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NITERÓI/RJ
2023
Iracema: Uma Transa Amazônica (1974, Jorge Bodanzky e Orlando Senna) começa
com uma tarja, um “aviso” textual que evoca a censura pela qual o Brasil passou no período da
Ditadura Militar, sobretudo após o AI-5, mas o principal é explicitar o que o filme busca fazer,
que é um retrato da construção da Transamazônica e todo o seu entorno. Após essa cartela e os
créditos iniciais, surge a primeira sequência, que constrói a espacialização e o contraste que a
obra busca apresentar. Numa canoa, Iracema parte de sua terra natal para um ambiente mais
urbano, iniciando, assim, o que chamarei, na presente análise, de sua despersonalização.
Antes de prosseguir, é preciso tratar, ainda que de modo superficial, da relação que o
filme estabelece com o romance Iracema, de José de Alencar. Tal romance, de 1865, traça, por
meio de uma história de amor entre Iracema, uma mulher indígena, e Martim, um homem
branco, um guerreiro, o processo de perda de inocência de Iracema no meio de um contexto de
violências praticadas durante o período colonial com a invasão das terras indígenas por homens
brancos. Dentro do período romântico da literatura brasileira, a trama se desdobra de forma a
ter, em seu final, a morte da protagonista, estabelecendo, de fato, a tragédia romântica. O filme
de Bodansky e Senna se estrutura em tal história clássica para retratar todo o processo
envolvendo a construção da Transamazônica, transportando o enredo para o tempo atual, com
as devidas proporções, mas explorando, em principal, a repercussão da relação de Iracema,
interpretada por Edna de Cássia, e Tião Brasil Grande, interpretado por Paulo César Pereio,
naquele meio, além de, obviamente, relacionar essas personagens ao espaço, que é, de certa
forma, outro protagonista do filme.
Com esse intuito, a direção usa de metáforas e artifícios no próprio texto para construir
seu discurso formal, sobretudo por conta da censura vigente no país. O principal caso, talvez,
seja o nome do personagem de Pereio, que faz alusão ao discurso militar nacionalista de um
Brasil Grande que estava para renascer e viver seu apogeu, bem como à hipocrisia dos militares.
Além disso, a personagem é a personificação do ideal militarista durante a ditadura, até de modo
pouco sutil, reproduzindo os seus discursos de forma literal em meio a não atores e pessoas
“reais” dentro da diegese do filme. Esse ponto nos leva a pensar a forma do filme quanto ao
diálogo que estabelece entre ficção e documentário. Por meio de um jogo entre os atores do
filme, em principal, Pereio, a direção evoca um exercício do Teatro do Oprimido, que é o
exercício de representar uma situação no meio social e perceber que reações ela provoca nas
pessoas. Como esse jogo se estabelece dentro da linguagem audiovisual, a direção faz o ótimo
uso do contraste entre atores e não atores, entre a naturalidade do espaço e o proposto. Partindo
do que Maya Deren chama de “acidente controlado”, em seu texto “O Uso Criativo da
Realidade”, podemos pontuar que, aqui, não interessa tanto controlar a realidade para produzir
o discurso: pretende-se que a realidade, ela mesma, produza o discurso. Ismail Xavier pontua,
em uma análise sobre o filme, a ideia de “efeito de real”, borrando as barreiras entre
documentário e ficção, de modo a estabelecer um espaço diegético muitas vezes confuso. A
personagem Tião Brasil Grande se relaciona com algumas pessoas, às vezes, como estivesse
em um documentário, faz-lhe perguntas, elas respondem, ele argumenta, ainda na personagem,
as pessoas olham para a câmera, estranham, etc., mas isso está dentro da narrativa — e é assim
que essas fronteiras são borradas. Ainda numa perspectiva de Maya Deren sobre a imagem, é
possível pontuar que, mesmo com essa estrutura, a imagem capturada ainda é equivalente à
realidade, que é enquadrada e montada pelo ponto de vista de alguém. Por isso é importante
considerar, também, o que Ismail discute a respeito da sensação de real — ainda que siga para
outro caminho, diferente da presente análise. Ou seja, há, ainda, um discurso de quem produz
o filme, de quem pensa ele e sua forma, a representação, etc., que reflete as relações de poder
dentro de uma obra audiovisual. E isso leva a outro ponto dessa curta análise, que é o processo
de despersonalização da personagem Iracema e de sua intérprete.