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R. Museu Arq. Etn.

, 24: 153-162, 2014

Entre mastodontes e Frankensteins: caminhos para o delineamento de


políticas de acervos em museus

Manuelina Maria Duarte Cândido*


Mana Marques Rosa**

DUARTE CANDIDO, M.M., ROSA, M.M. Entre mastodontes e Frankens-


teins: caminhos para o delineamento de políticas de acervos em museus.
R. Museu Arq. Etn., 24: 153-162, 2014.

Resumo: O presente artigo tem como propósito discutir o problema


da política de acervos em museus – sobretudo no que diz respeito à sua ausên-
cia – e apontar alguns caminhos metodológicos para o seu delineamento e a
sua implantação. Para tanto, realizamos a análise do tema sob a luz de alguns
teóricos que trataram do assunto, bem como o exame dos possíveis problemas
oriundos da ausência de uma política de acervos.

Palavras-chave: política de acervos, museus, acervos, planejamento

Introdução coisas. Assim, as coisas deveriam ser reunidas a


partir dos problemas que se quer discutir e, por-

N o posfácio ao livro La Muséologie


selon Georges Henri Rivière, André
Desvallées comenta que o mestre estava conven-
tanto, a criação de um museu não deve partir da
escolha de um prédio ou da reunião de objetos,
mas de um planejamento motivado pela identi-
cido de que um museu não é um bricabraque ficação de questões a serem abordadas a partir
e que melhor seria deixar alguns elementos de um processo de musealização de referências
na reserva técnica que expor incongruências. patrimoniais. Ainda segundo este raciocínio,
Desta forma, teria mais sucesso a criação de um o museu se aproximaria de um laboratório
museu novo programando as aquisições que (oposição à ideia de museu-templo) e seria um
tentar utilizar objetos ‘disparates’ reunidos por museu-programa em oposição ao museu-cole-
gerações (Rivière 1989: 350). ção, tanto quanto museu-discurso, contrário ao
Este argumento tem por base a convicção museu-objeto. Tais questões são fundamentais
de que museus devem expor ideias mais que para revolver também as formas de exposição e
as estratégias de educação nos museus.
Entretanto, os museus reais, os que já
(*) Professora do Curso de Museologia FCS/UFG, existem, ou seja, o campo de trabalho dos
Diretora do Departamento de Processos Museais DPMUS/
Ibram<manuelin@uol.com.br
profissionais da área da Museologia, é feito mais
(**) Bacharela em Museologia, mestranda em Antropologia de museus já existentes e criados com outras
Social, PPGAS/UFG, <mannarosa@gmail.com> concepções do que por museus a criar, dentro

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das novas concepções de museus-programa. Por das ciências humanas em fins do século XIX,
outro lado, o compromisso profissional nos inseriu os utensílios e produtos da atividade
leva a trabalhar com responsabilidades sobre humana, como instrumentos de trabalho, arte-
a herança já constituída e legada por outras fatos e outros objetos considerados vestígios da
gerações, mesmo que a abordagem seja calcada ação do homem, no centro das preocupações de
na premissa de que os museus não são dados, disciplinas como a História, a Arqueologia e a
são instrumentos que podemos colocar a serviço Antropologia, por não considerá-los puramente
de diferentes propósitos e que construímos a resultados da vivência dos homens.
partir do presente. Chagas (apud Duarte Cândi- Tal noção ampliou substancialmente o
do 2013: 43) é um dos autores que discute este entendimento a respeito dos objetos e sua
tema, reiterando que nascidos para serem prag- importância na compreensão da cultura e dos
máticos, já surgem dialéticos, porque pretendem modos de viver de uma sociedade. Os cha-
celebrar o passado, mas serão sempre interpreta- mados estudos de cultura material, ademais,
dos por um olhar do presente. desvelaram a ideia de que os artefatos não são
Pensando nos museus reais e já existentes, apenas produtos, mas vetores de relações sociais
temos um desafio com o qual este texto se pro- (Menezes apud Pimentel, Bittencourt, Ferrón
põe a contribuir: discutir o problema da política 2007: 92).
de acervos em museus, as conseqüências de suas Os museus, ao realizarem o recolhimento
ausências e alguns caminhos metodológicos e a guarda desses objetos, contribuem enorme-
para a construção destas políticas. mente para a apreciação dos vestígios materiais,
e a Museologia, enquanto disciplina aplicada
interdisciplinarmente, provê métodos e técnicas
Os museus e o problema do colecionamento voltadas para a preservação, interpretação e
comunicação dos significados que os objetos
No primeiro tópico do artigo A teoria, na carregam. Musealizados, os objetos convertem-se
prática, funciona: gestão de acervos no Museu em índices de si mesmos, ou seja, são destituí-
Histórico Abílio Barreto, Pimentel, Bittencourt dos de seus valores de usos para os quais foram
e Ferrón fazem a seguinte constatação: criados passando a ser apreciados por meio de
seus valores simbólicos.
Após a Segunda Guerra Mundial, a adoção Os semióforos, como são chamados os ob-
pelos museus de novas abordagens teóricas jetos em contexto museológico, são entendidos
e de conceitos daí decorrentes, levou à uma como testemunhos e suportes de informação
notável expansão do campo museológico pelos quais é possível empreender o desenvolvi-
e do objeto museológico. Até metade do mento de pesquisas, estabelecendo uma relação
século passado, esses conceitos tinham com o passado e a memória.
amplitude bastante limitada. A partir da Krzysztof Pomian, ao realizar o estudo do
incorporação do conceito de “documento”, que vem a ser uma coleção, traça a distinção en-
virtualmente todas as categorias de itens tre objetos úteis e semióforos. Segundo o autor,
materiais passaram a ser considerados como
de interesse para a musealização. Todo e De um lado estão as coisas, os objetos
qualquer artefato, independentemente úteis, tais como podem ser consumidos
de sua categoria, é um potencial suporte ou servir para obter bens de subsistência,
de informações sobre os processos sociais ou transformar matérias brutas de modo
e comunicativos que o gerou (Pimentel, a torná-las consumíveis, ou ainda proteger
Bittencourt, Ferrón 2007: 92). contra as variações do ambiente, [...] de um
outro lado estão os semióforos, objetos que
não têm utilidade, [...] mas que representam
A noção de cultura material, derivada de o invisível, são dotados de um significado;
uma série de embates epistemológicos em torno não sendo manipulados, mas expostos ao

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olhar, não sofrem usura (Pomian 1984:71). A primazia da coleção é colocada em che-
Assim, os objetos que compõem as coleções que pelo mesmo movimento que dá elasticidade
e os acervos museológicos são aqueles que, ilimitada ao conceito de museu. Mas não se
mantidos fora do circuito das atividades pode confundir isto com capacidade ilimitada
econômicas, são valorizados e preservados de colecionar, ao contrário, é isto que o mesmo
em função de seu valor simbólico. Pomian movimento combate.
corrobora ainda que “para que um valor
possa ser atribuído a um objeto por um
grupo ou por um indivíduo, é necessário e O debate entre coleções e novos modelos
suficiente que esse objeto seja útil ou que seja institucionais
carregado de significado” (Pomian 1984: 72).
Maria Cristina Oliveira Bruno aponta que
a passagem entre os séculos XIX e XX consiste
Por conseguinte, uma vez que uma gama em um marco importante para a Museologia
bastante variada de objetos tem sido reputada pela aproximação entre os estudos de cultura
enquanto indícios ou documentos representativos material e as coleções museológicas, resultan-
da cultura material, sendo valorizada mais do que do na compreensão do museu como o local
pelo seu aspecto físico, mas pelos significados que adequado para os estudos de cultura material e
carrega; um número crescente de objetos passou a para o tratamento e preservação das coleções.
ser considerado como passível de musealização. O As transformações decorrentes desta aproxima-
equívoco é confundir potencialidade para mu- ção forçaram a quebra de paradigmas, levando
sealização1 de tudo com possibilidade de a tudo ao surgimento de novos modelos institucio-
musealizar em um mesmo movimento, mesmo nais e a um crescente questionamento sobre
quando se trata de um museu de novo tipo: as potencialidades das coleções como vetores
patrimoniais de uma herança cultural coletiva e
“No ‘tudo é musealizável’ encontramos o traço plural (Bruno 2009: 20).
do museu integral de Santiago. Entretanto,
por não ser possível musealizar tudo, por Sabemos, contudo, que os avanços da
serem indissociáveis memória, museu e Museologia enquanto disciplina levaram a uma
seleção, a reflexão museológica internacional série de discussões a respeito de suas competên-
vem paulatinamente questionando conceito cias atribuindo-lhe funções que vão muito além
de museu integral e se aproximando do do estudo e tratamento dos acervos. O processo
museu integrado, sugerido em 1992, em museológico, compreendido de uma manei-
Caracas. Ao invés da pretensão de totalidade, ra geral pelo desenvolvimento de atividades
a viabilização da integração.” (Duarte voltadas para a salvaguarda e comunicação dos
Cândido 2003: 35, grifos da autora). acervos, visa uma cadeia de ações interdepen-
dentes como pesquisa, documentação, conser-
vação e extroversão de referências patrimoniais
que satisfazem uma série de incumbências no
tocante à educação, ao lazer, ao desenvolvimen-
(1) Ideia próxima do conceito de musealidade, que, segundo to social, ao turismo, à economia, dentre outros
Ivo Maroevic, é “o valor imaterial ou a significação do objeto, setores. Ou seja, os museus e, principalmente, a
que nos oferece a causa ou razão de sua musealização” e “abrange a
maior parte das qualidades não-materiais do objeto ou dos
Museologia não encerram o estudo e tratamen-
conjuntos de patrimônio cultural, e num sentido mais estrito, to das coleções.
os objetos de museu. A musealidade é a característica de um Se buscarmos no dicionário o significado
objeto material que, inserido numa realidade, documenta da palavra museu, invariavelmente encontra-
outra realidade: no tempo presente é um documento do
passado, no museu é um documento do mundo real, dentro
remos definições de museu como lugares de
de um espaço é um documento de outras relações espaciais” guarda de objetos, prédios onde se encon-
(Maroevic 1997, apud Scheiner 2006). tram coleções ou mesmo identificados com

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a própria coleção. Não raro, os museus são desenvolvimento é lento e, de fato, não acom-
caracterizados pela obsolescência dos objetos panha o ritmo acelerado com que são criados
que salvaguardam, compreendidos mais como atualmente. Ao compará-los a um mastodonte
lugares de guarda de coisas velhas e em desuso bulímico que a tudo consome, Balerdi provoca
do que pelas ações que desenvolvem. Essa a reflexão de que apesar de “velhos”, os museus
visão bastante comum tem revelado o distan- não possuem a maturidade necessária para
ciamento existente entre museus e público e pensar sobre sua prática de colecionamento,
contribuído para a reflexão a respeito dessa ocasionando, não raro, a saturação, repetição e
percepção bastante ultrapassada das institui- imobilidade (Díaz Balerdi 2008: 66).
ções museológicas que, embora possuam raízes A bulimia, de acordo com Balerdi, faz com
no colecionismo do século XVII, ampliaram que tudo possa ser musealizado sem crivo nem
suas ações adquirindo novas qualidades e critério para a incorporação de novos objetos.
funções para com a sociedade. De acordo com o autor,
A renovação da Museologia, pela qual
se ampliaram as margens de atuação dos Un museo que ni crece ni engorda es visto, por
museus, é consequência de uma série de lo general, como algo peligrosamente cercano
debates e reflexões a respeito de seu papel na a la agonía’ (Díaz Balerdi, 1995). Necesita
sociedade e baseou-se “no rompimento com alimentarse sin cesar. Consume hasta saturar
a ideia de coleção como fonte geradora dos sus entrañas. Acumula piezas con ahínco y
processos museológicos” (Duarte Cândido sin descanso, sin que sepa muy bien se será
2003: 14). posible exhibir el patrimonio conservado: el
Todavia, Cristina Bruno salienta que mastodonte está gordo, bien cebado, pero cubre
embora existam novos desafios impostos aos con pudibundez su riqueza carnal y escamotea
museus em decorrência da chamada nova al visitante la contundencia y el volumen
museologia, “é possível verificar na contempo- de su vientre. (Díaz Balerdi 2008: 67).
raneidade que os seus principais problemas e,
em muitos casos, os seus retrocessos, corres-
pondem exatamente ao acúmulo - muitas vezes Portanto, cabe considerar que o acúmulo
desmedido - de artefatos, coleções e acervos” desenfreado de objetos abarrota as reservas técnicas
(Bruno 2009: 21). Ocorre que muitos museus dificultando, ou mesmo impossibilitando, o de-
brasileiros ainda possuem dificuldades em senvolvimento de atividades como documentação,
executar tarefas básicas (consideradas tradicio- realização de inventários, controle e conservação
nais) do processo curatorial (compreendido de acervos e, principalmente, a comunicação das
como o conjunto sistêmico que vai da coleta à referências patrimoniais por meio de exposições
comunicação do objeto) (Bruno 1997). e ações educativas. Em uma direção oposta, os
Essa constatação auxilia-nos a refletir mais museus discutem hoje, ainda que sem consensos,
preocupadamente a respeito da disparidade exis- a possibilidade de alienação de acervos e, no
tente entre a realidade museal brasileira e as re- mínimo, uma gestão mais racional das coleções,
comendações encontradas em muitos manuais assentada em outra lógica, que é a de ter menos
de Museologia nacionais ou internacionais. objetos mas de maior qualidade – obtida, segundo
Mairesse (2010: 167), às custas de uma “seleção
drástica”, onde cada item tenha assegurada sua pos-
Ainda o colecionamento: sibilidade de ser exposto e atrair público (Mairesse
políticas de acervos como desafio 2010: 75). Fazendo um paralelo com outros tipos
de organização, o autor ressalta que um grande
Ignácio Díaz Balerdi, ao discutir sobre o estoque não constitui, em nenhuma delas, um indi-
crescimento desenfreado dos museus na atua- cador de saúde financeira, pois implica um grande
lidade, pondera que embora sejam instituições custo de gestão destas reservas e por isto a elimina-
consolidadas há cerca de duzentos anos, o seu ção de excedentesou a preocupação em manter as

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reservas sempre dentro de fluxo contínuo têm sido O recebimento de doações, se deseja-
correntes neste e em outros autores (Godoy 2010). das pelo museu como forma de aquisição
O paradoxo em questão está relacionado de acervos, deve ser acompanhado por uma
à ideia de que a preservação está associada ao comissão formada para a tomada de decisão
acúmulo de objetos, não obstante o vultoso pela incorporação. A discussão em torno desta
número de acervos que dão entrada em mu- problemática tem apresentado novos desafios,
seus sem a devida clivagem que garante coesão provocações e sugestões inusitadas como a de
ao acervo comprometer os procedimentos de tornar correspondente a cada doação de acervo
salvaguarda e comunicação dos mesmos. Assim, uma contribuição financeira adequada para sua
Balerdi conclui que: manutenção (Lord e Lord 2008: 195).
A questão é tão potente e atual que tem
El mastodonte longevo, prolífico y bulímico nos catalisado inúmeras discussões especialmente
obligará, tarde o temprano, a replantearnos em países como a Holanda e a Alemanha, mo-
los derroteros de la planificación museológica: tivando inclusive a criação de um novo comitê
los problemas derivados de la natalidad dentro do ICOM, o International Comittee for
desmedida o de la obesidad galopante Collecting [COMCOL], presidido por Léonti-
son, no cabe duda, problemas de estricta ne Meijer-van Mensch. O comitê se apresenta
supervivencia. (Díaz Balerdi 2008: 68)2. como interessado na prática, teoria e ética
do desenvolvimento da coleta e das coleções
– incluindo bens tangíveis e intangíveis. A
Devemos, pois, considerar que os museus compreensão de coleta, muito ampla, envolve
não são lugares de coisas velhas onde se podem, também políticas de coleta contemporânea,
sem restrições, depositar objetos obsoletos: restituição de acervos e descarte.
Consideramos também que a existência de
Dès sa naissance, tout musée reçoit un objetos em desacordo com as linhas mestras que
programme inhérent à sa discipline de base, à la ditam o perfil institucional leva à inconsistência
position qu’il occupe dans le monde ou dans son de seus objetivos e ao ofuscamento de referências
pays, à sa taille. Quels que soient ces paramètres, patrimoniais que deveriam ser exploradas pelo
un musée digne de ce nom ne saurait pas en effet desenvolvimento de pesquisas e tratamento dos
se gouverner au hasard, il suivra une politique objetos. É a isto que Manuelina Maria Duarte
générale qu’on peut dire structurelle et qui Cândido tem chamado de museu-Frankenstein:
constitue le cadre explicite des recherches qu’il uma reunião de objetos realizada de maneira
accueillera. Son programme d’aquisition dépend aleatória (seja por doações, coleta ou outras
étroitement de ces grandes lignes directrices, formas de aquisição). Estes museus, em que a
réalisables à long term autour d’objectifs prévus. formação das coleções precedeu a definição de
(...)
La sélection des problèmes doit par conséquent
entraîner celles des acquisitions. ‘L’élevage’ d’un um programa inerente à sua disciplina básica, à posição que ele
objet ou d’un spécimen coûte cher au musée et ocupa no mundo ou em seu país, e ao seu tamanho. Quaisquer
ce dernier a une capacité d’accueil limitté. Cette que sejam estes parâmetros, um museu merecedor deste nome
realmente não pode se dirigir ao acaso, ele seguirá uma política
sélection se fera d’autant plus facilement qu’elle geral que podemos chamar estrutural e que constitui o enquadra-
sera planifiée. (Rivière 1989: (170-71)3. mento explícito das pesquisas que ele acolherá. Seu programa de
aquisição depende estreitamente destas grandes linhas diretrizes,
exeqüíveis a longo prazo em torno dos objetivos previstos.
(2) Tradução livre: “O mastodonte longevo, prolífico e bu- (...)
límico nos obrigará, cedo ou tarde, a repensar os caminhos A seleção dos problemas deve, por conseqüência, deflagrar a
do planejamento museológico: os problemas derivados da das aquisições. A curadoria de um objeto ou de um espécime
natalidade desmedida ou da obesidade galopante são, sem custa caro para o museu e este último tem uma capacidade
dúvidas, problemas de estrita sobrevivência”. de acomodação limitada. Esta seleção será feita tão facilmente
(3) Tradução livre: “Desde seu nascimento, todo museu recebe quanto seja planejada.”

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um conceito gerador, da missão e da política de de modo que foi necessário, ao longo dos anos,
acervos, assemelham-se a um ser monstruoso que se estruturassem normativas e procedi-
feito de partes desconectadas, apenas justapostas, mentos que orientem a ação museológica dos
e ao qual é difícil atribuir uma identidade. museus. Ao considerar que existem museus
O exercício mais difícil para os profissionais alheios à Museologia, podemos dar o primeiro
que atuam no campo da Museologia é dar um passo para que essas instituições se qualifiquem
suporte para que estes museus, muitos com e cumpram seu devido papel social no compro-
décadas de existência, se redefinam, criem sua misso em preservar o patrimônio e as infor-
política de acervos, realizem os descartes que mações que os objetos carregam: seus aspectos
forem necessários e partam para uma aquisição simbólicos, documentais, históricos e culturais,
mais sistemática, dentro de lacunas previamente sem que essa seja uma operação que vise à totali-
identificadas. Em sua atuação como docente, a dade de acervos que potencialmente poderiam
professora tem proposto aos alunos exercícios de compor coleções em museus.
musealização realizados a partir de conjuntos de O descarte como consequência indeseja-
objetos reunidos aleatoriamente, com o objetivo da de a tudo musealizar, deve ser incluído na
de simular e encontrar soluções para problemas série de preocupações sobre os procedimentos
que existem na realidade dos nossos museus, só museológicos empregados em museus e como
que em maior escala (Rosa 2013: 52-53). forma de garantia da coesão e valorização de
O processo de planejamento das aquisições, acervos. A ausência de critérios e diretrizes para
de acordo com Georges Henri Rivière, por sua a aquisição gera a necessidade de revisão dos
vez inspirado em um esquema de Jiré Neus- objetivos institucionais em relação ao discurso
tupny, indica como etapas: museológico empregado. Ou seja, sem um
conceito gerador que oriente a gestão e expo-
- Seleção dos problemas (reflexão teórica sição dos acervos, a comunicação patrimonial
e avaliação das lacunas da área do saber torna-se inconsistente em razão da dificuldade
relacionada); em trabalhar temáticas abrangentes em torno
- Coleta do material em função dos dos objetos musealizados.
problemas e lacunas; Nesse sentido, o descarte deve ser pensado
- Classificação e descrição no material; como forma de aprimorar a gestão de acervos e
- Análise do material, observação das não apenas quando está em questão o avançado
interrelações presentes no conjunto; estado de degradação dos mesmos. Ademais,
- Apresentação científica e publicação dos uma reserva técnica abarrotada de objetos difi-
resultados; culta sobremaneira as atividades de conservação,
- Avaliação das apresentações e documentação e pesquisa, além de não garantir
publicações (Rivière 1989: 172). que tais objetos venham a ser expostos e comu-
nicados ao público. O descarte, portanto, não é
pretendido apenas como forma de exclusão de
acervos deteriorados por meio da incineração,
Diretrizes para políticas de acervos em museus mas na alienação de acervos sob às formas de
transferência, doação, troca ou empréstimo.
Se quisermos refletir sobre o caráter das O tratamento das coleções, realizado pelo
instituições museológicas teremos que pensar processo museológico, visa, de uma maneira
sobre o papel que elas desempenham na socie- geral, à seleção, à documentação, à conserva-
dade. A moderna Museologia desenvolveu-se ao ção e à comunicação do patrimônio cultural
longo de uma série de discussões a respeito da circunscrito nos museus. Essas operações de-
função dos museus e do escopo da Museologia, vem estar em acordo com os objetivos e metas
entendida enquanto área interdisciplinar de institucionais assentadas e asseguradas nas
conhecimento. Atualmente entende-se que o formas do decreto de criação, estatuto jurídico,
papel destas instituições é amplo e complexo, regimento interno, planejamento estratégico,

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plano museológico e demais políticas institu- - Checar se os critérios estão de acordo com a
cionais que garantam a legitimidade e perfil da legislação e os padrões éticos e profissionais;
instituição. De acordo com Fernanda Camar- - Submeter uma versão do documento escrito
go-Moro, “o acervo constitui-se na primeira res- a outros colegas e incorporar sugestões;
ponsabilidade de um museu, pois é através de - Submeter o documento escrito às
sua aquisição, interpretação e dinamização que autoridades às quais o museu está ligado,
ele se comunica, desenvolvendo sua proposta defendendo os critérios, mas também
cultural” (Camargo-Moro 1986: 17). incorporando novas sugestões, at. chegar a
Consideramos, por conseguinte, que a um documento endossado pelas autoridades;
política de acervos, enquanto instrumento - Implementar;
que delibera pelo manejo e manutenção das - Revisar periodicamente (baseado
coleções, possui o seu limiar no momento da em Simmons 2006).
seleção das coleções a serem incorporadas ou
não aos acervos. A política de aquisição, parte Após a apresentação dos parâmetros éticos
do programa de acervos instituído pelo plano para a aquisição de acervos a partir do que é
museológico, é fundamental para garantir a preconizado pelo ICOM, e por Simmons, que
manutenção do perfil institucional e sua forma são mais gerais, iremos nos debruçar sobre
de atuação na sociedade. os critérios que Camargo-Moro propõe para
Os museus não podem nem devem sal- estabelecer a política de aquisição, lembrando
vaguardar tudo, caso contrário seriam apenas que cada museu deverá concebê-la em conso-
depositários de objetos, eximidos ou incapazes nância com suas características, necessidades e
de assegurar o tratamento da informação e a especificidades:
comunicação do patrimônio cultural. A aqui-
sição desenfreada e indiscriminada de acervos,
atesta Camargo-Moro, vem desequilibrando - A peça deve ter um bom potencial para
terrivelmente o conceito de herança cultural pesquisa e estudo;
(Camargo-Moro 1986: 13). - A peça deve ser de interesse para exposição
A decisão sobre a aquisição de acervos deve e estudo dentro da filosofia e proposta do
ser fruto de discussão coletiva, a fim de evitar museu, visto como um todo dentro de uma
que a responsabilidade recaia exclusivamente ótica interdisciplinar em desenvolvimento;
sobre o diretor. Uma comissão deve ser desig- - A peça deve ser significativa, em função de
nada para tal fim, com conhecimento sobre sua própria representação: isto é, um bom
as necessidades do museu e sua capacidade de representante de sua classe, ou um fator de
incorporação, para que não se baseie somente complementação, seja quanto à extensão, ou
no valor e no interesse que as peças em processo preenchimento de lacuna;
de avaliação possam ter. Alguns passos para a - A peça deve ser analisada, levando em
implementação da política de aquisições: consideração o ponto de vista estético
e/ou histórico, e/ou arqueológico, e/
- Reunir um grupo de pessoas com um ou etnográfico, e/ou científico, e sua
número gerenciável e que represente importância social, seu simbolismo, sua
diferentes setores e pensamentos da raridade, seu potencial;
instituição: gestão, conservação, pesquisa, - Mesmo quando observado um conjunto
ação educativa etc. Se um museu tem uma de peças, cada uma delas não deve deixar de
pequena equipe, alguns membros poderão ser analisada individualmente e equacionada
ser convidados externos e voluntários; dentro de um sistema de prioridades;
- Revisar a literatura da área e os exemplos - A peça deve ser estudada e analisada
de políticas de outros museus para escrever também em conjunto com as demais peças
a sua própria, dos casos mais gerais para os do acervo já existente equacionando-a,
específicos; portanto, a este (Camargo-Moro 1986: 20)

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A autora defende que a composição da A peça ou espécime tem aspectos dúbios na


Comissão de Acervo seja composta por cinco a documentação de origem?
sete membros e suas atribuições sejam de apoio A embalagem e transporte apresentam
às decisões da direção, conforme detalharemos despesas extras?
no capítulo seguinte. Finalmente, delimita o Houve recusa ou dúvida por parte
papel da Comissão em relação às diferentes do museólogo/curador da área
formas de aquisição, pois ele varia desde a não (Camargo-Moro 1986: 21-22).
intervenção, no caso da coleta, até a proposta
de restrições no caso de doações ou legados Assim, este artigo indica a relevância de
(Camargo-Moro 1986: 21-23). Em todos os casos estabelecer os museus enquanto agentes que
a Comissão de Acervo tem um papel de acom- viabilizam a interpretação do patrimônio cultu-
panhamento das aquisições, tomando ciência ral pelas ações de preservação e tratamento de
da entrada de acervos por coleta, por exemplo, objetos musealizados de maneira responsabiliza-
e relatando anualmente ao diretor as demandas da, em acordo com a legislação vigente e sob a
por compras. orientação dos preceitos éticos recomendados.
No caso de compras, são sugeridos critérios Especialmente, realçamos a necessidade de sis-
adicionais: tematizar a entrada de acervos nos museus em
sintonia com sua capacidade de destinar a estas
- Qual sua importância e necessidade no coleções tratamento técnico adequado e estudos
contexto do acervo e da proposta do museu? capazes de garantirem que desenvolvam de fato
- Precisa ser comprada? Estão esgotadas as seu papel social e façam parte das narrativas
possibilidades de doação? e diálogos que o museu proponha, sem fica-
- Está em bom estado de conservação? Foi rem apenas preenchendo as reservas técnicas.
analisada profundamente? Foram estudadas Caberia questionar: todos os museus seguem
as restaurações que possui? essas regras? As recomendações fornecidas pelo
- Esta compra é prioritária em relação a IBRAM assistem e são suficientes para todas as
outros pedidos de compra? instituições existentes?
- O preço é bom? Foi comprado e estudado
devidamente?
- Tem sido feita uma análise equilibrada Considerações finais
de atendimento por área versus
necessidade? (Camargo-Moro 1986: 24). Este artigo discutiu o problema da (falta de)
política de acervos em museus, e a necessidade
de disseminar especialmente entre aqueles os
Como um dos meios mais frequentes de envolvidos com a criação de museus,
aquisição em museus é o recebimento de doa-
ções, vale destacar o que a autora sugere como
questões que indicam a necessidade de estudo “(...) que o problema a ser investigado/
mais profundo, pela Comissão, sobre a oferta: pesquisado seja definido anteriormente à
formação das coleções e que a definição
São oferecidos itens muito volumosos com de espaços ou programa arquitetônico não
mais de 3m² (individualmente ou agrupados), ‘atropele’ estas etapas de definição mais
afetando portanto o espaço do museu? conceitual que devem inclusive orientar
É oferecida uma coleção extensa, excedendo o partido a ser tomado na ocupação de
20 peças ou espécimes, que possa afetar o espaços.” (Duarte Cândido 2013: 203)
perfil do acervo e portanto do museu?
A peça ou espécime representa uma nova
área de coleta para o museu ou para uma de Retiramos “as decisões sobre investigação
suas divisões? e programa de coleções da esfera exclusiva da

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salvaguarda patrimonial, como algo em que tanto Desta forma, realçamos a compreensão
as áreas de salvaguarda e de comunicação como a de que a questão da política de acervos não se
grande área da gestão do museu são chamadas a encerra na relação com os aspectos de gestão
contribuir.” (Duarte Cândido, 2013: 206) Portan- do museu ou de salvaguarda patrimonial
to, “é imprescindível que todas as atividades no (documentação e conservação de acervo), mas
museu ou processo de musealização se pautem impacta todos os seus aspectos, incluindo sua
pela natureza do patrimônio que este processo comunicação com os públicos e o desempe-
está musealizando.” (Duarte Cândido 2013: 161) nho de sua função social.

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Frankensteins: paths to the outlining of museum collections policies. R. Museu
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Abstract: This article aims to discuss the problem of collections policies


in museums - especially with regard to its absence - and point out some me-
thodological approaches to their design and deployment. Thus, we performed
the analysis of the topic in the light of some theorists who treated the subject
as well as the examination of possible problems arising from the absence of a
collection policies.

Keywords: collections policies, museums, collections, planning

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