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ENCARNAR FANTASMAS QUE FALAM

JEAN-PIERRE RYNGAERT
Professor na Université de la Sorbonne-Nouvelle Paris 111,
encenador e formador de ator em diferentes instituições.
Tradução Marta lsaacsson

As relações entre o ator e aquilo que se convencionou


chamar de "personagem" mudaram, em parte, no teatro
contemporâneo. Em algumas escritas contemporâneas, o
personagem encontra-se dotado de contornos tão incertos que
se aparenta a uma figura, a uma voz, a uma sombra apenas
dotada de um perfil. Conseqüentemente, o texto, avarento de
indícios, torna toda construção algo delicado. Cabe então ao
ator colocar-se diante do vazio e assumir o "personagem"
faltante e as palavras a pronunciar, pois a palavra permanece,
ou se impõe mais ainda quando o vazio da origem da emissão
verbal se instaura. Em alguns espetáculos, a cena constrói
personagens para textos reticentes, em uma ação impositiva
que testemunha o quanto a representação não sabe renunciar à .,,
presença majestosa dessas figuras. Cb
Não seria, todavia, correto atribuir tudo somente à crise 'ºCb
><
contemporânea das ambigüidades entre a pessoa e o e
o
personagem, pois esta é bem mais antiga. Robert Abirached u
mostrou muito bem o quão permanente é o estado de crise do (~
personagem nas suas variações históricas:
e
O personagem, há muito tempo considerado em desaparecimento ,
e
não parou de renascer sob nossos olhos, de tempos em tempos
a,
111 u
reajustado, mas sempre irredutível. que, no melhor dos casos, é somente
Atraído para o mundo, arriscando se
um nome emprestado. O ator, contudo,
tornar um pálido reflexo evocado pelo
imaginário até se diluir em suas
permanece sendo o portador de uma
nuvens, tanto sobrecarregado de presença, cujas formas e efeitos
qualidades quanto desmembrado, combinados com a palavra, supera-
sósia ou fantasma, manequim ou bundante ou, ao contrário, fortemente
ícone, depois dissecado em todos seus
lacunar, modificam seu status cênico
meandros, ou ainda devorado por seu
discurso, ele não abandonou as cenas
convidando-o a reinventar os estilos de
da Europa: diríamos que esse pássaro representação existentes.
fabuloso extrai de sua morte a fonte de
uma nova vida, emergindo sem O efeito personagem e suas
interrupção do fogo no qual parecia se
contradições
consumir. Tudo se passa como se os
homens tivessem necessidade, para
seu conforto, de manter a fênix teatral e O ator recebe injunções contra-
a fogueira de seu suplício 1. ditórias. Tudo na tradição lhe afirma a
Se hoje retorno a esta questão, necessidade do personagem. Tudo em
faço sob o ângulo do trabalho do ator nossos hábitos, em nossos lugares
confrontado às dramaturgias que comuns, nos conduz a pensar na
conferem atualmente um espaço consi- evidência do personagem; assim como
u, derável às palavras esparsas ou aos a crítica jornalística emprega, tanto no
cu enunciados deserdados. Quando, em cinema como no teatro, a expressão
10
><
cu casos limites, elas são igualmente freqüente de "entrar na pele do
e sensíveis aos efeitos de coro, essas personagem". A tradição cênica não
o
u escritas expulsam todo conjunto de fica longe, insistindo em atribuir ao ator
e-, personagem e desconsideram a fonte no palco a legítima propriedade do
e emissora figurada. O espetáculo da personagem e, assim, gerando engra-
e palavra termina então por se desen- çadas declarações em torno do "meu"
a, volver em detrimento do personagem (teu, seu) personagem, que adquire por

u 112
isso uma espécie de independência na personagem em qualquerficção 3.

evocação de seus feitos e gestos. Assim, ninguém nega verdadeira-


Para definir o personagem, mente a necessidade do conceito de
Abirached parte da retórica latina e de personagem que serve de forma
três palavras persona, character e importante à dramaturgia . Na maior
typus. A partir dali, ele define o parte das formas teatrais, indepen-
personagem como "aberto", mas nunca dente do estilo de representação
inteiramente identificável à realidade, adotado, o personagem é o vetor da
apesar das tentativas do teatro ação, o canal da identificação, o fiador
"burguês" em associá-lo a uma pessoa. da mimesis. Ele é uma das articulações
A este propósito, ele lembra que o capitais, entre o texto e a cena,
personagem é sempre uma "máscara", indispensável canal, ingrediente do
uma imagem, uma figura extraída, de prazer do espectador. Ele é colocado
onde guarda a marca e que "a distância em questão, quando falta a distância
ao mundo é constitutiva do persona- entre pessoa e personagem, quando o
gem teatral, ainda que ela possa variar teatro burguês finge esquecer a
segundo as estéticas, cuja evolução máscara e simula acreditar na assimi-
reflete as transformações da cultura e lação. É, por reação, que o núcleo do
da sensibilidade dos espectadores" 2 • caractere se torna o mais visado em
Foi a tradição do teatro burguês que diferentes momentos da história do .,,
Cb
mais contribuiu para a confusão, ao teatro. 10
conferir ao personagem de teatro todos Em O Nascimento da Tragédia, ~
os atributos de uma identidade social e Nietzsche critica este desejo do 5
psicológica . A isso é preciso acres- espectador de procurar "seu duplo U
centar o trabalho de recepção do leitor sobre a cena". O pirandelismo e, (;)
ou do espectador, capital no efeito de depois, o teatro dos anos cinqüenta e
simpatia, empatia ou repulsão, que muito questionaram a fé no persona- e
passa maciçamente pela relação com o gem, evidenciado em prioridade sua O,
113 U
parcela de convenção. A identidade do na sua relação com a palavra, no
personagem foi atacada quando se somatório de réplicas reunidas sob a
procurou fazê-la pré-existir tanto ao mesma sigla que a constituem. É ali
texto quanto à cena. Em sua atuação, o que o personagem se redefine e talvez
ator deve fazer luto da antiga lógica que se reconstrua, notadamente na distân-
conduz a justificar o personagem pela cia entre a voz que fala e os discursos
pessoa, ela mesma em busca de seu que ela pronuncia, na dialética, cada
duplo sobre a cena. As encenações do vez mais complexa, entre uma iden-
personagem, ao longo do último tidade que vem a faltar e as palavras de
século, reforçadas nestes últimos vinte origens diversas, no domínio de um
anos, visam sair desta tautologia. Jean- teatro que, se não é mais narrativo,
Pierre Sarrazac lembra que o persona- participa do comentário, da autobio-
gem moderno está "sem caractere" , tal grafia, da repetição, do fluxo de vozes
qual o personagem do romance de que se cruzam na encenação da
4
Robert Musil está "sem qualidade". Ele palavra.
está multiplicado, facetado. O que se As observações que seguem são
tem então no teatro se não é mais o "eu" então frutos de estudos de textos
sobre a cena, quem é este "outro" e dramáticos e de diversos trabalhos de
como se pode representá-lo? atores em formação ou na profissão;
u, Próximo ao esfacelamento, por elas giram em torno da mesma
cu sua redução a uma identidade mingua- questão, aquela do enfraquecimento
10
><
cu da ou enigmática , o personagem ainda do personagem. Mais precisamente,
e fala, às vezes até mais, nas escritas examino a questão no contexto de um
o
u atuais. E é esta "presença de um "teatro de palavra" que, sob diferentes
e-, ausente" ou esta "ausência tornada formas, desenvolve formas de enun-
e presente", equação na qual segundo ciação originais colocando problemas
e Sarrazac encontra-se o personagem de estilo.
a, moderno, que me proponho examinar O esvaziamento do personagem

u 114
conduziu a figuras nômades de difícil de no texto e no para-texto; em segun-
encarnação e desempregadas da do lugar, uma soma de palavras que se
tarefa narrativa, toda vez que o pode reunir e que são emitidas sob
enfraquecimento da fábula fez o essa identidade. Existe, muito freqüen-
personagem perder uma de suas temente, um lugar visível entre a fonte
funções capitais. das palavras e essas, um princípio de
Mas a morte anunciada do relação que pode endossar diversos
personagem é quase sempre contra- qualificativos. Peter Szondi designa
dita pelas tradições da interpretação e este lugar como "ser anterior aquilo que
5
as exigências da cena. O desejo do ele (o personagem) diz". Para ele, o
personagem perdura, apesar das personagem desenvolve-se e segue os
evoluções e das crises, das polêmicas objetivos, torna-se um vetor de ação,
em torno do jogo épico, do lugar do na medida em que sua identidade se
corpo e daquela da emoção na afirma nas palavras que ele endossa e
interpretação, da chegada do jogo que constroem uma coerência. Szondi
minimalista ou de seu contrário. Ele observa o enfraquecimento deste lugar
perdura no ator, cuja profissão é aquela entre o personagem e aquilo que por
de emprestar seu corpo a fantasmas. ele é pronunciado, remontando histo-
ricamente a Tcheckov, onde os perso-
O ator, a identidade e a palavra nagens conversariam mais do que .,,
Cb
perseguiriam um objetivo determinado.
Entre as hipóteses de trabalho do Ao longo do século XX, cada um 'ºCb
><
ator, partimos do texto que fornece em desses pólos foi questionado. Alguns 5
nome do personagem elementos estudos contemporâneos atacando-os U
geralmente coerentes: em primeiro de forma mais radical ou construindo (;)
lugar, uma fonte emissora de palavras, combinações cuja coerência não é e
inegavelmente desenhada e contras- evidente. e
tada, envolvida de indícios de identida- 1. O pólo da identidade, a cons- O,
115 U
ciência, o núcleo, o caráter (chamemos dade não é, todavia, sistêmico; alguns
isto doravante como quisermos) tendo textos contemporâneos reforçam, ao
desaparecido ou estando apenas contrário este pólo, utilizando persona-
marcado, é impossível de pensar em gens grosseiramente caracterizados. É
construir um personagem retornando a o caso, por exemplo, do austríaco
este pólo, dentro dos princípios da Werner Schwab 6 que aprecia as
"caracterização exterior'', para resgatar caricaturas. Em um outro registro,
a terminologia stanislavskiana, supon- autores se contentam de personagens
do que ela seja sempre útil. A arquetípicos designados por um
observação e a imitação dos seres elemento genérico ("a mãe"). Na
humanos não tem mais sentido, em ausência de elementos significativos,
todo caso, neste encaminhamento não é mais evidente vislumbrar a
global. Em revanche, quando este possibilidade de "caracterização inte-
desaparecimento é efetivo, ele deixa rior" para estes personagens que,
um lugar vago ao ator, a partir de então mesmo mais visíveis sobre a cena,
colocado na primeira linha, através de constituem principalmente suportes da
sua própria identidade, sem mesmo os palavra e não oferecem identidade
breves retornos que lhe oferece a caracterizada.
representação épica. Continua sempre 2. Se o pólo da identidade se re-
.,, possível construir uma identidade duz, a palavra permanece abundante,
1~ cênica ficcional, mesmo quando o texto invasiva, redundante , feita de varia-
><
a, não a propõe, mas, e retornaremos a ções, de repetições; ou, ao contrário,
e isto, se trata então de uma resistência lacônica, rara, implícita, quase anêmi-
o
U da encenação que adere à tradição, se ca. Ela pode aparecer como intermiten-
(., recusando a considerar as novas te ou como muito heterogênea. Ela
e regras de representação, ou simples- pode não mais oferecer informações ou
e mente, não conseguindo empregá-las. se tornar suspeita por ser muito rica, a
a, Este desaparecimento da identi- ponto que ninguém (ator, espectador)

U 116
saiba o que fazer dela. provir de um emissor fantasma ou
Em todo caso, ela não tem mais então, uma figura muito bem desenha-
obrigatoriamente relação com a da pode não pronunciar nada daquilo
situação. Falar é então cada vez que anunciava sua silhueta. Quando
menos "representar a situação", cada eles conversam, os personagens ou
vez menos avançar em um projeto de suas silhuetas podem dar a impressão
ação, que esta seja efetivamente ou de renunciar a toda intenção. O elo
simplesmente verbal. A palavra pode também contemplar a relação
cessou freqüentemente de ser ins- entre o emissor e sua palavra, como
trumental. Ela não sustenta mais se esse a colocasse diante dele ou
obrigatoriamente um ponto de vista. procedesse com prudência à sua
Pode-se tornar difícil saber a quem ela invenção, no momento mesmo em
se dirige. Assim, é pedido ao ator, com que a pronuncia. O personagem pode
ou sem personagem, de se localizar também ser literalmente preenchido
em um emaranhado de direções por uma multiplicidade de discursos
possíveis, todas suscetíveis de variados, erguendo diversas lingua-
modificar o sentido das réplicas. Se no gens mecanizadas. Todas essas
trabalho de ensaio, sempre foi impor- vozes falam sem dissimulação, con-
tante saber a quem se dirige, desta tradizem algumas vezes a identidade
vez a trama dos sistemas dialogados que parecia, portanto, ser fortemente .,,
Cb
torna este trabalho capital. constituída.
3. Retornemos à questão dos 4. Todas as combinações evoca-
'ºCb
><
elos entre a palavra e sua fonte. Não das anteriormente se reencontram e e
o
somente a palavra não está em contribuem a semear o desconforto u
harmonia com a situação, como ela sobre a questão do personagem. (~
não está necessariamente com sua Assim, encontram-se locutores que e
fonte emissora. Distorções são identi- emitem palavras sem razão visível ou e
ficáveis. Um texto abundante pode palavras fortes que são pronunciadas a,
117 U
por fantasmas, ou personagens muito Representar com sombras?
tipificados que só expressam minúscu-
las banalidades. Os desequilíbrios Evoco para terminar três textos
entre o emissor e a palavra contribuem que colocam de maneira diferente a
a demolir a noção de personagem, pelo questão da passagem do personagem
menos do ponto de vista da tradição da textual contemporâneo à cena e que
imitação e da coerência. obrigam a fazer escolhas radicais em
5. A importância dada ao especta- termos de identidade.
dor contribui a complicar o modelo que No texto do belga Rudi Beckaert
tentamos construir. Com o desenvol- Ah oui ça ators lá 7, um grande número
vimento do endereçamento, do verda- de personagens dotados de uma
deiro ou do falso monólogo, o espec- identidade, ou pelo menos de um
tador se torna um parceiro, a quem a nome, mas caracterizados de uma
palavra se dirige por vezes diretamente forma aproximadamente arquetípica,
(e não por triangulação), sem que ele são os agentes de longas conversas
saiba se está sob sua verdadeira que acontecem, na maior parte dos
identidade ou sob a cobertura de uma casos, inevitavelmente no hall de um
ficção à qual é obrigado a endossar. edifício comum. Uso propositadamente
Este modo de representação apresen- a palavra "conversas", porque na maior
u, ta dificuldades particulares quando o parte do tempo, essas trocas aconte-
cu ator sai do quadro e aborda o es- cem em um tempo de "férias" dos
10
><
cu pectador como parceiro das trocas, nas personagens, fora de todo conflito
e quais não se sabe mais se eles estão aparente, e oferecem poucas informa-
o
u protegidos pela ficção ou qual é aquele ções diretas. Além disso, suas palavras
e-, que permanece no quadro de uma não parecem ter ligação a uma ação ou

e ficção. a um projeto de ação. Esses persona-


e gens que falam então da chuva e do
a, tempo bom, dos animais domésticos

u 118
dos vizinhos ou dos desconhecidos consequencias são evidentes; os
que urinam nas caixas de correspon- atores, descomprometidos de todo
dência, estão na origem de uma processo de encarnação e de toda
quantidade considerável de palavras. preocupação de verossimilhança, se
Se a encenação os caracteriza muito dedicam inteiramente ao diálogo. Toda
radicalmente, ela não representa atenção dos espectadores dirige-se
absolutamente o jogo da dramaturgia então às trocas verbais e aos micro-
que coloca o essencial do lado das conflitos que eles geram, dando à peça
trocas verdadeiramente ou falsamente seu verdadeiro status, aquele de um
banais. Um excesso de "personali- inacreditável jogo verbal assumido
zação" dos personagens conduziria, na muito mais por atores munidos de
realidade, a privilegiar a anedota e os tabuletas do que por personagens,
efeitos de reconhecimento, mesmo de simples fantasmas.
superioridade, dos espectadores em O exemplo do teatro de Nathalie
relação a esses. Sarraute desperta outras contradições.
Na criação deste texto, a encena- Sabe-se que o personagem em Sarrau-
ção coletiva fez escolhas inversas e te está, mais do que qualquer outro
radicais. Os personagens são assumi- personagem de teatro, no coração de
dos em uma cena (ninguém parece ser uma ambigüidade. Nenhuma indicação
proprietário dela) indiferentemente por textual tem por objetivo precisar sua "fi- .,,
Cb
um homem ou por uma mulher, por um gura"; sabe-se que ele não tem nome, 10
ator flamengo ou valão. A informação idade e identidade social. Parece, ~
sobre a identidade é fornecida por uma entretanto, que não se pode dispensar 5
simples tabuleta em cartolina, rapida- ao personagem esses elementos e que u
mente construída, trazendo o nome do a representação inevitavelmente lhe (~
personagem. Não se poderia, de forma atribui consistência e, na maior parte e
mais simples e mais direta, resolver a dos exemplos, uma psicologia, contra e
questão da caracterização exterior. As as intenções de seu autor. a,
119 U
Avalia-se aqui a ambigüidade do tem muitas conseqüências do ponto de
anonimato e a normalidade que este vista da representação.
teatro reclama. Trata-se de um teatro A maior parte das imagens das
de idéias e não de um teatro de representações de Pour un oui ou pour
conversação desocupada ou desprovi- un non, vistas ou descritas, caminha no
do de risco, mas um teatro de afron- mesmo sentido e não desejo me
tamento onde, e isto não é o menor estender muito aqui. Digamos somen-
paradoxo, dois indivíduos para tomar, te que as poltronas club, o entorno
como exemplo, Pour un oui ou pour un despojado, mas sugerindo elegância, e
nonª sustentam réplica por réplica seu a anedota talvez de um copo de whisky,
ponto de vista sobre um acontecimento evocam sempre o mesmo lugar e a
do passado. Todo excesso de indivi- mesma atmosfera. Mesmo as distri-
dualização e de investimento do buições parecem intercambiáveis, ins-
personagem faz a peça cair no drama, talando definitivamente a imagem de
por vezes burlesco certo, mas no intelectuais burgueses um pouco
drama mundano e psicológico. Todo desocupados e sedutores, através dos
déficit de encarnação torna a peça atores que demonstram ar de serem de
desinteressante e vã ou bem a trans- boa família e da mesma família. Pode-
forma em "recitação com figurino", em se imaginar uma forma na qual o drama
u, uma espécie de transposição radiofô- da palavra possa se desenvolver sem
cu nica pública. ser obscurecido por imagens anedóti-
10
><
cu Os dois pólos dominantes desta cas? Os personagens são eles fata-
5 escrita (o personagem, a palavra) são lmente de boa família, eles são inevita-
u então colocados em questão a velmente polidos, então quais relações
e-, propósito de suas respectivas medi- mantêm com os enigmas dos persona-
e das, de seu equilíbrio, das oscilações gens no texto, estes H 1, H2 ou outros F
C entre eles. A natureza dos elos que que são os emissores?
(IJ unem o personagem a seu discurso Nestas representações dos tex-

U 120
tos de Sarraute, tudo se organiza de senso, pede uma energia de um tipo
forma como se uma "doxa" dos diferente. Esta energia, ela também
personagens "à moda antiga" ganhas- inesperada e intermitente, não be-
se sobre outras ambições. neficia do resíduo da energia da
A obra de Michel Vinaver 9 fornece enunciação precedente, pois esta pode
um terceiro exemplo, desta vez a estar muito afastada no tempo. O ritmo
propósito da dificuldade particular descontínuo do discurso, a ausência de
colocada pelos diálogos cruzados e cooperação dos destinatários, a
representação de fragmentos. A maior mudança radical e repetida do sujeito
parte do tempo, o ator vinaveriano da réplica (e então do "humor'' ou do
dispõe de uma fábula e de um "estado" que o acompanha) fazem de
personagem bem identificado. Contu- cada réplica uma espécie de momento
do, seu papel se distribui em réplicas de atuação sem relação evidente com
isoladas, muito breves ou interruptas, os outros momentos de representação.
correspondendo a um efeito de A tensão se desenvolve, mas entre
"puzzle"; a continuidade das réplicas dentes. A curva de energia sofre
obedece a uma lógica diferente variações tão grandes que ela não se
daquela engendrada pela rítmica aplica a um discurso seguido, a uma
ordinária fundada sobre alternâncias palavra organizada (do ponto de vista
lógicas (o famoso 'eu te falo / tu me do locutor), a um fluxo verbal regular. .,,
Cb
responde") ou sobre encadeamentos Para algumas réplicas, a incandes- 10
de questões / respostas. A ilhota da cência deve ser imediata e máxima, ~
palavra breve e inesperada que não se corresponder a um humor convocado a e
o
religa de maneira evidente à ilhota cada segundo. A progressão dita u
precedente não permite ao ator se "psicológica", reconhecida como ne- (;)
apoiar sobre ela. A breve emissão da cessária à preparação do sentimento e
palavra, isolada de seu contexto interior em alguns estilos de atuação, e
"lógico", aquele do sentido, aquele do não encontra lugar aqui. As sensações O,
121 U
de começo e de progressão são trações, as preocupações, as obses-
desconhecidas do ator encarregado de sões dos personagens. O diálogo não
réplicas fragmentares. Da mesma cessa de deslocar, de sofrer rupturas
maneira, uma espécie de estado de interesse, de levar em conta essa ou
poderia servir a várias réplicas se a aquela deriva passageira, obedecendo
mesma tensão corresse sob o texto, se aos famosos efeitos de tecelagem dos
as réplicas batessem umas sobre as quaisl fala Vinaver.
outras, fornecendo ao ator uma energia Todo o percurso do ator se
global pela contaminação. No caso do constrói então sobre intervenções
diálogo descontínuo, cada réplica é em intermitentes.
si mesma um começo, pois beneficia Para uma parte do repertório
raramente da réplica do parceiro como contemporâneo1,ºesta presença mo-
apoio. mentânea do personagem, essas
Apenas o ator tomou a palavra, figuras pálidas ou muito conhecidas,
não cabe mais a ele falar; ele deve estes esquemas contraditórios deman-
estar atento a sair do jogo com a dam uma atuação do mesmo tipo,
mesma prontidão que ali entrou. fundada sobre a brevidade, o engaja-
Nestes momentos dialogados, a mento total por alguns segundos, uma
ausência de escuta faz parte das renúncia equivalente pela mesma
.,, regras implícitas da conversação. As duração. O texto em fragmentos recla-
cu réplicas não são encadeadas umas nas ma uma atuação descontínua, em face-
10
><
cu outras, segundo uma lógica de interes- tas. A repetição-variação pode passar
5 se recíproco experimentada pelos por uma presença ausente.
U personagens de maneira contínua; Fala-se de ator "atravessado"
(., elas se desenvolvem com uma liberda- pela palavra nas encenações de Clau-
C de de enunciação que corresponde aos de Regy, imagina-se ele portador de
e efeitos de montagem, onde entram as uma energia alternada, muito presente
(IJ derrotas, os esquecimentos, as dis- e freqüentemente fantasmagórica, en-

U 122
gajada em seu discurso ou como sob cias e de desejos que desaparecem,
uma sombra. sempre aqui, mais completamente
Muita carne e muitos contornos aqui.11
duros dariam nascimento a um "perso-
nagem a mais". Vê-se o ator, em Sta- (Primeira publicação in Études
nislas Nordey, engajado em uma Théâtrales, nº26, Louvain-la-Neuve,
2003.)
espécie de endereçamento constante,
por uma atuação frontal onde o texto é
permanentemente aberto diante do
público.
Estas formas, sobretudo, quando
são imitadas, não estão isentas de
certo maneirismo. Elas colocam, toda-
via, uma questão essencial. "Quem fala
aqui?". Tudo acontece como se a
palavra, uma vez liberada das neces-
sidades da encarnação e assim inde-
pendente, passasse por uma voz que
não é nem diretamente aquela do autor,
nem forçosamente aquela do narrador, .,,
Cb
o eu épico, agente de um projeto
afirmado, nem mesmo aquela do ator. 'ºCb
><
Os personagens, entre os dois, re- e
o
dizem talvez nossas identidades vaci- u
lantes e nossos engajamentos ponti- (~
lhados; eles não desapareceram da e
cena como se teria podido esperar, eles e
a assombram através de reminiscên- a,
123 U
NOTAS: Jouer /e texte en éc/ats, em Michel Vinaver,
Paris: Centre de Documentation Pédagogique,
1 ABIRACHED, Robert. La Crise du personnage Coll. ThéâtreAujourd'hui, 2000.
dans /e théâtre modeme. Paris: Grasset, 1978. 10 Seria preciso multiplicar os exemplos de
p.439.
textos que trazem a questão do personagem.
2 lbid. p. 21. Minyana (Éd. Théâtrales, 2001 ), onde o
sistema de repetição/variações e de coro dão
3 Sobre todas estas questões, indica-se a obra ao personagem um lugar particular; Madame
de JOUVE, Vincent. L'Effet-Personnage dans Ka de Noêle Renaude (Ed. Théâtrales, 1999); a
/e roman. Paris: Coll. Puf Écriture, 1992. A maior parte dos textos de Jean-Luc Lagarce
questão do teatro é evidentemente diferente, (Les Solitaires lntempestives), onde os
mas a abordagem teórica de V. Jouve personagens parecem corrigir continuamente
permanece útil. aquilo que eles dizem, desdobrando
praticamente sua palavra diante deles e diante
4SARRAZAC, Jean-Pierre. L'impersonnage. de nós.
Études Théâtrales: Jouer le monde, La scêne
et le travail de l'acteur, Louvain-la-Neuve, n. 20, 11 Poderíamos também remeter a meu artigo
p.125-128, 2001. " Personnage (crise du)" em Études
Théâtrales: Poétique du drama moderne et
5 SZONDI, Peter. Théorie du drame modeme. contemporain, Lexique d'une recherche.
Lausanne : L'Âge d'Homme, 1983, p. 74 e Louvain-la-Neuve, n. 22, 2001.
75.Sobre essa questão da relação entre o
personagem e a palavra, pode ser também
consultado meu artigo "Platonov de Tchecov:
parler pour s'empêcher d'écouter" Études
Théâtrales: Mise en crise de la forme drama-
tique 1880-1910, Louvain-la-Neuve, n. 15-16,
1999.

6 Por exemplo, em Les Présidents de Werner


Schwab, onde os personagens são descritos
u, com precisão como figuras burlescas não
cu necessariamente em relação a seus discursos.
10
><
cu
7
Eu me refiro ao espetáculo dos grupos
Dito'Dito e Transquinquennal (Bruxelas), criado
e em 1997. Turnê em Paris, Théâtre de la Cité
o
u lnternationnale, 1999.
8
(., Publicado em Paris: Gallimard, 1982.

e 9
Faço aqui alusão à obra global de Vinaver.

e Seria necessário entrar no detalhe de textos.


Para o estilo de atuação, eu retomaria uma
a, parte das reflexões publicadas sob o título

U 124

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