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LINGUÍSTICA

AVANÇADA

Debbie Mello
Noble
Priscilla Rodrigues
Simões
Laís Virginia Alves
Medeiros
Revisão técnica:

Laís Virginia Alves Medeiros


Mestra em Letras – Estudos da Linguagem:
Teorias do Texto e do Discurso
Bacharela em Letras – Habilitação Tradutora:
Português e Francês

N747l Noble, Debbie Mello.


Linguística avançada / Debbie Mello Noble, Priscilla
Rodrigues Simões, Laís Virginia Alves Medeiros ; revisão
técnica: Laís Virginia Alves Medeiros. – Porto Alegre :
SAGAH, 2017.
146 p. : il. ; 22,5 cm.

ISBN 978-85-9502-144-0

1. Linguística avançada. I. Simões, Priscilla Rodrigues.


II. Medeiros, Laís Virginia Alves. III. Título.

CDU 81’33

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094

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UNIDADE 2
Enunciação e texto
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever a teoria da enunciação no campo dos estudos linguísticos.


 Diferenciar algumas tendências de estudos enunciativos, de acordo
com seus principais autores: Bakhtin, Ducrot e Benveniste.
 Definir possíveis sentidos de texto de acordo com as diferentes pers-
pectivas de estudos enunciativos, conforme os autores Benveniste e
Guimarães.

Introdução
A enunciação é o campo de estudos linguísticos que se dedica ao estudo
do enunciado, manifestação oral ou escrita produzida por um locutor em
uma situação de enunciação, considerando que seu sentido se relaciona
com o exterior. Inserindo-se no âmbito dos estudos semânticos, a enun-
ciação não é uma teoria fechada, uma vez que diferentes abordagens do
enunciado conduziram linguistas a releituras das noções de enunciador,
locutor e situação enunciativa. Bakhtin, Ducrot e Benveniste são alguns
dos autores mais conhecidos nos estudos enunciativos.
Neste texto, você irá conhecer algumas dessas tendências de estu-
dos enunciativos e, a partir de cada uma delas, verá como as categorias
enunciativas podem ser repensadas.

A teoria da enunciação no campo dos estudos


linguísticos
Saussure elabora a linguística como ciência autônoma cujo objeto é a língua,
sendo o signo linguístico o objeto central da teoria. Assim, o texto é relegado

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a outro plano, não investigado pelo autor, que, ao elaborar a noção de sintagma
e eixo sintagmático, permite, aos futuros linguistas, a possibilidade de pensar
na frase, unidade que traria em si a necessidade de se considerar, ao menos,
o contexto linguístico imediato no qual os termos são linearmente dispostos.
Os estruturalistas e gerativistas, dos quais Chomsky é o maior expoente,
se debruçam sobre o eixo sintagmático e suas reflexões não ultrapassam o
limite da frase. Juntamente com a exclusão da fala, produzida pelo corte
saussuriano, ocorre também a exclusão do falante e da situação de fala. A
consequência maior do abandono do texto como princípio teórico, segundo
Indursky (2006), é o apagamento da subjetividade, que será retomado aos
poucos pelo desenvolvimento das teorias que se propõem a investigar o aspecto
semântico da língua. Para isso, é preciso olhar para o que está fora dela, os
usos que dela são feitos e dos quais o texto é um exemplo.
Jakobson e Hjelmslev por meio de suas contribuições teóricas, possibilitam
a inserção do sujeito no processo linguístico, assim como a definição do texto
como objeto teórico. O primeiro autor traz a noção de locutor, dizendo que ele
sofre a coerção do sistema, mas tem certa liberdade, quando combina frases
em um enunciado. Hjelmslev, por sua vez, propõe que se faça uma teoria da
linguagem, na qual deve ser pensado o texto como correspondente de uma
determinada manifestação da língua, apesar de não se confundir com ela.
Conforme Hjelmslev (1968), o texto é uma categoria teórica em si e deve ser
descrita. Ideia que conduz os linguistas a observarem essa categoria fora do
lugar comum (texto empírico), para o definirem como um objeto de estudo.
Esses autores, portanto, iniciaram, com suas postulações, a caminhada que
seria trilhada pelas teorias linguísticas que elegeram o texto como objeto de
observação, teorização e análise, como é o caso da enunciação.
A questão dos limites da frase impulsionou reflexões deste campo do
conhecimento. A frase trata da língua como sistema de signos; para além da
frase, encontra-se algo diferente (a fala, para Saussure; o discurso, para Ben-
veniste) e os procedimentos de análise também serão diversos. Você precisa
saber, entretanto, que as primeiras preocupações do campo da enunciação
não conduziam para a noção de texto. Não é possível nela encontrar, em suas
formulações iniciais, referência explícita a texto, pois seus estudiosos deline-
aram como objeto de estudo o enunciado. Pelo viés do enunciado poderiam
estudar a enunciação.
A teoria da enunciação afasta-se da noção estrita de língua como sistema,
que só considera as relações internas, e passa a considerar também alguns
elementos que não pertencem, de direito, ao sistema da língua. Para Benveniste
(1988), o fundador dessa teoria, passa-se da frase para a enunciação, que envolve

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alguns elementos externos: aquele que fala, o locutor, o eu, e aquele a quem o
locutor se dirige, o interlocutor, o tu. Esse locutor está necessariamente situado
em um contexto de situação, que determina o tempo da enunciação (aqui) e
o espaço da enunciação (agora). A enunciação supõe sempre os interlocutores
e está datada e situada no espaço.
Ducrot (1987, p. 7) diz que:

[...] uma frase é uma unidade linguística abstrata, puramente teórica, um


conjunto de palavras combinadas segundo as regras da sintaxe, con-
junto este tomado fora de qualquer situação de discurso; o que produz
um locutor, o que ouve seu interlocutor, não é pois uma frase, mas é o
enunciado particular de uma frase.

O autor, assim, estabelece a diferença entre a frase e o enunciado, abrindo


espaço para se perceber a diferença de texto quando examinado pelo viés da
enunciação, pois para pensar o enunciado, ou seja, o texto, torna-se indispen-
sável que sejam mobilizados os interlocutores e seu contexto de enunciação.

Algumas tendências de estudos enunciativos

Bakhtin e o signo ideológico


Para começar a caminhada em direção à teoria da enunciação no campo dos
estudos linguísticos partiremos de Bakhtin, um teórico dos estudos semân-
ticos que revisa a clássica noção de signo para pensar a língua em relação à
sociedade. Bakhtin (1997, p. 14) questiona: “Sendo o signo e a enunciação
de natureza social, em que medida a linguagem determina a consciência, a
atividade mental; em que medida a ideologia determina a linguagem?”. Você
pode perceber, aqui, que o objeto central desse estudo não é a língua sistema
de Saussure, nem a língua cognição de Chomsky, o signo do qual trata Bakhtin
é uma manifestação da linguagem na sociedade.
Bakhtin (1997, p. 14) “[...] valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma
sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às
condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas
sociais.”. A representação simbólica só é capaz de materializar-se a partir do
signo, pois, segundo Bakhtin, sem signo não há ideologia, tudo que é ideológico
é semiótico e está sujeito a interpretações.
Bakhtin (1997, p. 16) diz que:

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Ora, todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para expri-


mir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo
ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações
sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constitu-
ídos, já que a ‘ideologia do cotidiano’, que se exprime na vida corrente,
é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas.

Bakhtin (1997, p. 34) diz também que “Todo dizer tem uma função res-
ponsiva [...]”, inscrita na ordem social. O autor oferece, assim, uma reflexão
interessante sobre a interpretação que seria uma resposta a um signo por meio
de outro signo, ou seja, um processo que depende de uma experiência já vivida.

Noções de dialogismo e polifonia


Conforme Bakhtin, a realidade fundamental da linguagem é o dialogismo.
Este conceito tem como base a dupla constituição entre a linguagem e o fe-
nômeno da interação sócio verbal, isto é, a linguagem se instaura a partir do
processo de interação. Contudo, o dialogismo também se refere ao permanente
diálogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade. Essa dupla
dimensão nos permite pensar o dialogismo como o princípio que determina
a natureza intertextual da linguagem.
Na noção de polifonia está colocada a impossibilidade de contar com as
palavras como signos neutros, já que elas são afetadas pelos conflitos histó-
ricos e sociais que sofrem os falantes de uma língua e, por isso, permanecem
impregnadas de suas vozes, seus valores, seus desejos. Assim, a polifonia se
refere às outras vozes que condicionam o discurso do sujeito.
Bakhtin (1997, p. 46) ensina que: “O signo, se subtraído às tensões da luta
social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se,
degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será
mais um instrumento racional e vivo para a sociedade.”.

A enunciação de Ducrot
Ducrot faz uma tentativa de ler Bakhtin livremente na elaboração de seus
estudos sobre a polifonia. No entanto, para Ducrot , Bakhtin não estudou
como um modo de falar é tomado por apenas um locutor, como um enun-
ciado assinala a superposição de vozes e a pluralidade dos responsáveis pelo
dito. Serão, portanto, estes fatos não trabalhados por Bakhtin que Ducrot
vai ter como objetivo em seus estudos sobre a língua, com a proposta da

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existência de uma relação entre o enunciado e a enunciação. A partir da


noção bakhtiniana de sujeito fragmentado, Ducrot desconstrói a ideia de
unidade do sujeito enunciador e pensa na heterogeneidade do enunciado de
forma que as posições tomadas no discurso são reflexos das contradições
históricas, da existência de diferentes lugares sociais representados no mo-
mento da enunciação.
Ducrot sustenta que a subjetividade não se constitui na língua, não é mar-
cada na superfície linguística. Língua, para ele, é o instrumento de mediação,
por meio do qual a subjetividade é representada. O que Ducrot faz é construir
procedimentos de formalização da semântica das línguas naturais. Fortemente
influenciado por Austin, Ducrot também parte de uma definição inicial de
enunciação como a atividade de linguagem exercida por aquele que fala no
momento em que fala.
O autor modifica sua pesquisa ao longo dos anos, passando a considerar a
enunciação como o acontecimento constituído pelo aparecimento do enunciado,
descentralizando o sujeito, de maneira a não o investir de poder absoluto sobre
a linguagem. O sujeito não é a fonte do sentido. Ducrot faz várias distinções
entre ‘as cadeias enunciativas’. A primeira distinção é entre locutor – aquele
que profere o discurso – e o sujeito falante – o ser empírico. Esses sujeitos
podem coincidir ou não, sendo irrelevante para ele a noção de empirismo. O
que lhe interessa é a noção de locutor, que é o ser do discurso, alguém a quem
se deve imputar a responsabilidade do enunciado.
Segundo Ducrot (1977), a função dos pressupostos na atividade da fala
é garantir a coesão do discurso como “condição de coerência”, definida por
ele como “[...] a obrigação de se situarem os enunciados num quadro intelec-
tual constante [...]”, constituindo, desse modo, um só discurso e não um “[...]
emaranhado de frases sem nexo [...]” ou enunciações independentes. Para
isso, é necessário que o discurso manifeste uma espécie de “redundância”,
assegurada pelo reaparecimento ou retomada regular de certos conteúdos ou
elementos semânticos no decorrer do discurso.
É sobre o implícito, que Ducrot vai colocar seu ponto de vista, inaugurando,
assim, o estudo de um novo objeto nos estudos linguísticos. O autor coloca
que “[...] muitas vezes temos necessidade de, ao mesmo tempo, dizer certas
coisas e de poder fazer como se não as tivéssemos dito; de dizê-las, mas de
tal forma que possamos recusar a responsabilidade de tê-las dito” (DUCROT,
1977, p. 13). O autor coloca, assim, que o implícito tem sua primeira origem
nas relações sociais, desempenhando a função de quebrar ou denunciar “[...]
um conjunto não negligenciável de tabus linguísticos [...]” (DUCROT, 1977,
p. 13), ou seja, haveria um conjunto de dizeres que não podem ser efetuados

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por não estarem de acordo com as regras de polidez, ou com o bom-senso


habitual das sociedades.
A segunda origem do implícito seria impedir que uma ideia fosse con-
testada, visto que ela não é exposta. Nessa segunda origem, também estaria
incluída a característica do implícito de impedir a repetição de um item
lexical, ou de uma ideia já expressa anteriormente no discurso. Com isso,
o autor chama atenção, também, para o fato de que o implícito não está,
necessariamente, no interior da língua, sendo necessário que se recorra a
fatores externos a ela para compreendê-lo, ou seja, é a inserção da exterio-
ridade constitutiva para a “determinação” dos efeitos de sentido, ainda que
não nesses termos.
O mecanismo do implícito é comumente utilizado em cartazes publicitários
e políticos, os quais têm a finalidade de dar a entender determinado conteúdo,
sem fazê-lo de forma explícita, ou seja, a interpretação do enunciado ocorre
por meio da identificação da afirmação ausente. Um exemplo, dado pelo autor,
é o enunciado: “Ela é feliz; ela compra no supermercado X.”. Nesse exemplo,
o supermercado X aparece como a causa da felicidade da consumidora. O que
implícita que o supermercado em questão tem aquelas características que os
supermercados devem ter para deixarem seus clientes satisfeitos, tais como:
qualidade de atendimento, preços baixos em relação à concorrência, qualidade
dos produtos oferecidos e assim por diante.
O segundo tipo de implícito seria aquele fundado na enunciação, são os
chamados “subentendidos do discurso” que, de acordo com o autor (DUCROT,
1977, p. 17):

[...] são vistos como dando a entender ao destinatário que as condições


são satisfeitas e que tais condições tornam eles próprios legítimos ou
explicáveis. Aqui, o implícito não deve ser procurado no nível do enun-
ciado, como um prolongamento do nível explícito, mas num nível mais
profundo, como uma condição de existência do ato de enunciação.

Esse tipo de implícito traz a ideia de que todo enunciado tem um propó-
sito, ou seja, não ocorre de forma gratuita e é esse propósito que justifica a
possibilidade da existência do subentendido. A inovação é, portanto, o fato da
não decorrência deste propósito de fatores linguísticos, mas sim da situação
enunciativa, do exterior da língua que nesta teoria é tratado como um fator
constitutivo do sentido de um enunciado. Logo, podemos dizer que o mesmo
enunciado, tomado em situações de enunciação distintas pode derivar sentidos
também distintos.

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Benveniste e a enunciação
Benveniste é um teórico que define a enunciação como a apropriação da língua
pelo sujeito que, então, pode dizer o que tem a dizer, ou seja, a enunciação
é uma atividade do locutor em produzir um enunciado. Sendo a enunciação
o ato de dizer em que o sujeito se apropria da língua para uma manifestação
individual, ela é também o ponto de mediação entre a língua (langue/sistema)
e a fala (parole/funcionamento/uso).
O objeto da teoria da enunciação é o enunciado: o que é dito em uma situação
enunciativa. Assim, o enunciado é remetido à enunciação para que ela, servindo
de contexto situacional, auxilie na compreensão do sentido do que está sendo
dito. O que é dito só tem sentido se as categorias linguísticas sejam tomadas
em relação à determinada situação enunciativa. Pronomes, numerais, advérbios
só têm sentido se tiverem relação com as categorias enunciativas. As marcas
enunciativas, os dêiticos, são: o Eu/Tu; o Aqui e o Agora (EGO-HIC-NUNC,
termos do latim usados por Benveniste para indicar as categorias enunciativas,
pois o linguista percebeu que essas categorias estavam presentes na maioria
das línguas naturais: sujeito, espaço e tempo). Um enunciado, portanto, só
pode ser interpretado em relação a um Eu que fala para um Tu; em um tempo
dado: o agora; e em um espaço determinado: o aqui.
O locutor é o ser do discurso, aquele que assume a voz dominante e orga-
niza o discurso e as diferentes vozes que nele se apresentam. O enunciador
corresponde a outras vozes, pontos de vista, opiniões, podendo ser aproximado
das “vozes anônimas” de que fala Bakhtin, pois não é explicitada a ocorrência
dessas vozes.

Benveniste é um dos principais autores dos estudos


enunciativos. Conheça um pouco mais sobre o autor
no site Benveniste On-line (2010), acessando o link ou
o código a seguir.

https://goo.gl/c6mrPN

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Cada um dos autores apresentados elabora seus estudos de acordo com conceitos
de signo distintos. Bakhtin teoriza um signo ideológico, interessado nas relações entre
linguagem e sociedade, ou seja, é uma abordagem linguístico-sociológica. Ducrot pensa
na interação entre locutores e sua teorização é mais formal. Benveniste é um teórico
que reúne os objetivos do trabalho de Bakhtin e Ducrot, pois pensa na função social
da língua e também na necessidade de formalização teórica, suas obras Problemas de
linguística geral vol. 1 e vol. 2 traduzem suas preocupações.

Enunciação no Brasil
A concepção de enunciação de Benveniste é a de que há uma apropriação da
língua pelo sujeito que pode dizer o que tem a dizer, ou seja, a enunciação é
tida como uma atividade do locutor em produzir um enunciado. Ducrot diz
que a enunciação é o evento histórico do aparecimento do enunciado e, a
partir dessa definição, Guimarães parte para elaborar sua proposta de teoria
da enunciação no Brasil.
Guimarães (1995) diz que a enunciação deve ser tratada como um aconte-
cimento histórico, como pensava Ducrot e Bakhtin. Desse modo, a definimos
como um acontecimento de linguagem perpassado pelo interdiscurso (origem
de todo o dizer, morada das vozes anônimas, também pode ser pensado como
exterioridade). A enunciação, portanto, não diz respeito apenas à situação
de fala. A enunciação não é homogênea, é uma dispersão que a relação com
o interdiscurso, as outras vozes, produz. Para Guimarães, o locutor estaria
ocupando a posição-autor, posição essa que assume como suas as palavras
que, de direito, são do interdiscurso.
Guimarães (1995, p. 65) reflete sobre o texto, dizendo que esse deve ser
pensado como uma operação enunciativa cuja textualidade conduz a “[...]
construir como unidade o que é disperso [...]”. Assim, o texto pode ser tomado
em suas relações internas, as relações coesivas, ou seja, o contexto linguístico,
e em suas relações com a exterioridade, o que está para além do contexto
linguístico. Com essa releitura, o autor substitui a noção de coerência pela
noção de consistência, que implica em colocar o texto em sua relação com a
exterioridade, submetendo-o à interpretação.
A coesão diz respeito às relações que reenviam a interpretação de uma
forma a de outra, em uma sequência do texto. A consistência diz respeito às

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relações que reenviam a interpretação de uma forma ao interdiscurso (contexto


situacional para a teoria da enunciação clássica/exterioridade para outras
tendências). Guimarães descarta a noção de coerência, porque se a tomar
estará considerando que o que caracteriza o que é próprio do acontecimento
enunciativo é algo cognitivo. Perspectiva essa peculiar à linguística textual, por
exemplo, teoria sob a qual um texto se organiza por expressar adequadamente
as relações próprias da mente, independentemente de qualquer historicidade.
O sentido, portanto, não vem posto exclusivamente no texto, apesar deste ser
portador de instruções, como o quer Ducrot, e de sentidos pelos quais o locutor
se responsabiliza. No entanto, o sentido também é da ordem da interpretação
e, nesse ponto, entra a exterioridade e, com ela, o interlocutor. Para chegar ao
sentido, passa-se por uma operação que envolve locutor e interlocutor, pelo viés
da consistência, isto é, remeter o texto às relações que convocam à interpretação
em sua relação com o acontecimento enunciativo em que ele foi produzido. Na
interpretação passa-se do contexto linguístico ao contexto situacional.

Noção de texto nos estudos enunciativos


As teorias enunciativas não trabalham com a noção de texto, mas sim como
o enunciado, pois essa noção não se atém ao linguístico. O enunciado é uma
marca da enunciação, ou seja, da situação em que algo é dito por um locutor.
Podemos fazer algumas aproximações entre a categoria enunciado e o viés
teórico conferido por cada um dos autores estudados, acompanhe.
Bakhtin, por exemplo, traz a contribuição de signo ideológico, dialogismo
e polifonia para se pensar o enunciado em relação à sociedade em que ele é
produzido. Essa é uma abertura dos estudos linguísticos para a investigação
daquilo que parece estar fora da língua, mas também contribui para a pro-
dução do sentido. Entender que o signo é ideológico, ou seja, que se presta
à defesa de uma ou outra perspectiva ideológica é uma herança do trabalho
de Bakhtin. Entender que um enunciado responde a outro(s) enunciados já
criados ou proferidos, também foi uma grande contribuição desse teórico. Essa
contribuição ampliou a interpretação do enunciado a partir da relação entre um
determinado enunciado e outros que com ele mantêm uma relação dialógica.
Outro acréscimo dos estudos bakhtinianos para o estudo do enunciado foi a
noção de polifonia, por meio da qual postula-se que um só enunciado pode
ser habitado por diferentes vozes que, juntas, trabalham para a produção dos
sentidos. Um exemplo desse funcionamento é quando retomamos um enunciado
de outrem em nosso próprio enunciado:

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— Marcela, sua mãe já disse que não quer você acordada a essa hora.

Nesse enunciado, há um locutor (sujeito que organiza as diferentes vozes


no enunciado) que lança mão do dizer de outro locutor (a mãe de Marcela)
para convencer o interlocutor (Marcela) quanto ao que está sendo dito.
Os estudos de Ducrot dialogam com os estudos bakhtinianos pelo interesse
desses linguistas quanto ao aspecto social da enunciação. A partir da noção
bakhtiniana de sujeito fragmentado, Ducrot elabora as noções de pressuposto
e implícito para pensar sobre a heterogeneidade do enunciado, que seria um
reflexo das contradições históricas, bem como da existência de diferentes
lugares sociais representados no momento da enunciação. Uma importante
contribuição desse autor para se teorizar sobre o enunciado é a constatação
de que os enunciados não estão soltos, ou espalhados sem nenhum nexo, os
enunciados estariam situados em uma cadeia de enunciados, a qual Ducrot se
refere com o termo “discurso”, e a partir da qual o sentido de enunciado pode
ser interpretado. O pressuposto daria, então, o direcionamento do sentido de
um enunciado, a condição de existência do enunciado. Diante do enunciado
abaixo:

— Tereza voltou da feira de produtos orgânicos.

Com base no que está sendo dito neste enunciado, podemos concluir que
se Tereza voltou, há um pressuposto de que ela foi à feira. Há também um
pressuposto de que existe uma feira de orgânicos a qual Tereza costuma ir e,
ainda, há um pressuposto de que Tereza prefere consumir produtos orgânicos.
Todas essas informações podem ser depreendidas do enunciado acima sem
que, necessariamente, cada uma dessas afirmações seja explicitada de forma
detalhada, até mesmo porque se isso acontecesse haveria muita redundância
em cada dizer, e o pressuposto funciona, exatamente, evitando repetições
de sentidos que podem ser depreendidos do próprio conteúdo do enunciado.
Já o implícito não será depreendido de itens linguísticos de um enunciado,
mas sim a partir de outros enunciados ou discursos, ou a partir da própria
situação de enunciação. Como Ducrot bem observou, há conteúdos que dese-
jamos dizer, mas não queremos tomar para nós a responsabilidade de tê-los
dito. Recorre-se, assim, ao implícito, de modo que a alusão a determinado
sentido é afirmada no intuito de fazer funcionar na interpretação aquilo que
não está sendo dito.
Com essas teorizações, Ducrot reafirma o caráter dialógico e polifônico do
enunciado, já apresentado por Bakhtin, e teoriza sobre alguns desdobramentos

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desse caráter por meio das noções de pressuposto e implícito. O enunciado,


assim, refere-se tanto ao conteúdo dito como ao que não é dito, mas pode ser
depreendido do dito e atualizado por meio da instância da enunciação, ou
seja, do exterior da língua que também colabora para a produção do sentido.
A teorização de Benveniste é considerada a mais estruturalista das teorias
enunciativas, pois esse linguista elabora estudos aprofundados sobre os
pronomes, os verbos, os advérbios, entre outras categorias linguísticas, para
sustentar que há um ancoramento linguístico que permite fazer a referência
do enunciado à situação de enunciação. Essas categorias enunciativas que
permitem referir o enunciado à exterioridade, o autor denominou dêiticos,
que correspondem a quem fala (eu), a quem o enunciado é dirigido (tu), o
momento em que se fala (agora) e o espaço em que se fala (aqui). Benveniste
também contribuiu com a interessante distinção entre locutor (aquele que
domina o enunciado e organiza as diversas vozes que podem ser encontradas
em um enunciado) e os enunciadores (correspondem às outras vozes com as
quais determinado enunciado dialoga). Enunciado, então, para Benveniste
é uma unidade de sentido que só pode ser interpretada a partir da deter-
minação da situação de enunciação e dos agentes nela envolvidos (locutor,
enunciador, interlocutor).
Guimarães propõe uma teoria da enunciação em que se considere o mo-
mento sócio histórico dentre as categorias enunciativas. Esse autor amplia a
noção de enunciado para pensar que ele é uma unidade aberta à interpretação,
unidade cujo ancoramento linguístico não precisa ser tão estreito quanto na
teoria de Benveniste e Ducrot, pois Guimarães defende que além de poder ser
remetido à determinada situação de enunciação específica, o enunciado também
pode ser remetido ao interdiscurso, que seriam todos os dizeres possíveis e
imagináveis a respeito de um assunto. Nessa teorização, portanto, a categoria
enunciado pode ser relacionada a qualquer unidade simbólica de sentido
(uma música, um quadro, um poema, uma charge, tudo pode ser considerado
enunciado desde que seja possível produzir sentidos). Nessa perspectiva, a
leitura de um enunciado pode não ser uma só, pois, como já havia lembrado
Ducrot, um mesmo enunciado tomado em situações enunciativas distintas
pode ter sentidos também distintos. Quanto à situação de enunciação (ou
contexto), Guimarães adiciona aos interlocutores e à situação enunciativa, os
atravessamentos do interdiscurso, ou seja, das vozes anônimas que dialogam
com determinado enunciado.
No Quadro 1 são apresentadas duas das principais tendências de estudos
enunciativos para se compreender as noções de texto, leitura, textualidade e
contexto.

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Note que não há referência à Bakhtin no Quadro 1, pois, apesar dos im-
portantes conceitos elaborados por este autor, ele não produziu análises de
enunciados no âmbito da linguística, seus conceitos foram mobilizados, prin-
cipalmente, nos estudos literários. Um exemplo de noção bastante atual, que
derivou do desenvolvimento desses estudos, é a noção de gêneros do discurso,
que delineia a prática corrente de letramento e de produção textual nas escolas
básicas do Brasil inteiro.

Quadro 1. Tendências de estudos enunciativos.

Teoria Texto Leitura Textualidade Contexto

Teoria Enunciado, Guiada por Provém da Situacional:


clássica da relaciona-se instruções relação entre compreende os
enunciação com o dadas pelo o linguístico interlocutores
(Ducrot e exterior. locutor-L de e a situação e a situação
Benveniste) acordo com enunciativa. enunciativa
a situação
enunciativa.

Teoria da Unidade Interpretativa, Provém da Situacional, com


enunciação aberta à há possibilidade consistência: o acréscimo do
(GUIMARÃES, interpretação, de haver mais relação do atravessamento
1995) heterogêneo. de uma leitura. linguístico com do interdiscurso.
o interdiscurso

As primeiras preocupações do campo da enunciação não conduziam para a noção


de texto. Não é possível encontrar referência explícita a texto, pois seus estudiosos
delinearam como objeto de estudo o enunciado e, por meio do enunciado, poderiam
estudar a enunciação.

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Enunciação e texto 63

Alguns exemplos de trabalho em sala de aula a partir da teoria da enunciação seriam:


localizar em um texto o locutor e o enunciador; determinar o momento histórico em
que se dá a produção e a leitura desse texto (presente, passado, futuro); especificar
o espaço em que se dá essa enunciação. Utilizar gêneros textuais distintos para per-
ceber como se alteram as categorias enunciativas é um trabalho produtivo, tanto na
interpretação como na produção de textos.

No link e no código a seguir (LIMA; NAUJORKS, 2015),


você pode aprofundar o seu conhecimento sobre a
relação entre a teoria da enunciação e a produção
de textos.

https://goo.gl/4QQjes

1. A enunciação pertence a c) langue e parole.


qual das seguintes áreas de d) enunciado e enunciação.
estudos linguísticos? e) subentendido e implícito.
a) Aquisição da linguagem 3. Tente perceber, nos fragmentos
– Gerativismo. do texto Morte devagar
b) Descrição linguística (MEDEIROS, 2006), as diferentes
– Estruturalismo. vozes que o constituem.
c) Teorias semânticas. “Morte devagar
d) Psicolinguística – Gerativismo. Morre lentamente quem não
e) Fonologia – Estruturalismo. troca de ideias, não troca de
2. Alguns dos principais conceitos discurso, evita as próprias
desenvolvidos por Bakhtin (1997) são: contradições.
a) dialogismo e polifonia. Morre lentamente quem vira
b) consistência e acontecimento escravo do hábito, repetindo
enunciativo. todos os dias o mesmo trajeto e as

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64 Enunciação e texto

mesmas compras no supermercado.


Quem não troca de marca, não
arrisca vestir uma cor nova, não
dá papo pra quem não conhece.
Morre lentamente quem faz
da televisão o seu guru e seu
parceiro diário. Muitos não podem
comprar um livro ou uma entrada
de cinema, mas muitos podem, Fonte: Grund (c2017).
e ainda assim alienam-se diante a) A Dove trata bem
de um tubo de imagens. todas as mulheres.
Morre lentamente quem b) As demais marcas de produtos
não viaja, quem não lê, de beleza não têm produtos
quem não ouve música. adequados à diversidade
Morre lentamente quem não de tonalidades da pele das
trabalha e quem não estuda, e na mulheres brasileiras.
maioria das vezes isso não é opção, c) O sol brilha para todas as
e, sim, destino: então um governo mulheres independentemente.
omisso pode matar lentamente d) A Dove é uma empresa
uma boa parcela da população.” comprometida com o
A voz da autora do texto, Martha meio ambiente.
Medeiros, organiza diferentes e) As mulheres são mais
vozes. Essa posição da autora expostas às queimaduras
poderia ser relacionada a qual solares do que os homens.
categoria enunciativa de acordo 5. Em relação ao texto nos estudos
com a teoria de Benveniste? enunciativos, é correto afirmar que:
a) Enunciação. a) É a unidade que define o sentido.
b) Enunciador. b) Produz a exclusão do falante
c) Enunciado. e da situação de fala.
d) Situação enunciativa c) Organiza as vozes.
e) Locutor. d) É o enunciado, relaciona-se
4. Observe a foto publicitária a seguir com o exterior, é aberto à
e assinale a alternativa correta de interpretação, heterogêneo.
acordo com o conteúdo implícito e) Apropriação da língua
que subjaz a sua interpretação. por um ato individual.

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Enunciação e texto 65

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.


BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral. Campinas: Pontes, 1988. v. 1.
BENVENISTE ON-LINE. Biografia. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Disponível em: <http://
www.ufrgs.br/benvenisteonline/Biografia.php>. Acesso em: 23 ago. 2017.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
DUCROT, O. Princípios de semântica linguística: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix, 1977.
GRUND, A. Publicidade. [S.l.], c2017. Disponível em: <http://www.agrund.com/publi-
cidade-2/>. Acesso em: 24 ago. 2017.
GUIMARÃES, E. Texto e enunciação. Organon, Porto Alegre, v. 9, n. 23, p. 63-67, 1995.
HJELMSLEV, L. Prolégomènes à une théorie du langage. Paris: Ed. de Minuit, 1968.
INDURSKY, F. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites. In: ORLANDI,
E. P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. M. Discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006.
LIMA, C. R.; NAUJORKS, J. C. Produção textual e enunciação: uma aproximação entre
teoria e prática. Campo Grande: Portal Educação, 2015. Disponível em: <https://www.
portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/pedagogia/producao-textual-e-enun-
ciacao-uma-aproximacao-entre-teoria-e-pratica/60386>. Acesso em: 24 ago. 2017.
MEDEIROS, M. Non-stop: crônicas do cotidiano. Porto Alegre: L&PM, 2006.
SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1974.

Leitura recomendada
NUNES, P. Á. Émile Benveniste, leitor de Saussure. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 42,
p. 51-63, jun. 2011. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/cadernosdoil/article/
viewFile/26004/15225>. Acesso em: 23 ago. 2017.

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Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
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