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[Anônimo]
Como vimos, não existem limites para a natureza que terão os personagens
numa história. Assim, o que faz com que um ente se transforme em
personagem é o escritor dotá-lo da possibilidade de executar uma ação
determinada. Não obstante, é preciso saber que esta ação deve ser executada
pelo ente de maneira consciente. Que numa história exista uma porta que se
abre não quer dizer que a porta seja já um personagem; o escritor tem de
acrescentar elementos que nos indiquem que a porta se abriu por sua própria
conta com um objetivo específico. Se a porta se abre, por exemplo, porque
sabe que deve abrir-se, e o faz diante de circunstâncias específicas, adquire
caráter de personagem e ocupa como tal um lugar na história. Este recurso do
escritor, que essencialmente se obtém outorgando características humanas a
um ente que na realidade não as tem, foi academicamente denominado de
humanização.
Embora não haja tal coisa como uma teoria geral da construção de
personagens, verifica-se na maioria dos casos que o primeiro elemento a
considerar pelo escritor para criar um personagem é a ação que este vai
desenvolver na história e o peso que terá na mesma. Depois aparecerão as
relações entre o personagem e os demais personagens da história. Em ambos
os momentos vão sendo acrescentadas ou eliminadas algumas características
psicológicas do personagem, da mesma maneira como um escultor molda a
pedra. Nesse processo se atribui o nome ao personagem ou se decide se o
mesmo chegará a ter maior ou menor importância em algum ponto da história.
Outro fator, que à primeira vista poderia não ter importância, é o do nome do
personagem. Nem todos os personagens devem ter um nome, nem sequer é
imprescindível que o personagem principal tenha um nome; mas, sim, deve
haver uma forma de denominá-los. Hoje em dia, é comum encontrar histórias
nas quais um personagem é definido simplesmente por sua atividade – o
jornalista, a grande senhora, o homem – ou por um apelido com o qual o
escritor ou o resto dos personagens o reconhecem. É possível, inclusive, que
um personagem tenha um nome próprio, mas que o escritor decida apelidá-lo
usando alguma de suas características.
Há quem use nomes próprios para dar ao leitor uma ideia de qual será o papel
do personagem na história. Em “Rayuela”, de Julio Cortázar, o personagem
feminino de maior peso se chama Lúcia, mas o autor a nomeia “a Maga”.
Também os demais personagens a chamam assim, mas em suas conversas
quotidianas alguns preferem chamá-la por seu nome. Adverte-se, assim, que o
escritor pode construir sua história como se esta fosse parte da realidade,
podendo ter uma relação de maior ou menor afinidade com alguns
personagens e reagir de maneira similar a como estes reagem com ele. O
personagem ao qual Cortázar chama “a Maga” tem realmente algumas
características que poderíamos definir como mágicas, certo mistério a envolve;
assim, quando o leitor se depara com esse personagem, já tem uma ideia do
que o espera. Outras combinações são mais claras: Kafka, obcecado pelo
tema da interação entre homem e o poder, chama seus personagens
simplesmente de o guarda ou o juiz. No mesmo Kafka se observam casos
estranhos: um personagem recorrente em sua narrativa se chama
simplesmente K – a primeira letra do sobrenome do autor –; em algum conto,
Kafka atribui a seus personagens nomes de variáveis matemáticas: A e B.