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o ciúme na literatura
Yara Frateschi Vieira
Os ciúmes, como a tristeza, estão entre aqueles estados afetivos que devemos
considerar normais: com essa frase abre Freud o seu ensaio sobre os meca-
nismos neuróticos nos ciúmes, na paranóia e na homossexualidade.1 Sem
discutir a natureza dos parâmetros dessa normalidade e os limites que,
provavelmente, os balizariam2 - matéria que extravasa de longe a minha
competência, forçando-me a entrar em seara alheia -, a pergunta que me
move, neste texto, incide sobre a questão do ciúme enquanto construção
literária: ou seja, no âmbito da literatura, como se constitui a configura-
ção desse sentimento, ao longo da história e segundo as circunstâncias de
gênero e contexto cultural?
O ponto de partida para este estudo foi-me sugerido pela releitura
da novela de José Régio, O Vestido Cor de Fogo, publicada pela primeira
vez em 1946:3 nela, o narrador rememora, analisando-a, a experiência do
seu casamento fracassado e dos ciúmes que sentira da sua mulher. A
narrativa em primeira pessoa de uma história de ciúmes despertou-me
imediatamente outra memória textual forte: a da leitura do Dom Casmurro,
de Machado de Assis, romance que antecede cronologicamente o texto
regiano4 e que tem com ele alguns pontos comuns. Naturalmente, uma
coisa puxa outra e acabaram vindo-me à lembrança outros textos mais
ou menos contemporâneos e que tratam do mesmo tema: em literatura
estrangeira (isto é, não em língua portuguesa), Un Amour de Swann,5 de
Proust, e a Sonata a Kreutzer,6 de Tolstoi; no âmbito da língua portuguesa,
e publicado apenas doze anos antes do Vestido Cor de Fogo, o São Bernardo,
de Graciliano Ramos.7 Assim, entre 1889 e 1946, cinco obras narrativas
de indiscutível relevância no contexto das literaturas do Ocidente – e,
obviamente, não são as únicas - trataram do tema do ciúme e, como ve-
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ciúme como “the green-eyed monster, which doth mock the meat it
feeds on”, e pela criada, Emília, que, à observação de Desdêmona: “Alas
the day, I never gave him cause, responde: But jealous souls will not be
answered so:/ They are not ever jealous for the cause,/ But jealous for
they’re jealous. It is a monster/ Begot upon itself, born on itself”.16 A
morte de Otelo impede, portanto, que ele se torne o que serão depois os
ciumentos dos séculos XIX e XX: sobreviventes, para sempre voltados
para o passado, obsessivamente procurando nele a resposta que justifica-
ria o seu ciúme e que daria um sentido integral e indubitável aos atos de
outrem. Uso a palavra indubitável porque ela é o ponto de fuga na repre-
sentação dos mecanismos exegéticos do ciumento nesses textos contem-
porâneos, como o expressa, por exemplo, Graciliano Ramos em São Ber-
nardo: a certa altura, devorado pela angústia de esbarrar sempre na alteri-
dade de Madalena, Paulo Honório diz: “Quando as dúvidas se tornavam
insuportáveis, vinha-me a necessidade de afirmar. Madalena tinha manha
encoberta, indubitavelmente. – Indubitavelmente, indubitavelmente,
compreendem? Indubitavelmente. As repetições continuadas traziam-me
uma espécie de certeza”.17 A morte de Otelo interrompe a elaboração
interpretativa dos fatos, uma vez que sela para sempre a certeza da ino-
cência de Desdêmona. O espectador sai da peça dizendo, juntamente
com o Bentinho de Dom Casmurro: E era inocente, vinha eu dizendo rua abai-
xo”.18
É também Bentinho quem chama a atenção para outro elemento
importante na construção do enredo da peça: “...por causa de um lenço, -
um simples lenço!”19 pensa, comparando o comportamento de Desdê-
mona ao de Capitu. Mas, afinal, o lenço não é tão simples assim: torna-se
o objeto de cristalização do ciúme, objeto que supostamente confirma as
suspeitas de traição; é exterior às personagens envolvidas na relação de
ciúme e, ainda por cima, mágico: fora dado a Otelo pela mãe, que o re-
cebera por sua vez de uma egípcia, uma bruxa que podia ler os pensa-
mentos das pessoas. Enquanto a mãe de Otelo o possuísse, seria amada
pelo pai e o dominaria. Se o perdesse ou o desse a alguém, perderia o
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[...] Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter
um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos
outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enor-
mes”.69 É para entender agora o seu próprio passado que Paulo Honório
decide escrever o livro, descascar os fatos, isto é, chegar-lhes ao cerne não
aparente que os sustenta e lhes dá sentido.
Em São Bernardo, novamente lemos os fatos filtrados pelo narra-
dor. No entanto, o leitor não duvida de que estão distorcidos pela óptica
do ciumento. Em nenhum momento se inclina a crer na infidelidade de
Madalena, como ocorre em Dom Casmurro70 e talvez em Sonata a Kreutzer
ou Vestido Cor de Fogo. O ciúme é aqui aproximado muito claramente do
sentimento de poder, mas como Paulo Honório afinal se torna conscien-
te do seu erro, a narrativa que nos oferece já não nos procura iludir. Nes-
se sentido, o narrador poderia ter sido substituído por uma terceira voz,
que veria com distanciamento e objetividade as relações entre os atos de
Paulo Honório e os comportamentos paranóicos do tirano, sob a pele do
capitalista moderno.
Chegando até aqui, posso resistir à tentação de esgotar pistas –
que aliás só puderam ser seguidas parcialmente, na medida em que não
mergulhei na individualidade de cada uma das obras – e procurar apre-
ender os contornos desse discurso inaugurador de uma personagem que
conviveu intimamente com o nosso imaginário, no último século. Já
propus que o ciumento, tal como essas obras nos ajudaram a conhecê-lo,
não existe desde sempre na cultura ocidental. É, obviamente, uma cria-
ção recente, do fim do século XIX, embora possamos vislumbrar alguns
dos seus traços já no Othello, de Shakespeare. E parece-me adequado
entender a sua emergência por meio do furor confessional, que Foucault
identifica na origem do discurso sobre a sexualidade dominante nos três
últimos séculos ocidentais, e do qual diz explicitamente: “Daí, sem dúvi-
da, uma metamorfose literária: do prazer de contar e ouvir, centrado no
relato heróico ou maravilhoso das “provas” de valentia ou santidade,
passou-se a uma literatura dirigida à infinita tarefa de tirar do fundo de si
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Notas
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15 Cap. 35: “otelo”, pp. 934-35. A relação entre o romance de Machado e o Othello, de
Shakespeare, foi objeto do estudo de Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de
Assis: a study of Dom Casmurro. Berkeley and Los Angeles: University of California
Press, 1960. Caldwell aponta as diversas correspondências entre as duas obras, esten-
dendo ainda a presença da peça de Shakespeare a outros textos machadianos (28 con-
tos, peças e artigos); registra também o interesse que a representação teatral de João
Caetano, em 1870, teria despertado no público brasileiro, bem como o conhecimento
que Machado tinha da obra de Shakespeare, tanto no original como na tradução de
Vigny. Cf. também Eugênio Gomes, o capítulo “Otelo”, em O Enigma de Capitu: ensaio
de interpretação. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, pp. 118-123; e ainda Alfred Mac
Adam, “The Rhetoric of Jealousy: Dom Casmurro”, citado acima.
16 Othello, op. cit., 3.3.167-69 e 3.4.158-62.
17 São Bernardo, op. cit., p. 151.
18 Dom Casmurro, op. cit., p. 935.
19 Ibid., p. 934.
20 Othello, op. cit., 3.3. 272-74.
21 Freud, op. cit., p. 2611.
22 Michel Foucault, Historia de la Sexualidad. 1. La Voluntad de Saber. Traducción de
Ulises Guiñazú. Madrid: Siglo Veinteuno, 19896, p. 129-130.
23 Id., ibid., pp. 132-134.
24 Un Amour de Swann, op. cit., p. 130.
25 Ibid., p. 173.
26 Dom Casmurro, op. cit., p. 852.
27 Vestido Cor de Fogo, op. cit., p. 29. Esse caráter de mergulho interior que ao mesmo
tempo é provocado pelo ciúme e o realimenta, encontra-se analisado de forma bastante
explícita no romance do psiquiatra austríaco contemporâneo de Freud, A. Schnitzler,
Traumnovelle, cuja versão cinematográfica se viu recentemente no filme Eyes Wide Shut,
de S. Kubrick.
28 Cf. Déborah Levy-Bertherat, “De la lecture à l’invention des signes: la jalousie chez
Tolstoï, Svevo et Proust”. In Le Jaloux: lecteur de signes: Proust, Svevo, Tolstoï. Paris:
SEDES, 1996, pp. 71-79.
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41 Cf.: “The alleged resemblance between Bento’s son Ezequiel and the putative father
Escobar has often been noted as a close parallel to the resemblance in Goethe’s novel
[Die Wahlverwandtschaften] between the infant Otto and the four principal characters
caught up in a spiritual adultery, and cited as internal evidence of ‘influence’.” Patricia
D. Zecevic, “The Beloved as Male Projection: a Comparative Study of Die Wahlver-
wandtschaften and Dom Casmurro”. In German Life and Letters, 47:4 (October 1994) 469-
476, que examina o paralelo entre o romance machadiano e as Afinidades Eletivas de
Goethe.
42 São Bernardo, op. cit., p. 139.
43 Un Amour de Swann, op. cit., pp. 116-120.
44 Tolstoi, op. cit., p. 111.
45 Vestido Cor de Fogo, op. cit., p. 25. O desejo confessado, ainda que não realizado, de
Albertine por outro que não o marido, é suficiente para desencadear toda a ação do
romance de Schnitzler, Tramnovelle, já mencionado.
46 Dom Casmurro, op. cit., p. 944.
47 Othello, op. cit., 3.3.416-428.
48 Tolstoi, op. cit., p. 59.
49 Ib., ibid., p. 63.
50 Op. cit., pp. 2611-12. Cf., também, Jean-Pierre Morel, “La Sonate à Kreutzer: morale
et littérature”. In Jean Bessière (ed.), La Jalousie: Tolstoï, Svevo, Proust. Paris: Champion,
1996, pp. 40-73.
51 Vestido Cor de Fogo, op. cit., p. 24.
52 Ibid., p. 10.
53 Aqui conviria lembrar o étimo dos nomes que, em diversas línguas, se usam para
designar o ciúme e a inveja, do grego tardio e poético zelotypia com o correspondente
adjetivo zelosus. Os termos derivados (fr. jaloux, prov. gelos, it. geloso, esp. celoso, ingl.
jealous) parecem refletir, não diretamente a cultura greco-romana, mas o termo bíblico
zelotes, o que implicaria proximidade entre o amor religioso e o erótico. (Cf. Rosemary
Lloyd, Closer & closer apart: jealousy in literature. Ithaca and London: Cornell University
Press, 1995, p. 4.) O português ciúme parece provir de uma forma latina *zelumen, por
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sua vez do latim zelu-. (Cf. José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portugue-
sa, que remete para Serafim da Silva Neto, Fontes do Latim Vulgar, p. 138, ed. 1946.)
54 Vestido Cor de Fogo, op. cit., p. 10.
55 Ibid., p. 28. Sobre o “complexo de Pigmalião” do ciumento, v. D. Levy-Bertherat,
op. cit., pp. 76-79.
56 Id., ibid., p. 10.
57 Id., ibid., p. 10.
58 Id., ibid., p. 13.
59 V. nota 8.
60 Cf. Jean-Pierre Morel, op. cit.
61 Un Amour de Swann, op. cit., p. 222.
62 Tolstoi, op. cit., p. 79.
63 Vestido Cor de Fogo, op. cit., p. 51.
64 José Régio, Confissão dum Homem Religioso. [Porto]: Brasília Editora, 1971, p. 73.
65 Cf. as palavras de Antonio Candido: Paulo Honório é modalidade de uma força que o trans-
cende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. [...] São Bernardo é centralizado pela
irrupção duma personalidade forte, e esta, a seu turno, pela tirania de um sentimento dominante. Como
um herói de Balzac, Paulo Honório corporifica uma paixão, de que tudo o mais, até o ciúme, não
passa de variante. (Ficção e Confissão. Rio: José Olympio, 1956, pp. 25 e 30). V., ainda, João
Luiz Lafetá, “O mundo à revelia”, posfácio a G. Ramos, São Bernardo. Rio de Janeiro,
São Paulo: Record, 199767.
66 São Bernardo, op. cit., cap. 24, p. 133.
67 Ibid., p. 139.
68 Ibid., p. 150.
69 São Bernardo, op. cit., p. 190.
70 Cf. Celso Lemos de Oliveira, Understanding Graciliano Ramos. South Carolina: Univer-
sity of South Carolina Press, 1988, pp. 62-64.
71 Foucault, op. cit., I, p. 75. No que se refere a Régio, remito para a análise da relação
entre o seu discurso ficcional e a prática ocidental da confissão, em: Yara Frateschi
Vieira, “Relendo o Jogo da Cabra Cega”. In G. Santos, J. Fernandes da Silveira e T. C.
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Cedeira da Silva (orgs.), Cleonice. Clara em sua geração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1995, pp. 671-680.
72 Diria que o ciumento vive da auto-análise e da confissão, numa simbiose perfeita,
como este outro animal de Ferreira Gullar no seu habitat: “Vai o animal no campo; ele é
o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo;
que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi,
árvore que muge, [...]”. Ferreira Gullar, “Um Programa de Homicídio, 5”. In Toda Poesia
(1950-1999). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 26.
73 Cf. Frederick Burwick, Poetic Madness and the Romantic Imagination. The Pennsylvania
State University Press, 1996, p. 12.
74 V. o capítulo IX do romance, dedicado a essa discussão.
75 Un Amour de Swann, op. cit., p. 170.
76 Op. cit., p. 25.
77 Remeto, naturalmente, aos estudos de Roberto Schwarz e de John Gledson.
78 Cf. a observação de Hélder Macedo: “E se fosse possível ou necessário identificar
Machado de Assis com alguma das suas personagens, não seria certamente com o se-
nhorial Bento Santiago, seria com a marginalizada Capitu, mesmo quando – e sobretu-
do quando – maliciosamente caracterizada como uma ‘cigana oblíqua e dissimulada’.
Op. cit., p. 24.
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