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A perenidade de Horácio através de Boileau:

uma leitura da recepção da poética clássica no Classicismo francês

Renata Ribeiro Lima

Trabalho apresentado à unidade curricular


Poética Clássica

Porto
2014
Renata Ribeiro Lima

Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes

A perenidade de Horácio através de Boileau:


uma leitura da recepção da poética clássica no Classicismo francês

Trabalho apresentado à unidade curricular Poética


Clássica, ministrada pelo Professor Doutor Jorge
Pereira Nunes Deserto, como requisito para
classificação.

Porto
2014
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Introdução

A Epistola ad Pisones de Horácio, mais conhecida pela designação de Ars Poetica,


como lhe chamou Quintiliano, foi uma das principais obras do “período de ouro” da
literatura romana e historicamente exerceu importante papel na constituição daquilo que
se costuma entender pelo termo “Classicismo” ou “barroco perfeito”. Tendo sido escrita
provavelmente no período de maturidade do poeta, por volta de 14-13 a.C., esse tratado
em verso já tomava como modelo a Poética de Aristóteles, e foi, por sua vez, uma das
principais referências do Renascimento. Até hoje poderíamos constatar a perenidade de
muitos dos princípios horacianos em manuais de redação do ensino primário e secundário,
bem como em cursos de escrita criativa, nos quais as ideias de equilíbrio e de
Em França, a influência horaciana foi decisiva e se alastrou por muitos séculos,
com o seu apogeu, por razões óbvias, no período do classicismo. O historiador Gustave
Lanson chega mesmo a afirmar que o pensamento estético e moral de Horácio é
consubstancial ao espírito do classicismo francês (cf. Cordeiro, 2009: 179). Outro
estudioso da literatura do século XVII em França, J. Marmier, sugere que Horácio foi
imitado no limite do plágio. Um destes casos de veneração quase plagiadora é o de
Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), antigo aluno do Colégio de Harcourt que, com
a publicação de sua Art Poétique (1674), tornou-se o grande legislador da literatura
clássica francesa por meio de sua interpretação dos versos horacianos.
No presente trabalho, procuraremos mostrar, por meio de aproximações entre os
dois textos, a forma como Boileau adaptou o texto horaciano ao contexto francês,
conferindo aos conselhos de Horácio aos Pisões uma maior rigidez e até um maior grau
satírico. A análise comparativa dos textos será organizada em temas, cotejando-se o modo
como foram tratados por Horácio (Epistola ad Pisones) e por Boileau (Art Poétique). Para
tanto, seguiremos em parte a organização da sinopse da Ars Poetica de Horácio feita por
Donald Russell (1972: 279-291), a fim de ter uma base temática comum que entre os dois
livros. Utilizaremos as traduções de R. M. Rosado Fernandes (Horácio, Arte Poética,
1984) e de Célia Berrettini (Boileau, N., A Arte Poética, 1979).
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1. Unidade e coerência

O princípio da unidade, oriundo da Poética de Aristóteles, será um dos mais


discutidos depois a partir do Romantismo. Embora Aristóteles só tenha considerado
indispensável a unidade de ação, Boileau formula a famosa Regra das Três Unidades:
“que a ação se desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato, acabado,
mantenha até o fim o teatro repleto. ” (Boileau, 1979: 42) e explicita o valor que dá a este
princípio em outras passagens, como “que o começo e o fim harmonizem com o meio;
que, com uma arte exigente, as peças adequadas não formem senão um único todo de
diversas partes” (Boileau, 1979: 20); seguindo de perto o conselho horaciano: “Em suma:
faz tudo o que quiseres, contanto que o faças com simplicidade e unidade. ” (Horácio,
1984: 55).
Ambos tratam ainda da unidade da personagem. Quando Horácio diz “Mas se algo
de original quiseres introduzir, ousando conceber em cena nova personagem, então que
ela seja conservada até ao fim como foi descrita de início e que seja coerente. ” (1984:
74), Boileau recomenda: “Conserva em cada um [dos personagens citados anteriormente]
o caráter que lhe é próprio.” (1979: 44).

2. Proficiência necessária para evitar erros/O poeta

No que toca à atividade do poeta, os conselhos práticos de como deve conduzir o


seu trabalho são bastante semelhantes. Logo no início de sua A Arte Poética, Boileau
(traduzido), diz assim: “Ó senhor, pois, que consumindo-se num ardor perigoso, se lança
na espinhosa carreira da poesia, não se gaste em versos sem fruto, nem tome por gênio
um simples versificador: tema as enganadoras iscas de um prazer fútil, e consulte
longamente o próprio espírito e as forças.” (Boileau, 1979: 15). Horácio,
semelhantemente, havia dito: “Vós que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas
forças e pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que
eles não podem suportar.” (Horácio, 1984: 57).
Para ser um bom escritor, no entendimento dos pensadores da Antiguidade (de
linha aristotélica), que Boileau tentou recuperar, era preciso aprender primeiro uma
técnica e depois praticar muito, limar o texto até que este ficasse o mais próximo possível
da perfeição. Para tanto, não bastava a autocrítica do próprio poeta: era necessário ainda
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que o texto fosse avaliado por um crítico severo, e não por um amigo que tivesse medo
de ofender ou que fosse bajulador. Horácio viveu numa época em que a relação entre
patrícios e clientes era sustentada pela bajulação e pelos falsos aplausos, o que
provavelmente o terá levado a escrever que

Como o pregoeiro reúne à sua volta a turba que a mercadoria quer comprar, assim o poeta rico em
terras, rico em dinheiro que, em empréstimos, lhe dá somas chorudas, reúne, à sua volta,
admiradores que só pensam no lucro. (…) Se a alguém tiveres dado alguma coisa ou tiveres
intenção de lha dares, não o convides a ouvir teus versos, porque ele, por si só, está cheio de alegria
e só clamará: «Que lindo! Que bem! Que certo!» (…) Tu, se fizeres versos, não te deixes enganar
pelos espíritos que se escondem sob a pele de raposa. Se algo a Quintílio lesses, ele te dizia:
«Corrige, por favor, isto e isto». E se tu dissesses que não podias fazer melhor e que já tentaras,
em vão, duas e três vezes, ele te aconselhava a suprimir os versos maus e a meter de novo na
bigorna os que tinham saído mal torneados. (…) Um homem honesto e justo criticará os versos
sem beleza, não desculpando os que são duros, riscando com um traço negro da sua pena os mal
alinhavados, cortará os ornatos exagerados, obrigando a dar clareza aos que de luz carecem,
repreenderá os ambíguos e, em suma, notará tudo o que tiver de ser alterado. (Horácio, 1984: 119-
121)

Boileau, leitor atento de Horácio, escreve:

Faça amigos prontos a criticá-lo. Que eles sejam os confidentes sinceros de seus escritos e os
adversários zelosos de todos os seus defeitos. Despoje-se, diante deles, da arrogância de autor; mas
saiba distinguir o lisonjeador do amigo. Tal pessoa parece aplaudi-lo; e está, no entanto, zombando
de sua obra e enganando-o. Goste que o aconselhem e não que o elogiem.
Um lisonjeador procura logo exclamar, admirativamente; cada verso que ouve o faz extasiar-se.
Tudo é encantador, divino; nenhuma palavra o desagrada. Tripudia de alegria; chora de ternura.
Rodeia-o, por toda a parte, de elogios pomposos. Mas a verdade nunca tem este ar definitivo.
Um amigo sábio, sempre rigoroso e inflexível, jamais o deixa tranquilo quanto aos defeitos: não
perdoa os pontos falhos; corrige os versos mal dispostos; reprime a ênfase ambiciosa das palavras;
(…) (Boileau, 1979: 21)

O autor francês, no entanto, carrega mais no tom satírico e estende mais o assunto,
descrevendo ainda o autor arrogante, que não dá ouvidos aos amigos críticos e permanece
sempre numa atitude defensiva. Critica as obras que se apreciam nas cortes só por causa
do status social dos seus autores, e alfineta: “para terminar enfim com uma nota de sátira:
um tolo sempre encontra um mais tolo que o admira” (Boileau, 1979: 22).
Boileau também dá mais ênfase à razão e ao saber necessário para a prática da
escrita literária, assinalando a raridade e o talento de quem foge às normas: “É ele [‘um
crítico sólido e salutar’] que lhe dirá por qual entusiasmo feliz, algumas vezes, na sua
carreira, um espírito vigoroso, comprimido demais pela arte, sai das regras prescritas e
aprende a transpor os limites da própria arte” (Boileau, 1979: 67). Horácio diz que “Ser
sabedor é o princípio e a fonte do bem escrever” (1984: 101), mas não se refere tanto ao
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conhecimento técnico de métrica ou ritmo quanto ao conhecimento dos mitos gregos.


Boileau recomenda ainda “que todos os escritores procurem sempre o brilho e o valor da
razão” (1979: 16), bem a contento dos ideais iluministas.
O equilíbrio racional se manifesta na forma: é assim que pensam Horácio e
Boileau, evitando a todo custo que à expressão cuidada se junte o supérfluo. O primeiro
dizia coisas como: “Com a grande parte dos poetas, (…) deixamos enganar-nos por falsas
aparências de verdade: forcejo por ser breve, em obscuro me torno; a quem procura o
estilo polido, faltam a força e o calor, e tudo o que se propõe atingir o sublime, descamba
no empolado (…)” (Horácio, 1984: 55) [destaque nosso], e

Os poetas ou querem ser úteis ou dar prazer ou, ao mesmo tempo, tratar de assunto belo e adaptado
à vida. Se algum preceito deres, sê breve, para que rapidamente apreendam e decorem as tuas
lições os ânimos dóceis e fiéis de quem te ouve: o que for supérfluo ficará ausente da memória,
carregada em demasia. (Horácio, 1984: 105)

Boileau, por seu lado, descreve de uma forma cômica um autor que, “obcecado às
vezes com o seu objeto de trabalho, nunca abandona um assunto sem esgotá-lo”, dando
minúcias de tudo o que descreve. “Salto vinte folhas para encontrar o final”, satiriza ele,
e orienta: “Fuja da abundância estéril desses autores, e não se sobrecarregue com um
pormenor inútil. Tudo o que dizemos a mais é insípido e desagradável; o espírito saciado
repele instantaneamente o excesso. Quem não sabe moderar-se jamais soube escrever”
(Boileau, 1979: 16-17).
E acrescenta, desenvolvendo a reminiscência de Horácio: “O medo de um mal nos
conduz frequentemente a mal ainda pior: um verso era fraco demais e o senhor o torna
duro; evito ser prolixo e me torno confuso; um verso não está ornamentado em demasia,
porém sua musa está excessivamente nua; outro tem medo de rastejar e se perde nas
nuvens” (Boileau, 1979: 17) [destaque nosso]. Até no texto traduzido a grande
semelhança entre os textos se faz sentir.
Para esses autores, um texto claro e coeso é o produto de um pensamento também
claro e coeso; pois, na sua concepção, a linguagem é a expressão do pensamento. Para
Horácio, “A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca faltará
eloquência nem tão-pouco ordem luzida” (1984: 57), e Boileau parafraseia: “O que bem
se concebe, se enuncia claramente; e, para dizê-lo, vêm as palavras com facilidade”
“Antes, pois, de escrever, aprenda a pensar. Conforme nossa ideia seja mais ou menos
confusa, a expressão a segue, ou menos nítida ou mais pura” (Boileau, 1979: 19-20).
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3. Necessidade de perfeição técnica na construção do metro

O verso bem construído, portanto, segundo a poética clássica, deveria refletir o


equilíbrio racional por meio do metro e do ritmo regulares, bem marcados, segundo o
modelo dos autores de prestígio. Essa tarefa não poderia ser realizada pelo poeta por pura
inspiração, de um jato, mas antes sob muita prática e correção de erros. Horácio o
incentiva quando diz que

[n]em o Lácio seria mais ilustre pelas armas e valor do que pela sua língua, se não custasse tanto
aos seus poetas gastarem tempo no demorado trabalho da lima 1. Mas vós, ó estirpe de Pompílio,
censurai todo o poema que não for aperfeiçoado com muito tempo e muita emenda e que, depois
de retalhado dez vezes, não for castigado até ao cabo. (Horácio, 1984: 97 e 99)

Boileau, por sua vez, dobra o número (figurado) de vezes, quando escreve:
“reponha sua obra vinte vezes sobre a mesa de trabalho: retoque-a e torne a poli-la, sem
descanso; às vezes, acrescente algo; e, frequentemente, apague” (Boileau, 1979: 20).
Renomados escritores do século XVII aplicavam este princípio às suas obras, como La
Bruyêre, La Rochefoucauld e Pascal, entre outros.

4. Metro e tema

Se para cada pensamento há uma expressão, logo, para cada emoção ou gênero
também deve haver um metro e um tom adequados: talvez este fosse o raciocínio dos
teóricos de base clássica. Defendiam eles que se há uma técnica que distingue os gêneros,
não havia motivo para não aprendê-la:

Se não posso nem sei observar as funções prescritas e os tons característicos dos diversos géneros,
por que hei-de ser saudado como poeta? Qual a razão por que prefiro, com falso puder, desconhecê-
los a aprendê-los? Mesmo a comédia não quer os seus assuntos expostos em versos de tragédia e
igualmente a ceia de Tiestes não se enquadra na narração em metro vulgar, mais próprio dos socos
da comédia. Que cada género, bem distribuído ocupe o lugar que lhe compete. (Horácio, 1984: 69)

Ao que Boileau subscreve, acrescentando exemplos: “Todo poema é brilhante por


suas qualidades particulares. O rondó, de origem gaulesa, tem a simplicidade. A balada,

1 Vale lembrar aqui a expressão utilizada pelo poeta Olavo Bilac, expoente do Parnasianismo no Brasil
(movimento, aliás, originário de França), no soneto “Língua Portuguesa”: “Última flor do Lácio, inculta e
bela”.
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submetida às suas velhas regras, deve muitas vezes todo o seu brilho ao capricho das
rimas. O madrigal, mais simples e mais nobre em sua construção, respira a doçura, a
ternura e o amor” (Boileau, 1979: 33).
Sobre este assunto, há mesmo dois exemplos que Boileau vai buscar a Horácio.
No texto latino, está escrito assim (em tradução):

Diz-se que Téspis descobriu o género desconhecido da Camena trágica e transportou, em carros,
as suas peças que os actores cantavam e representavam de caras besuntadas com o mosto da uva.
Depois veio Ésquilo, o inventor da máscara e da solene veste da tragédia, que instalou o palco
sobre postes pouco elevados, ensinando a falar com grande eloquência e a sobressair sobre o
coturno. A estes sucedeu a comédia antiga e foi recebida não sem vivo aplauso; mas a liberdade
degenerou em vício e em abuso que teve de ser reprimido por lei. (Horácio, 1984: 95 e 97)

Boileau, seguindo de perto o seu mestre, explicou:

A tragédia, informe e grosseira ao nascer, não era senão um simples coro, em que cada um,
dançando e entoando elogios ao deus das vinhas, esforçava-se por atrair férteis vindimas. Então o
vinho e a alegria despertavam os espíritos e um bode era o prêmio do mais hábil cantor. Téspis,
enlambuzado de borra, foi o primeiro que fez passear pelas aldeias essa loucura feliz: e, carregando
uma carroça com atores mal ornados, divertiu os passantes com um espetáculo novo. Ésquilo
lançou as personagens no coro, cobriu os rostos com uma máscara mais decente, e sobre os
tablados de um teatro levantados à vista de um certo número de pessoas, fez aparecer o ator calçado
com um borzeguim. Sófocles enfim, dando expansão ao seu gênio, acrescentou ainda a pompa,
aumentou a harmonia, fez o coro participar, poliu a expressão dos versos ásperos demais, e deu à
tragédia grega essa elevação divina à qual jamais a fraqueza latina ascendeu. (Boileau, 1979: 43).

É interessante como, ainda que se guie por um mestre latino, Boileau não
reconhece na tragédia dessa mesma origem um modelo a ser seguido. Adiciona, ainda, o
exemplo de Sófocles, que não é citado por Horácio.

5. Emoção e personagem

Como bons valorizadores da verdade, Horácio e Boileau concordam que a emoção


de uma personagem não pode ser falsa. Mesmo que se trate de uma ficção, querem os
autores que a emoção escolhida para ser representada tenha sido, de algum modo,
vivenciada por quem escreve, ou, pelo menos, por quem encena (o ator). Horácio o
defendia nos seguintes termos:

Não basta que os poemas sejam belos: força é que sejam emocionantes e que transportem, para
onde quiserem, o espírito do ouvinte. Assim como o rosto humano sorri a quem vê rir e aos que
choram se lhes une em pranto, também se queres que eu chore, hás-de sofrer tu primeiro: só teus
infortúnios podem comover-me, quer sejas Telefo quer Peleu: se, porém, recitares mal o teu papel,
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dormitarei ou cairei no riso. Tristes palavras só dão bem com rosto pesaroso e com o irado as
ameaçadoras; com rosto jovial palavras folgazãs e com o severo as que mostrem seriedade.
(Horácio, 1984: 71)

Boileau, por seu turno, diz-nos, parafraseando Horácio, que

[c]ada paixão fala uma linguagem diferente: a cólera é soberba e quer palavras altivas; a depressão
se explica em termos menos altaneiros. (…) O senhor deve adotar um tom mais simples na dor.
Para provocar-me prantos, deve chorar. Em palavras grandiloquentes com as quais então o ator
enche a boca não partem de um coração atingido pela miséria. (Boileau, 1979: 45)

Não basta, pois, a beleza formal, pois acredita-se que a língua possui uma origem
natural, provocada pelos diversos estados de espírito. O poema dramático deve causar
prazer aos espectadores, fazendo com que haja um encontro entre as emoções das
personagens e as do público. Boileau defende em diversas passagens quão decente e
pudica é a sociedade francesa, pelo que recomenda que se escolham sempre as palavras
adequadas para expressar cada emoção, seja ela qual for.

6. Tratamento do mito

Quando aborda a questão de “como contar a história”, no que tange à própria


organização do enredo, Boileau segue vários dos preceitos horacianos, como se vê pelo
cotejo das seguintes passagens:

E não irás começar como outrora o escritor cíclico: «Eu cantarei a fortuna de Príamo e a guerra
famosa». Que obra digna de tal exórdio nos dará o autor desta promessa? Os montes parirão e
nascerá um pequenino rato. Quanto mais a preceito não começa este que nada constrói sem
coesão: «Fala-me, ó Musa, do varão que, após os tempos da conquista de Tróia, cidades e costumes
viu de tantos homens». Não pretende tirar fumo de um clarão, mas sim de fume tirar luz, para daí
colher brilhantes prodígios (…) (Horácio, 1984: 77) [destaque nosso]

Que o começo seja simples e sem nenhuma afetação. Não vá desde o início, montado em Pégaso,
gritar aos leitores com uma voz de trovão: “Canto o vencedor dos vencedores da terra”. Que fará
o autor após todos esses altos brados? A montanha, parindo, dá à luz um rato. Oh! Como aprecio
muito mais esse autor cheio de habilidade que, sem fazer de início tão elevada promessa, me diz
com um tom natural, doce, simples, harmonioso: “Canto os combates e esse homem piedoso que,
das costas frígias, conduzido à Ausônia, foi o primeiro que abordou aos campos de Lavínia!” Sua
musa, ao chegar, não põe tudo em fogo; e, para dar-nos muito, não nos promete senão pouco.
(Boileau, 1979: 49)

Aqui, vemos que a sequência toda foi imitada por Boileau, alterando-se apenas
algumas palavras e os exemplos dados. A analogia da montanha que dá à luz um rato
permaneceu intocada. Outra passagem bastante parecida é a que trata da ordem dos
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acontecimentos na narrativa, que não precisa ser necessariamente início-meio-fim: “Sem


conservar uma ordem metódica em seus versos, [Homero] faz que o assunto se arranje e
se desenvolva por si mesmo. Sem que sejam feitos preparativos, tudo nele se prepara
naturalmente: cada verso, cada palavra, corre em direção do desenlace” (Boileau, 1979:
50). Na Arte Poética de Horácio, está escrito: “[Homero] Não inicia o retorno de
Diomedes pela morte de Meleagro, nem a guerra de Tróia pelos dois ovos; sempre se
apressa para o desenlace e arrebata o ouvinte para o meio da acção, como se esta lhe
fosse conhecida (…) ” (1984: 77 e 79) [destaques nossos].
Boileau, tal como Horácio, também recomenda que os grandes personagens, já
conhecidos do público, não sejam representados de maneira destoante da sua
personalidade: “Desagradaria um Aquiles menos ardente e menos pronto; gosto de vê-lo
derramar lágrimas por uma afronta. (…) que Agamemnon seja altivo, soberbo,
interesseiro; que Enéias sinta um respeito austero por seus deuses” (Boileau, 1979: 44).
Horácio, por sua vez, recomendara:

Segue, ó escritor, a tradição ou imagina caracteres bem apropriados: se acaso repuseres em cena o
glorioso Aquiles, fá-lo activo, colérico, inexorável e rude, que não admita terem sido criadas as
leis também para ele e nada faça que não confie à força das armas. Que Medeia seja feroz e
indomável, Ino chorosa, Ixíon pérfido, Io errante e Orestes triste. (Horácio, 1984: 73 e 75).

Notamos que o exemplo de Aquiles foi mantido por Boileau, bem como a estrutura
e o conteúdo desse conselho. Mesmo após tantos anos, o prestígio dos exemplos gregos
se mantém.
Além dos exemplos gregos fornecidos ao longo de toda a sua obra, Boileau se filia
explicitamente a eles e também aos romanos, quando escreve “Entre esses dois excessos
[a pompa e a rudeza], a estrada é difícil. Para encontrá-la, siga Teócrito e Virgílio. Que
suas mãos não deixem de folhear, dia e noite, os tomos escritos dos dois poetas, ditados
pelas Graças” (Boileau, 1979: 30), quase com as mesmas palavras de Horácio: “Quanto
a vós, compulsai de dia e compulsai de noite os exemplares gregos” (1984: 95).

7. A poesia e o seu uso social e valor

As recomendações de Horácio acerca do valor da poesia para a vida em sociedade,


que se dá de forma indireta, cumprindo ao mesmo tempo uma função didática e de fruição,
permanecem vivas nos escritos de Boileau quando este diz: “Feliz é aquele que, em seus
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versos, com uma voz flexível, sabe passar do tom grave ao doce, do divertido ao severo!
Seu livro, amado pelo céu e apreciado pelos leitores, sempre aglomera compradores ao
seu redor, na Livraria do Palácio” (Boileau, 1979: 17). O seu mestre Horácio havia dito:
“Recebe sempre os votos, o que soube misturar o útil ao agradável, pois deleita e ao
mesmo tempo ensina o leitor: é este o livro que dá dinheiro aos Sósios, que passa os mares
e oferece ao célebre escritor imortal renome” (Horácio, 1984: 107). Este é, aliás, um dos
princípios horacianos mais lembrados até hoje, ainda que, por vezes, sem associá-lo à sua
autoria nem ao contexto literário. Boileau dita esse princípio uma vez mais, já no quarto
canto, aconselhando os autores: “que a sua musa fértil em sábias lições una, por toda a
parte, o sólido e o útil ao agradável. Um leitor inteligente foge de um entretenimento
frívolo e quer empregar sua distração de maneira útil” (Boileau, 1979: 67).
No entanto, para merecer esse imortal renome e um lugar privilegiado nas
prateleiras das livrarias, o autor deve se empenhar muito para fugir à mediocridade. Ainda
que deva agradar ao público, este não deve ser seu único fundamento, pois, segundo
Horácio, a função de poeta não pode, como outras, conviver com um trabalho mediano:

nas coisas positivas se concebe tolerável mediania e qualquer jurisconsulto ou advogado mediano,
se não chegou à habilidade do eloquente Messala ou à ciência de Aulo Cascélio, nem por isso
deixa de ter o seu valor. Mas os poetas medianos, esses não admitem nem os deuses nem os
homens, nem as colunas dos livreiros. (Horácio, 1984: 111)

Boileau (1979: 66) não é menos rigoroso:

Se for sua vocação, seja antes pedreiro, operário considerado numa arte necessária, do que escritor
sem relevo e poeta vulgar. Existem, em qualquer arte, diferentes graus e pode-se, com honra,
ocupar segundas filas; mas na perigosa arte de rimar e de escrever, não há graus do medíocre ao
pior. Quem diz “escritor frio” diz autor detestável? (…) Um tolo pelo menos nos faz rir e pode
divertir-nos; mas um escritor frio sabe apenas entediar. Gosto mais de Bergerac e de sua audácia
burlesca do que desses versos em que Motin perde seu tempo e nos deixa gelados.

A solicitação contínua de uma obra por parte do público também é apontada pelos
dois autores como um sinal positivo: “Esta [a poesia] quer ser vista na obscuridade e
aquela [a pintura] à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só
uma vez agradou, aquela, dez vezes vista, sempre agradará” (Horácio, 1984: 109 e 111);
“E que sempre mais belas, quanto mais são examinadas, sejam essas obras ainda
solicitadas ao fim de vinte anos? ” (Boileau, 1979: 41).
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8. Conclusões

A leitura comparativa dos textos de Horácio (séc. 14-13 a.C.) e de Boileau (séc.
XVII), ao aproximar épocas e lugares tão diferentes, mostra-nos, em primeiro lugar, como
se solidificam as bases para a centralidade cultural de um determinado sistema literário.
Atenas, Roma e Paris foram grandes centros culturais, cada um em sua época, tendo os
escritores e críticos de França ido buscar referências fortes a um centro mais antigo e,
portanto, mais credível, que era o mundo greco-latino tal como era visto pelo
Renascimento. Nada no “mundo da cultura” ocorre por acaso: não foi por sorte que os
textos e os princípios horacianos – que, por sua vez, já tinham ido “beber” em Aristóteles
– sobreviveram até os dias atuais (se não como norma, ao menos como conhecimento).
Boileau, procurando fundamentar a sua poética e os princípios literários de sua
época, seguiu o modelo latino de Horácio que, por sua vez, inspirou-se nos textos gregos.
O caráter normativo dos textos parece aumentar à medida que as ideias se vão afastando
da sua origem aristotélica: no classicismo francês, a leitura da cultura clássica era um
recurso a uma autoridade que, pelo seu peso, conferia valor aos argumentos dos críticos.
Assim, as observações de Aristóteles em sua Poética e os conselhos aos Pisões tornam-
se, no texto de Boileau, leis literárias dirigidas principalmente ao público francês.
Percebemos, ainda, que Boileau é fiel ao princípio que prescreve – o de seguir os
modelos de grandes escritores – na medida em que se aproxima em alto grau do texto do
seu precursor, Horácio. Utiliza, em dadas passagens, quase as mesmas expressões, numa
atitude que, na época, deveria ser elogiada por promover um efeito de reconhecimento e
por transmitir humildade diante dos grandes mestres; mas que hoje talvez fosse rejeitada
e identificada como um plágio, uma cópia desonesta de ideias.
Se o Romantismo vem, depois deste esforço de Boileau, e começa a questionar
essas regras e a validade da autoridade antiga sobre as necessidades do presente, podemos
constatar, por outro lado, que algumas das orientações de Horácio (e de Boileau)
permanecem válidas até hoje, devido à cuidada observação feita por esses autores das
atitudes e dos valores que permeiam a comunicação literária.
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Bibliografia

Boileau-Despréaux, Nicolas (1979), A Arte Poética, Tradução de Célia Berrettini, São Paulo, Perspectiva.

Cordeiro, Cristina R. (2009), “Horácio em França. Complexo escolar e Sabedoria Poética”, Horácio e sua
perenidade, Coimbra, Centro Internacional de Latinidade Léopold Senghor, Centro de Estudos Clássicos e
Humanísticos da Universidade de Coimbra.

Horácio (1984), Arte Poética, Tradução de R. M. Rosado Fernandes, ed. bilíngue, Lisboa, Inquérito.

Russel, D. A; Winterbottom, M. (1972), Ancient Literary Criticism: The Principal Texts in New
Translations, Oxford, pp. 279-291.

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