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O conceito de patrimônio, perspectivas e contradições.

Uhelinton Fonseca Viana


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Núcleo de Pesquisa em Patrimônio e Memória NUPAM

I - Considerações iniciais

O que o pretendemos trazer para a discussão com o presente artigo são as


diferentes abordagens sobre conceito de patrimônio, mesmo que de forma não
abrangente, mas que consigam mostrar a partir de diferentes percepções do patrimônio o
quanto o mesmo conceito é marcado por contradições. Neste âmbito, o que não podemos
negar é quanto os bens culturais são mais que um campo tensão e disputa, mas, também,
em terreno de contradições. Portanto, o patrimônio ora surge um instrumento libertador,
ora aparece servindo como ferramenta de dominação. Esta reflexão contribuir em
percebe, os bens culturais, também chamados patrimônios culturais, não estão longe da
luta entre as classes1.

Acredito que a primeira forma de fazer uma análise dos bens culturais é
reconhecer que são produto da cultura, portanto instrumento mediador 2 das relações
humanas e produto do trabalho3 humano. Pensar a existência dos bens culturais a partir
do conceito de trabalho na perspectiva do materialismo histórico pode ser um caminho
para abandonar de vez qualquer neutralidade de sua existência. Nesta abordagem os bens
culturais e suas narrativas possuem interesses econômicos, políticos, sociais e de classe,

1
Para Marx as classes seriam a trabalhadora, quem produz a riqueza, e a burguesia, que é detentora dos
meios de produção. Ambos em permanente conflito.
2
O conceito de mediação é no sentido de Vygotsky, coloca que os sujeitos se relacionam com o mundo
de forma mediada a e nunca de forma direta. A mediação acontece pela linguagem e pelos instrumentos,
ou seja, pelas produções culturais
3
Em Marx e Engel, o conceito de trabalho é definido por toda a produção cultural humana, desde a
produção de objetos e dos códigos culturais. O trabalho acontece na sua forma livre a alienada,
dependendo de como se relaciona com os sujeitos na sociedade.

1
assim como com outras produções culturais possuem escolhas a favor e contra no âmbito
das classes sociais.

Quando pensamos no patrimônio, inexoravelmente, pode nos vir à mente as


referências de belo, valor histórico e estético, preservação e a necessidade da transmissão
dos valores simbólicos e narrativas. Assim como a educação, com escolas e
universidades, e as mídias, como a televisão, filmes e jornais, os bens culturais tem a
função de transmitir. Em outras palavras, a educação, os meios de comunicação e o
patrimônio possuem, cada um com sua mediação própria, interpretações da realidade que
não abandonam os interesses dos sujeitos.

Evocar o conceito de classes sociais, que é um conceito usado por Marx e Engel,
não significa uma abordagem econômica na análise, mas compreender que o patrimônio4
é criação humana e produto do trabalho. Neste sentido, se configura um meio e não um
fim, assim como, inerente as questões sociais de luta de classe e dominação. Por ser uma
construção social humana e histórica, os bens culturais estão atuando na totalidade da
sociedade e qual tem seu papel, a questão é se atua como uma forma de construção livre5
pelos sujeitos ou se servem como instrumentos apenas de reprodução e manutenção da
sociedade a qual está inserido.

A partir desta reflexão podemos observar que todas as categorias até aqui
mencionadas e a totalidade social são categorias elaboradas pelos homens e não são
produtos da natureza, portanto, com finalidades próprias e funções determinantes na
sociedade. Neste sentido, pensar o capitalismo enquanto organização social específica
que interfere nessa totalidade é uma questão incontornável. É possível refletir, também,
que o patrimônio além de não ser uma categoria da natureza possui concretude, pois sua
transmissão reverbera na ação dos sujeitos sociais. Por esse caminho os chamados bens
culturais, também, não estão alheios as forças políticas e econômicas do sistema vigente,
isso nos leva a refletir que a nossa cultura e a vida se reproduzem nos parâmetros de uma

4
Estou falando de patrimônio como produção cultural do homem, portanto, fruto do trabalho.
5
Invenção e reinvenção pelas memorias e experiências sociais e coletivas.

2
sociedade específica, em que o patrimônio cultural é permeado por todas as condições e
contradições dessa sociedade. Portanto, os bens culturais são uma entre tantas
engrenagens da sociedade, que possui uma funções e determinações especificas.

II) O patrimônio semântica e política

Para problematizar os bens culturais é importante perguntar: o que é o patrimônio?


O conceito de patrimônio é polissêmico e plural, o mesmo é abordado de diferentes
maneiras, dependendo do autor e do momento histórico. A questão a ser observada é sua
importância e função social bem como seus efeitos na sociedade. O que podemos observar
é que o conceito de patrimônio pode ser muitas vezes associado a ideia de propriedade
privada, poder e prestígio, que ao longo da história reflete a sociedade. O hábito
colecionista é tão antigo quanto o homem. Segundo Suano (1986), o Romanos, por
exemplo, eram grandes colecionadores e todas as regiões ocupadas por eles, eram
pilhadas pelos soldados e seus objetos de valor recolhidos. Estes objetos serviam para
decorar palácios de imperadores, generais e familiares, e para formar coleções que
funcionavam como reserva econômica. Isso em tempos de guerra, mas em tempos de paz
representava o poder e prestígio social. Segundo a mesma autora, o colecionismo e a
acumulação é o começo da formação de patrimônios, que se desdobrou ao longo da
história e foram importantes para o surgimento dos museus e suas coleções.

O conceito de patrimônio teve um processo de modificação estrutural ao longo da


história, e muitos autores discutem esse conceito devido a sua polissemia. Segundo
Gonçalves (2002), a palavra patrimônio vem do latim “patrimonium”, que se associa a
ideia de propriedade herdada do pai ou ancestral. A ideia de Patriarcal remete a uma
sociedade baseada no domínio centralizado no homem. Para o mesmo autor, a palavra
patrimônio, também, está entre as mais usadas em nosso cotidiano, pois falamos em
patrimônio econômico e financeiro, patrimônio de empresas, de um país, em uma família
e de indivíduos. Estes seriam os sentidos do patrimônio no cotidiano, no entanto, o
“conceito de patrimônio cultural”, em linhas gerais, se refere a bens materiais e imateriais
de valor simbólico. O conceito moderno de patrimônio, em geral, pode se associar a

3
prédios, artes, monumentos históricos, relíquias, documentos e manifestações culturais e
artísticas. A ideia de coleção, propriedade e de bens culturais parece ser as vezes
misturadas, mas cada uma possui sua função social que conflui com a necessidade de
transmissão. Até mesmo os bens culturais passados dentro de uma família demandam a
transmissão do saber.

A ideia de coleção pode nos remeter, desde a antiguidade até os dias de hoje, para
uma formação de patrimônios por sujeitos, pois qualquer ser humano exerce atividade
com objetos, cujo função é um processo de subjetivação dos objetos, no qual se
atravessam relações de memória e afeto. Quem nunca teve uma coleção de objetos ou já
guardou algum objeto em que possuía uma relação afetiva de memória? Acredito que essa
forma de relação entre memórias e objetos pode ser a maneira mais livre e construtiva na
construção dos bens culturais, no entanto, essa construção acontece no âmbito “micro”
da esfera social. As vezes se ligam entre sujeitos, mas sua feição é o que Jeudy (1990)
chama de memorias “difusas” e “disformes” 6 , considerando que se trata de relações
pessoais e seria complicado formar uma unidade de sentidos. Surge como um exercício
de narrar dos sujeitos a partir da vida, tendo como mediação os objetos, em outras
palavras, o exercício da transmissão das experiências 7 no sentido Benjaminiano da
palavra. Em contraponto a esta concepção de memória e patrimônio cultural temos a
orientação conceitual dos bens culturais na esfera das instituições culturais, que seguem
o ordenamento jurídico8 próprio. Que se apropria do cotidiano e o transforma em bens
culturais legitimados pelo Estado, mesmo que no cotidiano os sentidos sejam
diferenciados ou nem façam mais sentido. As instituições passam a orientar a edificação
de bens culturais determinados, frente a complexidade dos próprios bens culturais
construídos no cotidiano.

III – Patrimônio e o Estado

6
São difusas e disformes por não possuírem uma noção de centralidade e permanência no sentido
atribuído.
7
Conceito de experiência de Walter Benjamin, coloca, em linhas gerais, que as experiências surgem na
vida e nas narrativas dos sujeitos.
8
O termo Ordenamento Jurídico faz menção a um conjunto de leis, deste caso a Constituição Federal e
as leis que regem a preservação dos bens culturais.

4
Diante da análise das leis é possível pensar que existe uma institucionalização do
conceito de patrimônio, em que as mesmas diretrizes definem a ideia de patrimônio para
orientar suas formas de atuação social e de preservação dos bens culturais. No Brasil
temos políticas de preservação do patrimônio cultural, que são organizadas em níveis
federais, estaduais e municipais, em que se define o que é o patrimônio cultura a ser
preservado. A Constituição Federal de 1988, que é a lei maior no país, define o conceito
de patrimônio cultural e garante o seu acesso e difusão. O “artigo 216” define que:

“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (Brasil 1988)
Esse artigo define as formas de expressão do patrimônio em sua natureza material
e imaterial. As obras, objetos, documentos, edificações, conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico, bem como os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e
tecnológicas.

Na esfera federal temos o Instituto Brasileiro do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional – IPHAN, que criou diretrizes do patrimônio Cultural. As políticas de
preservação brasileira definem o patrimônio entre bens materiais e imateriais. Os bens de
natureza material são divididos entre bens móveis (objetos) e imóveis (construções e
espaços). O decreto-lei n° 25 de 30 de novembro de 1937 organiza e protege os bens
materiais pelo “tombamento”, e os define em quatro livros: Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo
das Belas Artes e; Livro do Tombo das Artes Aplicadas. Entre os “bens tangíveis” são
citadas as construções arquitetônicas, sítios paisagísticos, museus, acervos museológicos,
arquivos, documentos, fotografias entre outros. Os bens materiais podem ser encontrados
em acervos pessoais, pois sua característica ocorre pelo seu significado simbólico
atribuído.

Os bens culturais de natureza imaterial, os chamados bens intangíveis, são


definidos pelo decreto nº 3551 de 4 agosto de 2000. O efeito de sua proteção é o “registro”

5
das manifestações culturais, que são classificadas em quatro livros: Livro de Registro dos
Saberes; Livro de Registro das Celebrações; Livro de Registro das Formas de Expressão
e; Livro de Registro dos Lugares. As instituições de preservação em diferentes esferas
públicas orientam legalmente as diretrizes do patrimônio em que classificam o seu perfil.
Os bens imateriais estariam relacionados aos saberes, habilidades, crenças, práticas e o
modo de ser dos grupos. Entre estes podemos citar as manifestações culturais, cênicas,
rituais e festas que marcar as características dos grupos, além de mercados, feiras e
lugares de memórias.

Acredito que esta separação entre bens “imateriais” e “materiais” foi uma forma
que o IPHAN encontrou para conceituar o patrimônio e possibilitar sua classificação. No
entanto, parece evidente a atuação desse ordenamento jurídico na definição do que venha
a ser bens culturais e a sua função no tange a educação e a preservação dos valores, pois
a questão da formação de valores e as referências aparecem como questões centrais.
Assim, os bens culturais assumem papel estratégico no âmbito do Estado para preservar
e transmitir valores, bem como outras instituições como educação escolar e as
universidades. Se o patrimônio tem uma função de preservar e educar, seu papel é
fundamental na formação das consciências ou na própria alienação de uma nação.

Jeudy (1990) problematizam a questão do conceito de patrimônio cultural, critica


a ideia de patrimônio que frequentemente se associa a monumentalização. O mesmo
coloca que o conceito de patrimônio cultural está associado a ideia de memória e não
deveria estar reduzido ao monumento histórico. Para o mesmo, o patrimônio não seria um
depósito das memórias, pois se o reduzir-se a isso, o mesmo seria obstáculo para
movimento das memórias, que não se reduzem a ideia de monumento, que é mais voltada
para a história oficial. O autor coloca que quando os patrimônios estão ligados as
memórias, seu sentido e significado se renovam, como impulsos que darão origem ao
patrimônio. O monumento seria a reprodução de valores estabelecidos pela história,
diferentemente do patrimônio, que está em permanente movimento com a memória,
consequentemente ligado as relações.

“Reina certa confusão entre “monumentos” e “patrimônios”. A


positividade e a ausência de equívocos do monumento não esgotam a

6
ambiguidade da noção de patrimônio. Pois todo interrogação atual
acerca do sentido do patrimônio não se escreve na perspectiva
exclusiva da monumentalidade. Ao contrário ela busca uma nova via
para traduzir uma valorização das memórias coletivas” .(Jeudy,
1990,p.6)
Para Jeudy (1990), os monumentos, muitas vezes associada narrativa oficial, não
dariam conta da complexidade das memórias individuais e coletivas. Tal crítica é
justificada por ele devido aos monumentos históricos estarem associados a “uma” entre
tantas interpretações. Por este caminho, o patrimônio não se esgota no conceito de
monumento, mas busca uma nova via para traduzir a valorização das memórias coletivas,
que possuem uma forma de apreensão mais complexa. Diferentemente da ideia de
monumento que busca estocar e armazenar e transferir conceitos, o patrimônio precisa de
apropriação dos sujeitos, pois é um mediador das memórias e não um fim. Nesse sentido,
o patrimônio se torna uma conquista social, de permanente e estreita relação com os
sujeitos e as subjetividades culturais. A crítica do autor nos faz refletir que muitas vezes
patrimônio e monumento surgem como sinônimos, naturalizando a história oficial como
narrativa universal.

A partir desta perspectiva, o conceito de patrimônio não se reduz a bens materiais.


O que atribui sentido ao patrimônio não se reduz a sua materialidade, pois o mesmo
pressupõe que o sujeito que vai atribuir sentido, portanto, o conceito de patrimônio se
estabelece na relação e não somente materialidade e imaterialidade dos bens culturais,
mas na mediação que os sujeitos realizam. O patrimônio é uma apropriação social, que
se constitui em relação, por isso definir patrimônio é necessário perguntar: para quem é
patrimônio? Por conta disso, o patrimônio, também, não é um “fim em si”, porque como
se constitui “na relação” e em relação o mesmo se torna meio, ou seja, um objeto em que
os sujeitos mediam memórias e, consequentemente, sua relação de “uso”, de sentido e
significado no mundo.

Para Jeudy (2005) o patrimônio é meio, portanto, se constitui pelo desejo de


transmissão e de recepção de determinado sentido e significado das coisas, em que sua
função é movimentar e passar de geração a geração determinados valores, conceitos e
padrões culturais, tendo como “suporte” os bens culturais. Caso esse processo seja

7
anulado, não há desenho de um patrimônio, pois não acontece o processo de apropriação
de significado e sentido. O patrimônio enquanto mediação e transmissão é fonte de
narrativas individuais e coletivas, no entanto, esse processo pode acontecer de forma
apropriada pelo Estado e as instituições de preservação, que podem atuar como
irradiadores de determinada ordem narrativa e a própria produção de bens a serem dignos
de preservação. Neste sentido, os mesmo podem deixar de ser “meio” e ser “fim” com
uma política de preservação sem atenção ao patrimônio enquanto apropriação dos
sujeitos; ou quando passam a ser determinadores dos valores e serem preservados em
detrimento de outros. Desta forma, se faz necessário perceber que o patrimônio em quanto
“fim”, pode ser um discurso legitimador e reprodutor de uma lógica específica de
sociedade. As narrativas destes bens podem operar na naturalização, no ocultamento e na
pretensa universalização de valores, atuando na distorção da sociedade como ela é.

Os museus e as exposições trabalham no campo do discurso e das narrativas, da


mesma forma, o que é apropriado como patrimônio cultural traz consigo narrativa,
construídas historicamente e culturalmente, sobretudo com interesses específicos.
Tomemos como exemplo hipotético a existência de uma coleção com objetos
pertencentes ao Luiz Alves de Lima e Silva no Museu do Duque de Caxias 9 em um
Museu. Podemos fazer diferentes exposições. É possível usar esse conjunto de objetos
para colocá-lo como um herói da nação e vencedor de grandes batalhas e o militar
exemplar a ser seguido. Por outro caminho, podemos retratá-lo como filho de uma elite
militar, que era latifundiária e escravocrata, em que colaborou de forma negativa
defendendo a classe dominante e sufocando revoltas em todo país. O que estou querendo
dizer é que os objetos nos museus e o patrimônio possuem uma linguagem das coisas que
lhes é própria, portanto, esse patrimônio se torna um espaço de interesses que orientam
determinado discurso. Desta forma, não estou afirmando que os objetos “falam por si”,
mas que os atores e os dirigentes que administram as instituições e as coleções são um
fator importante, já que essa linguagem dos objetos tem um caráter legitimador das

9
Museu Localizado no Município de Duque de Caxias no Rio de Janeiro, que tem como missão preservar
a memória da Fazenda que Nasceu o patrono da cidade. Duque de Caxias é um personagem que é o
Patrono do Exército Brasileiro e da cidade do Rio de Janeiro que leva seu nome.

8
narrativas nas instituições de preservação. No mesmo sentido, não estou afirmando que o
processo de significação dos bens culturais não possa ser reinventado nas instituições,
mas que a narrativa e a legitimação dos bens específicos pode ser um fator que
determinante no processo de transmissão de valores particulares.

“Como campo discursivo, o museu é produzido a semelhança de um


texto por narradores específicos que lhe conferem significados
histórico-sociais diferentes. Esses textos narrativos pressupõem
conteúdos interpretativos. Assim, o museu é também um centro
produtor de significações sobre temas de amplitude global, nacional,
regional ou local. Mas a elaboração desse texto não é pacífica - ela
envolve disputas, pendengas, o que explicita o seu caráter de arena
política. As instituições museais têm a vida que é dada pelos que nela,
por ela e dela vivem. Interessa, portanto, saber por quê, por quem e
para quem os textos narrativos são construídos; quem, como, o que e
por que interpreta; quem participa e o que está em causa nas
pendengas museais”. (Chagas, 2009, p. 61)
Como coloca Chagas acima, o caráter político e discursivo é um elemento
fundamental para entender o conceito que o autor traz de “imaginação museal”, pois,
nesta perspectiva, os museus não se limitam a tridimensionalidade dos objetos com
comprimento, largura e profundidade. As instituições museus também demandam as
dimensões de tempo, história e memória; dimensões de poder; dimensões estéticas;
dimensões de saber e conhecimento; e a dimensão lúdicas. A dilatação das práticas de
museais desde a Declaração de Santiago no Chile (1972) e a Declaração de Quebec (1984)
com “Nova Museologia” permitiu uma perspectiva progressista nos museus, mas estas
instituições ainda são carregadas como estruturas de poder, narrativa, educativa e espaço
de disputa. No mesmo sentido, podemos pensar as instituições de preservação, que são
marcadas pelos interesses que reverberam na constituição dos bens culturais.

IV – Patrimônio e mercado

Para Jeudy (2005) o patrimônio, suas formas de reprodução e o papel da


transmissão confirmam aos bens culturais uma função especifica nas instituições, acredito
que mais, o patrimônio possui uma racionalidade própria. O autor usa o termo
“maquinaria”, o qual acredito que movimentaria essa razão dos bens culturais. Essa
discussão colabora por iluminar como operam os bens culturais, nas suas contradições,

9
tensões e conflitos no âmbito social. Essa crítica é explicitada pelo autor na
contemporaneidade, observando as cidades “patrimônializada 10 ”, que se reduziriam a
lógica da reprodução e do entretenimento. Nesta perspectiva, o que surge é o turismo
internacional e o processo de “museificação” das cidades, que são justificadas pela
preservação as identidades culturais, mas que provocaram a transformação dos bens
culturais em mercadorias11 do exibicionismo para atender as visitações. Como uma forma
de mercantilização e a transformação cidades em objeto de consumo, seguindo a lógica
da sociedade de mercado.

Para Jeudy (2005) essa lógica evoca o princípio da reflexividade, como se as


cidades estivesse a necessidade de “olhar para o próprio espelho” e preservar uma ordem
determinada de sociedade. A função social do patrimônio é ressaltada pelo autor, em que
o enquadramento simbólico e de sentido surge como atribuição dos bens culturais. No
entanto, esse movimento realizado no mundo inteiro provocaria a homogeneização dos
bens culturais, quando transformados em mercadoria, promovendo a saturação e a
determinação da memória.

“Se o risco do esquecimento engendra a culpa e legítima os projetos


de revisitação da história, a conservação patrimonial nos dá como
compensação e nostalgia. Mas o gozo da nostalgia se transforma
depressa em morbidez. A repulsão inspirada pela exibição dos vestígios
conservados, da sua teatralização excessivamente despropositada,
pode da mesma maneira engendrar o ódio ao patrimônio. E somos
tomados por ele quando o excesso de conservação, o poder Infernal
das raízes anulam a vida presente, destituindo-a de seus encantos(...).
Este jogo Infernal da memória é controlado pela ordem patrimonial,
que o solidifica ao lhe impor um sentido de espetáculo. O prazer da
restituição “viva” nos faz viver como “neomortos”, como seres já
mortos que continuam em estado de sobrevida. A exibição patrimonial
imobiliza a própria nostalgia e anula a aventura da transmissão.
Prevalece o princípio da retroatividade perpétua. (...) (Jeudy, 2005,
p.15-16)

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Cidades encenas e movimentadas pelo capitalismo e pelo turismo, com a finalidade de serem
preservadas para o entretenimento. Neste sentido, a preservação é estética e não ao conjunto da
cultura, assim como, a finalidade é a valorização para gerar capital para empresas.
11
Para Marx o conceito de mercadoria é como tudo aquilo que pode ser comprado e vendido, no caso
citado os bens culturais deixaria de assumir seu caráter de valorização da memorias e sujeitos sociais e
estaria servil ao mercado do capital, esvaziando a noção de bens culturais.

10
A crítica de Jeudy (2005) ao patrimônio é no âmbito da construção deste discurso,
que ele denomina de processo de reflexibilidade. A demanda do “mercado” de bens
culturais a imposição da preservação e transmissão das memórias, em que anularia a
possibilidade de esquecimento e o fim de determinadas culturas, em que, por exemplo,
uma cabana de pescador não deve mais desaparecer. O autor evidencia, mesmo sem
interesse direto, atuação do capitalismo sobre os bens culturais, em que a mercantilização
transformaria a cultura e o patrimônio e em produto de consumo, esvaziando o sentido do
patrimônio destas cidades. A reflexividade tornaria homogêneo os bens e forçaria uma
permanente lembrar, quebrando a lógica da “relação”, que é característica do próprio
patrimônio, assim como, das possibilidades de lembrar e esquecer. Acredito que além da
homogeneização dos bens culturais, a maquinaria do patrimônio pode afastar os sujeitos
das suas realidades, com “fuga” para o mundo dos sonhos e da nostalgia, em uma
retroatividade perpetua.

Para o autor, princípio da reflexivilidade força valores simbólicos e os tornam


puramente maquinais em seu o ato de transmitir o valor simbólico, em que pode ser
gerado indefinidamente e reproduzível. A ideia de maquinaria do patrimônio é tomada
como se o mesmo fosse uma ferramenta fria de transmissão, com a finalidade de
transmitir e formar consciência sobre conceitos, padrões e formas de pensar e ser. A ideia
da máquina e da mercantilização são contribuições relevantes, pois permitem ver a
conjuntura do patrimônio, que é capitalista, portanto, o patrimônio não seria mais
apropriação, mas consumo. Seria um objeto que não demandaria a apropriação, que é
possível a qualquer um, mas quem tenha capital.

Essa crítica nos fazer indagar: quem opera a máquina? Todo operador é sujeito,
em que possui interesses, visões de mundo e até classe social. A resposta pode ser o
capital? Aprofundado a questão, os bens culturais operariam, também, na crítica de Jeudy
(2005), operariam como instrumentos de mediação de determinada narrativa, mas uma
reprodução para o consumo. Para o mesmo, na reflexivilidade não há segredos, a
transparência anula a possibilidade de imaginar o que poderia ser e até ocultar a memória.
Em que a criança, por exemplo, se torna um “receptáculo” desse fenômeno, e que a

11
conservação patrimonial garante a certeza de uma ordem de mundo e uma organização
de sentidos. O autor denuncia que essa ordem simbólica é impregnada de arcaísmo, como
se o objeto de transmissão fosse realmente antigo e deslocado da realidade, ao mesmo
tempo, sem estimular a imaginação e se tornando algo trivial, uma mercadoria. Aqui se
ressalta, mais uma vez, um dos artifícios do patrimônio no âmbito da reflexivilidade, o de
tentar estabilizar as narrativas e definir o que será lembrado. Ao mesmo tempo, inserir
nessa atmosfera o medo do “esquecimento”, em que se ressalta o dever cívico de
“rememoração” para a satisfação das massas. Essa preservação e reconstituição do
passado aparece em favor as “identidades” em oposição a globalização, reforçando a
lógica dos bens a serem preservados.

V- Patrimônio e as classes

A partir desta perspectiva a função do patrimônio é de preservar e transmitir, mas,


também, de educar, considerando a transmissão das referências as pessoas de gerações
distintas. Neste sentido, os bens culturais transmitem valores culturais, formas de viver e
pensar, ou seja, padrões que tendem a ser naturalizados, muitas vezes como universais e
legítimos. O patrimônio surge não apenas como a preservação e a transmissão da cultura,
mas no culto a personalidades, a história e a famílias específicas, que surgem como
referências a outras gerações. Desta forma, essa racionalidade é capaz de produzir valor
sobre terminados bens culturais e como consequência formar uma possível estratificação
de grupos ou classes sociais.

A reflexão que podemos fazer é que determinadas narrativas podem gozar de uma
posição privilegiada na educação e na sociedade, em que muitos podem aparecer como
incontestáveis, na mediada os bens culturais surgem como testemunhos e documentos
desta narrativa. O que desejo ressaltar é que os bens culturais são pedagógicos, pois são
capazes de materializar as narrativas por serem testemunhos da mesma, ao mesmo tempo,
que geram valor e valorizam determinada cultura. Portanto, o patrimônio surge como uma
forma de produção de valor. A crítica a está razão “maquinal” do patrimônio pode partir
de algumas perguntas: o que as narrativas do patrimônio transmitem? A quem beneficia?

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Em outras palavras, que ideologias12 orientada o discurso? A contribuição desta reflexão
é de perceber que os bens culturais, quando percebidos nas instituições de preservação,
são engrenagens sociais em funcionamento, que não constituem elementos puramente de
manifestações culturais, mas formadores de consciência.

“(...)Prosseguindo nossa caminhada, vemos erguer-se um edifício


inteiramente reconstituído, bem limpo, bem distinto dos terrenos
vazios, porque parece ocupado. É o museu. Sabemos que, ao entrar
nele, não experimentaremos as mesmas emoções. Aprendemos coisas,
veremos que ali tudo está correto, em ordem, que as máquinas parecem
prontas para funcionar, e que nenhum detalhe escapou à reconstituição
do que foi o local de trabalho. Terminaremos até sabendo ‘como tudo
se passou’. Se nossas imagens eram algumas vezes confusas enquanto
caminhávamos pelos terrenos abandonados, no museu elas recuperam
a aparência de ordem. Como não apreciar a ordem do museu? Ele
preenche bem sua função: é a evocação maquinal do que foi.(...)”
(Jeudy, 2005, p.25)
Segundo Jeudy (2005, 27-29) traz um exemplo para colaborar com esta discussão
com os “novos patrimônios”, que se configuravam na década de 1980 com o
desmoronamento da produção industrial e o declínio do trabalho nas fábricas. Muitas
fábricas tornaram-se patrimônio culturais e as narrativas reduziam os bens preservados a
questão da produção fabril e a estética. As narrativas tenderiam a abolir as atrocidades, a
exclusão e a opressão que aconteciam dentro da fábrica. Quando uma antiga fábrica se
transforma em museu, as memórias se tornaram “excessivamente cor-de-rosa”,
ocultavam as denúncias, ao mesmo tempo que ganhava laços com a comunidade com o
discurso da conservação. Em síntese, a questão indentitária é ressaltada e sobressai a aos
problemas vividos pelos trabalhadores. Entre escolher a preservação das identidades e o
esquecimento completo, os trabalhadores optavam por abortar a luta de classes. Nesse
sentido, as memórias coletivas são lobotomizadas, quando ocultam luta, opressões e a
destruição da vida em detrimento do capital. O patrimônio cultural neste momento
assume seu “lado”, no caso das fábricas, pode surgir como um elemento “neutro” ou sem
a lutas, insurreições, revoltas ou greves.

IV- Considerações

12
Ideologias aqui não é assumida como visão de mundo, mas na perspectiva de Marx, ou seja, como
falsa consciências, engano e visão distorcida da realidade.

13
Em síntese, a questão sobre patrimônio cultural, além do seu conceito polissêmico,
o termo assume algumas formas concretas distintas na sociedade. A partir das reflexões
anteriores, a primeira forma seria o patrimônio enquanto o conceito que se constitui na
relação do sujeito com as coisas, em que os mesmos se apropriam dos objetos enquanto
instrumento de mediação, neste sentido, os sujeitos se apropria das coisas em que não se
possui uma ordem específica. O patrimônio é mediação, criação e reinvesão de sentidos.
O caráter individual e, de alguma forma, coletivo são suas características principais, assim
como, as a necessidade que os sujeitos de se relacionar com o mundo, “usando” os objetos
como elemento das memórias, narrativas e experiências.

A outra forma orientação sobre o conceito de patrimônio é uma ordem


institucional, preservacionista e educativa, que é ligada ao Estado com instituições
organizadas. Neste âmbito, podemos observar orientações sobre o que vem a ser
patrimônio e o que merece ser preservado. Para Marx (2017), o Estado é o burguês da
classe dominante. Essas instituições interpretam o patrimônio, e os bens culturais não
estão livres da ação ideológica, pois podem orientados por interesses de classe que
residem dentro do próprio Estado. Então, os bens culturais específicos dizem respeito,
também, às classes, que podem determinar história oficial, narrativas especificas,
portanto, colaboram em reproduzir todas as condições da classe dominante, fazendo a
manutenção dos referencias de valor e estética desta classe. Se para Marx o Estado é da
classe dominante burguesa, na perspectiva de Walter Benjamin (1996) o patrimônio é
cortejo do triunfo da classe dominante. Acredito que esta segunda via exclui o patrimônio
enquanto relação e o reduz a reprodução na ótica dominante.

A terceira via dos bens culturais aparece na crítica Jeudy (2005), em que a
patrimonialização das cidades estabelece um mercado dos bens culturais, com a
homogeneização e o esvaziamento do sentido pela transformação dos bens em apenas
produto de consumo. A contradição desta abordagem reside em enunciar a preservação,
mas transforma em mercadoria o próprio patrimônio. O patrimônio como mercadoria é a
desconstrução do próprio patrimônio enquanto elemento de significação e produção

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humana, em que o capital tudo devora, pois neste âmbito patrimônio cultural surge como
movimento do próprio capitalismo.

O conceito de patrimônio reverbera de forma concreta na sociedade, seja na


política, na economia ou sociedade. Desta forma, não está descolado da realidade, ao
contrário, ele é parte dela. Pode surgir para educar e sufocar o pensamento crítico, para
ocultar as narrativas que vão contra os interesses de classe dominante ou serem
simplesmente serem alienados ao mercado de consumo. Na contramão, o patrimônio
pode ser um instrumento de mediação do sujeito no mundo, de exaltar pensamento crítico
e as lutas, as experiências presentes no cotidiano. Pode ser um instrumento, como coloca
Benjamin (1996), de “escovar a história a contrapelo” e denunciar os horrores da
econômicas, da pobreza, da miséria e desigualdade social, em outras palavras, uma
ferramenta de lutas.

BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter, Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e


história da cultura – (Obras escolhidas; V. 1), 7. ed, São Paulo: Brasiliense, 1996.

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