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UNEB- Universidade do Estado da Bahia

Componente Literatura e Autobiografia


Atividade avaliativa do primeiro semestre
Professora Jailma Moreira
Aluno Wallace Romano
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2. Escrita egoísta sobre os outros que habitam em mim.

Escrita egoísta sobre os outros que habitam em mim


Wallace Romano

Relendo minhas tentativas um tanto quanto falhas de escrever uma autobiografia,


observei certas nuances nas descrições sobre “os outros”, e então me deparei com uma
questão que me intrigou: “como se dá a relação do escritor da autobiografia com as
pessoas que ocasionalmente necessitarão aparecer no texto?”. Esta pergunta, em primeiro
momento, não aparenta ser tão pertinente, pois logicamente uma autobiografia se trata do
próprio escritor e suas memórias, vivências e trajetória; Porém, entendendo como ele se
relaciona dentro do texto com as outras pessoas e quais critérios usa para representar um
personagem, acaba sendo revelado muito sobre o autor e como ele lida com suas próprias
questões - acarretando uma análise muito mais consciente sobre a obra.
Em primeiro momento devemos nos voltar para a indagação inicial. Se questionar
sobre outras autobiografias e sobre a sua própria, com os mesmos critérios, é um desafio
que deve ser enfrentado ao buscar uma verossimilhança (por este motivo, ao decorrer deste
ensaio, irei citar escritores com os quais tive contato e minhas próprias passagens para
ilustrar meus argumentos). Ao se questionar sobre a relação do autor com “os outros”
devemos nos indagar, em primeiro lugar, sobre quem são estas outras pessoas e qual a sua
proximidade com o autor; pai, mãe, irmãos, avós e tios, que aparecem em primeiro
momento, são os alvos perfeitos para esta análise inicial.
Quando, ao escrever a minha autobiografia, decidi remover o nome do meu pai e
substituí por “pai”, removi também uma grande parte de sua existência e apenas aproveitei
as partes que eu vi, e em mais específico as partes ligadas a mim. Quando escrevi “mãe”,
para designar Jaqueline, fiz a mesma coisa: reneguei de meu texto todos os anos em que
ela viveu antes de me conceber e todos os momentos em que ela estava vivendo sua vida
que não foram ligados à mim- ou seja, matei a Jaqueline. Poderia continuar fazendo este
exercício com todos os outros nomes que substituí por substantivos comuns, todos os
outros nomes e existências que neguei, mas acredito que já foi o suficiente para ilustrar
meu ponto.
E então, após constatar esta violência, outros questionamentos surgem: “Por que
este ocultamento ocorre? É involuntário este processo de apagamento do outro ao escrever
sobre si? Caso sim, por que isso acontece?”.
De acordo com Freud, relacionamentos íntimos possuem uma carga emocional
ambivalente, ou seja, é a troca de subjetividades que compõem a relação. Portanto, ao
buscar imaginar uma imagem sobre o outro, refletimos sua relação com nossas
subjetividades- e isto irá compor o que o outro é para nós e como iremos representá-lo em
uma fala ou escrita (inclusive se representaremos ou não certos fatos), o que pode
acontecer conscientemente ou não- e quando conscientemente, com intenções ocultas ou
não. Em outras palavras, escrevemos sobre o que lembramos, lembramos do que
sentimos¹ e sentimos sobre o que vivemos- ocorre uma trituração da realidade e de quem
“os outros” são a cada etapa dentro da escrita de uma autobiografia- estes estratos² da
realidade, neste contexto, são a imagem que buscamos sobre alguém, e consequentemente
o que escrevemos sobre estas pessoas na nossa autobiografia.
Ao escrever sobre si reunimos todo o nosso universo observável relevante no
contexto em que estamos para sermos capazes de inserir o leitor e contar uma história.
Embora a seriedade das histórias sejam diferentes, se tratando de autobiografias e outros
tipos de textos, os mesmos métodos são usados para escrevê-la; se preservam as partes
prioritárias para a história (as que auxiliam no desenvolvimento) e se ocultam as que não
são relevantes. Nos trazendo à conclusão com uma pergunta: “No caso da fábula de
Chapeuzinho Vermelho, qual seria o interesse em discorrer, e em uma análise completa
definir nitidamente a personalidade do caçador que salva a garota e a Vovó no final do
conto?” Não há um interesse nítido assim como não há relevância discorrer
demoradamente sobre um personagem que carrega sua importância em como seu atos (a
luta com o Lobo e o salvamento da personagem principal e sua avó) afetaram a
protagonista, e não qualquer outro aspecto de sua vida- caso a história de Chapeuzinho
Vermelho fosse uma autobiografia, observaríamos que apenas o que alcançou a
subjetividade de chapeuzinho seria apresentada (o fato de ter sido salva, a gentileza e
bravura, entre outros fatores que a despertariam sentimentos).
Citar fábulas é um modo perfeito de iniciar o próximo assunto: “‘Os outros’, em uma
autobiografia, são apresentados como personagens?”. A pergunta se faz válida após
nossas últimas constatações de que a autobiografia se assemelha a uma história, se
diferenciando pela verossimilhança com a realidade; de que as subjetividades são o que
influenciam a como uma pessoa será apresentada em uma autobiografia; e que ocorre um
processo de ocultamento de todo o resto de uma pessoa, deixando apenas as partes
relevantes- como geralmente se faz com um personagem em uma história. Com base nas
alegações anteriores podemos afirmar que há um processo de desumanização dos “outros”
ao escrever sobre si- a distorção da realidade ao passar pelos filtros da subjetividade do si-
e a transformação destas pessoas em fragmentos de ações.
No início do texto foi dito que “Se questionar sobre outras autobiografias e sobre a
sua própria, com os mesmos critérios, é um desafio que deve ser enfrentado ao buscar uma
verossimilhança”; portanto, para buscar essa verossimilhança quais caminhos devemos
tomar para evitar uma transformação em personagem excessiva dos “Outros”? Ao escrever
uma autobiografia devemos nos manter fiéis tanto a nossa realidade quanto a das outras
pessoas que serão inseridas na história, por isso é importante tratar com respeito às
histórias alheias, sejam elas boas ou ruins, sejam elas positivas ou negativas para o autor.
Durante a derradeira busca pela verdade nossa visão acaba sendo modificada, e
enxergamos aspectos que não tínhamos capacidade de ver antes, pois não sabíamos dos
outros lados dessa história. Contar sua própria história é um ato de resistência, redenção, e
sobretudo autoconhecimento: e obviamente isso inclui conhecer “os outros” que estiveram
na sua jornada até esse momento: e contar a verdade sobre esses outros é, acima de tudo,
um ato de responsabilidade.
Não há como e nem por que deixar nossas subjetividades de lado ao escrever um
texto com caráter autobiográfico, porém devemos buscar um equilíbrio entre as
subjetividades e objetividades que compõem nossa história. Saber dosar, ter dignidade e
responsabilidade para não criar um texto de caráter ambíguo (como por exemplo Dom
Casmurro, em que este exercício de responsabilidade com a verdade não é efetivado, e
apenas uma única história é contada) são os elementos chave para escrever uma
autobiografia não-egoísta.

¹. Nossa memória de longo prazo é relacionada com nossos sentimentos, que se mantêm
alojados no nosso inconsciente em conjunto, por isso dificilmente esquecemos as coisas
que nos despertam alguma emoção significante.
². Como Deleuze chamava as fragmentações da realidade do mundo exterior que eram
reduzidas a informações menos completas (um panorama) para serem processadas por
nosso pensar.

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