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A CONCEPÇÃO DE MUSEUS EM ESPAÇOS DIGITAIS:

SOBRE AS POSSIBILIDADES DE MUSEALIZAÇÃO ONLINE

Rita de Cassia Maia da Silva*


* Universidade Federal da Bahia

Resumo: Nosso trabalho apresenta algumas reflexões sobre o campo e as modificações da museologia
contemporânea no contexto da criação de um museu digital para a Associação Cultural Bloco
Carnavalesco Ilê Aiyê. Investigamos as possibilidades oferecidas pelas tecnologias da informação e
comunicação (TIC) para a democratização dos processos museológicos através de alguns caminhos
metodológicos encontrados para pensarmos a concepção deste museu digital, considerando como
ponto de partida a definição da instituição museu como um sistema e o nosso fazer no trato com o
objeto de estudo da museologia, salientando a importância de levarmos em consideração estes
aspectos no planejamento de museus digitais. Por fim, elencamos alguns princípios que congregam a
aplicação das TIC aos processos de musealização, preocupações relativas ao desenvolvimento de
ferramentas, buscando soluções e orientações para as ações de documentação, conservação, exposição
digital e educação museal aplicadas aos processos de digitalização. Concluímos, identificando
questões que implicam no andamento deste trabalho e nas formas como as TIC são utilizadas em
museus como um reflexo das relações de poder na sociedade e apontamos a necessidade do
desenvolvimento de práticas neste campo que sejam efetivamente alimentadas pelas reflexões teóricas
da Museologia.
Palavras-chave: Cibermuseu, carnaval, museu comunitário, musealização
Abstract: Our work presents some reflections on the field and the modifications of the contemporary
museology in the context of the creation of a digital museum for the Cultural Association Block
Carnavalesco Ilê Aiyê. We investigate the possibilities offered by information and communication
technologies (ICT) for the democratization of the museological processes through some
methodological paths found to think about the design of this digital museum, considering as a starting
point the definition of the museum institution as a system and our doing in dealing with the object of
study of museology, stressing the importance of taking these aspects into account in the planning of
digital museums. Finally, we highlight some principles that bring together the application of ICT to the
processes of musealization, concerns regarding the development of tools, searching for solutions and
guidelines for the actions of documentation, conservation, digital exhibition and museum education
applied to the digitization processes. We conclude by identifying issues that imply the progress of this
work and the ways in which ICT is used in museums as a reflection of power relations in society, and
we point out the need for the development of practices in this field that are effectively nurtured by
Museology 's theoretical reflections.

Key-words: cibermuseum; carnival; communitary museum; muzealization.


As TIC para musealização: um mesmo objeto em novos suportes
As investigações da Museologia no âmbito da criação de museus digitais está se consolidando
como um campo em franco florescimento de saberes. Os avanços das Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC) e da cultura digital oferecem inúmeros recursos e impõem um desafio que
impulsiona instituições e comunidades de diversos tipos a projetarem suas ações através de
dispositivos e ferramentas digitais como forma de ocupação do ciberespaço.

No âmbito dos museus, pode-se facilmente observar os vários tipos de ações que utilizam
estas tecnologias: São páginas web de museus, mobiliário expositivos integrados com tecnologia
digital e inteligência artificial, realidade aumentada, bancos de dados via internet, visitas virtuais 3D.
No campo mais específico do nosso trabalho temos: exposições online, cibermuseus, museus digitais,
museus virtuais, museus on-line, etc. Por conta da explosão e pouca definição de nomenclaturas
optamos pela simplicidade e amplitude da denominação museu digital, reconhecendo que o aspecto
central do nosso trabalho serão os processos de digitalização e comunicação online para a criação de
um espaço interativo de museu que serão acessíveis online. Para isso, assumimos o desafio de
investigar e explorar as ferramentas digitais para os processos de aquisição-recuperação, exposição,
documentação, conservação da memória da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, sediada
na cidade de Salvador, no bairro da Liberdade, na ladeira do Curuzú.

Nesta investigação somos estimulados pelas premissas de que o objeto de estudo da


museologia, assim como qualquer outro objeto de ciência se manifesta de forma perene e
também mutável, de acordo com o contexto de representação e o seu caráter imanente (de
coisa em si). A realidade (ou verdade) que é objeto da investigação científica, não muda em
sua natureza, mas apenas o seu contexto e a forma em que se dá aos sentidos, enquanto uma
representação que é veiculada através dos mais diversos tipos de materialidade.

Incrivelmente, tanto as formas de pensar museu quanto o pensamento comum sobre o


fazer científico, permanecem ainda atrelados a mentalidade de uma modernidade nascente, de
significados e conceitos controlados e que incorrem no erro de pensar objetos de
conhecimento que devem ser encaixados, forçosamente, em métodos pré-constituídos em
narrativas bem delineadas, ou melhor, redutoras das possibilidades de manifestação e
existência como também das camadas interpretativas de realidade.

Acreditamos que os avanços das TIC contribuíram para que os museus e a própria
Museologia se desprendessem da materialidade e focalizassem suas ações nos processos de
representação. Desde a década de 60, no século XX, ocorre uma insurreição contra as formas
simbólicas hegemônicas socialmente, neste bojo inclui-se a crise de identidade dos museus
tradicionais. Este desenvolvimento das sensibilidades pode também ser visto como um
resultado da emersão do pensamento e atitudes jovens da primeira geração pós - 2ª. Grande
Guerra, incitando a percepção e respeito pelas diferenças culturais, fragilizando as fronteiras
de poder, fatores que foram gradualmente acelerados pelos impactos dos avanços
tecnológicos dos meios de comunicação de massa. As principais consequências destes
avanços seriam a quebra definitiva da hegemonia do Estado, da família, da escola e de seus
aparatos culturais de reprodução cultural.

Passamos de uma época em que o mundo conhecido presencialmente restringia-se ao


contato imediato com os nossos pares, onde as informações de outros espaços e territórios
chegavam com uma certa defasagem de tempo, para um momento onde ocorre um
deslocamento daquilo que concebemos como “a nossa realidade” ou a nossa presença no
mundo iniciado de modo sutil com as emissões de rádio e telefone, ao impacto das primeiras
transmissões ao vivo via satélite e definitivamente rompida com a autonomia de comunicação
decorrente dos avanços da cultura digital. Esta nova forma de realidade presencial amplia-se
como uma onda que impacta definitivamente a forma de pensar e fazer as coisas no mundo e
configurou-se em uma força criativa na atualização de sentido para todas as instituições.

A fala social não é mais percebida como substância independente da instância


autorizada de origem, ou como uma verdade evidente, ela é multifacetada nos discursos
compostos através de diversas mídias, como uma realidade que abarca diversos
desdobramentos.
No entanto, é fato que o acesso a estas tecnologias também implica em questões sobre
as condições de possibilidade, controle e habilidade de acesso que agravam as situações de
precariedade que algumas populações ainda enfrentam e amplificam as desigualdades
advindas da falta de infraestrutura urbana, saneamento e educação tornando mais extremas as
situações de exclusão. A velocidade com que pessoas, grupos e sociedades ampliam o acesso
aos meios digitais ou adquirem a habilidade para dominar estas tecnologias redefine os
lugares na estrutura de poder e autoridade na produção de conhecimento, envolvendo questões
determinam o nosso destino e o destino das sociedades.

Diante deste contexto, a estratégia utilizada para a concepção deste museu digital toma
como principal referencial teórico as ideias difundidas no bojo do Nova Museologia1 pela sua
preocupação com o potencial de transformação social dos museus. Com a difusão das ideias
empreendidas através da Carta da Mesa Redonda de Santiago do Chile - ICOM (1972), pela
articulação e criação do MINOM - ICOM2 - foram afirmadas política e epistemologicamente
as diretrizes de um fazer científico frente a atores, grupos e instâncias mais conservadores da
Museologia à época, - articulando a produção de diversos autores com experiências
inovadoras no campo da museologia.

As consequências destas mudanças acarretaram o aperfeiçoamento de parâmetros


científicos para perceber os processos de musealização enquanto atividades de intervenção na
sociedade, readequando e atualizando as atividades específicas da cadeia operatória do museu
como aquisição, documentação conservação, exposição, pesquisa e educação à realidade
contemporânea.

O trato com as sensibilidades, com as formas de perceber e categorizar as coisas do


mundo é uma tarefa implícita nos processos de musealização. As formas de preservação e

1
Optamos por não estabelecer uma arqueologia do conhecimento museológico em relação aos termos ou
tendências da museologia. A saber: museologia social, nova museologia, sociomuseologia, museologia
contemporâneas, museologia pós-moderna, visto que implicaria em discussões complexas que não cabem
neste texto. Tomamos, de uma forma genérica estes termos como determinando uma mesma tendência.
2
Movimento Internacional pela Nova Museologia.
construção de referenciais de memória e demarcação de territórios metamorfoseiam-se
continuamente em busca de eficácia comunicativa. Alinhadas com este desdobramento as
formas de museu assumem diversos estilos. As redes sociais, as mídias locativas e as novas
sociabilidades permeadas pelas TIC oferecem novos desafios para pensarmos a intervenção
social destas instituições.

Para pensar um museu digital: um olhar metodológico


O primeiro elemento a ser considerado para criação do Museu digital do Ilê Aiyê foi o
estabelecimento de um processo para a criação do seu plano museológico que, segundo o
estatuto de museus é:

[...] indispensável para a identificação da vocação da instituição


museológica para a definição, o ordenamento e a priorização dos
objetivos e das ações de cada uma de suas áreas de funcionamento,
[...] definirá sua missão básica e sua função específica na sociedade e
poderá contemplar os seguintes itens, dentre outros: I – o diagnóstico
participativo da instituição, podendo ser realizado com o concurso de
colaboradores externos. (ESTATUTO DOS MUSEUS, 2009).

Partindo desta premissa consideramos o aspecto que a compreensão da mentalidade e


aspirações dos públicos interno e externo do museu torna-se um elemento essencial. Em se
tratando do delineamento de um público para museu digitais e considerando a superação da
ideia de público como um conjunto de receptores passivos e contemplativos, tendo em vista
quer emerge a figura do público enquanto prosumer, o usuário-protagonista. Para isso
consideramos uma arquitetura informacional que concentrasse seus esforços na produção de
módulos digitais (espaços) “interativos” como “setores do museu” seguindo uma forma de
design: “Que permitiria que os consumidores participassem do processo de produção e design
para alinhar os produtos às suas necessidades em um mercado extremamente
saturado...”3(FOIS, 2015, p. 291) o que seria característica prevista como uma decorrência dos
avanços das TIC por

A concepção de espaços museológicos conflui cada vez mais para uma demanda que
não se alinha com ditames exclusivamente formalistas, tecnicistas e de imbuídos de
esteticismo autoritário ou movidos por uma lógica instrumental e controladora. Emerge a
supremacia do recurso às de políticas públicas e ferramentas de planejamento organizacional
amalgamadas com estratégias de design emocional e marketing afetivo, associando a função
material do objeto aos seus significados imateriais, nutrindo um saber cultural de
convergência que associa tecnologia, consumo e humanização.

Esta cultura de convergência ressalta a importância do aspecto colaborativo no


planejamento dos museus e no processo de constituição das categorias de representação nele
utilizadas. É fato que

Nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e
podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas
habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte
alternativa de poder midiático. Estamos aprendendo a usar esse poder em
nossas interações diárias dentro da cultura da convergência. Neste momento,
estamos usando esse poder coletivo principalmente para fins recreativos,
mas em breve estaremos aplicando essas habilidades a propósitos mais
“sérios” (JENKINS, 2015)
Na busca de um método qualitativo que ofereça recursos para a definição de
categorias, conceitos e teorias de caráter substantivo, ou seja, “representativa da realidade dos
sujeitos e situações estudadas” (MARTINS; THEOPHILO, 2009, p. 76) a Grounded Theory
(GT), oferece a base para que seja assumido um papel interpretativo do museólogo diante dos
atores e outros elementos implicados no fenômeno estudado. Sendo “uma perspectiva teórica
que possibilita a compreensão do modo como os indivíduos interpretam os objetos e as outras
pessoas com as quais interagem e como tal processo de interpretação conduz o
comportamento individual em situações específicas” (CARVALHO; BORGES; REGO, 2010,

3“that would allow the consumers to participate in the production and design process in order to fine-tune
products to their needs in an extremely saturated marketplace...”
p. 148). Assim, o nosso trabalho parte desde observação e a interpretação das relações entre
os envolvidos, à aplicação de métodos quantitativos característicos das pesquisas de público
aplicados presencialmente quanto através de meio digital.

Os resultados obtidos estão sendo organizados em sintonia com pensamento que


Mario Chagas denominada como “imaginação museal”, colocando o museólogo como
elemento criador de uma narrativa organizadora, ou melhor, uma poética que projeta laços de
afetividade e sensibilidade entre os diversos públicos e o seu patrimônio.

A imaginação museal configura-se como a capacidade singular e efetiva de


determinados sujeitos articularem no espaço [...] a narrativa poética das
coisas. Essa capacidade imaginativa não implica a eliminação da dimensão
política dos museus, mas, ao contrário, pode servir para iluminá-la. Essa
capacidade imaginativa, - é importante frisar – também não é privilégio de
alguns, mas, para acionar o dispositivo que a põe em movimento, é
necessária uma aliança com as musas, é preciso ter interesse na mediação
entre mundos e tempos diferentes, [...] esta imaginação não é prerrogativa
sequer de um grupo profissional, como o dos museólogos, ainda que sejam
treinados para o seu desenvolvimento. (CHAGAS, 2009, p. 58)
Ao estabelecer estas categorias de pensamento para o processo de musealização, este
autor direciona olhar do cientista para algumas preocupações que são centrais na concepção
de espaços museológicos, a saber: a dimensão do tempo, história ou memória, a dimensão do
poder, a dimensão da riqueza, a dimensão da estética, a dimensão do saber ou conhecimento,
e a dimensão lúdico educativa (CHAGAS, 2009) para que estas instituições ganhem uma
forma que se alinhe com o mundo das trocas e das experiências humanas.

Acreditamos que esta forma de pensar, fundamenta-se na poética como método de


conhecimento atrelado aos processos criativos. A imaginação museal advinda de informações
obtidas em uma dada realidade, coloca em foco o objeto de estudo da Museologia, traduzido
como:

[...] uma abordagem específica do homem frente à realidade cuja expressão é


o fato de que ele seleciona alguns objetos originais da realidade, insere-o
numa nova realidade para que sejam preservados, a despeito do caráter
mutável inerente a todo objeto e da sua inevitável decadência, e faz uso deles
de uma nova maneira, de acordo com suas próprias necessidades
(STRANSKY apud MENSCH, 1994, p.12).
Da observação deste fenômeno das possibilidades geradas pelo impulso humano de
preservar, exploramos as permeabilidades de saberes e fazeres entre a museologia e o seu
público. Neste campo de atuação integram-se elementos humanos e não-humanos
(tecnológicos), principalmente no que se refere aos processos de adaptação homem-meio,
homem-materialidade, onde a observação identifica as condutas e formas de simbólicas
relevantes para interação entre os componentes envolvidos no processo.

Do ponto de vista técnico, a análise dos processos de significação também contribui


para o melhor desenvolvimento do produto, pois obedecem aos princípios adotados do
ergodesign que:

Pode ser definido como um tipo de projeto baseado em pesquisas com os


usuários. Assim como a arquitetura de informação, o ergodesign é um campo
interdisciplinar intimamente ligado às interfaces de sistemas tecnológicos. O
que visam é tornar as interfaces fáceis e as informações acessíveis. O
objetivo é entender por que as pessoas utilizam (ou não utilizam) os
computadores, qual o grau de dificuldade que possuem ou sua facilidade -
desenhando produtos com base na linguagem e no modelo mental do
usuário. (AGNER, 2009)
A adoção do ergodesign responde constatação de que muitas propostas interativas em
dispositivos e websites de museus produzem uma impermeabilidade na troca de informações,
com resultados semelhantes àqueles que são criados pelos museus tradicionais. Segundo
AGNER, (2009) a aplicação de recursos midiáticos e tecnológicos sem considerar à lógica e o
interesse dos usuários pode concorrer para aquilo que ele denomina “arquitetura de
desinformação”.

Desde o século passado já se chamava atenção para este perigo:

Se os museus não têm uma compreensão clara de seus relacionamentos com


as informações, a comunicação e seus públicos eles não apenas perdem a
oportunidade de efetivamente utilizar o poder da tecnologia para ajudar a
transformar essas relações, mas correm o maior risco de perder a visão e o
controle daquilo que eles se acabam se tornando. (WORTS, MORRISSEY,
1998, p. 11)4
É para melhor compreender este aspecto, tornou-se fundamental a observação e a
vivência das condutas e dos valores que serão expressos público – usuário através dos meios
digitais nas redes sociais e na vida cotidiana na sede do bloco. Este trabalho de aproximação
leva em consideração a relação museu-patrimônio-território como tríade que é também
necessária para que sejam pensados os processos de musealização digital.

Assim, para o plano museológico em desenvolvimento, além dos diagnósticos


quantitativos, observamos e analisamos como os diversos sujeitos envolvidos interagem entre
si através de plataformas e dispositivos digitais: criamos a página do facebook para o este
museu digital e observamos outras páginas e mídias sociais tais como o Whatsapp, Instagram.
Com isso obtivemos dados que atestam não só as demandas socioeconômicas do entorno, mas
também as aspirações de sociabilidade e temas de interesse destes prosumers a ser
contemplada neste museu.

Mais do que levar em consideração que o museu é um sistema de atividades,


concentraremos esforços para o planejamento de ações que integre o público como
protagonista dos processos musealização pela via digital. Tudo se concentra em um esforço
para solucionar as demandas da museologia contemporânea com formato inovador de museu
digital. O desafio crucial deste trabalho é a construção de uma forma poética de pensar que
entrelace o conjunto de programas museológicos à natureza dos espaços expandidos através
das TIC.

Os processos de musealização em um museu digital


A cultura digital oferece-nos um novo vocabulário, novas formas de pensar e conceber
as relações entre as pessoas. Este tem sido um dos maiores desafios no desenvolvimento deste
projeto.

4
If museums don’t have a clear understanding of their relationships with information, communication, and their public, they
not only miss the opportunity to effectively utilize technology’s power to help transform these relationships, but run the
greater risk of losing sight and control of what they become. (WORTS,; MORRISSEY,1 9 98 , p. 11)
A tríade Museologia – TIC – patrimônio, implica em um esforço contínuo de tradução
entre aspectos museológicos, culturais e tecnológicos, demandando a aquisição de
conhecimento em três eixos temáticos, cada um com uma lógica diversa. Este esforço
constitui o exercício para pensar soluções para os três resultados mais distintivos na
concepção deste museu: a manutenção dos processos museológicos caracterizando a
instituição em meio digital; o público como compartícipe destes processos e, por último e
mais difícil, o desenvolvimento de interfaces que sejam atraentes e amigáveis e favoreçam a
interação em todos os níveis.

Acreditamos que ainda falta um considerável caminho a trilhar, mas já podemos


elencar algumas formas e soluções que já direcionam para o alcance dos objetivos traçados.

Os processos de aquisição e documentação que estamos projetando para a salvaguarda,


tratamento e comunicação de acervo digitalizado, implica na produção e gestão das
informações ampliando a antiga concepção de documentação museológica do simples registro
dos objetos e acervos em coleções ao planejamento de um sistema permeável a participação
dos usuários, o que na verdade não difere em muito o posicionamento do CIDOC-ICOM
quando afirma que
O museu deve avaliar as necessidades de seus usuários e [...] prestar serviços
adaptados a diferentes categorias de usuários, como pesquisadores,
professores e estudantes, aprendizes e público em geral. Esses serviços
devem incluir uma área de pesquisa onde os visitantes podem consultar
registros [...] que dão acesso a registros de catálogo, imagens, informações
contextuais e outros recursos. (CIDOC-ICOM, 2012)5

Adotamos este princípio e vamos mais além, buscando soluções para que o usuário
contribua com novas aquisições de acervo para museu e com a interpretação do mesmo.

5
The museum should evaluate the needs of its users and where appropriate provide services tailored to
different categories of user, such as researchers, teachers and students, learners and the general public.
These services should include a research area where visitors can consult paper records and files, together
with manual or online search facilities giving access to catalogue records, images, contextual information
and other resources. (CIDOC-ICOM, 2012)
Assim, a aquisição será desenvolvida através de canais/ferramentas para doação e/ou
empréstimo por parte dos usuários, com protocolos e condutas padronizando esta atividade.
Sabemos que estas atividades implicam questões relativas aos direitos autorais e de imagem
permeiam que foram inspiradas nas preocupações sobre garantia de procedência do acervo em
museus presenciais. Do mesmo modo, as condutas para o uso de dados e imagens do museu
exigem uma nova forma de projetar o nível de pertencimento e categorias (perfis) do público–
usuário de modo a pensar, conscientizar e permitir concessão e difusão de seus interesses e
dos interesses institucionais. Ainda neste aspecto, os levantamentos realizados identificaram o
potencial enriquecedor da folksonomia nos processos de registro de acervo, adequando os
elementos de indexação do acervo para a identificação do linguajar da comunidade envolvida.
As ações colaborativas nas práticas de registro podem transformar a documentação
museológica em uma experiência de autorepresentação ao fazer aparecer através da
linguagem as categorias de valoração vigentes no ambiente da comunidade. Além disso, o uso
das categorias utilizadas pelos usuários mostrou-se um recurso que contribui para o
enriquecimento do ambiente em que o acervo é gerado ou compartilhado. O tagging social
tornou-se um modo lúdico e inovador para promover curadoria compartilhada e demostrou
este potencial (ver caso do Brooklin Museum6).

Em acréscimo, as ações curatoriais participativas na documentação museológica


favorecem a eficiência nos processos de comunicação museológica e um maior sucesso nas
ações de busca e investigação do público na base de dados do museu.

Percebemos, também, que no meio digital existe uma correlação muito mais estreita
entre os procedimentos de documentação, conservação e segurança. Pensar a conservação em
um museu digital, implica tanto na proteção à integridade das informações, quanto na
prevenção ataques ao sistema ou servidor. Sabemos que é necessário estabelecer, tal como em
um museu presencial, rotinas de manutenção da qualidade dos equipamentos e sistemas,

6
Este projeto foi suspenso parcialmente pelo baixo número de acesso e participação do público, mas se
tornou uma interessante experiencia e ainda pode ser acessado. Ver
https://www.brooklynmuseum.org/community/blogosphere/2014/07/22/clear-choices-in-tagging/
prevenindo a obsolescência tecnológica e nos aprofundando sobre os processos de avaliação
de segurança dos servidores e outros recursos de salvaguarda de acervo demandam formação
contínua.

Acreditamos que uma das ações fundamentais na criação deste museu será a
recuperação digital do acervo do Ilê Aiyê disperso e degradado. Para isso, é um procedimento
comum a opção por um formato de arquivo que seja adequado às necessidades e realidade
institucional, como também serão necessárias condutas para digitalização e guarda de
originais. Apesar da facilidade em ser produzido e comunicado, os acervos digitais demandam
cuidados específicos. Atualmente existe um comitê do CIDOC – ICOM que estuda soluções
para a preservação nos processos de documentação e acervos digitais. 7

É interessante ressaltar que o bloco afro Ilê Aiyê, além do desfile carnavalesco, possui
uma escola fundamental em suas instalações e desenvolve atividades variadas como festivais,
festas, seminários e cursos, em um trabalho consolidado de ressignificação e valorização da
imagem do negro e da sua herança africana, atuando no combate ao racismo de um modo que
corresponderia aos processos de musealização (ou folkmusealização 8), na medida em que
adquire, conserva, comunica e educa através do seu patrimônio, transfigurando a história em
memória cuja estratégia primordial é a criação de “sistema estético” de significação
(SHANKS;TILEY, 1992, p. 68 ) podendo ser interpretada como uma forma de imaginação
museal em todos os aspectos aqui elencados.

Apesar de não ser ou ter um museu em sua sede, o Ilê Aiyê já desenvolve visitas
guiadas, cursos, exposições, palestras e festas. Levando em consideração este aspecto,
selecionamos buscamos projetar ações que correspondam a atuação do bloco e a demanda do
público transpondo-as para o meio digital, tais como visitações virtuais à sede do bloco,
transmissão online de eventos festivos e educativos. Explorando mais ainda as possibilidades

7
http://network.icom.museum/cidoc/arbetsgrupper/digitalt-bevarande/L/11/
8
Aqui fazemos uma referência aos estudos de folkcomunicação. Um campo de estudos que analisa as
estratégias populares para uso e apropriação dos meios de comunicação de massa.
relativas ao design interativo/colaborativo serão oferecidos modelos (templates) para que o
público construa de exposições digitais a partir dos seus perfis, utilizando e acrescentando
imagens, sons e vídeos em experiências de curadoria compartilhada.

Estas exposições associadas a ferramentas de conversação e registro de comentários


podem dinamizar as relações entre os usuários e estreitar laços, como também, abrir
possibilidades para criar espaços para jogos, fórum de notícias, concursos educativos e cursos
online. Estes recursos para a interrelação entre o público mostraram-se fundamentais e
funcionam tanto para trocas informacionais, quanto comerciais e afetivas.

O aspecto educativo que o público demanda também se mostrou prioritário, é


fundamental uma ferramenta para acesso à bibliografia já produzida pelo bloco oferecendo
fontes de informação e pesquisa sobre os temas de interesse dos usuários, agregando aspectos
relativos à documentação e educação. Além disso, foi detectada a necessidade de ações
educativas presenciais para o museu digital, com oficinas de capacitação e inclusão digital
para usuários e reuniões periódicas entre os gestores, principalmente para os associados e
diretores mais antigos, aqueles que mais tem a compartilhar e em sua maioria possuem pouca
familiaridade e pouco interesse em relação a cultura digital.

Sabemos que o primeiro passo após o design e teste do aplicativo-museu (que já


obteve a sua primeira versão) será a criação de um regimento previsto no plano museológico
ainda em andamento. É fato que será necessária uma adequação da imaginação criativa às
limitações tecnológicas com o estabelecimento de normas de conduta para a criação de acesso
e perfis, parâmetros de moderação, que em última instância refletem as relações internas de
poder na comunidade. Sabemos da necessidade premente para estabelecer parâmetros e ações
de sustentabilidade fazendo com que o marketing do museu digital seja um reflexo economia
afetiva9 (JENKINS, 2015) superando os invasivos e já ultrapassados mailing lists, criando um

9
“Segundo a lógica da economia afetiva, o consumidor ideal é ativo, comprometido emocionalmente e parte
de uma rede social. Ver o anúncio ou comprar o produto já não basta; a empresa convida o público para
entrar na comunidade da marca. No entanto, se tais afiliações incentivam um consumo mais ativo, essas
sistema de comunicação sutil e proativa considerando os princípios do ergodesign, para os
quais a informação deverá ser sempre acessada de modo voluntário e de acordo com o
interesse do usuário. Além disso, está previsto um processo contínuo de avaliação
museológica será suprido pelos indicadores da plataforma e na comunicação direta do público
com os administradores.

Limites e horizontes
Acreditamos que os processos de musealização digitais tem, em última instância, o
objetivo de favorecer o desenvolvimento social. No entanto, vivenciamos o fato de que a
ampliação do território simbólico e dos valores relativos à um grupo humano, uma
comunidade pela via digital demanda um alto grau de especialização e interdisciplinaridade

A atual expansão do acesso à internet através de múltiplos dispositivos também


contribui para a ubiquidade do museu, dos símbolos do bloco e de seus valores, como também
para tempo maior de permanência do usuário logado no museu, sendo este fenômeno um dos
capitais mais importantes nas redes sociais.

Do nosso diagnóstico inicial, observamos um forte interesse pela manutenção e


salvaguarda do acervo material e abertura da biblioteca física do bloco e uma resposta
imediata aos downloads da produção bibliográfica na versão beta.

Neste momento, a preocupação com a sustentabilidade relacionada as ações


museológicas a serem desenvolvidas é o que demanda nossa maior atenção que afetam tanto o
interesse público quanto a capacidade deste museu para a salvaguarda da memória
institucional.

A precariedade do estado de conservação e classificação do acervo físico e a falta de


condições para a sua gestão denunciam a necessidade de que se estabeleçam estratégias para

mesmas comunidades podem também tornar-se protetoras da integridade das marcas e, portanto, críticas
das empresas que solicitam sua fidelidade”.
ações continuas de musealização, o que é necessário para que qualquer tipo de museu, tanto
presencial quanto digital.

Esta situação atesta que ainda existem muitas questões que este trabalho tem por
solucionar. A acessibilidade e a tecnologia inclusiva, em franco desenvolvimento ainda
demandam um investimento considerável, tanto intelectual quanto material.

O fato é que este trabalho e a maioria das experiências autônomas no campo da


musealização arcam com as consequências de uma estrutura de poder engessada não só no
plano da posse e controle das narrativas, mas também na posse dos instrumentos e aparatos
materiais da tecnologia que denotam poder travestido de competência administrativa e
qualidade de produção; tanto socioeconômico, quanto político; em suas várias esferas de
reprodução de realidade.

Seguimos, apesar das dificuldades, acreditando que uma lógica descolonizadora para
os museus implica diretamente na difusão do conhecimento e no domínio dos aparatos
tecnológicos em suas formas de concepção e suportes para mediação.

Se as formas correspondem à conteúdos históricos sedimentados, pode-se inferir que


não há possibilidade de liberdade onde há precariedade nas condições de materiais de
existência. Apesar disso, seguimos ousando um salto acadêmico que ultrapasse a “museologia
do deve” para “a museologia do é..”.

Referências bibliográficas

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