Você está na página 1de 8

"

126 l/VTRODUÇÃ O À ANÁ LISE DO TEATRO


ABORDAGENS METÓDICAS 127

A ambigüidade, presente já no texto, é reforçada pe- perspectiva histórica , o são menos quando nos debruça-
la representa ção e p el o s di scursos feitos sobre ela. A p er- mos so b re exemplos contemporâneos. Entretanto, n ão é
so na ge m é representada por um at or vivo que lhe em- m ais evidente assimilar Clov , de Samuel Beckett (Fim de
presta seu c o rpo , se us tra ços , su a vo z, sua energia . O ' jogo) , a Hoederer, de Jean-Paul Sartre (As mãos sujas),
efeito de im ita ção, a mim esis, é in evitáv e l. O ator rei vin- Antígona , de Anouilh , a Hl , de Nathalie Sarraute (Por um
dica legitimamente uma relação sensível com a persona- sim ou por um não). Se admitimos as diferenças que exis-
gem que surge como o cadinho de emoções comuns ao in- tem entre uma alegoria medieval (a caridade) e um tipo
térprete e ao público , a ponto de este confundir~s vezes da commedia dell 'arte (Arlequim), n ão podemos de re-
os d o is no mesmo a m o r ou na mesma recusa. Eo caso pente confundi-los sob o mesmo rótulo de personagem.
daquele int érprete de Bouleuard Du rand, de Armand Sa- Ou melhor, podemos fazê-lo desde que tomemos a pala-
lacrou , vaiado tod as as n oites durante uma turnê numa vra pelo servi ço c ômodo que ela nos prest a , sem nos
regi ão mine ira da Fran ça ; certa m e n te porque desempe- obrigar a a d o tar um ponto de vista unificador definit ivo.
nhava muito bem o p apel de um furador de greves . Os As diferentes estéticas teatrais fazem da personagem uma
exemplos de atores que dizem encontrar seus modelos concepção e um uso particulares. Num texto, podemos
na vida, observando transeuntes desde um terraço de ca- ter a.impressão de lidar com uma pessoa, com sua lingua-
fé, contribuem para semear a dúvida . "-- gem, sua identidade completa , seu estado civil , m as isso
No entanto, a personagem no texto adquire formas n ão é ' suficiente para pensar toda s as p erso~agens do
muito diversas, às vezes muito abstrat as, às vezes inscritas mesmo modo, sejam elas de origem mitológica, hi stórica
de maneira mu ítodiscreta na s entrelinhas. Atribuir-lhe de ou terrivelmente abstratas, simp les extensões de palavras
saída a condição de um ser de carne e osso em nome d a reunidas sob a mesma sigla ou o mesmo travessão.
representação é precipitar as coisas.

A tradição psicológica : a personagem como essên cia


No que se refere à bistôria: da abstração ao indivíduo
3, A tradição da análise literária psícologízante va i no
Para o teatro gregova persona é a máscara, o papel mesmo sentido da unificação 'a p re ss a d a , em nome da
1 desempenhado pelo ator, e não a personagem esboçada
pessoa. Todo o seu discurso constrói-se em torno de um
pelo autor dramático. O ator é somente ua; i~térpr~te qu~ núcleo-personagem ao qual ela atribui as características e
não se confunde com a ficção e que o público nao assr- os comportamentos de um ind ivíd u o comum. As coisas
mila imediatamente a uma encarnação da personagem se complicam quando se trata de definir esse in d ivíd u o
textual. Na maior p arte do tempo, utilizamos essa mesma comum , já que poderia tratar-se apenas de você e de
palavra , personagem, p ara designar os diferentes avatares mim, ou seja, de todo o mundo. Todas as personagens de
da partitura textual prevista para ser representada em ,ce- teatro poderiam portanto ser analisadas segundo os mes-
na por um ator. . mos cânones do idealismo humanista, e a todas se deve-
A história do teatro fornece exemplos muito diferen- riam atribuir gamas de reações que obedecem à moral
2 tes de personagens que podemos classificar, como faz Pa-
ocidental. Em outras palavras, Fedra deveria ser interpre-
trice Pa vis , do geral ao particular, da abstração considera- tada como uma mulher um pouco madura , apaixonada
da como uma força a tu a n te ao indivíduo caracterizado por um 'jove m , com traços de ciúme "u n iversa lm e n te " re-
por traços particul ares . Essas d iferenças, a d m itid a s na co n hecid o s . O que equ ivale. .curiosamente, a banalizar a
128 INIRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEA mo ABORDAGENS METÓDICAS 129

filha de .Min os e de Pasífae, esquecendo ao mesmo tem- fizeram recuar a tradição da identificação absoluta , per-
po que ela se exprime apenas em alexandrinos. Depois manecem marginais. .
disso, só restaria remetê-la à seção de crônicas policiais 6 De fato , parece que a ficção teatral tem necessidade
dos jornais. da personagem na escrita, como uma marca unificadora
4 Tal concepção não leva muito em conta a dimensão dos procedimentos de enunciação, como um vetor essen-
artística da personagem, construção voluntária de um au- cial da ação, como uma encruzilhada do sentido. No mo-
tor, soma de discursos reunidos em torno de uma mesma mento da passagem ao palco, o ator geralmente continua ,
identidade útil à ficção. Ela faz pouco caso do contexto em seu trabalho sobre o sensível , a pensar na unidade de
sócio-histórico da escrita , uma vez que assimila e julga os seu papel atravé s do conceito de personagem , mesmo
valores transmitidos no discurso de uma personagem que não se prenda a uma estética da identificação. O pú-
apenas em função de nossos valores ocidentais, definidos blico, enfim, receptor sem o qual a representação teatral
como universais. Na verdade , assimila a personagem a não pode ocorrer, sempre se apóia na personagem para
uma pessoa , e todas as pessoas a um modelo implícito re- entrar na ficção .
conhecido por todos . 7 Falamos hoje de personagens cada vez mais abertas,
deixando zonas de sombra em sua construção, incomple-
tas do ponto de vista da ficção, alternadamente encarna-
2. Apreender a personagem entre otexto e o palco das e distanciadas pelo ator. "Uma soma de significantes
cujo significado deve ser construído pelo espectador", diz
Pode-se dispensar a personagem? Robert Abirached . O contrário d a personagem "co m as
chaves na mão", acrescentaremos, pré-construída, perfei-
5 Regularmente, teóricos anunciam a morte da perso-: tamente fechada e que não deixa mais nada para ser ima-
nagern, escritores remetem-na aos tempos idos, diretores ginado por ninguém. A verdadeira batalha teórica certa-
de teatro denUnciam a rotina da abordagem psicologi- mente já não é em torno da vida ou da morte da persona-
zante. Nos textos, o grau de realidade de uma persona- .gem, mas em torno da maneira como se pretende cons-
gem pode diminuir até se reduzir ao estatuto de enuncia- truí -la, partindo de uma leitura atenta do texto e não de
dor anônimo, esvaziado ao máximo de características hu- um referente pescado às pressas na realidade , fonte de
manas e de sentimentos. No oratório,.ela não é mais que mal-entendidos e de clichês . A personagem não existe
uma voz. Pode ser previsto partilhar o papel entre vários verdadeiramente no texto, ela só se realiza no palco, mas
atores ou, inversamente, dar ao mesmo ator vários pa- ainda assim é preciso partir do potencial textual e· ativá-lo
péis, ou senão várias personagens, a fim de melhor con- >.
para chegar ao palco. ,.;.. .
fundir as pistas e romper o velho confronto do ator e de
sua personagem. Falou-se então de "estruturas de pa-
péis"; acostumamo-nos com todo o tipo de divisões e va- Personagem a montante, personagem ajusante
riações da história e a não mais fazer da personagem
uma substância, a não mais ligá-la de maneira tão defini- Quando assimilamos a personagem a uma pessoa,
tiva ao texto e o texto ao ator, a acabar com a .trilogia julgamos poder explicar uma pela outra, saltar ao referen-
texto-personagem-ator. Por mais apaixonantes que te- te para justificar a construção artística, encontrar o mode-
nham sido, essas tentativas de transformação da persona- lo na vida para justificar seú retrato. Também aqui, toda
gem, no texto ou no' palco, jamais foram. completas e , se uma tradição oriunda do teatro clássico apóia-se na no-
",

130 INTRODUÇÃO Ã ANÁLISE DO TEAmo ABORDAGENS METÓDICAS 131

ção de caráter, .ou de essência, e acabou por estender-se 3. Para um estudo da personagem
a todas as formas de teatro. Pois, se é verdade que a per-
sonagem tem referentes no mundo, que ela tem a ver Princípios
com a vida, por outro lado ela se constrói no texto e atra-
vés dele. Se começarmos a leitura de um texto sabendo já Procedamos a levantamentos precisos das indicações
como será a personagem, nada tiraremos do texto a não cênicas concernentes às personagens, dos discursos que
ser justificativas mai s ou menos úteis ao que já queríamos elas pronunciam umas sobre as outras , dos discursos
construir desde o início. Preferimos portanto a hipótese que pronunciam sobre si mesmas, das ações que realizam
a
de um trabalho em que a personagem se constrói jusan- ou que dizem querer realizar no interior do enredo.
te, elabora-se progressivamente a partir do que é assina- " Durante esse trabalho , procuremos permanecer o
lado no texto e só se molda aos poucos. , ' mais perto possível do texto. Para tanto, evitemos as hi-
Na prática, a relação entre o montante e ajusante é póteses psicológicas, os julgamentos morais ou estéticos
mais complexa, sobretudo para a leitura de um texto já que viriam 'de nossas opiniões prévias ou do que ouvi-
muitas vezes representado e enriquecido de toda uma mos a crítica dizer. De qualquer modo, sabemos (ver aci-
memória que se constitui, assim, como meta texto. Daniel ma) que interferências culturais são inevitáveis e que elas
Mesguish é o diretor de teatro que mais amplamente tirou podem ser úteis, o que é um motivo a mais para adiá-las.
conseqüências disso para a representaç ão, não hesitando Os elementos de síntese serão estabelecidos depois que
em pôr no tablado vários atores para interpretar, por os resultados dos levantamentos tiverem sido confronta-
exemplo, o papel de Harnlet, com isso fazendo atuar ao dos uns com os outros, no interior do sistema do texto e
mesmo tempo a personagem e as aquisições da cultura do universo que ele propõe. O recurso a referentes (a
teatral, o texto e uma parte do comentário sobre este, a pessoas, a realidades sociais) só intervém em última ins-
fim de torná-lo mais denso e complexo. Saímos então da tância, como outras tantas hipóteses para a passagem ao
problemática da personagem/espelho psicológico para palco. O essencial é dar conta dos dados textuais estritos
entrar em formas de representação mais elaboradas. e do momento em que eles entram numa construção ar-
Nem por isso o leitor deixa de ter desde o início tística que dá lugar então a escolhas individuais. '
uma imagem da personagem (caso contrário" poderia A personagem é uma encruzilhada do sentido. Há ne-
realmente Ierr) , mas uma imagem que ele deve poder cessariamente trocas entre a personagem analisada como
modificar e sobretudo questionar à medida que refina sua uma identidade ou até como uma substância, a persona-
leitura . Para mim é difícil imaginar O Cid de Corneille gem vetor da ação e a personagem sujeito de discurso. São
sem um Rodrigo enriquecido (ou confundido) por suas essas troc:.as que lhe conferem toda a sua complexidade.
imagens precedentes, sem aquela, brilhante, de Gérard
Philipe. No entanto, entre o interior e o exterior, entre o
montante e a jusante, minha leitura avançará se eu tiver Carteira de identidade
digerido os modelos culturais de que disponho, se não
teimar em buscar Rodrigos em todas as esquinas e, por- Os discursos das personagens são reunidos sob a
tanto, se for capaz de trabalhar numa recuperação com- mesma sigla, que constitui a primeira pista de sua identi-
pleta do texto sem me pretender totalmente ingênuo ou dade. Os nomes atribuídos às personagens são uma indi-
totalmente ignorante. cação importante, a ponto de alguns dramaturgos as pri-
varem de nomes, certamente para que não fiquem muito
132 n\TTRODuçÃO à ANÁLISE DO TEATRO ABORDAGENS METÓDICAS 133

marcadas socialmente e para que a ênfase se coloque no precisa necessariamente fazer uma investigação concentra-
que elas dizem. Em Por 'JAm sim ou por um não, Nathalie da sobre os capitães-porteiros de Falaise para desempe-
Sarraute denomina-as Hl, H2, FI, H3, limitando-as a se- nhar o papel de Turcaret, mas para quem a informação po-
rem enuncia dores sexuados. Henri Mainié concede-lhes de assumir um caráter adequado a estimular a imaginação.
um simples travessão que anuncia a mudança de réplica. O simples exame da identidade remete a pistas mui-
Já na lista das personagens tomamos consciência de to diversas: à mitologia (Orestes), à História (Júlio César),
uma constelação de nomes que constituem um conjunto à tradição teatral (Arlequim) ou mesmo à pura abstração
coerente e carregado de diversas conotações. Labiche (O no caso de uma alegoria (a morte). Quando concebemos
caso da rua de Lourcine) chama-as Lenglumé, Mistingue, portanto um levantamento de identidade para uma perso-
Potard, ]ustin e Norine. Elas não têm prenome, exceto tal- nagem, esta só adquire realmente sentido no contexto da
vez Justin, o empregado, que por sua vez não teria sobre- peça considerada como uma estrutura fechada. As infor-
nome. Além das ressonâncias divertidas ou prosaicas des- mações exteriores muitas vezes acabam sendo uma faca
ses nomes, facilmente identificáveis, podemos relacioná- de dois gumes, já que saber muito sobre uma persona-
los com o enredo. Lenglumé e Mistingue, dois ex-colegas gem no texto pode tornar ainda mais difícil a passagem
de pensão, dormiram juntos após uma noite de bebedeira ao palco, se nos deixamos levar por pistas falsas ou por
durante a qual teriam cometido um crime de que não se clichês. Como representar Napoleão, por exemplo, mes-
lembram! Quanto a Norine (mulher de Lenglumé), dimi- mo depois de ter consultado todos os textos e toda a ico-
nutivo provável de Honorine cujo nome completo jamais nografia sobre a personagem histórica? Como representar
aparece, será por ela não ser honrosa ou por não ser a morte, e como representar Arlequim atualmente, mes-
honrada? O jogo das identidades, aqui, logo deixa de ser mo sabendo tudo de todos os arlequins?
objetivo e propõe uma série de pistas que dizem respeito Com razão, Anne Ubersfeld recusa toda análise indi-
à ação e ao sentido. Uma personagem não se constrói vidual, em proveito de uma reflexão sobre o sistema das
apenas a partir de seu nome, mas não podemos ignorar o personagens numa determinada peça. O levantamento
modo como os autores as nomeiam. dos traços pertinentes para cada personagem torna-se as-
Raramente dispomos da biografia completa de uma sim indispensável, já que permite, reconhecer oposições e
personagem, mesmo que procedamos por cruzamento de semelhanças. O fato de a personagem ser rei só tem real-
dados. Será preciso esperar o século XVIII para que infor- mente sentido se a considerarmos em relação às outras,
mações mais completas sejam fornecidas. Assim, em Tur- que não .são reis. Richard Monod, por sua vez, fala de
caret, de Lesage (1709), ficamos sabendo que o herói é fi- constelações de personagens, do microcosmo estruturado
lho de um ferreiro de Domfront, que foi capitão-porteiro no qual elas são totalmente interdependentes. Evidências
em Falaise após ter sido criado de um marquês, e que ca- visíveis que permitem escapar ao labirinto dos referentes
sou com a filha de um pasteleiro, antes de tornar-se o ho- históricos. No exemplo dado acima, de Turcaret, não é
mem de muitos negócios que é no início do enredo. Mes- indiferente que o sr. Turcaret esteja cercado de persona-
mo assim, a questão para Lesage é mais sócio-histórica do gens que se chamam a baronesa, o cavaleiro, O marquês
que estritamente biográfica. R. Abirached compara justa- (sem nomes próprios, o título sendo suficiente), e outras
mente Turcaret ao Monsieur ]ourdain e ao Georges Dan- que se chamam Lisette, Frontin, Marine, ou ainda Flarn-
din de Moliere, sublinhando que, se Molíêre não fornece mando Os eternos monsieur que todos empregam para
tantas informações, temos muitos elementos para imagi- designar Turcaret adquirem importância. Só eleé desig-
ná-los. Essa é uma questão essencial para o ator, que não nado por seu nome, juntamente com o sr. Rafle. Quanto à
INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO 1EA TRO ABORDAGENS METÓDICAS 135

presença de nomes como Lisette ou Frontln. vela mostra de que eles não cessam de evocar suas dores e suas doen-
claramente o projeto de Lesage, que fala do mundo que o ças, mas sua idade para o estado .civil (e portanto para a
cerca com algumas personagens oriundas diretamente da escolha de um ator) não é fundamental. Eles são literal-
tradição teatral. A individualidade de cada personagem mente "sem idade", ou melhor, "fora de idade", a relação
constrói-se apenas no interior do grupo de protagonistas, que mantêm com o tempo, a duração e a morte sendo
e nesse contexto apenas as semelhanças e as oposições muito mais interessante do que informações anedóticas
se mostram pertinentes. sobre quanto lhes restaria de vida.
Num outro registro, as personagens de Esperando Nessa busca de informações, de qualquer modo ne-
Godot, de Beckett, o famoso quarteto Vladimir, Estragou, cessária, vemos desenhar-se a figura em pontilhado das
Pozzo e Luckv, têm nomes com consonâncias que reme- personagens no texto, sem podermos afirmar que sejam es-
tem a nacion;lidades diversas. Essas personagens são or- sas as figuras corretas ou as figuras indispensáveis. As esco-
ganizadas em dois pares, utilizam às vezes diminutivos lhas intervêm no momento da passagem ao palco, quando
(Didi e Gogo para Vladimir e Estragou), falsos nomes (Al- uma constelação de atores substitui uma constelação de
berto e Catulo para os mesmos), têm nomes que podem fantasmas. Embora na análise buscássemos saber tudo des-
ser traduzidos (Lucky, ironicamente "so rtudo") ou permi- ses fantasmas, nem todas as informações se mostram úteis e
tem variações fonéticas (Pozzo, Bozzo, Gozzo). A quinta nem todas devem ser tomadas como dinheiro à vista. Por
personagem, que só aparece furtivamente , não tem outro mais precisa que seja, nossa investigação não resulta num
nome a não ser "rapaz", o que a coloca imediatamente, documento de registro civil. As informações do texto são
por oposição, num outro mundo, o de Godot, em cujo sujeitas a caução e deixam uma margem de interpretação
nome pode-se reconhecer o God inglês e ao mesmo tem- importante, a do trabalho artístico. Além do mais, no teatro
po consonâncias bem francesas. A ironia de Beckett ma- contemporâneo os autores gostam muitas vezes de alternar
nifesta-se plenamente desde a designação das persona- certezas e incertezas, detalhes biográficos e vazios enormes.
gens, e podemos pensar que não se trata de uma indica- Nada sabemos dos H1 e dos H2 de Nathalie Sarraute, mas
ção desprezível representar Gago frente a Didi quando se depois, numa das réplicas, ficamos sabendo que a mãe de
espera Godot e se encontra Pozzo, cujo nome não se sa- H1 está morta e que ela os considerava bons amigos. A in-
be se é Bozzo ou Gozzo! formação é precisa, não é decisiva, tanto quanto a de Lesa-
É útil trabalhar do mesmo modo com todas as indi- ge que diz que Turcaret casou com a filha de um pasteleiro.
cações concernentes às personagens. Em que medida sa- A personagem textual jaz entre essas referências; compete
ber a idade exata de Arnolfo (A escola de mulheres), gen- ao palco ativá-las, dando-lhes ou não importância.
tilmente fornecida por Moliêre, ajuda-nos a apreender a
personagem, se não está em oposição às outras? Pois os
historiadores bem sabem que os quarenta e dois anos de A personagem, força atuante
Arnolfo fazem dele um homem. relativamente velho no
século XVII, o que a peça não cessa de sugerir. Essa indi- . Diante da concepção tradicional de uma personagem-
cação de idade, rara em Moliêre, só é o sintoma do mal- núcleo, definida por seu ser, elaborou-se a imagem de uma
estar de Arnolfo (ou de sua obsessão), ela não é muito personagem definida pelas ações que realiza, pela maneira
útil do ponto de vista biográfico. Quanto à idade real de como se inscreve no enredo tornando-se o suporte e o ve-
Vladimir e Estragon em Godot, devemos acreditar em tor de forças atuantes. Aristóteles já especifica isso: .."
Pozzo quando lhes dá sessenta ou setenta anos? É verda-
136 INTROD UÇÃO À ANÃLJSE DO TEA TRO ABORDAGENS METÓDI CAS 137

· As person agen s n ão agem para imitar seu caráter, xar sua cidade natal p ara se cas ar com uma p a risiense . O
mas recebem seu carát er por acréscimo , em virtude de que pesa sobre Pourceaugnac não está re almente no que
sua açã o, ele mod o que os atos e o enredo são a finalida- ele faz , m as no complô de que é vítima. O estudo da ação
de ela tragédia, e em todas as coisas a finalidade é o prin - levanta uma lebre de bom tamanho, já que Pourceaugnac
ci pa l. ( Poét ica)
"nada fez de mal" e o que lhe fizeram, em com p e nsação,
tem a ve r diretamente com sua identidade e co lo ca o pro-
As p esqu isas recentes sob re a narrativid ade, sobre as
blema do ponto de vista so bre a p e ça . Seu ú nico defeito
estru turas do relato , levam a analisar as personagens como seria se r limusino e chamar-se Pourceaugnac?
forças, co m o at antes, Po d emos responder a perguntas co-
Definir o que a personagem faz nem sem p re é sim-
m o : o que faz a personagem? o que quer faz er a persona-
ples, pois também aí é preciso levar em conta idéias fei-
gem?, sem nos embaraçarmos com uma relação de causa e tas, avaliar as rela ções entre a fala e a açã o, as diferenças
efeito, com aquilo que poderíamos chamar suas motivações entre a vontade ou o desejo de a ção e o que é realmente
- evitando todo ponto de vista moral que procure justificar efetuado (Po u rce aug n a c não desposa Júlia " embora seja
as açõ es da personagem e todo ponto de vista psicológico isso o que o faz agir). Portanto é útil fazer a lista das ações
qu e leve a considerar crit éri os de coerência o u de ve rossi- sucessivas seguindo a ordem da narrat iva , m esmo que al-
m ilhança. Os trabalhos d e Propp e de Greimas, já mencio- gu m as delas não p are çam fundamentais o u q u e seja ten-
nad os a p ropós ito do enredo, devem portanto ser aq u i le- tador reinterpretá-las . ("Esca pa r aos cliste res" corre o ris-
va dos e m co n ta d o ponto de vista da personagem. co de se r prontamente class ificado n a ordem d o "côm i-
Essa análise p e rmit e e scapar a o s entrel a çamentos co ", quando pode sim p le sm ent e tratar-se de uma ação de
d os com e ntá rios e dos p ontos de vista, considerando-se bom senso!) As grandes ações o u o motor p rincipal de
apenas o que é estritamente a participação da persona- , . uma personagem podem ser determinados a partir do es -
gem na aç ão. tudo minucioso de suas ações sucessivas.
Tomemos como e xemplo a personagem do sr. de Não se exclui a possibilidade de uma personagem
Pourceaugnac , na peça de Mo liê re de mesmo nome. O levar a cabo, ao mesmo tempo o u uma após o u tra, ações
q ue ele faz ? Vem de Limoges a Paris para desposar Júlia contraditórias ou que o pareçam. Arle q uim, em A dupla
a pós um acordo e pistola r com Oronte, p a i de Júlia. Ele in constâ n cia, de Mari vaux, não tem outro objetivo senão
encontra Era sto e aceita su a hospitalidade. Escapa de mé- recuperar Sílvia , quede ama si n ce ra m e n te. O fato de
d icos que lhe d izem estar doente e querem aplicar-lhe al- mudar de objeto amoroso no final da peça não tem inte-
guns clisteres. Vai ao encontro de Oronte . Nega ter des- resse psicológico ou moral, pois o que e stá em questão é
posado várias mulheres. É seduzido por júlía, e assim por saber como outras personagens o fizeram mudar. Um es-
diante. Ao definirmos estritamente a personagem do pon- tudo da personagem no interior da constelação mostra
to de vista da ação e sem qualquer idéia preconcebida, que esse Arlequim se envolve em ações pouco comuns
constatamo s que nela não há nada de realmente ridículo. mas que, como personagem codificada , obedece à tradi-
Sua motivação principal é vir desposar uma jovem, suas ção e é sempre sensível tanto ao cheiro de carne assada
d emais ações consistindo principalmente em escapar a como à qualidade de um vinho.
tudo o que os outros querem fazer com que padeça. O Nas dramaturgias em que "falar é fazer" (v e r o capí-
que se conve n cio n o u ch amar o ridículo de Pourceaugnac tulo sobre a enunciação), por exemplo na trag édia ou em
n ão está portanto na ação , a menos que se considere es- uma parte do te atro contemporâneo, é muito delicado
câ n d a lo e loucu ra um homem de Lirnoges pretender dei - d iscernir o que a personagem faz . "Ama r" pode revel ar-se
. ,I
138 INTRODUÇÃO À ANÀLISE DO TEA TRO ABORDAGENS METÓDICAS 139

a atividade principal de uma personagem raciruana , em concebê-Ia apenas como uma força abstra ta intercambiá-
contradição talvez com "go ve rn a r". O motivo do príncipe vel em várias situações dramáticas típicas, conforrnepo-
apaixonado constitui então o embrião da personagem , deria nos sugerir, por exemplo, o livro de Étienne Sou-
completado pelo estudo de seus discursos e por seu lugar riau , Les deux cent mílle situations dramatiques [As du-
na constelação da peça. zentas mil situações dramáticas] . .
Assimila-se às vezes, erradamente, a ação ao conflito,
o que é um modo de só levar em consideração uma forma
de dramaturgia. É difícil definir as ações das personagens o sujeito do discurso, o objeto do discurso
em Esperando Godot, pelo menos se buscamos urna que
pareça evidente e importante. Com freqüência se disse Cada personagem está à frente de um conjunto de ré-
que elas só fazem esperar, e conclui-se um pouco precipi- plicas, de monólogos ou de apartes que constituem "seu
tadamente que são vazias de desejo: Um exam~. atento texto". No limite, esse é a única marca concreta de sua exis-
mostra que uma série de microações ocupa as persona- tência textual; e continua a existir uma tradição, em alguns
gens, tais como tirar os sapatos, contar histórias, espreitar teatros, do ator que recebe um papel e ao mesmo tempo é
os restos da refeição de Lucky. O fato de não serem "gran- informado (e por vezes pago) em função do número de li-
des ações" nem por isso as anula e ajuda a construir a per- nh às que terá de "d ize r" ao representar a personagem.
so nagem se admitimos, excluído todo idealismo, que tirar No interior de cada peça, podemos medir a importân-
os sapatos pode ser tão importante para uma personagem cia quantitativa do discurso de uma personagem e fazer
quanto entrar em guerra é para uma outra. disso um primeiro índice de sua existência . Assim, há per-
Impossível determinar um macroconflito em relação sonagens prolixas, 'outras que falam pouco. A extensão do
às três personagens de Nina c 'est autre cbose, de Michel discurso de uma personagem é comparada também à fre-
Vinaver. Definir o que Nina quer e o que Nina faz é pos- qüência e à duração de suas aparições. Há personagens
sível desde que nos limitemos a seqüências curtas e, mes- que aparecem raramente e não obstante são "tagarelas",
mo assim, consideremos todas as ações das personagens, outras que têm uma presença contínua acompanhada ape-
por mínimas que sejam. Entre as ações relatadas e as que nas por falas lacônicas. O sr. de Pourceaugnac, papel-título
acontecem no palco, sabemos que ela deixa revistas pelo da peça de mesmo nome, é uma personagem que fala
chão, que não tranca a porta dos banheiros. Nina arranca pouco e padece muito. Esses índices matemáticos não le-
os papéis de parede do apartamento, traz uma banheira vam muito longe mas permitem ao menos comparações,
antiga que instala no meio da. sala, senta-se nos joelhos por vezes surpreendentes, no interior de uma mesma peça.
de Sébastien, pede-lhe um beijo, convida seus amigos pa- Do ponto de vista qualitativo, uma personagem fala
ra irem ao cinema, cuida do ferimento de Sébastien. Ne- de si mesma e dos outros. Outras fazem um discurso so-
nhum "grande propósito", certamente, mas uma soma de bre si mesmas. Portanto é possível jogar o jogo dos retra-
microações que também constroem uma identidade. tos, mas sem grandes ilusões, pois todas as personagens
Quando constatamos literalmente o que a persona- mentem ou, mais precisamente, têm um discurso sobre .o
gem faz (e, é claro, ao mesmo tempo o que ela não faz), mundo e sobre os outros que não é objetivo. O exemplo
começamos a entrever que seu estatuto faz dela um agen- mais famoso é o de Ta rtufo, "go rd o e grandalhão, a tez
te da ação, um vetor que írnanta desejos esparsos no tex- viçosa e a boca vermelha ", segundo Dorine . De Louis
to uma identidade fictícia por vezes apenas esboçada e ]ouvet a Gérard Depardíeu, as encarnações sucessivas de
, , I
sob a qual se reúnem discursos. Não nos parece possive Tartufo estão longe de obedecerem sempre a esse retrato.
140 INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO TEATRO ABORDAGENS M ETÓDICAS 141

Afinal de, contas, essa é a maneira como Dorírie vê Tartu- ./\ personagem de teatro é, no texto, um fantasma
fo , seu sentimento em relação a ele. Talvez ela esteja sen- _em busca de encarnação e , na representação, um corpo
do irônica , talvez o imagine demasiado gordo e demasia- sempre usurpado, porque a imagem que nos é dada não
do vermelho, pois ocupa-se literalmente em "alim e nta r- é a única possível e jamais é completamente satisfatória.
se" da família de Orgon. O seio de Dorine ("Esconda esse Em nossas leituras, sucede de nos abandonarmos a essa
seio que não posso ver") talvez não seja mais exposto do parte do sonho e construirmos ao mesmo tempo um in-
que as bochechas de Tartufo são vermelhas, [rata-se no vólucro sólido para apreendê-Ia .
caso do modo de percepção das personagens, da indivi-
dualidade que a linguagem exprime.
Também não se pode confiar muito nos discursos LEITIJRAS RECOMENDADAS
que as personagens fazem sobre si mesmas, quando se
analisam, se explicam , se queixam. Quando muito é pos- ABlRACHED, Robert, La crise du persohnage dans te tbéâ-
sível avaliar e apreciar a complexidade de discursos, que tre moderne, Paris, Grasset, 1978.
variam conforme os interlocutores. Por isso a linguagem MONOD, Richard , Les textes de tbé âtre, Paris, Cedic, 1977
de cada um , tomada isoladamente, só tem um interesse li- (ver, em particular, "as constelações", p. 74 ss.).
mirado quando não verificamos a quem ela se dirige e por
PAVIS, Patrice, Dictionnaire du théâtre, Paris, Éd. Socia-
les,1980.
que se constrói desse modo . Tratamos m-ais amplamente
UBERSFELD, Anne, Lire le tbéâtre, Paris, Éd. Sociales,
desse assunto no capítulo 4, dedicado à enunciação. O~
1977 (ver, em particular, o capítulo III sobre a persona-
servernos, porém, que toda concepção global ou muito
gem); Dictiortnaire des personnages de tous les temps et
--a p ress ad a da personagem produz ' apenas caricaturas. É
de tous les pays (Laffont-Bompiani), Laffont, Bouquins
. maisInteressante avaliar as contradições de Orgon confor- 1984. '
me ele se dirija à sua mulher, a seus filhos, a Dorine ou a
Tartufo, do que rotulá-lo unilateralmente como tolo ou co-
mo vil egoísta.
Enfim, e como veremos a propósito da dupla enuncia-
ção, o discurso da personagem não é verdadeiramente de-
la, mas do autor que a faz falar. Entretanto, o autor não se
.identifica necessariamente com a personagem, colT).o suge-:
rem às vezes certos trabalhos em que a crítica busca encon-
trar a biografia do autor por trás dos diferentes discursos.
Uma vez mais, estamos entre um e outro, ou melhor,
nas sutilezas do eu-tu-ele, em que o autor faz falar perso-
nagens que têm necessidade do corpo de um ator para
nascerem e da presença do público para existirem plena-
mente. Compreendemos melhor as dificuldades teóricas li-
gadas à}5ersÓnãgem'êfúâridóa consideramos corno urna
've rd ad e ira encruzilhada. de diferentes discursos, como ' . ' 1
", "

urna necessidade insubstituível e complexa da ficção teatral. .

Você também pode gostar