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CAPÍTULO 4

Tem variação entre as formas


verbais impessoais ter e haver
nas modalidades oral e escrita,
em realizações da norma culta, do
Português Brasileiro?
Deyse Edberg Ribeiro Silva Gama
Eneile Santos Saraiva
Maitê Lopes de Almeida

Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar a alternância de uso entre
os predicadores verbais impessoais ter e haver nas modalidades oral e escrita
do Português Brasileiro (PB), que representem expressões da norma culta, em
contextos como os exemplificados abaixo:

1. “Há muitas coisas para discutir no interesse da sociedade como um


todo.” (Entrevista transcrita, Revista Veja).

2. “Tem vários eventos que podem me pagar o valor para continuar.” (No-
tícia, Jornal Extra).

3. “O ponto de Harel é que a esmagadora maioria da população do país,


vivendo sua vidinha do lado certo do muro, prefere ignorar o estado de
opressão e miséria que seu governo impõe aos palestinos há décadas.”
(Crônica, Folha de São Paulo).

4. “[...] não terminei agora em dezembro tem uns seis meses mais ou

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menos não terminei agora em dezembro.” (Entrevista sociolinguística,
Corpus Concordância).

Em 1 e 2, os predicadores foram utilizados com valor existencial, enquanto


em 3 e 4 com valor temporal. Cabe observar que, apesar de apresentar uso
recorrente no Português Brasileiro (PB), o verbo ter não é apresentado nas
Gramáticas Tradicionais (GT’s) com as referidas significações.
Cabe destacar que, desde o português arcaico (século XIII – primeira
metade do século XVI), já ocorria “a lenta mas progressiva substituição do
verbo aver por teer” (COSTA, 2010, p. 60). Assim, já se verificava que os ver-
bos habere (habeo, -es, -ere, habui, habitum) e tenere (teneo, -es, -ere, tenui,
tentum) tinham múltiplas realizações e apresentavam várias acepções. Habere
comportava os seguintes significados: ter, possuir, guardar, dever etc., enquan-
to tenere podia ser utilizado com as significações de segurar, obter, ser senhor
de, ocupar, guardar, entre outros. Nota-se que já havia alguns pontos que apro-
ximavam tenere de habere. De acordo com Costa (2010, p. 61),

Habere foi-se revelando um verbo mais fraco que tenere e, à medida que a de-
bilitação semântica de habere se acentuava, tenere ia ganhando espaço e maior
aceitação entre os falantes. Algumas das utilizações destes dois verbos manter-se-
-ão desde o latim até às línguas românicas, outras formar-se-ão em cada língua,
conferindo a estes verbos o estatuto de permanente adaptabilidade face às neces-
sidades de cada comunidade falante. (COSTA, 2010, p. 61)

Foi a partir do século XV que a forma verbal teer superou em número de


ocorrências aver. Nesse tempo, o verbo teer, na sua semântica, já expressava
todos os sentidos de posse. A partir dos estudos de Costa (2010), conclui-se
que, desde o português arcaico, as formas verbais aver e teer estavam em com-
petição.
Espera-se, assim, no presente texto, a partir da variação ter e haver, propor
reflexões sobre: (i) a constituição dos padrões normativos do PB e (ii) as contri-
buições da Sociolinguística à educação, bem como o ensino da variação através
dos diferentes gêneros textuais, visto que o estudo da mudança línguística é
tido como um dos pontos necessários ao ensino da língua em sala de aula, se-
gundo os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s (BRASIL, 1998).
A hipótese inicial desta pesquisa é a de que o verbo ter é mais utilizado
na modalidade oral, uma vez que a escrita se faz mais conservadora e mais

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resistente à mudança linguística. Conforme descrito na introdução desta obra,
o corpus utilizado na análise é constituído por fala espontânea culta e gêneros
textuais, em modalidade escrita, de domínio jornalístico e acadêmico que fo-
ram escolhidos pela turma do curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas da
Faculdade de Letras da UFRJ, Tópicos Especiais de 2018.1, ministrado pela Pro-
fessora Doutora Silvia Rodrigues Vieira. Os resultados são discutidos com base
na noção de continuum de monitoração (Bortoni-Ricardo, 2004) e dos pressu-
postos teórico-metodológicos da Teoria da Variação e Mudança (WEINREICH,
LABOV & HERZOG, 2006 [1968]).

A alternância ter~haver na tradição gramatical


Para Sampaio (2000), estudar o verbo ter separado do verbo haver é impossível,
já que, desde o latim, os dois verbos se comportam de maneiras semelhantes
em estruturas verbais. Em Costa (2010), podemos perceber a gradativa substi-
tuição do verbo habere pelo verbo tenere, que já ganhava mais aceitação entre
os falantes. A autora ainda aponta que o verbo teer superou o verbo aver em
número de ocorrências na fala. Logo, podemos perceber que a alternância en-
tre ter e haver ocorre na fala há bastante tempo.
Sabemos que, na escrita culta, não é produtivo o uso de ter em detrimento
de haver. Para a análise coerente dessa questão, apresentaremos as visões de
gramáticos e de autores de livros didáticos, pois somente com essa abordagem
poderemos entender como os verbos ter e haver estão sendo apresentados nas
obras de referência para o uso e o ensino de Língua Portuguesa.

Uso do TER impessoal e a tradição gramatical


A fim de averiguar como a temática de verbos impessoais é abordada, recor-
reu-se, nesta seção, às principais gramáticas brasileiras de Língua Portuguesa,
a saber: Nova gramática do Português contemporâneo, de Cunha e Cintra, Gra-
mática normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima, e Fundamentos de gra-
mática do Português, de Azeredo.
Cunha e Cintra (2001) apontam um uso do ter impessoal como coloquial.
Como exemplo, os autores citam as frases “Hoje tem festa no brejo”, de Carlos
Drummond de Andrade e “...tem um processo seguro”, de Manuel Bandeira.
Assim, os autores consideram que as construções com “ter coloquial”, como as
informadas acima, devem ser evitadas.

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Já Rocha Lima (2010) e Azeredo (2000) não fazem referência ao verbo ter
com valor impessoal; em Azeredo (2000), apenas é citado o verbo haver como
um verbo irregular forte, sendo assim uma análise apenas aspectual de forma-
ção do referido verbo.
Nessa breve visita a esses compêndios gramaticais, apreende-se que, no
que tange a construções de sentenças impessoais no PB, o uso do verbo ter com
valor impessoal não é recomendado e, por vezes, é colocado como incorreção.
Assim, observa-se que, na constituição das gramáticas tradicionais brasileiras,
é seguido o padrão normativo lusitano no que diz respeito à construção de
sentenças impessoais. Desse modo, tenciona-se verificar, na análise dos dados
levantados, em que medida a escrita culta brasileira atende a esse padrão.

O que é proposto para o ensino de impessoalização com


ter  e haver
Para a análise voltada ao ensino, analisamos os livros didáticos seguintes: (1)
Português: contexto, interação e sentido, de Maria Luiza Marques Abaurre, Ma-
ria Bernadete Marques Abaurre e Marcela Pontara; (2) Português: literatura,
gramática e produção de textos, de Leila Lauar Sarmento e Douglas Tufano; e
(3) Gramática, Literatura e produção de textos para o ensino médio: curso com-
pleto, de Ernani Terra e José de Nicola.
Percebemos que, nas três obras analisadas, a abordagem dos verbos im-
pessoais é bem pequena. Na obra (1), os verbos ser, estar, fazer e haver são
relacionados a construções relacionadas a fenômenos da natureza e expres-
sões temporais. Nas obras (2) e (3), não há menção ao verbo ter como verbo
impessoal.
Sendo assim, podemos ver que não há abordagens vistas como tradicionais
que considerem o uso do verbo ter como um verbo impessoal próprio da escrita e
nem mesmo da fala culta, como será observado na seção seguinte, que aborda re-
sultados de pesquisas sociolinguísticas que versam sobre a alternância ter~haver.

Os estudos sociolinguísticos e a alternância ter~haver

Atualmente no PB, de acordo com Callou e Duarte (2005), o processo de subs-


tituição da forma verbal haver impessoal por ter encontra-se em um estágio
mais ou menos avançado. As autoras ainda destacam que é possível observar,
na história do PB, que a presença de uma expressão locativa adjacente e a
não ocorrência de um sujeito contíguo, como será demonstrado nas sentenças

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abaixo, favorecem o uso do ter por gerarem certo grau de ambiguidade:

5. Ali tem muitas pessoas

6. Aquela casa tem muitas pessoas

Tanto em 5 quanto em 6, as orações podem ser analisadas como possessi-


vas ou existenciais, a depender da interpretação dos sintagmas [Ali] e [Aquela
casa] (ou adjunto ou sujeito do verbo ter). Sendo assim, de acordo com Callou e
Duarte (2005, p. 149), “parece ter sido esse o caminho para a inserção do verbo
ter entre os existenciais”.
Estudos linguísticos apontam que a variação ter e haver em construções
existenciais é frequentemente condicionada pelos grupos de fatores tempo
verbal, especificidade semântica do argumento, escolaridade e faixa etária,
mostrando, de maneira sistemática, não só que o uso de haver é fortemente
favorecido pelo verbo no tempo passado e pelo argumento interno com traço
[+ abstrato], como também que, quanto maiores a escolaridade e a faixa etária
dos falantes, maior o uso de haver, embora o emprego de ter seja sempre supe-
rior na língua falada.
Na fala, Callou e Duarte (2005), ao analisarem um corpus formado por
dados de cinco capitais brasileiras (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e
Salvador e Recife), observaram que a tendência de uso do verbo ter existencial
na fala culta é geral no Brasil. No Rio de Janeiro, tomando como base o acervo
do NURC1, nos anos 70, havia 65% de uso do verbo ter impessoal, e nos anos
90, o percentual é de 76%. Já no acervo do PEUL2 (norma popular carioca), os
índices de uso do verbo ter impessoal são mais altos: 92% nos anos 80 e 94% nos
anos 2000. Na amostra dos anos 90, na fala dos mais jovens, praticamente não
se encontra a ocorrência do verbo haver. Entretanto, ainda há um expressivo
percentual de uso do verbo haver na fala dos indivíduos com mais de 55 anos
(33%).
As autoras apontam como uma possível hipótese para a diminuição do
verbo haver na modalidade oral o fato de essa forma não dispor de um locus
para que haja a inserção de um sujeito fonético, como ocorre com o verbo ter,
que, como um verbo possessivo, dispõe dessa propriedade. Assim, como no PB
há uma preferência por sujeitos referenciais expressos, as estruturas com ter

1 Projeto da Norma Urbana Oral Culta. Informações em: www.nurcrj.letras.ufrj.br


2 Programa de Estudos sobre o Uso da Língua. Informações em: http://www.letras.ufrj.br/peul/

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são as que mais facilmente permitem a transformação de sentenças impesso-
ais em pessoais, como em: “A vizinhança é ótima. Nós temos vários comércios,
temos mercado, temos feira, temos feirinha” (fala popular RJ).
Ao se colocarem lado a lado dados da escrita e da oralidade, em um estudo
sincrônico, Avelar e Callou (2007) notaram que as frequências de uso de ter e
haver são opostas nas modalidades oral e escrita. Assim, na modalidade falada,
o verbo ter é utilizado em 87% das construções existenciais; já na escrita, a
frequência desse mesmo verbo não passa de 14%. Conclui-se, portanto, que
“haver é uma variante de prestígio na Língua escrita, muito embora não haja
qualquer estigma o uso de ter na língua falada”.
Para reforçar a proposta de Avelar e Callou (2007), Marins (2013) mostra,
em comparação com os dados de Duarte (1993, 1995) que, à medida que os su-
jeitos pronominais de referência definida aparecem cada vez mais expressos,
sobem também os percentuais de uso de ter em construções existenciais; ou
seja, as construções existenciais com ter aumentam juntamente com as cons-
truções com sujeitos referenciais definidos plenos, enquanto as construções
com haver diminuem na mesma medida que as sentenças com sujeito nulo.
O mesmo fenômeno foi observado por Vitório (2013) na fala culta
alagoana e na escrita acadêmica (dissertações/teses -2005 a 2010), perten-
centes às áreas de humanas da UFAL3. Na fala, foram computados 255 dados
de construções existenciais, sendo 223 (88%) para ter e 32 (12%) para o verbo
haver. Na escrita, foram analisados 319 dados, sendo 21 (7%) para o verbo ter
e 298 (93%) para haver.
Na escrita acadêmica, a quase não realização de ter está associada ao fato
de que há uma tendência, nos manuais normativos, a condenar tal uso, mos-
trando que a recuperação/manutenção de haver na escrita é, sem dúvida, fruto
do processo de escolarização. No entanto, o indivíduo culto não leva para a
sua fala essa variante recuperada, exceto em contextos bem restritos. Na es-
crita escolar, por sua vez, Vitório (2010) verificou que o verbo ter predomina
(64% versus 36% de haver), mas, com o aumento do nível de escolarização dos
alunos, há um aumento no percentual de uso de haver.
Na variedade baiana do PB, Dutra (2000) analisou a alternância entre
ter~haver em orações existenciais, em sua dissertação de mestrado. Nesse mo-
mento, foram usados dados da norma culta de Salvador, retirados do NURC.
Mais tarde, a autora comparou seus primeiros resultados com dados da fala

3 Universidade Federal de Alagoas.

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popular, fornecidos pelo corpus do PEPP4, em Salvador (DUTRA, 2004).
Comparando os dados da fala culta e popular da capital baiana, Dutra
(2004, p. 559) verificou que o fator escolaridade não atua como determinante,
pois tanto os falantes não universitários (ter 23,2% / haver 1,7%) quanto os uni-
versitários (ter 32,5% / haver 4,3%) priorizam o uso da variante mais inovadora,
ter. Os resultados, então, reforçam o fato de que a ocorrência de ter está mais
para a oralidade, pois todos os dados analisados em suas pesquisas foram da
fala. Isso indica que, tratando-se do fenômeno em questão, na modalidade oral
da língua, o fator escolaridade não atua como uma tônica determinante.

Análise de gêneros e o continuum fala-escrita


Nesta seção, pretende-se avaliar a alternância dos predicadores verbais impes-
soais ter e haver considerando um continuum compósito fala x escrita e moni-
toração estilística. Dessa forma, insere-se, a seguir, um quadro que apresenta
todas as fontes analisadas e a distribuição das variantes em cada uma delas:

4 Programa de Estudos sobre o Português Popular Falado. Mais informações em:


http://editoraquarteto.com.br

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Tabela 1 Distribuição dos dados de ter~haver no corpus de gêneros textuais

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Como demonstra a Tabela 1, é alto o índice de impessoalização com o ver-
bo ter nas entrevistas sociolinguísticas (fala semiespontânea). Entretanto, em
cartas do leitor, crônicas, notícias, editoriais, teses e dissertações e artigos em
revistas científicas (escrita culta), nota-se a preferência pelo uso do predicador
impessoal haver. Já em representações e transcrições de fala culta5 (entrevistas
e anúncios), há maior equilíbrio entre os usos de ter e haver, como se pode
observar no gráfico abaixo:

Gráfico 1 Distribuição percentual dos dados

A partir da análise do Gráfico 1, é possível verificar que o comportamento


das variantes é inverso na modalidade escrita, com predominância de uso de
haver e, na fala, com preferência pela impessoalização com ter. Todavia, no
meio do continuum (reprodução e transcrição da fala), nota-se distribuição
equilibrada no uso das variantes.
Dessa forma, pelo prestígio da forma verbal haver, seu uso é menor no
contexto das entrevistas sociolinguísticas, em que teoricamente teríamos

5 Aponta-se que, nas tirinhas, não houve produtividade para o fenômeno em análise.

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menor monitoração estilística6 e, consequentemente, maior espontaneidade,
em relação às demais fontes do corpus.
A seguir, são reproduzidos exemplos levantados em algumas fontes, com
o intuito de avaliar os contextos de uso de ter e haver:
7. “[...] qualquer problema que ocorra com menino você vai e dá um jei-
tinho agora com menina não tem jeitinho.” (Entrevista sociolinguística,
Corpus Concordância)

8. “[...] a minha faculdade por exemplo na UFRJ que é pública e s/... tem
gente de/ de fora da zona sul mas... a maioria das pessoas é da zona sul
a maioria das pessoas tem dinheiro assim” (Entrevista sociolinguística,
Corpus Concordância)

9. “Há, em Barthes, o prazer confesso da audição, mas ele não diminuiria


a potência da análise.” (Artigo científico, Revista Novos Olhares)

10. “Tem-se o exemplo do capitalismo que só conseguiu se manter domi-


nante por não se basear em sistemas repressivos (...)” (Teses e dissertações)
(forma como o ter impessoal pode atuar na escrita acadêmica)

Ao observarmos esses exemplos, intuitivamente, parece que as constru-


ções com ter em (7) e (8), extraídas de entrevistas sociolinguísticas, soariam ar-
tificiais, na permuta pela forma há: “agora com menina não há jeitinho” e “há
gente de/de fora da zona sul”. O mesmo acontece em (9) dado extraído de um
texto acadêmico, com a permuta por tem: “Tem em Barthes o prazer”. Assim
como proposto por Callou e Avelar (2007), as estruturas com haver, com pre-
sença prioritária na escrita, estariam no acervo do usuário do Português como
uma estrutura de L2, mais acessada em textos escritos, supostamente, contexto
em que haveria maior preocupação com “um bom uso da língua”, haja vista o
elevado uso de haver na escrita acadêmica.
Destaca-se também que, em (10), há uma construção formada pelo pre-
dicador ter + clítico SE (tem-se) e esse seria um caminho para que essa forma
verbal adentrasse na modalidade escrita da língua, considerando o prestígio
que o clítico SE apresenta, sendo utilizado como estratégia de indeterminação,
principalmente em textos de domínio acadêmico (cf. SARAIVA, 2013). Ainda,

6 Sobre o continuum monitoração estilística, Bortoni-Ricardo (2004) aponta que quanto mais
desconhecido o interlocutor, quanto maior for a pressão comunicativa, maior atenção o falante
dará à produção verbal.

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considera-se que a permuta por há, nesse exemplo, ecoaria adequada ao con-
texto acadêmico (Há o exemplo do capitalismo...), diferentemente da permuta
com tem (Tem o exemplo do capitalismo...).

Reflexões sobre o ensino de normas e a alternância ter~haver


O professor/pesquisador já vem há algum tempo se questionando sobre como
ministrar aulas de Língua Portuguesa de uma maneira mais coerente, já que,
muitas vezes, como foi possível perceber em seções anteriores, materiais didá-
ticos e gramáticas se pautam em uma idealização da língua.
Segundo Vieira; Freire (2014), os estudos sociolinguísticos realizados du-
rante as últimas décadas que buscam descrever o PB (modalidades oral e escri-
ta) demonstram que, em muitos aspectos, as descrições linguísticas realizadas
contrastam com o que está inserido nas gramáticas que são utilizadas no ensi-
no regular de Língua Portuguesa.
Nessa perspectiva, os referidos autores apontam que os PCN’s reconhe-
cem o fenômeno da variação linguística, mas, paralelamente, o documento faz
referência ao que se convencionou chamar de “língua padrão”, sem esclarecer
qual seria essa língua, que é privilegiada no ensino de Português. Essa língua
seria a dos compêndios gramaticais ou a que é efetivamente utilizada pelos
brasileiros cultos? Apreende-se, assim, que, na prática escolar, as concepções
de normas ficam superpostas.
Dessa forma, para que haja coerência no ensino de Língua Portuguesa, é
preciso, primeiramente, que o professor trabalhe sob a perspectiva da plurali-
dade de normas e que os conceitos de norma-padrão (no campo da idealização
– aquela que prevê regras de prestígio quanto ao uso da língua) e culta (no
campo da realização – aquela que consiste na forma como a língua é efetiva-
mente utilizada por uma camada da sociedade, uma elite letrada e avaliada
positivamente em relação ao seu comportamento social), que normalmente
são articulados como sinônimos, sejam bem compreendidos.
Uma proposta coerente para a apreensão da variação ter~haver seria
propor o ensino de gramática em 3 eixos (cf. VIEIRA, 2014; 2017), um meio de
ensinar em que se enfatiza maior proficiência para o aluno falante nativo de
Língua Portuguesa, oriundo de diferentes camadas sociais e culturais.
O Eixo 1 propõe um ensino de gramática reflexivo partindo dos seguintes
componentes: linguístico (respeita o saber interiorizado do aluno, a produ-
ção ocorre com o que o aluno já conhece), epilinguístico (o aluno deve testar
possibilidades, experimentar; o professor deve incentivar novos modos de

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construção linguística) e metalinguístico (momento de sistematizar o que já
foi aprendido). O Eixo 2 está diretamente ligado à produção de sentido. O en-
sino deve partir do texto, da predicação, da referência que o aluno traz para
a escola para que, assim, ocorra a conexão de significados e, dependendo da
origem do aluno, os significados produzidos serão diferentes. O Eixo 3 com-
plementa o Eixo 2 já que prega a variação das normas, em que o aluno deve re-
conhecer e produzir as diversas variantes, caso (o discente) julgue necessário.
Com base nos três eixos, pode-se pensar em um meio eficaz de ensino
de Língua Portuguesa (cf. LIMA, 2017), inclusive, no que tange à exposição
da temática deste trabalho, para além do que prevê a gramática ou o livro
didático, que, como se viu, prioriza o ensino da variante padrão, ou seja, o uso
de haver. Acredita-se que, assim, os alunos se envolveriam mais na relação de
ensino/aprendizagem e o professor teria artifícios para ensinar de maneira
mais significativa e atender aos PCN’s de Língua Portuguesa.
O ensino de Língua Portuguesa deve englobar a Gramática Tradicional
para que o aluno seja apresentado à norma gramatical e possa utilizá-la se qui-
ser. Segundo Barbosa (2007), a decodificação e interpretação de textos eruditos
mais complexos é também papel do professor de Língua Portuguesa e da esco-
la de ensinar. Para isso, podemos nos utilizar dos textos dos grandes autores da
Literatura Brasileira como base para a realização desse trabalho.
É importante que o professor de Língua Portuguesa, em sala de aula,
trabalhe com as normas linguísticas com coerência. Inclui-se, assim, a abor-
dagem da norma culta, que corresponde aos usos observados no grupo de
fala composto por usuários letrados, com prestígio na sociedade. Entretanto,
com suporte de pesquisas da área da Sociolinguística, cabe ao docente
diferenciar norma-padrão e norma culta, todavia, sem desconsiderar a
proposta da norma -padrão, com seu caráter abstrato e seus referenciais que
são apreciados, por exemplo, em correções de redações do ENEM. Faraco
(2008) aponta que:

...numa sociedade diversificada e estratificada como a brasileira, haverá inúmeras


normas linguísticas, como, por exemplo, normas características de comunidades
rurais tradicionais, aquelas de comunidades rurais de determinada ascendência
étnica, normas características de grupos juvenis urbanos, normas características
das periferias urbanas, e assim por diante. (FARACO, 2008, p. 42-43)

Assim, é imprescindível que o professor conheça o seu alunado e aborde,

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nas aulas de Língua Portuguesa, as normas utilizadas por seus alunos, pos-
sibilitando que os discentes escolham qual variante eleger para uso em um
determinado contexto sociocomunicativo.

Considerações finais
Ao longo deste texto, buscou-se avaliar a alternância ter~haver em expressões
cultas das modalidades oral e escrita do PB. Desse modo, foi possível apreen-
der que, apesar de o verbo ter impessoal apresentar alto percentual de uso na
fala espontânea, na escrita, principalmente na acadêmica (mais monitorada),
predomina o uso do predicador haver.
De acordo com Kato (2005), a aquisição da linguagem é um processo natu-
ral e, nesse momento, construímos a nossa gramática nuclear, formada a partir
do input, ou seja, das estruturas linguísticas com as quais entramos em con-
tato. Entretanto, o letrado adquire outra gramática via escolarização. Sendo
assim, haveria uma gramática periférica a ser preenchida ao longo do ensino
formal de Língua Portuguesa.
Desse modo, pode-se apreender que, por ser a variante padrão recomendada
pelos compêndios gramaticais, haver resiste fortemente na escrita, mesmo
sendo uma construção que não faz parte da gramática nuclear do brasileiro.
No que diz respeito às reflexões sobre estudos linguísticos já realiza-
dos sobre o fenômeno (cf. CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006, 2011;
AVELAR e CALLOU, 2007; DUTRA, 2000, 2004), observa-se que a variação
ter~haver é amplamente encontrada no Brasil, de modo que não se trata de
qualquer distinção diatópica. Além disso, os resultados encontrados nas va-
riedades do PB corroboram os resultados deste labor, uma vez que também
apontam para uso mais produtivo da forma inovadora ter na modalidade oral
da língua.
Outra questão relevante é o nível de escolaridade dos indivíduos. Esse fa-
tor não é determinante quando o fenômeno é observado na modalidade oral da
língua (DUTRA, 2004). No entanto, quando há inserção da escrita, a tendência
ao uso de haver é mais evidente, sendo possível perceber que, nesse contexto,
o grau de letramento do indivíduo pode determinar a escolha pela forma mais
conservadora.
Assim, destaca-se a importância de apresentar dados de pesquisas so-
ciolinguísticas no ambiente escolar, para que seja possível perceber os usos
das variantes em estudo e notar as diferenças existentes entre o que se prevê
(norma-padrão) e o que realmente se produz (norma culta).

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De acordo com Faraco (2008, p. 39), “uma comunidade linguística não
se caracteriza por uma única norma, mas por um determinando conjunto de
normas”. Destarte, acredita-se que é função da escola a apreciação da norma
padrão e também o ensino da norma culta, mas não com o intuito de que o
aluno passe a somente fazer uso desta última, já que a primeira está no campo
da idealização, e sim para que o mesmo tenha competência comunicativa,
tenha domínio em mais de uma variedade linguística e faça as suas escolhas
sobre as formas linguísticas que quiser usar.

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