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ANÁLISE DO FILME “IRACEMA: UMA TRANSA AMAZÔNICA”

Professor: Roberto Robalinho


Aluno: Alexandre Berçott da Costa Sodré

NITERÓI/RJ
2023
Iracema: Uma Transa Amazônica (1974, Jorge Bodanzky e Orlando Senna) começa
com uma tarja, um “aviso” textual que evoca a censura pela qual o Brasil passou no período da
Ditadura Militar, sobretudo após o AI-5, mas o principal é explicitar o que o filme busca fazer,
que é um retrato da construção da Transamazônica e todo o seu entorno. Após essa cartela e os
créditos iniciais, surge a primeira sequência, que constrói a espacialização e o contraste que a
obra busca apresentar. Numa canoa, Iracema parte de sua terra natal para um ambiente mais
urbano, iniciando, assim, o que chamarei, na presente análise, de sua despersonalização.

Antes de prosseguir, é preciso tratar, ainda que de modo superficial, da relação que o
filme estabelece com o romance Iracema, de José de Alencar. Tal romance, de 1865, traça, por
meio de uma história de amor entre Iracema, uma mulher indígena, e Martim, um homem
branco, um guerreiro, o processo de perda de inocência de Iracema no meio de um contexto de
violências praticadas durante o período colonial com a invasão das terras indígenas por homens
brancos. Dentro do período romântico da literatura brasileira, a trama se desdobra de forma a
ter, em seu final, a morte da protagonista, estabelecendo, de fato, a tragédia romântica. O filme
de Bodansky e Senna se estrutura em tal história clássica para retratar todo o processo
envolvendo a construção da Transamazônica, transportando o enredo para o tempo atual, com
as devidas proporções, mas explorando, em principal, a repercussão da relação de Iracema,
interpretada por Edna de Cássia, e Tião Brasil Grande, interpretado por Paulo César Pereio,
naquele meio, além de, obviamente, relacionar essas personagens ao espaço, que é, de certa
forma, outro protagonista do filme.

Com esse intuito, a direção usa de metáforas e artifícios no próprio texto para construir
seu discurso formal, sobretudo por conta da censura vigente no país. O principal caso, talvez,
seja o nome do personagem de Pereio, que faz alusão ao discurso militar nacionalista de um
Brasil Grande que estava para renascer e viver seu apogeu, bem como à hipocrisia dos militares.
Além disso, a personagem é a personificação do ideal militarista durante a ditadura, até de modo
pouco sutil, reproduzindo os seus discursos de forma literal em meio a não atores e pessoas
“reais” dentro da diegese do filme. Esse ponto nos leva a pensar a forma do filme quanto ao
diálogo que estabelece entre ficção e documentário. Por meio de um jogo entre os atores do
filme, em principal, Pereio, a direção evoca um exercício do Teatro do Oprimido, que é o
exercício de representar uma situação no meio social e perceber que reações ela provoca nas
pessoas. Como esse jogo se estabelece dentro da linguagem audiovisual, a direção faz o ótimo
uso do contraste entre atores e não atores, entre a naturalidade do espaço e o proposto. Partindo
do que Maya Deren chama de “acidente controlado”, em seu texto “O Uso Criativo da
Realidade”, podemos pontuar que, aqui, não interessa tanto controlar a realidade para produzir
o discurso: pretende-se que a realidade, ela mesma, produza o discurso. Ismail Xavier pontua,
em uma análise sobre o filme, a ideia de “efeito de real”, borrando as barreiras entre
documentário e ficção, de modo a estabelecer um espaço diegético muitas vezes confuso. A
personagem Tião Brasil Grande se relaciona com algumas pessoas, às vezes, como estivesse
em um documentário, faz-lhe perguntas, elas respondem, ele argumenta, ainda na personagem,
as pessoas olham para a câmera, estranham, etc., mas isso está dentro da narrativa — e é assim
que essas fronteiras são borradas. Ainda numa perspectiva de Maya Deren sobre a imagem, é
possível pontuar que, mesmo com essa estrutura, a imagem capturada ainda é equivalente à
realidade, que é enquadrada e montada pelo ponto de vista de alguém. Por isso é importante
considerar, também, o que Ismail discute a respeito da sensação de real — ainda que siga para
outro caminho, diferente da presente análise. Ou seja, há, ainda, um discurso de quem produz
o filme, de quem pensa ele e sua forma, a representação, etc., que reflete as relações de poder
dentro de uma obra audiovisual. E isso leva a outro ponto dessa curta análise, que é o processo
de despersonalização da personagem Iracema e de sua intérprete.

Como pontuado no início, o filme começa a apresentar a personagem num percurso de


mudança: ela passa a existir num espaço urbano e afetado pela construção da transamazônica.
A partir disso, poderíamos analisar esse percurso, literal e simbólico, da protagonista pelo viés
da clássica trama de degradação de uma pessoa, muito comum no cinema de uma forma geral.
Entretanto, um filme não existe apartado do meio sociopolítico e cabe, pois, analisa-lo mediante
a tal fator.

A questão da obra, como já comentado, é a Transamazônica — e, por isso, toda a


construção da linguagem, que, além de “embolar” documentário e ficção, envolve o espaço
físico para demonstrar essa ruptura, essa quebra e as violências de todo o processo de construção
da rodovia dentro do contexto político do país —, de forma que o discurso engole as
personagens, sobretudo Iracema. No documentário, é bastante comum essa exaltação do
discurso, que usa as personagens para se embasar e provar um ponto, como acontece em
Viramundo (1965, Geraldo Sarno), que gera uma discussão dentro do próprio meio a respeito
dessa questão. No caso de Iracema: Uma Transa Amazônica, é, ainda, um pouco diferente —
não só pelo fato de não se tratar, propriamente, de um documentário. A direção escolhe uma
não atriz para representar a protagonista, com o intuito evidente de buscar maior veracidade
para a obra. Posto isso, a personagem, de quinze anos, assim como a atriz, passa a se prostituir
para sobreviver, o que é extremamente palpável à realidade do local. Entretanto, não há cuidado
algum dos diretores, tanto com a personagem, quanto com a pessoa que a interpresta.

Primeiro, quanto à personagem, ela é construída de modo a representar um grupo, o que


faz com que perca sua condição plena de sujeito, sem individualidade e subjetividade
consideradas, para embasar um discurso, para existir mediante ao olhar do outro e não ao
próprio olhar. Ou seja, é a partir disso que se estrutura o processo de despersonalização pelo
qual a personagem passa. Há a negação de sua existência enquanto indivíduo inteiro. Além
disso, observa-se o que se assemelha a um julgamento moral do filme para com Iracema,
sobretudo quando se considera o final da personagem, que insiste para ir junto a Tião, mas é
deixada à sua própria sorte. Ela é quase que punida, como uma lição de moral, por conta do
caminho que seguiu. Obviamente, a sua degradação e estado final são completamente possíveis
e reais, mas não se trata da realidade: um filme não é a realidade. Há escolhas tomadas,
percursos escolhidos, etc. O que se percebe, pois, é um descuido no tratamento da personagem,
que vive à sombra de Tião, totalmente dependente dele, e é sacrificada para embasar o discurso
que a direção quer passar.

Ainda, é importante discorrer a respeito de Edna de Cássia. Assim como em relação à


Iracema, a não atriz que a interpreta também é completamente descuidada por parte da direção.
Nesse ponto, encontra-se uma das principais problemáticas do filme, pois a direção violenta a
própria atriz em prol do seu objetivo. Além da relação problemática entre Tião e Iracema, uma
adolescente de quinze anos, assim como a atriz, o filme explora o corpo da personagem de
maneira desrespeitosa e fetichista, filmando, inclusive, sem qualquer preparo, uma cena de sexo
entre o “casal”. A câmera não se preocupa em considerar a existência de Edna, anulando-a e
exaltando seu corpo e o que ele representa socialmente. Tanto que, segundo a própria intérprete
de Iracema, o foi uma experiência traumática — ela relata, inclusive, que chorou durante uma
cena, choro esse que fora capturado pela câmera e inserido dentro da diegese do filme.

Em suma, Iracema: Uma Transa Amazônica é um filme relevante na História do cinema


brasileiro. Ele se utiliza bem dos recursos audiovisuais para construir um discurso pertinente
acerca da construção da Transamazônica, além de se aproveitar de ser uma espécie de road
movie para evocar os impactos de tal obra no espaço. Entretanto, é preciso considera-lo
mediante ao mundo e perceber que repercussões e discussões éticas surgem para debate. Ainda
que seja um filme necessário, ele sacrifica a existência das personagens, sobretudo a de Iracema,
bem como de sua intérprete, para produzir um discurso e é importante compreender tais fatores
ao analisá-lo.

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