Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar a alternância de uso entre
os predicadores verbais impessoais ter e haver nas modalidades oral e escrita
do Português Brasileiro (PB), que representem expressões da norma culta, em
contextos como os exemplificados abaixo:
2. “Tem vários eventos que podem me pagar o valor para continuar.” (No-
tícia, Jornal Extra).
4. “[...] não terminei agora em dezembro tem uns seis meses mais ou
89
menos não terminei agora em dezembro.” (Entrevista sociolinguística,
Corpus Concordância).
Habere foi-se revelando um verbo mais fraco que tenere e, à medida que a de-
bilitação semântica de habere se acentuava, tenere ia ganhando espaço e maior
aceitação entre os falantes. Algumas das utilizações destes dois verbos manter-se-
-ão desde o latim até às línguas românicas, outras formar-se-ão em cada língua,
conferindo a estes verbos o estatuto de permanente adaptabilidade face às neces-
sidades de cada comunidade falante. (COSTA, 2010, p. 61)
90
resistente à mudança linguística. Conforme descrito na introdução desta obra,
o corpus utilizado na análise é constituído por fala espontânea culta e gêneros
textuais, em modalidade escrita, de domínio jornalístico e acadêmico que fo-
ram escolhidos pela turma do curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas da
Faculdade de Letras da UFRJ, Tópicos Especiais de 2018.1, ministrado pela Pro-
fessora Doutora Silvia Rodrigues Vieira. Os resultados são discutidos com base
na noção de continuum de monitoração (Bortoni-Ricardo, 2004) e dos pressu-
postos teórico-metodológicos da Teoria da Variação e Mudança (WEINREICH,
LABOV & HERZOG, 2006 [1968]).
91
Já Rocha Lima (2010) e Azeredo (2000) não fazem referência ao verbo ter
com valor impessoal; em Azeredo (2000), apenas é citado o verbo haver como
um verbo irregular forte, sendo assim uma análise apenas aspectual de forma-
ção do referido verbo.
Nessa breve visita a esses compêndios gramaticais, apreende-se que, no
que tange a construções de sentenças impessoais no PB, o uso do verbo ter com
valor impessoal não é recomendado e, por vezes, é colocado como incorreção.
Assim, observa-se que, na constituição das gramáticas tradicionais brasileiras,
é seguido o padrão normativo lusitano no que diz respeito à construção de
sentenças impessoais. Desse modo, tenciona-se verificar, na análise dos dados
levantados, em que medida a escrita culta brasileira atende a esse padrão.
92
abaixo, favorecem o uso do ter por gerarem certo grau de ambiguidade:
93
são as que mais facilmente permitem a transformação de sentenças impesso-
ais em pessoais, como em: “A vizinhança é ótima. Nós temos vários comércios,
temos mercado, temos feira, temos feirinha” (fala popular RJ).
Ao se colocarem lado a lado dados da escrita e da oralidade, em um estudo
sincrônico, Avelar e Callou (2007) notaram que as frequências de uso de ter e
haver são opostas nas modalidades oral e escrita. Assim, na modalidade falada,
o verbo ter é utilizado em 87% das construções existenciais; já na escrita, a
frequência desse mesmo verbo não passa de 14%. Conclui-se, portanto, que
“haver é uma variante de prestígio na Língua escrita, muito embora não haja
qualquer estigma o uso de ter na língua falada”.
Para reforçar a proposta de Avelar e Callou (2007), Marins (2013) mostra,
em comparação com os dados de Duarte (1993, 1995) que, à medida que os su-
jeitos pronominais de referência definida aparecem cada vez mais expressos,
sobem também os percentuais de uso de ter em construções existenciais; ou
seja, as construções existenciais com ter aumentam juntamente com as cons-
truções com sujeitos referenciais definidos plenos, enquanto as construções
com haver diminuem na mesma medida que as sentenças com sujeito nulo.
O mesmo fenômeno foi observado por Vitório (2013) na fala culta
alagoana e na escrita acadêmica (dissertações/teses -2005 a 2010), perten-
centes às áreas de humanas da UFAL3. Na fala, foram computados 255 dados
de construções existenciais, sendo 223 (88%) para ter e 32 (12%) para o verbo
haver. Na escrita, foram analisados 319 dados, sendo 21 (7%) para o verbo ter
e 298 (93%) para haver.
Na escrita acadêmica, a quase não realização de ter está associada ao fato
de que há uma tendência, nos manuais normativos, a condenar tal uso, mos-
trando que a recuperação/manutenção de haver na escrita é, sem dúvida, fruto
do processo de escolarização. No entanto, o indivíduo culto não leva para a
sua fala essa variante recuperada, exceto em contextos bem restritos. Na es-
crita escolar, por sua vez, Vitório (2010) verificou que o verbo ter predomina
(64% versus 36% de haver), mas, com o aumento do nível de escolarização dos
alunos, há um aumento no percentual de uso de haver.
Na variedade baiana do PB, Dutra (2000) analisou a alternância entre
ter~haver em orações existenciais, em sua dissertação de mestrado. Nesse mo-
mento, foram usados dados da norma culta de Salvador, retirados do NURC.
Mais tarde, a autora comparou seus primeiros resultados com dados da fala
94
popular, fornecidos pelo corpus do PEPP4, em Salvador (DUTRA, 2004).
Comparando os dados da fala culta e popular da capital baiana, Dutra
(2004, p. 559) verificou que o fator escolaridade não atua como determinante,
pois tanto os falantes não universitários (ter 23,2% / haver 1,7%) quanto os uni-
versitários (ter 32,5% / haver 4,3%) priorizam o uso da variante mais inovadora,
ter. Os resultados, então, reforçam o fato de que a ocorrência de ter está mais
para a oralidade, pois todos os dados analisados em suas pesquisas foram da
fala. Isso indica que, tratando-se do fenômeno em questão, na modalidade oral
da língua, o fator escolaridade não atua como uma tônica determinante.
95
Tabela 1 Distribuição dos dados de ter~haver no corpus de gêneros textuais
96
Como demonstra a Tabela 1, é alto o índice de impessoalização com o ver-
bo ter nas entrevistas sociolinguísticas (fala semiespontânea). Entretanto, em
cartas do leitor, crônicas, notícias, editoriais, teses e dissertações e artigos em
revistas científicas (escrita culta), nota-se a preferência pelo uso do predicador
impessoal haver. Já em representações e transcrições de fala culta5 (entrevistas
e anúncios), há maior equilíbrio entre os usos de ter e haver, como se pode
observar no gráfico abaixo:
5 Aponta-se que, nas tirinhas, não houve produtividade para o fenômeno em análise.
97
menor monitoração estilística6 e, consequentemente, maior espontaneidade,
em relação às demais fontes do corpus.
A seguir, são reproduzidos exemplos levantados em algumas fontes, com
o intuito de avaliar os contextos de uso de ter e haver:
7. “[...] qualquer problema que ocorra com menino você vai e dá um jei-
tinho agora com menina não tem jeitinho.” (Entrevista sociolinguística,
Corpus Concordância)
8. “[...] a minha faculdade por exemplo na UFRJ que é pública e s/... tem
gente de/ de fora da zona sul mas... a maioria das pessoas é da zona sul
a maioria das pessoas tem dinheiro assim” (Entrevista sociolinguística,
Corpus Concordância)
6 Sobre o continuum monitoração estilística, Bortoni-Ricardo (2004) aponta que quanto mais
desconhecido o interlocutor, quanto maior for a pressão comunicativa, maior atenção o falante
dará à produção verbal.
98
considera-se que a permuta por há, nesse exemplo, ecoaria adequada ao con-
texto acadêmico (Há o exemplo do capitalismo...), diferentemente da permuta
com tem (Tem o exemplo do capitalismo...).
99
construção linguística) e metalinguístico (momento de sistematizar o que já
foi aprendido). O Eixo 2 está diretamente ligado à produção de sentido. O en-
sino deve partir do texto, da predicação, da referência que o aluno traz para
a escola para que, assim, ocorra a conexão de significados e, dependendo da
origem do aluno, os significados produzidos serão diferentes. O Eixo 3 com-
plementa o Eixo 2 já que prega a variação das normas, em que o aluno deve re-
conhecer e produzir as diversas variantes, caso (o discente) julgue necessário.
Com base nos três eixos, pode-se pensar em um meio eficaz de ensino
de Língua Portuguesa (cf. LIMA, 2017), inclusive, no que tange à exposição
da temática deste trabalho, para além do que prevê a gramática ou o livro
didático, que, como se viu, prioriza o ensino da variante padrão, ou seja, o uso
de haver. Acredita-se que, assim, os alunos se envolveriam mais na relação de
ensino/aprendizagem e o professor teria artifícios para ensinar de maneira
mais significativa e atender aos PCN’s de Língua Portuguesa.
O ensino de Língua Portuguesa deve englobar a Gramática Tradicional
para que o aluno seja apresentado à norma gramatical e possa utilizá-la se qui-
ser. Segundo Barbosa (2007), a decodificação e interpretação de textos eruditos
mais complexos é também papel do professor de Língua Portuguesa e da esco-
la de ensinar. Para isso, podemos nos utilizar dos textos dos grandes autores da
Literatura Brasileira como base para a realização desse trabalho.
É importante que o professor de Língua Portuguesa, em sala de aula,
trabalhe com as normas linguísticas com coerência. Inclui-se, assim, a abor-
dagem da norma culta, que corresponde aos usos observados no grupo de
fala composto por usuários letrados, com prestígio na sociedade. Entretanto,
com suporte de pesquisas da área da Sociolinguística, cabe ao docente
diferenciar norma-padrão e norma culta, todavia, sem desconsiderar a
proposta da norma -padrão, com seu caráter abstrato e seus referenciais que
são apreciados, por exemplo, em correções de redações do ENEM. Faraco
(2008) aponta que:
100
nas aulas de Língua Portuguesa, as normas utilizadas por seus alunos, pos-
sibilitando que os discentes escolham qual variante eleger para uso em um
determinado contexto sociocomunicativo.
Considerações finais
Ao longo deste texto, buscou-se avaliar a alternância ter~haver em expressões
cultas das modalidades oral e escrita do PB. Desse modo, foi possível apreen-
der que, apesar de o verbo ter impessoal apresentar alto percentual de uso na
fala espontânea, na escrita, principalmente na acadêmica (mais monitorada),
predomina o uso do predicador haver.
De acordo com Kato (2005), a aquisição da linguagem é um processo natu-
ral e, nesse momento, construímos a nossa gramática nuclear, formada a partir
do input, ou seja, das estruturas linguísticas com as quais entramos em con-
tato. Entretanto, o letrado adquire outra gramática via escolarização. Sendo
assim, haveria uma gramática periférica a ser preenchida ao longo do ensino
formal de Língua Portuguesa.
Desse modo, pode-se apreender que, por ser a variante padrão recomendada
pelos compêndios gramaticais, haver resiste fortemente na escrita, mesmo
sendo uma construção que não faz parte da gramática nuclear do brasileiro.
No que diz respeito às reflexões sobre estudos linguísticos já realiza-
dos sobre o fenômeno (cf. CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006, 2011;
AVELAR e CALLOU, 2007; DUTRA, 2000, 2004), observa-se que a variação
ter~haver é amplamente encontrada no Brasil, de modo que não se trata de
qualquer distinção diatópica. Além disso, os resultados encontrados nas va-
riedades do PB corroboram os resultados deste labor, uma vez que também
apontam para uso mais produtivo da forma inovadora ter na modalidade oral
da língua.
Outra questão relevante é o nível de escolaridade dos indivíduos. Esse fa-
tor não é determinante quando o fenômeno é observado na modalidade oral da
língua (DUTRA, 2004). No entanto, quando há inserção da escrita, a tendência
ao uso de haver é mais evidente, sendo possível perceber que, nesse contexto,
o grau de letramento do indivíduo pode determinar a escolha pela forma mais
conservadora.
Assim, destaca-se a importância de apresentar dados de pesquisas so-
ciolinguísticas no ambiente escolar, para que seja possível perceber os usos
das variantes em estudo e notar as diferenças existentes entre o que se prevê
(norma-padrão) e o que realmente se produz (norma culta).
101
De acordo com Faraco (2008, p. 39), “uma comunidade linguística não
se caracteriza por uma única norma, mas por um determinando conjunto de
normas”. Destarte, acredita-se que é função da escola a apreciação da norma
padrão e também o ensino da norma culta, mas não com o intuito de que o
aluno passe a somente fazer uso desta última, já que a primeira está no campo
da idealização, e sim para que o mesmo tenha competência comunicativa,
tenha domínio em mais de uma variedade linguística e faça as suas escolhas
sobre as formas linguísticas que quiser usar.
102