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RESUMO: Tendo como corpus o conto “Teoria do medalhão”, da coletânea Papéis avulsos
(1882), de Machado de Assis, buscaremos elucidar o diálogo intertextual entre esse conto e a
Mitologia Clássica. Para isso, propomos uma reflexão acerca do modo como são retomados os
valores das histórias mitológicas. No conto há referência direta a quatro figuras mitológicas. Por
meio da análise dessas referências, buscaremos demonstrar como os conselhos do pai
constituem uma espécie de retomada da paideia grega (formação do jovem). Essa análise faz
parte de uma pesquisa que estamos desenvolvendo, durante o mestrado, na qual buscamos
verificar a função do constante diálogo intertextual travado pelo discurso machadiano com a
Cultura Greco-Romana, na coletânea de contos em questão.
Introdução
324
Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa
unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa
para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa.
Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que
acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só
família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa. (ASSIS,
1998, v. 2, p. 527)
325
François Rabelais, que por meio da análise do contexto e linguagem utilizada por
Rabelais, verificou que era recorrente em suas obras o carnavalesco, que subvertia o
sentido de tudo e cuja principal característica é o riso e a utilização de um discurso
popular, ambíguo e irreverente:
A partir dos estudos de Bakhtin, Julia Kristeva observou que todos os textos
eram formados por “um diálogo de várias escritas: do escritor, do destinatário (ou da
personagem), do contexto cultural actual ou anterior” (1974, p. 70). E através da teoria
sobre dialogismo e polifonia (retomando Bakhtin), Kristeva fundamentou os estudos
sobre intertextualidade. Essa estudiosa foi a primeira a definir, nomear e diferenciar os
principais usos e funções da intertextualidade:
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Napoleão de Botafogo (em Quincas Borba) e Capitu e a mulher fatal (em Dom
Casmurro). Assim, os estudos de intertextualidade fornecem campo profícuo para
pesquisa que busque elucidar as referências à Mitologia Clássica, já que são esses os
textos mais retomados pela literatura. Por essa importância, achamos necessário
antes de analisarmos as referências, definirmos as diferentes acepções de mito
durante o tempo.
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Antropologia, o mito é uma narrativa do que os deuses ou os seres divinos fizeram no
começo do Tempo: “O mito é encarado como a palavra que designa um estágio de
desenvolvimento humano anterior à História, à Lógica, à Arte” (MOISÉS, 1974, p.
342). Cada mito nos mostra como uma realidade veio a existir, seja uma realidade
total ou um fragmento dessa realidade. Do ponto de vista literário, Aristóteles aproxima
o mito da narrativa, pois “o mito não só expressa o sentido profundo das coisas, como
também o expressa, particularmente, através de uma história” (MOISÉS, 1974, p.
345). Aqui começamos a notar outra mudança de postura quanto ao mito, antes
acreditado como sagrado, depois como símbolo e agora como objeto da literatura;
perceberemos que foi dessa forma que Machado de Assis o utilizou. A principal
característica do mito é contar algo, ou seja, o mito é uma narrativa, portanto, será
esse o sentido atribuído a ele neste trabalho.
Só nos foi possível o conhecimento do mito, pela passagem da oralidade à
escrita e, dessa forma, a literatura. Assim, consideramos o mito greco-romano como
uma narrativa que foi sagrada, mas que na época de Machado de Assis, já não o é
mais, assim o autor aproveita-as como uma fonte literária, livre para as suas
experimentações; uso que Fiker define como “modalidade temática”, conceituada por
ele da seguinte forma:
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Podemos aplicar o critério de intensidade no conto machadiano aqui
estudado, pois no mito, Polícrates é um tirano que assumiu o poder pela força (matou
um dos irmãos e expulsou o outro), já no conto, era o rei mais feliz da terra, ou seja, o
mito revela cruamente os fatos, Polícrates é um tirano, sem escrúpulos; a brutalidade
dos seus atos para se tornar rei é omitida no conto; esse seria o critério de
intensidade.
Considerando-se o texto como um “ponto de intersecção de muitos diálogos”
(BARROS E FIORIN, 1994, p. 4), há uma possibilidade de compreensão muito mais
ampla, propiciada pelo trabalho intertextual, que Machado de Assis fornece ao seu
leitor ao fazer referências à Mitologia Clássica e à Cultura greco-romana. Ou seja, o
escritor brasileiro é um dos autores que “bebeu” da Cultura Clássica por meio dos
textos antigos e com esses dialoga em Papéis Avulsos, como veremos no conto a
seguir.
A paideia inversa
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De quanta utilidade não seria pararmos, refletirmos nas verdades que
se encerram naquela notável Teoria sobre o Medalhão [sic], em que o
filósofo poeta estampa um dos característicos fatores da nossa
decadência? Acaso não está na consciência de todos que a nossa
máquina governamental move-se por um impulso há longos anos
adquirido? Que os homens que entram na composição dos gabinetes
são peças que substituem outras já gastas e que quando penetram
na engrenagem não aparecem como elemento novo, senão [...] para
a manutenção do ritmo costumeiro? (2005, p. 226)
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E aí balanceia o ponto insolúvel dessa singular celebridade: o
sucesso é inseparável do fracasso íntimo, e tanto maior este quanto
maior o seu contrário, já que, afinal, quanto mais mira o alvo sublime
mais Pestana acerta, inapelavelmente, no seu buliçoso avesso.
(Idem, p. 18).
A cada cabeça que Hércules decepava, duas novas nasciam em seu lugar.
Para conseguir cumprir sua tarefa, no local onde uma cabeça era cortada, Hércules
1
Sinônimo de revés e tribulação e antonímia de elegância. (idem, p. 956)
2
Caveant, consules: “Acautelem-se, ó cônsules”. Si vis pacem para bellum: “Se quer paz, prepare-se para
a guerra”, segundo nota de rodapé.
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queimava imediatamente com fogo. A cabeça imortal, o herói enterrou-a sob uma
enorme rocha e recebeu a ordem de sempre vigiá-la.
A segunda citação é a da cabeça de Medusa3 decepada por Perseu, que,
para conseguir esse feito, contou com a ajuda dos deuses, com o uso de muita
inteligência e de muita coragem. As três irmãs Górgonas habitavam no Extremo
Ocidente, não muito longe do reino dos mortos. Perseu, instigado pelo tirano Sérifo,
parte para o Ocidente em busca de Medusa. Após muitas aventuras, o herói chega ao
seu destino e para cumprir sua missão, primeiro utiliza-se da sandália alada, presente
de Hermes, por conseguinte, para cortar a cabeça da górgona, segue um conselho da
deusa Atená, o de não fitá-la diretamente, assim, utiliza o estratagema de olhar a
imagem refletida no escudo. Abaixo temos a narração de Hesíodo do nascimento e da
morte de Medusa:
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concordou que as filhas se casassem. Porém, não acreditando nas intenções dos
sobrinhos, deu uma adaga para cada uma e mandou as filhas matarem o respectivo
noivo na noite de núpcias. Todas cumpriram o combinado, excepto Hipermnestra, e
houve duas explicações para essa atitude: a primeira, expõe que a filha de Dánao
havia se apaixonado por Linceu, seu marido; já a segunda aponta o fato de Linceu tê-
la respeitado na noite de núpcias, o que a teria feito ser tomada de compaixão e
perder a coragem de matá-lo e, além disso, ajudá-lo a fugir. As cabeças dos maridos
foram enterradas em um pântano em Lerna. As Danáides que assassinaram os seus
esposos foram punidas no Hades: para todo o sempre encheriam de água um tonel
com furos, por onde a água voltava a sair, o que constituiu um dos suplícios
mitológicos mais conhecidos. Segundo Brandão (1991), esse mito é interpretado por
Platão como uma entrega insaciável a paixões eternamente insatisfeitas.
Os quarenta e nove filhos de Egipto morreram pelo desejo incontrolável de se
casarem com as filhas de Dánao, mesmo sabendo que essas não desejavam tal
enlace. Sem questionarem o desejo do pai, as Danáides obedeceram a sua ordem e
mataram seus maridos, não antes de se entregarem a eles. A punição recebida no
Hades consiste em carregar água em vão, uma vez que o tonel jamais ficará cheio.
Como a água é o símbolo da purificação, seu desperdício indica que, jamais as filhas
de Dánao serão purificadas.
Há também, sobre as Danáides, outro mito relacionado à água. Segundo
Grimal, quando Dánao e suas filhas instalaram-se em Argos, o país estava privado
desse líquido, o que levou o rei a pôr suas cinquenta filhas à procura de água.
Cansadas da busca, sem conseguirem seu intento, adormeceram no campo.
Enquanto dormiam, um sátiro tentou violentar uma delas, Amimone. No entanto,
Posídon defendeu a jovem e revelou-lhe a existência da fonte de Lerna (2005, p. 24).
A última citação mitológica desse conto é sobre as asas de Ícaro. Dédalo
fizera dois pares de asas, a fim de que ele e o filho escapassem do labirinto de Creta.
Como esse labirinto fora por ele mesmo projetado, Dédalo sabia que a única saída
seria voar dali. A fim de confeccioná-las, Dédalo colecionou penas de pássaros de
diversos tamanhos. Iniciando pelas menores e, sempre adicionando uma um pouco
maior, de forma que parecia terem elas crescido, prendeu-as pelo meio com fios,
fixou-as por baixo com cera e encurvou delicadamente aquela estrutura que se
assemelhava inteiramente a uma asa.
Seu filho, Ícaro, o ajudava nessa tarefa. Depois de prontas, Dédalo prendeu-
as em Ícaro e, ensinou-o a voar, aconselhando-o:
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Preste atenção, Ícaro. Quando você se lançar ao ar,
Não voe muito baixo, ou a água molhará as penas desta asa e
elas pesarão e você cairá.
E não voe muito alto, ou o calor do sol as queimará.
Fique sempre no meio termo. E mais uma coisa,
Não se iluda pensando que é uma estrela ou constelação,
Siga a minha orientação! (OVÍDIO, 2003, p.162)
4
Conforme definição de Lévi-Strauss, mitema seria a parte mínima do mito, já que o mito pode conter em
si várias narrativas interligadas. Tomando o mito de Hércules como exemplo, cada “trabalho” executado
por esse herói seria um “mitema”.
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Um dos pontos mais importantes da educação arcaica residia nos talentos,
que possuíam uma função criadora e libertadora, portanto, os homens deveriam usá-
los a serviço dos deuses (a serviço da criação) e como auxílio ao cumprimento do seu
destino5.
Na Grécia, era comum que os jovens possuíssem um tutor que os
aconselhava e os guiava na paideia. No conto em questão, vemos um resgate dessa
figura do tutor no pai que aconselha o filho. No entanto, destacamos a natureza
contrária dos conselhos do pai de Janjão que não buscam formar um homem ético e
muito menos pensante e criador, mas somente uma “carcaça” que objetiva o prestígio
social. Outro ponto contrastante consiste no fato de que o homem grego primava por
servir a comunidade, e os conselhos do pai visam estritamente ao “crescimento”
individual.
Portanto, o discurso do pai busca constituir a formação de Janjão, assim
como era feito durante a Antiguidade Clássica, quando um jovem recebia conselhos
de seu tutor, pai ou sábio. Ora, como dissemos, essa retomada é realizada de forma
inversa, visto que os conselhos não visam tornar o filho um homem ético ou muito
menos criador, mas um homem que busca somente a realização social e econômica,
tendo que abdicar de qualquer tipo de ideologia, reflexão, liberdade de escolha ou
poder criador, logo, tendo que abdicar completamente do “eu”.
Referências bibliográficas
5
Entendido aqui segundo Salis: “Assim, cumprir seu destino era o máximo de liberdade responsável que
alguém poderia almejar, de acordo com o pensamento arcaico. Significava ainda entender o que veio
fazer aqui, qual era sua função e natureza, e ajudava a compreender seu mistério de existir.” (2003, p.
155)
335
BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. 2.ed.
São Paulo: EDUSP, 1999.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e Tradução de Jaa Torrano. 7.ed.
São Paulo: Iluminuras, 2007.
OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras,
2003. (verso)
______. Capitu e a mulher fatal: análise da presença francesa em Dom Casmurro. São
Paulo: Nankin, 2003.
336
PIZA, D. Machado de Assis: um gênio brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.
SALIS, V. D. Mitologia viva: aprendendo com os deuses a arte de viver e amar. São
Paulo: Nova Alexandria, 2003.
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