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PROCESSOS DE CONCEPÇÃO MUSEOGRÁFICA PARA A CRIATIVIDADE

CCONCEPTION PROCESSES OF MUSEOGRAPHIC FOR CREATIVITY

Francisco Providência
Universidade de Aveiro
Laís Guaraldo
UFRN

Resumo: O texto expõe o processo de concepção museográfica em alguns dos projetos museográfi-
cos desenhados durante a última década pelo estúdio português “Providência Design”. Tendo como
parâmetro o propósito de “museu criativo”, designação cunhada por Inês Ferreira, serão analisados o
modo como esses elementos de mediação foram concebidos, desenhados, construídos e instalados
no espaço, e promovem uma relação entre o público e o acervo, através da construção de narrativas
abertas à interpretação dos públicos, criando camadas de significado sobre os objetos.

Palavras-Chave: museografia, museologia, dispositivos de mediação, design de interação, infografia.

Abstract: The text expose museography designing process of some exhibition projects designed by the
Portuguese studio “Providência Design”, during the last decade. Having as a parameter the propose of
“creative museum” (designation marked by Inês Ferreira) will be considered the way as these mediation
elements where conceived, designed, constructed and installed in the space, in order to promote a relation
between the public and the archive through open narrative construction open to audience interpretation
creating meaning layers on the objects..

Keywords: museography, museology, museographic mediation, Infographic.

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Introdução
Como pode um conjunto de dados ser ar- Museografias contemporâneas
ticulado no espaço, de forma a oferecer ao in- Atualmente o Museu é assim definido pelo
terlocutor a oportunidade de elaborar conheci- ICOM (International council of museums)1:
mento? Qual a natureza da ação cognitiva que “Uma instituição permanente, sem fins lu-
se espera desse interlocutor? Que parâmetros, crativos, a serviço da sociedade e do seu de-
recursos ou dispositivos podem ser criados senvolvimento, aberta ao público, que adquire,
para que essa operação ocorra com simplicida- conserva, investiga, expõe e comunica o patri-
de, não perdendo a sua complexidade? Qual a mónio material e imaterial da humanidade e do
natureza do conteúdo tratado? Que conceitos seu meio envolvente com fins de estudo, educa-
podem ser usados como instrumentos de tra- ção e recreação” (ICOM, 20018).
balho? Desse conjunto de missões, cabe à museo-
Este conjunto de questionamentos faz parte grafia o encargo de encontrar modos exposi-
do desafio do profissional que lida com a mu- tivos adequados para a comunicação do pa-
seografia. Se os curadores lidam com diretrizes trimônio material e imaterial da humanidade.
conceituais das exposições, cabe ao museógra- Pode ser definida, portanto, como o conjunto
fo a materialização dessas intenções de modo a de conhecimentos relacionados com a apresen-
informar o espaço como dispositivo relacional. tação e comunicação de objetos em acervos,
O texto aqui apresentado analisa o processo que participam da elaboração e interpretação
de criação de algumas museografias elabora- de um determinado conteúdo. Nos países de
das em Portugal pelo estúdio “Providência De- língua anglo-saxônica utiliza-se a designação
sign” na última década. Serão analisados dispo- museum practice.
sitivos de mediação museográfica pela forma A raiz etimológica do termo (museu+grafia)
como promovem a relação entre público e o indica um registo museal. Já o termo museolo-
acervo museal, observando as narrativas que gia (museu+logia) corresponde à ciência muse-
daí decorrem. al, abarcando todo o espectro de conhecimen-
O estúdio Providência Design realizou na últi- tos que informa o propósito, método e objetivo
ma década cerca de 10 projetos museográficos, museais. Não há museografia sem uma museo-
dando origem a museus e centros de interpre- logia, ainda que implícita, podendo haver inten-
tação instalados em diversas cidades portugue- ções museológicas ainda por realizar museogra-
sas. A experiência de cada caso é, certamente, ficamente. Mas apesar do domínio mais teórico
matéria prima de outros casos e o conjunto de da museologia sobre a prática museográfica,
trabalhos realizados permitirá indicar alguns convém não esquecer que a forma museográfi-
parâmetros que emergem a partir dessa expe- ca é sempre a conformação de ideias. Por outro
riência. Mais do que observar detalhes de cada lado, se é possível equacionar um quadro de re-
caso ou contextualizar os seus conteúdos, o tex- ferências museológicas de excelência, quando
to aqui apresentado pretende realizar o exercí- declinado para a museografia não é garantido
cio de desmontagem dos recursos expressivos que se mantenha o seu reconhecimento, já que
provenientes dessa prática criativa. Para mais a qualidade do resultado depende do complexo
informação sobre os museus analisados, se-
1 Organização criada em 1946 por profissionais
guem no final do texto o endereço de website
da área de museus. Possui atualmente mais de
dos museus referidos. 37.000 membros.

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conjunto de decisões técnicas, morfológicas e o sistema museal como um todo, passará a ser
retóricas de mediação e, consequentemente, de pensado como processo ideologicamente en-
inter-relação com o espaço, o acervo e os públi- cenado.
cos. Evidentemente que as diferentes maneiras Mais contemporânea e frequentemente, tem-
de materializar o discurso no espaço também se colocado a dúvida sobre a pertinência e ob-
participam da sua configuração. jetivos do museu, num tempo de ubiquidade da
O papel da museografia será, pois, o de ma- informação. O que está no centro do debate é
terializar o discurso. Cabe ao museógrafo (de- a consciência em relação ao tratamento e re-
signer) a função de solucionar tecnicamente o levância dos conteúdos ali tratados. Não mais
conjunto de diretrizes elaboradas pelo trabalho apoiadas na cronologia e ordens taxonômicas
curatorial, quer seja assumido por ele próprio clássicas, os museus contemporâneos propõem
ou por terceiros. A natureza e qualidade dessa novas narrativas e questões, levando o visitante
experiência, no entanto, dependerá não só da a perguntar mais do que a concluir.
intenção informativa como da resolução técni- Autores como Derrick de Kerckhove já vinham
ca e artística dessa mediação, da qual o resulta- a chamar a atenção, desde o século passado,
do ficará refém. para o museu “acelerador”, que disponibiliza
A escolha, contextualização e disposição livre acesso interativo a dispositivos geradores
dos objetos, caracterizam uma intencionalida- de respostas em tempo útil. Esse modelo de
de significante, historicamente condicionada. museu assemelha-se aos laboratórios de física
A maneira como são escolhidos conjuntos de experimental do séc. XVIII, hoje traduzidos nos
objetos, recolhidos e expostos, revela muito museus experimentais (como a rede de museus
da sociedade que os conserva e das intenções portugueses de Ciência Viva, votados à promo-
sociais, políticas, científicas ou estéticas que a ção da cultura científica). No entanto, o grau de
levou a esse propósito. abertura para uma amplitude de leituras possí-
Já no contexto do século passado, o museu veis perante um fenômeno, dependerá dos di-
deixou de ser visto como uma vitrine de objetos ferentes contextos sociais e institucionais onde
valorizados pela sua raridade, expostos para quer que o projeto museográfico se insira.
observação e deleite em perfeitas condições Nesse contexto de ampliação do entendi-
de conforto, segurança e visualização. O museu mento do papel do museu, cabe à museogra-
passou a ser tratado como um lugar de associa- fia, portanto, a função de elaborar a mediação
ção de objetos a discursos, com vista à comuni- entre os parâmetros formulados por forças ins-
cação interpretativa de certos conteúdos. titucionais e o público. Inúmeras são as contri-
O enfoque interpretativo dos museus ao lon- buições da área da museologia que problema-
go do século XX ampliou consideravelmente o tizam os constrangimentos dessa relação. Sem
programa de recursos de mediação. Os museus desconsiderar o contexto social e político onde
não se limitaram mais a ancorar as suas exposi- os projetos museográficos aqui analisados se
ções na apresentação de peças originais como inserem, este artigo tem como propósito focar
documentos únicos, passando a fazer-se valer a análise no aspecto da contribuição criativa do
de diferentes dispositivos comunicativos. Não design para a elaboração do texto museográfi-
prescindindo dos objetos “documentos”, não co e modos de mediação, criados para garantia
se limitará mais a eles (podendo inclusivamen- comunicacional.
te expor réplicas ou reproduções). O museu, e

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Museu como espaço ativo de aquisição de co- como serviço criativo (no sentido de espaço
nhecimento e tempo para formulação ativa de hipóteses) e
Nos trabalhos aqui analisados, a perspectiva não tanto educativo (com a carga unidirecio-
comum, que norteia os projetos, é a de que tal- nal que esse termo carrega).
vez o foco não se deva colocar tanto no acesso Inês Ferreira defende o papel da criatividade
à informação (tão relativizada pelo excesso da no séc. XXI como contraponto à educação a
oferta), mas na possibilidade da sua interpreta- que aspiravam os museus no séc. XX, passando
ção a partir do sujeito visitante, se não mesmo assim a assumir um papel de questionamento
da sua apropriação e recriação. mais produtivo. A proposta de um cruzamento
Tal posicionamento alinha-se às colocações entre criatividade e educação deve contaminar
formuladas pela pesquisadora de museologia todas as áreas do museu, que passa a ser trata-
Inês Ferreira (2016), na sua recente publicação do não só como espaço de educação como, e
“Criatividade nos Museus”. A autora apresenta sobretudo, espaço de produção.
em análise, entrevistas realizadas a dezenas Essa nova concepção do papel social do mu-
de profissionais da área museológica em Por- seu implica a exploração de novas formas expo-
tugal com vista à formulação de um diagnós- sitivas, que deixem claro o propósito de que a
tico sobre a necessidade de rever paradigmas relíquia em exposição é apenas um documento
relacionados com a museologia, em contexto (dentre vários), que serve à formulação de ques-
contemporâneo, apontando os parâmetros que tões, no confronto do sujeito para um conjunto
proporcionariam o que denomina por “experi- articulado de informações.
ência criativa” na visita ao museu. Como se podem produzir, na prática muse-
Ferreira observa que no contexto contem- ográfica, esses elementos de mediação muse-
porâneo o papel do museu vem sendo com- ológica favoráveis a situações cognitivamente
preendido por muitos pesquisadores da área complexas e criativas? Como poderão os públi-
da museologia como um espaço participativo cos serem convocados a participar da produção
e colaborativo, formulado com o propósito da criativa do conhecimento a partir do museu?
construção de conhecimento pelo público, po- Que elementos de mediação estabelecem re-
tencializando a sua capacidade crítica e criati- lações profícuas entre o público e o objeto mu-
va, tornando-o intérprete e performer de prá- seológico? Esse é um desafio da museografia
ticas de construção de significado através de e curadoria contemporânea. Os casos que se
elementos de mediação museográfica, (Simon, apresentam têm o propósito de contribuir para
Brummett, Svabo, Hooper-Greenhill apud Fer- o prosseguimento desse debate.
reira, 2016). O enfoque que será apresentado a seguir não
O museu deixa, portanto, de ser tratado como será tanto nos detalhes dos processos projetu-
um lugar de transferência de informação, ade- ais, mas na identificação e análise das estraté-
quando as suas narrativas aos públicos mais no- gias museográficas e comunicativas criadas,
vos através de serviços educativos. Considera o que se alinham com o propósito de criação de
público como parceiro interpretativo e agente museus, não se limitando à conservação de ob-
de transformação. Nesse sentido, a disponibi- jetos ainda que devidamente enquadrados pela
lização do serviço educativo que marca a mu- informação, mas lugares que propõem novos
seologia do século passado, será agora tratada questionamentos e múltiplas leituras. Para um

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conhecimento mais aprofundado dos museus tecnologia holográfica, mapping, de realidade


convocados, anexamos respetivos endereços aumentada ou tantas outras possíveis. O con-
www. junto das in-formações aparece disposto sob o
Cada um dos projetos referidos implicou um mesmo espaço, fazendo-se valer da parceria de
trabalho de elaboração da mediação técnica e diferentes códigos “desarticulados” que, desse
cénica, procurando com os materiais, disposi- modo híbrido, articularão um discurso aberto
tivos e artefatos museográficos produzir uma no visitante.
retórica metafórica imersiva, capaz de motivar A expressão “texto” é aqui utilizada tomando
o visitante para o contexto de problematização. em consideração o modo abrangente como é
Compreende-se, por isso, que os resultados tratada pela semiótica. José Luiz Fiorin (1995,
dependam da natureza do conhecimento e do pg 165) observa que a palavra texto provém do
repertório do visitante, ante os contextos in- verbo latino texo, is, texui, textum, texere, que
formativos envolvidos, condição que implicará quer dizer “tecer”.
o tratamento da forma da informação, assegu- Da mesma forma que um tecido não é um
rando uma leitura e estrutura argumentativa amontoado desorganizado de fios, o texto
não é um amontoado de frases, nem uma
abertas, mas também da capacidade para o en-
grande frase. Tem ele uma estrutura, que ga-
volver ativamente nessa descoberta.
rante que o sentido seja apreendido em sua
globalidade, que o significado de cada uma
O olhar sobre o visitante. de suas partes dependa do todo.
O parâmetro norteador de escolha dos pro-
jetos aqui apresentados é a demonstração
de que o visitante não deve ser tratado como Diferente de uma exibição de efeitos espe-
observador passivo, mas construtor de signifi- ciais para entretenimento passageiro, as cons-
cados, agente interpretativo e produtivo de co- truções textuais da museografia têm como
nhecimento novo e próprio. A criatividade deve desafio a articulação de linguagens escolhidas
ser entendida como um modo de relação e não para que se possibilite uma experiência com-
como um resultado. plexa de construção de significado - atendendo
Mas como dispor informações de modo a à efetiva intenção comunicativa e educativa do
sugerir uma postura mais ativa? O que os exem- Museu, que não está (não deve estar), desvincu-
plos museográficos aqui convocados propõe, lada da experiência estética e lúdica. Conteúdos
não é a exposição de dados ou o entretenimen- específicos são elaborados e tratados em cada
to, mas a proposição de uma atitude investigati- exposição e a tessitura do discurso adquirirá
va, incentivando a formulação de questões que consistência no visitante, pela convergência in-
agrupamos em categorias a partir da análise do coerente de diversos meios sobre o que se pre-
conjunto de museugrafias realizadas. tende problematizar.
O primeiro núcleo do Museu Municipal de
Comunicar pela linguagem multimodal Penafiel, pretende comunicar o lugar histórico
O texto museográfico é multimodal. Orga- socialmente mitificado. Recorremos, antes de
niza-se a partir de uma articulação de lingua- mais, à palavra que nomeia o Homem2, fazendo
gens: verbal, visual, tipográfica, sonora, audio-
visual, tátil, ática e arquitetônica, recorrendo a 2 Os primeiros documentos portugueses manuscritos,

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Figura 1: Lucerna
medieval de origem
árabe e reconstitui-
ção da sua função
com recurso a pseu-
do-holograma.

-a sussurrar em nomes pela sonoplastia da sala, ção dinâmica de chama por pseudo-holograma,
forrada com os mesmos nomes e documentos. produzindo irresistível curiosidade. A chama em
Dispositivo de écrans geminados, apresentam movimento, além de atrair a atenção para o
documentos ancestrais. E uma inusitada lampa- objeto que está dentro da vitrine, fornece a ele
rina islâmica prova a presença muçulmana no uma informação sobre a sua serventia e essa
território desde a baixa idade média. camada de sentido que lhe dá vida.
A lamparina foi exibida em vitrina com simula- Um texto é sempre um objeto histórico e,
portanto, expressão de posicionamentos éti-
arquivados na Torre do Tombo (arquivo nacional), dizem cos, estéticos e políticos. Elaborar um discurso
respeito ao testamento de pessoas da região de Penafiel. implicará sempre em um posicionamento in-
A sucessão de nomes das mulheres e homens enunciados
formado e con-formado; e no entendimento
nestes documentos, traduzem uma sonoridade antiquíssi-
ma ainda romana e visigótica. do espaço expositivo como elemento central

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Figuras 2, 3 e 4: Vitrines
dos museus do Douro,
de Penafiel e de Braga.
As vitrines expositivas
são parte do discurso. O
material translúcido ou
opaco permite a opção
de revelar ou não, dia-
gramar a informação.

na elaboração do discurso museográfico como No Museu da Misericórdia de Braga, instalado


uma caixa que organiza o espaço. no edifício rococó do palácio do Raio, a muse-
Os objetos documentais que constituem os ografia teve em atenção as paredes interiores
patrimônios dos museus são tratados como do edifício, forradas com pintura e painéis de
elementos que constroem narrativas veiculado- azulejos, implicando uma ocupação em ilha no
ras de significado. Objetos formam coleções e o centro das salas. A natureza documental e o va-
modo como são dispostas no espaço condicio- lor do acervo (composto por alfaias litúrgicas,
nam o discurso. instrumentos médicos, livros, pinturas, escultu-
No Museu do Douro (dedicado ao trabalho ras e relicários), recomendavam o recurso a vi-
humano investido na região vinícola ao longo trinas que, aproximando-se do espírito barroco
do rio Douro), a madeira foi usada como mate- do edifício, se construíram com paredes curvas,
rial metáfora, convocando as embalagens co- dotando-as de uma expressão barroca.
merciais gravadas a fogo que atribuíram à expo-
sição unidade semântica, biológica e visual de Espreitar
um território ruralmente explorado para consu- No programa museal do Museu Municipal
mo urbano. A impressão digital, gravura e recor- de Penafiel, o segundo núcleo implicava o tra-
te de placas lameladas de madeira de bétula, tamento geográfico da região, documentado
montadas como máscaras sobre as vitrinas mo- pelos marcos territoriais instalados ao longo
dernistas (propriedade do museu), retira-lhes o da sua história, e por um conjunto de mapas e
protagonismo cénico e retórico de um museu et- informações sobre o território3 e seus limites.
nográfico. Mas se a parede de madeira esconde Como comunicar esse conjunto de informações
as vitrinas, através de “janelas” poderemos ver de modo interessante? Que interpretação atri-
os objetos aí preservados. O mesmo princípio buir a cada um desses dados?
de obturação do objeto exibido, foi aplicado Parecia necessária a criação de dispositivo
na sala de arqueologia (3º núcleo) do Museu de de mediação que pudesse concentrar os seus
Penafiel. Alguns dos vasos ou fragmentos arque- conteúdos num artefato de valor escultórico. As
ológicos, foram dispostas em parede e protegi- diferentes fontes de informação deram origem
dos por vidro transparente forrada a vinil fosco,
abrindo-se nele janelas circulares sobre os obje- 3 Dados estatísticos relacionados com a distribuição de-
tos, enquadrando-os num único dispositivo. Ao mográfica da região, natureza e concentração dos achados
arqueológicos no território, principais exemplos do período
obturar os objetos o vidro promove a curiosida-
românico, estrutura fluvial e rodoviária do território, ou a
de, estimulando o visitante. simples visualização do território em helicóptero.

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Figuras 5, 6, 7, 8 e 9: Dis-
positivo “Olhômetro” em
plano geral e detalhes,
do Museu Municipal de
Penafiel.

à criação de máquina com o formato de uma de exploração e curiosidade. A mediação aqui


bolha tentacular, em cujos cones se poderia apresentada foi de mascaramento e ocultação,
visualizar, a duas cotas, a infografia dinâmica e com o propósito de motivar a descoberta e o
vídeos com os conteúdos temáticos. O disposi- interesse pelo território. O mesmo princípio mu-
tivo criado, nomeado “olhômetro”, propõe “sí- seográfico de “espreitar”, foi aplicado a alguns
tios para espreitar”. Comunica a informação de dos dispositivos no Museu do Dinheiro do Banco
modo lúdico, motivando uma postura corporal de Portugal em Lisboa.

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Figuras 10, 11e 12 : Dis-


positivo para espreitar
a constituição celular
de notas, simulando
um microscópio.
Museu do Dinheiro,
Banco de Portugal em
Lisboa.

Os cones instalados na vitrina do núcleo de- Trocar


dicado ao fabrico e destruição do dinheiro, per-
mitem ver “ao microscópio” as fibras naturais A visita ao Museu do Dinheiro é precedida
e artificiais, de que são compostas as notas. pela oferta de bilhete que permitirá a cada vi-
Trata-se basicamente de monóculos instalados sitante interagir ludicamente com o museu, na
sobre écrans vídeográficos, montados pelo lado sua própria língua. Diversos equipamentos ofe-
interior da vitrina. No entanto, surgindo a neces- recem experiências ao visitante mediadas pelo
sidade de visualizar as fibras em diferentes es- bilhete que poderão ser recuperadas em casa,
calas de ampliação, foi necessário desenvolver através da internet.
um colarinho revolver, no topo superior do cone Uma escultura em fibra de vidro representa
que comunicasse visualmente com o écran de a figura mítica do Hermes (solar), o deus gre-
vídeo, dando-lhe instruções para a mudança de go protetor dos comerciantes, conhecido por
imagem. O sistema concebido poderá ser mon- produzir valor do nada. Hermes propõem-nos
tado (e desmontado) em qualquer vitrina, sem trocar o dinheiro que trazemos codificado no
intervir sobre o vidro. nosso bilhete, por outra forma de dinheiro, apa-
rentemente inusitada. Sal por gado, sementes
por ouro, conchas por peixinhos metálicos, te-
Figuras 13 e 14 : Museu
do Dinheiro, em Lis-
boa. Escultura Hermes
e as trocas de valores.

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cidos por moedas... fazendo-nos compreender por paredes de vidro que servem de mediação
que tudo pode ser dinheiro, porque o dinheiro é, e proteção às peças exibidas, alojadas pelo
apenas, uma convenção fiduciária. lado anterior. Sobre o vidro foram montados
Na periferia da escultura (Hermes com a diversos fragmentos arqueológicos, mas cuja
aparência de um astronauta), dentro da qual reconstituição e reconhecimento será difícil (se
vemos uma cara que se exprime, fala e intera- não mesmo improvável) sem a ajuda de recons-
ge conosco, um conjunto de prismas permitirão tituição visual. Em muitas propostas museográ-
visualizar exemplares reais de formas primitivas ficas a reconstituição histórica de objetos e de
e atuais de dinheiro. A visualização dos objetos ambientes adquire uma expressão realista (ou
é interceptada por um pseudo-holograma que mesmo naturalista) que, em sacrifício da verda-
sobreporá legendas de luz sobre os objetos. de, se impõe totalitária ao visitante sem o con-
Nesse mesmo museu, painéis de introdução vocar para o processo interpretativo. O recurso
a cada núcleo questionam o visitante, intro- a um desenho de baixíssima resolução, que
duzindo palavras chaves para a decodificação sugere em vez de descrever (construído ape-
dos objetos, atribuindo-lhes novas camadas de nas por segmentos de reta), tal como os meios
esclarecimento que reduzirão a sua opacidade frios que refere Marshall McLuhan (1911-1980),
junto do visitante. Pretendia-se uma abordagem implica a imaginação de quem vê e, consequen-
da informação concebendo o museu como um temente, uma maior participação de descodifi-
lugar de tomada de consciência, gerador de cação na reconstrução da imagem. A reconstru-
dúvidas e não como propagador de certezas e ção de um cavalo e cavaleiro em tamanho real,
disciplinador social. desenhados sobre o vidro a partir do fragmento
exibido, permitiu solucionar o problema com
Reconstituir parcos recursos técnicos. Esta técnica em que o
No terceiro núcleo do Museu Municipal de Pe- desenho aplicado ao vidro integra a narrativa da
nafiel, da arqueologia, o espaço é conformado estrutura museográfica, foi aplicada em outras
Figura 15: No
Museu de Penafiel
o desenho sugere
uma hipótese de
reconstituição dos
fragmentos numa
totalidade.

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farol

Figuras 18 e 19:
Sala da arqueo-
logia. Museu de
Penafiel.

circunstâncias no quarto núcleo (da etnologia), Teseu4, há uma impossibilidade congénita na


para identificar tecnologias de transformação conservação e contextualização a que aspira a
da madeira e do ferro, contribuindo para uma museologia, que a simplicidade da contextuali-
experiência de totalidade. zação (a baixa resolução) complementarmente
Dependendo dos materiais e das circuns- ao documento, poderá contribuir a superar.
tâncias, o processo de reconstituição também
poderá passar pela articulação conjunta das Conhecer com os sentidos
partes, sempre que estamos em presença da to- O tato é geralmente considerado um sentido
talidade dos elementos constituintes, como se vedado à experiência museal. Nos museus so-
verifica na simulação construtiva da arquitetura mos frequentemente admoestados com sen-
romana representada em Penafiel (coluna, trave tenças do tipo “não tocar” ou mesmo “não se
e cobertura em cerâmica) aproximar”, sob o risco de ativar alarmes ou a
Na sala destinada à arqueologia científica do aproximação intimidante do guarda, impossibi-
Museu de Penafiel a reconstituição arqueológi- litando que o visitante possa ver com as mãos,
ca é apresentada através de uma proposta de em complemento aos sistemas retiniano e audi-
trajeto por cima da representação dos estratos tivo. Reconhecendo-se a relevância da informa-
das escavações. O visitante tem acesso por de- ção tátil para a experiência sensível, o museu
graus que servem de anfiteatro informal e de su- de Penafiel apresenta no seu quinto núcleo da
porte gráfico à representação demonstrativa da ecologia rural (água e terra), dois suportes mu-
estratificação arqueológica por seu conjunto.
De qualquer modo, a museologia (histórica)
4 A lenda grega relatada por Plutarco descreve que, no
convive com este paradoxo radical e genealógi- regresso a Atenas após cumprir a missão épica de matar o
co entre a verdade da apresentação documen- minotauro, o barco de Teseu foi preservado para memória
futura dos atenienses e, por isso, sempre que uma parte
tal e a mentira da sua inevitável ressignificação.
do barco apodreceu foi substituída por outra em seu lugar.
Não é por estarmos em presença de um modelo Esta reconstrução impõe, no entanto, uma questão sobre
antropomórfico naturalista esculpido em cera a identidade: depois de substituídas todas as peças por
que compreenderemos melhor a função das outras da sua reprodução, ainda estaremos perante o barco
de Teseu? A impossibilidade da resistência ao tempo (que
gravuras rupestres, ou mesmo de um machado levou os atenienses a reproduzirem e substituírem as partes
em pedra lascada, porque aquele machado em apodrecidas do barco), origina um paradoxo: devemos
pedra, será ainda uma pedra para o visitante de garantir a forma ainda que se perca o original, ou preservar
o documento ainda que se perca a compreensão morfoló-
hoje e não a alta tecnologia que representou na
gica? Ou dito de outro modo, que é a identidade? O que se
sua época. Tal como no paradoxo do barco de muda ou o que se conserva?

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seográficos táteis: uma caixa de cereais (tradi- elevar e manipular a barra de ouro, desmistifica,
cionais na agricultura regional), onde se pode à entrada da exposição, a associação do Banco
comparar a variação de escala entre o milho au- Central às suas reservas em ouro, disponibili-
tóctone e o importado da América, apalpando zando o visitante para outros conteúdos.
através de “luva” imersa em contentor de cere-
ais, e a experiência de toque em tecidos sintéti- Mas que espaço é esse?
cos (poliéster), naturais industriais (algodão e li- Desde meados do século XX que experiências
nho) e naturais artesanais (linho). A evidência da artísticas envolvendo instalações em arquitetu-
diferença sensorial dispensa mais comentários. ra (site specific) problematizam o espaço como
No museu do Douro a compreensão pelo visi- elemento fundamental da elaboração do texto
tante das notas de referência olfativa do Vinho estético. Também a museografia contempo-
do Porto, justificaram a criação de equipamento rânea compreende o espaço como elemento
pneumático multiplicado por conjunto de vasos primordial na organização de um discurso que
(retortas) munidos de bomba de ar, no interior deve acolher o visitante numa experiência hete-
dos quais se instalaram as essências de referên- rotópica de reflexão crítica.
cia. A dimensão organoléptica do vinho consti- O Museu de Arte Nova de Aveiro constitui-se,
tuía uma forma de conhecimento especifico da em si mesmo, objeto museal. Propõe um enten-
cultura daquele território. dimento do patrimônio de arte nova da cidade
Também no primeiro núcleo do Museu do Di- através de uma identificação dos edifícios da
nheiro, sob uma imagem panorâmica do garim- cidade e organização da informação sobre eles.
po brasileiro ampliada a toda a largura da sala O museu foi instalado em uma edificação res-
e suspensa do teto, abre-se um cofre onde po- taurada, respeitando a distribuição doméstica
deremos ter acesso direto a uma típica barra de original de um espaço de habitação.
ouro puro (com 400 onças). Na parede do topo Como não havia mobiliário ou outros objetos
da sala, transcreve-se um diálogo entre um filho da época que pudessem ilustrar o tema da Arte
e um pai, questionando-o sobre o que é o di- nova, entendemos fazer do espaço um centro
nheiro. O desejo infantil de experimentar tocar, de interpretação do movimento e distribuição
Figuras 20 e 21: A
informação tátil no
contato com a barra
de ouro no Museu
do Dinheiro do
Banco de Portugal
em Lisboa e com as
peças de linho no
Museu de Penafiel.

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Figuras 18 e 19: Mu-


seu de Arte Nova de
Aveiro e a marcação
dos edifícios de Arte
Nova nas ruas da
cidade.

El mundo se repite sin variaciones, la estupi-


da visita a outros edifícios de arte nova distribu- dez triunfa. Pero cada vez que te adentras en
ídos pela cidade. Uma cartografia da presença las galerías de un museo, en la sala de un cine
de edifícios arte nova em Aveiro é apresentada o en las páginas de un libro, hazlo siempre
no museu com todos os edifícios classificados con esa desmesurada expectativa de que, al
e integrados num circuito de visita. A indicação salir, el mundo se revelará a ti como nunca lo
has visto, como ni siquiera consigues imagi-
da marca do museu, associado ao número e de-
narlo, como apenas te atreves a pensar. (PEL-
signação de cada edifício, foi recortada em aço, LEJERO. 2018, p. 22)
aplicado a lajeta de betão e instalado no pas-
seio público em frente a cada edifício.
Este exemplo mostra a possibilidade de com- Jiménez-Blanco (2014, p. 146) formula que o
preender o museu como centro de interpreta- papel do museu como legitimador da cultura,
ção da cidade, abrindo-se à sua própria musea- “luxuoso cofre onde se articulavam conceitos
lização. O museu instala-se na cidade e a cidade como sagrado, história, tradição, nação, beleza,
é o tema do museu, constitui-se como parte ou uma caixa imaculada onde se canonizavam
dela. O mesmo princípio caracteriza o Museu do as obras primas da modernidade” converteu-
Douro, na Régua, desenhado para interpretar a se, depois de maio de 1968 (Paris), um lugar de
região, funcionando como meio de distribuição intercâmbio. “Em vez de aspirar a elevar-se por
para a sua visita. cima da vida, devia formar parte dela”. O que
se procura, nessa concepção de museu, é uma
Conclusão concepção múltipla, não hierarquizada de sig-
No te hagas ilusiones sobre el poder del arte. nificados.

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Os casos aqui apresentados tiveram como nuidade e inocência do espírito. Ao desvanecer
diretriz comum a educação para a dúvida. O a certeza autêntica (ingénua) com a dúvida que
conjunto de artefatos mediadores criados, ti- acreditamos trazer uma certeza mais certa, tro-
veram como parâmetro esse posicionamento, camos uma certeza autêntica por outra inau-
quer confrontando diferentes documentos, têntica. Por isso questiona-se Flusser: “por que
quer enunciando questões, quer multiplicando duvido?” Esta pergunta é mais fundamental que
as fontes informativas, quer relacionando-as a outra: “de que duvido?” Trata-se, com efeito,
com a proposição de abertura a novas relações do último passo do método cartesiano, a saber:
e formulação de hipóteses. A mediação técnica trata-se de duvidar da dúvida em si. A pergunta
foi entendida, portanto, como instrumento críti- “por que duvido?” implica outra: “duvido mes-
co e lúdico, não no sentido da imersão alienante mo?”
(do que faz perder a noção de si), mas no sen- Este será, pois, o mais alto desígnio museoló-
tido de garantir a tomada de consciência ativa, gico: contribuir para que o visitante duvide me-
ante a informação apresentada. lhor, fazendo-o duvidar da sua própria dúvida e,
Nos gabinetes de curiosidade do século XVI, consequentemente, abrindo o pensamento a
pedras raras, conchas estranhas, restos de os- novos modelos e possibilidades.
sadas de bichos desconhecidos, artefactos
construídos por indígenas, eram expostas em Referências
armários, ficando à espera de uma explicação FERREIRA, Inês. Criatividade nos Museus:
relacional que a ciência tardava a produzir. Espaços “Entre” e Elementos de Mediação.
Como sinais de um novo mundo, os gabinetes Porto, ed. Caleidoscópio, 2016.
de curiosidades alimentavam o imaginário de FIORIM, José Luiz. A noção de texto na se-
europeus abertos à aventura da descoberta, miótica. Revista Organon, Instituto de Letras –
servindo de pretexto narrativo à produção de UFRGS, vol 9, no. 23, 1995.
conhecimento novo e de novas ideias. Ao se FLUSSER, Vilém. A Dúvida. Coimbra. Ed. Im-
transformarem em museus de História Natural, prensa da Universidade de Coimbra, 2012.
os ossos ganharam legenda e as espécies em- JIMENÉZ-BLANCO, María Dolores. Una histó-
balsamadas, um lugar preciso na representação ria del museo en nueve conceptos. Madrid, Ed.
do grande sistema dos seres vivos terráqueos, Cátedra, 2014.
que ainda hoje nos permitem relacionar a forma KERCKHOVE, Derrick de. Inteligência conec-
com o funcionalismo natural (darwinismo). tiva: a emergência da cibersociedade. Lisboa,
Os museus fazem perguntas ao visitante, in- ed. Fundação para a Divulgação das Tecnolo-
terpelam-no, criam-lhe novas dúvidas e ques- gias de Informação, 1998.
tões. Mas, como refere Flusser na crítica ao O´DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo
cartesianismo veiculada pela sua obra A Dúvida, Branco. A Ideologia do Espaço da Arte. São Pau-
duvidarão também os museus de si mesmos? lo, Martins Fontes, 2002.
Como refere Flusser, partimos para a dúvida PELLEJERO, Eduardo. Lo que vi. Diario de un
porque temos fé numa certa certeza. espectador comun. Ed. Carcará. Pesquisas e
“Com efeito, a fé é o estado primordial do es- movimentos. São Paulo, 2018.
pírito. O espírito “ingénuo” e “inocente” crê. Ele
tem “boa fé””. Mas a dúvida acaba com a inge- Sites dos museus analisados

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farol

Museu de Arte Nova: http://mca.cm-aveiro.pt/


rede-de-museus/museu-arte-nova/
Museu do Dinheiro: https://www.museudodi-
nheiro.pt/destaques
Museu de Penafiel: http://www.museudepe-
nafiel.com/
http://icom-portugal.org/recursos/definico-
es/

Francisco Providência
É Doutor em Design (UA) e Professor Associa-
do na Universidade de Aveiro. Mantém atividade
como designer centrada na museografia. Foi
distinguido com os Prémios Nacionais de Design
(CPD) e com o Red Dot. Cofundador e investiga-
dor no Instituto de Investigação em Design, me-
dia e cultura (ID+).

Laís Guaraldo
É Doutora em Comunicação e Semiótica (PU-
CSP) e docente da área de Linguagem Visual do
Departamento de Arte e Design da UFRN. Inves-
tigadora no Instituto de Design, media e cultura
(ID+). Atualmente em pós-doutoramento na Uni-
versidade de Aveiro sob supervisão de Francisco
Providência

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