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Definições, conceitos, regras e exceções

As normas e os conceitos gramaticais transformados em núcleo para o


aprendizado da língua portuguesa são abordados geralmente de formas diferenciadas
pelos livros didáticos e mesmo pelas próprias gramáticas. Às vezes, eles omitem
alguns fatos, outras vezes, instauram contradições profundas que acabam
comprometendo o ensino e os seus resultados, já que os próprios livros didáticos e as
gramáticas não são muito claros e convictos sobre certas definições, divergindo de
opinião em alguns aspectos estruturais da língua.
Neste sentido, a tentativa de se definir um conceito qualquer, deveria
pressupor um conhecimento dos limites, dos problemas e, evidentemente, do próprio
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conceito de definição, além da determinação inequívoca de outros conceitos (Hauy,


1986, p.6). Este procedimento normalmente não aparece nos livros didáticos e
gramáticas. Acrescente-se a este fato, que tal problema é antigo e já identificado por
vários estudiosos e teóricos da área que observam a necessidade de revisão crítica.
Vejam-se as colocações de Carvalho (1969, p. 217):
"Os compêndios gramaticais continuam ainda a oferecer uma terminologia
obsoleta e errônea... A falta de uma perfeita unidade de pontos de vista nas teorias
propriamente gramaticais, a ausência sobretudo de um tratado de gramática
portuguesa descritiva, completa e em moldes modernos, que sirva de padrão,
explicam em parte o atraso[...] ( 'no ensino das noções e regras gramaticais e na
própria concepção da gramática')"

Como ilustração de que a preocupação é muito antiga, poderíamos reproduzir as


idéias centrais presentes em duas afirmações feitas por Barbosa, constantes em sua
Gramática Filosófica. Salientamos que o aspecto mais interessante das assertivas não
está exclusivamente no conteúdo delas, antes no fato de que a primeira edição de tal
obra data de 1803:
1. as gramáticas são inadequadas, pois baseiam-se em regras e exemplos,
e tantas exceções quantas são as regras;
2. Necessidade de que se estabeleça uma gramática geral, que proponha
os princípios gerais da linguagem para depois aplicá-los às línguas particulares.
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A partir das propostas e motivações de Barbosa, podemos intuir que é


longínqua a tendência de que a preocupação normativa da gramática tradicional
prevaleça sobre a preocupação descritiva, sendo valorizados aqueles aspectos que têm
menor importância, constituindo-se por conta disto um conjunto de definições
conceitos, regras e exceções que só dificultam a apreensão global do fenômeno
lingüístico.
Assim, num emaranhado de definições indefinidas, podemos imaginar que o
pronome lhe seja um dos exemplos de estrutura gramatical, dentre tantos outros,
vulnerável às influências destas indefinições. Estas, por sua vez, criam um estado de
dificuldade tão intenso que, normalmente, aumentam, ainda mais, o abismo entre as
teorias, a realidade lingüística e o aluno.
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2.1
Caracterização básica do pronome lhe

Para verificar e entender de forma mais pontual o que se fala a respeito do lhe,
faremos uma pequena e rápida viagem em torno destas obras que tratam das questões
gramaticais de nossa língua. Para facilitar a identificação e leitura utilizaremos a
legenda a seguir:

Tipo de obras analisadas Legenda


(p/ sing. e plural)

Livros Didáticos (5ª, 6ª e 7ª séries) LD

Gramáticas Pedagógicas (ensino fundamental e médio) GP

Gramáticas Tradicionais ( principalmente Bechara, Cunha, Lima) GT

Como ponto inicial reproduzimos a definição do dicionário de Ferreira (1972)


o qual diz que "o lhe é pronome pessoal." Eqüivale a "A ele, a ela (ou a você, ao
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senhor, a V.S.ª, etc.), nele, nela, etc." Deste modo, o lhe vale por uma pessoa do
discurso, (Neves, 1987, p.197-8), sendo um termo regido por preposição e
pertencente ao segundo grupo de pronomes o qual reúne os pronomes pessoais de
terceira pessoa (Basílio & Castilho, 1996, p-151). Além disto, a maioria das
gramáticas de língua portuguesa entendem o lhe em dois estágios distintos (ou pelo
menos didaticamente distintos): o morfológico e o sintático.
Desta forma, geralmente os LD, GP e GT afirmam que o lhe pertence à
categoria de pronome oblíquo, representando uma pessoa do discurso. No entanto,
como exemplo de divergência teórica, verificamos facilmente que nem todas as GP e
LD são categóricos em afirmar que a função sintática do lhe é objeto indireto e que
ele pode desempenhar, também, a função de complemento nominal ou adjunto
adnominal. Portanto, podemos perceber, inicialmente, que não há uma plena
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congruência de opiniões a respeito da possível função sintática desempenhada pelo


pronome lhe.

2.2
Os Livros didáticos (LD) e as gramáticas pedagógicas (GP):
divergências e questionamentos

Geralmente, das leituras referentes aos assuntos gramaticais de língua


portuguesa em sala de aula, no ensino básico, mais de 80 % dessas leituras acontecem
via LD e GP. O que significa dizer que os alunos tomam conhecimento das estruturas
gramaticais através deste tipo de literatura. Este fato mostra a tentativa de
uniformização do ensino, que poderia ter um aspecto positivo não fosse a quantidade
enorme de LD e GP existentes, os quais são substituídos quase que ano a ano; trazem
posições sobre os elementos gramaticais nem sempre muito claras e, às vezes,
completamente diferentes, ou até opostas, como é o caso do pronome lhe sobre o
qual deteremos nossa atenção, mas que não é, sem dúvida, o único ponto de
divergência entre estas obras. Neste sentido, vejamos o que é dito sobre o lhe, através
das afirmações feitas pelos LD e GP pesquisados.
O lhe aparece na maioria dessas obras no capítulo ou momento em que o
assunto "pronome" ou, mais especificamente, "pronomes pessoais" surge.
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Provavelmente, começam por este ponto, por questões práticas e teóricas óbvias, no
entanto, em vários LD e GP o lhe é meramente citado, ou aparece num "quadro de
pronomes oblíquos", bastante recorrente, visualmente claro, porém, pouco funcional,
por aparecer descontextualizado. Vejamos um exemplo deste quadro (Sarmento,
1995, p.162):

PRONOMES
PRONO- PRONOMES PESSOAIS
MES OBLÍQUOS
PESSOAIS
RETOS
NÚMERO PESSOA FORMAS FORMAS TÔNICAS
ÁTONAS
SINGULAR 1ª Eu Me Mim, comigo
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2ª Tu Te Ti, contigo
3ª Ele, Ela Se, o, a, lhe Si, consigo, ele, ela
PLURAL 1ª Nós Nos Conosco
2ª Vós Vos Convosco
3ª Eles, Elas Se, os, as, lhes Si, consigo, eles , elas

Eis um comentário complementar sobre o quadro: os pronomes pessoais são


representados por três pessoas verbais que podem ser flexionadas no plural. Neste
sentido, preferimos a sugestão de Câmara Jr. (1976, p.107) que propõe que sejam 6
pessoas: P1(1ª do sing.), P2 (2ª sing.), P3 (3ª sing.), P4 (1ª plural), P5 (2ª plural) e P6
(3ª plural).
Quanto à questão do lhe associado ao assunto objeto indireto, observamos que
alguns LD falam sobre os pronomes pessoais oblíquos ao mesmo tempo que os
relacionam com o assunto objeto indireto. Entretanto, estes mesmos LD, quando
apresentam o capítulo sobre objeto indireto, sequer mencionam o pronome lhe.
Não conseguimos perceber qual a vantagem didática deste procedimento,
tendo em vista que não fica transparente a relação estabelecida entre os dois pontos.
Outro ponto interessante é o fato de que só alguns LD falam sobre a
preposição ligada ao lhe. Na verdade, em alguns casos não é possível depreender a
sua existência junto ao lhe, pois em nenhum momento é claramente mencionada.
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Assim, esta "descoberta" fica por conta do professor ou, quem sabe, do próprio aluno.
Tal lacuna causou-nos muita estranheza, pois, afinal, a presença da preposição é
decisiva para que possamos compreender a interação eficiente que o lhe desenvolve
com os termos aos quais se relaciona, assunto de que falaremos um pouco mais no
próximo capítulo.
Ainda sobre a preposição, consideramos válido reproduzir o que está no LD
de Giacomozzi (2001, p.97): "Os pronomes pessoais oblíquos tônicos vêm
acompanhados de preposição. Exemplo: não diga a ela que cheguei." Depois de
vermos afirmações acompanhadas de exemplos como este, fica-nos uma pergunta:
por que a frase não vem com o lhe, mas com "a ela" , se em nenhum momento fez-se
a relação de sinonímia entre estas duas expressões? Ou seja, não é explícita a
equivalência do lhe a "a ela", pois o livro apresenta este fato como um detalhe, como
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um item de uma observação, quando na verdade tal equivalência deveria ser


explicada de forma a permitir a identificação da existência da preposição, conforme
dissemos anteriormente.
Outra questão chamou-nos a atenção neste ponto da pesquisa, pois dos 33
livros didáticos consultados, praticamente não se vê nada a respeito do lhe como
complemento nominal. E das 8 gramáticas normativas tradicionais consultadas,
apenas 50 % trata deste tipo de ocorrência do lhe. Este fato é no mínimo inusitado
diante do perfil prescritivo destas obras que visam a tentar a qualquer custo dar nome
a tudo. Temos a impressão, em alguns momentos, de que o fato lingüístico é
simplesmente omitido porque não tem uma nomenclatura específica. Ou seja, se não
tem nome não ocorre na língua.
Uma outra questão é o fato de esse assunto: lhe como complemento nominal,
ser tratado em capítulos que não dizem respeito ao complemento nominal, mas num
capítulo à parte, como se funcionalmente o lhe não fizesse o mesmo que uma outra
expressão com esta função sintática. Afinal, se estas obras afirmam que o lhe é um
complemento nominal, parece-nos desapropriado que o pronome lhe com tal função
apareça em outro momento da obra. Este comportamento dá um aspecto fragmentado
às estruturas gramaticais no funcionamento da língua, como se elas existissem por si
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só e não dependessem de algum tipo de conexão ou relação com outras estruturas da


frase.
Para completar o dilema, temos a classificação do lhe com função sintática
de adjunto adnominal. Este é um ponto nevrálgico para o professor e mais ainda para
o aluno, pois alguns conceitos se contrapõem nos vários LD, GP analisados.
Começaremos, primeiramente, trazendo um gráfico que espelha mais ou menos o
quanto este assunto freqüenta, pelo menos em forma de conceito, as obras analisadas.

Gráfico:

Universo de 40 obras analisadas


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33 LD = 80 % das obras analisadas 08 GP = 20 % das obras analisadas

100 % ensino fundamental 100 % ensino médio

15% falam sobre o lhe 85 % não 85 % falam sobre o lhe 15 % não


como adjunto falam como adjunto adnominal falam
adnominal

Como vimos no gráfico, poucos são os LD que tratam sobre o assunto e


aqueles que tratam são taxativos em classificar o lhe como adjunto adnominal, sem
uma justificativa louvável. Dizemos isto porque os livros são unânimes em afirmar
que um adjunto adnominal é representado por um pronome adjetivo. Fato que se opõe
às afirmações destes mesmos livros (100%) que dizem que o pronome lhe é um
pronome substantivo pessoal. Sendo assim, como poderá um pronome substantivo
funcionar como adjunto adnominal ? Vejam-se as afirmações feitas em alguns LD:
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"Pronome substantivo é o que fica no lugar do substantivo, pronome adjetivo é o


que fica ao lado do substantivo"
(Ferreira,1989, p.107)
Com esta afirmação o aluno pode intuir que o lhe e um pronome substantivo.

"Classes gramaticais que funcionam como adjuntos adnominais: artigos,


adjetivos, locução adjetiva, numerais e pronomes adjetivos (possessivos,
demonstrativos, indefinidos, interrogativos)"
(Cereja, l998, p.107)
Do mesmo modo, o aluno pode afirmar, categoricamente, que o lhe jamais será
um adjunto adnominal.
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Outro fato no mínimo estranho é a presença de frases iguais, utilizadas por LD


e GP distintas, para exemplificar ocorrências diferentes do lhe, ou seja, numa mesma
frase atribuem-se ao lhe funções e nomenclaturas divergentes. Exemplos:

[1]- Ela fechou-lhe a porta na cara. (Ferreira, 1989, p. 90);

[2]- Quiseram roubar-lhe o rádio. (Luft, 1993, p.19);

[3]- Quiseram roubar-lhe a bússola (Correa, 2000, p.21).

Nestas frases recorrentes nos LD e GP, o lhe é chamado por uns de objeto
indireto, por outros de adjunto adnominal e, às vezes, não recebe nome algum, como
se nestas frases não fosse possível classificá-lo. Observe-se que este fato não
representa apenas uma questão de problema na classificação dos termos, mas a
efetiva prova de que os LD e GP, de um modo geral, não consideram o papel
funcional da estrutura.
Não é uma tarefa muito difícil identificar incoerências dentro de um mesmo
LD ou GP no que diz respeito ao lhe. Ocasiões há em que um conjunto de afirmações
são feitas e logo depois, sem que o próprio autor perceba - é o que nos parece - tais
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colocações são contraditas em momentos seguintes. Como ocorre em um LD (Cereja,


1998, p.191) que após alguns parágrafos, os quais sugerem o pronome lhe exercendo
função de complemento nominal ou adjunto adnominal, faz uma outra afirmação no
mínimo incoerente: "Os pronomes oblíquos de 3 ª pessoa, entretanto, têm funções
fixas: lhe(s) é sempre objeto indireto"

2.3
Algumas considerações preliminares

Terminamos este capítulo com uma certeza e várias interrogações. É certo que
não há unanimidade a respeito do pronome lhe e que infelizmente as abordagens por
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mais claras e objetivas que possam parecer nem sempre são eficientes se
considerarmos o aspecto funcional deste item lexical nos textos, no enunciado e no
discurso dos falantes de nossa língua.
Certo também é que o excesso de LD e GP não representa um ponto positivo,
antes servem para ampliar ainda mais a quantidade de considerações, oposições e
divergências, já que a tendência normativa e particular sobrepuja sempre a tendência
descritiva e global.
Sobram-nos, então, muitas interrogações. Afinal, o que fazer para entender
esta combinação de três letras, tão útil, eficiente e coesiva ? Que funções realmente o
lhe "pode" exercer? Que princípios e procedimentos devemos seguir para
compreendermos este elemento?
As respostas destas e de outras perguntas a respeito do lhe, tentaremos dar ao
longo de nosso trabalho, tendo a consciência de que esta é um meta difícil de ser
atingida.

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