer um bom trabalho ao mostrar quão
absolutamente belo é o mundo; o filme fez com que eu quisesse sair
e experienciar o mundo, me fez sentir vivo. Há tantas coisas que
Baraka me fez sentir que não tenho certeza de poder listá-las todas
corretamente. (CA-58)

[...] O modo como o diretor conduziu o significado do filme sem


fazer uso de palavras foi surpreendente. É incrível como ele
consegue mostrar a beleza e a destruição do mundo em apenas uma
hora e vinte minutos. Nascimento, vida e morte, tudo isso em um filme
curto. Eu recomendei para que esse filme seja assistido em nossa
aula de religião. (JG-51)
[...] Às vezes sinto que vivo uma vida “protegida” porque sou
muito ignorante à respeito das diversas culturas do mundo em que
habito. Sempre tive o sonho de um dia viajar e ver o mundo. (AB-58)

Apenas alguns exemplos, que dão o tom das observações surgidas


durante a apresentação do filme. Nota-se que não necessariamente se fala de
religião, porque não somente disso se trata Baraka. Entretanto, existe uma
particular identificação entre o ato de viajar, conhecer o mundo, concomitante
ao fato de conhecer-se melhor e mais profundamente. Essa observação do
mundo “lá fora” gera uma consequente observação do mundo “cá dentro”, ou,
em outras palavras, a viagem, quando experienciada de forma plena (pois
viajar deve ser visto como uma arte a ser desenvolvida), surge como uma
metáfora da viagem interior, tema recorrente no estudo das viagens e das
peregrinações.

De certa forma, Baraka tem muitos elementos de uma peregrinação:


estão lá os ritos de passagem tão bem explorados por Arnold van Gennepp em
sua obra3, os locus sancti, lugares de poder de inúmeras tradições religiosas,
os símbolos, a comunhão com a natureza, o sofrimento e a dor. Um outro olhar
sobre a obra, um outro olhar sobre nós mesmos.

Em certos momentos desta mágica narrativa visual, a câmera mostra o


sol, o céu, um eclipse. Somos jogados para fora do planeta, junto às estrelas e
aos mistérios da galáxia desconhecida. Sentimo-nos pequenos, insignificantes
diante da imensidão do Universo. Uma metáfora, uma possível leitura
metafórica que Baraka insinua nessa dança de imagens, a de que somos todos
peregrinos de uma grande jornada chamada vida.

Referências Bibliográficas:

ALVES, Rubem. O enigma da religião. 2a. ed. Vozes: Petrópolis, 1979.

GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião?. Paulinas: São Paulo,


2005.
3 Os ritos de passagem, um clássico da antropologia publicado em 1978 pela Editora
Vozes, atualmente
fora de catálogo.

MONGA, Luigi. (ed.) Annali d’ Italianistica: L´odeporica/ Hodoeporics: on travel


literature. Vol. 14. Chapel Hill: University of North Carolina, 1996.

REGGIO, Goddfrey. Director Goddfrey Reggio on the world in which we live.

Disponível em: <http:// www.spiritofbaraka.com/naqoy.aspx >. Acesso em : 23


ago.2007.

TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. São


Paulo: Paulinas, 2003.

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