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Resumo: Nosso trabalho apresenta algumas reflexões sobre o campo e as modificações da museologia
contemporânea no contexto da criação de um museu digital para a Associação Cultural Bloco
Carnavalesco Ilê Aiyê. Investigamos as possibilidades oferecidas pelas tecnologias da informação e
comunicação (TIC) para a democratização dos processos museológicos através de alguns caminhos
metodológicos encontrados para pensarmos a concepção deste museu digital, considerando como
ponto de partida a definição da instituição museu como um sistema e o nosso fazer no trato com o
objeto de estudo da museologia, salientando a importância de levarmos em consideração estes
aspectos no planejamento de museus digitais. Por fim, elencamos alguns princípios que congregam a
aplicação das TIC aos processos de musealização, preocupações relativas ao desenvolvimento de
ferramentas, buscando soluções e orientações para as ações de documentação, conservação, exposição
digital e educação museal aplicadas aos processos de digitalização. Concluímos, identificando
questões que implicam no andamento deste trabalho e nas formas como as TIC são utilizadas em
museus como um reflexo das relações de poder na sociedade e apontamos a necessidade do
desenvolvimento de práticas neste campo que sejam efetivamente alimentadas pelas reflexões teóricas
da Museologia.
Palavras-chave: Cibermuseu, carnaval, museu comunitário, musealização
Abstract: Our work presents some reflections on the field and the modifications of the contemporary
museology in the context of the creation of a digital museum for the Cultural Association Block
Carnavalesco Ilê Aiyê. We investigate the possibilities offered by information and communication
technologies (ICT) for the democratization of the museological processes through some
methodological paths found to think about the design of this digital museum, considering as a starting
point the definition of the museum institution as a system and our doing in dealing with the object of
study of museology, stressing the importance of taking these aspects into account in the planning of
digital museums. Finally, we highlight some principles that bring together the application of ICT to the
processes of musealization, concerns regarding the development of tools, searching for solutions and
guidelines for the actions of documentation, conservation, digital exhibition and museum education
applied to the digitization processes. We conclude by identifying issues that imply the progress of this
work and the ways in which ICT is used in museums as a reflection of power relations in society, and
we point out the need for the development of practices in this field that are effectively nurtured by
Museology 's theoretical reflections.
No âmbito dos museus, pode-se facilmente observar os vários tipos de ações que utilizam
estas tecnologias: São páginas web de museus, mobiliário expositivos integrados com tecnologia
digital e inteligência artificial, realidade aumentada, bancos de dados via internet, visitas virtuais 3D.
No campo mais específico do nosso trabalho temos: exposições online, cibermuseus, museus digitais,
museus virtuais, museus on-line, etc. Por conta da explosão e pouca definição de nomenclaturas
optamos pela simplicidade e amplitude da denominação museu digital, reconhecendo que o aspecto
central do nosso trabalho serão os processos de digitalização e comunicação online para a criação de
um espaço interativo de museu que serão acessíveis online. Para isso, assumimos o desafio de
investigar e explorar as ferramentas digitais para os processos de aquisição-recuperação, exposição,
documentação, conservação da memória da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, sediada
na cidade de Salvador, no bairro da Liberdade, na ladeira do Curuzú.
Acreditamos que os avanços das TIC contribuíram para que os museus e a própria
Museologia se desprendessem da materialidade e focalizassem suas ações nos processos de
representação. Desde a década de 60, no século XX, ocorre uma insurreição contra as formas
simbólicas hegemônicas socialmente, neste bojo inclui-se a crise de identidade dos museus
tradicionais. Este desenvolvimento das sensibilidades pode também ser visto como um
resultado da emersão do pensamento e atitudes jovens da primeira geração pós - 2ª. Grande
Guerra, incitando a percepção e respeito pelas diferenças culturais, fragilizando as fronteiras
de poder, fatores que foram gradualmente acelerados pelos impactos dos avanços
tecnológicos dos meios de comunicação de massa. As principais consequências destes
avanços seriam a quebra definitiva da hegemonia do Estado, da família, da escola e de seus
aparatos culturais de reprodução cultural.
Diante deste contexto, a estratégia utilizada para a concepção deste museu digital toma
como principal referencial teórico as ideias difundidas no bojo do Nova Museologia1 pela sua
preocupação com o potencial de transformação social dos museus. Com a difusão das ideias
empreendidas através da Carta da Mesa Redonda de Santiago do Chile - ICOM (1972), pela
articulação e criação do MINOM - ICOM2 - foram afirmadas política e epistemologicamente
as diretrizes de um fazer científico frente a atores, grupos e instâncias mais conservadores da
Museologia à época, - articulando a produção de diversos autores com experiências
inovadoras no campo da museologia.
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Optamos por não estabelecer uma arqueologia do conhecimento museológico em relação aos termos ou
tendências da museologia. A saber: museologia social, nova museologia, sociomuseologia, museologia
contemporâneas, museologia pós-moderna, visto que implicaria em discussões complexas que não cabem
neste texto. Tomamos, de uma forma genérica estes termos como determinando uma mesma tendência.
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Movimento Internacional pela Nova Museologia.
construção de referenciais de memória e demarcação de territórios metamorfoseiam-se
continuamente em busca de eficácia comunicativa. Alinhadas com este desdobramento as
formas de museu assumem diversos estilos. As redes sociais, as mídias locativas e as novas
sociabilidades permeadas pelas TIC oferecem novos desafios para pensarmos a intervenção
social destas instituições.
A concepção de espaços museológicos conflui cada vez mais para uma demanda que
não se alinha com ditames exclusivamente formalistas, tecnicistas e de imbuídos de
esteticismo autoritário ou movidos por uma lógica instrumental e controladora. Emerge a
supremacia do recurso às de políticas públicas e ferramentas de planejamento organizacional
amalgamadas com estratégias de design emocional e marketing afetivo, associando a função
material do objeto aos seus significados imateriais, nutrindo um saber cultural de
convergência que associa tecnologia, consumo e humanização.
Nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e
podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas
habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte
alternativa de poder midiático. Estamos aprendendo a usar esse poder em
nossas interações diárias dentro da cultura da convergência. Neste momento,
estamos usando esse poder coletivo principalmente para fins recreativos,
mas em breve estaremos aplicando essas habilidades a propósitos mais
“sérios” (JENKINS, 2015)
Na busca de um método qualitativo que ofereça recursos para a definição de
categorias, conceitos e teorias de caráter substantivo, ou seja, “representativa da realidade dos
sujeitos e situações estudadas” (MARTINS; THEOPHILO, 2009, p. 76) a Grounded Theory
(GT), oferece a base para que seja assumido um papel interpretativo do museólogo diante dos
atores e outros elementos implicados no fenômeno estudado. Sendo “uma perspectiva teórica
que possibilita a compreensão do modo como os indivíduos interpretam os objetos e as outras
pessoas com as quais interagem e como tal processo de interpretação conduz o
comportamento individual em situações específicas” (CARVALHO; BORGES; REGO, 2010,
3“that would allow the consumers to participate in the production and design process in order to fine-tune
products to their needs in an extremely saturated marketplace...”
p. 148). Assim, o nosso trabalho parte desde observação e a interpretação das relações entre
os envolvidos, à aplicação de métodos quantitativos característicos das pesquisas de público
aplicados presencialmente quanto através de meio digital.
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If museums don’t have a clear understanding of their relationships with information, communication, and their public, they
not only miss the opportunity to effectively utilize technology’s power to help transform these relationships, but run the
greater risk of losing sight and control of what they become. (WORTS,; MORRISSEY,1 9 98 , p. 11)
A tríade Museologia – TIC – patrimônio, implica em um esforço contínuo de tradução
entre aspectos museológicos, culturais e tecnológicos, demandando a aquisição de
conhecimento em três eixos temáticos, cada um com uma lógica diversa. Este esforço
constitui o exercício para pensar soluções para os três resultados mais distintivos na
concepção deste museu: a manutenção dos processos museológicos caracterizando a
instituição em meio digital; o público como compartícipe destes processos e, por último e
mais difícil, o desenvolvimento de interfaces que sejam atraentes e amigáveis e favoreçam a
interação em todos os níveis.
Adotamos este princípio e vamos mais além, buscando soluções para que o usuário
contribua com novas aquisições de acervo para museu e com a interpretação do mesmo.
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The museum should evaluate the needs of its users and where appropriate provide services tailored to
different categories of user, such as researchers, teachers and students, learners and the general public.
These services should include a research area where visitors can consult paper records and files, together
with manual or online search facilities giving access to catalogue records, images, contextual information
and other resources. (CIDOC-ICOM, 2012)
Assim, a aquisição será desenvolvida através de canais/ferramentas para doação e/ou
empréstimo por parte dos usuários, com protocolos e condutas padronizando esta atividade.
Sabemos que estas atividades implicam questões relativas aos direitos autorais e de imagem
permeiam que foram inspiradas nas preocupações sobre garantia de procedência do acervo em
museus presenciais. Do mesmo modo, as condutas para o uso de dados e imagens do museu
exigem uma nova forma de projetar o nível de pertencimento e categorias (perfis) do público–
usuário de modo a pensar, conscientizar e permitir concessão e difusão de seus interesses e
dos interesses institucionais. Ainda neste aspecto, os levantamentos realizados identificaram o
potencial enriquecedor da folksonomia nos processos de registro de acervo, adequando os
elementos de indexação do acervo para a identificação do linguajar da comunidade envolvida.
As ações colaborativas nas práticas de registro podem transformar a documentação
museológica em uma experiência de autorepresentação ao fazer aparecer através da
linguagem as categorias de valoração vigentes no ambiente da comunidade. Além disso, o uso
das categorias utilizadas pelos usuários mostrou-se um recurso que contribui para o
enriquecimento do ambiente em que o acervo é gerado ou compartilhado. O tagging social
tornou-se um modo lúdico e inovador para promover curadoria compartilhada e demostrou
este potencial (ver caso do Brooklin Museum6).
Percebemos, também, que no meio digital existe uma correlação muito mais estreita
entre os procedimentos de documentação, conservação e segurança. Pensar a conservação em
um museu digital, implica tanto na proteção à integridade das informações, quanto na
prevenção ataques ao sistema ou servidor. Sabemos que é necessário estabelecer, tal como em
um museu presencial, rotinas de manutenção da qualidade dos equipamentos e sistemas,
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Este projeto foi suspenso parcialmente pelo baixo número de acesso e participação do público, mas se
tornou uma interessante experiencia e ainda pode ser acessado. Ver
https://www.brooklynmuseum.org/community/blogosphere/2014/07/22/clear-choices-in-tagging/
prevenindo a obsolescência tecnológica e nos aprofundando sobre os processos de avaliação
de segurança dos servidores e outros recursos de salvaguarda de acervo demandam formação
contínua.
Acreditamos que uma das ações fundamentais na criação deste museu será a
recuperação digital do acervo do Ilê Aiyê disperso e degradado. Para isso, é um procedimento
comum a opção por um formato de arquivo que seja adequado às necessidades e realidade
institucional, como também serão necessárias condutas para digitalização e guarda de
originais. Apesar da facilidade em ser produzido e comunicado, os acervos digitais demandam
cuidados específicos. Atualmente existe um comitê do CIDOC – ICOM que estuda soluções
para a preservação nos processos de documentação e acervos digitais. 7
É interessante ressaltar que o bloco afro Ilê Aiyê, além do desfile carnavalesco, possui
uma escola fundamental em suas instalações e desenvolve atividades variadas como festivais,
festas, seminários e cursos, em um trabalho consolidado de ressignificação e valorização da
imagem do negro e da sua herança africana, atuando no combate ao racismo de um modo que
corresponderia aos processos de musealização (ou folkmusealização 8), na medida em que
adquire, conserva, comunica e educa através do seu patrimônio, transfigurando a história em
memória cuja estratégia primordial é a criação de “sistema estético” de significação
(SHANKS;TILEY, 1992, p. 68 ) podendo ser interpretada como uma forma de imaginação
museal em todos os aspectos aqui elencados.
Apesar de não ser ou ter um museu em sua sede, o Ilê Aiyê já desenvolve visitas
guiadas, cursos, exposições, palestras e festas. Levando em consideração este aspecto,
selecionamos buscamos projetar ações que correspondam a atuação do bloco e a demanda do
público transpondo-as para o meio digital, tais como visitações virtuais à sede do bloco,
transmissão online de eventos festivos e educativos. Explorando mais ainda as possibilidades
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http://network.icom.museum/cidoc/arbetsgrupper/digitalt-bevarande/L/11/
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Aqui fazemos uma referência aos estudos de folkcomunicação. Um campo de estudos que analisa as
estratégias populares para uso e apropriação dos meios de comunicação de massa.
relativas ao design interativo/colaborativo serão oferecidos modelos (templates) para que o
público construa de exposições digitais a partir dos seus perfis, utilizando e acrescentando
imagens, sons e vídeos em experiências de curadoria compartilhada.
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“Segundo a lógica da economia afetiva, o consumidor ideal é ativo, comprometido emocionalmente e parte
de uma rede social. Ver o anúncio ou comprar o produto já não basta; a empresa convida o público para
entrar na comunidade da marca. No entanto, se tais afiliações incentivam um consumo mais ativo, essas
sistema de comunicação sutil e proativa considerando os princípios do ergodesign, para os
quais a informação deverá ser sempre acessada de modo voluntário e de acordo com o
interesse do usuário. Além disso, está previsto um processo contínuo de avaliação
museológica será suprido pelos indicadores da plataforma e na comunicação direta do público
com os administradores.
Limites e horizontes
Acreditamos que os processos de musealização digitais tem, em última instância, o
objetivo de favorecer o desenvolvimento social. No entanto, vivenciamos o fato de que a
ampliação do território simbólico e dos valores relativos à um grupo humano, uma
comunidade pela via digital demanda um alto grau de especialização e interdisciplinaridade
mesmas comunidades podem também tornar-se protetoras da integridade das marcas e, portanto, críticas
das empresas que solicitam sua fidelidade”.
ações continuas de musealização, o que é necessário para que qualquer tipo de museu, tanto
presencial quanto digital.
Esta situação atesta que ainda existem muitas questões que este trabalho tem por
solucionar. A acessibilidade e a tecnologia inclusiva, em franco desenvolvimento ainda
demandam um investimento considerável, tanto intelectual quanto material.
Seguimos, apesar das dificuldades, acreditando que uma lógica descolonizadora para
os museus implica diretamente na difusão do conhecimento e no domínio dos aparatos
tecnológicos em suas formas de concepção e suportes para mediação.
Referências bibliográficas
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Visualisation and the Arts (EVA 2015), London, UK, 7 - 9 July 2015.
http://dx.doi.org/10.14236/ewic/eva2015.32. P. 291-297
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3. Ed. São Paulo: Vozes, 1989. Parte I
JENKINS, Paul. A cultura da convergência, São Paulo: Aleph, 2015. (kindle ebook)
MENSCH, Peter van. Notas sobre os arredores: patrimônio e novas tecnologias. MUSAS -
revista brasileira de museologia, Ano V, 2009, n. 4, p. 11-23.
MORIN, Edgar . Ciência com consciência. 8 ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
WORTS, Douglas; MORRISSEY Kristine. A Place for the Muses?: Negotiating the Role of
Technology in Museums. In: MINTZ, A; THOMAS, S (Eds.). The Virtual and the Real:
Media and the Museum Whashington,DC: AAM, 1998. p. 147-171. Disponível em
http://worldviewsconsulting.ca/wp-content/uploads/2017/06/Place-for-the-Muses.pdf. Acesso
em 15 de agosto de 2017.