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Coleções de objetos: memória tangível da cultura material

Conference Paper · July 2014

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Marcus Dohmann
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Coleções de objetos: memória tangível da cultura material
Marcus Dohmann

"Every passion borders on the chaotic, but the collector's passion borders on the chaos of
memories".
Walter Benjamin1

Os objetos e suas histórias

Os objetos ligam mundos emocionais ao espaço mental dos indivíduos, caracterizando-se,


entre funções e simbolismos, como verdadeiros predicados da cultura. Examinar suas
biografias significa realçar facetas culturais antes ignoradas nos objetos. A cultura assegura
que alguns objetos permaneçam resistentes ao processo de mercantilização, mas é o
significado associado à singularidade que funda o valor de heranças culturais nas peças de
coleção.

Do latim colligere — colecionar, escolher e reunir são ações que se distinguem do simples
ato da acumulação. Colecionar objetos significa drenar o seu valor de uso, retirando-os da
sua usual esfera comercial, porém mantendo suas narrativas. O processo de
mercantilização de objetos opera lado a lado com inúmeros códigos de valoração e
distinção. Objetos usados e antigos, portadores de estilos consagrados ou com um design
de destaque podem assumir valores instituídos por uma estética sociológica, tornando-se
altamente colecionáveis. Histórias representativas acerca de suas épocas ou classes podem
provocar a migração de objetos dos seus contextos originais, extraídos do cotidiano, para
tomarem parte numa esfera de artefatos singularmente diferenciada.

Não há regras específicas que determinem o tempo, modo ou mesmo os critérios para que
um objeto seja conceituado como "colecionável". Princípios organizadores do gosto e
memórias afetivas tornam objetos mais atraentes à prática do colecionamento, valorizando a
sua singularidade. A coleção é um tesouro, mas nem todos os tesouros são coleções.

Artefatos de uma coleção não são objetos inertes ou passivos, mas agentes interativos na
vida sociocultural e cognitiva. A significação do artefato reside em ambos, tanto no objeto,
como fato auto-materializado, e em seus padrões comportamentais "gestualmente"
performativos, em relação ao design, espaço, tempo e sociedade. Artefatos simples ajudam
a contar histórias de vida, mas a singularidade do seu design ou estilo são fatores que

1
podem transformar mercadorias ou objetos do cotidiano em símbolos ou sistemas de signos
portadores de ideias e significados com alto poder evocativo.

2
Coleções de objetos . Museum der Dinge, Berlim.

2
O presente texto observa a prática da constituição de coleções de objetos materiais como
memória tangível da cultura material, ao ressaltar sua função sociológica. Para tanto, o
presente ensaio apresenta dois momentos, onde, em primeiro lugar, versa sobre o
entendimento acerca do objeto de coleção, para, em seguida, realizar algumas
considerações sobre este, na qualidade de depositário da memória coletiva e das suas
funções sociais, com desdobramentos culturais, científicos, educacionais e econômicos.

Narrar fatos da trajetória da humanidade, reconstituindo caminhos do processo evolutivo até


as sociedades modernas compreende o cerne da questão para o historiador, para o qual
todo objeto tem uma trajetória, uma biografia cultural a ser analisada. Todo objeto conta
uma história e, para isso, torna-se fundamental estudar os artefatos a partir das suas
interações sociais. Nesse sentido, a trajetória dos objetos introduz uma interessante
questão: a biografia dos indivíduos nos objetos. Por trás de cada objeto há uma trajetória,
quando compartilhada, pode revelar muito sobre histórias pessoais, costumes e tradições.

Entendendo os objetos históricos como instâncias concretas de eventos passados, introduz-


se aqui a questão principal, sobre o artefato e sua memória. O objeto histórico transcende
os limites do objeto biográfico, banhado por um denso caldo de cultura, inserindo-o em
coleções, museus e patrimônios culturais, ao mesmo tempo em que confere a percepção
dos processos sociais que o transformaram nos ícones de ideias e valores assumidos por
grupos e categorias sociais. Esse processo de deslocamento categoriza-se como
colecionação ou colecionamento.

Embora não seja o objetivo deste texto discutir as esferas de colecionamento material,
aponta-se aqui, para efeito de registro, duas tipologias para fins de classificação: os objetos
científicos, constituídos com finalidades de investigação científica; e os objetos pedagógicos,
objetivando o ensino, ao mesmo tempo em que apresentam os princípios da ciência para
um público mais amplo, sob uma perspectiva de interatividade.

Contemplação e uso resumem ações que acompanham as sociedades humanas desde os


tempos pré-históricos, com os seus utensílios para suprir as necessidades do cotidiano e
suas pinturas rupestres para a veneração de suas crenças. A busca pela perenidade através
da reunião de objetos capazes de transcender os limites do tempo e da vida sempre
estimulou os anseios do homem.

Mirabilia (objetos sagrados) e miracula (milagres) faziam parte de uma cultura material, ao
final da Idade Média, com a função de promover a união entre o visível e o invisível, à

3
medida que, objetos dotados de significados específicos, desempenhavam o papel de elo de
ligação entre deuses e homens, através dos mitos e tradições religiosas. Conjuntos de
relíquias eram reunidos em tesouros pela Igreja Católica sob pretextos de razões didáticas e
representações de poder, convertendo objetos materiais em semióforos3 (Pomian, 1999;
Chauí, 2001), para afirmar sua dominação. A evolução do conceito de patrimônio estendeu-
se muito além das finalidades religiosas, às familiares, administrativas e científicas,
demonstrando a forma pela qual as sociedades históricas dialogavam com o seu passado e,
sobretudo construíam a sua memória através da expressão dos objetos destinados à sua
guarda e preservação.

A prática da retirada dos artefatos do tempo presente com intenção de preservá-los para a
eternidade revelava ainda necessidades individualizadas de reescrever não apenas histórias
pessoais, como também coletivas, revolvendo percursos de vida e tempo em função de
atribuir novos significados ao passado, em um criativo processo de construção de memória
e tradição.

Palco do crescimento de um novo tipo de urbanismo de tendência centralizadora e


polarizador do comércio e da burguesia em expansão, o Renascimento apresentou novas
categorias de objetos de coleção, derivadas dos interesses gerados por uma novíssima
concepção cultural: o Humanismo. Baseado em regras que enalteciam o racionalismo e a
cientificidade4, iniciou-se uma incansável busca às fontes da Antiguidade, em atos de
colecionamento que transcenderiam a esfera exclusivista da Igreja e das famílias reais, para
dar lugar a um processo de difusão junto à burguesia, inaugurando o início de uma nova era
na arte de colecionar objetos: as coleções privadas. O enorme esforço em compreender o
mundo sob a nova ótica humanista intensificava e difundia o interesse em colecionar e
organizar objetos. Valores científicos e históricos passaram a integrar os objetivos das
coleções, contribuindo para a formação e educação do homem moderno através dos atos de
contemplação e apreciação de exemplares da cultura material.

Era o início de um novo padrão de colecionamento, onde novas categorias eram


contempladas. Objetos da antiguidade, curiosidades exóticas, naturais ou artificiais, objetos
decorativos e obras de arte formavam, juntamente com os instrumentos científicos, um novo
estatuto de artefatos colecionáveis.

Cada nova geração vindoura iria incorporar novas categorias de objetos em suas coleções,
sem, contudo, abandonar as categorias das gerações anteriores. Esta acumulação de
modelos é uma das características importantes que marcaram o ato do colecionamento

4
privado. Ao final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as coleções iriam
protagonizar a quebra de antigos paradigmas ao fortalecer seus vínculos com os estudos da
cultura material, a partir de ações curatoriais5, que diversificaram e aprofundaram, de modo
a demonstrar, junto aos museus, uma consistente unicidade de valores espirituais,
intelectuais e econômicos, com a maturidade de educar as sociedades e confirmar a sua
legitimidade.

Objetos de coleção

Uma questão básica para a formação de uma coleção refere-se a qual estória deverá ser
contada e que objetos serão necessários para isso. Da mesma forma que cada objeto conta
uma história, também encerra um ou mais significados. A biografia deverá incluir todos os
significados atribuídos ao artefato, ao longo de sua trajetória material e social, bem como
aqueles advindos do diálogo entre os diversos objetos de uma mesma coleção.

Nesse sentido, inúmeras indagações perpassam o objeto, em uma curiosa polifonia. Indaga-
se diversas questões, desde quem criou o objeto; quem o encomendou e para que
finalidade; em que lugar ou situação foi utilizado; e até que valores de mercado poderá ter
assumido ao longo de sua trajetória. São questões fundamentais que precisam ser
respondidas a fim de objetivar e esclarecer a verdadeira "vocação" de um artefato para se
tornar um item colecionável.

Toda coleção requer um esforço de pesquisa em busca dos subsídios necessários que
possam facilitar a compreensão da enorme abrangência e diversidade do seu corpus
material, investigando para tal, as mais diversas culturas, períodos, procedências, materiais,
estilos e técnicas. Os critérios e instrumentos teóricos mostram-se de fundamental
importância para a definição de uma metodologia de trabalho que permita não somente a
catalogação e pesquisa do acervo reunido, como também a elaboração de uma proposta
museológica coerente para a instituição que abrigará a coleção.

A noção de colecionamento como campo de atividades passível de estudos, caracteriza-se


como, além de instigante, relativamente recente. Analisados sob um viés histórico, os
estudos sobre coleções se basearam em disciplinas acadêmicas como história, arqueologia,
história da arte e antropologia, levando em conta quase exclusivamente os objetos
considerados pertinentes a cada um desses campos. Com a atenção focalizada, esses
estudos priorizavam apenas determinados objetos ou categorias de objetos, em lugar de se
concentrar no processo do colecionamento em si. Era preciso, no entanto, compreender a

5
importância da concepção da coleção de objetos materiais como um todo maior do que a
soma das partes.

Os primeiros estudos centrados na prática do colecionamento tiveram início com Maurice


Rheims6, em 1959, quando foi traçado um amplo e inédito panorama histórico sob a
perspectiva do mercado de arte e das relações sociais. Somente ao final da década de
1960, surgiriam abordagens mais significativas sobre o fenômeno, mais exatamente com
Jean Baudrillard, na tentativa de aplicá-lo dentro de um contexto mais abrangente,
integrando conceitos emprestados da sociologia, semiótica e economia. Baudrillard definia o
objeto de coleção como "puro, privado de função ou abstraído de seu uso, que toma um
estatuto estritamente subjetivo: torna-se objeto de coleção", distinguindo-o, assim, clara e
definitivamente de uma mera acumulação.

Os objetos "sem utilidade", porém dotados de ricos significados seriam posteriormente


denominados de semióforos pelo historiador Krzysztof Pomian que, partindo de seu estudo
sobre colecionamento europeu, entre os séculos XVI e XVIII, focalizado nos gabinetes de
curiosidades, ressaltou tais artefatos como submetidos a uma proteção especial, expostos
ao olhar. Nos anos 1990, pesquisadores norte-americanos e ingleses, envolvidos com
estudos sobre o consumo e colecionamento nas sociedades moderno-contemporâneas,
publicaram interessantes análises sobre a natureza do fenômeno dentro de uma sociedade
de consumo e desenvolveram uma teoria do colecionismo baseada nesses novos conceitos.

Ao conceber o colecionamento como um fenômeno complexo que ocorre em meio às


relações com o mundo material, tornava-se igualmente necessário estabelecer múltiplos
aspectos individuais e sociais, simbólicos e econômicos, inerentes ao fenômeno. O
colecionamento é um processo criativo que consiste na busca e posse de objetos reunidos
de forma seletiva e apaixonada, na qual cada unidade tem destacado o seu uso ordinário
concebido como parte de um conjunto dotado de significados a ele atribuídos pela
sociedade em determinado contexto cultural. Essa definição ressalta a prática do
colecionamento como um processo evolutivo, uma atividade que se desenvolve ao longo de
um tempo, através de um impulso ou paixão, embora acredita-se que, no caso das coleções
privadas, muitos objetos ainda preservem sua função de uso e sua função simbólica
simultaneamente.

Os significados atribuídos aos objetos de coleção apresentam-se como um híbrido, por um


lado formados por elementos psicológicos e individuais, e por outro, de elementos históricos
e culturais, superpostos em múltiplas camadas, pois além dos seus significados individuais

6
há outros provenientes do diálogo entre as peças da coleção, da forma e local onde serão
expostos, além do significado da coleção na sua totalidade. Cada coleção se insere em um
contexto específico, como resultado de uma tradição social que determina o seu valor e
importância, tornando-a uma expressão de poder e inserção social.

Um objeto pode tornar-se desejável para o colecionador por vários motivos: na medida que
o seu meio social assim o determine; mediante a presença em exposições; através da
veiculação na imprensa, ou mesmo pelo fato de outras obras do artista que o criou
ingressarem em acervos de museus ou mesmo pela publicação em literatura especializada.
O valor e o prestígio de uma coleção derivam, portanto, dos significados atribuídos pelo
colecionador e por seu grupo social. O colecionamento traduz aspectos de dominação
cultural e econômica, devido à disponibilidade financeira e de tempo livre para sua
realização, além de requerer um amplo e profundo conhecimento sobre a natureza das
peças. Trata-se de um lugar mental, um lugar da memória, do imaginário pessoal onde os
objetos perdem a sua hierarquia e sua dicotomia, estabelecendo um novo diálogo sempre
inaugurando uma nova construção.

A coleção deverá ser, antes de mais nada, abordada como um processo criativo, por tratar-
se de uma reunião de fragmentos esparsos constituídos a partir de trajetórias não lineares,
conforme afirmação de Roger Cardinal:

"Qualquer que seja a coleção, sua verdadeira história nunca é linear; sua
narrativa é sempre resultado tanto do desígnio quanto do acidente, da
abrangência e da lacuna, permanência e não-permanência, única e
redundante; e nela o significado profundo é muitas vezes forçado a
coexistir com o banal."7

Mesmo o objeto mais mundano oferecerá camadas de associações e significados a serem


reveladas. Conforme Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton (1981), o objeto mais simples
torna-se parte de nossas histórias de vida, pois os objetos com os quais nos cercamos são
"inseparáveis de quem somos" e estão "conosco intimamente relacionados". Interagir com
esses objetos torna-se essencial para compreender a sua função e seu papel. A maneira
como um objeto é usado, como é movido e sua própria sobrevivência, são indicações de
valor e significado. Objetos estão intimamente ligados com a nossa história de vida e são
um meio através do qual a identidade é forjada e expressa8.

7
Objetos e coleções, sejam particulares ou em museus, representam uma forma de biografia
material. O mundo material resiste e muitas vezes sobrevive aos seus autores, servindo
como monumento ao esforço de sua criação. As evidências materiais permitiram que novas
interpretações do passado pudessem ser reconstruídas. A propriedade dos objetos
proporcionou a alguns artefatos, um lugar especial como símbolos do passado, pela
natureza física dos objetos materiais que impuseram marcas específicas à memória coletiva.

Memória e cultura material

Nas culturas ocidentais, grande parte da história é marcada pelos objetos que os indivíduos
criaram, no desenvolvimento de suas culturas materiais. Do Paleolítico ao Neolítico, das
pedras brutas às pedras lascadas, ao cozimento do barro, passando, em seguida, pelas
Eras do Bronze e do Ferro, com a definição de culturas que travaram seus primeiros
contatos com a moldagem em metal e, mais tarde, com os processos de exploração material
para propósitos de produção, da Revolução Industrial à Era Atômica, o ser humano tem
demonstrado nesta perspectiva, ao longo de sua trajetória, a marcante característica de
fazer e usar objetos. São objetos que incorporam objetivos, requerem habilidades e moldam
as identidades de seus usuários. Nesse sentido, o homem marcou a sua presença não
somente como homo sapiens, homo ludens, mas também, principalmente, como homo
faber, como criador e usuário de artefatos. Memórias passadas, experiências presentes e
sonhos futuros, individuais e coletivos, ao longo da História, estão, portanto,
inextricavelmente ligados a uma vasta cultura material que compreende seus espaços e
ambientes.

A construção da memória em museus empreende processos e técnicas como a guarda,


pesquisa, documentação e classificação dos objetos expostos, com a função de estabelecer
canais de comunicação, diretos ou indiretos, entre os conhecimentos científicos e a
sociedade. Os museus, na qualidade de espaços legítimos da memória social, estabelecem,
através de suas coleções, canais de reflexão cada vez mais significativos para o debate
científico nas esferas acadêmicas, com base nos conhecimentos, saberes e técnicas
legados pelos patrimônios da cultura material.

A nossa linguagem cotidiana está repleta de premissas sobre memória9 e artefatos. Nesse
sentido, o museu figura como a instituição-chave onde esses processos mnemônicos
funcionam e são articulados como valores universais, enquanto constituem o espaço da
memória social. Mais especificamente, o museu, juntamente com outras instituições,
constitui a esfera histórica pública, conforme caracterizado por Eilean Hooper-Greenhill: um

8
espaço sagrado que atua como microcosmo do mundo onde o homem redescobre e
reconstitui a sua identidade fragmentada10. A esfera histórica pública é um momento distinto
da cultura histórica, quando, pela primeira vez, a história descreve um tipo de representação
generalizada capaz de apreender a totalidade da experiência material humana no tempo. O
museu moderno torna-se o espaço da representação material dessa cultura histórica.

A noção da trajetória dos museus pode ser entendida como através de uma leitura
arqueológica, com suas características que vão da preservação de relíquias religiosas aos
gabinetes de curiosidades e suas peças de culturas populares. Nos museus modernos ainda
podem ser encontrados alguns ecos destes primeiros estágios das práticas do
colecionamento, embora as instituições atuais se distingam pela implantação de detalhadas
e rigorosas taxonomias e enquadramentos históricos para a organização dos objetos de
coleção. A história provê as narrativas e informações necessárias para a classificação dos
objetos das culturas materiais que abriga, contribuindo assim para a compreensão do
encadeamento do progresso humano.

Na prática da preservação dos legados materiais, os museus representam um princípio


organizacional para os conteúdos das identidades culturais e dos conhecimentos científicos.
Podemos falar de uma consciência museológica compartilhada que compreende o
significado do colecionamento, da ordenação, representação e preservação das
informações, do modo que os museus fazem — uma sensibilidade mais comum na
modernidade do que em qualquer outra época.

A exposição do objeto museológico apresenta e corporifica o discurso da representação da


memória enquanto informa e afirma ao mesmo tempo ao observador acerca de sua
trajetória e significação material. Fazer parte de uma coleção significa ser valorizado e
relembrado; estar exposto significa ser incorporado à memória dos seus visitantes, dando
mobilidade à experiência museológica, permitindo que o conhecimento seja levado além dos
limites do próprio museu.

Contemplar museus e suas memórias é carregar as múltiplas e imbricadas formas da


experiência material através dos tempos. A prática de preservação em museus determina as
memórias culturais através de objetos materiais representativos, ao selecionar o deverá ser
guardado, lembrado e valorizado, salvando elementos da cultura material das implacáveis
garras do tempo. A articulação entre a Museologia, com seu corpo teórico e de ideias, e a
Museugrafia, com suas técnicas e atividades práticas, possibilitou o acionamento das
memórias de culturas, da natureza e das nações, para diversos coletivos. Segundo Susan

9
Crane (2000), estas memórias, em seguida, tornam-se componentes da identidade para
indivíduos que se sentem ligados a esses objetos materiais11.

A relação entre coleção e memória é essencial na constituição da primeira, que atrelada às


ciências interdisciplinares, responde questões primordiais como o porquê colecionar e suas
construções simbólicas. O estudo dos objetos como patrimônio permite analisar a evolução
das sociedades que o produziram, colocando, nesse sentido, a coleção como um item
importante no estudo das funções sociais da memória e da construção coletiva desta. Como
representações de memória, as coleções trazem em si valores atribuídos por seus
organizadores, que podem ser estendidos e atrelados às construções coletivas, refletindo os
valores das sociedades de um determinado período histórico.

Podemos analisar as coleções como uma ação de recontextualização, na medida em que, o


processo de escolha e apropriação dos objetos a partir de seus contextos de origem implica
em uma manipulação de tempos e espaços diferenciados, proporcionando um arranjo
arbitrário que reconstrói o próprio mundo, ou mesmo, recortes específicos dele. Cabe
ressaltar que o objeto musealizado, como parte integrante de uma coleção científica, tem
uma trajetória pregressa, uma "vida anterior" à sua patrimonialização, tendo sido, portanto,
alvo de um processo de resignificação em relação ao seu contexto original, do qual muitas
vezes é esvaziado, restando apenas a fisicalidade pura do artefato. A intenção de colecionar
objetos com finalidade de reconstruir uma espécie de microcosmo do mundo é
representativa dos processos sociais, históricos e culturais que marcaram os primórdios da
Modernidade ocidental, embora ainda se encontre presente nos dias de hoje.

Algumas considerações gerais

O emprego da razão visando um controle cognitivo e instrumental do mundo objetivo


possibilitou o surgimento de diferentes formas de percepção do “real”, onde tais
perspectivas deram origem às primeiras coleções de caráter científico, chegando a nós,
hoje, na forma de coleções museológicas que destacam a memória coletiva como um
fenômeno construído e seletivo, onde será determinado o que deverá ser preservado ou
esquecido. No âmbito institucional, a escolha dos conteúdos simbólicos está fortemente
vinculada aos critérios para seleção e preservação do patrimônio cultural, através da
contundente visibilidade exposta pela produção material humana, que, complementada com
inúmeros fatores invisíveis, sensoriais e valorativos, estabelecem o valor cultural e histórico
como objeto de escolhas políticas para produção de significados identitários e de
diferenciação étnica.

10
Segundo Krzysztof Pomian12 (1986), a tangibilidade da memória nas coleções abarca toda e
qualquer coletividade humana, desde as sociedades primitivas, complexas e tradicionais. Os
conjuntos de objetos materiais expostos ao olhar integram sistemas de trocas sociais e
simbólicas tanto entre categorias sociais como em categorias cosmológicas, realizando a
mediação dos indivíduos com o mundo "invisível" dos mitos e narrativas, ressaltando sua
função sociológica. Conforme alerta Pomian, é preciso explicitar o modo como a sociedade
em questão trata a fronteira entre o visível e o invisível. A partir daí, é possível compreender
o que é significante para uma dada sociedade, quais os objetos que privilegia e quais são os
comportamentos que estes artefatos impõem aos seus colecionadores13, ao mesmo tempo
em que ressalta os laços de cumplicidade e dependência entre as coleções museológicas e
os estudos da cultura material.

A memória cultural se tornou um tema tanto da História, como também dos Estudos
Culturais. Estes enfatizam o processo de memória cultural, suas implicações e objetos,
respectivamente, deixando claro que a memória é um fenômeno que está diretamente
relacionado com o presente, pois a percepção do passado é sempre influenciada pelo
presente, o que significa que está sempre proporcionando novas interpretações.

Em conclusão, temos que perceber que, como sociedade, temos de passar para as
gerações futuras nossas heranças culturais e, como propósito de conservação, temos a
responsabilidade de preservar o tangível como evidência, além de lembrar e salvaguardar o
intangível de ser esquecido por abordagens científicas inter ou transdisciplinares, lembrando
que a memória social é a identidade, pela qual, individual e coletivamente, nos definimos
através da ordenação de nosso passado.

11
Notas


Marcus Dohmann é graduado em Desenho Industrial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com
Mestrado em História da Arte e Doutorado em Artes Visuais. Tem Pós-Doutorado no campo de Estudos
Culturais, pelo Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Professor Associado e fundador/coordenador do Laboratório do Núcleo Gráfico de Comunicação
Visual (LabGraf), atua como docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e
do Bacharelado em Comunicação Visual | Design da EBA/UFRJ, desde 1984. Atualmente ocupa o cargo de
Coordenador do Curso de Comunicação Visual | Design e é membro titular/presidente do NDE. Consultor para
design da Incubadora de Empresas da COPPE/UFRJ e do Parque Tecnológico da UFRJ, acumula experiência
na área de Ciências Sociais Aplicadas, com ênfase em Desenho Industrial e foco de pesquisa em Cultura
Material. Líder do Grupo de Pesquisa do Núcleo de Estudos do Objeto – NEO, junto ao CNPq, certificado pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avaliador para reconhecimento de cursos de graduação na área de
Design, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira — INEP. Autor e
organizador do livro “A experiência material: a cultura do objeto”, lançado em 2013, pela editora Rio Books. O
presente texto encontra-se in CAVALCANTI, A; MALTA, M e PEREIRA, S.G. (Org.) Coleções de Arte: formação,
exibição e ensino. Rio de Janeiro: Rio Books, 2015, págs. 81-92.
1
BENJAMIN, Walter. Unpacking my library. A talk about book collecting in Illuminations: essays and reflections.
Hannah Arendt (ed.) trans. Harry Zohn, Fontana/Collins, New York, 1973, pág. 60.
2
Objetos em montagem realizada pelo autor. Fonte: www.museumderdinge.de/pflegschaften. Acesso em agosto
de 2014.
3
Termo utilizado pela autora Marilena Chauí (2001) em seu texto, Nação como semióforo. De origem grega,
descreve algo fecundo que pode simbolizar um fato, um objeto, um indivíduo, enfim, remeter a vários sentidos,
capazes de produzir outros; em uma comunicação não visível. Trata-se de um signo valorizado de forma
exclusiva pelo seu significado simbólico, desprendido de sua significação material inicial, em uma representação
não tangível que poderá promover variadas conotações. CHAUÍ, Marilena S. Nação como semióforo In Mito
Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Fund. Perseu Abramo, 2001. Sobre isso ver também POMIAN, K.
História cultural, história de los semióforos: para una historia cultural. Rioux, Jean-Pierre y Jean François Sirinelli,
coords. México. Ed. Taurus, 1999.
4
Com suas origens no período renascentista, a ciência moderna teve seu principal impulso pela chamada
revolução galileana, que tinha sua base teórica e conceitual no pensamento de Nicolau Copérnico acerca do
sistema cósmico. (Nota do autor).
5
BRUNO, Maria C. O. Estudos de cultura material e coleções museológicas: avanços, retrocessos e desafios, In
GRANATO, M.; RANGEL, M. (Org.) Cultura material e patrimônio da ciência e tecnologia. Rio de Janeiro, 2009,
pág. 20.
6
RHEIMS, Maurice. The Strange Life of Objects: 35 Centuries of Art Collecting and Collectors. New York:
Atheneum, 1961.
7
CARDINAL, Roger. The cultures of collecting. London: Reaktion Books Ltd., 1997. pág. 70.
8
CSIKSZENTMIHALYI, M.; ROCHBERG-HALTON, E. The meaning of things: domestic symbols and the self.
New York: Cambridge University Press, 1981, pág. 16.
9
O conceito de memória adotado neste texto nada tem a ver com o que trata da memória como algo subjetivo e
individual – vertente que encontra em Henri Bergson seu maior representante – e, sim, com o que considera a
memória uma construção eminentemente coletiva. (Nota do autor).
10
HEALY, Christopher. Histories and collecting: museums, objects and memories. Chapter 2. pág. 37. In Memory
and history in twentieth-century Australia. Oxford University Press, Melbourne, 1994.
11
Crane, Susan. Museums and memory. Stanford: Stanford University Press, 2000. págs. 3-4.
12
POMIAN, Krzysztof. Colecção in Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Memória-História. Lisboa. Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1986, pág. 51-86.
13
GONÇALVES, S. José Reginaldo. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Col. Memória e
cidadania, Rio de Janeiro, 2007, págs. 43-62.

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