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A INTERTEXTUALIDADE NA FORTUNA CRÍTICA DE MACHADO

DE ASSIS: ALGUNS ESTUDOS RECENTES

Resumo: O artigo parte da recepção crítica recente de Machado de Assis para


apresentar e comentar algumas questões que abordam o tema da intertextualidade na
obra do escritor, especialmente na composição do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Machado é visto como um leitor incansável, dadas as inúmeras citações e
referências histórico-literárias no corpo de sua obra, e um autor bastante ciente de seus
procedimentos técnicos, os quais são debatidos a partir de constatações amplamente
desenvolvidas e consagradas pela tradição crítica, além de hipóteses mais recentes,
como a que reconhece no escritor a figura de um emulador que redimensionou no século
XIX uma antiga técnica desenvolvida por escritores clássicos gregos e latinos.

Palavras-chave: Machado de Assis; Memórias Póstumas de Brás Cubas;


intertextualidade; crítica literária; emulação.

 
Abstract: Underpinned on the recent critical reception of Machado de Assis, this article
presents and discusses some issues that address the topic of intertextuality in the writer's
work, particularly in the writing of his novel The Posthumous Memoirs of Brás Cubas.
Machado is seen as a tireless reader, given the numerous quotes and historic and literary
references in the body of his work; and also as an author acutely aware of technical
procedures, whose discussion is based not only on widely developed findings
consecrated by the critical tradition, but also on more recent hypotheses, such as the one
that acknowledges the writer as an emulator that reshaped, in the nineteenth century, an
ancient technique developed by Greek and Latin classic writers.
                                                                                
Key-words: Machado de Assis; Memórias Póstumas de Brás Cubas; intertextuality;
literary criticism; emulation. 

O crítico literário Alfredo Bosi, no ensaio “Brás Cubas em três tempos” (2006),
afirmou que a crítica machadiana, ao estudar o romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas, tem se guiado por três principais registros. O intertexto, a partir da apropriação
de Machado da “forma livre” de Lawrence Sterne, inserida na tradição da sátira
menipeia1; a leitura existencial, centrada na figura do humorista melancólico que se

1
“A sátira menipeia tem sua origem em Marco Terêncio Varrão (116 a 27 a.C.) com Saturae Menippeae:
o adjetivo menipeia provém de Menipo, filósofo da escola dos cínicos, a qual desprezava as convenções
sociais e as riquezas, obedecendo exclusivamente às leis da natureza. A etimologia de cínico se prende a
‘kýon’, cão, um possível epíteto de Diógenes, integrante da escola cínica de comportamento extravagante.
Menipo de Gadara viveu no século III a.C. e escreveu muito, mas nada nos chegou. Entretanto, Varrão o
assimilou e nos dá uma ideia dos escritos daquele filósofo através de sua obra Saturae Menippeae” (Silva,

1
autoanalisa; e a crítica sociológica, que tem como foco o tipo social de Brás e o
contexto do Brasil Império. Bosi ressalta que nenhuma interpretação é suficiente para
captar a densidade do olhar machadiano.
Trataremos aqui da primeira vertente mencionada pelo crítico – a
intertextualidade – em estudos recentes de autores que tratam do tema na obra de
Machado, e mais precisamente na composição de Memórias Póstumas de Brás Cubas: o
ensaio do próprio Bosi, que apresenta traços panorâmicos; Alusão e Zombaria: Citações
e Referências da Ficção de Machado de Assis (2008) e o olhar oblíquo do bruxo:
ensaios machadianos (2008a)2, de Marta de Senna; e Machado de Assis: por uma
poética da emulação (2013), de João Cezar de Castro Rocha. São trabalhos que
fornecem uma boa visualização do tema que passo a apresentar em linhas breves.
A intertextualidade na obra de Machado de Assis é um fator estrutural nas suas
composições, por isso mesmo ocupa um lugar privilegiado na fortuna crítica do escritor.
A pesquisa intertextual machadiana, anterior ao conceito formulado por Julia Kristeva
em 1966, no qual “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é
absorção e citação de outro texto” (KRISTEVA apud COMPAGNON, 2006, p. 111),
começou em 1939 com Eugênio Gomes, que escreveu o estudo Influências inglesas em
Machado de Assis3. Dez anos após essa pioneira publicação, o mesmo autor, em
Espelho contra espelho, retomou sua pesquisa e a ampliou ao relacionar Machado com
o escritor francês Victor Hugo4. O trabalho de Eugênio Gomes, fiel à sua época, se valia
dos parâmetros de “fonte” e “influência”, que mais tarde, na teoria e na crítica literária,
viriam a ser substituídos por “intertextualidade”.
Alfredo Bosi, ao se referir à intertextualidade em Machado desvendada pela
tradição crítica, ressalta panoramicamente a linhagem que se ateve a um olhar formal
sobre a obra do escritor. O crítico alude em nota exemplos como Metáfora e espelho, de
Dirce Cortes Riedel; Labirinto do espaço romanesco, de Sonia Brayner; e A poética do
legado: presença francesa em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Gilberto Pinheiro

Amós Coelho da.) In: “O Alienista e a sátira clássica antiga”. Disponível em:
http://www.filologia.org.br/revista/artigo/10(29)03.htm. Acesso em 28 ago. 2014.
2
Na sua 2ª edição, revista e modificada.
3
Otto Maria Carpeaux, na Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, o tem como o “primeiro
estudo sério de literatura comparada aplicada a Machado de Assis” (CARPEAUX apud SENNA, 2008a,
p. 13).
4
Um estudo recente sobre o tema encontra-se em Rimas de ouro e sândalo: a presença de Victor Hugo
nas crônicas de Machado de Assis, livro de Daniela Mantarro Callipo (2010).

2
Passos. Mais detalhadamente, porém, a visada de Bosi traz à cena considerações de José
Guilherme Merquior que, em “Gênero e estilo das Memórias Póstumas de Brás Cubas”,
viu na composição do romance os traços formais e psicológicos da menipeia, tais como:
“mistura do sério e do cômico, liberdades em relação à verossimilhança, preferência por
estados de espírito aberrantes e, fundamentalmente, o gosto de intercalar subgêneros
que vão do fragmento puramente anedótico ao mais inesperado excurso digressivo”
(BOSI, 2006, p. 23); e de Enylton de Sá Rego que, em O calundu e a panaceia:
Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica, entre outras considerações,
compara procedimentos retóricos de Machado com os encontrados nas obras satíricas de
Luciano de Samóstata, escritor sírio do Séc. II d.C. Finalmente, em sua breve exposição,
o crítico passa a transcrever uma parte do ensaio de Sérgio Paulo Rouanet, Memórias
Póstumas e Tristram Shandy, que apresenta uma multiplicidade de similitudes
procedimentais entre as obras de Machado e Sterne, relacionadas em quatro tópicos: “a
presença enfática do narrador; a técnica da composição livre, que dá ao texto a sua
fisionomia digressiva e fragmentária; o uso arbitrário do tempo; a interpenetração de
riso e melancolia” (2006, p. 24).
A presença enfática do narrador, ou a “hipertrofia da subjetividade”, destacada
por Bosi, que Roberto Schwarz em Um mestre na periferia do Capitalismo5 chamou de
“volubilidade”, é compreendida por Rouanet como um traço estrutural de Memórias
Póstumas de Brás Cubas. No romance Tristram Shandy, o narrador apresenta a mesma
volubilidade, ainda acompanhada de uma certa arrogância. Para Rouanet, a obra de
Sterne, modelar para a narrativa machadiana, se constituiu no protótipo de todos os
romances volúveis. A ideia de filiação se explicita na comparação entre as duas obras a
partir de seus narradores. Ambos se pautam por exposições demasiado sinuosas. Se
Tristram “disserta sobre todas as coisas” (2006, p, 24), o ensaísta observa que do
mesmo modo Brás Cubas “exprime a sua opinião sobre tudo” (2006, p. 25).
Seguindo o fluxo de diversas pesquisas que pautaram a intertextualidade na
obra de Machado de Assis desde o pioneirismo de Eugênio Gomes, Marta de Senna,
ensaísta e pesquisadora do Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Rui Barbosa,
situado no Rio de Janeiro, recentemente disponibilizou uma base de dados na internet6

5
In: SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas
Cidades, 1990.
6
Disponível em www.machadodeassis.net.

3
que permite a localização de um sem-número de citações e alusões histórico-literárias
identificadas no corpo da obra do escritor fluminense. Trata-se de um instrumento de
pesquisa que possibilita que sejam acessados imediatamente os autores citados por
Machado, assim como as obras mencionadas, os fatos históricos, as personagens e os
lugares nomeados ou a que se faz alusão. Também o site possibilita identificar
referências de fontes anônimas, como provérbios, ditados e adágios, além de criações
coletivas, como a Bíblia, a Mitologia Clássica e a História. Senna lembra que são mais
de dois mil registros de citações e alusões a serem consultadas, mas adverte que

(...) a simples enumeração de autores ou obras citados é um exercício


estéril. O interessante é, uma vez identificadas as referências, tentar
compreender o uso que delas faz o autor, de que maneira as faz render
este ou aquele resultado, com que habilidade as põe de serviço de sua
própria obra (2008a. p. 130).

Em Alusão e Zombaria: Citações e Referências da Ficção de Machado de


Assis, livro centrado na questão da intertextualidade, Marta de Senna afirma que o
intertexto em Machado revela um “universo temático, cronológico e geográfico de
magnitude sem precedentes (e sem sucessores) na literatura brasileira” (SENNA, 2008,
p. 11)7. A quantidade de citações e referências ao longo da obra do escritor, que incide
não apenas nos seus romances e contos, mas também nas suas crônicas e na
dramaturgia, dá a indicação imediata de que Machado era fundamentalmente um leitor
voraz e exemplar. A lista de referências intertextuais é infindável: a Bíblia – Antigo e
Novo Testamento, Shakespeare, Homero, Camões, Voltaire, Platão, Byron, Milton,
Plutarco, Diógenes, Dante, Molière, Hugo, Pascal, Virgílio, Garrett, Sá de Miranda, só
para mencionar alguns poucos, entre tantos outros, incontáveis até. Nunca gratuitas, as
citações, que poderiam passar por meros artifícios de um escritor de origem humilde
que pretendia se afirmar no ambiente literário de sua época, na verdade sempre
assumiram um caráter funcional nas suas narrativas, “servindo ora à caracterização de
uma personagem, ora à estratégia do narrador, ora à própria estruturação da obra, ora a
um propósito extratextual, ora à sugestão de uma atmosfera” (2008a, p. 131). Dada não
apenas a sua incidência como também sua importância, o intertexto exerceu um papel

7
Marta de Senna integra o Grupo de Pesquisa “Relações intertextuais na obra de Machado de Assis”, que
realiza encontros anuais e conta com uma publicação, Machado de Assis e o outro: Diálogos Possíveis
(2012), com ensaios reunidos e organizados pela ensaísta e por Helio de Seixas Guimarães.

4
fundamental na estruturação da obra machadiana, principalmente na fase madura do
escritor, interferindo diretamente nos enredos e na construção das personagens.
A obra mais frequentemente citada na obra de Machado é a Bíblia, que “serve
aos mais diferentes propósitos, e ela pode mesmo ser evocada para trazer ao texto certo
lirismo, com que Machado vez por outra atenua a impiedade cética dominante em seus
escritos” (2008, p. 47). Nos romances iniciais, as alusões e citações bíblicas aparecem
como um procedimento discreto e pontual, mas em Memórias Póstumas de Brás Cubas
e nas obras subsequentes, nas quais o narrador onisciente dá lugar a outras modalidades
narrativas, as Escrituras sofrem um processo de dessacralização, com a aplicação de
passagens bíblicas a situações profanas, estratégia que, dentre outras, Roberto Schwarz
assinalou como uma desfaçatez da parte do narrador machadiano. Em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, as passagens são relacionadas a situações
comezinhas – de zombaria8 – em contextos espúrios ou moralmente suspeitos. A “pena
galhofeira” (2008, p. 39) do livro, de seu “narrador tão versátil quanto frívolo” (2008, p.
38), assim como procede nas passagens bíblicas, quando se serve de alusões à mitologia
e à literatura clássica9 também subtrai dessas referências toda e qualquer aura de
solenidade. Não apenas a Bíblia e os antigos gregos sofrem tal deslocamento valorativo
na voz do narrador machadiano. Senna mostra que “nem mesmo Dante é imune a essa
espécie de nivelamento por baixo, a que Brás submete, quase sem exceção, os autores
que cita”10 (2008, p. 37), e tampouco o cultuado Shakespeare escapa a esse processo de

8
Alguns exemplos trazidos por Marta de Senna são bastante ilustrativos. No capítulo 1 de Memórias
Póstumas de Brás Cubas: “Moisés, que contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença
radical entre este livro e o Pentateuco” (ASSIS apud SENNA, 2008, p. 30). “No título e no corpo do
capítulo 33, (o narrador) usa a expressão repetida anaforicamente por São Mateus no Sermão da
Montanha (5:3-12), para anunciar o convívio com Eugênia no Alto da Tijuca: ‘Bem-aventurados os que
não descem’” (SENNA, 2008, p. 33). No capítulo 35: “Ora, aconteceu que, oito dias depois, como eu
estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa que sussurrou as palavras da Escritura ( Act.
X, 7): ‘Levanta-te e entra na cidade.’ Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que
me desarmava diante da candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher
coxa!” (ASSIS apud SENNA, 2008, p. 34).
9
“No capítulo 34, ‘A Uma Alma Sensível’, o narrador se dirige ao leitor que o estaria considerando
cínico por causa de sua atitude para com Eugênia, a quem já chamara, no capítulo anterior, ‘minha Vênus
manca’. Agora, fazendo jus ao adjetivo, e exacerbando o cinismo a um nível quase insuportável, por meio
de um trocadilho cruel, pergunta: ‘Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana!’” (SENNA, 2008, p.
35).
10
“Diz Brás Cubas: ‘Um livro perdeu Francisca; cá foi a valsa que nos perdeu’. Virgília, já casada com
Lobo Neves, dança com Brás num baile, e os dois são como que incendiados pela sensualidade da valsa.
Repare na diferença: na obra de Dante, os amantes deixam-se empolgar por um beijo quase casto e são
por causa disso condenados à danação eterna. Aqui, Virgília e Brás começam a sua aventura adúltera, que
será vivida impunemente” (SENNA, 2008, ps. 37-38).

5
rebaixamento, concernente às “estratégias do autor na construção de seu narrador
imprudente e debochado” (2008, p. 36)11.
Senna, em seus estudos, visualizou em Machado um eminente leitor da
tradição, referenciando a biblioteca do bruxo do Cosme Velho como ponto de partida e
ferramenta indispensável para a composição de seus textos. Mesmo ciente de que os
esforços de pesquisa nessa direção não necessariamente provam que o escritor teria
efetivamente lido os títulos que possuía em casa, esses pelo menos fornecem algumas
indicações que se ajustam com as passagens citadas e aludidas na sua obra. Além da
biblioteca de Machado, disponível em inventário realizado pelo biógrafo Jean Michel
Massa12, a ensaísta, na introdução de seu livro o olhar oblíquo do bruxo: ensaios
machadianos, se baseia também no fato de que o escritor “era freqüentador assíduo das
melhores bibliotecas públicas do Rio de Janeiro de seu tempo: a Biblioteca Nacional e o
Real Gabinete Português de Leitura” (SENNA, 2008a, p. 11).
Ressalta-se, a partir da pesquisa de Senna, o mundo de Machado, o seu
ambiente, os livros de sua biblioteca e outros, que o escritor buscou nas bibliotecas
públicas, todos que presumidamente nortearam sua intenção de permear as narrativas
com alusões e passagens lapidares encontradas nas fontes da tradição literária e
filosófica. Nesse sentido, é necessária também a cumplicidade do leitor machadiano,
que se vê obrigatoriamente familiarizado com as referências apontadas nas obras.
Consequentemente, nesse contexto, presume-se uma valorização do ato de ler, que deixa
de ser mero passatempo de figuras da alta sociedade para receber de Machado um grau
de erudição sem precedentes na história da literatura brasileira. “Machado supõe no
leitor um parceiro de jogo à altura de sua cultura literária, um leitor que compartilhe
com ele a sua enciclopédia” (2008, p. 22), afirmou Senna.
No ensaio “Sterne e Machado: o pacto com o leitor”, publicado no livro o
olhar oblíquo do bruxo: ensaios machadianos, Senna se refere à “tendência de todo
romancista criar uma espécie de segundo ‘eu’, o leitor, a quem imagina como receptor
ideal de sua mensagem” (2008a, p. 31). Esse leitor, direta ou indiretamente, é levado

11
“Diante da dúvida se devia ou não aceitar ir como secretário de Lobo Neves na presidência de uma
província, para poder continuar o seu affair com Virgília, Brás evoca a mais famosa frase de Hamlet,
aviltando-a: ‘Era o caso de Hamlet; ou dobrar-me à fortuna, ou lutar com ela e subjugá-la. Por outros
termos: embarcar ou não embarcar: esta era a questão’” (SENNA, 2008, p. 37).
12
O trabalho pioneiro de Jean Michel Massa, originalmente redigido em francês na Revista do Livro, em
1961, foi republicado na íntegra em A Biblioteca de Machado de Assis, livro organizado pelo professor da
UERJ e crítico literário José Luiz Jobim (2001).

6
pelo autor a ler de determinadas maneiras, sendo assim conduzido sem resistência a
pontos de vista pré-fixados. “Tal leitor é mais uma entre as várias invenções do
romancista, é uma entidade tão ficcional quanto qualquer personagem” (2008a, p. 31),
diz Senna.
Sterne, em Tristram Shandy, fornece uma eficaz receita de complacência para
com o leitor: “o respeito mais verdadeiro que podeis mostrar pelo entendimento do
leitor será dividir amigavelmente a tarefa com ele, deixando-o imaginar, por sua vez,
tanto quanto imaginais vós mesmos” (2008a, p. 32). O escritor, com isso, lança mão de
uma retórica que visa obter uma determinada atenção do leitor para que esse possa
acionar sua imaginação criativa. Necessário, contudo, uma cooperação do leitor com o
autor para o bom entendimento da obra. Escreveu Senna:

Sterne valoriza a relação entre o seu texto e o do leitor, entre o


narrador e o público e, por isso cria uma espécie de pacto entre um
knowing consumer of novels, este um leitor privilegiado, capaz de
discernir todas (?) as possibilidades de interpretação a que os
romances dão margem (2008a, p. 33).

O leitor de Sterne, o knowing reader, é o “que aprende a decifrar o texto


porque se torna comparsa de um narrador extremamente hábil” (2008a, p. 33). Senna
assegura que esse leitor sabe inclusive que o sentimentalismo do narrador tende à
insinceridade, mas só até certo ponto, pois ao mesmo tempo reconhece uma verdade
invulgar no seu sentimento. Para a ensaísta, através da proximidade estabelecida entre o
texto e a sua recepção, a relação sentimental mais valiosa que se constrói em Tristram
Shandy é justamente entre o narrador benevolente e o leitor sapiente.
E em Machado, a partir de Sterne, a pergunta imediata que se faz é: como o
escritor fluminense estabelece em Memórias Póstumas de Brás Cubas o pacto entre o
narrador – o defunto autor – e o leitor13? Senna fornece um caminho para a resposta:

Logo no prólogo “Ao leitor”, dirá o narrador que terá, talvez, não mais
que cinco leitores (tópico a que volta no capítulo 34, “A uma alma
sensível”). A estes se dirige. Destes, seletíssimos, espera que lhe
percebam “as rabugens de pessimismo”, que, dissimulado, alega não
saber se meteu ou não na obra (2008a, p. 37).

13
Um maior detalhamento de questões relativas ao leitor machadiano encontra-se no livro Os leitores de
Machado de Assis: O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19 (2012), do professor
de Literatura Brasileira da USP, Helio de Seixas Guimarães.

7
A primeira grande mensagem do livro de Machado é que o leitor deve ser
especialmente apurado para entendê-lo. Machado insta esse leitor raro a contribuir na (e
para a) obra, num processo incansável de sedução ou mesmo uma exortação
implacável14. No desenrolar dos capítulos do romance, do mesmo modo que a
cumplicidade com o narrador machadiano diverte o leitor e o incita a se tornar
independente, faz considerar como seu o subtexto que guarda um profundo descrédito
na natureza humana. Entre mesquinha, hipócrita, torpe, ignóbil e vil, a natureza humana
é “explicitamente definida, na última frase do livro, como miséria” (2008a, p. 39).

Tal miséria, precedida de um pronome adjetivo possessivo, ‘nossa’, é


sim, a da humanidade inteira, mas sua inquietantemente privatizada
para o universo restrito de um ‘nós’, de um ‘eu’ e um ‘tu’ que se
foram construindo desde a primeira página do livro: o ‘eu’ e o ‘tu’ do
narrador e do leitor (2008a, p. 39).

Para a ensaísta, em “Fielding, Sterne, Machado: uma linhagem”, ensaio


publicado em o olhar oblíquo do bruxo: ensaios machadianos, a linhagem que une os
três autores é a do narrador autoconsciente, esse que é capaz de exibir ao leitor os
truques de sua mágica. Escreveu Senna:

Desde o seu surgimento na era moderna, com Cervantes, o romance


vem empreendendo uma espécie de crítica ontológica de si mesmo,
crítica esta que se processa não como uma exposição discursiva, mas
através da manipulação técnica da própria forma que visa representar
a realidade. Os romances de tal linhagem são aqueles que
empenhadamente se lançaram a experiências formais cuja finalidade é
chamar a atenção do leitor para a ficção como um produto
conscientemente articulado e não como um invólucro transparente de
conteúdos reais (2008a, p. 20).

Os romances autoconscientes, “agudamente ciosos de si mesmos enquanto


meras estruturas de palavras” (2008a, p. 20), ao exibirem a sua condição de artefato,
deslocam a ilusão do leitor que se vê diante de uma construção real de algo que não é
decerto uma realidade imitada pelo escritor, mas a realidade criada a partir de um

14
Alguns exemplos destacados por Marta de Senna, entre tantos na narrativa machadiana: “Vou expor-
lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo” (cap. 1) (2008a, p. 37); “Decida o leitor entre o militar
e o cônego” (cap. 2) (2008a, p. 37); “Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos
eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a
destruição recíproca dos seres e das coisas” (cap. 7) (2008a, p. 38). “Se o leitor não é dado à
contemplação desses fenômenos mentais, pode saltar o capítulo, vá direto à narração” (2008a, p. 38).

8
engenho ficcional. “Unidos pela técnica de narrar, que consiste, grosso modo, em
‘narrar’ a técnica” (2008a, p. 29) estão os escritores que pertencem à linhagem do
narrador autoconsciente. Senna ressalta nessa tendência a possibilidade de um jogo
dialético entre ficção e realidade que permite ao leitor ter uma reflexão mais ampla
sobre a condição humana.
A influência de Sterne na obra de Machado, a partir de Viagem Sentimental
através da França e da Itália e Tristram Shandy, este último que inspirou a composição
do texto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi bastante visitada pelos críticos.
Senna, ao estudá-la, indicou diversos processos intertextuais interferentes na técnica
narrativa do escritor fluminense. Sobre as relações entre os textos de Sterne e Machado,
além da consciência compartilhada com leitor sobre a arbitrariedade das obras a partir
do desnudamento do seu processo de criação, a ensaísta afirmou que “em ambos, sob a
capa do humor e do inverossímil, é possível ler uma inteligente crítica social e
ideológica aos costumes e às filosofias que lhe são contemporâneas” (2008, p. 30). Ao
sinalizarem sua condição existencial numa realidade multifacetada e aberta, as obras
fundamentam a si mesmas como manifestações genuinamente processuais na sua
inserção num mundo em permanente diálogo. O livre comércio entre o escritor inglês e
Machado em Memórias Póstumas de Brás Cubas, não obstante, também revela traços
assaz aparentes, visto que “em ambos há uma desabrida utilização de recursos
tipográficos, de páginas em branco, de diálogos reduzidos a sinais de pontuação 15”
(2008, p. 30).
As ideias de “fonte” ou “influência” literária, substituídas historicamente pelo
conceito amplo de intertextualidade, que vimos servir de pano de fundo aos ensaios de
Marta de Senna, se veem agora no campo da crítica machadiana diante de uma nova
hipótese no livro Machado de Assis: Uma poética da emulação (2013). O trabalho do
professor de Literatura Comparada da UERJ, João Cezar de Castro Rocha, propõe uma
novidade crítica ao reconhecer no escritor a figura de um emulador. Se a técnica
da imitatio, entre os antigos romanos e no Renascimento, consistia em imitar o estilo de
um escritor ou artista para engendrar uma nova obra de arte, a aemulatio, por sua vez, a
partir de tal obra “imitada”, sem perder de vista a referência do modelo original,
objetivava superar o seu exemplo.  Tendo como foco a disposição procedimental de
15
Exemplos que já se tornaram emblemáticos, mencionados por Marta de Senna: o capítulo 55, “O velho
diálogo de Adão e Eva”; e o capítulo 139, “De como não fui ministro de estado” (2008, p. 30).

9
Machado, tomando-o pela sua própria autodefinição como um “autor-operário”, Rocha
recupera os parâmetros da antiga prática da aemulatio e a atualiza, forjando o conceito
da “poética da emulação”, nome para o esforço anacrônico do escritor que propiciou
novos rumos para as suas narrativas.
O crítico parte da consagrada divisão da obra de Machado de Assis em duas
fases e alude à crise dos 40 anos vivida pelo escritor entre os anos de 1878 e 1880 para
propor uma explicação alternativa ao aparecimento de uma nova dicção na obra
machadiana a partir da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, realizada em
folhetins na Revista Brasileira, no ano de 1880, seguida da sua primeira edição em livro
em 1881. A motivação interna que levou Machado a redefinir seus rumos é elaborada
com a hipótese de que o escritor, quando se deparou com o romance O Primo Basílio,
de Eça de Queirós, publicado em 1878, mesmo ano de Iaiá Garcia, teria feito uma
revisão de seus procedimentos técnicos para proporcionar o salto qualitativo que
possibilitou a escrita de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A metamorfose, em função
do contato visceral com a obra de Eça, denota também uma suposta rivalidade literária
com o escritor português como um fator decisivo para a mudança de paradigma de seus
métodos narrativos. A leitura que Machado fez de O Primo Basílio, ensaiada em dois
artigos publicados em 16 e 30 de abril de 1878 na revista O Cruzeiro16, aparece nesse
ínterim como o elemento catalisador que alavancou a nova e definitiva fase do escritor
fluminense. Rocha presume pelos avessos na crítica machadiana a Eça a intuição do
caminho seguido na escrita de Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Não obstante a
crítica acre a O Primo Basílio, o escritor brasileiro soube aproveitar a lição do
romancista português (...) graças à emergência da técnica da emulação como critério de
leitura crítica e escrita inventiva” (2013, p. 148), diz o crítico. Nesse sentido, o crítico
propõe que os dois artigos sobre O Primo Basílio sejam lidos por uma nova luz.
Para Rocha, o diálogo intertextual mais importante de O Primo Basílio se dá
com Madame Bovary, romance de Gustave Flaubert publicado em 1857. O crítico
demonstra que Eça se apropriou da técnica de composição do autor francês através do
que chama de método queirosiano de reciclagem do romance flaubertiano, evidenciado
pelo emprego sistemático do discurso indireto livre. Mais ainda, Eça teria reescrito
Madame Bovary utilizando o mesmo processo de concentração formal de Flaubert, ao
16
In: AZEVEDO, Sílvia Maria; CALLIPO, Daniela Mantarro; DUSILEK, Adriana (Orgs.). Machado de
Assis: crítica literária e textos diversos. São Paulo: Unesp, 2013, p. 467-481.

10
aglutinar diversas culturas e épocas literárias. Na reescrita de Eça, particularmente, tal
acumulação de elementos é vista por Rocha como um procedimento definidor da
suposta aemulatio praticada pelo escritor português. O crítico, a partir da constatação de
Émile Zola, que considerou o romance queirosiano superior ao modelo flaubertiano,
concluiu que “o que se destaca na avaliação de Zola é a ideia de que a apropriação de
um modelo pode ter um resultado surpreendente, e mesmo superior, em relação ao
modelo adotado” (2013, p. 136). Tal medida é a chave de compreensão do conceito de
poética da emulação proposto pelo crítico.
Rocha compara a concentração formal da obra de Flaubert tornada comum em
O Primo Basílio com os métodos utilizados por Machado em Memórias Póstumas de
Brás Cubas:

Não é verdade que a escrita de Memórias Póstumas de Brás Cubas


também implicou a apropriação simultânea de gêneros e de estilos
diversos, por vezes contraditórios? De igual modo, Machado se
revelou um leitor da tradição literária em sua acepção mais ampla,
assim como um agudo revisor da literatura brasileira e portuguesa
contemporâneas (2013, p. 148).

Machado teria praticado a poética da emulação não apenas com a apropriação


de um determinado conjunto da tradição literária em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, mas a partir da liberdade inovadora e a irreverência libertadora com que foi
realizada a obra. Rocha destaca nesse trânsito a consciência do lugar periférico de sua
voz narrativa e o caráter lúdico de sua abertura inventiva:

O ato de assenhorar-se de outras culturas favorece a distância crítica


necessária à pena da galhofa. E a consciência do próprio lugar na
República das Letras remete à tinta da melancolia. No simples ato de
reciclar a tradição de maneira pouco convencional, novos elementos
surgem, criando condições para ousadias formais de grande alcance
(2013, p. 330).

A poética da emulação é vista pelo crítico não como um recurso para superar
determinados traços de inferioridade cultural, mas sim por ser um estímulo à invenção,
uma força que “permite elaborar a circunstância periférica, potencialmente convertendo
o exíguo em estímulo; a escassez, em agudeza; a lacuna, na própria estrutura” (2013, p.
353). “A técnica da emulação supõe partir da imitação consciente de um modelo prévio,

11
com o objetivo de acrescentar-lhe dados novos. Desse modo, o resgate deliberadamente
anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio transforma a secundidade da condição
periférica em fator potencialmente produtivo” (2013, p. 107), asseverou Rocha.
Com a universalidade do autor e da obra dependente do idioma e a existência
de literaturas favorecidas por circunstâncias históricas que auxiliam diretamente a
difusão de determinadas produções, os escritores em situação periférica, para lidarem
com os cânones das literaturas inglesa e francesa, formadoras do romance moderno nos
séculos XVIII e XIX, tiveram que levar em conta a tradução. Rocha atenta para a
centralidade da tradução, isto é, e a possibilidade da transformação dessa secundidade
em princípio de invenção. Para o crítico, nesse contexto de transferência de tradições, a
aemulatio resolve o dilema de todo romancista que escreve num país ou numa língua
periférica. Rocha sublinha que

(...) se um escritor considera sua própria situação como precária, a


confirmação de “influências” potencialmente se torna libertadora
porque o fato de ser “influenciado” abre as portas da tradição literária.
O passado deixa de ser um peso, transformando-se num mosaico, cuja
recombinação é o traço da invenção periférica, não hegemônica. O
que importa é não ser influenciado apenas pelas últimas modas, mas
sim pelo conjunto da tradição, se possível, de todas as tradições (2013,
ps. 324-325).

No ambientes literários17 anteriores ao Romantismo, desenvolvidos com base


na relação entre imitatio e aemulatio, os ouvintes ou leitores idealmente dominavam o
mesmo repertório. Obras consagradas serviam de modelo para alimentar o jogo entre
produtores e receptores, em que alusões e citações eram reconhecidas sem dificuldade,
fornecendo um caráter lúdico à experiência literária. E mais: “Tal repertório articulava
um conhecimento objetivo, transmitido nas instituições de ensino, exercitado em
ocasiões públicas, autêntico cartão de visitas de pertencimento a determinado nível
cultural” (2013, p. 170). Desse modo, um poeta como Virgílio tinha ciência de que os
seus leitores identificavam suas referências e a relacionavam com a matriz homérica. A
emulação, para ser apreciada junto à realização artística, necessitava do reconhecimento
do público sobre o modelo imitado. A técnica utilizada pelos autores, por sua vez, era
tributária de uma capacidade inventora de produzir novas obras de arte a partir de
17
João Cezar de Castro Rocha usa a expressão “sistema literário” para balizar sua argumentação.
Substitui-se aqui a palavra “sistema” por “ambiente”, por considerá-la mais aberta e flexível que o termo
utilizado pelo crítico.

12
modelos conhecidos. Para ser um bom emulador nesse contexto, o artista necessitava ter
como ponto de partida um estudo apurado da tradição e, consequentemente, dominar as
técnicas necessárias para conquistar a excelência da fatura de determinadas obras e
transformar possíveis imitações em emulações. Rocha se refere a “uma relação
dinâmica (que) assegurava o equilíbrio entre talento individual e tradição” (2013, p.
139). Ora, foi justamente disso que Machado se imbuiu.
O crítico afirma que T. S. Elliot, no ensaio “Tradition and Individual Talent”
(1919), teve a mesma intuição de Machado nos artigos dedicados a O Primo Basílio e
na escrita de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Alguns trechos do poeta e crítico
inglês são destacados por Rocha:

Tradição é uma questão de relevância muito mais ampla. Não pode ser
herdada, e, se alguém a deseja, deve obtê-la à custa de muito trabalho
(...)
Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer ofício, possui seu sentido
completo em si mesmo. Sua relevância, sua avaliação depende da
relação com poetas e artistas mortos (...) o que ocorre quando uma
nova obra de arte é criada, é algo que ocorre simultaneamente a todas
as obras de arte que a precederam.
(...)
Porém, a diferença entre o presente e o passado é que o presente
consciente representa uma consciência do passado de um modo e com
uma profundidade que o próprio passado não poderia ter mostrado.
(ELLIOT apud ROCHA, 2013, ps. 354-355).

Tal lapidação do talento individual aduzida por Elliot é tributária de uma


disciplina incomum. A imitatio só se transmuda em aemulatio com o domínio da ars. A
emulação nesse sentido vigora como a possibilidade de um constante aperfeiçoamento
artístico. No caso de um romancista, atendo-se ao específico de sua matéria, o propósito
seria o de dominar certos procedimentos retóricos. Para Rocha, foi o vínculo de
Machado com Shakespeare que proporcionou o aprendizado capital do autor de
Memórias Póstumas de Brás Cubas para que pudesse conceber a sua própria técnica da
aemulatio. Machado teria aprendido com o dramaturgo inglês a forma de lidar com a
tradição herdada e simultaneamente com o mundo contemporâneo. Shakespeare foi
exemplar na apropriação não apenas das tragédias e comédias da Antiguidade Clássica,
assim como das crônicas medievais, episódios históricos e lendas, mas também soube
servir-se de seus contemporâneos, dos quais aproveitou algumas ideias e até soluções

13
cênicas. “Segundo os eruditos, das 37 peças reunidas no First Folio, de 1623, nada
menos do que 33 resultam da combinação de fontes diversas, portanto, de invenções, e
não de enredos originalmente criados pelo dramaturgo” (ps. 314-315), afirmou Rocha.
A imagem de Machado leitor da tradição a partir de Shakespeare e de outras
fontes da tradição incide numa chave bastante específica quanto a sua singular
apropriação e o modo pelo qual ela ocorreu. Tentadora é a analogia com a imagem do
leitor ruminante que Machado trouxe na famosa passagem de Esaú e Jacó: “O leitor
atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz
passar e repassar os atos e fatos, até que se deduz a verdade que estava, ou parecia estar
escondida” (ASSIS apud ROCHA, 2013, p. 157). Sobre a citação referida, inescapável à
poética da emulação, escreveu Rocha:

O ato de ruminar supõe o hábito definido em Crônica de A Semana, de


27 de outubro de 1895: “leio, releio e transleio”. Pode-se vislumbrar,
na analogia do gesto de ruminação com o ato de leitura, uma possível
alusão ao universo da aemulatio, pois, em ambos os casos, apropriar-
se do outro é o primeiro passo (2013, p. 158).

O que transparece na aemulatio praticada por Machado seria esse “apropriar-


se do conjunto da tradição, através da ruminação de autores devidamente devorados”
(2013, p. 161). A utilização de técnicas pré-românticas para estruturar seus textos fez
com que seus romances passassem a figurar como pós-românticos, provocando um
estranhamento que antecipou na sua obra o século XX. Como sentenciou Rocha: “O
desenvolvimento da poética da emulação parte de horizonte perfeitamente caracterizado
no desembaraço de Oswald de Andrade: Filiação” (2013, p. 190). A antropofagia
oswaldiana, alguns anos após a experiência de Machado, finalmente trouxe para o
centro das discussões esse outro, a ser ruminado, deglutido e incorporado.
O empréstimo de uma renovada técnica de composição, caso da projeção de
Sterne em Memórias Póstumas de Brás Cubas, tema visto e revisto pela crítica literária,
fez parte da estratégia definitiva que colocou Machado numa posição de destaque que
nunca tivera antes. Passou a ser o escritor que hoje conhecemos como universal. Como
mais tarde afirmou o crítico Augusto Meyer, o antes acanhado “Machadinho”
finalmente se transforma no potente “Machadão”18. A tranquilidade hermenêutica dos

18
In: MEYER, Augusto. “De Machadinho a Brás Cubas”. Revista do Livro, Rio de Janeiro, v.3, n. 11,
set.1958, p. 9-18.

14
romances da primeira fase foi logo substituída pela indeterminação semântica da
segunda, pois “agora cabe ao leitor imaginar alternativas, em lugar de esperar a chave
do escrito, a ser fornecida pelo diligente narrador” (2013, p. 51). Ao novo leitor
machadiano não é mais dada uma interpretação estabilizante. “Ambiguidade
hermenêutica, chave de sentido, impossibilidade conclusiva: o ato interpretativo
transforma-se num quebra-cabeça cuja peça-chave nunca se encontra” (2013, p. 51).
Perguntas sem resposta.
A intertextualidade em Machado de Assis, estudada pela atual fortuna crítica
de sua obra, especialmente nos textos de Marta de Senna e João Cezar de Castro Rocha,
encontra dois tópicos privilegiados para o desenvolvimento de ideias a respeito da
pertinente prática machadiana: o procedimento do autor e o diálogo com o leitor. O
procedimento do autor, apresentado brevemente por Bosi, explicitado nas leituras
críticas que privilegiaram métodos formais, e investigado mais detalhadamente a partir
de intercâmbios textuais por Marta de Senna, ganha novos contornos com a hipótese de
João Cezar de Castro Rocha, a de que Machado revolucionou sua escrita ao realizar
plenamente na sua fase madura a poética da emulação. O diálogo com o leitor, por sua
vez, revigora processos intertextuais e dialógicos ao visualizar o panorama do mundo
narrado com os mundos aludidos e citados, pressupondo ainda outros mundos, aqueles
que só o leitor-cúmplice do narrador machadiano é capaz de trazer não apenas do seu
conhecimento da tradição e da sua memória de leituras, mas no modo de se relacionar
com as narrativas, principalmente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, e com
a perspectiva numerosa e fragmentária de alusões e citações, essa que se mostra tão
antiga quanto contemporânea na atual sociedade em rede.

Referências

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Prefácio de Abel Barros
Baptista. São Paulo: Globo, 2008.
BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
CALLIPO, Daniela Mantarro. Rimas de ouro e sândalo: a presença de Victor Hugo
nas crônicas de Machado de Assis. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

15
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Tradução de Cleonice Paes Barreto
Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: O Romance
Machadiano e o Público de Literatura no Século 19.  São Paulo: Nankin/Edusp, 2012.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de (Org.). Machado de Assis e o
outro: diálogos possíveis. Rio de Janeiro: Móbile 2012.
JOBIM, José Luís. (Org.) A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2001.
PASCHE, Marcos. “Machado: entre emulador e emulado”. In: Estudos Avançados, 28
(80), 2014. p. 315-318. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v28n80/29.pdf
Acesso em 16 ago. 2014.
ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: Uma poética da emulação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
SENNA, Marta de. Alusão e Zombaria: Citações e Referências da Ficção de Machado
de Assis. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2008.
________________ O olhar oblíquo do bruxo – ensaios machadianos. Rio de Janeiro:
Língua Geral, 2008a.

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