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Universidade do Estado do Amazonas

Centro de Estudos Superiores de Parintins


Curso de Letras

Linguística II

2º. período - noturno


2022/02
Universidade do Estado do Amazonas
Centro de Estudos Superiores de Parintins
Curso de Letras

Disciplina: Linguística II
Professora: Patricia dos Reis

Programa

Encontro 1 (30/11) – Apresentação /Introdução/Principais teorias linguísticas

Encontro 2 (07/12) – Evolução dos Estudos Linguísticos

Encontro 3 (14/12) – Teorias Linguísticas posteriores a Saussure

Encontro 4 (21/12) – Funcionalismo Linguístico

Encontro 5 (22/12) – Linguística Sistêmico Funcional

Encontro 6 (28/12) – Pragmática: Análise dos atos de fala

Encontro 7 (18/01) – Gramática do Designer Visual (GDV)

Encontro 8 (25/01) Avaliação Parcial I

Encontro 9 (26/01) – Análise Linguística/Semiótica na BNCC

Encontro 10 (01/02) – Análise do Discurso

Encontro 11 (08/02) – A importância da linguística enunciativa no ambiente acadêmico

Encontro 12 (15/02) – Teorias Linguísticas Aplicadas ao Ensino do Português

Feriado: 22/02

Encontro 13 (01/03) Avaliação Parcial II

Encontro 14 (02/03): Feira do Livro Comunitária

Encontro 15 (08/03): Encerramento da Disciplina


EVOLUÇÃO DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS
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Lucia F. Mendonça Cyranka *
lucia.cyranka@uol.com.br

* Professora da Faculdade de Educação da UFJF, Drª em Letras –


Estudos Linguisticos pela UFF.

1 Introdução

Estudar a linguagem humana constitui, desde sempre, verdadeira


fascinação, sendo ela, por isso mesmo, centro de interesse de vários ramos
das ciências, seja da Filosofia, da Biologia, da Antropologia, da Etnologia, da
Psicologia e de tantos outros. Daí a razão por que ela tem sido abordada sob
inúmeros aspectos, desde os mais abstratos que a reduzem, algumas vezes, a
verdadeiras expressões lógico-matemáticas, até as suas representações mais
concretas, procurando situá-la no seu contexto de produção. Constata-se,
pois, que há um longo caminho já percorrido e, o que é mais importante, com
respostas às vezes definitivas sobre alguns dos “mistérios” que a envolvem.
Sob muitos outros pontos de vista, porém, esse importante patrimônio cultural
das sociedades requer ainda que sobre ele se debrucem filósofos,
antropólogos, sociólogos, psicólogos, linguistas.
Não se pode prever até onde se pode chegar no esforço de compreender a
linguagem humana. Sempre, porém, que se pretenda estudá-la, seja com que
finalidade for, percorrer a História dos estudos já empreendidos constitui, no
mínimo, significativa economia de esforço. Mas talvez o que é mais vantajoso
seja assimilar a riquíssima experiência das reflexões que se têm somado ao
longo de tantos séculos. Disso resultará, para o estudioso, importante
abertura de horizontes de modo que possa se situar com mais segurança na
pesquisa que pretender iniciar.
O presente trabalho constitui justamente um empreendimento dessa
natureza: apresenta o resultado do estudo reflexivo sobre algumas das
principais correntes linguísticas, desde a Antiguidade Clássica até o
surgimento de novo paradigma que revolucionou os estudos da linguagem,
propiciando a abordagem dialógica, a partir da qual se propuseram os recortes
epistemológicos, que deram origem, entre outros, à Sociolinguística.

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Na primeira parte, fez-se um levantamento do que se construiu sobre a


linguagem no longo período compreendido entre os primórdios dos estudos
linguísticos até a época moderna, quando a gramática comparada das línguas
indo-europeias, abrindo extraordinário campo de pesquisas, propiciou o
surgimento do gênio de Saussure, que propôs um novo paradigma para a
compreensão da linguagem humana – o Estruturalismo.
Na segunda parte, o foco escolhido foi o Funcionalismo, justamente o
contraponto da visão saussureana centrada na imanência da língua. Para os
funcionalistas, ao contrário do que propõe o Estruturalismo, a participação do
falante na construção do discurso é fundamental para o processo de
gramaticalização, de modo que as estruturas linguísticas, centro da “langue”,
que os estruturalistas elegem como único interesse, constituem o apoio, o
ponto de partida, para o exercício da competência comunicativa, sendo, pois,
necessário ir além, centrar-se na “fala”. Como se verá, o Funcionalismo tem
muitos braços e, ainda que com raízes teóricas entre neogramáticos, é até
hoje um filão importante das pesquisas linguísticas.
A terceira linha teórica selecionada para este trabalho foi a
Sociolinguística, que também parte da fala, para se compreender alguns dos
aspectos do multifacetado fenômeno da linguagem. Seriam muitas as razões
dessa última escolha, sendo a principal, no entanto, a repercussão direta das
reflexões a que ela conduz no trabalho escolar com a língua materna. Esta
tem sido uma das grandes preocupações de sociolinguistas contemporâneos.
Cita-se, por exemplo, o recente trabalho de Stella Maris Bortoni-Ricardo
(2004), oferecendo aos cursos de formação de professores sua obra Educação
em língua materna: a sociolinguística na sala de sala de aula, em que a autora
propõe, como sugere o título, a prática da reflexão sociolinguística a partir dos
usos reais da língua dos próprios alunos e professores. Acredita-se que,
formando professores capazes de compreender a natureza da linguagem,
prepara-se uma sociedade do futuro em que o preconceito linguístico não mais
afastará da escola os que, ao ali chegarem, ainda desconheçam as variedades
cultas da língua portuguesa1. Mais que isso, se poderá viver numa sociedade

1
É necessário fazer aqui a distinção entre língua padrão, a que é regulada pela chamada “norma
padrão”-“[...]uma codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir
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em que, pelo menos sob o ponto de vista do uso da linguagem, o acesso à


justiça e aos bens culturais seja possível a todos. Isso porque nunca se pode
prever até onde vai a influência de um professor, mas, com certeza, toda a
humanidade acaba sentindo os efeitos de sua ação...
Não é preciso dizer que o fato de não se ter abordado aqui as outras
correntes linguísticas contemporâneas, o Sociognitivismo, a Análise do
Discurso, a Linguística Textual, etc, significa que não se atribua a elas papel
importante no avanço da compreensão do fenômeno da linguagem. Trata-se
apenas do recorte necessário em qualquer estudo em área de grande
abrangência como esta.
Está aí apresentado, portanto, o caminho percorrido na construção deste
trabalho.

2 Da Antiguidade ao século XIX

A construção de uma ciência não se dá de maneira uniforme e regular


ao longo da história. Ao contrário disso, constitui um processo ideológico,
filosófico, histórico e socialmente constituído, fruto de uma época, e requer,
portanto, um período de testagem, para afirmação ou contestação de
paradigmas. Trata-se de um processo dialético cujas investigações em torno
de uma verdade exigem uma série de idas e vindas, de entraves e reajustes,
para se chegar a resultados realmente confiáveis. Quando se faz uma
avaliação crítica da construção de uma teoria, é necessário, por isso mesmo,
que se lance um olhar atento a essas irregularidades do relevo, ainda que elas
possam estar disfarçadas sob a aparência de formulações categóricas. Em
linhas gerais, é essa a formulação da teoria de T.S.Kuhn (1972, apud DASCAL)
a respeito do desenvolvimento das ciências. Aos períodos de formulação e
testagem de modelos de teorias se seguem outros em que paradigmas são
postos em uso, podendo resultar que sejam confirmados ou que não o sejam.

de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de


uniformização linguística.” (FARACO, 2008, p. 75) - e as variedades cultas, aquelas utilizadas
pelos indivíduos letrados nos seus usos monitorados, fala e escrita. Observa-se ainda,
frequentemente, o emprego de variedades cultas como sinônimo de língua padrão.

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Na primeira hipótese, segundo Kuhn, tem-se o chamado período de ciência


normal e, na segunda, o de ciência extraordinária. Neste último caso, dá-se a
chamada revolução científica, quando novos paradigmas são convocados e
postos em experimentação, até que sua eficácia seja confirmada e se atinja
novamente o estágio da ciência normal.
No que diz respeito à ciência da linguagem, se considerarmos o longo
período em que suas bases vêm sendo construídas, desde a Antiguidade
Clássica até o século XX, podemos dizer, a partir da proposta de Kuhn, que
apenas no final do século XIX se operou uma verdadeira revolução científica.
Até então, formulações foram sendo propostas, umas aceitas, outras
contestadas, outras ainda reformuladas, de modo que o saber acumulado
sobre a faculdade humana da linguagem foi se tornando, cada vez mais,
complexo. Em seu texto acima referido (p. 19), Dascal, tratando das teorias
conflitantes relativas à linguagem ocorridas no período que ele considera
“história recente da linguística” levanta a hipótese de terem ocorrido “várias
revoluções científicas”.
Para avaliar essa hipótese de Dascal, é interessante que se faça, ainda que
brevemente, um esboço da evolução dos estudos linguísticos, desde a
Antiguidade, quando o fenômeno da linguagem convocou filósofos e eruditos
para as primeiras reflexões a esse respeito.
De início, o presente esboço partirá da apresentação feita por três
estudiosos da historiografia linguística: Joaquim Mattoso Câmara Jr, Eugenio
Coseriu e Carlos Alberto Faraco. A referência das obras consultadas se fará à
medida que forem sendo citadas.

2.1 Os estudos pré-saussureanos

Tanto Câmara Jr. quanto Coseriu demonstram que os estudos


linguísticos remontam à Antiguidade Clássica e têm sido, através de toda a
História, alvo de interesse dos estudiosos. Matoso Câmara (1975) organiza a
abordagem desses estudos, separando-os em dois tipos. O primeiro deles, os
paralinguísticos, são os que centram as reflexões sobre a linguagem em
interesses filosóficos (estudo lógico da linguagem) e os que reconhecem nela a

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expressão da natureza biológica humana (estudo biológico da linguagem).


Quanto aos outros, os pré-linguísticos, referem-se aos estudos centrados na
separação entre o certo e errado, sendo considerada certa apenas a
linguagem utilizada pelas classes sociais superiores; o esforço por conservar
esses traços linguísticos deu origem aos chamados estudos de gramática.
Também a necessidade de se compreender os textos antigos levou à
comparação entre a linguagem neles utilizada e a dos textos então
contemporâneos, dando origem aos estudos filológicos. Do contato entre as
sociedades de línguas diferentes, nasceu o interesse pelo estudo das línguas
estrangeiras, outro dos estudos pré-linguísticos. Câmara Jr. considera como
“âmago da ciência da linguagem ou linguística” (p.12) apenas o estudo
histórico e o descritivo. Reconhece, no entanto, que esses estudos não
podem ainda ser considerados científicos.
São esses dois últimos aspectos que, segundo Coseriu (1980), também
a historiografia linguística reconhece se alternarem relativamente ao interesse
pelos estudos da linguagem. Para demonstrar isso, esse autor constrói um
quadro representativo dos interesses dos estudos de linguagem desde a
Antiguidade até o século XIX. Nele, a abordagem teórico-descritiva predomina
no período relativo às origens dos estudos de linguagem (Antiguidade,
passando por todo o período medieval até o Renascimento), reaparecendo no
século XVIII e no século XX; como uma reação a esse tipo de abordagem,
surge, em cada um dos períodos subsequentes (Renascimento e século XIX), o
interesse pela abordagem histórico-comparativa.
Ressalta-se, no texto de Coseriu, a advertência quanto ao equívoco
comum de se considerar a linguística moderna como inovadora em sentido
absoluto. Na verdade, o que vem acontecendo nos estudos linguísticos, desde
a Antiguidade, é que a retomada dos enfoques, que ele tão bem
esquematizou, determinou a redescoberta de questões que já vinham sendo
discutidas ao longo da História. Demonstra isso levantando alguns temas
comumente atribuídos à inventiva de Saussure e a outros linguistas, mas que,
ao contrário disso, já vinham sendo discutidos desde a Antiguidade.
Entre eles, cita a abordagem sincrônica/diacrônica dos fatos linguísticos
como sendo, na verdade, preocupação das reflexões de Harris (séc. XVIII), de

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Gabelentz e Dittrich (séc. XIX); a distinção entre significado e significante


comumente atribuída a Saussure, mas que já fazia parte das reflexões de
Aristóteles sobre o que está na voz e o que está na alma, (p. 4) e que se
tornou explícita na gramática dos estoicos; o uso primário e o uso reflexivo
das palavras, o que hoje se reconhece como metalinguagem, mas que já era
critério adotado por Santo Agostinho e pela lógica medieval (suppositio
formalis e suppositio materialis); ainda atribuída a Saussure, a distinção
langue/parole e a Chomsky competence/performance, remonta à Antiguidade
e sempre esteve presente, de modo implícito, em todos os estudos de
gramática, “[...] porque nenhuma gramática jamais descreveu o falar, o
desempenho, mas sempre pretendeu descrever a língua, o saber linguístico, a
langue, a competência.” (p. 6). Esta questão foi explicitamente tratada por
Hegel na fórmula ‘o falar e seu sistema, a língua’ e Gabelentz , ‘o falar’ e ‘a
faculdade da linguagem’; a arbitrariedade do signo foi questão também
amplamente discutida pelos filósofos gregos (analogistas e anomalistas) tendo
Coseriu encontrado “[...] uma tradição ininterrupta, através de Boécio e da
filosofia escolástica até a época moderna, da determinação do signo como
arbitrário” (p. 7); a Benveniste se atribui a inauguração, nos estudos de
linguagem contemporâneos, da discussão da chamada não-pessoa, mas esse
tema já havia sido abordado na obra de Harris (apud Coseriu, op. Cit, 1980)
que, por sua vez, se inspirou numa tese de Apolônio Díscolo.
Coseriu (op.cit., 1980, p.8) demonstra que “[...] também a organização
atual das disciplinas linguísticas retoma de certo modo a tradicional, criada
pelos gregos” e reconhece, na divisão dos estudos antigos e medievais entre
gramática, retórica e dialética, os modernos estudos de semântica, pragmática
e sintaxe lógica da linguagem. Esse autor adverte, ainda que, do fato de a
problemática linguística ser sempre complexa, resulta que, nos períodos em
que a abordagem teórico-descritiva é privilegiada (origens, séc. XVIII, séc.
XX), a perspectiva histórica não se fez totalmente ausente, mas

[...] se faz só de modo parcial e em função da própria descrição.


Inversamente, quando os objetivos essenciais da linguística foram a
comparação e a história, a descrição certamente daí não
desapareceu, mas passou, por assim dizer, ao segundo plano e, no
caso, foi feita em função da história. Assim, se no século XIX a linha

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principal de desenvolvimento da linguística passa pela linguística


histórica, pela comparação linguística, pela história das línguas e pela
gramática histórica, ao mesmo tempo se desenrola, debaixo dessa
mesma linha, a linguística teórica e descritiva, que continua a
tradição do século XVIII, tradição mais antiga e jamais desaparecida,
a que pertencem estudiosos da envergadura de um Humboldt, na
primeira metade do referido século, e de um Steinthal e Gabelentz,
na segunda metade. Deste ponto de vista, a linguística atual constitui
um retorno, em primeiro plano, à linguística teórica e descritiva; de
certo modo, ela retoma a problemática do século XVIII, porém em
outras direções, impostas pela ampla experiência do século XIX,
quando a linguística histórica se tinha tornado a linguística por
excelência.. (p. 9)

Também Faraco (2004), em suas considerações sobre os estudos pré-


saussureanos, chama a atenção para o fato de que a Saussure só foi possível
estabelecer o corte epistemológico nos estudos linguísticos porque o terreno já
havia sido preparado por uma longa tradição de buscas e investigações sobre
a língua e sua natureza. Nesse sentido, o autor afirma: “Embora à primeira
vista haja no gesto de Saussure uma ruptura com o modo de fazer linguística
do século XIX, podemos também pensá-lo como um gesto de continuidade.”
(p. 28). A par de toda a tradição de estudos que se construiu desde a
Antiguidade até o final do século XVIII, foi somente a partir desse último
período, com os estudos histórico-comparatistas, que a linguagem passará a
ser tratada com um fim em si mesma, sendo estabelecido o princípio da
imanência.

2. 2 A gramática comparada e a linguística indo-europeia como marco


dos estudos linguísticos do século XIX

Coube a Saussure dar “o arremate final” à noção de língua como um


sistema de signos independente, mas isso só lhe foi possível graças às
formulações anteriores, que foram desencadeadas principalmente por William
Jones em suas pesquisas sobre as relações entre o sânscrito, o grego e o latim
e que, segundo Faraco, constituíram “[...] o marco simbólico do início da
Linguística como ciência” (2004, p. 29). Desde então, o entusiasmo pelas
pesquisas linguísticas tomou conta de toda a Europa e, cada um por seu turno,
grandes nomes se sucederam nas descobertas sobre o estudo da linguagem e
nas proposições delas decorrentes.
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Faraco não menciona o trabalho que Câmara Jr. considera pioneiro


dentre eles. Trata-se das pesquisas do dinamarquês Ramus Rask, “[...] o
primeiro estudioso a fazer progressos na técnica da comparação histórica
entre línguas” (CÂMARA JR., 1975, p. 31). Esse entusiasta estudioso do
islandês investigou as relações entre essa antiga língua escandinava e o
dinamarquês e estabeleceu as bases do método comparativo entre línguas,
insistindo na importância das comparações gramaticais, muito mais
significativas do que a simples comparação de palavras. Sendo sua obra pouco
divulgada e sendo esses princípios retomados por Franz Bopp, coube a este
último o título de fundador da Ciência Histórico-Comparativa da Linguagem.
De qualquer modo, a descoberta do sânscrito e sua divulgação na
Europa por William Jones suscitou uma série ininterrupta de investigações e
descobertas nos meios eruditos da Europa. Ligados à Escola de Estudos
Orientais de Paris, Friedrich Schelegel e Franz Bopp publicam textos em que
se confirma o parentesco do sânscrito com várias línguas ocidentais e
procede-se a comparações de aspectos da morfologia verbal, dando-se início
ao método comparativo. Bopp escreve sua Gramática Comparativa das línguas
da família que ele denominou de indo-europeia, sendo por isso considerado o
fundador dos estudos linguísticos relativos a essa família de línguas. Jacob
Grimm aprofunda as investigações de Bopp e deduz “[...] as correspondências
fonéticas sistemáticas entre as línguas como resultado de mutações regulares
no tempo” (p. 32), formulando as conhecidas leis de Grimm, mais tarde
aperfeiçoadas por Karl Verner.
Os estudos de filologia passam, agora, a ter um sentido diferente
daquele empreendido pelos gregos da Antiguidade e a coexistência de línguas
oriundas do latim, língua que fornecia ampla documentação escrita, permitiu
que fossem testados os métodos de investigação de ascendentes linguísticos,
tendo surgido, por isso, os estudos de filologia românica.
O método histórico-comparativo de estudo das línguas estava assim
inaugurado, e sua importância se deve principalmente ao fato de que, com
ele, as pesquisas linguísticas ganharam status de investigação científica e
prepararam o surgimento da Linguística como ciência. Durante todo o século
XIX, no entanto, o entusiasmo por esses estudos se concentrou principalmente

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na continuação das investigações sobre o sânscrito e o parentesco entre as


línguas indo-europeias, aprofundando-se a metodologia da comparação entre
elas. Levando adiante as investigações de Bopp e Grimm, August Pott deu
ênfase à fonética e à derivação vocabular, levantando interessantes
aproximações, por exemplo, entre o persa moderno e o inglês.
O método comparativo, ainda que combatido por alguns linguistas da
época, como nos informa Mattoso Câmara Jr. (1975, p. 47), foi ganhando
adeptos entusiastas nas pesquisas do indo-europeu. Dentre eles, não se pode
deixar de citar August Schleicher, além de linguista, um estudioso das ciências
naturais, profundamente influenciado pelas ideias evolucionistas de Darwin.
Especialista em gramática comparativa, tinha como alvo de suas pesquisas
reconstruir o protoindo-europeu. Concebeu, para isso, uma árvore
genealógica, procurando demonstrar que “[...] as línguas nascem de uma
língua-mãe, das línguas-ramo nascem ramos menores e desses ramos
menores surge uma bifurcação de dialetos. Finalmente, temos o tronco da
árvore – a Ursprache, ou a protolíngua indo-germânica.” (CÂMARA JR. 1975,
p. 52). Ainda que, hoje em dia, a demonstração de Schleicher seja
considerada incompleta, sua classificação foi altamente significativa para
impulsionar os estudos comparativos das línguas indo-europeias, a tal ponto
que essas pesquisas passaram a integrar definitivamente a historiografia do
desenvolvimento da Linguística Histórico-Comparativa. Deve-se a ele, por
exemplo, a classificação das línguas em isolantes, aglutinantes e flexionais.
Na historiografia linguística, é de inquestionável importância, para o
aprofundamento dos estudos histórico-comparativos e para o desenvolvimento
do que, mais tarde, viria a ser propriamente a ciência da linguagem, o
movimento dos neogramáticos. O movimento se consubstanciou a partir do
final do século XIX e, ainda que tendo trazido contribuições novas ao estudo e
à compreensão da linguagem, firmou-se, antes de tudo, na continuação da
abordagem histórica, fora da qual, acreditavam, não seria possível esse
estudo. Segundo Câmara Jr. (1975, p 76), assim afirmava Herman Paul, um
dos principais representantes dessa geração : “[...] o único estudo científico
da língua é o estudo histórico”. E acrescenta : “[...] todo estudo linguístico-
científico que não é histórico em seus objetivos e métodos só pode ser

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explicado em consequência de uma deficiência do investigador ou de


deficiências nas fontes de que dispõe.” Esse movimento se desenvolveu na
chamada Escola de Leipzig, tendo nascido de uma polêmica entre dois
eminentes estudiosos alemães, Georg Curtius e Karl Brügman a respeito da
interpretação da consoante nasal no protoindoeuropeu e acabou se
caracterizando por seu caráter altamente radical e polêmico.
Os neogramáticos, influenciados pelas ideias positivistas e
evolucionistas, adotaram rigorosamente o princípio de que as mudanças
fonéticas ocorriam como resultado de uma ação mecânica “[...] de forças
fisiológicas e psíquicas que escapam ao controle humano” (CÂMARA JR., op.
cit. p. 75) e deveriam ser explicadas nos seus mecanismos. Para eles, não
interessava simplesmente reconstruir as línguas remotas pela comparação de
vocábulos e estruturas; mais importante seria criar uma teoria da mudança.
Essa teoria adotava o princípio da inexcepcionalidade das leis fonéticas. Nesse
caso, as irregularidades verificadas nas mudanças linguísticas seriam
explicadas não como simples exceções, mas como resultado de empréstimos
ou de analogia, ou se aceitaria que aquele princípio causador da aparente
irregularidade era ainda desconhecido. Segundo os neogramáticos, as leis
fonéticas se aplicavam de forma cega, absoluta, de sorte que as mudanças
eram vistas como tendo ocorrido concomitantemente em todos os vocábulos,
na mesma época, em todos os lugares, sem exceção. Esse rigor provocou,
mais à frente, a reação de outros linguistas, que demonstraram que, ao
contrário disso, as mudanças ocorrem de forma gradual e diferenciada no
espaço geográfico e no interior dos dialetos, sujeitas a fatores outros como
gênero, idade, nível de escolaridade do falante. Isso será, mais tarde,
demonstrado pela Sociolinguística. De qualquer modo, segundo avalia Faraco
(2004, p. 36) referindo-se aos neogramáticos, “[...] o rigor metodológico que
introduziram no enfrentamento dos problemas de história das línguas teve
particular importância no desenvolvimento da Linguística Histórica.”
Principalmente a partir dos neogramáticos, os estudos comparativos das
línguas do ramo indo-europeu ganharam novo impulso, sendo novas línguas
estudadas, como o céltico, o lituano, o báltico, o eslavo, o esloveno, o
albanês, o armênio. Quanto ao armênio, foi a doutrina neogramática das leis

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fonéticas que capacitou a Linguística indo-europeia a esclarecer sua posição


como um ramo especial da família indo-europeia (CÂMARA JR.,1975, p. 86).
O ramo germânico, naturalmente, foi muito estudado pelos neogramáticos
alemães. Também o foi a língua grega que se supunha ter estreita relação
com o latim, suposição que o desenvolvimento da Linguística evidenciou ser
incorreta. Essa mesma técnica desenvolvida pelos neogramáticos de estudar
conjuntamente duas línguas profundamente associadas através da História e
de uma cultura comum tornou possível o estudo histórico-comparativo do
osco-úmbrio.
De grande significação para os estudos comparativos das línguas foi a
investigação sobre a origem comum das línguas românicas empreendida pelos
neogramáticos. Isso porque puderam testar suas teorias, a partir do exame
dos documentos do latim, considerada a protolíngua da família românica.
Nessa investigação, dois nomes se destacaram: Friedrich Diez, considerado o
fundador da Linguística Românica, e Wilhelm Meyer Lübke, que salientou a
importância do latim vulgar e dos dialetos populares, muito mais que o latim
clássico para a formação das línguas desse ramo.
Além disso, a contribuição dos neogramáticos foi bastante significativa
para os estudos subsequentes de linguagem. Algumas teses foram retomadas
modernamente, como as de Herman Paul, que ficou conhecido dentre os
neogramáticos também por ter adotado o ponto de vista psicológico e
subjetivista para explicar a origem das mudanças linguísticas, fruto da ação
dos falantes entre si. Seu ponto de vista de que as mudanças linguísticas se
originam no processo de aquisição da língua é outro que tem sido reformulado
modernamente; sua tese segundo a qual há necessidade de se aplicar a todas
as línguas os aspectos inferidos sobre a evolução de línguas particulares pode
também ser entrevista na discussão do princípio da gramática universal de
Chomsky.
Nesse panorama rapidamente traçado dos estudos de linguagem até o
século XIX, é preciso incluir o advento dos estudos de fonética, motivados
pelas pesquisas do sânscrito e do trabalho dos gramáticos hindus. Até então,
observações fonéticas haviam sido pouco significativas pelo fato de os
estudos, tanto entre os gregos e romanos antigos, quanto entre os da Idade

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Média e dos séculos subsequentes se concentrarem nos textos escritos,


exceção feita do interesse pelos estudos de língua estrangeira, nos séculos
XVII e XVIII, e que resultou em algumas conclusões pouco consistentes. Entre
os hindus, no entanto, os estudos de fonética haviam sido de grande
importância, principalmente no que diz respeito à descrição dos sons vocais e
à fonética articulatória, o que era fundamental para se preservar a pronúncia
dos textos sagrados dos Vedas. Com eles, os estudos europeus ganharam
enormemente.
Uma síntese das teorias linguísticas que marcaram a evolução dos
estudos linguísticos até o século XIX revela, ao final, a par de uma busca
incessante de respostas sobre a natureza da linguagem, um extraordinário
amadurecimento dos métodos de investigação e análise dos fatos linguísticos,
desde a construção da gramática filosófica grega até as últimas consequências
do histórico-comparativismo, que viu nas línguas a manifestação da história da
humanidade. No século XIX, no entanto, ao lado de todo o esforço da
comunidade cultural europeia no sentido de desvendar os mecanismos de
funcionamento da linguagem, uma figura permaneceu isolada, por procurar
dar à compreensão da natureza da linguagem uma interpretação filosófica.
Trata-se do alemão Wilhelm von Humboldt, que viu a língua como “[...] uma
incessante criação de cada falante, ou, como ele mesmo exprimiu através de
um outro termo grego, uma ‘energeia’.” (CÂMARA JR.,1975 p. 29). Para ele,
através da análise de todas as línguas do mundo, se poderia chegar a uma
descrição da mesma noção gramatical expressa em diferentes línguas. No
século XX, essa ideia será retomada pelos gerativistas ao buscarem os
princípios da gramática universal.

2.3 Saussure e o impacto dos estruturalismos

Fazendo parte, inicialmente, do grupo dos neogramáticos, preocupados


com as investigações histórico-comparativistas das línguas indo-europeias, o
eminente estudioso suíço Ferdinand de Saussure reagiu, posteriormente, ao
ponto de vista de Hermann Paul, para quem a abordagem histórica das línguas
era a única recomendável. Adotando formulações contrárias ao modelo então

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vigente para os estudos de linguagem, chegou à concepção segundo a qual a


língua é um conjunto de relações, constituindo um sistema que é mais
fundamental do que os próprios elementos que o constituem.
Saussure procurou demonstrar isso através da metáfora do jogo de
xadrez, em que o que realmente interessa são as regras que determinam os
movimentos das peças. O sentido está relacionado à noção de valor
determinado pela ideia de oposição em que se colocam os signos linguísticos,
de tal modo que tudo se constitui dentro do próprio sistema, nada
dependendo das situações externas à língua. Saussure valorizou, assim, o
estudo imanente da linguagem e estabeleceu rigorosa oposição entre o
sistema (langue) e seu uso (parole), dedicando-se exclusivamente ao estudo
da langue.
Para isso, demonstrou a importância da sincronia em oposição à
diacronia alvo de principal interesse dos comparativistas. Para ele, a língua é
pura forma e como tal deve ser estudada, adotando-se o princípio de que as
formas que articulam os sons (significante) e os sentidos (significado) são
arbitrárias em todas as línguas. “Saussure tinha descoberto na língua uma
construção legitimamente estrutural” (FARACO, 2004, p. 64). E, ainda que
não se tenha nenhum exemplo acabado de análise linguística por ele
empreendido, o modelo estruturalista que ele propôs determinou uma virada
nos estudos linguísticos estabelecendo-se, a partir de então, as bases de uma
verdadeira ciência da linguagem. Refletindo sobre isso, Faraco (2004, p. 68),
cita o linguista italiano Raffaele Simone, que afirma: “[...] a axiomática
saussureana é extremamente ampla, de modo que são poucas, hoje, as
teorias linguísticas que podem declarar-se autenticamente não saussureanas.”
O ponto de vista sincrônico nos estudos de linguagem foi definitivamente
adotado em todas elas e as mudanças linguísticas passaram a ser vistas sob o
ponto de vista estrutural, devendo ser analisadas dentro do sistema, isto é,
em relação aos outros elementos da língua
Esse novo paradigma se tornou a base de todos os estudos linguísticos
posteriores, tanto na Europa quanto na América e está subjacente às
pesquisas da Escola Linguística de Praga frequentada por linguistas da
envergadura de Wilhem Mathesius, Roman Jakobson, Troubetzkoy. Também o

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estruturalismo é a base da glossemática de Luis Hjelmslev e do funcionalismo


de André Martinet que se expandiu na França, um dos países que mais se
entusiasmaram por esse novo modelo. Nos Estados Unidos, o estruturalismo
teve principalmente em Franz Boas e Edward Sapir seus pesquisadores que,
inspirados na importância dos estudos da sincronia advogada por Saussure,
se empenharam no projeto de estudar as línguas indígenas. Faraco (op. cit.,
p.78) afirma que os estruturalistas americanos não se reconhecem
saussureanos, mas ligados a Leonard Bloomfield. O que se pergunta é a quem
devem eles o estruturalismo de Bloomfield senão ao corte saussureano?
Fora dos estudos de linguagem, o estruturalismo de Saussure significou
também o nascimento de um novo paradigma, tendo a Linguística se tornado
uma “ciência piloto”: a Antropologia, a Sociologia, a Biologia, a Teoria Literária
e a Estética nela buscaram o novo modelo de análise.

2.4 O Estruturalismo saussureano : uma revolução científica?

Reportemo-nos, agora, ao que ficou dito na introdução deste ensaio,


relativamente à teoria da evolução das ciências proposta por Kuhn e à
hipótese de Dascal (1978, p. 19) assim expressa: “A sucessão relativamente
rápida, na história recente da linguística, de teorias e abordagens
radicalmente distintas e conflitantes entre si parece indicar a ocorrência, nessa
disciplina, de várias ‘revoluções científicas’ durante um período relativamente
curto”. O que ficou exposto sobre o desenvolvimento dos estudos linguísticos
nos leva a crer que, no final do século XIX, tenha ocorrido uma primeira
revolução científica. Podemos agora concluir que o corte saussureano
constituiu, sem dúvida, o período do estabelecimento da ciência
extraordinária, quando um novo paradigma foi encontrado. Os
desdobramentos da abordagem estruturalista evidenciaram a reinstalação do
período de ciência normal que, mais à frente, será novamente desestabilizada
pelo surgimento do paradigma chomskyano.

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174

3 O Funcionalismo

A partir da década de 70, começaram a se desenvolver, no campo dos


estudos linguísticos, algumas ideias que germinavam desde a instalação do
paradigma saussureano. Segundo o que reflete Kuhn2 a respeito da evolução
das ciências, tudo indica serem essas ideias aquelas "frestras" ou
"interstícios" que possibilitam o desenvolvimento de novos pontos de vista,
que podem, ou não, gerar, mais à frente, a contestação do paradigma
dominante. Caso isso aconteça, se identificará o período de ciência
extraordinária; caso contrário, feitos os reajustes dentro da teoria proposta
pelo paradigma dominante, o "quebra-cabeças" estará resolvido e o
desenvolvimento das investigações continuará dentro do chamado período da
ciência normal.
As ideias a que se está referindo dizem respeito a um dos polos gerados
pela radicalização do ponto de vista formal dos estudos de linguagem, adotado
por Saussure. Trata-se do aspecto funcional da linguagem. Mas, antes mesmo
da instalação do paradigma saussureano, Whitney já procurava ressaltar a
visão segundo a qual a linguagem é um instrumento de comunicação. Mattoso
Câmara (1975) assim apresenta o o ponto de vista desse estudioso da
linguagem: “Admite que os sons da linguagem foram produzidos pela imitação
dos sons da natureza, naquele estágio em que não constituíam a língua no seu
verdadeiro sentido. A língua foi criada somente quando o pensamento humano
excogitou empregar os sons vocais com propósito comunicativo.” (p. 59). E
mais à frente: “Faz também a distinção entre linguagem e pensamento. Para
ele, a linguagem vem depois do pensamento e nada mais é do que um
instrumento do pensamento.” (Idem).
Também em Gabelentz e Herman Paul, se pode entrever uma visão não
unicamente formalista, porque, segundo Pezatti (2004), “[...] assentaram o
enfoque linguístico em fenômenos sincrônicos e diacrônicos no final do século
XIX, entendendo que se deve explicar a estrutura linguística em termos de
imperativos psicológicos, cognitivos e funcionais”.

2
Ver DASCAL, 1978.
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175

Já dentro do Círculo Linguístico de Praga, no início do século XX,


principalmente por influência do psicólogo alemão Karl Bühler3, a função
desempenhada pela forma linguística na construção dos enunciados e que
estava ligada à intenção do usuário da língua passou a atrair os estudiosos da
linguagem. Bühler chegou a reconhecer três funções da linguagem: a de
representação, também conhecida como referencial; a de exteriorização
psíquica e a de apelo. Roman Jakobson - um dos expoentes da escola -
ampliou a compreensão de outras funções da linguagem para além daquela
através da qual se fazem as referências. Esse aspecto, como se vê, vai além
da investigação da estrutura linguística e das relações internas entre seus
elementos, alvo de interesse do estruturalismo e aponta para a intenção que
fundamenta o discurso. É o que tem sido modernamente chamado de "noção
teleológica de função" (MARTELOTTA, 2003, p. 19).

3.1 Pressupostos teóricos

A visão funcionalista da língua tem se desenvolvido, como se disse


acima, principalmente a partir das três últimas décadas, sob a designação
geral de funcionalismo. Na verdade, são muitos os funcionalismos, todos eles
tendo em comum o fato de reivindicar, para a análise linguística, a
importância da participação do falante na construção do discurso e,
consequentemente, sua interferência no processo de gramaticalização de
elementos discursivos e até mesmo no da mudança linguística. Neves (1994)
adverte: “Um bom modo de sintetizar o pensamento básico das teorias
funcionalistas é lembrar Martinet (1978), que aponta, como objeto da
verdadeira linguística, a determinação do modo como as pessoas conseguem
comunicar-se pela língua.” O que interessa, na abordagem funcionalista, em
última análise, é o exame dos recursos que o falante utiliza para exercer sua
competência comunicativa, apoiando-se nas estruturas linguísticas
configuradas como funções.
Pezatti (op. cit) encontra as raízes do funcionalismo em fontes mais
modernas como:

3
Ver MARTELOTTA, Mário Eduardo (2003)
Revista Práticas de Linguagem. v. 4, n. 2, jul./dez. 2014
176

[...] na tradição antropológica americana com o trabalho de Sapir


(1921, 1949) e seus seguidores; na teoria tagmêmica de Pike (Pike,
1967); no trabalho etnograficamente orientado de Hymes (que
introduziu a noção de Firth (1957) e Halliday (1970, 1973, 1985); e
em um sentido diferente também na tradição filosófica que, a partir
de Austin (1962) e por meio de Searle (1969), conduziu à teoria dos
Atos de Fala. (p. 167)

A mesma autora reconhece, nos Estados Unidos, diferentes tendências


do estudo funcionalista e procura agrupá-las em torno de nomes como Talmy
Givón, Charles Ly, Sandra Thompson, Wallace Chafe, Paul Hopper, Scott
DeLacey, John DuBois, na Califórnia; Van Valin (Gramática de Papel e de
Referência), em Buffalo, New York; Lakoff e Langacker, em Berkeley.
Ainda que a teoria funcionalista esteja se construindo sob diferentes
enfoques, dois aspectos fazem reconhecer tratar-se dos mesmos princípios
subjacentes. O primeiro deles é a concepção de linguagem vista como
instrumento de comunicação e de interação social. O segundo, como
consequência do primeiro, não separa a linguagem como objeto de estudo e
seu uso. “A linguagem é vista como uma ferramenta cuja forma se adapta às
funções que exerce e, desse modo, ela pode ser explicada somente com base
nessas funções, que são, em última análise, comunicativas” (Idem, p. 168).
Há, portanto, estreita relação entre linguagem e uso, não tendo mais sentido
estudá-la com um fim em si mesma.
Segundo o que apresenta Martelotta (2003), coube a Givón a
refutação dos três dogmas de Saussure - a arbitrariedade do signo linguístico,
a oposição sincronia x diacronia e a idealização da língua em detrimento da
fala - para se compreender o enfoque funcionalista. Quanto ao primeiro deles,
o próprio Saussure reconheceu haver exceções, ainda que as julgasse
irrelevantes, por serem poucas. No entanto, debruçando-se nas questões do
uso, isto é, na criação dos falantes, o funcionalismo demonstrou que se pode
facilmente identificar a interferência deles no sistema linguístico tanto no nível
lexical, quanto no semântico e mesmo no morfossintático, criando-se novas
formas de expressão, a partir das necessidades comunicativas do falante,
determinadas pelo contexto.
São, assim, as criações vocabulares por motivação fonética (as
onomatopeias) e morfológica (palavras derivadas ou compostas); a ordenação

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177

sintática dos enunciados na mesma ordem dos acontecimentos no mundo real;


bem como outros aspectos como os relacionados “[...] à extensão da sentença
assim como à ordenação e à proximidade dos elementos linguísticos que a
compõem, dependendo de fatores como complexidade semântica, grau de
informatividade dos referentes no contexto e proximidade semântica entre
conceitos” (MARTELOTTA, 2003, p. 26). Essa busca de correspondência
natural entre forma e função, que os funcionalistas denominam iconicidade,
se opõe, como se vê, ao princípio da arbitrariedade do signo linguístico.
Está ligado ao recurso da iconicidade o princípio da marcação, que
obedece a uma escala: quanto mais complexa a estrutura, mais marcada se
apresenta. Veja-se a negativa Ela não vai sair não, em que há duas marcas
para a mesma função, em oposição à forma padrão Ela não vai sair, menos
marcada e morfologicamente mais simples.
O segundo dogma saussureano contestado pelos funcionalistas é o
consequente da oposição langue x parole, que valoriza apenas a primeira.
Como se viu acima, o falante desempenha um papel importante na alteração
do sistema linguístico a partir de suas necessidades de comunicação nas
interações entre interlocutores. “A parole, o casual que caracteriza o discurso,
passa a ser a gênese do sistema que, por sua vez, alimenta o discurso”
(MARTELOTTA, 2003, p. 27). Segundo as necessidades entrevistas pelo
falante, unidades são incorporadas ao discurso pelo princípio da iconicidade;
tornando-se usuais, se fixam, gramaticalizam-se e passam a fazer parte do
sistema; essa perfeita simbiose, possibilitando o grau máximo de economia
comunicativa, determina o desgaste da unidade em uso, provocado pelo
esvaziamento semântico e resultando no seu retorno ao discurso.
Veja-se, por exemplo, o ocorrido com a expressão não é? que,
atualmente, com a forma desgastada né?, assumiu a função de meramente
preencher a pausa causada pela perda da linearidade do discurso. O mesmo
tem acontecido com o relativo onde. Ao lado de sua função de pronome,
remetendo à noção de lugar, espaço físico, passou, a desempenhar uma
função metafórica ligada à noção de tempo e, progressivamente, tornou-se
um recurso para se organizar discursivamente a informação, função
desprovida de qualquer valor semântico.

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178

Givón afirma existir um caráter cíclico nessa evolução linguística, que


ele representa na seguinte escala : discurso > sintaxe > morfologia >
morfofonologia > zero. Apresentando essa escala, Cunha et alii (2003)
afirmam:
De acordo com essa trajetória unidirecional de gramaticalização,
alguns itens lexicais passam a ser utilizados em contextos nos quais
desempenham certa função gramatical, ainda não totalmente fixada.
Progressivamente, via repetição, seu uso torna-se mais previsível e
regular, resultando numa nova construção sintática com
características morfológicas especiais, podendo, posteriormente,
desenvolver-se para uma forma ainda mais dependente, como um
clítico ou um afixo, com eventuais adaptações fonológicas. Com o
aumento da frequência de uso, essa construção tende a sofrer
desgaste formal e funcional que poderá causar seu desaparecimento,
dando início a um novo ciclo. (p.54)

Os exemplos apresentados acima ilustram essa progressão.


Tanto a gramaticalização quanto a discursivização demonstram,
segundo o funcionalismo, que o terceiro dogma saussureano, a oposição
sincronia x diacronia, também deve ser revisto. Conforme Givón, há um
caráter cíclico no processo de mudança, que está ligado às necessidades
comunicativas dos falantes, de modo que há processos de mudança que se
mantêm atuantes ao longo do tempo. Cunha et et alii (2003, p. 27-28) assim
explicam:
Em outras palavras, há um conjunto de processos de mudança que
atuam com relativa regularidade sobre os elementos linguísticos,
estendendo-lhes o sentido. De uma perspectiva histórica, esses
processos podem dar a impressão de uma sequência de mudanças
ocorridas no tempo; de uma perspectiva sincrônica, o que se observa
é um conjunto de polissemias coexistindo.

Por tudo isso, segundo os funcionalistas norte-americanos,


pode-se dizer que o funcionalismo tende a adotar uma concepção
pancrônica de mudança (...), observando não as relações sincrônicas
entre seus elementos ou as mudanças percebidas nesses elementos e
nas suas relações ao longo do tempo, mas as forças cognitivas e
comunicativas que atuam no indivíduo no momento concreto da
comunicação e que se manifestam de modo universal, já que
refletem os poderes e as limitações da mente humana para
armazenar e transmitir informações. (Idem p. 27-28)

Para demonstrar alguns princípios funcionalistas que se opõem ao


formalismo saussureano, abordamos a iconicidade, a marcação e os processos

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de gramaticalização, unidirecionalidade e discursivização. É indispensável, no


entanto, tratar aqui também de outros dois processos fundamentais dentro da
visão funcionalista. Trata-se do conceito de transitividade e planos discursivos
e de informatividade.
Quanto à transitividade, o funcionalismo reconhece não apenas no
verbo, mas em toda a sentença a possibilidade de transferência de atividade
de um agente para um paciente. Hopper e Thompson (apud CUNHA et alii,
2003, p.37), considerando a transitividade uma noção contínua e escalar,
estabeleceram, para se analisar esse atributo, “[...] um complexo de dez
parâmetros sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes
ângulos da transferência da ação em uma porção diferente da sentença.”
Abaixo, se transcreve esse quadro :

Transitividade alta Transitividade baixa


1. Participantes dois ou mais Um
2. Cinese ação não-ação
3. Aspecto do verbo perfectivo não perfectivo
4. Punctualidade do punctual não-punctual
verbo
5.Intencionalidade do intencional não-
sujeito intencional
6. Polaridade da afirmativa Negativa
oração
7. Modalidade da modo realis modo irrealis
oração
8. Agentividade do agentivo não-agentivo
sujeito
9. Afetamento do afetado não-afetado
objeto
10. Individuação do individuado não-
objeto individuado

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Numa sentença como O policial prendeu o bandido com facilidade,


temos o grau máximo de transitividade, porque ela apresenta os dez traços da
escala. Ao contrário desse caso, a sentença Essa tarde parece triste apresenta
baixo grau de transitividade, porque contém apenas dois traços da escala
(modalidade realis e polaridade afirmativa). Segundo os mesmos autores,
deve-se reconhecer um princípio universal no “[...] evento causal prototípico,
que é definido como um evento em que um agente animado intencionalmente
causa uma mudança física perceptível de estado ou locação em um objeto”
(CUNHA, 2003, p. 38).
A escolha do grau de transitividade da sentença constitui uma função
discursivo-comunicativa, representando a maneira como o autor constrói seu
discurso para atingir seus objetivos comunicativos, tendo em vista o contexto
situacional em que se inclui seu interlocutor. A transitividade da sentença
permite ao autor determinar a perspectiva em que se situa, para orientar seu
interlocutor na compreensão de sua mensagem. “O grau de transitividade de
uma oração reflete sua função discursiva característica, de modo que orações
com alta transitividade assinalam porções centrais do texto, correspondentes à
figura, enquanto orações com baixa transitividade marcam as porções
periféricas correspondentes ao fundo.” (CUNHA, 2003, p. 39)
A consequência pragmática dessa ordenação sintática está em que as
porções do texto correspondentes à figura se tornam mais facilmente
depreensíveis, por serem mais evidentes. Outra consequência está na
possibilidade de se poder organizar esses planos discursivos num continuum,
estabelecendo-se graus de “fundidade”, do que resulta a possibilidade de se
obter importantes efeitos discursivos. Observe-se o trecho : A escolha de
candidatos às prefeituras municipais foi feita com a participação significativa
de eleitores, não havendo muita abstenção nem faltando clareza na
manifestação de suas preferências. Compare-se : Um número altamente
significativo de eleitores fez a escolha de candidatos às prefeituras municipais;
compareceram às urnas e manifestaram claramente o que pensavam.
A segunda versão, sem dúvida, apresenta, do ponto de vista do
dinamismo comunicativo, a centralização do que seria a figura, como efeito da
marcação punctual do verbo (fez e compareceram) e de todos os outros

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marcadores de transitividade oracional. Se a intenção do autor tiver sido dar


destaque à figura, pode-se considerar bem construído o seu texto, porque os
dois planos discursivos, figura e fundo, ficaram bem delineados.
A informatividade é outro parâmetro utilizado pelo falante/escritor
quando necessita codificar uma informação do mundo exterior ou de seu
próprio mundo pessoal, para transmiti-la a seu interlocutor. Para que essa
comunicação tenha êxito, é preciso ter bem determinados os elementos da
mensagem cujo conhecimento é partilhado pelos interlocutores. A informação
já conhecida, tema, é normalmente colocada no início da sentença e
corresponde, no sistema de predicação, ao sujeito; o rema é a parte da
informação considerada nova e ocupa, normalmente a porção final da
sentença, correspondendo ao predicado.
Apresentando essa questão do status informacional da sentença, Cunha
et alii (2003, p. 44) acrescentam: “A questão da informatividade é abordada
na linguística funcionalista principalmente a partir da classificação semântica
da codificação de referentes no discurso, demonstrando que a forma como um
referente é apresentado no discurso é determinada por fatores de ordem
semântico-pragmática.” Para codificação dos referentes, o falante/autor
determina se seu interlocutor compartilha com ele as mesmas informações, ou
se ao menos é capaz de inferi-las. Desse modo, introduz no enunciado um
referente novo, velho ou inferível, levando em consideração que há regras
semântico-pragmáticas que devem ser obedecidas para a codificação desse
referente. Por exemplo, os SNs introduzidos pela primeira vez no discurso
devem ser indefinidos (Entrou candidato demais); os referentes evocados,
aparecem com SNs definidos (Os professores aceitaram os pedidos de
revisão). Enfim, há uma escala de apresentação dos referentes segundo esse
critério de disponibilidade ou não de conhecimento partilhado entre os
interlocutores: anáfora zero, pronome, SN indefinido e SN definido.
O funcionalismo, ainda que sujeito a críticas e reajustes, apontados no
interior do próprio modelo, tem demonstrado ser um parâmetro de análise
grandemente aceito nos estudos de Linguística contemporâneos.

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182

4 A Sociolinguística

Como atrás ficou dito, a proposição do paradigma saussureano foi


provocando, pouco a pouco, reações entre os linguistas. A radicalização da
abordagem imanente da língua, aprofundada na segunda metade do século XX
pelo gerativismo, não contou com a adesão de certos estudiosos que, cedo,
viram justamente na fala, colocada de lado pela proposta de Saussure, um dos
aspectos fundamentais da construção do fenômeno da linguagem. Essa reação
já ficou aqui consignada, quando, no item anterior, se esboçou o advento da
perspectiva funcionalista. O que se pretende agora é tratar de outro enfoque
dessa reação, aquele que reivindica, para os estudos da língua e da
linguagem, a valorização da fala e suas realizações dentro do contexto social.
Já Hugo Schuchardt, contemporâneo da revolução estruturalista, como
afirma Faraco (1991, p. 96), “[...] chamou a atenção para a imensa gama de
variedades de fala existente numa comunidade qualquer, variedades essas
condicionadas por fatores, como o sexo, a idade, o nível de escolaridade do
falante”, chegando mesmo a perceber a influência mútua dessas variedades.
Também, Meillet, discípulo de Saussure, indicou o caráter social da
língua, marcado pela cultura e pela civilização, como causa de sua
heterogeneidade geradora de mudanças. Quando afirma que “[...] todo fato
linguístico é manifestação de um fato de civilização” (1951, p. 168, apud
FARACO, op. cit. p. 97), está apontando para a necessidade do estudo em
conjunto dessas duas entidades, a língua e a sociedade.
Ainda que o entusiasmo gerado pelos estudos formalistas
predominasse no século XX, a perspectiva social continuou sendo apontada,
aqui e ali, por outros linguistas. Entre eles, destaca-se Mikhail Bakhtin, que
reivindica, para os estudos de linguagem, a realidade da comunicação social
cujo caráter fundamental reside na interação verbal. Roman Jakobson
acrescenta a essa perspectiva os aspectos funcionais da linguagem, ligados
aos fatores constitutivos do ato verbal, estando esses fatores representados
por qualquer um dos elementos do processo comunicativo, sejam o emissor, o
destinatário, a mensagem, o contexto, o canal, o código. Também nessa

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183

perspectiva, como se vê, afasta-se da consideração da língua como uma


entidade autônoma, desvinculada de suas condições de produção.
O linguista francês Émile Benveniste é outro importante nome a se
considerar no cenário dos estudos de linguagem que apontam para o caráter
social dessa entidade. Para ele, não se pode separar a língua, o indivíduo e a
sociedade, pois “[...] é dentro da e pela língua, que indivíduo e sociedade se
determinam mutuamente.” (Apud ALKMIM, 2003, p. 26). Além disso,
acrescenta ele uma dimensão privativa da linguagem, “[...] seu poder
coercitivo, que transforma um agregado de indivíduos em uma comunidade,
criando a possibilidade da produção e da subsistência coletiva.” (Idem, op.cit.
p.27). Como se vê, Benveniste também requer, para os estudos de linguagem,
sua inserção no conjunto dos fatos sociais, rejeitando, portanto, a abordagem
imanente praticada pelos formalistas.
A partir da década de 60, principalmente graças à atuação de William
Labov, que se debruçou sobre a realidade dos falares dos negros americanos,
os estudos da língua voltados para a perspectiva social se firmaram
definitivamente, dando lugar ao nascimento da Sociolinguística. É preciso, no
entanto, lembrar que as pesquisas de Labov foram possíveis a partir das que
já tinham sido empreendidas, no início do século XX, por outros linguistas
americanos, como F. Boas, Edward Sapir e Benjamin L. Whorf, que, como já
foi dito atrás (v. item 2.3), se interessaram em estudar as línguas indígenas
dos Estados Unidos. Tais estudos, como se pode deduzir, são inseparáveis de
outros compreendidos pelas ciências sociais, como os de Antropologia, de
Psicologia, o que determinou que a Sociolinguística se constituísse com um
caráter interdisciplinar.
Procurando construir o enquadre da constituição das pesquisas
sociolinguísticas, Alkmim (2003) cita ainda Del Hymes que,

em 1962 publica um artigo que propõe um novo domínio de pesquisa,


a Etnografia da Fala, rebatizada mais tarde como Etnografia da
Comunicação. De caráter interdisciplinar, buscando a contribuição de
áreas como a Etnologia, a Psicologia e a Linguística, o novo domínio
pretende descrever e interpretar o comportamento linguístico no
contexto cultural e, deslocando o enfoque tradicional sobre o código
linguístico, procura definir as funções da linguagem a partir da
observação da fala e das regras sociais próprias a cada comunidade.
(p. 30)
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184

Todo esse movimento de reflexão sobre a língua em direção a sua realidade


social, centrada no produto individual da fala, se adensou e passou a constituir
um campo específico da Linguística, opondo-se à abordagem formalista. Embora
sob esse guarda-chuva se abriguem vários diferentes enfoques das relações
entre língua e sociedade, a Sociolinguística propriamente dita pode ser
compreendida sob um ponto de vista específico, como se verá a seguir.

4.1 O que pretende a Sociolinguística


O termo Sociolinguística surgiu, finalmente, em 1964 como título do trabalho
apresentado por William Bright (Sociolinguistics) num congresso realizado na
Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). O congresso reuniu linguistas
interessados nos estudos das relações entre língua e sociedade. Para Bright
(apud ALKMIM, 2003, p. 28) a Sociolinguística “[...] deve demonstrar a
covariação sistemática das variações linguística e social. Ou seja, relacionar as
variações linguísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações
existentes na estrutura social desta mesma sociedade.”
Como se vê, o conceito de Bright para a Sociolinguística faz um recorte no
quadro geral dos estudos das relações entre língua e sociedade, fixando como
campo específico desse enfoque a chamada Sociolinguística Variacionista.
Corroborando esse ponto de vista Mollica (2003, p. 9) afirma: “A Sociolinguística
considera em especial como objeto de estudo exatamente a variação,
entendendo-a como um princípio geral e universal, passível de ser descrita e
analisada cientificamente.”
Ainda assim, são também consideradas áreas de interesse da
Sociolinguística o contato entre as línguas, o surgimento e a extinção delas, o
multilinguismo
Para a Sociolinguística, como afirma Camacho (2003, p. 50), “[...] o
exame da linguagem no contexto social é tão importante para a solução de
problemas próprios da teoria da linguagem, que a relação entre língua e
sociedade é encarada como indispensável, não mero recurso interdisciplinar.”
A Sociolinguística parte do princípio fundamental de que a língua é
heterogênea. Isso devido ao fato de que, em toda comunidade, os falantes

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185

empregam modos diferentes de se expressar, o que, longe de ser um


problema, se constitui uma qualidade específica do fenômeno linguístico que,
além de seu aspecto formal e estruturado, exibe essa outra faceta, a da
variação. Veja-se, por exemplo, no português do Brasil, o emprego de
construções sintáticas do tipo “você pode leváθ ele”, “fui no cinema”, “θtô
cansado”, “os aluno fez o dever”, ao lado das formas equivalentes “você pode
levá-lo”, “fui ao cinema”, “estou cansado”, “os alunos fizeram os deveres”.
Aqui vale considerar uma diferença importante que marca a oposição
entre a Sociolinguistica de um lado e, de outro, a Linguística estruturalista e a
gerativista. Para estas, as formas em variação não alteram o valor semântico
dos enunciados, sendo por isso consideradas simples variantes livres. Para a
Sociolinguística, ao contrário, essas diferenças são produtivas seja para a
identificação das motivações que as determinam, seja como marcadores da
identidade do falante, sua origem geográfica, sua posição social, seu nível de
escolaridade, etc.
Como exemplo do primeiro caso, Camacho (2003, p. 53) demonstra
que a preservação, pelo falante do português, da fricativa alveolar /s/ na
posição inicial do sintagma nominal, como em “os aluno esperto voltou”, tem
como função “[...] bloquear o avanço do processo fonológico de erosão das
consoantes em posição de sílaba átona final e preservar a função morfológica
de indicação de pluralidade do segmento sonoro /s/.”
Esse exemplo demonstra que, ao lado da diversidade, atua também, na
constituição das línguas, o impulso contrário que age no sentido de se manter
a unidade. Veja-se o que, sobre isso, afirma Mollica (2003, p. 12):

Todo sistema linguístico encontra-se permanentemente sujeito à


pressão de duas forças que atuam no sentido da variedade e da
unidade. Esse princípio opera por meio da interação e da tensão de
impulsos contrários, de tal modo que as línguas exibem inovações
mantendo-se, contudo, coesas: de um lado, o impulso à variação e
possivelmente à mudança; de outro, o impulso à convergência, base
para a noção de comunidade linguística, caracterizada por padrões
estruturais e estilísticos. Assim, as línguas apresentam as
contrapartes fixa e heterogênea de forma a exibir unidade em meio à
heterogeneidade. Note-se que isso só é possível porque a
dinamicidade linguística é inerente e motivada.

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186

Quanto ao reconhecimento da identidade do falante, discutiremos, mais


à frente, essas características.

4.2 Variáveis e variantes

Em Sociolinguística, chamam-se variantes as formas da língua que se


encontram em variação e são influenciadas por determinados fatores,
denominados variáveis. A regência verbal em português é um exemplo de
fenômeno variável, especificamente denominado variável dependente. Isso
porque a escolha de uma ou outra variante é influenciada por fatores de
natureza interna, isto é, estrutural – os de natureza fonomorfossintática, os
semânticos, os discursivos e os lexicais; também podem influenciar a variação
fatores de natureza externa, ou social – a etnia, o sexo, a idade, o nível de
renda e de escolarização, a profissão, etc. Esses grupos de fatores que
influenciam a variação se denominam variáveis independentes. Em português,
a relação entre o verbo e seu complemento pode ocorrer com ou sem a
presença de preposição, ou ainda com a presença de determinada preposição.
Ao lado da variante “assisti o filme”, existe “assisti ao filme”; ao lado da
variante “fui no cinema”, existe “fui ao cinema”;
A variante pode se manter estável no sistema linguístico durante um
período de tempo, curto ou longo, ou pode desaparecer, permanecendo
apenas uma das alternativas de uso. Nesse caso, temos o fenômeno de
mudança linguística. “Cabe à Sociolinguística investigar o grau de estabilidade
ou de mutabilidade da variação, diagnosticar as variáveis que têm efeito
positivo ou negativo sobre a emergência dos usos linguísticos alternativos e
prever seu comportamento regular e sistemático.” (MOLLICA, 2003, p. 11)
Como se vê, a Sociolinguística variacionista exige que se considere a
língua em uso. Fora do dinamismo discursivo, que envolve falante, ouvinte e
contexto, ela se torna mera abstração, impossibilitando análises que levem a
resultados capazes de explicar as relações entre ela e seus usos sociais.

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187

4.3 Causas da variação linguística

Como ficou dito acima, a variação é inerente às línguas humanas em


todos os níveis de sua estrutura interna. Quanto aos fatores externos
determinantes da variação, podem eles estar ligados ao emissor, ao receptor
ou às condições de produção. Camacho (2003, p. 58) assim apresenta a
variação ligada a esses fatores:

Em função do primeiro fator, pertencem as variantes que se podem


denominar dialetais em sentido amplo, variantes geográficas e
socioculturais. Em função do segundo e do terceiro fatores,
pertencem as variantes de registro ou estilísticas. Referem-se ao
grau de formalidade da situação e ao ajustamento do emissor à
identidade social do receptor.

Do ponto de vista das variantes dialetais, pode-se dizer que quanto


maior o grau de contato dos falantes, maior a identidade de seus atos verbais.
Quando essa identidade acontece entre membros da mesma comunidade,
polarizados por um centro de difusão cultural, política e econômica, o
resultado é a constituição de dialetos regionais ou geográficos. Nesse caso,
temos a chamada variação diatópica. Tal variação pode ser identificada no
nível fonético (veja-se a produção aberta das vogais /e/ e /o/ pretônicas do
falar nordestino em oposição à pronúncia fechada das mesmas vogais pelos
falantes do Sudeste e do Sul do Brasil); no nível morfossintático (a posposição
da partícula negativa “sei não”, na fala nordestina, em oposição à anteposição
“não sei”, na do falante do Sudeste); no nível semântico (“gerimum”, “a
mulher descansou”, da linguagem nordestina, em oposição a “abóbora”, “a
mulher teve filho”, do falar do Sudeste).
A outra dimensão dialetal, que resulta do intercâmbio verbal entre
falantes do mesmo nível socioeconômico e cultural, dá origem às variantes
sociais. São as chamadas variações diastráticas. É evidente a diversidade do
uso de expressões e construções sintáticas entre falantes de classes sociais
diferentes. No Brasil, a presença de [r] em lugar de [l] nos encontros
consonantais, como em “craro”, “brusa” é indicativo de falantes da classe
sócio-econômica baixa, sendo altamente estigmatizada, ainda que, como se

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sabe, se trate de uso legitimado pela língua culta do português do século XV.
Gomes e Souza (2003, p. 76)) atestam a evidência histórica dessa variante:

Há ainda evidências históricas de que os processos em questão


atuaram em outro momento, tendo como resultado da mudança
linguística a substituição de [l] por [r]. como em igreja (ecclesia) e
brando (blandus) (...). A alternância de [l] ~ [r], ou rotacismo, é
bastante antiga, atestada no Appendix Probi (flagelum non fragelum),
e, em determinado momento, deixou de ser um processo de
mudança e passou à condição de variação estável, conforme
registrado em textos do português arcaico e em gramáticos como
Fernão Lopes (1975,p.59-60[1536]) e Duarte Nunes de Leão (1983),
p. 64 [1576]). Sincronicamente, pode-se afirmar que a variação
ocorre em qualquer dialeto urbano do português brasileiro (cf. Gomes
[1986], Oliveira [1983])e é fortemente estigmatizada.

É que falantes do segmento socioeconomicamente baixo da sociedade


conservaram essa forma, ao contrário do que fizeram os da classe social
prestigiada, e o seu uso passou a ser considerado erro linguístico. Sobre isso,
assim se expressa Alkmim (2003, p. 41) : “A fala das classes altas mudou e a
de outros grupos sociais reteve esses usos: esse foi o ‘erro’.”
Desse exemplo se pode inferir o grau de dominação exercido através
da linguagem. A esse respeito, leia-se a reflexão de Camacho (2003, p. 39)

As formas em variação adquirem valores em função do poder e da


autoridade que os falantes detêm nas relações econômicas e
culturais. Assim, uma variante, como presença de marca de plural no
sintagma nominal, é conhecida como detentora de prestígio social
entre os membros da comunidade, sendo por isso chamada variante
padrão ou de prestígio. Já sua alternativa, a ausência de marca de
plural, é conhecida como variante não-padrão ou estigmatizada. É
óbvio que a distribuição de valores sociais se torna institucionalizada
pela elevação de uma variedade de prestígio à condição de língua
padrão que, como tal, passa a ser veiculada no sistema escolar, nos
meios de comunicação, na linguagem oficial do Estado etc. O
mecanismo é simples: como os detentores da variedade de prestígio
controlam o poder político das instituições, que emana das relações
econômicas e sociais, são também detentores da autoridade de
vincular a língua à variedade que empregam.

Essa é uma questão importante a ser considerada nos estudos


variacionistas: a legitimação de determinados usos da língua pelas classes

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dominantes que, por deterem o poder, passam a impor a variedade que


utilizam. Aliada a essa questão está a que é relativa às atitudes dos usuários
de determinado dialeto frente a formas que lhes soam estranhas. Também
esse é um problema que interessa diretamente à Sociolinguística e sobre ele
se refletirá no próximo item.
No que se refere aos fatores externos da variação linguística ligados ao
receptor ou às condições de produção discursiva, Camacho, como se viu
acima, apresenta-os como sendo variação de registro ou estilística. Ela está
ligada à necessidade de adequação do falante ao contexto imediato da
construção textual, à finalidade de seu ato verbal, ao grau de formalidade
exigido pela circunstância, ou mesmo ao grau de sua familiaridade com o
conteúdo da mensagem a ser construída. Daí o estilo formal e o informal.
Todo falante deve desenvolver certos recursos linguísticos, de tal modo que
possa deles lançar mão para a finalidade que tem em vista no processo
discursivo. Essa competência, no entanto, como se sabe, é vedada a grande
número de falantes que, como resultado, sofrem o efeito disso, sendo-lhes
negado o acesso a bens sociais.
É preciso fazer referência também às chamadas linguagens especiais,
como a gíria e os jargões científicos, ligadas a fatores como idade, sexo e
ocupação. Trata-se de recursos linguísticos criados por grupos restritos e
disponíveis apenas para a interação verbal entre seus pares, tendo em vista os
interesses específicos que os vinculam entre si.
Ao lado da diversidade linguística, entretanto, há a língua comum,
inventário lexical e sintático de que se utilizam todos os falantes da mesma
comunidade. Trata-se de um bem coletivo que, como já se viu, dispõe de
padrões estruturais e estilísticos, mecanismos de manutenção da unidade
linguística, dentro da diversidade de usos. São as chamadas forças coesivas
que operam em direção contrária à variação, garantindo a identificação da
comunidade linguística.
Deve-se ainda acrescentar que, seja no eixo horizontal ou diatópico,
seja no eixo vertical ou diastrático, seja nas diferenciações de registro, ou
estilísticas, no âmbito do próprio falante, a variação é sempre contínua, não
sendo possível determinar fronteiras nítidas entre os dialetos ou entre os

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registros. Um mesmo falante, por exemplo, pode lançar mão de diferentes


estilos, conforme a situação vivenciada. Na sala de aula, por exemplo, quando
o professor trata de questões teóricas da disciplina que leciona, o faz
geralmente utilizando um registro formal. Pequenas interrupções, sejam para
chamar a atenção de um aluno, sejam para descontrair a turma para depois
reconduzi-la à reflexão, são feitas, em geral, em estilo descontraído. Esse é o
que Bortoni-Ricardo (2004, p. 62) denomina contínuo de oralidade-
letramento. Ela acrescenta : “Como no caso do outro contínuo, não existem
fronteiras bem marcadas entre os eventos de oralidade e de letramento. As
fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições. Um evento de letramento,
como uma aula, pode ser permeado de minieventos de oralidade.”
Trabalhar essas questões na escola abre amplo caminho para o
desenvolvimento de habilidades e competências no uso da língua materna

4.4 A variedade “padrão”

Conforme já se disse, a heterogeneidade é inerente às línguas, estando


toda e qualquer comunidade linguística caracterizada pela existência de
diferentes dialetos e registros. Como consequência da organização das
sociedades em grupos de diversificadas condições sócio-econômicas, as
variedades dialetais, que são aquelas que se centram no emissor, acabam se
revestindo de certo caráter valorativo que reflete a hierarquia desses grupos
sociais. Isso significa que determinados dialetos são mais desvalorizados que
outros, segundo seus falantes pertençam a uma classe econômico-social mais
ou menos privilegiada. Daí a reflexão de Gnerre (1994, p. 6): “Uma variedade
linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale
como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas
e sociais.” Essa variedade própria dos falantes das classes dominantes é
alçada à posição de modelo de todas as outras, a chamada variedade padrão.
A Sociolinguística desmitifica a crença comumente difundida de que a língua
padrão é melhor, superior às demais. Sobre isso afirma Alkmim (2003, p. 40):

A variedade padrão de uma comunidade – também chamada norma


culta, ou língua culta – não é, como o senso comum faz crer, a língua
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por excelência, a língua original, posta em circulação, da qual os


falantes se apropriam como podem ou são capazes. O que chamamos
de variedade padrão é o resultado de uma atitude social ante a
língua, que se traduz, de um lado, pela seleção de um dos modos de
falar entre os vários existentes na comunidade e, de outro, pelo
estabelecimento de um conjunto de normas que definem o modo
‘correto’ de falar. Tradicionalmente, o melhor modo de falar e as
regras do bom uso correspondem aos hábitos linguísticos dos grupos
socialmente dominantes. Em nossas sociedades de tradição ocidental,
a variedade padrão, historicamente, coincide com a variedade falada
pelas classes sociais altas, de determinadas regiões geográficas. Ou
melhor, coincide com a variedade linguística falada pela nobreza, pela
burguesia, pelo habitante de núcleos urbanos, que são centros do
poder econômico e do sistema cultural predominante.

Em resumo, os julgamentos valorativos sobre as línguas são, na


verdade, julgamentos sobre seus falantes, o que leva à intolerância linguística,
ao preconceito, um dos comportamentos mais nefastos contra as classes
desprivilegiadas, já que sua condenação está sequer prevista na Constituição
brasileira e, possivelmente, na de nenhum país. É preciso ainda lembrar que é
nessa variedade que se veicula o saber oficial: nela são redigidas as leis,
distribuídas as informações pela grande imprensa; nela se estabelecem os
contatos no espaço das instituições oficiais; sem o acesso à língua padrão, ou
melhor dizendo, às variedades cultas, enfim, estão vedados os caminhos que
possibilitam o acesso ao poder. É também Gnerre que afirma (1994, p. 22 ):
“A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem
constitui o arame farpado mais poderosos para bloquear o acesso ao poder.” O
que resta a fazer senão adquirir a competência no uso dessa variedade?

4.5 O papel da escola no ensino das variedades cultas

A partir do pressuposto adotado pela Sociolinguística de que todas as


línguas são heterogêneas e que, portanto, todas as variedades são igualmente
suficientes para o falante se expressar, igualmente legítimas como meio de
interação entre os membros da mesma comunidade, a existência de
variedades consideradas melhores – as cultas, às vezes ainda denominadas de
padrão4 – demonstra que, por trás da questão científica, existe outra de

4
Sobre a denominação língua culta/língua padrão ver nota n. 1, no início deste trabalho.
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caráter ideológico. Numa sociedade em que o acesso aos bens culturais exige
o domínio de um só dialeto, o da classe dominante, a língua deixa de ser
instrumento de interação e ação sobre a realidade para ser também um
instrumento de exclusão social.
Para preparar os indivíduos para a vida em sociedade, elegeu-se a
escola como instituição oficial. Cabe a ela, no que se refere ao trabalho com a
língua materna, levar o aluno a desenvolver competências e habilidades para
utilizar adequadamente esse patrimônio comum de sua comunidade.
O que se esperaria é que a escola, adotando uma orientação de base
científica, fizesse o trabalho de levar seus alunos a se apropriarem de
competências linguísticas mais refinadas, sem se preocupar em substituir a
que já tivessem adquirido, qual seja a de se expressar no seu dialeto social.
Se se tratasse de alunos advindos de classes sociais favorecidas nas quais o
uso das variedades cultas é comum e com as quais, portanto, estão mais
familiarizados, caberia à escola apenas levá-los a trabalhar no
desenvolvimento dessa competência, ampliando-a no domínio da leitura e da
utilização dos gêneros textuais que circulam na sociedade, numa palavra,
tornando-os indivíduos letrados.
Se, ao contrário, esse dialeto fosse o das classes desfavorecidas
socioeconomicamente, seria necessário, obviamente, que à competência de
uso de sua variedade linguística fosse acrescentada a do domínio das
variedades cultas, para que o acesso aos bens culturais e sociais não lhes
fosse vedado. Juntamente com isso, o mesmo trabalho de promover-lhes o
letramento, tornando esses alunos familiarizados com os gêneros textuais
necessários a seu intercâmbio social nos vários domínios culturais.
Veja-se o que sobre isso orienta a sociolinguista Rosa Virgínia Mattos e
Silva (2004, p. 114-5):

Se o professor tiver uma formação sociolinguística adequada, o que


acontecerá com uma minoria, terá de trabalhar com a variação da
sintaxe nas suas aulas e saber, na maioria das vezes de maneira
intuitiva e tentativa, já que não há materiais prontos para isso,
definir o que será o uso linguístico socialmente aceitável para que

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seus alunos não fracassem no curso de sua futura vida profissional


em nossa sociedade.
Assim, entre as variantes sintáticas em convívio nas falas brasileiras,
o professor terá de distinguir, pelo menos, as estruturalmente mais
salientes e socialmente mais estigmatizadas, para, sem desprestigiar
as segundas, selecionar ambas, a fim de treinar o uso formal falado e
os usos escritos de seus alunos. Aí está a grande contribuição que a
sociolinguística sobre o português brasileiro poderá dar para uma
efetiva virada no ensino da língua portuguesa no Brasil.
Seria este talvez, um dever patriótico: o conhecimento e o
reconhecimento, na escola, da realidade do português brasileiro.

O professor estaria, nesse caso, praticando o modelo da diferença


verbal (CAMACHO, 2003, p.71) que vê nos dialetos sociais estigmatizados um
sistema linguístico simplesmente diferente, mas estruturalmente capaz de
oferecer os mesmos recursos expressivos utilizados nas variedades cultas. Não
estaria, nesse caso, substituindo competências, isto é, não estaria reprimindo
o uso da variedade trazida pelo aluno de seu ambiente familiar, legitimamente
utilizado, por ele respeitado, do qual frequentemente se orgulha. Ao contrário,
estaria se preocupando em levá-lo a conhecer não apenas a variedade padrão,
mas também outros registros, as variedades cultas que, como foi lembrado
acima, permitem-lhe adequar seu texto ao contexto imediato da produção
linguística, à finalidade de seu ato verbal, selecionando recursos de expressão
formal ou familiar. Desse modo, a escola estaria realizando sua importante
tarefa do ponto de vista político-social de promover as camadas
marginalizadas, abrindo-lhes o acesso aos bens simbólicos que a língua
veicula, de que nos fala Bourdieu (apud SOARES, 1986).
Mas a realidade da escola brasileira não tem sido essa. O modelo
geralmente adotado é ainda o da deficiência linguística, aquele que considera
insuficiente a variedade utilizada pelos alunos das classes sociais
desfavorecidas socioeconomicamente. As variedades cultas, nas suas
diferentes expressões de uso e modalidade, são impostas como as únicas
legítimas, as únicas corretas, e pior, transformadas num conjunto de regras e
classificações - a norma padrão - absolutamente inexpressivas para quem
pretende desenvolver sua competência textual. Os modelos oferecidos,
geralmente, são os literários de autores clássicos, que oferecem, muitas
vezes, vocábulos, expressões, sintaxe estranhos à língua contemporânea. E o
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professor sequer faz uma reflexão sobre variação linguística e mudança, de


modo a levar os leitores iniciantes a compreenderem melhor o que leem,
tendo em vista o caráter variável da língua.
Quanto àqueles alunos que já chegam na escola familiarizados com as
variedades cultas, mais próximas da norma padrão, sofrem menos, porque
cometem naturalmente menos “erros”. Mas também a eles se nega o
desenvolvimento da competência textual, porque ficam presos na
memorização estéril de regras e classificações. Também eles, em geral, saem
da escola incapazes de transitar pelos diversos gêneros textuais de que
deverão lançar mão futuramente. Saem alfabetizados, mas não letrados.
Como ficou dito acima, à escola cabe o importante papel político de
formar cidadãos competentes no uso da língua como um bem simbólico que
ela é. A importância da formação adequada do professor de português, para
isso, é inquestionável. É lamentável que a Sociolinguística seja um enfoque
praticamente ausente dos cursos de Pedagogia, justamente aqueles que
formam o professor do primeiro segmento do Ensino Fundamental. Mesmo nos
cursos de Letras há que se ampliar o estudo sobre as variedades linguísticas,
para que se possa justificar a mudança de orientação didática no trabalho
escolar com a língua materna.

5 Considerações finais

O levantamento, aqui empreendido, de parte das correntes linguísticas


até hoje propostas, através das quais se tem buscado compreender o
fenômeno da linguagem, levou às conclusões enumeradas a seguir.
a) Compreender o que é a língua é preocupação de todos os tempos e, mais
que isso, a necessidade de conhecê-la não é privativa de professores e
filósofos. Trata-se de um fenômeno altamente instigante cuja
compreensão está ligada ao desenvolvimento de pesquisas em todas as
ciências humanas.
b) Conhecer a história da Linguística assegura importante base para a
reflexão sobre as novas propostas de abordagem teórica, porque
possibilita um julgamento mais seguro do que realmente constitui

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novidade e do que é simples retomada sobre nova roupagem. Essa


competência seletiva é indispensável para escolhas teóricas que embasem
qualquer pesquisa sobre a língua.
c) Debruçar-se sobre o processo de construção de teorias sobre a linguagem
é muitíssimo enriquecedor: permite ao estudioso aproveitar as
experiências já vividas, de modo a encurtar caminhos na busca de novas
respostas. Permite evitar os mesmos erros já vividos, ensina estratégias
de como construir uma teoria de resultados úteis.
d) O estudo de Teorias Linguísticas – Tradições, Rupturas e Fronteiras
permite abrir horizonte largo na compreensão do fenômeno da linguagem.
Além disso, exigindo contato com ampla bibliografia, aproxima o estudioso
das fontes primárias, em geral reinterpretadas em obras de reflexão
posterior.
e) Esse estudo é, portanto, necessário e, por isso, recomendável para todo
aluno de pós-graduação em Letras.

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Linguagem & Linguística

Teorias linguísticas posteriores a Fer-


dinand de Saussure

Nem só de Saussure vive a linguística. O estudante que começa aprender


linguística e tem que aprender as dicotomias de Saussure (como langue e parole,
sincronia e diacronia, significante e significado) muitas vezes fica com a impressão
de que as posições de Saussure correspondem às posições adotadas por toda a
linguística e por todos os linguistas.

Mas isso não é verdade. A importância de Saussure foi delimitar de modo muito
mais claro várias possibilidades diferentes nos estudos da linguagem. Ele
defendeu certas abordagens ao invés de outras. Muitos linguistas adotaram
posições semelhantes às dele, mas, com o tempo, adaptaram tais posições,
modificaram e, eventualmente, até se opuseram.  A importância de Saussure é
que, muitas vezes, até teorias muito diferentes das ideias dele precisaram se
posicionar com relação aos conceitos que ele desenvolveu.

Aqui, eu apresento de modo bastante resumido as características principais de


quatro teorias que surgiram nos estudos linguísticos depois de Saussure.

Se preferir, você pode ver o vídeo que eu fiz a esse respeito:


Depois de Saussure: estruturalismo, gerativismo, socioling…
socioling…

ESTRUTURALISMO(S)

Abrange várias teorias ou grupos teóricos diferentes, com conceitos e métodos


ligeiramente distintos, mas que costumavam concordar em alguns pressupostos
gerais muito semelhantes às ideias de Saussure:

(i) língua como estrutura, entendida como rede de relações;

(ii) distinção entre sincronia e diacronia e preferência pela sincronia;

(iii) distinção entre língua (estrutura) e fala;

(iv) ênfase nos aspectos internos à língua e não na história social e cultural
externa;

(v) ênfase nas peculiaridades de cada sistema linguístico e não em universais


linguísticos. Foco maior na fonologia e na morfologia; em menor escala, na
semântica lexical.

[Sobre o conceito de estrutura no estruturalismo, confira aqui: youtube | odysee]

Algumas subdivisões e alguns nomes relevantes:


– Roman Jakobson, Nikolai Trubetzkoy e Vilém Mathesius (Círculo Linguístico de
Praga);

– Leonard Bloomfield e Edward Sapir (estruturalismo americano);

– Antoine Meillet, Émile Benveniste;

– Joaquim Mattoso Câmara Jr (considerado primeiro linguista brasileiro,

associado ao estruturalismo americano);

– Louis Hjelmslev (Círculo Linguístico de Copenhague).

Teorias surgidas a partir dos anos 1960 em reação e substituição ao


estruturalismo…

GERATIVISMO

Desenvolvida por Noam Chomsky, essa teoria analisa a língua como objeto
mental, como uma competência linguística ou gramática internalizada, que
explica a criatividade do falante: capacidade de produzir e interpretar todas as
frases da sua língua, mesmo as que nunca ouviu falar.

Opõe-se à concepção de língua como comportamento externo (adotada pela


vertente americana do estruturalismo). Assume também que a linguagem tem
base genética, com todas as línguas sendo fruto de uma Gramática Universal
inata.

À primeira vista, o conceito gerativista de “gramática internalizada” se


assemelha ao conceito de langue/língua de Saussure, por ser um sistema de
possibilidades abstratas no cérebro do falante, mas o gerativismo enfatiza muito
mais o aspecto individual dessa realidade. É o conhecimento da língua que o
falante internalizou e faz parte da sua psique. Não é uma realidade supra-
individual,  social, coletiva.
O foco do gerativismo está na comparação entre as línguas e universais
linguísticos. Foco na estrutura sintática ou morfossintática.

[Sobre a diferença entre Gramática Universal e gramática internalizada, confira


aqui: youtube | odysee]

SOCIOLINGUÍSTICA

Associada principalmente a William Labov, foca na tentativa de compreender o


mecanismo da mudança linguística: não apenas em apontar que mudanças
aconteceram, mas como elas ocorrem. Para isso, estuda a variação sincrônica,
buscando os fatores estruturais e principalmente sociais que influenciam as
escolhas linguísticas do falante.

Analisa a mudança através de dados sincrônicos, negando a separação estrita


entre sincronia e diacronia. Foco no vernáculo, a fala com menor grau de
monitoramento.

Assume que o sistema linguístico é intrinsecamente heterogêneo. Outros nomes:


sociolinguística variacionista, sociolinguística quantitativa, teoria da variação.
Foco maior na variação fonética e, em menor grau, na variação sintática.

[Sobre o conceito de vernáculo, confira aqui.]

FUNCIONALISMO

O Círculo Linguístico de Praga, do estruturalismo europeu, costumava ser chamado


de “estruturalismo funcional” ou “funcionalismo”, mas hoje o termo se refere a
teorias não-estruturalistas, que rejeitam a separação entre sincronia e diacronia,
bem como entre língua e fala.

Tem o foco no uso da língua como meio de interação social, descrevendo uma
competência comunicativa. A fala é que criaria a estrutura linguística (se é que
existe estrutura linguística).

Adota uma abordagem pancrônica, assumindo que fatos sincrônicos podem ter
explicações diacrônicas. Busca explicar universais linguísticos como fruto de
propriedades não linguísticas, como universais comunicativos. Foco nas
motivações pragmáticas para a morfossintaxe.

[Sobre a concepção de mudança linguística no funcionalismo, confira aqui.]

OUTRAS TEORIAS:

(i) linguística textual (“texto” no sentido de sequência linguística maior do que a


frase, seja oral ou escrita).

(ii) linguística cognitiva (ou semântica cognitiva).

(iii) semântica formal.

(iv) teoria da otimalidade (foco na fonologia).

(v) análise do discurso (embora possa ser considerada como uma área diferente
da linguística; influência da linguística, da psicanálise e da teoria marxista).

Etc.

A Linguagem / 17 de outubro de 2021 / Blog / chomsky, estruturalismo, funcionalismo,


gerativismo, labov, Saussure, sociolinguística

Linguagem & Linguística /


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Letras / Português
Lingüística Geral

1.1 Precursores (idade clássica)


Saiba mais
A Lingüística, ciência da linguagem, é uma disciplina recente: foi
Século XX: Geralmente é apon-
inaugurada no início do século XX. No entanto, o interesse das pes- tado como a instauração da Lin-
soas pela linguagem é bastante antigo, pode-se dizer que é anterior à güística – ciência da linguagem
invenção da escrita. Assim como em todas as áreas do conhecimento, – a publicação do livro Curso de
Lingüística Geral, de Ferdinand
antes de se constituir como ciência, houve, nos estudos da linguagem,
de Saussure, em 1916.
a abordagem da língua com finalidades práticas.
Os hindus, por motivos religiosos, foram levados a estudar sua lín-
gua, o Sânscrito. Para eles, o que importava é que os textos sagrados Glossário
não fossem alterados no momento de serem cantados ou recitados
Sânscrito: língua sagrada dos
durante os rituais. Em função disso, dedicaram-se ao estudo do valor e hindus.
do emprego das palavras e fizeram descrições fonéticas e gramaticais
modelares de sua língua. A descrição do Sânscrito foi encontrada no
século XIX e contribuiu para os estudos lingüísticos. Glossário
Os gregos (como Platão e Aristóteles) realizaram profundas re- Fonéticas: ramo da Lingüística
flexões sobre a origem da linguagem. Os seus estudos eram baseados que estuda os sons da língua.
na filosofia, cujo problema essencial era elaborar uma teoria do co-
nhecimento que definisse as relações entre a noção e a palavra que a
designa. Em outras palavras, os pensadores estendiam-se em longas Saiba mais
discussões para saber se as palavras imitam as coisas ou se os nomes Gregos: Para os gregos, a palavra
são dados por pura convenção. Aliás, podemos dizer que este questio- ‘bárbaro’ dizia respeito a toda
namento acompanha o homem na sua história. pessoa que falasse uma língua
estrangeira. O que não era gre-
go ou aquele que não falava o
personalidade grego. Lembre-se que os gre-
PLATÃO (428/27 a.C. — 347 a.C.) foi um filósofo grego. gos se consideravam superiores
Discípulo de Sócrates, fundador da Academia e mestre intelectual e culturalmente, e
de Aristóteles. Acredita-se que seu nome verdadeiro essa superioridade era expressa
tenha sido Aristócles; Platão era um apelido que fazia através do uso da língua grega.
referência à sua caracteristica física, tal como o porte Quer dizer que, para eles, quem
atlético. Sua filosofia é de grande importância e influ- não falava grego era ‘inferior’, ou
ência. Platão ocupou-se com vários temas, entre eles seja, era bárbaro.
ética, política, metafísica e teoria do conhecimento.
Platão desenvolveu a noção de que o homem está em contato permanente
com dois tipos de realidade: a inteligível e a sensível. A primeira, é a realida-
de, mais concreta, permanente, imutável, igual a si mesma. A segunda são
todas as coisas que nos afetam os sentidos, são realidades dependentes,
mutáveis e são imagens das realidades inteligíveis.Tal concepção de Platão
também é conhecida por Teoria das Idéias ou Teoria das Formas.

8
Letras / Português
Lingüística Geral

personalidade
ARISTÓTELES (384–322 a.C.) foi um filósofo grego
nascido em Estagira, um dos maiores pensadores de
todos os tempos e considerado o criador do pensa-
mento lógico. Suas reflexões filosóficas — por um lado
originais e por outro reformuladoras da tradição grega
— acabaram por configurar um modo de pensar que
se estenderia por séculos. Prestou inigualáveis contri-
buições para o pensamento humano, destacando-se:
ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia,
biologia, história natural e outras áreas de conhecimento humano. É consi-
derado por muitos o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental.
Por ter estudado uma variada gama de assuntos, e por ter sido também um
discípulo que em muitos sentidos ultrapassou seu mestre, Platão, é conhe-
cido também como o Filósofo.

Saiba mais
Chuva: Você já leu o livro Mar-
celo, marmelo, martelo, de Ruth
Rocha (Salamandra, 1976)? O
personagem da história, Mar-
celo, fica muito cismado com
esse problema e resolve que vai
chamar as coisas do seu próprio
modo. Assim, leite entorna ‘suco
de vaca’. Mas sua vida começa
a ficar difícil quando ele inven-
ta palavras novas para todas as
coisas e ninguém mais entende
o que ele fala! Você já pensou
Figura A.1. Você já parou para pensar de onde vêm o nome das coisas? como o personagem da histó-
ria? Se você ainda não leu esta
história, vale a pena conhecê-la.
Para refletir:
Por que computador se chama computador?
Por que temos de chamar a água que cai do céu de chuva?

Saiba mais
Atividade Idade Média: Uma excelente re-
ferência para compreender a vi-
são de mundo predominante na
Os latinos esforçaram-se em adaptar o estudo de sua língua (latim) Idade Média é o filme O nome
às regras formuladas pelos teóricos gregos. Cumpre destacar o trabalho da Rosa, adaptação da obra ho-
de Varrão, que fez grande esforço para definir a gramática ao mesmo mônima de Humberto Eco.

tempo como ciência e como arte.


Na Idade Média, a reflexão sobre linguagem teve nos Modistae

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Letras / Português
Lingüística Geral

uma de suas manifestações relevantes. Partindo-se da autonomia da


Glossário
gramática em relação à lógica, procurou-se construir uma teoria geral
da linguagem. Modistae: Pequeno grupo de
eruditos em atividade na uni-
Na história da constituição da Lingüística há dois momentos impor- versidade de Paris entre 1250 e
tantes: o século XVII, que é o século das gramáticas gerais, e o século 1320. Entre os principais modis-
XIX, com suas gramáticas comparadas. tas estão Martinho de Dácia, Mi-
guel de Marbais, Tomás de Erfurt
e Sigério de Courtaai. A doutrina
1.2 O século XVII modista se baseava na noção
dos modi siginificandi - modos
Os estudos da linguagem do século XVII são fortemente marcados
de significação – que fornecia
pelo racionalismo. Naquele período, os estudiosos buscavam estudar um arcabouço para descrever
a linguagem como forma de representação do pensamento. A partir o processo de verbalização. Na
dessa abordagem, procuravam mostrar que as línguas obedeciam a concepção modista, o objeto do
mundo real, externo ao entendi-
princípios racionais (lógicos).
mento humano, podia ser apre-
Para aqueles teóricos, esses princípios regeriam todas as línguas. endido como um conceito pelo
A partir disso, definiam a linguagem em geral e tratavam as diferentes entendimento, e o conceito po-
línguas como particularidades dela. Com isso, produziram as chamadas dia ser dado a conhecer por um
signo falado, tornando-se, dessa
gramáticas gerais e racionais.
maneira, um significado.
Sob esse olhar, passavam a exigir do falante clareza e precisão no
uso da linguagem. Para eles, idéias claras e distintas deveriam ser ex-
pressas de forma precisa e transparente. Saiba mais
O objetivo (o alvo) desses estudiosos era chegar/alcançar a língua
Contexto Histórico do Século
ideal – universal, lógica, sem equívocos, sem ambigüidades – ou seja XVII: período áureo do estado
uma espécie de ‘máquina’ que pudesse separar automaticamente o absolutista. Vários intelectuais
que é certo/válido do que é errado/inválido. passaram a anunciar um mun-
do contemporâneo, um novo
O melhor exemplo dessa abordagem da linguagem é a Gramática
Estado, novas instituições, no-
de Port Royal, dos franceses Lancelot e Arnaud (1960). vos valores, condizentes com o
progresso econômico, científico
1.3 O século XIX e cultural em andamento. Des-
cates defendeu a universalidade
Os estudos lingüísticos do século XIX vão apresentar interesses da razão como único caminho
distintos dos realizados no século XVII. Em função do contexto histó- para o conhecimento; Newton,
com o princípio da gravidade
rico, político e social, há uma mudança de perspectiva: não é mais a
universal, contribuiu para re-
precisão,e sim a mudança, ou seja, o fato de que as línguas se transfor- forçar o fundamento de que o
mam com o tempo. O ideal que vigora nesse período.. universo é governado por leis
O século XIX é o momento dos estudos históricos em que o objeti- físicas e não submetido à inter-
ferência de cunho divino. Des-
vo é mostrar que a mudança das línguas não depende da vontade dos
cates e Newton destacam-se
homens, mas segue uma necessidade da própria língua. Passa a ser como precursores do Iluminis-
importante destacar que as mudanças ocorridas nas línguas não são mo. É neste século que surge
aleatórias, mas apresentam regularidades. a música Barroca. Retomam-se
as tragédias gregas, que passa-
Como exemplos de regularidades nas mudanças ocorridas nas lín-
ram a ser cantadas em Óperas
guas, temos os seguintes exemplos: (Itália); surgiram as orquestras
de Câmara, com destaque para
Antônio Vivaldi, Johan Sebastian
Bach.

10
Letras / Português
Lingüística Geral

você sabia
Máquina: O homem desde mui-
to tempo sonha com a possibili-
dade de ter o controle do mun-
do através das máquinas. Esse
ideal, na atualidade, é a língua
metálica, dos computadores,
universal e sem ‘falhas’. Os prin-
cípios que regem a linguagem
dos computadores são os mes-
Figura A. 2. O quadro apresenta exemplos de regularidades ocorridas na pas- mos defendidos pelos estudio-
sagem do latim para o português e para o espanhol. sos do século XVII.

O principal representante desses estudos é o alemão Franz Bopp.


Saiba mais
A importância desse autor é tamanha que se considera como data de
nascimento da Lingüística Histórica a publicação da sua obra (1816) Gramática de Port Royal : Em
1660, surgiu a célebre Gramáti-
sobre o sistema da conjugação da língua sânscrita, que é comparado
ca de Port-Royal. O objetivo era
ao grego, ao latim, ao persa e ao germânico. demonstrar que a estrutura da
No século XIX, é descoberta a semelhança entre a maior parte das linguagem era um produto da
línguas européias e o sânscrito. A esse conjunto de línguas se chamou razão, e que as diferentes línguas
dos homens eram somente va-
línguas indo-européias. Nessa perspectiva, as semelhanças entre as lín-
riedades de um sistema lógico
guas indicam que há parentesco entre elas, de modo que passam a e racional mais geral. Arnauld,
ser consideradas da mesma família e descendentes de uma mesma discípulo de Descartes, era um
língua de origem: o indo-europeu. lógico, e ia da causa ao efeito,
isto é, do raciocínio à língua. A
O objetivo desses estudos não é mais alcançar a língua-ideal (lín-
Gramática de Port-Royal queria
gua idealizada no século XVII, com características de clareza, objetivi- explicar os fatos, demonstrando
dade, sem ambigüidades, guiada pela lógica), mas sim a língua-mãe que a linguagem, imagem do
(língua de origem ou primeira língua. Representava a origem de todas pensamento, se fundamenta na
razão. Eles tentaram construir
as línguas européias. Com isso, não se busca a perfeição, busca-se a
um esquema da linguagem,
origem das línguas. com base na lógica, e em tal es-
Os estudos lingüísticos do século XVII e do século XIX apresen- quema deveriam caber todas as
tam características diferenciadas que especificam a perspectiva de cada manifestações da língua real.

época. O século XVII, com a abordagem lógica/racional e o século XIX,


com a abordagem histórica. Essas duas perspectivas refletem duas ten-
conteudo relacionado
dências que se mantêm até hoje nos estudos lingüísticos: o formalismo
e o sociologismo. Veja o quadro a seguir: Sânscrita: Retomar os estudos
dos hindus apresentados na su-
bunidade Precursores.

Saiba mais
Descendentes: Os termos famí-
lia, parentesco, língua mãe são
utilizados nos estudos lingüísti-
cos do século XIX por influência
das ciências naturais.

11
Letras / Português
Lingüística Geral

Saiba mais
Contexto Histórico do Sécu-
lo XIX: iniciou-se em meio às
guerras napoleônica, sofrendo
influência da Revolução France-
sa e Industrial, que espalhavam
antagonismo entre processo
tecnológico e condições sociais.
Figura A.3. Neste quadro, temos as características das duas tendências dos São destaque, ainda, neste perí-
estudos lingüísticos que iniciaram no século XVII e XIX e que permanecem até odo, a Guerra dos Cem Anos e
os estudos atuais. A doutrina Monroe. Na Europa,
a população, neste período, sal-
tou dos 190 milhões para 423
milhões. Com relação à cultura,
merecem destaque os compo-
sitores Giuseppe Verdi, Frédé-
ric Chopin, Bedrich Smetana e
Richard Wagner. Na Literatura,
predominava o Romantismo,
suplantado mais tarde pelo Re-
alismo. Aproximadamente em
1836, o Romantismo afetou a
Literatura Brasileira e nesse pe-
ríodo, pela primeira vez, a lite-
ratura nacional tomou formas
próprias, adquirindo caracterís-
ticas diferentes da literatura eu-
ropéia. O livro Suspiros poéticos
e saudades, de Gonçalves de
Magalhães, publicado em 1836,
é tido como marco fundador do
Romantismo no Brasil.

Glossário
Indu-europeu: língua apontada
pelos estudiosos do século XIX
como a língua de origem das
línguas européias. O indu-euro-
peu não é uma língua da qual
se tenham documentos. Na ver-
dade, o indu-europeu é uma re-
construção teórica, um conceito.
Esta proposta, atualmente, em
função de descobertas arqueo-
lógicas sobre as línguas, não é
mais aceita.

12
Letras / Português
Lingüística Geral

Unidade B

2. A lingüística: a ciência da linguagem

Objetivos:
•• conhecer os principais conceitos da lingüística;

•• conhecer os ramos que constituem a lingüística;

•• relacionar a Lingüística às demais ciências.

Introdução
Nesta unidade, primeiramente serão abordados conceitos básicos
para o entendimento da Lingüística, como a noção de língua e lingua-
gem. Em segundo momento, trataremos das diferentes áreas ou ramos
que constituem a Lingüística. Por fim, discutiremos a relação que a Lin-
güística – ciência da linguagem – estabelece com as demais ciências.

13
Letras / Português
Lingüística Geral

2.1 Conceitos básicos


O que é linguagem?
O conceito de linguagem diz respeito a todas as formas utilizadas
pelos homens e pelos animais para estabelecerem comunicação. Pode-
mos citar como exemplos de linguagem: a programação dos computa-
dores; os sinais entre os animais; os sinais gestuais, as imagens, cores,
símbolos, as línguas, etc.
Dentre todas essas possibilidades, à Lingüística interessa estudar espe-
cificamente as línguas (naturais), consideradas como a principal forma
de comunicação humana.

Figura B.1. Nestas imagens, temos exemplos de diferentes tipos de lingua-


gem.

O que é língua?
A língua é o objeto central de estudo das ciências lingüísticas, mas
o termo recobre vários conceitos bastante diferentes.
Você deve ter em mente que o conceito de língua é fundamental
para compreendermos a postura teórica adotada pelas diferentes cor-
rentes dos estudos lingüísticos: estrutural, gerativa, enunciativa, prag-
mática, discursiva, etc. Mais tarde trataremos de cada uma dessas cor-
rentes.
É claro que, como há abordagens teóricas distintas, temos concep-
ções de língua diferentes. Nos estudos lingüísticos não podemos dizer

14
Letras / Português
Lingüística Geral

que há apenas um conceito de língua, mas sim diferentes conceitos


construídos a partir dos pressupostos teóricos que os fundamentam.
Nesse sentido, dentre todos os conceitos de língua que constituem
o cenário dos estudos lingüísticos, não podemos indicar este ou aquele
como o mais correto; a postura adequada é apresentar as diferenças te-
óricas que os constituíram. Não devemos esquecer que cada um deles
tem o seu espaço teórico de circulação, isto é, um conceito será o mais
adequado para determinada teoria e não para outra.

O que é Lingüística?
Lingüística é o estudo científico da linguagem. Essa ciência busca
explicar o funcionamento da linguagem e, especificamente, a organiza-
ção das línguas em particular.
Em função do objetivo da análise lingüística proposta, teremos vá-
rias áreas de interesse, que constituem os chamados ramos da Lingü-
ística.

2.2 Ramos da lingüística


Fonética
A fonética é o ramo da Lingüística que estuda os sons da fala, pre-
ocupando-se com os mecanismos de produção e recepção. A fonética
é a ciência que apresenta os métodos para descrição, classificação e
transcrição dos sons da fala, principalmente aqueles sons utilizados na
linguagem humana. As principais áreas de interesse da fonética são:

-- Fonética articulatória: é o estudo da produção da fala do ponto de


vista fisiológico e articulatório.

-- Fonética auditiva: é o estudo da percepção da fala.

-- Fonética acústica: é o estudo das propriedades físicas dos sons da fala


a partir de sua transmissão do falante ao ouvinte.

-- Fonética instrumental: é o estudo das propriedades físicas da fala,


levando em consideração o apoio de instrumentos laboratoriais.

Fonologia
A fonologia também se preocupa com os sons da língua, mas do
ponto de vista de sua função. O objeto de estudo da fonologia é o fone-
ma – som significativo da língua, isto é, aquele som que, ao ser trocado
por outro fonema, gera uma nova palavra.
Podemos exemplificar o fonema através da seguinte forma: na
palavra PATO, se trocarmos o primeiro som por B, vamos gerar outro
vocábulo da língua portuguesa: BATO. Isso ocorre porque temos dois

15
Letras / Português
Lingüística Geral

fonemas em questão: o fonema P e o fonema B.


Em relação ao último som das palavras apresentadas, pode ocorrer
variação entre a realização de O (pato e bato) e de U (patu e batu).
Neste caso, estes sons não são considerados fonemas, mas apenas
variantes, pois a troca de um pelo outro não gera uma nova palavra.

Morfologia
Morfologia é o ramo lingüístico que estuda a estrutura da palavra.
As palavras têm tipicamente uma estrutura interna e, em particular, são
constituídas por unidades menores chamadas morfemas. Por exemplo,
na palavra casinhas existem três morfemas, veja no quadro a seguir:

Figura B.2. No exemplo, os morfemas da palavra ‘casinha’ são destacados.

Sintaxe
A sintaxe é o ramo lingüístico que estuda a estrutura da sentença. É
ela que vai explicar que na língua portuguesa pode-se usar uma cons-
trução de frase do tipo:

Figura B.3. No exemplo, temos a estrutura sintática básica da língua portu-


guesa

Semântica
A semântica é o ramo lingüístico que se preocupa com o significa-
do. É na semântica, por exemplo, que estudamos os vários significados
da palavra ‘manga’, que podem ser utilizados em contextos diferentes:
manga da camisa, manga (fruta) e manga (mangueira de água).

16
Letras / Português
Lingüística Geral

Figura B.4. Podemos observar objetos distintos que são denominados pela
mesma palavra

Pragmática
A pragmática é o ramo lingüístico que estuda o uso da linguagem
ou a linguagem em uso. Em outras palavras, podemos dizer que a prag-
mática volta-se para o que se faz com a linguagem, em que circunstân-
cias e com que finalidades.
Nessa abordagem, analisamos que, ao dizer ‘Prometo ir ao cinema
amanhã’, não só transmito uma informação ao meu interlocutor, como
também faço uma promessa.

Psicolingüística
A psicolingüística é o ramo lingüístico que tem como um dos ob-
jetivos analisar o processo de aquisição da linguagem – oralidade e
escrita, língua materna e língua estrangeira. Interessa-se também pelos
processos mentais relacionados com a produção da linguagem, estu-
dando as relações entre essa e o pensamento.

Sociolingüística
A sociolingüística é o ramo da lingüística que estuda a relação entre
linguagem e sociedade. A sociolingüística mostra os problemas da va-

17
Letras / Português
Lingüística Geral

riação lingüística e da norma culta. Nesse ramo, não basta reconhecer


as variações históricas da língua, pois as geográficas, as sociais e as
estilísticas devem ser levadas em conta também, e, com isso, tratar o
preconceito lingüístico gerado a partir dessas mudanças.
Um exemplo de preconceito lingüístico é a forma como é tratada a
realização do chamado ‘R’ caipira. Para a sociolingüística, falar o ‘R’ cai-
pira não mostra nada de bom ou de ruim do ponto de vista da estrutura
fonológica da língua. Nesse sentido, fica claro que o preconceito se dá
em relação ao falante (caipira) e não em relação à forma lingüística.

Figura B.5. Na fala do Chico Bento, temos vários processos lingüísticos que
caracterizam a chamada variedade caipira (© Maurício de Souza Produções
Ltda.)

2.3 A lingüística e as outras ciências


Como nós já vimos, a Lingüística é a ciência que estuda a lingua-
gem em suas mais variadas formas de expressão. Nesse sentido, ela
está ligada a todas as disciplinas e/ou ciências que tenham relação
direta ou indireta com o ser humano. Como exemplo, podemos citar a
Psicologia, a Sociologia, a Etnografia, a Fonoaudiologia, entre outras.

Atividade

18
Letras / Português
Lingüística Geral

Estruturalismo europeu
O início do estruturalismo europeu é apontado a partir da publi-
cação do Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure, em
1916.
O termo estruturalismo, no sentido europeu, refere-se à visão de
que existe uma estrutura relacional abstrata que é subjacente e deve
ser distinguida dos enunciados reais, isto é, um sistema que subjaz
ao comportamento real – e dela é o objeto primordial de estudo do
lingüista.
Como afirmação dessa definição, podemos tomar como exemplo Saiba mais
a definição do objeto da Lingüística para Saussure, como vimos ante-
Romam Jakobson:
riormente: para ele, o que interessa à Lingüística é a língua – sistema http:/pt.wikipedia.org/wik/
abstrato que subjaz a toda e qualquer manifestação real, que é a fala. Estruturalismo
Podemos destacar, dentre as mais importantes escolas de lingüís- Neste link, você terá informa-
ções sobre os principais repre-
tica estrutural da Europa surgidas na primeira metade do século XX, a
sentantes do estruralismo euro-
Escola de Praga, cujos principais representantes são os russos Nikolai peu.
Trubetzkoy (1890-1938) e Romam Jakobson (1896-1982 ; e a Escola
de Copenhague, cujo principal nome é Louis Hjelmslev (1899-1965).
Saiba mais
Estruturalismo americano Louis Hjelmslev:
O estruturalismo americano e o estruturalismo europeu têm muitas htmp.ricondelvago.com./
el-signo-linguistico.html-30k
características comuns. Uma das principais características que aproxi-
Neste link, você terá informa-
mam estas duas vertentes do estruturalismo é a necessidade de tratar ções sobre Louis Hjelmslev, im-
cada língua como um sistema mais ou menos coerente e integrado. portante nome do estruturalis-
Assim, os lingüistas americanos e europeus daquele período enfatiza- mo europeu.
vam, em alguns casos, com exagero, a impossibilidade de comparar
estruturas de línguas diferentes.
No estruturalismo americano, o principal nome é o de Franz Boas
(1858-1942), que desenvolveu o seu trabalho sem a preocupação de
construir uma teoria geral da estrutura da linguagem humana. A sua
preocupação foi a prescrição de princípios metodológicos para a análi-
se de línguas particulares, pouco familiares, no caso, línguas indígenas
americanas.
Além de Franz Boas, temos como destaque do estruturalismo ame-
ricano os estudiosos Edward Sapir (1884-1936), Leonard Bloomfield
(1887-1949) e Benjamin Lee Whorf (1897-1941).

Atividade

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Letras / Português
Lingüística Geral

Unidade D

4. As correntes formalistas

Objetivos:
•• conhecer a principal corrente formalista da Lingüística;

•• conhecer os princípios da teoria gerativa;

•• estudar os principais conceitos da teoria gerativa.

Introdução
Nesta unidade trataremos da abordagem formalista – perspectiva
teórica e principais conceitos - dos estudos lingüísticos a partir da obra Saiba mais
de Noam Chomsky . Nessa perspectiva, trataremos da teoria gerati- Noam Chomsky:
va, principal corrente formalista dos estudos lingüísticos, que tem em http://pt.wikipedia.org/wiki/
Chomsky
Chomsky o seu principal nome e um dos principais lingüistas do nosso Neste link, você obterá mais in-
século. Para tratar dos principais conceitos gerativistas, vamos tomar formações sobre a biografia, o
por base o estudo da aquisição da linguagem, no qual temos uma ex- trabalho, a teoria chomskiana, a
plicação para o desenvolvimento da linguagem nesta teoria. atuação política e demais dados
sobre Noam Chomsky.

personalidade
Noam Chomsky é um ativista político com atuação
bastante significativa no combate à política externa
americana. Em função desse papel político, Chomsky
foi um dos principais nomes do Fórum Social Mundial
realizado em Porto Alegre no ano de 2003.

38
Letras / Português
Lingüística Geral

LEITURA OBRIGATÓRIA:
conteudo relacionado
-- CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente. Brasília: UNB, 1998 (p.17-
Século XIX: Lembre-se das ca-
38)
racterísticas do Estruturalismo
-- RAPOSO, E. Teoria da Gramática: a faculdade da linguagem. Lisboa: americano estudadas na unida-
de anterior.
Caminho, 1992. Capítulo 1 (p.25-40)

4.1 O trabalho de Chomsky


O estruturalismo dominou plenamente os estudos lingüísticos (eu-
ropeu e americano) até os anos 50 do século XX. Nesse período, houve
uma mudança de perspectiva na abordagem dos estudos lingüísticos
promovida pelo trabalho de Noam Chomsky.
Chomsky contesta o princípio da tradição do descritivismo, enraiza-
do na Lingüística americana desde a segunda metade do século XIX.
Podemos dizer que Chomsky criticou a vocação classificatória dos Saiba mais
estruturalistas e propôs uma reflexão sobre a linguagem que não fosse Anos: Na disciplina de Lingüís-
amarrada aos dados, mas que desse lugar de destaque à teoria. tica Geral temos como centro
Assim, Chomsky propôs uma teoria gerativa e transformacional, em para os estudos lingüísticos dois
teóricos: Saussure e Chomsky. O
que uma das características é a evolução dos modelos de análise. Entre primeiro já foi estudado na Uni-
os anos de 1950 e 1960, Chomsky expôs a chamada ‘Teoria Padrão’, dade C, o segundo será estuda-
na década de 70, apresentou a ‘Teoria Padrão Ampliada’ e, nos anos do nesta unidade.
80 e 90, propôs um novo modelo chamado de ‘teoria dos princípios e Quanto a esses dois lingüistas,
podemos apresentar um aspec-
parâmetros’. to que diferencia o trabalho dos
Nesta disciplina, estudaremos os princípios que dão base ao pro- dois: enquanto Saussure é autor
grama da gramática gerativa, independentemente dos modelos de aná- de uma única obra (sobre a Lin-
lises propostos ao longo dos anos. güística), o Curso de Lingüística
Geral, que foi editada por seus
alunos, já o Chomsky, por sua
4.2 A teoria chomskiana vez, é um lingüista atuante des-
de os anos 50, o que lhe possi-
A teoria gerativa (gramática gerativa) de Chomsky é baseada no bilita a constante retomada de
racionalismo e na tradição lógica dos estudos da linguagem. A par- sua teoria.
tir dessa perspectiva, Chomsky propõe uma teoria que é denominada
‘gramática’ e centrada na sintaxe. Para ele, a sintaxe constitui um nível
conteudo relacionado
autônomo e, por isso, central para a explicação da linguagem.
Chomsky propõe esta teoria – gramática – não com a finalidade de Lógica: Retomar as característi-
cas dos estudos lingüísticos do
ditar regras ou normas para o falante, mas sim para dar conta – anali-
século XVII estudadas na Unida-
sar – de todas (e apenas) as frases gramaticais, isto é, que pertencem de A. Retome a idéia de língua
à língua. e o papel da razão/lógica defen-
Para ele, a teoria gerativa instala um mecanismo de análise de- didos naquele período.
dutivo, uma vez que parte do abstrato, isto é, de um sistema de re-
gras e chega ao concreto: as frases da língua. Na verdade está é, para
conteudo relacionado
Chomsky, a concepção de gramática: um conjunto de regras que pro-
duzem as frases da língua. Sintaxe: Ver Ramos da Lingüísti-
ca estudados na Unidade B.

39
Letras / Português
Lingüística Geral

Em função disso, baseando o seu estudo nesse conjunto de regras,


Glossário
Chomsky pretende que a Lingüística não apenas faça a observação e
a classificação – como era proposto no estruturalismo lingüístico. Para Dedutivo: Duas afirmações
sintetizam a concepção de lin-
ele, a teoria da linguagem, assim, deixa de ser apenas descritiva para guagem humana que preside
ser explicativa e científica. o pensamento chomskiano: a)
Os comportamentos lingüísticos
A teoria gerativa efetivos (enunciados) são, ao
menos parcialmente, determina-
Ao tomar como base o racionalismo e a tradição lógica dos estudos dos por estados da mente; b) a
da linguagem, Chomsky adotou uma postura ‘mentalista’ para a sua natureza dos estados da mente
teoria. Nesse sentido, a concepção de seu objeto de estudo consiste pode ser captada por sistemas
computacionais que formam e
em um modificam representações. O
sistema de regras e princípios radicados em ins- cerne da Gramática Gerativa de-
tância na mente humana, e não em propriedades termina que a tarefa fundamen-
absolutas das expressões lingüísticas consideradas tal do lingüista é a criação de
em si mesmas, ou consideradas como um aspec- sistemas computacionais que
to de comportamento humano independente das sirvam de modelo para o co-
propriedades mentais subjacentes à sua produção nhecimento lingüístico dos fa-
e compreensão. (RAPOSO, 1992, p.25) lantes/ouvintes de uma língua.
Esses sistemas computacionais
Chomsky, ao ter essa preocupação com o aspecto psicológico da devem ser entendidos como hi-
linguagem, tomou a aquisição da linguagem como um dos principais póteses explicativas e suas con-
seqüências empíricas devem ser
pontos para apresentar e esclarecer a sua teoria. Para ele, explicar o
avaliados num sistema deduti-
desenvolvimento da linguagem na criança é uma forma de explicar a vo. Enquanto as teorias estru-
linguagem no homem. turalistas eram, em geral, des-
Essas preocupações relacionadas ao problema da aquisição da lin- critivas, a teoria de Chomsky se
pretendia explicativa, no sentido
guagem – em seu aspecto biológico – sempre estiveram presentes
de que os fenômenos deviam
nos estudos de Chomsky, desde os seus primeiros trabalhos. Podemos ser deduzidos de um conjunto
confirmar esse interesse sobre a aquisição da linguagem já no seu pri- de princípios gerais. A adoção
meiro trabalho – de repercussão – publicado em 1957. Esta publicação por Chomsky de um modelo
de ciência hipotético-dedutiva
é uma resenha crítica de Chomsky ao trabalho de Skinner. Esse texto é
tem implicações profundas nos
considerado um marco, um trabalho revolucionário devido ao impacto procedimento de seu progra-
que teve no desenvolvimento das ciências cognitivas e da aquisição da ma. Não se trata mais, como no
linguagem. estruturalismo, de descrever os
dados que se revelam à percep-
ção dos lingüistas, mas trata-se
personalidade
de encontrar princípios gerais a
B.F.SKINNER importante psicólogo americano. A sua partir dos quais as descrições
teoria é conhecida como ambientalista ou behavioris- dos dados observáveis possam
ta e defende que a aquisição de uma língua consiste ser logicamente derivadas. Com
fundamentalmente em uma aprendizagem de hábitos, Chomsky, assume-se na lingüís-
‘comportamento verbal’ através de processos de ob- tica a prioridade do teórico so-
servação, memorização, generalização, associação. Daí bre o empírico.
o nome behaviorista, em função do termo inglês beha-
vior (comportamento).

O programa gerativista
Chomsky apresenta o programa de investigação da Gramática Ge-
rativa a partir do desenvolvimento de quatro questões:

40
Letras / Português
Lingüística Geral

1. Qual é o conteúdo do sistema de conhecimentos do falante de uma


determinada língua particular, por exemplo, o Português? O que é que
existe na mente deste falante que lhe permite falar/comprender ex-
pressões do Português e ter intuições de natureza fonológica, sintática
e semântica sobre a sua língua?

2. Como é que este sistema de conhecimento se desenvolve na mente


do falante? Que tipo de conhecimentos é necessário pressupor que a
criança traz a priori para o processo de aquisição de uma língua particu-
lar para explicar o desenvolvimento dessa língua na sua mente?

3. De que maneira o sistema de conhecimentos adquirido é utilizado


pelo falante em situações discursivas concretas?

4. Quais são os sistemas físicos no cérebro do falante que servem de


base ao sistema de conhecimentos lingüísticos?

Dessas questões, o programa gerativista atribui um lugar central à


questão (2), tanto do ponto de vista filosófico como do ponto de vista
da teoria gramatical propriamente dita.
Podemos dizer que o destaque dado à interação entre a questão
(1) e a questão (2) é a pedra de toque da gramática gerativa. Assim,
abordaremos essas questões de forma mais substancial, em especial a
questão da aquisição da linguagem.
Começaremos, entretanto, com aspectos relevantes às questões
(1), (3) e (4), para nos ocuparmos a seguir mais detalhadamente da
questão (2).

A gramática como sistema computacional


A Gramática interiorizada é compreendida de duas maneiras: pri-
meiro como um dicionário mental das formas da língua, e segundo
como um sistema de princípios e regras atuando sobre formas.
O referido sistema atua de maneira computacional, isto é, cons-
truindo representações mentais constituídas por combinações catego-
rizadas das formas lingüísticas. Desse modo, as representações deter-
minam as propriedades fonológicas e sintáticas -depois as semânticas
- das expressões da língua.
Nesse sentido, a gramática determina o modo como essas repre-
sentações se articulam com outros sistemas conceituais da mente hu-
mana ou com o sistema neuro-muscular para a articulação do som
- pronúncia.
Para facilitar a compreensão do exposto, é importante trazer à tona
a concepção de linguagem defendida por Chomsky. Para ele, a lingua-
gem é entendida como um sistema formal interpretado no sentido da
lógica, isto é, as expressões são construídas por um sistema de regras

41
Letras / Português
Lingüística Geral

exclusivamente formais e são, posteriormente, investidas de significa-


ção. A interpretação semântica das formas da língua: determinadas por
regras do próprio sistema ou por outros sistemas [crenças, pressupos-
tos, arbitrariedade.
Cabe lembrar que a gramática interiorizada do falante é um siste-
ma autônomo, cujos princípios e representações lhe são específicos. A
gramática é independente dos outros sistemas conceituais da mente
humana, mas mantém interação complexa em pontos específicos. Essa
visão da organização da mente humana é chamada de modular.
A concepção modular da mente diz respeito à idéia de que a men-
te é formada por módulos autônomos, cada um deles caracterizado
por princípios e representações específicas, por exemplo: módulo lin-
güístico, módulo matemático, módulo espacial, módulo musical. Estes
módulos estão ligados, ou melhor, comunicam-se, em pontos determi-
nados, estabelecendo, assim, uma interação complexa que determina
as propriedades dos fenômenos mentais humanos.
Essa postura contrapõe a idéia de inteligência generalizada aplicá-
vel a todos os domínios mentais e determinando o desenvolvimento
cognitivo geral da criança, postura defendida por Piaget.

personalidade
Jean Piaget (1896 – 1980) foi o nome mais fluente
no campo da educação durante a segunda metade do
século XX. Foi considerado gênio pela precocidade de
seu talento intelectual e pela originalidade e importân-
cia das suas pesquisas e teorias sobre o conhecimento
humano. Antes de tudo, Piaget foi biólogo e dedicou a
vida a submeter à observação científica rigorosa o pro-
cesso de aquisição de conhecimento pelo ser humano, particularmente a
criança. Aos 27 anos, escreveu o seu primeiro livro de psicologia: A Lingua-
gem e o Pensamento na Criança. Piaget revolucionou as concepções de in-
teligência e de desenvolvimento cognitivo partindo de pesquisas baseadas
na observação e em entrevisrtas que realizou com crianças. Interessou-se
fundamentalmente pelas relações que se estabelecem entre o sujeito que
conhece e o mundo que tenta conhecer. Considerou-se um epistemólogo
genético porque investigou a natureza e a génese do conhecimento nos
seus processos e estádios de desenvolvimento. Do estudo das concepções
infantis de tempo, espaço, causalidade física, movimento e velocidade, Pia-
get criou um campo de investigação que denominou epistemologia ge-
nética, isto é, uma teoria do conhecimento centrada no desenvolvimento
natural da criança. Além da importância do conteúdo propriamente dito da
sua obra, Piaget simbolizou o pensamento da época em que viveu ao per-
sonificar a crise da filosofia e a ruptura de barreiras ente as ciências.

Competência e ‘performance’
Agora abordaremos dois conceitos fundamentais para a teoria gera-
tiva: competência e performance/desempenho. A questão (3) - Como
é que o sistema de conhecimentos adquirido é utilizado pelo falante

42
Letras / Português
Lingüística Geral

em situações discursivas concretas? – está na base da distinção entre


os conceitos de competência e performance /desempenho.
Para Chomsky, a competência é o conhecimento mental puro de
uma língua particular por parte do sujeito falante, isto é, a sua gramáti-
ca internalizada. Já a performance/desempenho designa o uso concre-
to da linguagem em situações de fala concretas. O objeto de pesquisa
da teoria gerativa é a competência.
Uma vez que todo ato de fala envolve variáveis de natureza social
e psicológica independentes do conhecimento gramatical da língua, a
estrutura, a organização e o conteúdo de qualquer expressão lingüística
são determinados por uma combinação de fatores que têm a ver ape-
nas parcialmente com a competência.
Dessa forma, você pode notar que a questão (3) diz respeito ao
modo como a competência é utilizada, ou distorcida, em situações de
desempenho através da sua interação com esses sistemas.
Por exemplo, a atenção e a memória podem provocar erros de
competência. Isto não quer dizer que o sujeito não domine a estrutura
de sua língua, isto é, não tenha competência, mas a falta de atenção
ou um lapso de memória podem fazer com que o sujeito produza uma
frase que fuja das regras da língua. Outro exemplo pode ser o caso
do sujeito que gagueja quando nervoso, não quer dizer que ele não
tenha competência, mas sim que o seu desempenho é afetado pelo
nervosismo.
A partir de outra perspectiva, temos as chamadas convenções lin-
güísticas de natureza discursiva que determinam significações para
expressões que não são aquelas apresentadas pela gramática (interna-
lizada). Podemos apresentar, como exemplo disso, os chamados atos
de fala indiretos, nos quais a expressão gramatical é substituída por Glossário
outra decorrente do contexto. Veja os seguintes exemplos: Natureza Discursiva: referen-
te ao discurso. A língua, neste
a. Podes me passar o sal? sentido, é abordada a partir do
seu uso, levando-se em conta o
b. Está muito quente aqui. falante, a situação/contexto, a
intenção e demais fatores exter-
Na frase (a), temos gramaticalmente uma oração interrogativa, mas nos ao sistema lingüístico.
que, discursivamente, no contexto de uma mesa de jantar, passa a ser
tomada como um pedido. Nenhum falante, nesta situação, irá apenas
responder que pode passar o sal, pois, na verdade, não temos uma
pergunta, mas sim uma solicitação.
Na frase (b), temos gramaticalmente uma declaração, entretanto,
em um contexto de sala de aula, por exemplo, em que todas as janelas
estejam fechadas, ao pronunciar esta frase, o falante não está apenas
constatando que está quente, na verdade está pedindo que as janelas
sejam abertas.
Lembre-se: nesses dois exemplos, como em todos os casos de atos

43
Letras / Português
Lingüística Geral

de fala indiretos, o sentido convencional anula o sentido formal.

Você já percebeu estes fatos lingüísticos?


Já pensou em quantas coisas dizemos, no nosso dia a dia, sem
pronunciá-las?
Você deve entender, ainda, que o termo ‘desempenho’ é utilizado,
pelos gerativistas, para referir exclusivamente os mecanismos psico-
lógicos de percepção e processamento da linguagem que facilitam o
funcionamento da gramática interiorizada.
Para sintetizar, podemos dizer que o estudo da competência, en-
quanto puro sistema de conhecimentos mental, implica que o lingüista
proceda a uma abstração das diversas variáveis presentes nos atos de
fala concretos, isto é, implica que o objeto do seu estudo seja falante-
ouvinte ideal, situado numa comunidade lingüística completamente
homogênea, que domina/conhece a sua língua perfeitamente efetiva,
sem ser afetado por condições gramaticalmente insignificantes – limi-
tações de memória, distrações, desvios de atenção.

A questão da aquisição da linguagem


Como já foi dito anteriormente, a questão central do programa da
gramática gerativa é sem dúvida o problema de saber como é que a
gramática se desenvolve na mente do sujeito falante. Em outras pala-
vras, é a questão da aquisição da linguagem.
Em relação à aquisição da linguagem, o problema central que se
coloca é o papel da mente neste processo. Para explicar essa questão
temos duas tradições fixadas na história do pensamento filosófico e
lingüístico ocidental: a empirista e a racionalista.

Tradição empirista
Para a tradição empirista, o desenvolvimento lingüístico é deter-
minado por causas externas à mente humana, pelas experiências e
interações da criança com o meio ambiente. Lembre-se que meio am-
biente, nesta abordagem, quer dizer a fala das pessoas que convivem
com a criança, isto é, as interações lingüísticas a que a criança está
submetida.
Nessa abordagem, a linguagem é uma questão de aprendizagem
(aquisição pela mente) através de práticas adequadas de um sistema
exterior.
O principal representante desta tradição é o psicólogo americano
B. F. Skinner. Para ele, a aquisição de uma língua consiste numa apren-
dizagem de hábitos de comportamento verbal através de processos de
observação, memorização, generalização indutiva (geral para o particu-
lar), e associação.

44
Letras / Português
Lingüística Geral

Nesse sentido, o papel do ensino explícito e o papel da prática são


realçados, considerados essenciais para a implantação e a solidificação
dos conhecimentos adquiridos. Já, por outro lado, o papel da mente é
considerado diminuto. Paras os empiristas, a mente tem princípios de
inteligência gerais que suportam a capacidade de efetuar generaliza-
ções e associações. O principal a destacar é que, para eles, não existem
princípios ou estruturas específicos para a aprendizagem de línguas.
No século XX, no campo da psicologia, estas idéias foram defendi-
das principalmente pelo chamado ‘behaviorismo’ norte-americano de
Skinner. Glossário
Behaviorismo: Derivado do ter-
Tradição racionalista
mo inglês referente à postura
Para a tradição racionalista, na qual Chomsky se inscreve, o papel que a aquisição de uma língua
da mente é fundamental na aquisição da linguagem. Para os raciona- consiste numa aprendizagem
de hábitos de comportamento
listas, as propriedades centrais da linguagem são determinadas por
verbal através de processos de
princípios e estruturas mentais de conteúdo especificamente lingüísti- observação, memorização, ge-
co, as quais funcionam como uma espécie de planta arquitetônica no neralização indutiva (geral para
processo de aquisição, dirigindo o desenvolvimento lingüístico num o particular) e associação.

sentido predeterminado.
As referidas estruturas mentais são exclusivas da espécie humana
e são geneticamente determinadas, isto é, têm a ver com organização
biológica da espécie.
Nesta perspectiva, adquirir uma língua é mais uma questão de ma-
turação e desenvolvimento de um órgão mental biológico do que uma
questão de aprendizagem. Chomsky chama de mecanismo de aquisi-
ção da linguagem (LAD - Language Acquisition Device) este conjunto
de princípios e estruturas, especificamente lingüísticos. No gerativismo,
o mecanismo de aquisição da linguagem recebe o nome de Gramática
Universal (GU).

Você deve ficar atento ao fato que os racionalistas não negam o


papel do meio ambiente na aquisição da linguagem, pois conside-
ram que:
1. A fala das pessoas que rodeiam a criança e suas experiências
verbais são determinantes para iniciar o funcionamento do meca-
nismo de aquisição.
Importante: Sem ambiente lingüístico, a criança não fala.

2. Os meios lingüístico, emocional e educativo são fatores que de-


terminam o grau de desenvolvimento da linguagem pela criança
(sem, com isso, determinar a direção do desenvolvimento ou o con-
teúdo final do sistema)
Importante: o meio ambiente lingüístico determina a língua que
será adquirida pela criança

45
Letras / Português
Lingüística Geral

O problema da projeção
Saiba mais
Qual a relação entre os dados primários a que a criança tem acesso
Direção: Chomsky dá como
durante a fase de aquisição da linguagem, provenientes do meio am-
exemplo o crescimento de uma
biente lingüístico, e o sistema de conhecimentos final que caracteriza flor, um processo sem dúvida
a competência lingüística do falante? Esta relação é abordada pelos geneticamente determinado. O
racionalistas/gerativistas como o problema da projeção, isto é, há uma desenvolvimento final da flor
depende dos cuidados com
projeção quantitativa e qualitativa dos dados primários (finitos) sobre
que é tratada, entretanto estes
o conjunto infinito de expressões da língua. cuidados não podem mudar o
Dessa forma, o sistema da competência final (gramática do adulto) curso específico do crescimento
é qualitativa e quantitativamente muito mais complexo do que o sis- ou o resultado final em relação
às características da espécie.
tema simples necessário para caracterizar os dados primários a partir
Por exemplo, se plantarmos a
dos quais o sistema final é adquirido. Nesse processo, é o mecanismo semente de uma rosa, não ob-
mental inato – o dispositivo de aquisição da linguagem (LAD) - que teremos um cravo.
medeia entre os dados primários e a gramática final.
Portanto, a gramática final (competência) é o resultado da inte-
ração entre os dados primários e o mecanismo mental de aquisição
(LAD). Para os gerativistas, os estímulos primários são caracterizados
como pobres, enquanto que os conhecimentos finais são considerados
um sistema rico e complexo.
Já para a tradição empirista, a relação entre os dados primários e a
competência final do falante é relativamente direta, e não existem dife-
renças notáveis de natureza qualitativa entre os dois. Para desenvolver
a gramática final são necessários princípios mentais indutivos simples
como analogias e generalizações.
Além disso, para os empiristas, aquisição da linguagem é uma
questão de treino, imitação e memorização (da criança) e de correção,
aprovação/reprovação (pais/adultos).
Para Chomsky (1998), esse modelo empirista/racionalista é irre-
alista, uma vez que ignora (ou nega) o abismo não só quantitativo,
mas essencialmente qualitativo que existe entre os dados lingüísticos
primários e o sistema de conhecimentos final do adulto: sua gramática
internalizada.
Segundo Chomsky, o indivíduo possui uma série de conhecimen-
tos sobre a língua que não provém da aplicação de mecanismos indu-
tivos e muito menos por imitação ou memorização.
Em função disso, um questionamento basilar às investigações ge-
rativistas é o chamado Dilema de Platão: como é que um adulto pos-
sui um sistema de conhecimentos especifico tão complexo e tão rico
sobre a sua língua mesmo tendo iniciais tão pobres durante a fase de
aquisição?
A partir do chamado ‘argumento da pobreza de estímulo’, os ge-
rativistas defendem que, se os dados primários são insuficientes, logo
a mente da criança põe a sua disposição um conjunto de princípios
lingüísticos complexos - LAD - que guia de um modo predeterminado

46
Letras / Português
Lingüística Geral

e extremamente restringido a aquisição e desenvolvimento da lingua-


gem.

Os dados primários e a não existência de informação negativa no


processo de aquisição da linguagem
O meio ambiente lingüístico de uma criança típica em fase de aqui-
sição da linguagem é formado por expressões gramaticais da língua.
Essas informações são consideradas positivas e são a base para desen-
Saiba mais
volver a gramática interiorizada do sujeito.
Neste contexto, da criança em fase de aquisição da linguagem, Agramaticais: Para Chomsky e
os gerativistas, agramatical é
não há informações consideradas negativas. Isto é, informações sobre
frase que foge à estrutura da
expressões inaceitáveis (agramaticais) da língua desempenham um língua. Por exemplo:
papel nulo no processo de aquisição. Além disso, a criança não rece- A frase ‘Jogou menino bola o’
be instrução gramatical e, especialmente, não é um pequeno lingüista não faz parte da estrutura da
língua portuguesa, portanto é
constituindo a sua gramática com base simultaneamente em informa-
considerada agramatical. Todo
ções sobre expressões gramaticais e não gramaticais. falante de português é capaz de
Em função disso, resta um questionamento: como é que a criança identificar esta frase como não
desenvolve o conhecimento essencialmente negativo de que tal ou tal pertencente a sua língua.
expressão não existe na sua língua ou não pode ter uma determinada
significação ‘a priori’ logicamente possível? Uma possível resposta para
isso pode ser dada da seguinte forma: a partir de informação unica-
você sabia
mente positiva a criança desenvolve toda uma série de conhecimentos
Gramaticais: Quanto a esse
negativos sobre a língua.
aspecto, você, em algum mo-
mento já presenciou um adulto
Quais os mecanismos que permitem esse processo? (pai, mãe, irmão mais velho)
orientando uma criança sobre a
No modelo empirista, parece não haver instrumentos suficientes estrutura gramatical da sua lín-
para responder a esta questão. Nesse modelo, não se entende como é gua. Por exemplo, dizendo para
que a generalização analógica (analogia e associação) permite a cons- a criança: meu filho você deve
primeiro apresentar o sujeito,
trução de um conhecimento negativo a partir de informação unicamen-
depois o verbo e, por último
te positiva. o complemento. Você já pre-
Já no modelo racionalista, a resposta a esta questão não é proble- senciou uma cena como esta?
mática. Conclusão de Chomsky: os estímulos iniciais da criança são po- Provavelmente não. Por que as
orientações lingüísticas dadas
bres, e apenas um mecanismo inato suficientemente complexo pode
por adultos às crianças não são
explicar a aquisição e desenvolvimento da linguagem. desse tipo, mas sim de outra or-
dem (geralmente pragmática):
‘não diga isso porque é feio’. Po-
4.3 Conceitos básicos
demos dizer que a correção dos
A partir do estudo da teoria gerativa de Chomsky realizada no item pais é muito mais sobre a ade-
quação do conteúdo da fala das
anterior, destacamos a seguir uma tabela com os principais conceitos
crianças à situação discursiva.
chomskianos.

47
Letras / Português
Lingüística Geral

Figura D.1. Principais conceitos da teoria gerativa de Chomsky

Atividade

Bibliografia básica:

CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente. Brasília: UNB, 1998.

FIORIN, José Luiz. (org.) Introdução à lingüística. V.1 e 2. São Paulo:


Contexto, 2002, 2003.

KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Lisboa: Edições 70, 1969.

LYONS, John. Linguagem e Lingüística: uma introdução. Rio de Janei-


ro: LTC, 1981.

MUSSALIN, Fernanda, BENTES, Anna Christina. (orgs.) Introdução à


lingüística. Tomos 1 2. São Paulo: Cortez, 2001

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cul-


trix, 1987.

48
Letras / Português
Lingüística Geral

Bibliografia complementar:

ARNAULD e LANCELOT. Gramática de Port-Royal. São Paulo: Martins


Fontes, 1992.

CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 9 ed. Petrópolis


: Vozes, 2000.

CORRÊA, M. L. G.. Linguagem & Comunicação social: visões da lin-


güística moderna. São Paulo : Parábola: 2002.

MARTINET, André. Elementos de lingüística geral. São Paulo: Martins


Fontes, 1975.

MOUNIN, Georges. A lingüística do século XX. Lisboa: Editorial Pre-


sença/ Martins Fontes, 1972.

ORLANDI, E. O que é lingüística. São Paulo : Brasiliense, 1986.

PAVEAU, M. A; SARFATI, G.E.. As grandes teorias da Lingüística: da


gramática comparada à pragmática. São Carlos : Claraluz, 2006.

SAPIR, Edward. Lingüística como Ciência. Rio de Janeiro: Livraria Aca-


dêmica, 1961.

SOUZA, Maurício. Chico Bento nº 219. Maurício de Souza Produções


Ltda: Editora Globo S/A, 1995.

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da lingüística. São Paulo: Pa-


rábola, 2002.

49
3 FUNCIONALISMO
L I N G U ÍS T I C O

Wellington Vieira Mendes


José Roberto Alves Barbosa

3.1  Considerações iniciais

Com a publicação, em 2008, de The End of Theory: The Data


Deluge Makes the Scientific Method Obsolete, Chris Anderson
realizou a provocação que faltava (embora já aguardada
e idealizada por meia dúzia de agentes afetivos) nestes
tempos de Inteligência Artificial e de artificialidades da
inteligência. Na Revista Wired, para além da provocação do
título, o editor-chefe sentenciou a obsolescência da aborda-
gem científica baseada nos modelos e em suas dependen-
tes/consequentes hipóteses e testes. Diante da magnífica
e infinita quantidade de dados armazenados/processados
em servidores eletrônicos do mundo todo (e na nuvem, por
uma melhor especificação), a eficiência das máquinas em
processar correlações – e não causalidades – põe à prova
a teoria e faz ruir o edifício dos modelos mais abstratos já
imaginados para explicar desde a composição do Universo

71
até as relações de valência verbal. A clava de Anderson é impiedosa: fora
com toda teoria do comportamento humano, da linguística à sociologia,
esqueça a taxonomia, a ontologia e a psicologia.
Na continuação do texto, ele vai defender que a descrição pura e sim-
ples, mas baseada em dados gigantescos (medida e rastreada com fide-
lidade sem precedentes – no seu dizer), é o substituto apropriado para
questões como “por que as pessoas fazem o que fazem”. A retórica em
torno da defesa da importância dos dados não deve diminuir a inquietude
do espírito humano – é possível que qualquer um de nós, inclusive o leitor
deste texto, já se tenha irritado com respostas do tipo “é assim porque é”!
Saber o porquê de as coisas serem como são continua em voga!
A referência ao texto da Wired se coloca neste capítulo para contraba-
lancear o papel que as abordagens linguísticas podem ter na relação com
a capacidade de processamento eletrônico de dados massivos. No cenário
atual, por exemplo, o conhecido potencial dos aplicativos de tradução no
sequenciamento sintático-semântico “com fidelidade sem precedentes”
pode esbarrar na incapacidade de significar em contextos específicos (reme-
temos o leitor ao princípio formalista da clareza máxima, da generalidade
máxima), fazendo repercutir sua importância para uma vida objetiva, mas
sem nada poder fazer pela subjetividade da pessoa.
Qual o real papel dos dados na ciência? Seguramente, os dados não
são uma prova positivista a comprovar ou a refutar uma hipótese – essa
ciência já não existe e/ou dela o que muito se aproveita é traduzido nas
conspirações que recuperam uma noção de terra plana (com minúsculas
mesmo!) e de teocentrismo.
O fato é que todas essas divergências e convergências, que todas essas
representações e incursões, que todas as interações e até mesmo o algoritmo
empregado no processamento ou na construção de uma interface virtual
somente se configura por meio da língua/linguagem. Sem ela, os dados e
suas descrições subsequentes não seriam possíveis porque não existiriam
no sentido mais ontológico e/ou não esboçariam necessidade pragmática.

Funcionalismo Linguístico 72
Ora, se a linguagem é “um dos ‘meios’ mediante o qual pensamentos,
ideias e sentimentos são representados numa cultura” (HALL, 2016, p. 18),
as nossas representações no plano da realização de escolhas lexicograma-
ticais e semântico-discursivas (materializadas em textos) deixam rastros
dos contextos mais amplos e mais restritos, das ideologias, da natureza das
relações e dos movimentos desenvolvidos nos trajetos de interação entre
os sujeitos que constroem a realidade por meio da língua/linguagem, não
apenas como possibilidade do sistema (passível de descrição pormenori-
zada por meio de inteligência artificial), mas como necessidade humana
ancestral e presente.
Este capítulo1, portanto, é uma tentativa de dar algum sentido à discus-
são a respeito de perspectivas linguísticas baseadas em dados, com atenção
às causalidades e às correlações, entendendo que as descrições favorecem
cada vez mais a compreensão/reflexão acerca das razões de certos usos
constituírem o que constituem e de como essa apreensão pode favorecer
práticas sociais de significação e de dar sentidos a essas mesmas práticas.
As situações de uso da língua configuram per se o objeto principal de
qualquer análise funcionalista. Para nós que assistimos ao perigeu do
empreendimento gerativo (cujo expoente principal foi Noam Chomsky),
a possibilidade de compreensão dos diversos fenômenos da linguagem
pela perspectiva do funcionalismo linguístico se revela como oportunidade
necessária para a proposição de pesquisas ocupadas do uso, da mudança e
da variação, entendendo tais mecanismos como constitutivos das línguas
naturais e da cultura em que se inscrevem e constroem.

1 Constitui uma recomposição das ideias discutidas em dois artigos: (i)


MENDES, W. V. A perspectiva sistêmico-complexa na relação com os
estudos da linguagem: experiência com textos acadêmicos. Diálogo das
Letras, v. 7, n. 1, p. 21-40, jan./abril, 2018; (ii) MENDES, W. V.; SOUZA,
M. M. Linguística Sistêmico-Funcional: contextos, usos e significados.
Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, v. 8, n. 2, p. 603-619, jul./dez 2019.

Funcionalismo Linguístico 73
Como entendemos o funcionalismo em linguística como abordagem
ou perspectiva – e não como um paradigma encapsulado –, vamos aten-
tar de modo mais específico para os conceitos propostos pela Linguística
Sistêmico-Funcional (LSF).
A estrutura de coerência do capítulo se apresenta sob a sequência que
apresenta a origem do modelo, passando pelos princípios teóricos mais
gerais, a fim de indicar a trajetória metodológica que (re)cria esses mesmos
princípios epistemológicos, já que a teoria aqui é entendida como uma
elaboração permanentemente afetada e moldada pelo uso linguístico. Logo
em seguida, apresentamos um exemplo de interpretação/análise construí-
da a partir da perspectiva do funcionalismo linguístico e retomamos as
concepções mais salientes nas considerações finais.

3.2  Surgimento da teoria

As teorias de orientação funcionalista podem ser tidas no momento presen-


te de nosso conhecimento como perspectivas surgidas a partir da desconsi-
deração feita às orientações de base formalista. Todavia, não deve derivar
de tal noção a ideia de que o empreendimento funcionalista é algo novo,
advindo de uma espécie de “cisma” que convergiu para o surgimento de
um paradigma absolutamente recente.
O paradigma funcionalista deve ser visto, pois, como um tipo de cone-
xão com concepções presentes antes mesmo daquelas trazidas por Saussure.
Os fenômenos linguísticos do final do século XIX, notadamente estudados
sob enfoque sincrônico e diacrônico por Whitney, von der Gabelentz e
Hermann Paul impuseram a percepção, a orientação epistêmica de que
esses fenômenos devem ser estudados a partir de imperativos de natureza
psicológica, cognitiva e funcional.
A ideia de um “novo” paradigma já podia ser encontrada também na
Escola de Praga, destacando-se especificamente o Roman Jakobson, cuja
ampliação do conceito de função da linguagem incluiu os participantes

Funcionalismo Linguístico 74
da interação. Mas a visão funcionalista ganha destaque na tradição antro-
pológica americana, a partir dos trabalhos de Sapir e Whorf. É também
nos Estados Unidos que muitas escolas de corrente funcional vão surgir,
tendo como referência Givón, Thompson, Chafe, Hopper – na Califórnia;
Lakoff e Langacker – em Berkeley.
No Brasil (e, de modo mais pontual, na Região Nordeste), os pes-
quisadores das universidades públicas concentraram atenção ao modelo
norte-americano, tendo Furtado da Cunha e Souza (2011, p. 22) apontado
como o paradigma funcionalista compreende a noção de gramática na
realização das línguas:

A gramática das línguas naturais se molda a partir das regularida-


des observadas no uso interativo da língua, as quais são explicadas,
por sua vez, com base nas condições discursivas em que se verifica
a interação sócio-comunicativa. A gramática é, pois, vista como um
sistema flexível, fortemente suscetível à mudança e intensamente
afetado pelo uso que lhe é dado no dia-a-dia.

Desse registro, fica explicitada a noção de sistema, que, embora não


seja tão fortemente difundida na linguística funcional norte-americana, é a
concepção basilar da teoria sistêmico-funcional, nomeadamente Linguística
Sistêmico-Funcional (LSF). Nos anos de 1960, essa perspectiva teórica foi
postulada por Michael Alexander Kirkwood Halliday, para quem a lin-
guagem é proposta a partir de um sistema social e cultural, o que implica,
necessariamente, interpretá-la dentro de um contexto sociocultural em
que tal processo se realiza.
O modelo de Halliday se desenvolve com bases da antropologia e
da linguística e toma por base a noção de operar escolhas na envolvência
de outras escolhas, expandido os princípios a outras abordagens teóri-
co-metodológicas como Potencial de Estrutura Genérica (HASAN, 1989),
Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1992, 1993), Gramática do

Funcionalismo Linguístico 75
Design Visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996), Teoria da Avaliatividade
(MARTIN; WHITE, 2005), entre outras.

3.3  Princípios teóricos

Na concepção hallidayana, a linguagem é proposta como um sistema so-


cial ou cultural, o que implica, necessariamente, interpretá-la dentro de
um contexto sociocultural em que tal processo se realiza. Dito de outro
modo, a linguagem pode ser entendida como uma manifestação semiótica,
já que, no dizer de Halliday (1994), ela se constitui como uma forma de
representação da experiência humana, quer seja na “realidade” presente/
percebida no meio físico ou concreto, quer seja na “realidade” idealizada/
fabricada em nosso interior, num plano mais abstrato.
A abordagem se classifica como sistêmica porque compreende a língua
como redes de sistemas linguísticos, em cuja interconexidade configu-
ram-se as possibilidades de significar e atuar no mundo. Dessa condição,
deriva sua natureza funcional, já que os significados é que explicam as
escolhas mobilizadas na estrutura gramatical.
Nessa corrente de pensamento, a linguagem pode ser entendida como
uma manifestação sócio-semiótica porque, no dizer de Halliday e Martin
(1993), constitui-se como uma forma de representação da experiência
humana quer seja na “realidade” presente/percebida no meio físico ou
concreto, quer seja na “realidade” idealizada/construída em nossa mente,
num plano mais abstrato, e todos os usos têm relação com as necessidades
próprias de nossa relação com a comunidade. Desse entendimento mais
amplo, deriva a noção das metafunções da linguagem: ideacional, interpes-
soal e textual. Halliday (1994) é quem explica que tais metafunções apre-
sentam o sentido próprio da teoria da LSF: todo texto é multidimensional
e, portanto, realiza mais de um significado simultaneamente.
Uma boa maneira de compreender a linguagem pela formulação da
LSF é admitir que os significados se realizam a partir de uma concepção

Funcionalismo Linguístico 76
metafuncional e estratificada, em que os sentidos interpessoais,
ideacionais e textuais ocorrem simultaneamente para a construção
dos significados no texto e em que, ao mesmo tempo, as escolhas
em um estrato projetam construções no estrato seguinte. As esco-
lhas no estrato grafofonológico são a realização das escolhas do
estrato léxico-gramatical. Estas, por seu turno, estão realizando
escolhas no estrato semântico-discursivo, sendo que tais escolhas
ocorrem em contextos de cultura e de situações distintos. (VIAN
JUNIOR; MENDES, 2015, p. 164).

Essa conceptualização de realizações de sentidos por processo de estra-


tificação é mais claramente expressa na Figura 1, em que Halliday (1978)
caracteriza o modelo semiótico de linguagem:

Figura 1 – Estratificação

Fonte: Elaborada a partir de Halliday (1978).

Funcionalismo Linguístico 77
A linguagem, na orientação epistemológica da LSF, é uma realidade da
cultura, da vida social de seus agentes, de suas relações consigo mesmos
e, também, da necessidade inseparável da relação com o ambiente físico.
Nesse caso, como bem lembra Halliday (1973), a linguagem é também um
meio central de promoção da cultura nas relações cotidianas, nos mais
diferentes espaços, tanto como condição de representação da experiência
no mundo físico, social e psíquico, quanto como condição de estabelecer
identidades e afinidades grupais, de modo a se construir e transmitir uma
visão específica de mundo, uma cultura, portanto.
Por esse turno, pensar os contextos (desde o mais geral e o imediato da
situação comunicativa até o background mais amplo da cultura), significa
levar em conta que um modelo teórico de estudo da língua baseado nos
usos não pode abstrair os sentidos que são próprios das relações sociais
e das diversas maneiras como essas relações configuram os discursos e
seus efeitos (ideologias) e por eles são também transformadas. É a partir
da tradição dos estudos de Bronisław Kasper Malinowski que Halliday
propõe a configuração de uma realidade linguística que potencializa as
funções da linguagem (os usos, por assim dizer) e que realiza necessidades
humanas: (i) acima dos sistemas funcionais, estariam os contextos de cul-
tura e de situação; (ii) abaixo e partir dos sistemas, estariam as funções de
expressar a experiência, no desempenho de papeis sociais, estabelecendo
relações de significados nos próprios enunciados.
A fim de ilustrar essa discussão, apresentamos o Quadro 1:

Funcionalismo Linguístico 78
Quadro 1 – Contextos e sua relação com as metafunções e sistemas
Nível acima do
Nível do Sistema
sistema
Cultura Situação Metafunção Sistema Atividade
da linguagem lexicogramatical
Campo Ideacional Transitividade Representar a experiência

Relação Interpessoal Modo Deflagrar relações sociais

Modo Textual Tema Organizar os textos


Fonte: Mendes e Souza (2019, p. 609).

Os significados ideacionais, interpessoais e textuais de metafunções


cumprem papel funcional na construção de sentidos, por meio de estru-
turas distintas, com organização semântica própria. Os sistemas realizam
na lexicogramática os sentidos do nível semântico-discursivo. Esse nível
contempla todas as possibilidades de escolhas linguísticas para um sujeito
em determinada situação de interação. Tal sistema de opções é, per si, a
gramática, ou seja, o potencial de realização em que o sujeito da língua
faz uma espécie de seleção a partir das opções disponíveis no sistema e
considerados os contextos acima dele.
Para cumprir essas funções, o sistema realiza três metafunções: (i)
ideacional – responsável por expressar as experiências do sujeito, incluindo
o mundo externo e o mundo interno de sua própria consciência; (ii) inter-
pessoal: responsável por estabelecer e manter as relações entre os interac-
tantes: estabelecer e manter relações, influenciar, expressar pontos de vista,
sugerir etc.; (iii) textual – responsável por manter ligações entre a própria
linguagem e as características da situação de interação, organizando os
significados ideacionais e interpessoais como discurso, conforme Halliday
e Matthiessen (2014). E cada uma dessas metafunções se concretiza na
lexicogramática, respectivamente, pelos sistemas de transitividade, de
modo e de tema.

Funcionalismo Linguístico 79
No nível extralinguístico, as concepções de ideologia e de contexto de
cultura são importantes porque, para uma descrição mais adequada da
língua, necessário se faz agregar algo que esteja além da situação imediata
de interação e da própria instanciação textual, tendo em conta que, no
momento de enunciar qualquer mensagem, os sujeitos também carecem
de conhecimento sociocultural mais amplo que lhes permita interpretar
e dar sentido tanto ao que é verbalizado quanto ao que acontece durante
a situação interativa. Nas situações reais de uso da língua, os contextos
precedem os textos e, desse processo de instanciação, constitui-se também
o sujeito que, por sua sucessão e reciprocamente, cria os contextos em que
a linguagem significa. O discurso, por essa circularidade ininterrupta, pode
ser considerado como um potencial da cultura, da ideologia.

3.4  Metodologia para a pesquisa

Os estudos em LSF se configuram pela realização de movimentos, cujo


paradigma é também um empreendimento das pesquisas realizadas nas
Ciências Sociais e Humanas, sendo sua associação possível aos estudos
da linguagem. Em geral, são os movimentos: 1. Revisão da literatura; 2.
Seleção de corpora, sujeitos e documentos e composição de um quadro de
amostras; 3. Apresentação/análise dos dados.
Em trabalho intitulado A perspectiva sistêmico-complexa na relação com os
estudos da linguagem: experiência com textos acadêmicos, Mendes (2018) sugere,
a partir do conjunto epistemológico proposto por Halliday, que a língua
(uma construção possível no sistema social e cultural) é somente passível
de interpretação e compreensão metalinguística também na inscrição desse
sistema social e cultural.
Assim, a conceptualização de realizações de sentidos por processo de
estratificação (expressa na Figura 1, que dispusemos na seção anterior),
caracteriza seu modelo semiótico de linguagem, mas não somente ele. A
noção de estratificação é importante composição para o entendimento de

Funcionalismo Linguístico 80
como a pesquisa pode se configurar em LSF. Por esse viés, o paradigma
sistêmico-funcional é também uma proposição de natureza metodológica
por possibilitar a compreensão de certos fenômenos da linguagem, sem
excluir sua conexão com os demais estratos. A título de ilustração, se o
pesquisador estiver analisando um fenômeno que se apresenta no estrato
da fonologia (e até mesmo da fonética), a melhor forma de compreendê-lo
ou de interpretá-lo será pela recorrência ao estrato lexicogramatical (mais
próximo), passando pelo estrato semântico-discursivo, até chegar aos
contextos que o motiva.
A interconexidade de todos os elementos que participam das condi-
ções de construção de sentidos é um fenômeno a que deve estar atento o
pesquisador, sobretudo porque a interpretação deste ou daquele texto vai
depender e muito do modo como a observação dessas relações é criada/
mantida/recuperada ao longo dos episódios comunicativos, com vistas a
seus propósitos particulares.
Mais recentemente, temos chamado esse cuidado epistêmico de pers-
pectiva sistêmico-complexa, como anota Vian Junior (2018, p. 356-357):

compreende os fenômenos em sua auto-organização e o modo


como se relacionam com outros sistemas, indo ao encontro do
paradigma proposto por Morin nas ciências da complexidade de
uma interligação de saberes que imprime, aos contextos de prá-
ticas hipermodernos, a necessidade de ressignificação de muitos
de seus fenômenos.

A proposição de um pensamento sistêmico-complexo implica, pois, a


compreensão de uma perspectiva que conecta sistemas e complexidade,
não sendo pura e simplesmente a intersecção desses dois conceitos – que
já abrigam um sem-número de definições. Essa proposta enfatiza a visão
de totalidades integradas, costumeiramente manifestas no uso de termi-
nologias como conexidade, relações, padrões e contexto; e, complexidade como

Funcionalismo Linguístico 81
a interconexidade que existe nas redes, cuja compreensão deve se pautar na
não linearidade e na dinamicidade dos fenômenos (CAPRA; LUISI, 2014).
Logo, entendemos que pensamento sistêmico-complexo e interco-
nexidade se realizam nas totalidades integradas em redes e em padrões
perceptíveis nos diferentes contextos. Ilustramos a abordagem sistêmi-
co-complexa com o exemplo de interpretação tratado na próxima seção,
em que a totalidade é tomada para se chegar às conclusões, a partir do
sistema-de-interesse2 analisado.
Como defendido em Mendes (2016, 2018), reforçamos que a perspectiva
sistêmico-complexa não se ajusta às ideias de sucessão e hierarquização,
posto que o todo não pode ser reduzido ao conjunto sintético resultante
da soma de elementos e com a propriedade de ser um desenho mais fa-
cilmente apreensível da realidade, justamente pelo fato de os elementos
que se configuram no sistema, mesmo que organizados e dispostos dife-
renciadamente; mesmo que, pelas necessidades e condições de pesquisa,
possam ser tomados num recorte textual “pinçado” para amostra, não são
e não devem ser explicados fora desse sistema.
A metodologia da abordagem da pesquisa, a partir do pensamento
sistêmico-complexo, é representada na Figura 2, composta a partir de
círculos cotangenciais bastante recorrentes nas ilustrações da LSF:

2 A perspectiva epistêmica/metodológica e, portanto, complexa apresenta


alternativa a também válida terminologia de “objeto de estudo”, qual
seja: “sistema-de-interesse”. A ideia de sistema-de-interesse remete ao
conjunto de elementos que são tomados na interpretação/compreensão de
um determinado fenômeno. Entendido na sua relação com os demais, o
sistema-de-interesse é o ponto de convergência do estudo ou a perspectiva
a partir da qual se deseja entender a totalidade, desde a zona de atividades/
sentidos (SILVA, 2016; MENDES, 2016, 2018).

Funcionalismo Linguístico 82
Figura 2 – Perspectiva sistêmico-complexa da pesquisa em linguagem

Fonte: Mendes (2018, p. 28).

Entendemos, a partir da ilustração, que a pesquisa se realiza nos/dos


próprios contextos em que os sistemas discursivos significam, e sua inter-
pretação também ocorre nesses mesmos contextos e sistemas, de modo que
os resultados decorrem do caráter interpretativo e da compreensão da rela-
ção entre o sistema-de-interesse, o pesquisador e o contexto pontual, tem-
poral em que o trabalho toma forma e apresenta sua função ou contribuição.
Nessa direção, o trabalho de Vian Junior (2014) apresenta percursos
metodológicos bastante recorrentes no paradigma da LSF, indicando a
natureza dinâmica e articulada com que a teoria da LSF permite a interpre-
tação da linguagem. Assim, a metodologia em LSF, quase sempre, implica
a (i) composição de corpora que representem o fenômeno a ser estudado;
(ii) estudo acerca dos aspectos contextuais de onde emergem os textos
desses corpora; (iii) seleção de aspecto linguístico enfocado; (iv) definição
de como os textos podem ser submetidos à análise; (v) quantificação; (vi)
busca por padrões lexicogramaticais; (vii) busca por respostas qualitativas,
a partir da quantificação; (viii) definição sobre o modo como o texto-con-

Funcionalismo Linguístico 83
texto representa a realidade, construções identitárias e/ou demais relações
de poder (VIAN JUNIOR, 2014, p. 441).
Esses movimentos, aqui defendidos, como possibilidade e não como tra-
jetória de obrigação, também foram reanalisados em Mendes (2018), numa
espécie de modelo sinótico da proposta da Figura 2 (apresentada antes):

Quadro 2 – Síntese da abordagem sistêmico-complexa


e da estratificação de Martin (1992)
Definições operativas da Estratificação do
Perspectiva
abordagem sistêmico- mundo extra/
adotada
complexa intralinguístico
Perspectiva Marco que orienta o Orientação ideológica
sistêmico- pesquisador, em que se geral
complexa inscrevem as concepções Contexto de cultura Extalin-
teóricas e os procedimentos (gênero) guístico
subjacentes ao estudo Contexto de situação
(registro)
Sistema-de- Fenômeno passível de Sistema semântico-
interesse interpretação dentro discursivo
de outros sistemas,
comumente construído/
significado no estrato
semântico-discursivo.
Corpus Conjunto de dados Sistema Intrallin-
linguísticos em que se pode lexicogramatical guísti-
identificar o sistema de coIntralin-
interesse pelas realizações guísticain
na léxico-gramática.
Amostras Porção de texto resultante Sistema grafonológico
em realizações de forma,
passíveis de serem
interpretadas à luz do
modelo sistêmico-complexo.
Fonte: Mendes (2016, p. 30).

Na seção a seguir, apresentamos uma experiência com a perspectiva


teórico-metodológica de que tratamos nesta parte, de maneira tal de que

Funcionalismo Linguístico 84
o leitor possa compreender os movimentos pragmáticos relacionados ao
pensamento sistêmico-complexo a partir da abordagem da LSF.

3.5  Recorte de uma pesquisa

Nesta parte, apresentamos, como recorte de uma pesquisa, a análise das


circunstâncias, como papel do Sistema de Transitividade como concebido
pela LSF, em blogs da revista Época on-line, sistema-de-interesse estudado
por Mendes (2010)3 e cuja interpretação é parcialmente recuperada de seu
capítulo de análise.
As circunstâncias estudadas no trabalho foram relacionadas às funções
dos processos e participantes associados, especialmente porque a concep-
ção de circunstante que fora reconhecida é absolutamente diferente da
conhecida pela tradição gramatical, que entende o circunstante como pa-
lavra responsável por modificar um verbo, adjetivo ou um advérbio – não
estabelecendo diferença entre este último e circunstância (NEVES, 1996).
Como propôs o autor, a pesquisa das circunstâncias tinha também a
finalidade de ampliar o entendimento a respeito do “como” esses papéis
do Sistema de Transitividade constitutivos/envolvidos se realizam, de
modo a compreender os mecanismos mobilizados para a construção dos
significados opinativos no blog.
Foram analisadas setenta e cinco postagens de quatro blogs (Diário do
Centro do Mundo, Paulo Moreira Leite, Blog do Nelito e Guilherme Fiuza),
com corpus de mais 25 mil palavras, nas quais foram identificadas um total
de 422 circunstâncias de variados significados ideacionais. As circunstân-
cias foram identificadas a partir da configuração sintagmas adverbiais,
sintagmas compostos por preposição + sintagma nominal (determinado
ou não) e sintagma nominal + sufixo – mente, modificando processos.

3 O texto desta seção reapresenta parte dos dados da pesquisa de mestrado


desenvolvida por Mendes (2010) no Programa de Pós-graduação em Letras/
CAPF/UERN, cuja referência encontra-se neste livro.

Funcionalismo Linguístico 85
A partir deste ponto, apresentamos mais detalhadamente a interpre-
tação dessas circunstâncias. Nos exemplos dispostos a seguir, é possível
analisar o comportamento das circunstâncias de extensão nos proces-
sos materiais. Para favorecer a identificação dos papéis do Sistema de
Transitividade, as circunstâncias de extensão destacam-se em negrito, e
os processos, sublinhados:

(01) Mergulhei no caso, e senti uma imediata antipatia pelo policial portu-
guês Gonçalo Amaral, que chefiou as investigações durante cinco meses
e depois foi afastado (B1L224-225).
(02) Jornalista formada pela Universidade de Brasília, Juliana Poletti
sempre dividiu sua atenção entre reportagens sérias, de temas políticos e
questões internacionais, e a música de qualidade. Estudou piano por três
anos. (B2L670-672).
(03) Como vocês se lembram, espalhou-se na semana passada pelo mun-
do um sentimento de perplexidade raivosa depois que foi publicado um
documento de 2.600 páginas que descrevia violências “endêmicas” em
crianças submetidas à guarda da Igreja Católica na Irlanda entre 1930 e
1990 (B1L331-335).

Todas as ocorrências de circunstâncias de [01] a [03] estabelecem tem-


poralmente o desenrolar das ações expressas, respectivamente, pelos pro-
cessos materiais “chefiar”, “estudar” e “espalhar”, corroborando igualmente
para a construção do sentido nas sentenças. Nos dois primeiros casos, os
processos indicam mudanças físicas perceptíveis, ações no mundo concreto.
Em [03], porém, o processo estabelece um fenômeno abstrato: espalhar
sentimento de perplexidade raivosa, por exemplo, é algo que somente
pode ser compreendido num plano de representação menos concreto e,
portanto, metafórico – cujos sentidos somente podem ser tomados numa
comunidade de sujeitos que compartilham dos domínios representados
na relação fonte/alvo.

Funcionalismo Linguístico 86
A esses processos se associam as circunstâncias de extensão temporal.
No exemplo de [01], o participante ator “Gonçalo Amaral”, retomado
pelo relativo “que”, conduz investigações numa determinada extensão
temporal que é claramente expressa: “durante cinco meses”. O autor da
postagem, ao demonstrar explicitamente seu descontentamento com o
policial (que tratou, no início das investigações, do desaparecimento da
criança Madeleine, na noite de 3 de maio de 2007), tenta, ao logo do texto,
desqualificar o trabalho empreendido pelo investigador e se vale da cir-
cunstância de extensão temporal possivelmente para sugerir morosidade,
lentidão nas investigações. O emprego desse tipo de circunstância em
[01], mais do que explicitar uma relação de duração temporal, sugere a
necessidade de endossar a opinião (Amaral é um tipo truculento, tem ares
de dono da verdade, fala muito, um fanfarrão–mas não resolveu nada no caso de
Madeleine. – B1L226-228) num dado que tem relevo: a atuação nas inves-
tigações durante cinco meses.
Fenômeno semelhante ocorre em [02]. Para atribuir ao enunciado o fato
de que a jornalista Juliana Poletti tem conhecimento musical um caráter
persuasivo, o autor da postagem se vale do período de tempo em que a
profissional se dedicou ao estudo do piano (três anos). Atentemos, assim,
que o uso da circunstância reforça a ideia por ele defendida no enunciado
anterior, contribuindo para o entendimento de que esse papel do Sistema
de Transitividade tem função importante na construção da opinião.
Já as circunstâncias presentes em [03] estão associadas a um processo
material que denota não uma experiência perceptível no mundo, mas que
pode ser entendida em um plano mais abstrato. O blogueiro faz uso de uma
circunstância de localização temporal, seguida de duas de extensão: uma
espacial e outra temporal. “Pelo mundo” engrandece, num movimento
hiperbólico, o “sentimento de perplexidade raivosa” que o autor demonstra
pelo comportamento da Igreja Católica na Irlanda. Quando se empregou
a circunstância “pelo mundo”, o autor possivelmente pretendia sugerir/
estabelecer o repúdio que todo o mundo deve sentir pelo comportamento

Funcionalismo Linguístico 87
violento da Igreja, no período de 60 anos (expresso pela circunstância entre
1930 e 1960), posto não haver garantia de que o documento de 2.600 páginas
(ou mesmo a notícia sobre ele) tenha chegado ao conhecimento das pes-
soas em todos os lugares do mundo. Logo, ao apresentar as circunstâncias
antepostas ao participante meta “um sentimento de perplexidade raivosa”,
o blogueiro pretendia chamar a atenção do leitor (alcance do problema)
para o assunto apresentado.
Ainda sobre a mesma temática, o exemplo [04] apresenta uma cir-
cunstância de duração temporal que expressa bem o papel das escolhas
no plano da LSF:

(04)... Especula-se que o montante de indenizações vá chegar a 3


bilhões de reais.

Veja aqui um vídeo em que uma mulher relata a (má) expêriencia que
viveu, durante a infância e a adolescência, num abrigo da Igreja.
Soube-se também que o Papa será inteirado dos fatos. (B1 L372-376).
O processo viver está sequenciado por dois tipos de circunstâncias: a
primeira, em negrito, de extensão tempo; a segunda, sem grifos, de loca-
lização espacial. Nesse caso, o uso da circunstância “durante a infância e
a adolescência” apoia o argumento da maldade que envolve a exploração
sexual em fases específicas da vida do agente experienciador de tal abuso.
Ao invés de dizer “durante quinze ou dezesseis anos”, o blogueiro sugere
que a exploração sexual não teve como agravante apenas o fator tempo e
sua duração, mas, principalmente, as etapas de vida da pessoa envolvida,
para sugerir que o crime é ainda mais cruel por ter sido praticado em
crianças ou adolescentes.
Vejamos que a escolha da circunstância, nesse exemplo específico, não
foi de modo algum aleatório, posto que, no desenvolvimento argumenta-
tivo, ela melhor se ajustaria à proposta de enunciar a violência legal, com
características de crime de pedofilia, em que figura como autora a Igreja
Católica na Irlanda. Isso fica mais sensivelmente percebido quando o autor

Funcionalismo Linguístico 88
“ordena” que se assista a um filme sobre essa situação: “Veja aqui um vídeo
[...]”. O vídeo, que poderia ser executado por meio de link disposto no blog,
é como que a prova completa para aquilo que denuncia. A mulher que
“relata a (má) expêriencia [sic.] que viveu” naturalmente vai aludir ao tempo
que passou (infância/adolescência) num abrigo da Igreja, corroborando
para a verdade pretendida pelo autor da postagem.
Ora, se fizesse uso de outras escolhas de circunstâncias para repre-
sentar temporalmente a duração do evento, como se pode ver em (01) e
(02), por exemplo, o autor poderia não lograr êxito na ofensiva contra a
Igreja, a quem são atribuídas as responsabilidades pelos crimes de pedo-
filia e, não somente, pelos atos de exploração sexual menos invasiva em
determinado período.
As circunstâncias de duração temporal menos precisas, ou a referência
a um período convencionalmente sabido pelo leitor, têm valores diferença-
dos dentro do texto do blog. Em (04), é possível compreender a intenção de
melhor representar o tempo de ocorrência do fato/evento, aludindo a certo
período da vida dos sujeitos envolvidos. Em outros casos, circunstâncias
que podem exprimir certa imprecisão temporal apresentam finalidades
diferentes, como se pode ver em (05):

(05) Peter Singer desde muito tempo sonha com um mundo menos errado,
em que não morram 27 000 crianças por dia.

Mas não apenas sonha. Também age. (B1 L036-038).


Nesse outro caso do corpus, o processo mental “sonhar” está deter-
minado pela circunstância de extensão temporal “desde muito tempo”.
Aqui é possível perceber que a imprecisa duração do desejo/sonho não
tem a finalidade de representar, por entendimento de convenção esta ou
aquela do leitor, outro estado de coisas. Porém, a seleção de “desde muito
tempo” deve ter tomado como parâmetro outra situação para a qual não
é possível estabelecer um marco inicial/final: um mundo errado. Ou seja,
não é possível saber há quanto tempo o participante ator, Peter Singer,

Funcionalismo Linguístico 89
sonha com um mundo melhor, porque, pela mesma lei, não é possível
determinar desde quando o mundo está “errado”.
É preciso que se diga também que a não exatidão circunstancial pode
ter relação direta com o tipo de processo. Como se trata de um processo
mental, cuja representação é frequentemente relacionada a crenças, valores,
desejos e expressam as experiências do “sentir”, a pouca precisão do tempo
talvez sirva ao propósito de não demarcar as fronteiras do início/fim. Se, em
lugar do processo mental, houvesse sido empregado um processo material
(trabalhar, construir etc.), eventualmente poderia ter havido a predileção
por uma circunstância que pudesse expressar duração de tempo com mais
justeza, dado que a ação estaria acontecendo no plano concreto, perceptível.
Essa possibilidade é reforçada por esta outra ocorrência de circuns-
tância de duração temporal em processos mentais:

(06) Já não sei há quantos anos Alencar enfrenta o cancer. Perdi a conta de
quantas cirurgias já fez. A impressão é que um tumor desaparece apenas
para dar lugar a outro. (B2 L777-779).

Embora a circunstância “quantos anos” se refira mais diretamente


ao processo “enfrentar”, da oração encaixada, o processo mental “saber”
é complementado pela dificuldade de estabelecer o tempo que o autor
da postagem julga não poder determinar da luta do vice-presidente José
Alencar contra o câncer. O uso da circunstância em [06], referindo-se ao
processo material e complementando o processo mental, tem em vista o
enaltecimento da figura de Alencar. Naturalmente, para o autor do blog
(Paulo Moreira Leite), que tem vivência e experiência na imprensa (17
anos de jornalismo, conferir p. 61), seria possível determinar quando foi
diagnosticado o câncer do vice-presidente, considerando mais ainda que
é informação recorrente na mídia cada nova intervenção ou tratamento de
José de Alencar. Porém, ao afirmar não saber “há quantos anos Alencar en-
frenta o cncer [sic.]”, o jornalista se mostra impressionado pelas inúmeras
superações do agente (Perdi a conta de quantas cirurgias já fez), demonstrando,

Funcionalismo Linguístico 90
por sua vez, que o lapso de tempo é “pretexto” para valorizar a forma como
se comporta o vice-presidente diante de seu problema de saúde.
Ainda no mesmo blog, é possível identificar o uso de circunstâncias
que se valem de imprecisão temporal para reforçar determinada tese do
autor. Diferentemente do que ocorre em [06], nos exemplos que seguem,
o blogueiro expressa uma representação de extensão temporal imprecisa
menor para enaltecer, valorizar (ou falsear um desconhecimento com o
propósito de elevar a outrem) e, mais, para afluir com os argumentos que
propõe na defesa de sua opinião.
Na primeira ocorrência, o autor está se posicionando acerca das
cotas nas universidades pública; na segunda, lamenta o fim do jornal
Gazeta Mercantil:

(07) Acho que um país como o Brasil não tem o direito de excluir de suas
melhores universidades, durante várias gerações, aqueles estudantes que,
em exames tecnicamente isentos — sem privilégio de origem, raça ou
gênero — podem demonstrar que tem maior preparo e competência para
frequentar seus cursos. (B2 L812-816).
(08) Precisam de história para encontrar seu lugar, crescer e mostrar o que
tem a dizer para homens e mulheres de seu tempo e, por fim, tornar-se
parte da cultura de um país. Fundada em 1920, a Gazeta fez isso durante
décadas. (B2 L857-859)

Paulo Moreira Leite (B2), na postagem em que discute a temática das


cotas para negros e/ou estudantes de escolas da rede pública nas univer-
sidades estaduais/federais que regulamentaram a legislação, posiciona-se
contra o sistema que estabelece percentual de vagas para esses alunos.
O processo material “excluir”, a que se associa a circunstância “durante
várias gerações”, está na base de sua retórica: para o autor, o sistema de
cotas é excludente, na medida em que estudantes com “maior preparo e
competência” podem ser impedidos de admissão em cursos, em função
das cotas. A circunstância empregada pelo blogueiro é importante porque

Funcionalismo Linguístico 91
se vale do argumento daqueles que são a favor das cotas, de que há uma
dívida de gerações em desfavor das classes mais marginalizadas histori-
camente pela sociedade: os negros/os pobres.
Quando o autor menciona não ser justa a exclusão, nas melhores uni-
versidades, de estudantes preparados, em exames isentos, a circunstância
“durante várias gerações” apresenta duas proposições principais: a pri-
meira é de que o sistema de cotas pode estar privilegiando um grupo em
detrimento de outro – como pode ter ocorrido com a discriminação racial;
segundo, que o sistema de cotas pode perdurar por algumas gerações. Em
outras palavras, o emprego da circunstância estabelece uma hipótese na
defesa da tese do blogueiro, para quem o sistema de cotas não contribui
para a diminuição da exclusão, mas apenas para mantê-la por outro viés.
Antes de passar à análise da ocorrência [08], já anunciada, cabe aqui,
por semelhante valor, a interpretação de outra ocorrência em que figura a
circunstância “por cinco gerações”, no blog 4 – Guilherme Fiuza:

(09) A caixa preta da contabilidade petrolífera daria para bancar as es-


tripulias dos deputados e senadores por cinco gerações. Manipulam o
preço do óleo como bem entendem, vivendo num paraíso monopolista
pós-soviético – pura jogatina com fachada de indústria. (B4 L1879-1882)

Na ocorrência anterior, o uso de “por cinco gerações” tem valor se-


melhante ao que ocorre em (07). Porém, nesse caso, o autor pode estar
fazendo ironia/associação relacionada à contabilidade da Petrobrás e ao
fato de a sucessão deputados/senadores estar apresentando características
de hereditariedade no Congresso Nacional, onde alguns legisladores têm
elegido seus filhos, netos para mandatos parlamentares. Mais do que isso,
o autor pode também estar sugerindo que os regimes de pagamento de
propinas, frequentemente investigados pelos próprios deputados/senado-
res, pode se estender ainda por vários anos, graças ao volume financeiro
movimentado pela estatal do petróleo.

Funcionalismo Linguístico 92
Em comum, as ocorrências (07) e (09) têm a intrínseca correspondência
entre a convenção temporal (por gerações) e o fato a que estão associadas
(dívida social/sucessão no poder). O emprego, portanto, desse tipo de
circunstância sugere que a intenção do autor (persuadir, ironizar, expor)
pode ter no tempo e nas suas convenções (gerações, décadas etc.) uma base
capaz de apoiar a discussão a favor de seu ponto de vista ou de sua opinião.
Depois desse aditamento, em (08) o autor do blog 2 lamenta o fecha-
mento da Gazeta Mercantil, entre os meses de maio de junho de 2009.
“Durante décadas” é a circunstância de que se vale o autor para confirmar
sua apreciação pelo trabalho do jornal em questão. Nesse caso, seria possí-
vel determinar, se fosse esse o caso, o número de anos de atuação da Gazeta
Mercantil, já que o blogueiro situa o leitor quanto à data de fundação do
jornal (1920). Porém, quando preferiu empregar a circunstância em des-
taque, é possível que o escrevente tenha pretendido não se comprometer
acerca da integralidade do tempo para o qual faz suas deferências. Ou seja,
afirmar que a Gazeta Mercantil teve papel relevante no dizer da cultura
de homens e mulheres, “durante décadas”, é, possivelmente, diferente de
dizer que esse jornal teve papel relevante durante 89 anos, ou durante oito
décadas. Ou, contrariando tudo que foi dito até aqui, ao enunciar “durante
décadas”, depois de ter enunciado o ano de fundação do jornal, o blogueiro
já esperava a precisão temporal por parte do leitor e, sendo assim, pouca
relevância poderia ter a configuração morfológica da circunstância.
Porém, do ponto de vista das escolhas (nos planos léxico-gramatical
e semântico), o emprego de “durante décadas” reforça o caráter sério e
competente que o blogueiro atribui ao jornal, durante seus anos de ativi-
dade – razão esta que conduz autor da postagem a lastimar pelo fecha-
mento da Gazeta.
No Blog do Nelito (B3), há exemplo semelhante: neste, todavia,
não há marco temporal inicial que permita estabelecer com precisão a
duração de tempo:

Funcionalismo Linguístico 93
(10) Durante anos, Lula foi a cara do PT. E o PT foi a cara de Lula. Quem
tentou internamente desafiar o barbudo teve que colocar as barbas de
molho. (B3 L1204-1205).

O processo relacional “ser” está antecedido pela circunstância “durante


anos”. Nelito, ao discutir a sucessão presidencial, trata da influente figura
de Lula no partido que ajudou a fundar: o Partido dos Trabalhadores (PT).
Ao aventar que a sucessão possa ser conferida a esse partido, ou pelo me-
nos discutindo o(a) possível candidato(a) do referido partido para eleições
presidenciais, o autor inicia sua declaração com a circunstância que tenta
assemelhar Lula e o PT, indicando, por conseguinte, que as tentativas de
“desafiar” essa realidade não foram bem sucedidas. Ora, no decurso de sua
postagem no blog, Nelito apresenta a possibilidade de um terceiro mandato
de Lula não simplesmente por uma eventual popularidade do presidente,
mas porque o PT não teria outro nome para concorrer às eleições presi-
denciais. A circunstância (durante anos), dessa forma, reforça a ideia de
que o tempo em que o partido esteve associado/identificado ao nome do
presidente Lula permitiu a não ascensão de nenhum outro partidário.
Nesse mesmo blog, a temática das cotas, já tratada por Paulo Moreira
Leite, é também discutida. O autor, ao demonstrar acompanhamento
sistemático do assunto pela mídia, também assevera sua produção em
torno da questão:

(11) As cotas já foram suspensas, já voltaram, já caíram e ressurgiram.


Cubro o assunto há pelo menos seis anos, já devo ter feito umas 15 ma-
térias sobre isso. Aqui é um espaço onde eu teoricamente devo ter uma
opinião. (B3 L1167-1169).

Nessa ocorrência, a circunstância “pelo menos seis anos”, associada ao


processo material “cobrir” (expressão do jornalismo que corresponderia
a “acompanhar”), indica o tempo em que o blogueiro tem se dedicado à
discussão sobre as cotas. Além disso, há também certa sugestão de movi-
mento/mudança de comportamento do tema (As cotas já foram suspensas, já

Funcionalismo Linguístico 94
voltaram, já caíram e ressurgiram.). Quando o autor afirma estar envolvido
com esse assunto há mais de seis anos, é possível que esteja pretendendo
sugerir que o tema é ainda muito polêmico e, portanto, carente da opinião
a que se propõe no blog (Aqui é o espaço onde eu teoricamente devo ter uma
opinião). Ora, se num curto espaço de tempo, já ocorrem diversas mudanças
em relação ao entendimento do sistema de cotas, isso pode significar que
o assunto não é caso fechado. O uso da circunstância em questão implica,
portanto, que sua opinião, seus posicionamentos ainda não se esgotaram
([...] já devo ter feito umas 15 matérias sobre isso).
Pelo que foi disposto até aqui, é possível compreender que as circuns-
tâncias de extensão temporal no blog são mais recorrentes que as espaciais.
Isso pode decorrer do fato de que, para conferir certo caráter de verdade a
esta ou àquela opinião, o período de tempo em que se configurou determi-
nada ação é mais relevante que o espaço. Ou ainda, a forma de identificar
esse local físico, em que tais ações ocorrem, pode estar expressa pelas
circunstâncias de localização, bem mais frequentes no corpus, e objeto da
próxima seção. Mencionamos, ainda, que as circunstâncias de extensão
desempenham papel importante na composição argumentativa/persuasiva
dos textos do blog, na medida em que reforçam ideias, confirmam aprecia-
ção, aduzem raciocínios, valorizam características/qualidades de entidades,
pessoas ou temas a que se proponha discutir ou opinar.

3.6  Considerações finais

Neste capítulo, tivemos por finalidade principal trazer até o leitor as con-
cepções que traduzem o paradigma do funcionalismo linguístico, com
enfoque específico na abordagem da LSF, indicando a possibilidade de
seu emprego como construção teórico-metodológica capaz de explicitar
as razões/motivações dos usos e mudanças pelas quais passam as línguas
naturais, entendendo que os dados desses usos configuram a materialidade
por meio da qual se pode partir para a descrição.

Funcionalismo Linguístico 95
Em qualquer de duas formas, o funcionalismo linguístico está estrei-
tamente vinculado ao uso, sendo esse conceito caro ao empreendimento
de pesquisar a especificidade da língua nas suas mais variadas realiza-
ções na cultura. A concepção de função (tal como para Bronisław Kasper
Malinowski em Argonautas do Pacífico Ocidental) figura como mecanismo
que permite dar sentido, com base em dados aparentemente caóticos, aos
diversos sistemas que configuram e criam a linguagem e, por conseguinte,
ao mundo por ela elaborado.
As concepções centrais foram apresentadas, tomando por base uma
pesquisa realizada com orientação no modelo funcionalista, cujo interes-
se foi ampliar o entendimento acerca das circunstâncias do Sistema de
Transitividade, a fim de compreender os mecanismos mobilizados para a
construção dos significados opinativos em blogs.
Por fim, o capítulo, assim como toda a obra, é mais um convite à
problematização, uma chamada ao movimento de não aceitar como ver-
dadeiro tudo aquilo que “logicamente” tem sido dado como paradigma
dominante, uma provocação para se pensar o papel da Linguística e de
seus cientistas nestes tempos em que as máquinas se propõem fazer, com
fidelidade e precisão ainda não registradas, tudo aquilo que construímos
à maneira da espécie humana.

Funcionalismo Linguístico 96
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Funcionalismo Linguístico 99
4 P R A G M ÁT I C A : A N ÁL I S E
D O S AT O S D E FA L A

Pedro Adrião da Silva Júnior

4.1  Considerações iniciais

Este estudo se fundamenta, basicamente, em duas áreas de


conhecimento. Por um lado, situa-se a pragmática, com-
ponente básico que se reconhece na competência comu-
nicativa (HYMES, 1971) e que procura estabelecer, com
precisão, fatores que determinam sistematicamente o modo
como funcionam nossos intercâmbios comunicativos. A
pragmática é conhecida, tradicionalmente, como o estudo
do uso da linguagem.

101
Sabemos que, durante o processo de aquisição de um idioma, para ex-
pressar-se na língua estrangeira, o aprendiz precisa de conhecimentos
linguísticos, gramaticais, fonéticos e fonológicos, culturais, etc. Porém,
nos últimos anos, a competência pragmática vem ganhando destaque no
ensino e na aprendizagem de línguas estrangeiras, visto que, durante os
intercâmbios comunicativos, as intenções dos interlocutores que rodeiam o
enunciado nem sempre são compreendidas. É precisamente nesse ínterim
que os conhecimentos pragmáticos se fazem importantes para decodificar
o que se quer comunicar implicitamente.
Por outro lado, este estudo se fundamenta na Gramática do Designer
Visual, que estuda, entre outros, textos publicitários como veículo de
comunicação. Esse gênero textual está presente no nosso dia a dia, em
forma de representações visuais, que se organizam e se estruturam nos
textos multimodais.
Os textos multimodais são textos formulados a partir de signos linguís-
ticos e são representados por meio de elementos visuais e verbais. Esses
textos são divididos em dois modos, que compõem sua estrutura: o modo
verbal e o modo não verbal.
Propomos, com este estudo, apresentar a análise de algumas peças
publicitárias, sob a ótica da pragmática, com base na teoria dos atos de fala
diretivos propostos por Austin (1962) e Searle (1969). As peças publicitá-
rias serão analisadas na perspectiva da GDV, segundo os autores Kress e
Van Leeuwen (2006), abordando a função composicional nos enunciados.
No que concerne à metodologia, a pesquisa possui caráter descritivo,
qualitativo e interpretativo.
O primeiro tópico apresenta o surgimento da pragmática e sua impor-
tância para os estudos da linguagem, bem como os pressupostos teóricos
da Gramática do Design Visual (GDV); o segundo tópico mostra alguns
principais conceitos necessários à compreensão da Pragmática, dos Atos de
Fala e da GDV; no terceiro tópico, está presente a metodologia empregada

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 102


em nossa pesquisa; o quarto tópico apresenta um recorte de uma pesquisa
que analisa os atos de fala em peças publicitárias.
Sendo assim, a importância deste trabalho está em proporcionar uma
leitura imagética de anúncios que abordam importantes temas para a
sociedade, contribuindo, dessa forma, para uma visão crítica acerca de
textos visuais.

4.2  Princípios teóricos: surgimento da pragmática

Na última metade do século XX, a linguística passou por uma importante


transformação, marcada pela ampliação do seu objeto teórico: experimenta
a renovação da psicolinguística, da semiótica e da etnolinguística, e ocorre
o surgimento de novas disciplinas, como a pragmática, a sociolinguística,
a análise do discurso e a análise conversacional. Segundo Ordóñez (2004),
nesse campo fértil, as ciências da linguagem ampliam seus estudos e di-
recionam suas pesquisas para explicar seus objetos.
Maingueneau (1997) aponta que as reflexões de natureza pragmática
são bem antigas, remontam à Grécia Antiga, posto que a retórica, con-
siderada como estudo da intenção persuasiva, já tratava de questões do
campo pragmático. Ainda conforme esse autor, a própria gramática tratou
de alguns aspectos, como: o estudo de modo, tempo e outros elementos
importantes para a atividade enunciativa. Entretanto, a relevância desses
estudos estava subjugada a uma condição periférica diante da tradição
morfossintática gramatical.
Considerada uma das mais importantes linhas do conhecimento con-
temporâneo, o pragmatismo foi idealizado por um grupo de pensado-
res, mediante uma escola de especulações filosóficas instituída no final
do século XIX. Esse pensamento desenvolveu-se ao longo do século XX,
principalmente nos Estados Unidos, liderado pelo lógico e filósofo Peirce
(1839; 1914), pelo psicólogo James (1842; 1910) e, posteriormente, pelo

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 103


filósofo norte-americano Dewey (1859; 1952). Esses nomes configuram
os principais representantes desse pensamento em suas várias vertentes.
Um dos primeiros estudiosos a usar o termo pragmática foi o filósofo
americano Peirce (1839), em seu artigo How to make our ideas clear. Nele, o
autor escreve sobre a tríade pragmática: as relações entre signo, objeto e
interpretante. Por meio desse esquema, Pierce estabelece uma relação entre
o que se diz, a quem esse dito remete e o que ele significa.
A filosofia de Peirce trouxe importantes contribuições para o enten-
dimento da linguagem. Sua compreensão entre pensamento e signo foi
responsável pelo surgimento da semiótica, uma visão de como o homem
significa aquilo que o rodeia e dos processos da linguagem.
O autor postula que todo pensamento se dá por meio de signos e que
não há pensamento sem signo. Segundo Peirce (1992b, p. 283), o signo e
o pensamento são inseparáveis, porque

Ora um signo tem, como tal, três referências; o primeiro, é um


signo para algum pensamento que o interpreta; é um signo de
algum objeto ao qual, naquele pensamento é equivalente; terceiro,
é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que o põe em conexão
com seu objeto (PEIRCE, 1992b).

A partir do que foi proposto por Peirce, o também filósofo Charles


William Morris (1938) difundiu o termo pragmática – embora tenha sido
Peirce o primeiro a usá-lo. De acordo com a definição de Morris (1938,
p. 67), a pragmática é “a ciência que trata da relação entre os signos e
seus intérpretes”.
Tanto Peirce quanto Morris estabeleceram uma importante relação: o
vínculo entre os signos e os referentes. Os estudos pragmáticos partem
da ideia da semiótica de Pierce, o qual propõe que os estudos linguísticos
deveriam centrar-se em três níveis: sintático, semântico e pragmático.
No texto Foundations of a Theory of Signs3, Morris (1938) estabelece uma
distinção entre sintaxe, semântica e pragmática. Segundo esse pesquisa-

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 104


dor, a sintaxe examina as relações entre os signos; a semântica estuda a
relação dos signos com os objetos aos quais se referem; e a pragmática
trata da relação dos signos com seus usuários e de como estes os inter-
pretam e os empregam.
Essas definições, nos estudos sobre a linguagem, foram de grande
importância para a linguística, a filosofia e, principalmente, para os estu-
dos sobre a teoria da comunicação. Entretanto, não foram suficientes para
precisar o termo pragmática, tampouco capazes de definir e delimitar em
que ponto termina a semântica e começa a pragmática.
Nessa mesma perspectiva, Carnap (1938, p. 69-70), filósofo alemão,
define a pragmática como o estudo da linguagem em relação aos seus
falantes ou usuários e acrescenta: “a pragmática está na base de toda a
linguística”. Entretanto, analisá-la do ponto de vista pragmático foi sem
dúvida uma das suas grandes inquietações.4
Para esse estudioso, o uso da linguagem em situações concretas é
bastante heterogêneo, complexo e está sujeito a muitas variações, o que
impossibilita torná-la objeto de uma análise científica ou filosófica. Carnap,
em seu clássico The Logical Syntax of Language (1938), afirma que não há
dependência contextual. Por essa razão, elementos como tempo, lugar e
intenção dos falantes não são considerados nas suas análises. Com essa po-
sição, Carnap reitera a análise da linguagem com um sentido mais teórico
e sistemático, dando ênfase apenas nos planos da semântica e da sintaxe.
Também é importante ressaltar que os estudos pragmáticos possuem
grande relevância no campo discursivo. As pesquisas sobre essa discipli-
na começaram no século XIX com Austin (1962) e Searle (1969). Segundo
Calsamiglia Blancafort e Tusón Valls (2002),

4 Escrito em 1938 por Charles W Morris. O texto serviu de introdução à


International Encyclopedia of Unified Science (Enciclopédia Universal de
Ciência Unificada), da qual o filósofo foi um dos organizadores, junto com
Otto Neurath e Rudolf Carnap, do Círculo de Viena.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 105


Para que haja comunicação, deve haver uma transação de infor-
mação entre uma fonte–a instância emissora–e um destino–a ins-
tância receptora -, e isso é reproduzido em um contexto específico
e concreto. (Tradução do autor)5.

Essas teorias explicam que nós nos comunicamos não somente para
informar, mas também para pedir convidar, saudar. É importante com-
preender que, quando uma pessoa fala algo, ela tem alguma intenção, e
isso vai além do que se vê literalmente em nossas trocas comunicativas e
depende de fatores que influenciam diretamente o locutor e o interlocutor.
Segundo Frías Conde (2001, p. 4), “o enunciado pode ser uma oração ou
uma frase, contanto que esteja contextualizado”. Por isso, a compreensão e
a interpretação também podem variar, pois estão vinculadas ao momento
específico que envolve os falantes.
Todavia, é importante considerar que todo discurso possui um objetivo,
como afirmam Calsamiglia Blancafort e Tusón Valls (2002):
O discurso sempre tem um propósito–muitas vezes, mais de um–em-
bora o grau de controle que a consciência exerce sobre a produção dos
enunciados e sobre a manifestação ou a execução de nossas intenções seja
muito variável² (CALSAMIGLIA BLANCAFORT; TUSÓN VALLS, p. 187,
2002, tradução do autor)6.
Segundo a autora de Las cosas del decir, o propósito do nosso discurso
é algo que varia e de que nós só manifestamos e deixamos aparecer o que

5 Texto original: “Para que haya comunicación es preciso que exista una
transacción de información entre una fuente- la instancia emissora- y
un destino- la instancia receptora-, y eso se reproduce en un contexto
determinado y concreto”.
6 Texto original: “El discurso siempre tiene un propósito-a menudo, más
de uno-, si bien el grado de control que la consciência ejerce sobre la
producción de los enunciados y sobre la manifestación o la ocutación de
nuestras intenciones es muy variable”.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 106


nos é conveniente. Para esse propósito, costumamos fazer uso de elemen-
tos extralinguísticos, e uma das funções da pragmática é, precisamente,
analisar o que está sendo dito nas entrelinhas.
Essa é a principal diferença entre a pragmática e a gramática: enquanto
a primeira se preocupa em estudar o contexto de produção do enunciado,
a segunda leva em consideração somente o enunciado, fora de contex-
to comunicativo.
Nesse sentido, de acordo com Escandell Vidal (2004), há quatro fatores
que intervêm no processo comunicativo: “emissor, destinatário, situação,
enunciado”. Além desses, há ainda “a intenção e a distância social”, que
a autora aponta como relações que se estabelecem entre esses fatores.
Além disso, em nossa sociedade, há padrões estabelecidos que nos
permitem adotar certos comportamentos em diferentes contextos comuni-
cativos. Por exemplo, ao chegar ao local de trabalho, nós automaticamente
adotamos um comportamento diferente do que usamos em nossa casa com
nossos familiares ou do que usamos na rua com nossos amigos.
Isso ocorre, segundo Escandell Vidal (2004, p. 185), porque “nos acos-
tumamos a padrões de interação sociais que nos levam a adotar comporta-
mentos determinados em diferentes situações comunicativas”, o que gera
um conhecimento interiorizado em nós.

4.2.1  Teoria dos Atos de Fala – Austin (1962) e Searle (1975)

Uma das teorias precursoras dos estudos da pragmática e que possui


grande relevância nesse campo de estudo da linguagem é a teoria dos
atos de fala, proposta por Austin (1962). Austin buscava uma teoria que
estruturasse e explicasse como a linguagem humana está constituída. Em
seus estudos, Austin percebeu que, com a linguagem, fazemos mais do que
descrever o mundo ao nosso redor e destaca que, com o uso das palavras,
realizamos ações sobre o mundo (OLIVEIRA, 1996). Para responder seus

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 107


questionamentos sobre a linguagem, Austin desenvolveu uma teoria e
chamou-a de teoria dos atos de fala.
Na teoria dos atos de fala, Austin afirma que a linguagem está com-
posta por três instâncias, sendo elas chamadas de: ato locucionário, ato
ilocucionário e ato perlocucionário. Austin afirma que “todo dizer é um
fazer”, ou seja, dizer é comunicar.
Em sua obra How to do thinhs whith wods (1962), Austin baseou seus
estudos em duas linhas de raciocínio: a teoria dos atos de fala constativos
e a teoria dos atos de fala performativos.
Os atos de fala constativos eram descritos como verdadeiros ou
falsos em um enunciado, ou seja, quando pronunciamos uma frase,
como, por exemplo:

- Batizo esse carro em nome de Cláudia.

Estamos fazendo uso de palavras as quais não podemos proferir, pois


não temos autoridade para batizar, senão o padre ou o pastor. Esse ato de
fala é considerado falso; logo, é constativo.
Por outro lado, nos atos de fala performativos, o enunciado não se pren-
de ao que está sendo proferido como verdadeiro ou falso, mas a uma ação
comunicativa como saudar, agradecer, ordenar, etc. Nesse sentido, o ato de
fala faz com que a mensagem, ao ser proferida, gere uma ação. Por exemplo:

- O senhor se sentou na minha cadeira.

Nesse caso, o enunciado estará realizando três atos de fala consecutivos:


O ato locucionário: ao proferir a frase, além de comunicar, ele estará tam-
bém transmitindo uma informação (avisar, prometer, informar, etc.). Esse
ato designa a dimensão linguística (produção, articulação e significação
gramatical de um enunciado) presente na linguagem (OLIVEIRA, 1996).
Sendo assim, todo idioma está constituído, primeiramente, por um ato
locucionário, ou seja, por estruturas linguísticas previamente estabelecidas,
que buscam cumprir um propósito comunicativo.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 108


A segunda instância da linguagem proposta por Austin é chamada
de ato ilocucionário. Nesse caso, a linguagem é constituída de intenções
comunicativas, ou seja, a língua exerce um propósito comunicativo que
rege a relação entre sujeito/sujeito e sujeito/mundo, realizando então uma
ação (OLIVEIRA, 1996).
Todo ato de fala (pedir, assegurar, explicar) desencadeia uma inten-
ção comunicativa (obter, convencer, informar). No exemplo acima, o ato
ilocucionário faz com que a frase que foi proferida gere uma ação como
resposta do ato de fala locucionário.
A terceira instância da linguagem é o ato perlocucionário. Tal ato de-
signa o efeito produzido no interlocutor, advinda da dimensão ilocucionária.
Por exemplo, se o locutor, por meio de uma expressão linguística (ato
locucionário), alcança o propósito comunicativo desejado (ato ilocucio-
nário–advertir, convencer, etc.), diz-se que o ato perlocucionário (efeito
produzido → advertir, convencer, etc.) foi positivo. Caso contrário, diz-se
que foi negativo (OLIVEIRA, 1996).
O ato perlocucionário é essa ação gerada por meio do ato de fala ilo-
cucionário, por meio do qual se alcança um efeito de sentido nos interlo-
cutores (felicidade, surpresa, espanto, etc.).
A importância de se estudar os atos de fala e como eles são desenvolvi-
dos na linguagem está basicamente na busca por compreender como cada
comunidade estrutura seus códigos linguísticos (ato locucionário) para
executar e cumprir uma intenção comunicativa (ato ilocucionário) e gerar
seus efeitos (ato perlocucionário) positivos ou negativos no interlocutor.
Alguns anos depois, Searle (1975) apresentou uma “continuação” dos
estudos de Austin. Searle dedicou-se aos estudos dos atos de fala, tendo
em vista a importância da manifestação do ato ilocucionário.
Para Searle (1976), o ato ilocutivo pode ser classificado em cinco grupos:

Assertivos ou representativos: descrevem um estado de coisas no mundo.


São passíveis de uma veracidade ou não–(afirmar, explicar, presumir, etc.).

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 109


Diretivos: têm a pretensão de fazer com que o destinatário realize uma
determinada ação–(ordenar, pedir, aconselhar, etc.).
Compromissivos: comprometer-se a realizar determinada ação–(prometer,
garantir, oferecer, etc.).
Expressivos: manifestam um estado de ânimo a respeito de algo–(agra-
decer, perdoar, felicitar, etc.).
Declarativos: produzem uma mudança em seu contexto em virtude
da autoridade que lhe foi delegada–(batizar, contratar, delegar uma
sentença, etc.).

A diferença entre ambos os teóricos é que “Austin põe ênfase na


ideia de ação, Searle se centra mais no caráter convencional dos atos de
fala e nas relações entre forma linguística e ato de fala” (ESCANDELL
VIDAL, 2004, p. 188).
Portanto, com a teoria dos atos de fala, os estudos da linguagem ga-
nham novas proporções e possibilitam novas áreas de pesquisa. A partir
de então, passa-se a levar em consideração o dito, o contexto no qual os
sujeitos estão inseridos, quem são esses sujeitos que proferiram o enuncia-
do e as intensões que existem além da estrutura literal de um enunciado.
Em síntese, a teoria dos atos de fala tem a pretensão de catalogar as
intenções comunicativas, analisar os meios e formas pelas quais essas
intenções são manifestadas (ESCANDELL VIDAL, 2004). Em outras pala-
vras, busca-se verificar como cada comunidade linguística estrutura seus
enunciados para cumprir determinadas intenções comunicativas
A partir dessas contribuições, Austin (1962) descreve os atos de fala
como um processo de enunciados linguísticos que fazem parte do desen-
volvimento da comunicação humana, que tem por finalidade compreender
o que está sendo dito por meio da teoria dos atos de fala.
Searle (1969) dá continuidade às pesquisas de Austin (1962) na linguís-
tica contemporânea, fazendo uma análise na perspectiva comunicativa
entre os falantes, contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento da
teoria dos atos de fala.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 110


4.2.1.1  Ato de fala diretivo

Como apontamos desde o início deste capítulo, os atos de fala não só


comunicam ou informam, mas realizam várias outras ações, como, por
exemplo: ordenar, cumprimentar, convidar, saudar, etc.
Searle aponta o ato de fala diretivo como sendo o ato que realiza ações
por meio do que está sendo dito. Para que isso ocorra, há uma interação
comunicacional entre o emissor e o receptor, que faz com que ambos fa-
çam uma interpretação bem-sucedida dos anúncios, alcançando assim os
objetivos esperados.
É necessário que o receptor tenha conhecimento de mundo de modo
geral. Para isso, é preciso associá-lo ao sentido literal do que está sendo
dito e que se façam observações a partir do conhecimento verbal conti-
do nesses textos.
Ao proferir uma frase como:

- Feliz aniversário!
- Obrigado!

O emissor transmite uma felicitação, fazendo com que a mensagem


provoque uma ação sobre o receptor, alcançando, assim, a interação por
meio do processo comunicacional do ato de fala diretivo.

4.2.2  A gramática do designer visual

A gramática do designer visual estuda, dentre outros, textos publicitários


como veículo de comunicação. Esse gênero textual está presente no nos-
so dia a dia, em forma de representações visuais, que se organizam e se
estruturam nos textos multimodais.
Os textos multimodais são textos formulados a partir de signos lin-
guísticos e são representados mediante elementos visuais e verbais. Esses
textos são divididos em dois modos que compõem sua estrutura: o modo
verbal e o modo não verbal.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 111


A gramática do designer visual foi adaptada pelos autores Kress e Van
Leewen (2006), sob a perspectiva de textos metafuncionais (representacio-
nal, interativo e composicional) que se estruturam por meio das propostas
de Halliday (ideacional, interpessoal e textual).
Essas classificações se dão a partir de representações que dizem respei-
to ao que está exposto, tanto no explícito quanto no implícito, no contexto
da imagem, construindo significados de acordo com cada função.
Kress e Van Leewen (2006) estabelecem a seguinte classificação:

a) O representativo: contém subclasses compostas por elementos como:


representações, narrativas e representações conceituais;
b) O interativo: contém subclasses compostas por elementos como: con-
tato, distância social em (plano fechado, plano médio e plano aberto),
perspectiva em (ângulos frontais, ângulos oblíquos e ângulos verticais)
e modalidade em (cor/saturação, contextualização e brilho);
c) O composicional: contém subclasses compostas por elementos como:
valor da informação, saliência e estrutura.

A teoria da gramática do designer visual se desenvolve a partir desses


elementos supracitados, os quais compõem cada subclasse com suas res-
pectivas funções para compor uma imagem, a fim de relacionar um todo,
para que essa imagem possa então transmitir uma informação coerente,
presente nos textos visuais.
Para nossa pesquisa, fizemos a escolha pela categoria composicional.
Descreveremos, na continuação, as características dessa categoria.

4.2.2.1  A categoria composicional

A categoria escolhida para a análise do corpus do nosso artigo é a compo-


sicional, a partir da contribuição de Kress e Van Leewen.
A categoria composicional foi selecionada com o propósito de demons-
trar que os textos publicitários são construídos com mais de um sentido,

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 112


pois, como bem afirmam Kress e Van Leewen (2006, p. 27-42), “cabe a esta
integrar os elementos visuais das outras metafunções a fim de construir
um todo coerente”.
Essa categoria é propícia para nossa análise, já que os textos publici-
tários são capazes de estabelecer função por meio das imagens ou com
a finalidade de comunicação, que podem ser tanto classificados quanto
organizados, exigindo do leitor mais de uma forma de interpretação, que
é a verbal e a não verbal.
A classificação verbal se dá a partir da fala ou da escrita e a não verbal
é composta por elementos que são representados em forma de imagem,
desenho, gravuras, etc., como meio de comunicação.
De acordo com a classificação feita por Kress e Van Leewen (2006, p.
23), “Esse elemento composicional é composto por subclasses que são: o
valor da informação, saliência e estrutura”.

a) O valor da informação: segundo Kress e Van Leewen (2006), é orga-


nizado a partir das substâncias fundamentais que compõem a ima-
gem, sendo estas: esquerda/direita (dados e novo), topo/base (ideal e
real), centro/margem;
b) Saliência: é o principal objeto da imagem, que faz com que a infor-
mação seja transmitida por meio de processos como as cores mais
vibrantes, o contraste, o brilho, entre outros recursos, capazes de fazer
com que o leitor possa compreender o andamento da imagem.
c) Estrutura: dá-se a partir dos elementos contidos na imagem, ou seja,
elementos verbais ou não verbais, ou até mesmo desses dois elemen-
tos juntos na mesma imagem, capaz de fazer com que o leitor possa
associar ou não esses elementos a sua interpretação, segundo Kress
e Van Leewen (2006).

É, então, a partir desses elementos que compõem um todo na imagem


que o leitor faz suas interpretações, de forma coerente e concisa. Com isso,

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 113


iremos analisar, de acordo com a GDV, os elementos composicionais que
estão contidos nos textos publicitários.

4.3  Metodologia da pesquisa

Apresentaremos, nessa seção, a metodologia utilizada para desenvolver


a pesquisa apresentada aqui. Faremos uma descrição dos passos que nos
levaram a obter os resultados, os quais serão apresentados mais adiante.
Na segunda parte deste quarto capítulo, iremos nos deter à análise do
corpus selecionado para este estudo.

4.3.1  Aspectos metodológicos

A nossa pesquisa se caracteriza como estudo descritivo, interpretativo e


qualitativo. Procuramos, com esta pesquisa, apresentar a análise de al-
gumas peças publicitárias, nas quais se tenta explicar como o ato de fala
diretivo se apresenta e qual a sua influência na publicidade.
O intuito, de fato, é observar como o ato de fala diretivo está representa-
do nos anúncios, a fim de que possamos compreender o que está implícito
nesses textos e qual a intenção que se teve ao produzir esse material e os
efeitos de sentido que esses textos produzem no público alvo.
Como objeto de análise, foram selecionadas três propagandas publici-
tárias que circularam nos seguintes meios de comunicação: blog, twitter e
revista. Os anúncios foram publicados na Espanha e na Argentina.
Em um primeiro momento, havíamos pré-selecionado doze propa-
gandas para estudo. Observamos, no entanto, que nem todos esses tex-
tos contemplavam o objetivo da pesquisa. Desse modo, realizamos uma
seleção e apenas três publicidades atenderam ao propósito do trabalho.
O segundo passo foi analisar o material selecionado, à luz da teoria da
GDV. Para tanto, procuramos identificar, nesses textos, como se apresenta
a categoria composicional.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 114


Em seguida, observamos como o ato de fala diretivo se manifesta nes-
ses anúncios publicitários, buscando enxergar o texto subentendido contido
nas peças publicitárias, bem como os efeitos de sentido que possuem.

4.4  Recorte de uma pesquisa: análise do corpus

4.4.1  Análise do anúncio 1

Apresentamos, na continuação, três anúncios publicitários veiculados em


diferentes meios de comunicação, que servirão de base para nosso estudo.

Figuras 1 e 2–Anúncio 1

Figura 1 Figua 2

Fonte: No creen en los milagros (2008)7.

O anúncio faz uma análise baseada nos princípios linguísticos, mais


precisamente na construção de um enunciado, fazendo uso do ato de fala
diretivo. O texto apresenta a preocupação com o uso do preservativo.

7 Disponível em: http://nocreasenlosmilagros.blogspot.com/2008/02/no-creas-


en-los-milagros.html. Acesso em: 21 set. 2020.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 115


A imagem mostra uma oposição: de um lado, temos a representação
de duas pessoas “desprevenidas" por não usarem preservativo; do outro,
as pessoas estão protegidas, pois usam o preservativo.
Para chegarmos a essa interpretação, foi elaborada uma análise, par-
tindo do princípio da GDV, segundo a qual a categoria a ser utilizada foi
a composicional. A imagem foi dividida por uma linha horizontal, sendo
esta, representada por duas partes: a ‘ideal’ e a ‘real’.
A primeira parte da imagem aborda a questão ‘ideal’ e nela foi cons-
truída a interpretação do casal sem utilizar o preservativo, passando a
informação de uma possível gravidez indesejada, como também de pos-
síveis DSTs (doenças sexualmente transmissíveis).
Sendo essa a primeira informação obtida, faz-se um alerta de que
milagres não existem, deixando evidente que não é possível confiar em
métodos que sigam o viés religioso. Por outro lado, deixa claro que, quando
se contrai DSTs, milagres não acontecem.
Já a segunda parte da imagem, representada pelo ‘real’, faz uso do
imperativo afirmativo na seguinte frase: “ponha e faça-o”, passando uma
ideia de segurança ao leitor, de que o uso correto do preservativo não gera
uma gravidez indesejada e ainda previne contra doenças sexualmente
transmissíveis.
O ato de fala diretivo está presente na publicidade por meio do verbo
no imperativo negativo e no imperativo afirmativo, cuja ideia principal
é orientar o público acerca do uso do preservativo, para que evitem uma
gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis.
Mesmo sabendo que não há métodos cem por cento confiáveis, o anún-
cio defende o uso do preservativo como uma das formas mais eficazes de
evitar uma gravidez indesejada e doenças.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 116


4.4.2  Análise do anúncio 2

Figuras 3 e 4–Anúncio 2

Figura 3

Figura 4
8
Fonte: La Voz del Sur (2018)

8 Disponível em: https://www.lavozdelsur.es/desde-mi-pulpito. Acesso em:


21 set. 2020.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 117


Nesse anúncio, temos uma campanha do governo da Argentina para fa-
zer com que o povo leia mais e conheça sua história. Analisando a GDV na
categoria composicional, observamos o uso dos elementos que compõem a
imagem a partir do elemento ‘valor informacional’, contidos no centro da
imagem, para que assim se obtenha uma interpretação de forma coerente.
O anúncio leva o leitor a formular sua interpretação a partir do eixo
central da imagem, com a escolha do livro de história, que ocupa uma
posição de destaque na imagem, transmitindo o valor da informação, na
tentativa de combater o fascismo, representado pela mão entregando o
livro, inferindo que, com a leitura, a pessoa terá o conhecimento.
É importante observar que existe uma luz saindo de dentro do livro,
que, metaforicamente, na nossa interpretação, representa a luz do conhe-
cimento que irá tirar o homem da escuridão da ignorância, fazendo com
que ele não volte a repetir erros cometidos no passado.
Mediante a forma verbal “leia”, no centro da imagem, no modo im-
perativo, temos o ato de fala diretivo. Essa estrutura verbal, na parte su-
perior da imagem, é representada pelo elemento ‘ideal’, que sugere um
alerta para combater a ignorância da população, levando-a a adquirir o
hábito de leitura.
Diante do elemento ‘real’, na parte inferior da imagem, o governo ofe-
rece mais comodidade e acessibilidade para a população que, não tendo
tempo de ler na biblioteca, pode levar o livro para fazer a leitura em casa,
complementando, assim, a interpretação da imagem no centro, construindo
um todo coerente.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 118


4.4.3  Análise do anúncio 3

Figuras 5 e 6–Anúncio 3

Figura 5

Figura 6
Fonte: 4 Vientos (2017)9.

9 Disponível em: http://www.4vientos.net/2017/04/24/al-filo-de-la-navaja-


impunidad-en-delitos-y-violaciones-a-los-derechos-humanos. Acesso em:
21 set. 2020.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 119


Esse anúncio faz clara denúncia aos casos de tortura. Elaboramos uma
análise sob a GDV, partindo da categoria composicional. Utilizamos, dessa
vez, a saliência para explicar a informação contida na imagem, mediante
as cores vibrantes e a informação que essas cores evidenciam.
Na imagem, aparece uma pessoa do gênero feminino, principal ob-
jeto de análise desse anúncio, elaborado pelo governo mexicano. O texto
evidencia os atos cruéis do governo, o qual toma atitudes como aplicar
choques eléctricos para obter confissões, exposto na parte superior do
lado esquerdo da imagem. A presença da cor vermelha pode significar
uma urgência quanto aos casos de tortura, seguida da frase da Anistia
Internacional, que é justamente o alerta dos direitos humanos com pe-
dido de denúncia.
A máquina ao lado da cadeira está inserida como plano de fundo,
do lado direito, na parte inferior da imagem. Esse cenário procura pas-
sar uma informação maior do que está exposto. A imagem se sobressai
ao texto verbal.
A mulher sentada, com as pernas machucadas, evidencia a tortura e
os casos de crueldade. Ela está coberta com a bandeira mexicana, levan-
do-nos a acreditar que essa imagem simboliza os casos de tortura com as
mulheres, que são ocultados pelo governo.
O anúncio do lado esquerdo da imagem, na parte inferior, associado
ao pedido de socorro ’stop’, com a frase na cor amarela, que significa
precaução, cautela, também pode sugerir que o país necessita de uma
atenção redobrada a esses casos, ou até mesmo, pode informar que casos
assim sejam frequentes.
A bandeira em movimento, com as cores vibrantes em verde, revela o
país ao qual o anúncio faz referência. Sendo assim, sugere uma ideia de
insegurança, em que a população pede socorro para que, mais cedo ou mais
tarde, os casos de violência provocados pelo governo sejam descobertos.
O anúncio tem como objetivo fazer um apelo à Anistia Internacional.
Mediante a forma verbal no imperativo afirmativo “stop”, podemos explo-

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 120


rar o ato de fala diretivo, visto que direciona o leitor a dar um basta na tor-
tura e a exigir que o governo seja investigado e punido por suas crueldades.

4.5  Considerações finais

Os estudos sobre a linguagem e a interação comunicativa ganham grande


relevância, ampliando, assim, seu horizonte teórico/descritivo. Tornam-se
interessantes estudos que se somem aos pensamentos já existentes e que
contribuam para o crescimento e a concretização das teorias que compõem
a base do ensino-aprendizagem de idiomas.
A língua não é um elemento estático, mas está em constante mudança
e estudá-la a partir de uma estrutura fixa é o mesmo que limitá-la e não
compreendê-la num sentido mais amplo.
Para o estudo da linguagem, é imprescindível levar em consideração
aspectos do entorno comunicativo, o que está além da estrutura linguística
e passar a ver o enunciado não com o que é “certo” ou “errado”, mas com
o conceito de adequado e não adequado (ESCANDELL VIDAL, 2004).
Explorar o ato de fala diretivo nesses textos possibilitou compreender
que há uma mensagem implícita nas publicidades, mas que fica suben-
tendida pelo que foi exposto na peça publicitária. Além disso, as imagens
possuem um importante papel nesse gênero textual, visto que o texto
verbal, sozinho, não proporcionaria a mesma leitura.
Nesse contexto, foi possível interpretar e inferir, de forma mais clara,
o conteúdo que se sobressai da imagem. Por meio das formas verbais no
modo imperativo, foi possível identificar e interpretar a função do ato
de fala diretivo.
A gramática do Designer Visual, com a categoria composicional, via-
bilizou uma leitura acerca das imagens. Compreendemos que, para uma
boa interpretação, há que se considerar as cores, os objetos e a posição que
está presente na imagem.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 121


A partir dessa teoria, compreendemos a importância dos ângulos em
que a imagem está inserida, como a parte superior, a central e a inferior,
que contribuem para a informação, bem como as laterais dessa imagem,
sendo a lateral esquerda usada para obter dados, e a direita, para passar
uma informação nova.
A leitura do texto não verbal, associada ao texto verbal, foi fundamen-
tal para inferir e, dessa forma, realizar uma leitura crítica dos anúncios
publicitários que serviram de corpus para esta pesquisa.

Pragmática: Análise Dos Atos De Fala 122


REFERÊNCIAS

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Oxford University Press, 1962.

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Chicago: University of Chicago Press, 1938.

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Philologica Romanica, p. 3-35, 2001.

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SÁNCHEZ, Jesús Lobato, Vademéum para la formación de professores.
Madrid: SGEL, 2004.

KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Reading images: the


grammar of visual design. London. New York: Routledge, 2006.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise


do discurso. Tradução de Freda Indursky, Solange Maria
Ledda Gallo e Maria da Glória de Deus Vieira de Moraes. 3. ed.
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MORRIS, Charles. Fundamentos de la teoría de los signos. México:
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OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática


na filosofia contemporânea. São Paulo: Layola, 1996. p. 149-195.

PEIRCE, Charles Sanders. The essential Peirce: selected philosophical


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SEARLE, John Rogers. Una taxonomia de los actos ilocucionarios.


Teorema: Revista internacional de filosofía, Espanha, v. 6, n. 1,
p. 43-78, 1976.

VESTERGAARD, Torben. A linguagem da propaganda. 3. ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.

124
5 A A N ÁL I S E D O D I S C U R S O
D E T R A D I ÇÃO F R A N C E S A :
U M V I ÉS F O U C A U LT I A N O

Lúcia Helena Medeiros da Cunha Tavares

5.1  Considerações iniciais

Nas sociedades contemporâneas, as quais se apresentam


em constantes movências, circulam as práticas discursi-
vas que formam/transformam os sujeitos e que constroem
historicamente os sentidos. A Análise do Discurso (AD)
de tradição francesa nos dá respaldo para uma melhor
compreensão dessa sociedade, dos acontecimentos e dos
sujeitos sociais, pois nos incita a questionar e a refletir, bus-
cando o fio condutor dos sentidos.

125
A AD, no Brasil, tem o seu marco nos anos 80, com a figura de Eni
Orlandi, que disponibiliza as traduções das obras de Michel Pêcheux e
começa a consolidar, no país, grupos de pesquisas sobre o discurso. Devido
a isso, no Brasil, diferentemente da França, não se apagou a imagem do
fundador da disciplina. Pêcheux continua a ser retomado e estudado. Aqui,
os analistas do discurso, muitas vezes, são classificados em pecheuxtianos,
foucaultianos ou bakhtinianos e isso não interfere no desenvolvimento
dos trabalhos com as mais diversas materialidades linguísticas, que se
encontram tanto nos discursos institucionalizados quanto nos discursos
do cotidiano. Dessa forma, mesmo trabalhando com a Análise do Discurso
de tradição francesa, fundada por Michel Pêcheux, escolheu-se aqui seguir
as concepções foucaultianas, por ser em Foucault que encontramos maior
respaldo para conduzir as nossas pesquisas.
Para um maior conhecimento sobre a AD francesa, trazemos aqui um
breve relato sobre o seu surgimento e apresentamos, em uma vertente
foucaultiana, alguns conceitos, como sujeito, discurso, poder, vontade
de verdade, memória, sentido, arquivo, formação discursiva, enunciado,
acontecimento, os quais norteiam a nossa análise, que se dará a partir dos
discursos da Comissão Nacional da Verdade–CNV sobre as formas de
violência cometidas contra a mulher na Ditadura Militar Brasileira. Nesse
viés, procuraremos descrever os vestígios de memória e os mecanismos de
poder que permeiam os testemunhos de mulheres violentadas, em época
de Ditadura, e de seus familiares, além de interpretar as relações de saber/
poder nos discursos da CNV sobre a violência contra a mulher, de ordem
psicológica, física, moral e/ou sexual.
A materialidade analisada aqui se compõe de discursos sobre a
Ditadura Militar no Brasil, presentes nos relatórios da CNV, como os tes-
temunhos de mulheres ou de familiares de mulheres que foram presas,
torturadas e violentadas durante esse período da história de nosso país.
Sigamos, então, às discursividades.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 126


5.2  Surgimento da teoria

A Análise do Discurso, que tem início no final dos anos 60, na França, é
fundada por Jean Dubois, lexicólogo de renome, criador da revista Langages,
e por Michel Pêcheux, filósofo ligado a Althusser e preocupado em discutir
a Epistemologia das Ciências. Esses dois fundadores viam diferenças nos
estudos da Análise do Discurso. Dubois achava que a Análise do Discurso,
doravante AD, seria uma continuidade da Linguística, enquanto Pêcheux
tinha em vista um novo campo de investigação. Para Pêcheux, esses estudos
tratavam de “estabelecer a articulação entre a base linguística e o processo
discursivo, analisando o funcionamento da base linguística em relação
às representações colocadas em jogo nas relações sociais” (PIOVEZANI;
SARGENTINI, 2011, p. 28). Apesar de suas diferenças, esses dois estudiosos
tinham um só objeto de estudo: o discurso.
Quatro nomes estão intimamente ligados à AD: Althusser, autor de
várias releituras marxistas; Foucault, introdutor da noção de Formação
Discursiva na AD; Lacan, com a leitura do inconsciente das teses freudia-
nas, e Bakhtin (via Jackeline Authier-Revuz), sobretudo com os conceitos
de gênero e de dialogismo da linguagem. Cada um deles serviu como
pilar para a articulação entre língua, sujeito, discurso e história. E é com
essa articulação que Pêcheux “constitui o edifício da Análise do Discurso”
(GREGOLIN, 2003, p. 25).
O histórico da Análise do Discurso pode ser visualizado “por meio da
relação que se vai estabelecer entre a linguística e outras disciplinas, na
busca da interdisciplinaridade para a análise de um objeto ‘além da frase’,
que exige a abordagem da articulação entre o lingüístico e o seu ‘exterior”’
(GREGOLIN, 2003, p. 22).
Na França, a AD passa por três épocas distintas, cada qual com os seus
pontos significativos para o engrandecimento das teorias e das pesquisas
relacionadas a essa área. Essas três épocas são marcadas por revisões e

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 127


mudanças de conceitos. Várias indagações teimam em aparecer sobre as
teorias formuladas.
A primeira dessas três épocas tem início nos anos 60 e possui como
marco o livro de Pêcheux Analyse Automatique du Discours (1969). Este “é
um livro original que chocou lançando, a sua maneira, questões funda-
mentais sobre os textos, a leitura, o sentido” (MALDIDIER, 2003, p. 19).
Nessa época, Pêcheux pensava criar uma máquina para análise automática
do discurso, mas, por não haver discursos homogêneos, o trabalho dessa
máquina era dificultoso. As bases do autor são ainda muito estruturalistas,
mas também distribucionalistas, quando abrange as teorias de Harris, o
que lhe permitia trabalhar com o enunciado.
Totalmente influenciado por Althusser, Pêcheux propõe uma teoria
não subjetiva do sujeito, um sujeito assujeitado por uma ideologia e que
tem a ilusão de ser fonte de seu dizer, acreditando produzir discursos,
enquanto somente os reproduz. A experiência de Pêcheux com a infor-
mática, por meio de sua máquina de analisar discursos, leva-o a sentir a
necessidade e a importância da linguística. Isso sela o seu percurso pelas
trilhas da linguagem.
No entanto, mudanças políticas e epistemológicas levam essa disciplina
a passar por constantes transformações, reconstruindo e retificando seus
conceitos. Pêcheux, em suas inquietações, reelabora suas propostas e faz
surgir uma nova época de teorias discursivas.
Na segunda fase, que se inicia a partir de 1975, Pêcheux fala do su-
jeito atravessado pela Psicanálise e traz a teoria não subjetiva do sujeito.
Desenvolvem-se, de forma mais profunda, os conceitos de enunciado, me-
mória e interdiscurso. Analisa-se, nos discursos, uma enunciação anterior,
combinações de novos enunciados com outros enunciados já pronunciados.
Há, então, um maior diálogo com os conceitos de Bakhtin e Foucault.
Em 1975, Pêcheux e Fuchs apresentam o quadro epistemológico da
AD em A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas.
Nesse texto, aparecem “três regiões do conhecimento atravessadas por

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 128


uma teoria da subjetividade da natureza psicanalítica” (FONSECA-SILVA,
2007, p. 89). São elas: 1) o materialismo histórico – explicado como teoria
da ideologia e das formações e transformações sociais, 2) a linguística –
teoria que rege os mecanismos sintáticos e os processos de enunciação e 3)
a teoria do discurso – teoria dos processos semânticos e da determinação
histórica. Nesse mesmo ano, Pêcheux lança Semântica e Discurso.
É ainda nessa época que a noção de formação discursiva emprestada
de Foucault ganha espaço, o que leva a começar a explodir a “máquina
estrutural” de Pêcheux, pois, com a formação discursiva, identificam-se
os discursos transversos, introduzindo-se assim a noção de interdiscurso.
Além disso, se reconhece a formação discursiva como o lugar da constitui-
ção do sentido, vinculando-se também à constituição do sujeito. Mesmo
assim, para Pêcheux, o sujeito do discurso continua sendo um sujeito assu-
jeitado à formação ideológica. O sujeito da enunciação não é posto ainda,
mas se descobre uma zona de entrelaçamentos, de atravessamentos de
discursos e de efeitos discursivos. Na segunda fase da AD, são questio-
nados os pontos interiores e exteriores nos processos discursivos. É nesse
momento em que ocorrem as tensões maiores entre Pêcheux e Foucault.
A terceira época da análise do discurso inicia-se nos anos 80. É um
novo tempo, marcado por dúvidas e incertezas. Nessa fase, é descons-
truída de vez a “máquina discursiva”, outrora pretendida por Pêcheux,
surgindo, assim, novos horizontes teóricos. A heterogeneidade começa a
fazer parte do discurso, ampliam-se os diálogos e retifica-se a noção de
Formação Discursiva, da qual Pêcheux se aproxima mais, reconhecendo as
propostas de Foucault. São as teorias foucaultianas que estão presentes nas
análises dos vários discursos transversos. Pêcheux também relê Bakhtin, a
quem havia criticado por apresentar algumas teorias de cunho humanista.
Nessa época, consegue-se ver que as reflexões de Bakhtin dão um novo
impulso aos estudos do enunciado. Isso acontece a partir das influências de
Authier-Revuz, no colóquio Materialidades Discursivas, do qual participava

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 129


Pêcheux, surgem então os estudos sobre a heterogeneidade do sujeito, o
que leva à discussão sobre o Outro.
Em 1981, Courtine “retoma as reflexões de Pêcheux (1977) e propõe a
releitura de Foucault para fazer funcionar alguns conceitos que vão redi-
recionar a teoria do discurso” (FONSECA-SILVA, 2007, p.103). No período
de 1980 a 1983, há uma desconstrução em vários preceitos que regiam os
estudos pecheuxtianos.
Nessa época,

Pêcheux afasta-se de posições dogmáticas sustentadas anterior-


mente a partir de sua vinculação com o Partido Comunista. É o
momento do encontro com a “Nova História”, de aproximação
com as teses foucaultianas, em que Pêcheux critica duramente a
política e as posições derivadas da luta na teoria e, assim, abre
várias problemáticas sobre o discurso, a interpretação, a estrutura
e o acontecimento (GREGOLIN, 2004, p. 64).

Esse afastamento de Pêcheux das posições assumidas anteriormente


fica bem claro nas colocações que faz a seguir:

Como os métodos da Nova História, os da Arqueologia foucaultia-


na terminam, por sua vez, por tratar explicitamente o documento
textual como um monumento, ou seja, como um traço discursivo
em uma história, um nó singular em uma rede. Desse ponto de
vista, a necessidade de levar em conta, na análise das discursivi-
dades, as posições teóricas e as práticas de leitura desenvolvidas
nos trabalhos de M. Foucault constituiu um dos sinais recentes
mais nítidos da retomada da Análise de Discurso: a construção
teórica da intertextualidade, e, de maneira mais geral, do inter-
discurso, apareceu como uma das questões cruciais dessa reto-
mada, conduzindo a Análise de Discurso a se afastar mais e mais
de uma concepção classificatória que dava um privilégio que se

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 130


revela cada vez mais contestável aos discursos escritos oficiais
“legitimados” (PÊCHEUX, 1998, p. 48).

Percebe-se, nesse dizer, a abertura para se trabalhar os discursos de


forma diferente. Pêcheux lança um outro olhar para as teorias foucaultianas,
aproximando-se do filósofo e começando uma nova era para os estudos
em Análise do Discurso. Devido às mudanças ocorridas, essa é também a
época em que esses estudos começam a repercutir com maior intensidade.
No Brasil, a Análise do Discurso já apresenta seus vestígios, no pe-
ríodo de 1962 a 1974, com os textos e livros de Carlos Henrique Escobar
(GREGOLIN, 2007a). Esses textos–produzidos por militantes marxistas bra-
sileiros, quase que na mesma época das discussões dos grupos de Althusser,
Pêcheux e Foucault – falam de momentos de repressão no Brasil. A revista
Tempo Brasileiro é um exemplo desses discursos ao apresentar em suas pá-
ginas a pluralidade de manifestações políticas. As teorias althusserianas
já aparecem em números temáticos da revista. Nos anos 70, o marco mais
importante é a publicação de O homem e o discurso. A arqueologia de Michel
Foucault (entrevista), organizado por Sérgio Paulo Rouanet (GREGOLIN,
2007a). Nesse livro, podem-se encontrar as críticas de Lecourt e de Escobar
ao pensamento foucaultiano.
Em 1975, Escobar publica Epistemologia das Ciências Hoje, em que se
podem encontrar as críticas que movimentam as propostas de Althusser
e Foucault, já publicadas em livro anterior. Porém, devido a um novo
momento vivido na França, Escobar dedica o último capítulo do livro às
mudanças que envolviam althusserianos e foucaultianos, pois se começa
a repensar a utilidade do material de pesquisa levantado por Foucault. Há
então uma retificação das posições assumidas por Escobar em relação a
Foucault, mas, assim como Pêcheux, Escobar, que acompanha as discus-
sões das teses althusserianas, não deixa de repensar pontos como a luta
de classes, o Estado e a política, por exemplo.
A AD, com suas categorias de análise, nos auxilia nos estudos da lingua-
gem, seguindo pelos mais diversos domínios discursivos, como o político,

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 131


o religioso, o publicitário, o midiático, entre outros. Isso não quer dizer
que não haja embates teóricos entre a análise do discurso e a linguística.
Como afirma Ferreira (2007, p.19), “há contato, mas não pertencimento. E
isso vale para os dois lados”. A autora completa, ressaltando que “a AD
compõe o seu tabuleiro, escolhe suas peças principais e arma seu jogo no
campo da linguagem” (FERREIRA, 2007, p.19).
Alguns dos conceitos trabalhados na Análise do Discurso – os quais
funcionam como elementos de uma caixa de ferramentas – abordados
neste artigo, são: sujeito discursivo, poder, vontade de verdade, sentido,
memória, formação discursiva, enunciado, arquivo, acontecimento.

5.3  Princípios teóricos

Para iniciar esta conversa e melhor conhecer as categorias de análise pre-


sentes no decorrer deste trabalho, nada mais inquietante que começar
falando do objeto de estudo de Foucault, o sujeito, juntamente com os
conceitos que tentam esclarecer o que é o discurso para a AD.
O discurso tem seu funcionamento, suas regularidades, que se ligam
ao social e ao histórico. Sendo assim, no funcionamento da linguagem,
dá-se a produção de sentidos e a constituição do sujeito, pois ambos são
afetados pela língua e pela história. Pode-se ressaltar, então, que “as rela-
ções de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados” (ORLANDI, 2005, p. 21). Esses efeitos de sentidos
emanam de dizeres que estão dentro de uma condição de produção, a qual
vai compreender o sujeito, a situação, a história e a memória.
Foucault (2006, p. 22), em A Ordem do Discurso, diz que, nas socieda-
des, há regularmente um tipo de desnivelamento entre os discursos que
se dizem, pois estes

passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que


estão na origem de certo número de atos novos de fala que os
retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 132


que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos,
permanecem ditos e estão ainda por dizer.

Isso acontece nos textos que já se conhecem culturalmente, como nos


textos jurídicos, religiosos, literários, midiáticos, entre outros. Nesses cam-
pos discursivos, surgem a repetição, a transformação, a retomada de muitos
discursos já-ditos. Como coloca Foucault (2006, p.26), “o novo não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.
Foucault (2007, p. 28) afirma também que

é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso


em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que
aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido,
sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços,
escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros.

E é assim que encontraremos, no decorrer deste trabalho, os discursos


que (não) se dizem sobre a Ditadura Militar Brasileira. Discursos repetidos,
transformados, apagados, silenciados, historicizados por uma memória.
É também durante esse estudo que poderemos ver a dispersão do sujeito.
Um sujeito heterogêneo, como ressalta Authier-Revuz (1982). Para essa
autora, o sujeito, em sua heterogeneidade, demonstra ser disperso, des-
centrado, dividido. E, sendo também um efeito de linguagem, é um sujeito
constituído por muitas vozes sociais. O sujeito não sendo homogêneo,
mas heterogêneo, traz em si formações discursivas que apresentam uma
inter-relação com a linguagem e a história, perpassadas pela memória. São
as formações discursivas que revelam as formações ideológicas do sujeito.
Quando se fala em sujeito, há uma certa confusão devido ao sujei-
to gramatical ou mesmo no sentido de se fazer uma alusão ao sujeito
de Lacan, o sujeito do inconsciente, que não é o mesmo do qual trata a
AD. Maziére (2007, p.22) tenta demonstrar as várias concepções de sujei-
to quando diz que

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 133


o marxismo, que é uma referência durante os primeiros anos da
AD, o sujeita. Foucault o dispersa na formação discursiva. A co-
laboração entre lingüistas e psicanalistas o resgata do psicolo-
gismo. A colaboração com os historiadores introduz um sujeito
da história. O peso da interdiscursividade organiza ‘a desloca-
lização tendencial do sujeito enunciador’ na materialidade dos
enunciados, segundo uma fórmula de Michel Pêcheux [...]. As
sofisticações da pragmática o reconfiguram em uma escala de
ações e de co-ações enunciativas e semânticas na qual ele pode
se multiplicar e se diluir.

São muitas as concepções sobre o sujeito. Para a AD, o sujeito seria um


lugar de sujeito que pode ser apreendido na busca do analista do discurso.
Gregolin (2004, p. 92) explica dizendo que, de acordo com os estudos
arqueológicos de Foucault,

compreendemos que o sujeito do enunciado não pode ser reduzi-


do aos elementos gramaticais, pois ele é historicamente determina-
do, o que faz com que não seja o mesmo de um enunciado a outro
e a função enunciativa pode ser exercida por diferentes sujeitos.

Daí a dispersão do sujeito. Um mesmo indivíduo pode ocupar diferen-


tes lugares em uma série enunciativa e assumir diferentes papéis sociais.
Esse sujeito representa, na verdade, um grupo social e fala de um lugar so-
cial ocupado por ele. Para compreender esse sujeito discursivo, é necessário
que se compreendam as suas vozes sociais, pois ele apresenta diferentes
discursos, diferentes vozes, vindas de diferentes lugares. Isso constitui o
sujeito discursivo que produz sentido no jogo das formações discursivas.
Para melhor explicar formação discursiva, serão tomadas as palavras
de Michel Foucault (2007, p. 43), que diz:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de


enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que
entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 134


temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, corre-
lações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva (grifos do autor).

Uma formação discursiva é constantemente invadida por outras for-


mações discursivas, muitas vezes, sob a forma de um discurso transverso.
Daí surge o interdiscurso. Para Courtine (2006, p. 69), o interdiscurso é
um conjunto complexo de discursos que “serve como ‘material discur-
sivo original’”.
Foucault (2007) ressalta que não há enunciado que não suponha outros
enunciados. Para o filósofo, o enunciado também se constitui pelo conjunto
das formulações a que este se refere, “seja para repeti-las, seja para modi-
ficá-las ou adaptá-las, seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma
delas, não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize
outros enunciados” (FOUCAULT, 2007, p. 111). Diante dessas colocações
feitas por Foucault, Courtine (2006, p. 70) chega à conclusão de que “o
enunciado entra em uma rede interdiscursiva vertical de formulações, uma
concepção que se aproxima do interdiscurso concebido por Pêcheux”. O
interdiscurso aparece como um “discurso transverso, a partir do qual se
realiza a articulação com o que o sujeito enunciador dá coerência ‘ao fio
de seu discurso’” (COURTINE, 2009, p. 75).
Nesse sentido, em cada texto produzido, em cada enunciado oralizado
ou escrito, há a presença de outras vozes e o sujeito, pode-se dizer que, na
verdade, é constituído historicamente e é constituído pelo outro.
O sujeito também é disciplinado, controlado por mecanismos de po-
der que regulam o seu dizer/fazer. Para disciplinar esse sujeito, também é
preciso produzir verdades. Sobre a verdade, Foucault (2008, p. 13) diz ser
“o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso
e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”. Esses efeitos de po-
der, tidos como verdades, vão regulamentar os corpos desses sujeitos, que
devem ser disciplinarizados, para uma convivência adequada na sociedade.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 135


Em suas investigações sobre o “como” do poder, Foucault (2008, p.179)
estuda os mecanismos que se apresentam entre dois pontos de referência:
“por um lado, as regras do direito que delimitam formalmente o poder e,
por outro, os efeitos de verdade que este poder produz, transmite e que
por sua vez reproduzem-no”. Para Foucault, isso resulta no triângulo “po-
der, direito e verdade”. Dessa forma, o filósofo questiona: “de que regras
de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de
verdade?” (FOUCAULT, 2008, p. 179).
Busca-se então apreender os efeitos de sentido dos discursos que
circulam, se acumulam e produzem a “verdade”. A verdade é produzida
pelos sujeitos que, ao mesmo tempo, são submetidos a ela. E para melhor
explicar essa produção da verdade, a qual se dá pelo direito, Foucault
(2008) retoma a história do poder real, o qual incentivava a criação do
edifício jurídico exercido nas sociedades. Havia um poder monárquico,
o poder do rei, que se dava de forma autoritária e absolutista. O poder
jurídico se faz em torno do poder real, com leis que satisfaçam e favoreçam
ao rei. No entanto, há uma outra forma de interpretar esse poder soberano,
pois o jurídico também surge para limitar os poderes do rei, impondo-lhe
as regras de direito as quais ele deveria seguir. Tudo isso acontecia para
legitimar o poder do soberano. A teoria do direito exerceu então “o papel
de fixar a legitimidade do poder” (FOUCAULT, 2008a, p. 181).
Para Foucault, (2008a, p.183), “o poder funciona e se exerce em rede.
Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação”. Isso pode ser visto
mesmo nos discursos do cotidiano. Foucault (1995) defende ainda que,
para compreendermos o que são as relações de poder, também devemos
investigar as formas de resistência. O exercício do poder, para Foucault
(1995, p.242), “não é simplesmente uma relação entre ‘parceiros’ indivi-
duais ou coletivos. É um modo de ação de alguns sobre os outros”. Desse
modo, o autor inclui ainda um elemento importante, que é a liberdade, pois

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 136


o poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” –
entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem
diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas,
diversas reações e diversos modos de comportamento podem
acontecer (FOUCAULT, 1995, p. 244).

O exercício do poder, nas sociedades modernas, dá-se, ainda, “no jogo


da heterogeneidade entre um direito público da soberania e o mecanismo
polimorfo das disciplinas” (FOUCAULT, (2008a, p. 189). E, para melhor se
compreenderem esses processos de mudanças sobre o exercício do poder,
é preciso revisitar a história e a memória, reconstruir as falas do passado,
para se entender o presente e visualizar o futuro.
A investigação histórica já levou a muitas afirmações, algumas conver-
gentes, outras divergentes, entre os estudiosos. Para Althusser (2003), na
História, não se encontra Sujeito nem sujeitos, pois ela é apenas o motor
da luta de classes. Discípulo fiel de Althusser, Pêcheux (2008) ressalta que,
do ponto de vista do materialismo histórico, a história deve ser trabalhada
como o lugar em que se materializam os equívocos, um lugar contraditó-
rio. Isso é o que leva o sujeito para o real histórico. E, para ele, tudo isso
começa a se desvendar no campo político.
Foucault, em A Arqueologia do Saber (2007, p. 08), afirma que

a história, em sua forma tradicional, se dispunha a “memorizar”


os monumentos do passado, transformá-los em documentos e
fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são
verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem;
em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em
monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados
pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que
tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados,
agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados
em conjuntos. Havia um tempo em que a arqueologia, como dis-

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 137


ciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos
sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a
história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso
histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras,
que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para
a descrição intrínseca do monumento.

Essas mudanças, para Foucault, vão trazer várias consequências, entre


as quais a noção de descontinuidade que, para a história, levava ao dis-
perso, ao impensável e que, pela análise, deveria ser “contornado, redu-
zido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos”
(FOUCAULT, 2007, p. 9). O filósofo ressalta ainda que a descontinuidade
que o historiador tratava de suprimir da história tornou-se agora “um dos
elementos fundamentais da análise histórica” (FOUCAULT, 2007, p. 09). À
análise do discurso interessa não a história tradicional, que se baseava na
análise de documentos, mas a Nova História, que se preocupa e se interessa
por toda a atividade humana. Para essa Nova História, conforme Gregolin
(2007b, p.45), “os documentos são transformados em monumentos”. Sendo
assim, o acontecimento é visto “como um conjunto heterogêneo de relações
que faz emergir diferentes estratos de interpretação e, por isso, a escrita
da História realiza a passagem da ‘memória coletiva’ para a ‘memória
histórica’ ao ler o documento como monumento” (GREGOLIN, 2007b, p.
45). Na Análise do Discurso, procura-se, como diz Gregolin (2004, p. 11)
“interpretar os vestígios da historicidade dos conceitos que mobilizamos
no campo do saber em que nos situamos”.
Para Burke (1992, p.11), “a base filosófica da Nova História é a ideia de
que a realidade é social ou culturalmente constituída”. E é reconstruindo
as falas do passado que se faz essa investigação histórica. Mas, para se
compreender esse processo histórico em que se dão os acontecimentos e
ainda como e porque esses vestígios aparecem, é necessário se percorrer
um caminho até a memória discursiva, em que estão os sentidos que são
atribuídos a esses vestígios, a esses (inter)discursos.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 138


A história, sendo uma ponte entre o passado e o presente, liga-se pro-
fundamente à memória, a qual é resgatada e reelaborada por meio da lin-
guagem. Para Halbwachs (2006), é a história que faz com que um período
se distinga do outro. O autor considera que um acontecimento só toma
lugar na série dos fatos históricos algum tempo depois de ocorrido e as
lembranças de cada um começam a ser associadas, então, a esses acon-
tecimentos históricos. Falar em acontecimento é fundamental, pois é em
decorrência dos acontecimentos que surgem os mais variados discursos,
os quais têm uma relação com a história.
Pensando na irrupção dos discursos e em sua dispersão, “Foucault pro-
põe entender os acontecimentos discursivos que possibilitaram o estabele-
cimento e a cristalização de certos objetos em nossa cultura” (GREGOLIN,
2004, p. 88). Para isso, é preciso visitar o arquivo e a memória, no sentido
de compreender o surgimento de certos enunciados, em determinada
época, em determinado lugar. Para Foucault (2007, p.31), “um enunciado
é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem es-
gotar inteiramente”. Quanto ao acontecimento discursivo, Guilhaumou e
Maldidier (1997, p.166) dizem que “não se confunde nem com a notícia,
nem com o fato designado pelo poder”. Nos enunciados, nas palavras,
escritas ou oralizadas, materializam-se os acontecimentos, fazendo apa-
recer os vestígios de memória prontos para fazerem parte da história e, de
alguma forma, contribuírem com ela.
Halbwachs (2006, p.100) enuncia que “a história é a compilação dos
fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens”. Mas os fatos
históricos (principalmente os passados) são selecionados, comparados,
classificados e só então ensinados de acordo com as regras que regem as
relações de poder de uma sociedade. Cabe ao historiador redescobrir e
atualizar, na medida do possível, fatos que estejam imersos em memórias
ainda não exploradas, como determinados escritos que possam surgir e
contribuir com as pesquisas realizadas. Essa é uma das formas de trazer
o passado para se compreender o presente.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 139


Para se reforçar o que se sabe sobre algum evento ou fazer surgir
um acontecimento passado, uma imagem conhecida, é à memória que se
recorre. Essa memória, que pode ser, de acordo com Le Goff (2003), dis-
cursiva, religiosa, familiar, social, escolar, entre outras, traz à tona fatos
que precisam ser lembrados, revistos, recapitulados.
Para Davallon (2007), a imagem também age como um operador de
memória social. Nela há um efeito de repetição e de reconhecimento. A
imagem mostra como ela funciona como diagrama, esquema ou trajeto
enunciativo, como ela se lê. Essa é a memória como estruturação de mate-
rialidade discursiva complexa que aparece por meio da repetição e pela re-
gularização. É essa memória discursiva que estabelece os elementos citados
e relatados, os discursos transversos, os implícitos necessários à sua leitura.
Achard (2007) ressalta que esses implícitos residem nas retomadas,
remissões e paráfrases, nas quais se encontra uma regularização discur-
siva. Mas essa regularização, lembra o autor, pode ruir sob o apareci-
mento de um acontecimento discursivo novo que possa vir a perturbar a
memória evocada.
Para Pêcheux (2007, p.50), a memória deve ser entendida “nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas,
e da memória construída do historiador”. Para ele, a inscrição do aconte-
cimento no espaço da memória tem se apresentado constantemente sob
uma dupla forma-limite:

1) O acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever;


2) O acontecimento que é absorvido na memória, como se não
tivesse ocorrido.

Ao retomarmos o tema da Ditadura Militar Brasileira, podemos per-


ceber como o silenciamento, o apagamento e o esquecimento podem fazer
parte da memória. Orlandi (2002, p. 50) ressalta que “o esquecimento é
um dos modos do político se marcar na relação com a memória, ideolo-
gicamente”. Quando a censura intervém, é como se o acontecimento não

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 140


tivesse ocorrido, escapando à inscrição da memória. Nesse caso, o sujeito
tem sua memória silenciada pelas relações de poder.
Pode-se dizer, então, que os efeitos de memória vão transparecer tanto
na lembrança, na transformação, quanto na ruptura, no esquecimento.
Isso tudo leva a pensar em uma outra categoria que, tanto quanto a
memória, também está intrinsecamente ligada à história: o arquivo. E para
se falar em arquivo, trazemos as afirmações a seguir, feitas por Foucault
(2007, p. 147):

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege
o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.
Mas, o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas
não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não
se inscrevam, tampouco em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que
se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as
outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem
segundo regularidades específicas [...] é o que, na própria raiz do
enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde
o início, o sistema de sua enunciabilidade.

É assim o arquivo uma prática que permite ao enunciado se modificar


regularmente, como também subsistir no tempo, pois ele é “o sistema ge-
ral da formação e da transformação dos enunciados” (FOUCAULT, 2007,
p. 148). É o arquivo que, a partir de um acontecimento, faz (re)pensar as
práticas discursivas sobre o sujeito, sobre uma sociedade. Nisso se dá a
articulação entre o discurso e a história.
Sobre essa articulação entre discurso e história, Foucault (2007, p. 144-
145) ressalta que

o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma


história, e uma história específica que não o reconduz às leis de
um devir estranho. Deve mostrar, por exemplo, que a história

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 141


da gramática não é a projeção, no campo da linguagem e de seus
problemas, de uma história que seria, em geral, a da razão ou
de uma mentalidade; de uma história que, de algum modo, ela
compartilharia com a medicina, a mecânica ou a teologia; mas
que ela comporta um tipo de história – uma forma de dispersão
no tempo, um modo de sucessão, de estabilidade, de reativação,
uma rapidez de desencadeamento ou de rotação – que lhe per-
tence particularmente, mesmo se estiver em relação com outros
tipos de história.

E para se rememorar essa história, buscam-se os discursos, o conjunto


de enunciados que estão no interior do arquivo. Pode-se ler o enunciado,
então, como elemento do arquivo. Esses enunciados são produzidos dis-
cursivamente, em um dado momento, e se materializam pela linguagem,
fornecendo material de trabalho tanto ao historiador quanto ao linguista.
Pode-se dizer que o arquivo determina a permanência, o apagamento, o
aparecimento e o desaparecimento de determinados enunciados.
Para a construção do corpus aqui delineado, encontramos, nos arqui-
vos da Comissão Nacional da Verdade – CNV, as materialidades a serem
interpretadas e analisadas em nossa pesquisa.

5.4  Metodologia para a pesquisa

A Comissão Nacional da Verdade tem por finalidade apurar as graves vio-


lações de Direitos Humanos ocorridas no Brasil, em período de Ditadura
Militar. Essa comissão foi criada com o objetivo de resgatar a memória
e a verdade sobre as violações e contribuir “para o preenchimento das
lacunas existentes na história de nosso país em relação a esse período”
(CNV, 2014a, p. 17). Na constituição de seu acervo, a CNV recebeu e incluiu
documentos de comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais.
Esses documentos são compostos por arquivos de familiares de vítimas da

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 142


ditadura, como cartas, fotos, entre outros, e documentos procedentes da
cooperação com os governos de outros países, entre eles, Argentina e Chile.
No período de Ditadura Militar, o Brasil se deparava com a supres-
são de direitos constitucionais, repressão, perseguição política e censura.
E, àqueles que se mostravam como sujeitos da resistência a esse regime,
sobravam o exílio, a prisão, a tortura e, por vezes, a morte. Foram mui-
tos os desaparecidos políticos. Surge, então, em 2009, por ocasião da 11ª
Conferência Nacional de Direitos Humanos, a recomendação da criação
da CNV, com o intuito de esclarecer publicamente as violações impostas
aos opositores do Estado, em período de Ditadura no Brasil.
Após elaboração de projeto para a criação da CNV, foi aprovada a
Lei 12.528, que foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 18 de
novembro de 2011. Em 16 de maio de 2012, durante cerimônia acontecida
no Palácio do Planalto, a presidenta Dilma Rousseff instalou a CNV. Este
acontecimento contou com a participação de ex-presidentes, como Luiz
Inácio Lula da Silva, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Fernando
Collor de Mello (CNV, 2014a). Com a criação da Comissão Nacional da
Verdade, instaurou-se a busca pela memória e pela verdade necessárias
para o conhecimento, pelas novas gerações e pelos que perderam parentes
e amigos, das ocorrências do passado.
Durante o período em que os militares governaram o país, muitos
crimes ficaram impunes. Homens, mulheres, índios, homossexuais, que
foram torturados até a morte, ficaram no apagamento da história, pois
muitos deles nunca tiveram seus corpos encontrados. Porém, familiares
e sobreviventes guardam na memória o terror vivenciado durante esse
período. E é essa memória sobre a violência praticada, especificamente
contra as mulheres, em período de Ditadura Militar no Brasil, que interessa
a este trabalho de pesquisa.
A presença das mulheres no espaço público, no trabalho, com a con-
quista de uma profissão; ou nas ruas, protestando, participando de lutas
com os movimentos sindicais, sempre lhes custou muito caro, inclusive

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 143


no que diz respeito à constituição familiar. As mulheres da resistência, na
luta contra a ditadura, pagaram um preço alto, pois, quando pegas pelos
militares, passavam por torturas inimagináveis e aquelas que tinham uma
família (marido, filhos) viam o desmanche da família. Eram “castigadas”
por terem saído de seu lugar, por terem ido em busca de algo que não lhes
pertencia, por não terem calado a sua voz.
Em época de Ditadura, o silêncio deve reinar. Como diz Orlandi (2007,
p.76), “proíbem-se certas palavras para se proibir certos sentidos”. Essa
interdição da palavra dava-se na história de um silêncio consubstancial.
Sobre isso Foucault (2006, p.08-09) pontua, dizendo que “em toda socie-
dade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. E quanto ao que
estava relacionado aos discursos sobre essa época de torturas, o controle,
a seleção, eram redobrados. E essa interdição levava ao silenciamento, ao
esquecimento, o qual foi rompido com a divulgação do relatório da CNV.
Com o acesso a esses dados, várias pesquisas puderam ser realizadas e
aqui se encontra o recorte de uma delas.
O corpus analisado, a seguir, é parte de um arquivo que se formou por
meio de estudos e pesquisas no âmbito do Grupo de Estudos do Discurso
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – GEDUERN. As
materialidades a serem analisadas, de acordo com as categorias analíticas,
seguindo um percurso arqueogenealógico, foram coletadas nos relatórios
da CNV, nos arquivos referentes aos desaparecidos e/ou presos políticos,
em época de ditadura militar no Brasil, e também nos arquivos da mídia.

5.5  Recorte de uma pesquisa

Segundo Foucault (1999), por meio de técnicas de vigilância e de punições


normalizadoras, há um mecanismo de poder que se aplica singularmente

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 144


aos corpos. Nesse sentido, torna-se, então, necessário estudar, na mate-
rialidade do arquivo construído por vias do olhar arqueogenealógico de
Michel Foucault, os mecanismos de poder e as vontades de verdade que
envolvem os casos de tortura e violência na ditadura e os dispositivos
disciplinares que controlam o fazer e o dizer de uma sociedade.
Vejamos, a seguir, parte do testemunho de Cristina Moraes Almeida,
presa e torturada, em período de ditadura militar brasileira, como uma de-
monstração de como os militantes eram coagidos à obediência e à submissão.

O Tibirica repetiu: “Tira a calça. Esqueceu que não pode vir de calça
em uma repartição pública?” Aos berros. Eu: “Não vou tirar a calça
para nada. Estou quebrada, com dor”. [...] ele puxou a perna ras-
gando minha calça, acabando de rasgar minha calça. [Encapuzados]
pegam uma furadeira, que me furou daqui até aqui. Com uma
furadeira. Elétrica. Furadeira. Eu não vi mais nada (Cristina Moraes
Almeida, CNV – relatório – v. 1 – 2014a, p. 421 – Grifos nossos).

No testemunho de Cristina Moraes, presente no relatório da CNV, per-


cebe-se a resistência em obedecer à ordem do militar ao mandá-la “tirar a
calça”. Na concepção de Foucault, o exercício do poder sempre se dá entre
sujeitos que são capazes de resistir. “Estas relações não se dão onde não
haja liberdade. Não há poder sem liberdade e sem potencial de revolta”
(LOURO, 1997, p.39). Mesmo resistindo à ordem dada e mostrando revolta
com o fato de precisar se despir, Cristina não escapa à violação de seu
corpo ao ter a calça rasgada e a perna perfurada por uma furadeira, como
castigo por não ter obedecido prontamente à ordem dada. Despir o corpo
também é um ato de violência moral e psicológica, um modo de fragilizar e
humilhar o sujeito da resistência. Nesse testemunho, percebe-se o exercício
do poder do dominante sobre o dominado–que o desafia–primeiramente
pela linguagem imperativa, depois pela ação violenta do militar. Esse
exercício do poder consiste em “conduzir condutas” (FOUCAULT, 1995),
submetendo os corpos à docilidade.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 145


Como diz Foucault (2008b, p. 118), “em qualquer sociedade, o corpo
está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limita-
ções, proibições e obrigações”. No exercício da ditadura, havia o controle
ininterrupto, a coerção e a disciplina dos corpos. Foucault (2008b, p.118)
ressalta que “esses métodos que permitem o controle minucioso das ope-
rações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar
“as disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo:
nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas
se tornaram, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, fórmulas gerais de
dominação. Isso também pode ser perceptível nesse período da ditadura,
quando os corpos da resistência, os militantes, eram pegos pelos militares.
Na “subversão”, encontrava-se a indisciplina, a indocilidade desses corpos,
que deveriam ser castigados, punidos, maltratados, dominados.
É possível se conhecerem algumas dessas formas de tortura e de pu-
nição dos corpos pelo relato de Dulce Pandolfi, a seguir:

Servi de cobaia para uma aula de tortura. O professor, diante


dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma
espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas. Enquanto
eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau de arara,
ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”. Acho que
o professor tinha razão. Como comecei a passar mal, a aula foi
interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois,
vários oficiais entraram na cela e pediram para o médico me-
dir minha pressão. As meninas gritavam, imploravam, tentando,
em vão, impedir que a aula continuasse. A resposta do médico
Amílcar Lobo, diante dos torturadores e de todas nós, foi: “ela
ainda aguenta” (Dulce Pandolfi, CNV – relatório – v. 1–2014a, p.
351 – Grifos nossos).

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 146


Dulce Pandolfi foi utilizada, em 20 de outubro de 1970, como cobaia
em demonstrações de tortura para uma turma de oficiais, como pode ser
visto em seu depoimento à Comissão Estadual da Verdade–RJ, em 28 de
maio de 2013. A metodologia da tortura, na época da ditadura militar,
tornou-se um objeto de saber e poder. Os militares aprendiam as “técnicas
mais eficazes” por meio de demonstrações práticas. Podemos perceber, no
testemunho da militante, o discurso autorizado, na voz do médico, ao dizer
“ela ainda aguenta”, provocando o efeito de sentido de que os militares
poderiam continuar a “aula”, poderiam continuar utilizando o corpo da
jovem para o aprendizado daqueles alunos. Durante muito tempo, esses
enunciados não fizeram parte da história do país, pois essas memórias
foram silenciadas, esquecidas, transformadas.
Um caso que chama bastante atenção quanto ao apagamento da me-
mória e à forma como se fabrica uma verdade por meio do discurso, é o
caso que envolve a norte-riograndense Anatália de Souza Melo Alves. E
sobre esse caso nos deteremos nesta análise.
Anatália foi presa em 1972, por agentes do Destacamento de Operações
de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), do
IV Exército em Recife, no mesmo dia em que prenderam também seu mari-
do, Luiz Alves Neto, e outros companheiros filiados ao Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário (PCBR). A jovem, que só teve o registro de sua
prisão 26 (vinte e seis) dias após o ocorrido, morreu em janeiro de 1973,
após supostamente ter cometido suicídio com a alça da própria bolsa.

[...] Segundo versão apresentada pelos órgãos de segurança, como


se vê no Ofício nº 20 produzido pela Delegacia de Segurança Social,
Anatália teria se enforcado com a tira de sua bolsa enquanto to-
mava banho nas dependências da própria delegacia, ocasião em
que estava sob a vigilância do agente policial Artur Falcão Dizeu.
Segundo relatou o agente, passados 20 minutos dentro do banheiro,
o policial teria estranhado a demora e, após bater várias vezes, teria
arrombado a porta, deparando-se, em seguida, com ela morta com

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 147


a alça da bolsa envolvendo o seu pescoço. Segundo Artur Falcão, ele
teria pedido ajuda a Genival Ferreira da Silva e Amilton Alexandrino
dos Santos. Segundo o laudo do Instituto de Polícia Técnica (IPT) de
Pernambuco, Anatália foi encontrada deitada numa cama de cam-
panha, o que contraria a versão de que teria morrido no banheiro.
De acordo com a análise pericial, sua morte teria sido causada por
asfixia por enforcamento (CNV – v. 3, 2014b, p. 1175 – Grifos nossos).

A fabricação da verdade se apresenta no discurso dos agentes de plan-


tão e no ofício expedido por ocasião da morte de Anatália Alves. O discurso
pode veicular, produzir e reforçar poder, como também pode minar, barrar
esse poder. “Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder,
fixam suas interdições; mas também, afrouxam seus laços e dão margem às
tolerâncias mais ou menos obscuras” (LOURO, 1997, p. 43). Os silêncios, os
segredos permeavam os discursos dos torturadores, criavam-se vontades
de verdades que poderiam apagar uma memória e inscrever outra em seu
lugar. E até que se prove o contrário, essa verdade fabricada pelo sujeito
do poder é a oficializada. Este e muitos outros casos de mortes de homens
e mulheres foram registrados sem os maiores esclarecimentos. Durante
muitos anos, os arquivos do “período de chumbo” brasileiro ficaram no
silenciamento da história. Somente a partir das pesquisas da CNV e da
abertura dos arquivos oficiais, outros dados vieram à tona. O outro lado da
história foi escancarado e divulgado por meio dos relatórios produzidos
pela equipe da CNV.
Com a abertura dos arquivos e com a oficialização de depoimentos
de outros presos políticos sobreviventes e/ou de familiares dos mortos e
desaparecidos, foi possível cruzar as regularidades que se apresentavam e
conhecer o que realmente aconteceu com muitas dessas pessoas, inclusive
com Anatália Alves. Em depoimento à CEMVDHC (Comissão Estadual
da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara), Luiz Alves Neto, seu
marido, narra os abusos aos quais ela foi submetida enquanto esteve presa.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 148


[…] aí submetem ela, a uma tortura violentíssima e três ou quatro
agentes da polícia torturando ela, eu numa grade, mas ouvia os
gemidos dela, ela sendo torturada, clamando por mim, eu numa
grade preso só fazia protestar, não é? ‘Bandidos, canalhas’. Então
quando chega num momento em que ela gritando muito e me cha-
mando, aí vem um companheiro, depois disse que ela estava sen-
do estuprada por cinco homens, cinco policiais. Miranda e mais
outros (Luiz Alves Neto, CEMVDHC, 2012, p. 9–Grifos nossos).

Anatália, durante o período em que ficou presa, teria passado por di-
versos tipos de tortura, incluindo a violência sexual. Isso é observado no
discurso do marido, que usa, em seu relato, os verbos torturar, gritar, cha-
mar, estuprar. Essa verdade se confirma pelas vozes de outras testemunhas.
Com isso, a causa de sua morte é retomada, os laudos são reanalisados, a
busca pela verdade se faz.
Um fato chama atenção na análise das fotos retiradas na época: havia
a indicação de que os órgãos genitais da vítima foram queimados. Como
está dito no relatório da CNV:

Anatália teria sido submetida a diversos tipos de tortura, incluí-


da violência sexual. As marcas de queimadura se iniciavam na
região pélvica, o que aponta para uma tentativa de eliminar os
indícios de violência sexual. Ao mesmo tempo, um dos elementos
que apontam para a inconsistência da versão apresentada pelos
órgãos de repressão é o fato de uma presa incomunicável estar
portando uma bolsa (CNV – v. 3, 2014b, p.1175 – Grifos nossos).

Diante dessas novas investigações, foi possível inscrever uma outra


memória, pois, ao se concluir que Anatália de Souza Melo Alves morreu
devido às ações violentas provocadas por agentes do estado brasileiro,
foi recomendada a retificação de sua certidão de óbito, e a identificação e
responsabilização dos agentes envolvidos no caso.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 149


Somente com a investigação e os registros feitos pela CNV, é que essa
memória saiu do apagamento e pôde ser (re)construída. Como ressalta
Halbwachs (2006), a memória está sempre em movimento e em construção.
No depoimento de Luiz Alves Neto, é possível observar as relações de for-
ça e poder exercidas pelos militares sobre o corpo de sua mulher. O caso
de Anatália, como o de tantos outros, envolve o apagamento da memória
a partir de um acontecimento que não foi inscrito, não foi registrado na
história. O exercício do poder faz circular os discursos de uma vontade de
verdade enquanto exclui outros. E as verdades que circularam, por muito
tempo, acerca dos acontecimentos da ditadura, pertenciam aos militares,
pois eles ocupavam a posição-sujeito que detinha o direito de proferi-las.
Mas o que é a verdade, afinal? É possível chegar à verdade? Para
Foucault (2008b), não há a verdade propriamente dita; há, sim, os efeitos
de verdade que são produzidos em diferentes épocas. Sobre isso, Foucault
(2008a, p.13) ainda diz ser “o conjunto das regras segundo as quais se dis-
tingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos
de poder”. Esses efeitos de poder, tidos como verdades, vão regulamentar
os corpos desses sujeitos, que devem ser disciplinarizados.
Segundo Candiotto (2013, p. 51),

o discurso qualificado como verdadeiro é aquele que se impôs


sobre outros discursos relegando-os ao terreno do falso e do ilu-
sório, instaurando assim uma ordem. A ordem do discurso é o
critério normativo para impor significações, identificar, dizer o que
é verdadeiro e o que é falso, o que está certo e o que está errado,
o que é delirante e o que é racional, nada mais do que um modo
de operar separações.

E esse discurso controlado, selecionado, qualificado como verdadeiro,


foi exercido, por muito tempo, pelos sujeitos torturadores, na manipula-
ção dos fatos reais das torturas, das violências sexuais e dos assassinatos
ocorridos durante o período da ditadura militar, como no caso de Anatália

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 150


de Souza Melo Alves, que teve sua memória negada, quando os primeiros
relatos oficiais afirmaram que sua morte teria sido causada por suicídio,
durante sua prisão no DOPS. Isso leva à percepção de que houve a des-
construção de uma verdade em prol de uma outra, provocando o silencia-
mento–por um determinado tempo–da memória e da história.

5.6  Considerações finais

E o que pode, nessa contemporaneidade, funcionar como um discurso


verdadeiro? Cada sujeito constrói suas verdades ao ser constituído pelo
outro. Essas verdades criadas circulam ligadas aos sistemas de poder que
as produzem e, ao mesmo tempo, induzem os sujeitos a acreditarem nelas,
vivenciando-as, fazendo-as acontecer. Nesse mesmo sistema de produção
e aceitação de uma verdade, podem-se encontrar os efeitos de sentido
presentes nos enunciados.
Segundo Foucault (2008a, p. 12), “a verdade é deste mundo; ela é
produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regu-
lamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros”. E o regime da Ditadura divulgou e acolheu
“verdades” que mascararam a memória e a história de vários presos políti-
cos, entre eles, as mulheres, que foram, entre outras atrocidades, vítimas
da violência sexual. E isso se configura como uma grave violação humana
cometida contra elas. Faz-se necessário, então, que desenterremos as me-
mórias apagadas, esquecidas, silenciadas, para que a verdade silenciada
seja discursivizada, legitimada e reconhecida.
Diante disso, neste capítulo, procuramos despertar inquietações, contri-
buindo para uma melhor compreensão sobre as teorias do discurso e viabili-
zando um maior conhecimento sobre um período de opressão, de obscuridades,
que fez/faz parte da História do povo do Brasil, bem como sobre as relações
de saber/poder entre os sujeitos, na época da ditadura militar brasileira.

A Análise Do Discurso De Tradição Francesa: Um Viés Foucaultiano 151


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A IMPORTÂNCIA DA LINGUÍSTICA ENUNCIATIVA NO


AMBIENTE ACADÊMICO

RESUMO

Demonstrara o discente, que vai ser um profissional do ensino de línguas, que ele precisar saber a
importância da linguística, além de necessitar conhecer a estrutura e o funcionamento da língua em
questão, tanto âmbito de ensino, quanto no processo de compreensão da mesma. A partir dos
aportes teóricos das elaborações feitas por Ferdinand de Saussure os estudos de José Luiz Fiorin
cogitam-se investigar sua aplicação no cotidiano dentro da sala de aula, onde se objetivou a
realização do presente artigo, no qual, todo traçado teórico foi analítico, com ênfase no método
qualitativo.

Palavras chaves: Cotidiano. Enunciação. Linguística. Língua.

ABSTRACT

The student is going to demonstrated, a professional language teaching, he needs to know the
importance of linguistic, and require knowledge of the structure and operation of the language in
question, both within education, and in the process of understanding the same. The theoretical
contributions put of elaborations from made by Ferdinand de Saussure and study José Luiz Fiorin,
is considering to investigate its application in daily life inside the classroom, where to aim the
realization of this article, in which, every stroke was analytical and theoretical with emphasis on
qualitative methodology.

Keywords: Daily. Enunciation. Linguistics. Language.

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*estas
Acadêmicas do Curso de Licenciatura Plena em Letras pela Faculdade Madre Tereza, sob
condições.

orientação da Profª. Drª. Rosângela Lemos da Silva.


Prosseguir
1 INTRODUÇÃO

No decorrer da história da linguística enunciativa verifica-se que está pauta-se no discurso de


cada sujeito, já que este é colocado no centro, como objeto de estudo da língua. Caracteriza o
processo pelo qual o sujeito interage com os outros falantes na comunicação do discurso, assim
sendo busca-se aprimorar a comunicação dos mesmos envolvidos, mediante isso, sentiu-se a
necessidade de trabalhar a temática: A importância da linguística enunciativa no ambiente
acadêmico, de acordo com o questionamento: será que realmente a linguistica enunciativa devem
ser trabalhada junto com o educador e educando no processo de aprendizagem? Se referido a
importância da linguística enunciativa podemos afirmar que na sala de aula o professor de língua
portuguesa não a valoriza a mesma, pois o mesmo ignorar e não trabalha como deveria ser
estudada no meio educacional.
Este artigo foi realizado com objetivo de expandir os conhecimentos a respeito da importância da
linguística enunciativa no âmbito acadêmico. E tem por intuito discutir esse tema dentro da escola,
já que é de suma importância conhecer e dominar este assunto. Tendo em vista que esta precisa ser
debatida e ensinada dentro da sala de aula; que só assim o educador como medidor de
conhecimento precisam rever com repassar e ensinar a língua materna para os educando. Pois
precisamos saber trabalhar a gramática em conjunto com a linguística enunciativa.
A metodologia qualitativa, de cunho bibliográfico refere-se ao uso da linguística enunciativa
praticada em sala de aula pelos educadores, com isso pretende-se alcançar inúmeros êxitos
discursivos no ato do ensino - aprendizagem. Para assegurar nossa exposição, partiremos
primeiramente do conceito de linguística enunciativa que é o estudo da forma e do sentido na
linguagem, onde afirma que a significação não é algo acrescentado á língua. Partido dos estudos de
Benveniste, Fiorin, Ferdinand de Saussure et al, como forma de enunciar as partes intituladas: O
percurso histórico da linguística enunciativa; A importância da linguística enunciativa para a
formação do professor de língua portuguesa; A língua em funcionamento: o aparelho formal da
enunciação e variação linguística no discurso enunciativo: o modo de falar de cada um; como forma
de contribuir com acadêmicos, professores e pesquisadores por meio do conhecimento científico e
da ciência, no âmbito da linguística enunciativa.

2 O PERCURSO HISTÓRICO DA LINGUÍSTICA ENUNCIATIVA

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No e publicidade,
decorrer de acordo
da história com a nossa
na linguística Política dehouve
enunciativa privacidade. Ao continuar
a dificuldade denavegando,
consenso,você concorda
e até mesmocom
a
estas condições.
existência de certa recusa, entre os linguísticos da época (1966), de aceitar que fossem
considerados os estudos da linguagem. Mas, apesar da desconfiança em relação ao que eram tidos
como vago e indiferentes; várias teorias sugiram no cenário da linguística.
Segundo Benveniste (1995, p.139) o discurso é a manifestação da língua, ou seja, a língua serve
como instrumento de comunicação para o locutor. Como base nisso a enunciação é o processo de
apropriação da língua, sendo que esta se converte em discurso. Contudo, o locutor apropria-se do
aparelho formal da língua e se enuncia.
Pode-se verificar, pela exposição acima, que o autor defende o signo, como unidade semiótica
constituída de um significante e de um significando, devem-se atribuídos forma e sentido. A
significação do mesmo é definida pela comunidade de fala, pelo uso da língua, ou seja, a língua é
vista com sistema orgânico de signos linguísticos. Assim a língua compreender diferentes níveis
hierarquicamente constituídos, tornando-se o sentido a condição fundamental para que uma
unidade de qualquer nível tenha status linguísticos.
Entretanto Saussure se opõe no que diz Benveniste, ele propõe que a língua está diretamente
ligada à enunciação, ou seja, não há como trabalhar a língua e a fala juntas, pois segundo, Saussure
toma-se como norma de todas as manifestações da linguagem a língua, excluindo a fala. Pois, a
relação entre a língua e fala está diretamente ligada ao significado e ao sentido, então, a semiótica
não pode ser construída sem incluir a semântica no contexto.
Para outros autores a linguistica enunciativa, consistia, com efeito, em um conjunto de pesquisas
que se buscava analisa as marcas da enunciação somente na fala, marcas estas que serviriam de
ferramentas para descrever como o locutor utilizar a língua ao se comunica.
Segundo Oswald Ducrot (1970, p.178), a língua e fala pode-se estudada igualmente, mas entende-
se que a língua é objeto teórico construído, e fala como conjunto de dados observáveis. Nesse
ponto ele abrange o mesmo conceito que Saussure. A enunciação, para Ducrot, diferentemente do
que se lê na proposta de Benveniste, é o surgimento do enunciado, e o sentido do mesmo é a
representação de sua enunciação. Sendo assim, a fala tem por si própria os sentidos. Daí, a
importância de estuda-se o locutor, pois este tem um papel fundamental para se entender à
enunciação. Através do mesmo obtêm-se o sentido do enunciado. E tendo-se em vista que o locutor
tem determinadas atitudes: a de assumir, a de concordar e a de se opor a pontos de vista.
Pode-se averiguar, segundo Ducrot (1995, p.603), a enunciação é a ocorrência histórica constituída
pelo fato de que um enunciado foi produzido, isto é, que uma frase foi realizada, contudo pode-se
rematar que a frase é o encaixamento sintagmático virtual, enquanto o enunciado é o segmento
efetivamente produzido pelo locutor.
Porém é necessário mencionar, o nome Bakhtin, que contribuir muitíssimo para que entender o
conceito de enunciação. Segundo Bakhtin (1950 e 1960 p. 175), ele definiu-se como objeto da
linguística, o enunciado, incluído ai o contexto de enunciação, já que este ainda não tinha sido
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estudado fundo. Para de ele
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estudada de Ao continuar
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as formas os tiposcom
de
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interação verbal, ou seja, as formas das enunciações distintas, os atos de fala, em ligação estreita
com interação da qual eles constituem os elementos. A partir daí, se atingiria à sua interpretação
linguística habitual.
Na realidade, ele apenas abrevia-se os estudos da linguística da enunciação, se fragmentado de uma
constatação: não se pode determinar o sentido de um enunciado se não se leva em conta a situação
de enunciação. Nesse contexto o autor Jakobson concorda com mesmo, (1970, p. 175) ele expôs
que não se pode definir sua significação geral fora de uma referência à mensagem, ou seja,
Jakobson (1957) propunha que a mensagem e o código podem servir como suporte para a
comunicação do locutor.

3 A IMPORTÂNCIA DA LINGUÍSTICA ENUNCIATIVA PARA A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE


LÍNGUA PORTUGUESA

Ao trata-se desse tema tão extraordinário, espera-se mostrar e valorizar como é esplêndido a
linguistica enunciativa, dentro do processo ensino aprendizagem. A proposta desse tema tem como
foco principal estimular os educadores a trabalharem a linguística na sala de aula. Já que a mesmo
não é trabalhada no ambiente de ensino.
É formidável que o professor trabalhe com texto referente à linguistica, pois é através dela que se
conhece a origem da língua, e sabendo isso o aluno vai ter em mente a clareza do por que e para quê
aprender a língua em questão. Segundo Bakhtin (1992, p. 279), o professor deve empregar a língua
em forma de enunciados orais e escritos com intuído de preparar o educando para compreender
melhor á linguística. Já que por acaso ele venha precisa no curso de graduação.
Atualmente, há um crescente número de teóricos que problematizam o método tradicional de
ensino de Língua Portuguesa nas escolas do país, pois esse se constitui basicamente por estudos da
gramática. Segundo France (2002, p12) a qualificação é o principal requisito de um docente de
sucesso. Todos nós precisamos evoluir. É uma exigência da contemporaneidade, o educador deve
optar pela linguistica. Dentro da sala de aula a disciplina de Linguística viria para soma com a
disciplina de Língua Portuguesa, porque ambas dão o sustentação que completa o sentido. A
linguística estuda história da língua agregado a abranger o uso da mesma, isto é, a língua tal como
ela é usada pela maior parte da população, e a outra dita: regas do bom uso da língua, esquecendo
sua origem.
Com os avanços dos estudos da área da Linguística e suas diversas vertentes sabe-se que, ao
contrário do que muitas pessoas julgam, não se fala “errado”, o que existem são variações
linguísticas. Segundo Ferdinand Saussure (1995, p. 12), “o tempo altera todas as coisas; não existe
razão para que a língua escape a essa lei universal.” Abrangemos os atributos que a linguística
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com ela ira facilitar o processo de aprendizagem, e o ambiente torna-se um espaço para análises da
gramática do ponto de vistas da linguistica e da língua portuguesa, além de proporciona debates,
dinâmicas e reflexões a respeito da própria. E sua realização propicia aos alunos condições de
produzir novos textos que permitam os significados construídos a partir das práticas de leituras das
próprias.
Segundo Soares (1998, p.59) a linguística instaura-se uma concepção que vê a língua como
enunciação, discurso; não apenas como comunicação que inclui as relações da língua com aqueles
que a utilizam, no contexto em que é utilizada, com as condições sociais e históricas de sua
utilização, ou seja, a interação é a palavra chave em sua ideia. A disciplina de língua portuguesa
pode ser trabalhada junto com a enunciação. Pois, a língua e a fala fazem parte do processo da
linguagem.
A linguística compete à tarefa de formular explicações sobre o mecanismo subjacente à linguagem.
Tal tarefa consiste da formalização da gramática de uma determinada língua. Segundo Fiorin (2002,
p.26) a linguística proviria para o aprimoramento de operações didáticas, no ensino da língua
portuguesa, e o objetivo central do ensino da linguística nos níveis fundamental e médio é fazer do
aluno um leitor eficaz e um competente produtor de textos. Isso é a condição necessária para o
desenvolvimento de suas plenas potencialidades humano, para o exercício da cidadania, para o
prosseguimento dos estudos em nível superior; e para a inserção no mercado de trabalho.
É de suma importância que os alunos saibam que nenhuma modalidade é melhor do que a outra, e
que cada situação cotidiana lhes exige uma maneira de falar ou escrever específica, pois a língua é
como a vestimenta que usamos: cada ocasião exige um traje específico. Sabendo disso, e da atual
situação do ensino da língua materna no Brasil, os professores, principalmente, os que ainda estão
em formação, devem contribuir com sua lenta e gradativa mudança.
Mas para que tal mudança aconteça é aconselhável que o mestre que já esta na sala de aula,
trabalhe com a língua, tal como ela é apresentada diariamente, através de meios reais de
informação, como é o caso do jornal e da revista, além de muitos outros textos, com as mais
diferentes funções, que fazem parte do cotidiano dos alunos. Precisa-se, antes de tudo, que os
alunos saibam identificar as intenções do autor ao escrevê-lo, e que saibam formar uma opinião
critica a respeito de tudo que os cerca. Para isso é fundamental a presença e a orientação do
professor, lembrado que, além de ser responsável por construir conhecimento, este deve também
contribuir para a formação da personalidade dos alunos, sendo um mediador entre esses valores
sólidos. Quando o professor adota a metodologia da resolução de problemas, seu papel será de
incentivador, facilitador, mediador das ideias apresentadas pelos alunos, de modo que estas sejam
produtivas, levando os alunos a pensarem e a gerarem seus próprios conhecimentos. Sendo assim, o
professor deve propor situações-problema que possibilitem a produção do conhecimento, onde o
aluno deve participar ativamente compartilhando resultados, analisando reflexões e respostas,
enfim aprendendo a aprender junto com linguística isso torna mais fácil e mais agradável o ensino
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4 A LÍNGUA EM FUNCIONAMENTO: O APARELHO FORMAL DA ENUNCIAÇÃO


Verifica-se que o conhecimento do sistema da língua é insuficiente para atender certos fatos
linguísticos numa situação concreta da fala e como vimos à enunciação é o ato de produzir
enunciados, que são as realizações linguística concreto em certos enunciados, não têm por
finalidade a designação de um objeto, mas referem-se a si mesmos. Em outras palavras, há certos
fatos linguísticos, que só são entendidos em função do ato de enunciar.
Portanto, é de suma importância estudar o funcionamento da linguagem. Assim, segundo Fiorin
(2002, p.166) ‘‘o estudo do uso da língua é absolutamente necessário, a partir de então ele começa a
desenvolver sua teoria dos atos da fala’’, onde a Pragmática é a ciência do uso linguístico que estuda
a relação entre a estrutura da linguagem e seu funcionamento relativamente ao tempo e ao espaço
da enunciação.
Segundo Fiorin (2002, p. 165) toma como ponto de partida a linguagem em uso para compreender
os conhecimentos linguísticos na situação concreta da fala. Que para o linguista não bastava ter os
conhecimentos fônicos, semânticos e combinatórios da língua, mas sim os instrumentos de
interpretação da enunciação durante uma interação sociocognitiva ao funcionamento da linguagem
na comunicação e o estudo deste instrumento relacionado à enunciação recebe o nome de
pragmática, a qual estuda a relação entre o sistema linguístico e seu uso durante a fala.
A pragmática encontra no uso os objetos de estudo que são os fatos da comunicação no ato de
enunciar uma sentença linguística por meio da fala e Fiorin afirma que quando um enunciado
implica outros enunciados cabe a pragmática orientar qual o sentido literal de uma interferência
nas palavras que discorre sobre o ato de fala.
É necessário que à enunciação cause algum efeito dentro da interação, uma circunstância que se
realiza na comunicação, além da conversação que é constituída por enunciado que tem sempre a
finalidade de enunciar algo argumentativo e o uso adequado desse recurso argumentativo visa o
leitor a criar novas idéias e formar seu ponto de vista utilizando a linguagem.Sendo que a mesma
constitui várias formas de enunciado no seu uso,um deles é o código da língua falada pelo falante
,relativamente a linguagem é um uso associada a fala.
Segundo alguns linguísticos esses estudos do funcionamento da língua propõem-se esclarecer
quanto ao seu uso. Diferente do que Fiorin fala, Saussure dizia que o verdadeiro objeto da
Linguística era a língua e, para ele, a língua era a linguagem menos a fala, ou seja, o uso concreto da
linguagem na enunciação. Já Fiorin fala que o falante seria capaz de entender uma determinada
expressão a partir da troca de enunciados o que poderia ser entendida a situação de comunicar.
De acordo com as diferentes situações de funcionamento da língua, seja ela formal ou informal
Benveniste é o teórico que mais se aprofunda no contexto do aparelho formal da enunciação,
percebe-se que ao lado da Linguística da forma ele quer introduzir outra linguística “a da língua em
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funcionamento”. de acordo
Segundo com a nossa
Benveniste Política
(1995, de privacidade.
p.173) entende aAoenunciação
continuar navegando, você concorda
como o colocar em com
estas condições.
funcionamento a língua por um ato individual, ou seja, é a conversão da língua em discurso (o eu ou
o eu e tu). Articula, entretanto, que a enunciação deve ser entendida como o ato de produzir o
enunciado e não como o texto que é produzido e isso ele caracteriza como objeto de estudo.
Ao tentar configurar o aparelho formal da enunciação comenta que no ato de apropriação da língua
introduz aquele que fala em sua fala e diz que este é um dado construtivo da enunciação e certas
categorias linguística cuja referencia é somente definida em um processo enunciativo, ou seja, em
relação a um eu. A enunciação que ele descreve no aparelho formal é bastante teórica, esta se situa
em dois planos os que escrevem se enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os
indivíduos se enunciarem.
Fiorin, Benveniste utiliza os dêiticos que Fiorin chama de elemento Linguístico e Benveniste define
como pronomes pessoais e vários outros: os demonstrativos, certos advérbios bem como o
paradigma inteiro das formas verbais que passam a expressar a rede de relações que se cria a partir
da relação enunciativa. Com o aparelho formal a língua constitui-se de forma que remete a alguma
realidade a expressão de certa relação com o mundo cuja capacidade de referir somente se atualiza
no uso da linguagem.
Benveniste trata do emprego das formas e do emprego da língua. Vê no emprego das formas uma
parte necessária de toda descrição linguística e no emprego da língua um mecanismo total que
afeta toda a língua, onde ele afirma que não é a língua que se dilui na sociedade, é a sociedade que
começa a reconhecer-se como “língua’’. Pois, com o uso da língua em discurso o enunciador
influencia os níveis de linguagem perante a fala, onde modifica o sentido da palavra atribuindo-lhe a
significação na voz do sujeito falante.

5 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO DISCURSO ENUNCIATIVO: O MODO DE FALAR DE CADA UM

A variação linguística é um tema de contínua preocupação para muitos linguísticos que já vem
sendo estudado e discutido ao longo de muitos anos. Pois, sabemos que toda língua possui
variações linguísticas, ou seja, é o modo pela qual ela se diferencia de acordo com o contexto
histórico, geográfico e sócio-cultural de um país. Tais diferenças de certo grupo social para o outro,
a mudança que pode ocorrer no modo de falar de cada um ou grupo social no discurso enunciativo
referente à sua comunidade e além do que isso em alguns casos a língua-materna que desde criança
o ser humano aprende com os pais ou com outras pessoas e pode levar essa variação consigo.
A enunciação trabalha variação e mudança em vários subsistemas de uma língua um deles é o
processo fonológico que discute a relativização do conceito de erro em linguagem, a questão do
preconceito linguístico no meio da desconstrução de locutores de uma mesma língua. Tais usos na
enunciação fazem reconhecer a importância de diferentes níveis de linguagem tratando da
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Para Marcos Bagno (2002, p.166) reconhecer a importância da língua na construção da identidade
de uma nação é essencial, visto que o poder de uma palavra utilizada pelo falante de uma
determinada região é considerado como preconceito. Bagno ressalta que o sujeito ao utilizar uma
palavra de seu uso cotidiano constitui-se, também, como elemento de construção de cidadania e o
uso dessa palavra é patrimônio lingüístico de um povo.
A língua é elemento preponderante na constituição da identidade cultural de qualquer povo. Não se
constituindo como um sistema único e homogêneo, a língua constrói a identidade de uma nação,
transmitindo e dinamizando sua cultura e não se constitui como sistema único e homogêneo a
língua é também um elemento extraordinário na efetivação das diversidades culturais e lingüísticas
existente em uma nação. Uma nação que pode possuir diversas línguas, consolidando ainda mais
sua diversidade cultural.
Segundo Jean (2002, p.89) as línguas mudam todos os dias, evoluem. A partir disso há uma
mudança que se acrescenta diacrônica e outra a sincrônica, que mostra como perceber uma
continuidade sobre a coexistência de formas diferentes de um mesmo significado dentro de um
estudo atual, seja ele geográfico, social e estilística que abrange as correntes de estudo da língua
que adotam a concepção de linguagem como processo de interação entre as variações enunciadas.
Para Beline (2008, p121) “as línguas variam”, línguas diferentes que existe no mundo que aqui no
Brasil falamos português e do outro lado falam outra língua o espanhol e que dentro do nosso país
existes outros grupos sociais que não falam a nossa língua, que alem disso usam expressões
diferentes. O mesmo fala que tal variação não impede de um ser humano se comunicar com o outro
e que a enunciação estuda esses fatos da fala.
Ele coloca como exemplo a diferença entre o português que falam em São Paulo e o português que
se fala no Rio de Janeiro e nesse ponto vem à questão do léxico ou o vocabulário que as pessoas de
certa região usam. Esse tipo de variação, a lexical é, entretanto, apenas um dos modos como a
língua pode transformar, em outras palavras fazem referência a um elemento do mundo por mais de
um termo linguístico é apenas um dos casos que mostram que de fato as línguas variam, numa
mesma língua, um mesmo vocábulo pode ser pronunciado de formas diferentes conforme o lugar e
a situação mais formal ou mais informal em que se esta falando.
Assim Beline (2008, p.122) afirma diz que podemos perceber dentro desse aspecto geográfico que
há mudanças de ordem, como fonética, morfológica e sintática, além da escolha lexical, uma vez que
se trata de fatores internos da língua, tais elementos podem ser encontrados fazendo-se uma
comparação entre falantes de regiões distintas.
Os linguísticos produzem conceitos sobre as variações linguística, Jean fala que as línguas mudam
todos os dias, evoluem. Já Beline diz que elas as línguas variam e Fiorin (2001, p.24) coloca que a
partir do enunciado, toda língua é viva”, que se modifica e se reinventa ao longo do tempo. Porém,
segundo Saussure a língua é um sistema que reconhece apenas a sua própria ordem.
Reconhecer o fenômeno da variação linguística, despido de preconceito é essencial para o falante
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social, pela capacidade de se adequar às diferentes situações de manifestação da língua. No que se
refere à questão da comunicação na relação ensino aprendizagem a partir do discurso enunciativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O educador é um agente transformador. O intuído deste artigo foi ressaltar o papel do docente de
língua portuguesa na formação de cidadãos críticos, a ajudando-os a ajustarem-se consigo mesmos,
com o mundo e com os outros. A hipótese que foi levantada nesta pesquisa é verdadeira, pois há
uma necessidade de se trabalhar a linguistica e a língua portuguesa dentro da sala de aula, e como
seria esplêndido trabalha com as duas, pois temos duas visões: a que valoriza regras da norma
padrão e a outra que trabalha a historia da língua, sem preconceito de certo ou errado, ou seja,
ambas dão o sustentáculo que educando precisar para ter uma visão de reflexão a respeito da
língua em questão. Dessa forma são de fundamental importância que o mestre trabalhe a
linguistica enunciativa dentro do ambiente escolar, esse método que é ao mesmo tempo, inovador e
modificador.
Mediante o expositivo dos objetivos verifica-se a sua veracidade. No primeiro objetivo: foram
apresentados métodos a serem alcançado pelo professor e que realmente seja trabalhado a
linguistica enunciativa dentro da disciplina de língua portuguesa, pois a uma grande necessidade de
trabalha com mesma, percebe-se a necessidade de que os alunos obtenham habilidades e
estratégias que lhes proporcionem a apreensão, por si mesmos, de novos conhecimentos e não
apenas a obtenção de conhecimentos prontos e acabados que fazem parte da nossa cultura, ciência
e sociedade. E visando contribuir para o trabalho de professores do ensino fundamental e médio.
No segundo objetivo é que este trabalho nos permitiu aplicar a teoria vista no curso de licenciatura
plena em letras, na disciplina de Língua Portuguesa. Todos esses artifícios de trabalha com a
linguistica na sala de aula são campos de estudos profundamente dinâmicos nos quais vêm
ocorrendo verdadeiras revoluções no processo de ensina aprendizagem que caberá a uma futura
mudança no ensino no país, pois estes têm aspectos positivos e esclarecedores, que ajudaram o
professor a lidar com as varias formas de linguagem. Visando-se uma sociedade mais justa, capaz de
intervir no desenvolvimento da humanidade crítica e criativamente, buscando uma melhoria na
qualidade de vida do aluno, não é suficiente apresentar conhecimentos cristalizados e fora do
contexto moderno. É preciso fazer com que os alunos tornem-se pessoas capazes de enfrentar
situações diferentes dentro de contextos diversificados, que façam com que eles busquem
aprender novos conhecimentos e habilidades. Só assim estarão mais bem preparados para adaptar-
s às mudanças culturais, tecnológicas e profissionais do novo milênio.
A partir dessas novas visões, é preciso reprogramar a mente dos professores, para enxergarem na
língua muito mais elementos do que simplesmente erros e acertos de gramática e trabalharem com
linguística enunciativa, pois é tal ênfase nessa disciplina que, ajudaram a vence os grandes
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ou seja, O professor Ao continuar
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extremo, e nem um linguista ao extremo; deve ser professor, e como tal, aproveitar os recursos e os
resultados de ambos para aplicá-los em sala de aula.
É extraordinário destacar, que todas as informações presentes nesse artigo ampararam o
profissional de língua portuguesa a terem uma visão mais critica a respeito da gramática e o
propósito é que os mesmos trabalhem com linguistica junto com os estudos da língua, fornecendo
evidências aos acadêmicos do curso de licenciatura plena em letras e aos leitores interessados no
trabalho apresentado, do que de mais importante se deve saber a respeito de trabalha a linguistica
dentro da sala de aula. Além do fato de que são exatamente outros mecanismos encontrados para
estudar a língua em questão que instigam a curiosidade do leitor para a busca de informações mais
aprofundadas e cientificas.

REFERÊNCIAS

CAMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso, 1904-1970. Para compreender Mattoso Camara/ Albertina
Cunha, Maria Alice Azeredo Altgott-Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. 5. Ed. Campinas, SP: Pontes, 2006.

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1975.

JAKOBSON, Roman et alii. Língua, discurso e sociedade. São Paulo: Global.

CUNHA, D. (1992). Discours rapporté et circulation de la parale. Leuven/ Louvain-la-Neuve,


Peeters/Policátions Linguistiques de Louvain.

BAKHTIN, M. (1979) Esthétique de La création verbale Paris, Gallimard.

AZEREDO, José Carlos de. Língua Portuguesa em debate. Petrópolis: Rio de


Janeiro: Vozes, 2000.

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Vozes, 1975.
FRIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística. São Paulo: Contexto, 2008.

LYONS, John. Linguagem e Linguística. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.

TARALLO, Fernando. História da Linguistica. São Paulo: Contexto (1951-1992).

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: Uma Introdução Critica. São Paulo: Parábola, 2002.

BAGNO, Marcos. Língua Materna: Letramento, variação e ensino .São Paulo. 2002

Hozana de Araújo Alves e Gelcineide Silva


Enviado por Hozana de Araújo Alves em 26/05/2012
Reeditado em 26/05/2012
Código do texto: T3689585

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TEORIAS
LINGÜÍSTICAS
APLICADAS AO ENSINO DO PORTUGUÊS

Terezinha Bittencourt (UFF e ABF)

A constituição da lingüística como ciência, configurada num corpo de


doutrina
com método e
objeto próprios, é
relativamente
recente.
Assim, ainda que gozando de
um respeitável
status na comunidade
acadêmica,
em virtude dos
significativos
resultados
alcançados, é natural que muitas
questões
concernentes a
seu objeto de
investigação,
particularmente aquelas vinculadas ao ensino de
línguas, provoquem debates e suscitem controvérsias.

A chamada lingüística moderna,


desenvolvida
fundamentalmente
sob a égide do pensamento de Ferdinand de Saussure, na
Europa, e de Leonard Bloomfield, nos Estados Unidos, mostra tamanha multiplicidade de temas e de
concepções
acerca da
linguagem
verbal, difundidas num sem-número de
escolas,
que hoje certamente
já não se pode
mais tomar a lingüística como uma
ciência unitária.

Cremos não estar faltando com a verdade, se dissermos


que a cada década aparece uma nova proposta de
investigação da
linguagem. De
fato, nos anos sessenta, os estudos lingüísticos se difundiram sob a orientação do
estruturalismo,
nos anos setenta, foi a
vez da gramática gerativo-transformacional e, nos anos oitenta, começaram a despontar a lingüística textual e as
diferentes
escolas de
análise do
discurso, fundadas, por sua vez, em diferentes pressupostos teóricos.

É bem verdade que todas essas escolas,


ainda que apresentando um arcabouço teórico e metodológico próprio, enquanto
herdeiras do pensamento de Saussure e de Bloomfield, unem-se sempre em torno de
alguns princípios considerados básicos por todas,
ressaltando-se entre estes a concepção de
língua como um sistema estruturado para cumprir a função representativo-comunicativa e a
idéia de
que todas as distintas normas lingüísticas devem ser examinadas, sem nenhum caráter de
privilégio
ou de exclusividade
para
qualquer uma delas.

Todavia,
tal multiplicidade de orientações –
legítimas,
vale lembrar, pois que, em cada uma delas, se examina o objeto sob
diferentes
perspectivas – se, por um lado, permitiu
que a lingüística avançasse
cada vez mais em seu propósito de investigar a
linguagem
verbal em seus diferentes
aspectos,
semântico,
fonológico, morfológico, sintático, por outro, levou o
estudioso da
linguagem,
sobretudo o professor de línguas, a
um estado de
total desorientação diante de tantas propostas de
estudo e de
tanta divergência
acerca de
determinados
temas.

Assim, diante de
pensamentos
tão diversificados no que concerne aos estudos de
língua, o
professor já não encontra
segurança
para discernir acerca do
que deva efetivamente
constituir o objeto de
seu ensino em sala-de-aula. Ademais,
não sabe
em que escola
fundamentar-se, a fim de manter-se atualizado com as últimas
novidades de
sua área e ainda se deve
ou não transmitir a seus alunos
os
conteúdos de
lingüística aprendidos
nos cursos de
Letras, pois já não sabe se deve identificar-se com um professor de língua ou de
lingüística.

Em conseqüência de realidade tão confusa, é


muito comum encontrar-se, quer nos cursos de
graduação
quer nos cursos de
pós-
graduação,
profissionais angustiados, aturdidos e
inteiramente desorientados no que concerne à
sua atuação, indo à Universidade à
procura de
respostas
para determinadas questões de
fundamental
importância
para seu desempenho.

Procuraremos tratar aqui de alguns desses questionamentos, selecionando os pontos que mais controvérsia têm suscitado entre
os
que se ocupam do ensino de
língua materna.
Para tanto, tomaremos como ponto de partida as
indagações
mais freqüentemente
apresentadas pelos professores de
língua portuguesa aos professores de
lingüística, verificando,
antes de
tudo, os
fundamentos
subjacentes a
cada uma delas. Nortearemos a discussão e o nosso ponto de vista acerca dos
diferentes
temas, baseando-nos nas
concepções do
lingüista romeno Eugenio Coseriu, em cujas
idéias encontramos sempre a
orientação
segura, fornecida por uma sólida
fundamentação
teórica.

As dúvidas dos
professores de
língua podem
ser sintetizadas nas
seguintes
perguntas:
a)      
Que devo
ensinar, na disciplina de
Língua Portuguesa, tendo em vista que o aluno já conhece a
língua, ao
chegar à
escola?
b)      
Como tornar o aluno um efetivo produtor/intérprete de textos?
c)      
Devo
ensinar gramática?
d)      
Caso a resposta à
pergunta anterior seja
negativa, o
que devo,
então, ensinar?
e)      
Caso a resposta seja
positiva,
como devo
ensinar gramática?

Para tentarmos responder a tais questões, vamos valer-nos de alguns conceitos


básicos estabelecidos por Coseriu.
Segundo seus
ensinamentos, a linguagem é uma atividade
humana universal que se realiza
individualmente,
mas sempre segundo técnicas
historicamente determinadas (línguas) e, por isso, pode e deve ser investigada em três diferentes
dimensões:
universal, histórica e
individual. Na
primeira, apresenta-se como linguagem, na
segunda,
como língua e, na
terceira,
como fala. A cada um desses
planos
correspondem também um tipo de conteúdo e
um saber específico: ao
plano universal concernem o designado e o saber elocucional, ao
plano histórico, o
significado e o saber idiomático e ao plano individual, o
sentido e o
saber expressivo. O
saber elocucional[1] diz
respeito ao
conhecimento das coisas, o
saber idiomático se refere ao conhecimento das regras, formas e
conteúdos de uma língua
determinada e o saber expressivo
abarca o
conhecimento de uma situação de
fala determinada. È de tal modo evidente a
existência
desses três planos, quer na consciência do
falante quer na consciência do
lingüista, que até os juízos concernentes ao ato de fala
também são distintos, dependendo da dimensão considerada: congruente ou incongruente, no plano universal, correto ou incorreto, no
plano histórico e adequado ou inadequado, no plano individual. O
quadro abaixo mostra melhor essas
relações:

PLANO UNIVERSAL HISTÓRICO INDIVIDUAL


SABER ELOCUCIONAL IDIOMÁTICO EXPRESSIVO
CONTEÚDO DESIGNADO SIGNIFICADO SENTIDO
JUÍZO CONGRUENTE/ CORRETO/ ADEQUADO/

INCONGRUENTE INCORRETO INADEQUADO


É necessário ressaltar que, na atividade
concreta de
fala, esses conteúdos
bem como os saberes que permitem
sua manifestação
ocorrem sempre juntos, cabendo ao estudioso identificá-los e examiná-los, a fim justamente de
que possa
perceber suas peculiaridades
e, desta forma, intervir com segurança no que de fato constitui as dificuldades dos alunos.

Já se tornou
fato corriqueiro os
professores de todas as disciplinas, e
não apenas o
professor de língua materna, queixarem-se
de que os alunos não sabem
português, ou escrevem
mal ou apresentam
dificuldades gigantescas no momento em que precisam
interpretar textos. Tais reclamações aparecem com freqüência
não apenas entre os
professores de
ensino médio, mas também entre os
docentes de
terceiro
grau, nas
mais diferentes
áreas. Todavia,
ainda que as deficiências dos aprendizes, traduzidas nessas queixas,

tenham
até se transformado num lugar-comum entre aqueles que atuam no
magistério,
não se tem,
até agora, encontrado um caminho
seguro para tentar resolvê-las.

Para atender a tal propósito, cremos ser da maior valia a tríplice


dimensão do
fenômeno da linguagem estabelecida por Coseriu,
pois permite detectar com clareza os
níveis em que o problema deve
ser examinado, dando
margem a
que o professor consiga perceber
com nitidez as
dificuldades do aluno, podendo
concentrar, assim, os
seus esforços,
nos pontos frágeis de seu desempenho.

O aluno, quando chega à escola, já tem um domínio,


ainda que bastante restrito, das três modalidades do
saber lingüístico, uma
vez que já é capaz de
produzir e interpretar textos, ou seja,
enquanto
falante,
ele é capaz de, nas
atividades corriqueiras em que
precisa interagir lingüisticamente, construir enunciados
em sua língua materna (saber
idiomático),
acerca de
um dado da realidade
(saber elocucional), numa determinada
situação,
para um certo interlocutor (saber
expressivo). É
evidente
que essa
competência
textual ainda se
encontra num
nível muito incipiente, diríamos mesmo, num
nível rudimentar,
já que só lhe concede o
direito de
produzir e interpretar textos cuja finalidade manifestativa é bastante
singela e
cujos conteúdos cognoscitivos são muito pobres (p.ex.,
conversar com amigos sobre esporte ou sobre um programa de
televisão,
pedir aos pais ou professores
que atendam a
certa solicitação
etc). Tal competência
não lhe permite,
assim, produzir ou interpretar textos cujas
finalidades comunicativas não sejam imediatas e cujos
conteúdos cognoscitivos sejam mais elaborados (p. ex.: textos de
literatura, de política, de
economia etc.).

Ninguém põe uma criança na


escola com a intenção de
que ela passe as
aulas recebendo lições acerca do
que já sabe. É
evidente,
pois, que o objetivo do
ensino de
língua consiste justamente
em fornecer ao aluno o instrumental necessário para que
ascenda de
nível, podendo, assim, ter a oportunidade de construir e interpretar textos de
modalidades variadas. Na verdade, o que não
se sabe
com segurança são os meios a serem utilizados para que tal propósito seja alcançado.

A atividade
lingüística é muito mais complexa do
que parece, à
primeira
vista, em virtude de se manifestarem, em cada um de
seus momentos, as
três modalidades de
saber acima referidas. Inúmeras vezes o professor percebe nos textos de
seus alunos
equívocos,
mas, por não conseguir apontar com precisão
onde se encontram, fica sempre no
terreno vago da mera opinião,
expressa,
via de regra, por frases como as que seguem:
Seu
texto está sem
sentido.
Você precisa
aprender gramática..
Você não sabe escrever.
Você não diz coisa com
coisa.

Tal atitude, além de ser inteiramente


estéril, é
nociva, porque só faz com que o aluno tome o
caminho oposto ao que deveria
tomar para superar suas dificuldades. Afirmamos isto porque a
linguagem é uma atividade finalística e, justamente
por definir-se
como
atividade,
só pode ser aprendida, enquanto
tal, no próprio agir. Dizendo de outro modo, só se aprende a fazer, fazendo ou, no caso da
atividade
lingüística especificamente, só se aprende a falar, falando e ouvindo os outros falarem, assim como só se aprende a escrever,
escrevendo e lendo o que os outros escrevem. Embora pareça
um truísmo, reside nessa singela constatação
todo o segredo do
aprendizado de uma língua.

Resta saber, no entanto, de


que modo o exercício de
tal atividade
deva ser levado a
cabo. Valendo-nos outra vez da tríplice
dimensão da
linguagem estabelecida por Coseriu, diríamos que o aluno deve
ser exposto a
toda sorte de
sistemas
significativos (textos
escritos,
cinema, teatro, obras-de-arte, charges etc), de modo a ampliar o seu saber elocucional. E,
para tanto, o
professor de língua
portuguesa não pode
estar sozinho em tarefa de
tal magnitude, devendo contar com a colaboração dos professores das demais
disciplinas.

Exemplificando mais concretamente, imaginemos a situação de


um aluno a quem se pede
para fazer um trabalho escrito sobre o
tema da globalização.
Claro está
que, mesmo possuindo um perfeito
domínio das
regras gramaticais,
um léxico razoável (saber
idiomático) e sabendo o tipo de texto a ser produzido em tal circunstância (saber expressivo),
não poderá
redigir rigorosamente
nada,
se
não tiver
conhecimento do assunto (saber elocucional). Cabe a tarefa de
ampliar esse saber, no exemplo em questão, aos
professores de
História e de
Geografia,
sem a ajuda dos
quais nada poderá
ser feito. Tarefa semelhante caberia ao professor de Biologia,
se o
trabalho fosse, por exemplo, a
respeito da
clonagem
humana.

Um outro exemplo para ajudar a compreender melhor o


nosso tema. Lembramo-nos de uma situação
vivida por nós, quando
tratávamos justamente do
conceito de
saber elocucional com nossos alunos da
graduação de
Letras. Levamos uma charge sobre o
episódio de
triste lembrança,
conhecido
entre nós pela expressão
chacina da Candelária. Na referida charge, o
autor reproduziu o painel
de Guernica de autoria de Pablo Picasso, substituindo os rostos contorcidos dos civis da guerra espanhola pelas faces desesperadas de
crianças brasileiras. Muitos de
nossos alunos não souberam
interpretar o sentido do
texto, porque não conheciam a referida obra do
renomado pintor e tinham apenas uma
vaga idéia do
que ocorrera na Espanha nos anos trinta.

Na verdade, ainda estamos reduzindo o problema,


quando confiamos a tarefa de
ampliar o saber elocucional apenas à
escola,
pois, a rigor, tal tarefa pertence à
comunidade
como um todo e, por isso mesmo, todos têm de
estar empenhados para que ela possa
ser levada a
cabo com êxito. Assim, se na
família,
por exemplo, se cultiva o hábito de
discutir acerca de
questões variadas, ver
programas
educativos na
televisão,
assistir a filmes e
peças de
teatro de
qualidade, é
natural que o aluno já apresente
material
para ser
objeto de
reflexão.

Sabemos, todavia,
que tal situação
ideal está
longe de se
transformar em realidade, em virtude de
muitos fatores,
entre os
quais
sobressai, a nosso ver, não o fator econômico,
como se pode
imaginar numa avaliação
apressada,
mas a própria mentalidade da
população
como um todo. Na
verdade, mesmo nas
comunidades
mais carentes, é
perfeitamente
possível criar-se, desde cedo, um
modus vivendi cujo cerne seja a valorização da cultura,
com o incentivo à
leitura de
diferentes
sistemas semióticos, concretizada através
de
visitas periódicas a museus e a
bibliotecas,
idas a cinemas,
teatros,
concertos etc.

Naturalmente
que isso só será exeqüível, se houver vontade e
empenho de
todos, sobretudo dos grandes meios de
comunicação
de
massa, particularmente do rádio e da
televisão,
cuja responsabilidade, a esse respeito, deveria ser a maior de todas, uma vez que
constituem uma concessão de
serviço público. É
preciso levar-se sempre em conta que grande parte do
que constitui o saber elocucional
da
criança e do
adolescente é
construído
desde cedo pela televisão e,
por isso, o Estado deveria
ter a obrigação de cuidar
permanentemente de sua programação, obrigando as concessionárias a apresentar uma programação de bom nível. É evidente
que tal
exigência
só será cumprida, se a própria comunidade
tomar para si o dever de cobrar tal comportamento.
Levando-se em conta as carências de
toda sorte próprias de um país subdesenvolvido
como o nosso, parece
que estamos
fazendo uma proposta
educativa
absolutamente utópica, mas tal avaliação
não corresponde à verdade. De fato, há inúmeras atividades
culturais de baixíssimo custo à disposição de todos que, por falta de
interesse, de
costume e de estímulo
não são aproveitadas por
aqueles em que se devia
desde cedo inculcar hábitos culturais: o educando. Posso citar, a título de
ilustração, a
Universidade
Federal
Fluminense,
instituição
onde trabalho, e a Prefeitura de Niterói, ambas costumam apresentar uma programação cultural de excelente
nível, gratuitamente
ou com preços quase que simbólicos
para o público.

Não vemos
outro caminho para que as reivindicações dos professores e dos pais na direção de um melhor desempenho
lingüístico de
nossos jovens possam
ser atendidas e, insistimos, é dever de todos e não apenas dos
professores de
língua materna.
Sem
criar as condições adequadas para que o saber elocucional se amplie em cada educando
paulatina,
mas, ininterruptamente,
não será
possível
contar com um falante/ouvinte
competente
para construir e interpretar textos.

Não queremos
com isso dizer, todavia,
que seja
suficiente,
para tornar alguém competente lingüisticamente, ampliar-se o saber
elocucional. Tal tarefa, a
rigor, é condição sine qua non, mas é necessário ainda que outros conhecimentos sejam considerados, a fim de
que efetivamente o
aluno seja
capaz de expressar-se bem. De fato, como vimos
mais atrás, precisamos ainda tratar dos outros dois
saberes,
indispensáveis
também para a constituição de textos. Comecemos, pois, pelo saber idiomático,
aquele, conforme ficou
visto,
responsável pelas regras e
unidades sígnicas de uma língua determinada.

O conceito
que a comunidade faz da língua leva em consideração os vínculos
históricos e culturais compreendidos no que se
costuma
chamar de tradição e, por tal razão, a
língua existe na consciência do
sujeito como um objeto unitário e
homogêneo.
Só na
condição de
observador é que se pode
perceber a variação apresentada por uma língua. E
em virtude de
tal diversidade é
que se
costuma
fazer uma oposição
entre língua culta ou norma padrão (modo de falar característico de pessoas com alto grau de instrução) e
língua vulgar ou norma subpadrão (modo de falar característico das pessoas analfabetas ou com baixo índice de
escolaridade). A
primeira é a
norma prestigiada pelo conjunto da
sociedade, vale dizer, valorizada tanto por aqueles que utilizam a
norma padrão quanto
por aqueles que utilizam a
norma subpadrão. Por isso, é a
norma padrão aquela considerada como objeto privilegiado do ensino,
condição de
prestígio no
seio da comunidade e
modelo de correção
lingüística.

Embora o
próprio falante costume rejeitar a norma subpadrão (domine ele a norma padrão ou não), do
ponto de vista
estritamente
lingüístico,
isto é, do
ponto de vista da
finalidade do
ato de fala, quer um texto manifeste uma ou outra norma, em
qualquer dos
casos a função cognoscitivo-manifestativa da linguagem será cumprida, se respeitadas as regras do
sistema,
porque
ambas possuem sua própria gramática. É preciso,
todavia,
entender exatamente o
que estamos afirmando, pois o termo gramática, no
âmbito da
metalinguagem e da linguagem
corrente admite acepções
diferentes.

Observemos os dois enunciados:


a)           
Os porco morreu.
b)          
Os porcos morreram.

Ambos comunicam igual estado de


coisas, de
modo que, empregando-se um ou outro, estaremos dizendo o mesmo acerca da
realidade extralingüística e, portanto, é
lícito dizer que os dois enunciados cumprem a função de
comunicar. Com efeito, se realizam a
finalidade
comunicativa, é porque foram construídos consoante as
regras pertencentes ao saber idiomático
que configura a língua
portuguesa, sendo, neste sentido,
possível
afirmar que ambos possuem
sua própria gramática.

Todas as regras utilizadas para a construção desses enunciados constituem o que estamos denominando de gramática, ou
1
melhor, gramática , e são conhecidas
pelos falantes de
língua portuguesa, pertencendo, assim, a
seu saber idiomático.
São elas,
justamente,
que nos permitem
construir e interpretar a cada momento um novo texto constituindo, por conseguinte,
condição sine qua
non para que o texto se manifeste. Tais regras foram aprendidas por todos segundo a
mesma forma de aprendizado de
qualquer
saber
técnico – e o
saber lingüístico é
um saber técnico,
já que consiste numa capacidade
para executar algo –, através da
própria atividade:
ouvindo os outros falarem e falando.

É certo, por outro lado, que o usuário da língua, quando se


encontra
em atividade,
não se dá
conta da complexidade das
operações de
natureza cognitiva que é obrigado a
executar para produzir um enunciado,
por mais banal que ele seja, uma
vez que,
enquanto utente da língua, sua preocupação está inteiramente voltada para a finalidade do
instrumento
lingüístico e
não para o
instrumento
em si mesmo. Assim, o enunciador da primeira
frase não é capaz de
explicar as razões pelas
quais preferiu, no primeiro
enunciado,
apagar a manifestação morfossemântica, ou concordância,
entre determinante e
determinado e
entre sujeito e verbo, e,
analogamente, o enunciador da segunda também não é capaz de
explicitar os motivos pelos quais optou
por informar quatro vezes ao
enunciatário que mais de um porco havia morrido.

Os dois falantes, o
que proferiu a
frase a) e o
que proferiu a
frase b),
vale ressaltar, não sabem e
nem precisam
saber, para
desempenhar tal atividade,
justificar as regras que atualizaram para produzirem as respectivas frases, o
que não quer dizer que eles
não conheçam
tais regras, tanto num
caso como no outro. Baseando-nos mais uma
vez nas preciosas lições do
mestre romeno, diremos
que ambos se encontram na dimensão do
conhecimento denominada de conhecimento claro-distinto-inadequado[2].
Em tal dimensão,
o
objeto do
conhecimento é identificado com segurança e não precisa ser justificado. É, por exemplo, o
mesmo conhecimento
que nos
permite
dirigir um carro: sabemos os movimentos
que devemos
executar, aprendidos
durante o
próprio exercício e
não precisamos
refletir sobre sua engrenagem
para fazê-lo mover-se.

O lingüista, por outro lado, encontra-se em outro plano ou num grau mais elevado do
conhecimento,
aquele denominado de
conhecimento
distinto adequado. Neste grau do conhecimento, procura-se justificar o próprio objeto do
conhecimento, fundamentando-
o com razões, teses, princípios, consistindo, por conseguinte, num conhecimento de caráter reflexivo,
especulativo. Tomando ainda a
nossa analogia
com o desempenho do
carro, seria a
justificativa
para o funcionamento de seu motor: é certo que, para dirigir, não é
necessário saber rigorosamente
nada sobre o mecanismo que permite
tal atividade.

Como se vê, são duas


dimensões distintas do conhecimento: a segunda depende da primeira, uma
vez que o objetivo é
precisamente o de justificá-la. No tocante à
linguagem
verbal, é
necessário que se tenha adquirido o saber lingüístico
para que se
possam
fazer reflexões
acerca dele. A
rigor, tais reflexões começam a ser feitas muito cedo na vida do falante,
mas se trata de
observações
muito simples,
por ser simples ainda o seu saber, e ocorrem, via de regra, quando, eventualmente, no ato comunicativo,
há um desvio em relação ao
que era esperado.
Por exemplo,
quando alguém produz
um enunciado
com marcas, no
plano fônico,
diversas daquelas empregadas
pelo conjunto da
comunidade, aparecem frases como as que seguem, reveladoras já de uma
observação
metalingüística bem incipiente:
Ele
não é daqui. Pelo sotaque
ele parece ser baiano. Os
baianos falam diferente de nós. Os baianos
falam cantando.,etc.
Ora, se o
saber metalingüístico encontra-se voltado para o saber lingüístico, existindo tão-somente para explicá-lo, é evidente
que o primeiro só deve aparecer, quando o
segundo já existe,
não podendo
ser de outro modo, uma
vez que o seu fundamento
encontra
a
sua legitimidade na prévia existência de
um objeto a
ser investigado e, se
não há ainda objeto algum, não há igualmente
justificativa
para a investigação. De fato, como salienta Picardo[3],
es absurdo suponer que no se habla correctamente una lengua
hasta que se escribe su gramática . No la hablaron,
acaso, los
grandes clásicos griegos mucho antes de la creación de la grammática? Y ciertos pueblos que aún no la tienen, no hablan
correctamente sus lenguas?

Voltando à nossa analogia


com o carro, diríamos que de nada adiantaria, para dirigir, refletir-se
sobre o motor do carro, seria
um
conhecimento
inteiramente
inútil e
dispensável.

O ensino de
língua materna,
tal como é feito habitualmente
em nossas
escolas, consiste, desde as
séries iniciais, de
reflexões
sobre um objeto cujo domínio o
falante possui de forma muito incipiente,
isto é, o
seu saber lingüístico permite-lhe apenas produzir atos
comunicativos
para a satisfação de objetivos
imediatos e,
por conseguinte,
qualquer
possível
reflexão de
caráter metalingüístico é muito
singela também. Trata-se, por isso mesmo, de
um conteúdo programático inteiramente equivocado, com o dispêndio de
um tempo
precioso que poderia ser gasto na
ampliação do
saber sobre o qual se quer refletir.

Os professores de
língua portuguesa costumam constatar consternados
que, habitualmente, ao perguntarem aos alunos se

viram
determinado
conteúdo na
série precedente, eles costumam
responder negativamente,
ainda que tal conteúdo tenha sido visto e
revisto pelo professor no ano anterior. Os
alunos, na
verdade, não ficam esquecidos subitamente do que foi exaustivamente ensinado,
nem estão de
má-fé quando dizem
não se lembrar: eles, de
fato, não se lembram, porque não sabem e
não sabem,
porque não podem
refletir sobre algo que ainda não se encontra
bem sedimentado.

Comprova-se facilmente o que estamos dizendo, examinando o programa de


língua portuguesa da primeira à
última série do
ensino médio: tal programa é
repetitivo, havendo, na passagem de uma série para outra, pouquíssimas alterações no conteúdo. E,
ainda
que repisando os velhos temas, o
aluno tem
sempre a
impressão de
nunca tê-los
visto, acarretando com sua atitude um enorme
sentimento de
frustração no
professor, que constata,
com enorme desalento, a
inutilidade de
seu esforço,
diante de
resultados
invariavelmente negativos.

O saber metalingüístico apresentado aos alunos na


escola diz
respeito ao
que costumeiramente se designa por ensino de
gramática. O termo gramática, neste
caso, designa a investigação,
sob uma certa perspectiva, do conjunto de
unidades e
regras que
1 1
configuram o que mais atrás denominamos de gramática ,
ou ainda, dizendo de outro modo, na
investigação da gramática consiste
2
precisamente a
tarefa da
disciplina
que passamos
agora a designar gramática .

2
A pergunta feita inicialmente
sobre o ensino de
gramática refere-se,
portanto, à
gramática
e parece, diante do
que foi exposto
e discutido, já estar respondida, mas, a rigor, só está respondida parcialmente,
pois que ela envolve outras questões
que precisam
ser
bem entendidas, para poder compreender-se
tema de tamanha magnitude na
sua integralidade.

Vamos retomar nossa analogia


com o carro. É
certo que para dirigir um carro não há a
menor necessidade de conhecer-se o
mecanismo que garante
seu movimento.
Todavia,
depois que já se sabe
dirigir, o conhecimento das engrenagens de
que um motor se
constitui pode,
em certas situações,
ser de bastante
utilidade.
Por exemplo, num
determinado
momento,
quando, numa
estrada deserta
em que não há possibilidade de socorro, o
carro enguiça, o
conhecimento de seu mecanismo será com certeza de
grande valia.

Do mesmo modo, para os atos comunicativos


rotineiros e
simples da
atividade
lingüística quotidiana,
tal conhecimento
metalingüístico é inteiramente
dispensável,
entretanto,
para atos de fala em que os conteúdos cognoscitivos manifestados são
complexos, o
saber metalingüístico –
ainda que não seja
imprescindível – tem um grande valor e mais, sem seu domínio, há
grandes
possibilidades, em alguns casos, de
não se lograr êxito total na
finalidade
comunicativa.

De fato, nos textos em que se exige a


obediência à
chamada norma culta, a
reflexão metalingüística pode funcionar como um
instrumento
pedagógico da
maior importância, permitindo ao produtor do
texto fazer reflexões
acerca da
construção mais apropriada.

Vejamos um exemplo concreto,


através da
análise da
seguinte
frase: Não haverá jamais
dificuldades econômico-sociais
intransponíveis
para um
presidente
em
cujo
desempenho o povo depositou sua
esperança. Digamos que, ao produzir tal texto, o
falante
de
língua portuguesa, numa situação de
formalidade na
qual se faça
exigir o uso da norma culta, manifeste dúvida quanto ao
emprego
do
verbo haver, no singular
ou no plural. Se tiver estudado análise sintática, saberá que, consoante o
que estabelece a norma
prescritiva, o verbo haver deve manter-se na 3ª pessoa do singular,
porque no
sentido de
existir não tem sujeito com que faça a
concordância; se estiver na dúvida acerca do
emprego da
preposição
antes do
relativo
cujo, poderá lembrar-se das lições de
regência e
da
função do
relativo e,
então, verificará que a presença do elemento de
ligação é
necessária.

Observe-se que todas as


reflexões
que fizemos e
que nos permitiram
um desempenho
lingüístico
mais adequado
para a situação
2
imaginada tornaram-se possíveis
graças, justamente, ao
saber metalingüístico,
ou à gramática .
Para constatar o que estamos
afirmando, basta que se observe a quantidade de termos da
metalinguagem
que fomos
obrigados a
empregar, para explicarmos,
1
justificarmos, esclarecermos com segurança a nossa atividade,
aquele saber prévio denominado de gramática .

Assim, é
possível afirmar-se que, se por um lado a aquisição de um saber metalingüístico,
através do
que costumeiramente se
entende por ensino de gramática, é absolutamente
dispensável
para a produção de textos nas
situações rotineiras do quotidiano, nas
quais os
enunciados
são produzidos de maneira quase que imediata,
com um mínimo de reflexão e de
consciência,
por outro, pode
ser
muito útil para todos os
que pretendem
fazer uso do instrumento
lingüístico
também naquelas circunstâncias
em que, por muitas
razões, há uma
necessidade
imperiosa de se construir um texto mais elaborado, para cuja produção o conhecimento metalingüístico tem
valor inquestionável.

Não se deve
perder de vista, todavia,
que o saber metalingüístico
não pode,
como tem sido
feito na
maior parte das nossas
escolas – e
nós mesmos podemos
dar o nosso testemunho de
alunos que fomos –
ser utilizado como se tivesse um fim em si mesmo,
desvinculado inteiramente do saber lingüístico
para o qual deve orientar-se. Tal distanciamento costuma ocasionar uma verdadeira
distorção no
ensino do
idioma pátrio, gerando toda sorte de
confusões,
além de determinar a manutenção de
um ensino equivocado e
estéril.

É muito comum as
escolas separarem as aulas de
língua portuguesa em dois diferentes
blocos: no
primeiro, considerado o
núcleo
duro e a própria razão de
ser do ensino de
português, a que se concede uma carga horária maior, concentram-se as aulas de
gramática (saber metalingüístico) e no segundo, relegado a um secundaríssimo plano, contando com uma carga horária mínima,
inserem-se as aulas de
redação (saber
lingüístico).
Ora, como já foi discutido, o saber metalingüístico
só encontra
sua justificativa na
escola de
ensino médio se se
consubstanciar num meio para um melhor desempenho da
atividade
lingüística, de modo que, exposto
desta
forma, como se seu motivo de
existir encontrasse legitimidade
em si mesmo, é
evidente
que se transforma num saber inútil e
inteiramente
dispensável.

Cumpre lembrar ainda que , para o saber metalingüístico


ser alcançado, é mister um domínio razoável do saber lingüístico, uma
vez que, conforme
já ficou
visto, este é objeto de
investigação daquele. Por isso, é óbvio que, nas
séries iniciais, a
metalinguagem é
inteiramente
dispensável, devendo começar a fazer parte dos
conteúdos programáticos nas séries finais, quando o
aluno já tiver
constituído, ao longo dos
anos, uma
competência
lingüística sólida, adquirida através da
exposição permanente e
dinâmica a
todos os
tipos de
sistemas
significativos
possíveis.
Só então, insistimos, o saber metalingüístico poderá prestar grande auxílio ao
aprendiz.

O domínio do
saber idiomático,
todavia,
ainda não é suficiente
para fornecer ao aluno a competência de
que ele necessita
para
cumprir as variadas finalidades da
atividade
comunicativa,
pois é necessário ainda o domínio do
saber expressivo,
aquele concernente
ao
nível individual da
fala.

De fato, no
ato verbal concreto, estão sempre presentes
dois sujeitos historicamente determinados:
um eu,
que fala acerca de
algo da realidade (empírica
ou imaginada)
para um tu, num
tempo e num
espaço determinados, numa certa situação
social. Para tal
atividade
lograr êxito, isto é, para que aquilo que está na
intenção do
falante seja alcançado pelo ouvinte, é
necessário que inúmeros
requisitos sejam preenchidos, entre os
quais salientamos os seguintes:
um conhecimento de mundo (saber elocucional) e uma tradição
lingüística (saber
idiomático)
comuns ou parcialmente
comuns, o
esforço conjunto dos
interlocutores
em direção a um sentido
partilhado.

Nos atos rotineiros da


atividade
lingüística, esses elementos
são conhecidos
pelos sujeitos e
não costumam
revelar maiores
problemas. De
fato, dentro da
nossa comunidade,
normalmente sabemos como devemos comportar-nos lingüisticamente, porque nos
orientamos
pelo conhecimento
vago ou definido
que temos de
nosso interlocutor,
pelo ambiente
em que nos encontramos, enfim, pelas
circunstâncias
que envolvem o
ato de fala e por todas as
condições
que lhe permitem a concretização. Tais elementos funcionam de
modo silencioso e estão dados de
antemão para todos os
que pertencem a uma certa cultura, de
modo que só nos chama a atenção,
quando ocorre
qualquer
desvio com respeito ao
que era esperado numa dada situação.
Em virtude justamente da multiplicidade de
fatores que concorrem
para um texto adquirir sentido,
um mesmo ato de fala pode
ser interpretado de modo diverso, bastando, para
tanto, que se altere
um desses
elementos a
que fizemos
referência.

Imaginemos três situações: na


primeira,
um estrangeiro,
com um pequeno grau de conhecimento de nossa língua, chega a um
bar, no Rio de Janeiro, e pede um café ao atendente, dirigindo-se a ele com o pronome vós; na
segunda,
um falante carioca, ao
chegar
ao bar, faz o
mesmo pedido, utilizando o mesmo pronome; na
terceira,
por fim, nosso ator do pequeno drama verbal, encontra-se numa
igreja, e ouve o oficiante
rezar o Pai
Nosso, empregando, ao dirigir-se à entidade
divina, o
pronome vós. A
reação do
ouvinte não será
igual diante da
utilização de idêntica
unidade sígnica: no primeiro caso, ele certamente compreenderá que se trata de
um
desconhecimento de quem não domina
com segurança o idioma; no
segundo, pode
pensar que se trata de alguma brincadeira
ou ficar
até ofendido, imaginando que se quer com isso humilhá-lo ou ridicularizá-lo; no terceiro,
por fim, o ouvinte não terá nenhuma sensação
de
estranheza e
nem atentará
para tal detalhe. Note-se que ainda estamos reduzindo a complexidade da situação, desconsiderando
outros fatores,
porque, a
rigor, nós poderíamos
ir longe nas múltiplas interpretações acarretadas apenas pela mudança de uma
circunstância.

A fragilidade no
conhecimento do saber expressivo pode ser ilustrada com muitos exemplos,
sobretudo em sala-de-aula. Assim,
é
muito comum ouvir de alunos com um pleno domínio da
norma padrão e do
próprio tema de que estamos tratando, queixas de
que
não encontram a forma adequada para se expressar. Fazem muitas
vezes trabalhos primorosos sob determinados
pontos de
vista e,
todavia, sente-se que o texto não está
bom. A razão disso reside justamente na
falta de
conhecimento do saber expressivo
relativo
àquela modalidade de
texto. Ora, o usuário de língua materna sabe,
como dissemos
acima, orientar-se perfeitamente nas múltiplas
situações concretas do ato de fala do quotidiano, mas com certeza não se sente
tão seguro em outras tantas com as quais não está
familiarizado. Para superar tais dificuldades,
só existe
aquele caminho apontado lá atrás: a
exposição a modalidades
diferentes de
texto.

Quando dizemos
que é imperioso
apresentar ao aluno diferentes
tipos textuais, ao
longo de todas as séries escolares, estamos
nos referindo
rigorosamente a todos os
tipos de
texto, tanto àqueles construídos consoante as
regras da
gramática normativa quanto
àqueles construídos de conformidade
com as regras da
norma subpadrão.

Não se trata, cumpre


ressaltar, de nenhuma
proposta de
caráter demagógico, mas de uma
proposta
pedagógica
efetiva,
que
apresenta a educação
lingüística como um meio para que todos, e
não apenas uma
parte da
população, possam alcançar a efetiva
cidadania.
Sua concretização, entretanto, depende de que todos tenham o
seu conhecimento valorizado, sobretudo o conhecimento
lingüístico,
pois a língua é,
entre os
instrumentos simbólicos, aquele que mais confere
identidade a
um segmento social e,
por isso
mesmo, deve
ser observada como realmente é: uma rica pluralidade de
normas, adequadas cada uma delas a uma certa situação.

O professor não pode


nunca perder de vista que, antes de
ser professor de português ou de qualquer
outra disciplina, é
um
educador e,
enquanto
tal, sua responsabilidade vai muito além da de
um mero transmissor de
conhecimentos.
Ademais, no
que toca
especialmente ao professor do idioma pátrio, a
magnitude de
seu papel transcende e muito o papel desempenhado pelos docentes de
outras disciplinas.
Em primeiro lugar, porque o
objeto ensinado nas outras disciplinas é ministrado em português e em segundo,
não em
ordem de
importância,
naturalmente,
porque é
através da
forma de aquisição desse saber que o aluno espelhará seu desempenho
verbal.

Se o próprio professor se encarrega de


ser o instrumento veiculador do preconceito lingüístico, é
certo que não está atendendo
ao que se espera de um educador,
pois deve fazer uso do prestígio reconhecido pelo conjunto da
sociedade, a fim de ser o principal
agente de transformação e não instrumento
para a sedimentação do autoritarismo
subjacente ao
discurso
monofônico,
sob a cômoda
alegação de que sempre se ensinou dessa forma e, portanto,
tal forma de agir, ainda que perversa, deve
ser mantida a qualquer
custo,
até mesmo ao
custo de uma
péssima educação.

Promover a reprodução de
comportamentos
sob todos os
aspectos condenáveis, sobretudo quando feita por quem tem
legitimidade
para funcionar como modelo para um segmento permeável à
incorporação de toda sorte de mundivisões, é, para dizer o
mínimo, uma atitude de total irresponsabilidade. E, vale ressaltar, irresponsabilidade
não só para os que recebem
diretamente
tais
concepções distorcidas, mas também para a nação como um todo, pois se formam, deste
modo, cidadãos
que vão refletir nas mais
diferentes
situações de
sua vida – algumas
cruciais
para todo o país, como o momento da
escolha dos
governantes –
práticas
alimentadas por falsos ensinamentos
ou por ensinamentos equivocados.

Vejamos como se pronuncia Carlos Eduardo Falcão Uchôa,


pesquisador dedicado aos problemas
relativos ao
ensino de
língua
materna, a
respeito do
tema da variação lingüística:
O problema da variação lingüística vem levantando muitas indagações e
controvérsias no ensino atual de
Português,
apesar de
vários e úteis
trabalhos de
orientação
pedagógica
que têm surgido entre nós, mas pouco conhecidos
em geral do
professorado.
Não obstante
tudo o que tem sido
dito pela Lingüística, e aos avanços particularmente da Sociolingüística,
convivem atualmente
em nosso ensino uma
forte tradição repressora, dialetofágica, cuja superação continua a ser um
desafio para o professor de Português – haja vista inúmeras
séries didáticas
que, apesar de falarem em variedade de
usos
lingüísticos, deixam não raro transparecer o preconceito quanto aos
usos não cultos – e uma
tendência,
igualmente redutora
de encarar o fenômeno da variação, ao
identificar o juízo de
correto com o que é usual. Modos de
dizer usuais nem sempre
serão corretos
ou adequados.[4]

A título de
ilustração do
que estamos discutindo acerca da
apresentação das diferentes
normas lingüísticas ao alunado, observe-
se o poema transcrito abaixo[5]:
Seu dotô,
só me parece
Que o Sinhô não me conhece,
Nunca sôbe
quem sou
eu
Nunca viu
minha paioça,
Minha muié,
minha roça
E os fio que Deus me deu.
 
Se não sabe, escute agora
Que eu vou contá
minha história
Tenha a bondade de uvi:
Eu sou da crasse matuta
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasi.
 
Sou aquele que conhece
As privação
que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na
vida
De cinco mês em seguida
Sem cumê
carne uma
vez.
 
Sou o que durante a
semana
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação
Prá sustentá a famia,
Só tem direito a
dois dia,
O resto é para o patrão.
 
Sou sertanejo
que cansa
De votá com esperança
Do Brasil ficá mió;
Mas o Brasil continua
Na cantiga da
perua:
Que é – pió, pió, pió...
 
Sofrendo a merma sentença
Tô quage perdendo a crença
E prá ninguém se enganá
Vou dexá meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasi,
E meu nome é Ceará.

Certamente o
poeta não alcançaria os efeitos estilísticos desejados, se tivesse optado pela norma padrão para construir tal texto,
pois é justamente o
emprego da
norma subpadrão que lhe confere o
sabor de uma
fala eminentemente
popular, orientando, assim, a
interpretação do leitor para um sentido determinado.
Por outro lado, o texto que estamos construindo ao longo destas
páginas, exige,
em virtude das
circunstâncias
que envolvem
sua produção, o emprego da
norma padrão. Dizendo de outro modo, ambos estão
corretos,
tendo em vista a finalidade
para a qual foram elaborados.

Esperamos ter deixado claro que não estamos propondo a supressão do ensino da
norma culta dos
currículos
escolares,
pois isso
revelaria a mesma forma, antes condenada, de autoritarismo e de irresponsabilidade
educativa. Sabemos perfeitamente
que a norma
padrão, além de ser o veículo em que se manifestam muitos campos do
conhecimento aos quais o aprendiz deve
ter acesso, é
necessária
para a ascensão sócio-econômica. Assumimos, apenas, a
posição de
que a língua portuguesa deve ser estudada e
apresentada
tal como ela realmente é, na sua complexa
diversidade,
resultado das
variedades diatópicas, diastráticas e diafásicas, e nos
seus múltiplos
aspectos. Cremos que o ensino de
língua nesses
termos, levando em conta todas os diferentes
sentidos
que o
instrumento
lingüístico permite manifestar, longe de
empobrecer a
língua,
conforme
expressão
já gasta, utilizada por aqueles que
tentam
desempenhar o papel de lingüistas
sem que tenham recebido fundamentação
para tanto, só pode servir para enriquecê-la,
ampliando-a com a criação de
novos signos e de
novas construções.
Ademais, o
educando
só tem a
ganhar com essa
atitude do
professor, pois poderá optar, entre as inúmeras possibilidades que lhe são apresentadas, por aquela
que, em cada caso, servir melhor a
seus propósitos
comunicativos, sendo-lhe permitido
ainda conhecer diferentes
sistemas
significativos e ampliar, desta forma, seu saber
elocucional e sua visão crítica sobre a realidade circundante.

BIBLIOGRAFIA

COSERIU, E.
Gramática, semántica, universales: estudios de
lingüística
funcional. Madrid: Gredos, 1978.

––––––. Teoria da linguagem e lingüística geral:


cinco
estudos.
Rio de
Janeiro:
Presença;
São Paulo: EDUSP, 1979.
––––––. Lições de lingüística geral.
Rio de
Janeiro: Ao
Livro
Técnico, 1980.

––––––. O homem e sua linguagem.


Rio de
Janeiro:
Presença;
São Paulo: EDUSP, 1982.

––––––. Sobre la enseñanza del idioma nacional: problemas, propuestas y perspectivas. Philologia, II. Salamanca, 1989.

––––––. Competência lingüística:


elementos de la teoría del hablar. Madrid: Gredos, 1992.

PICARDO, Luis Juan.


Gramática y enseñanza. Montevideo:
Anales del
Instituto de profesores Artigas, 1956.

UCHÔA, Carlos Eduardo


Falcão.
Fundamentos
lingüísticos e
pedagógicos
para
um
ensino abrangente e
produtivo da
língua
materna.
Confluência.
Revista do
Instituto de
Língua Portuguesa do
Liceu
Literário
Português, n.21, p. 62-75, 2000.

[1]O
saber elocucional a
que Coseriu se refere equivale, aproximadamente, ao que a
lingüística moderna tem denominado de coerência
textual.
Vale lembrar, todavia,
que o
termo começou a circular no âmbito da
literatura especializada recentemente e o texto de Coseriu
acerca do
assunto
remonta aos anos cinqüenta. É lamentável
que a
obra desse
lingüista tão importante
não tenha
ainda alcançado entre
nós a
divulgação que merece.

[2] Coseriu, E. Competência


lingüística, p. 230-252. A distinção estabelecida por Coseriu baseia-se no pensamento de Leibniz.

[3] Piccardo, Luis Juan, Gramática y


enseñanza, p. 6.

[4] Uchôa, Carlos Eduardo Falcão,


Fundamentos
lingüísticos e pedagógicos
para um
ensino abrangente e produtivo da língua
materna,
Confluência, nº 19, p. 71.

[5]
O Pasquim 21, RJ, 13/08/2000, n. 22, p.16, Seu Dotô me conhece? (versos de Patativa do Assaré)

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