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concepção e realização

Associação de Prostitutas de Minas Gerais – Aprosmig


Coordenação
Maria Aparecida Vieira

Escritoras
Blanca, Camila P., Fátima Muniz, Jeane Corrêa, Isadora,
Laura, Mariely da Silva, Lourdes Barreto, R. P. B., S. P. S.,
S.V. e Vânia Rezende

Projeto editorial e edição


Carolina Macedo

Coordenação das oficinas literárias


Pedro Kalil

Organização
Carolina Macedo e Pedro Kalil

Revisão
Maria Fernanda Moreira

Capa, diagramação e produção gráfica


Philippe Albuquerque

Ilustração
Thereza Nardelli

Estagiária
Lauane Costa

ISBN
978-65-80237-00-5

Site e audiolivro
avozdasputas.wordpress.com

Agradecimento especial a:
Cidinha, Juliana Góes,
Laura Maria, Zazá e
Bruno Jadir.

* Este livro foi viabilizado com recursos do


Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais.
Projeto 0502/01/2016/FEC
ORGANIZAÇÃO
Carolina Macedo
Maria Aparecida Vieira
Pedro Kalil

Guaicurus:
a voz das putas

1ª edição

Belo Horizonte
Aprosmig
2018
apresentação 6

S.V.
Sobrevivi com esse trabalho, vou contar pra vocês 10

Camila P.
16 fatos que se passam
na vida de uma garota de programa 28
Tudo 31
Namorada 32

Blanca
Geovane 36
Bolo 40
Beijo 44

S. P. S.
Lulu 58

R. P. B.
Palavra em movimento 64
Um dia fui criança 65
Mundo estúpido 66
Meus gigantes 67
Pintura Viva 68
Mundo selva de concreto 70
Autoestima 71
Estigma 72

4
Jeane Corrêa
Meu tempo 76

Isadora
Quatro anos 82

Mariely da Silva
Trinta e três 92

Fátima Muniz
Manual do Cliente 96

Laura
A dor da saudade não tem cura
ou Xô Preconceito! – O Meu Nome é Felicidade 102
Poema para Dalvinha 113

# Escritoras convidadas

Vânia Rezende
Vida fácil 116

Lourdes Barreto
Puta 120

Nota dos organizadores 123


apresentação

Garota de programa,
messalina, meretriz, mulher da
vida, mulher perdida, quenga,
rodada, devassa, profissional
do sexo, mulher de vida fácil,
prima, rapariga, vadia, rameira,
biscate, trabalhadora sexual,
prostituta, puta.

6
Personagem de literatura, teatro, cinema, pintura, can-
ções, performance, novela, bloco de carnaval, do imaginá-
rio, do imaginável, da presença e da plurivivência.

Sob olhares de desejo, curiosidade, repulsa, admiração,


amor, desdém, preconceito, inveja, respeito e querência.
Quem olha nos vê?

Guaicurus – A Voz das Putas é uma obra escrita a


varias mãos e, essencialmente, escrita por nossas mãos.
Histórias nossas, de muitas vozes e sempre diferentes
entre si. Vozes que têm história, que vêm de longe, que
costuram os retalhos das experiências, memórias e dese-
jos de futuro.

Saudamos os Encontros Nacionais de Prostitutas, a


Rede Brasileira de Prostitutas e tantos outros e diversos
movimentos pelo país – os que já existiram e os ainda em
atividade –, suas articulações e luta cotidiana pelo nosso
pleno exercício da cidadania, por direitos e pelo fim do
estigma e da discriminação. Saravá! Dedicamos especial-
mente às mulheres prostitutas, anônimas ou não, às de
ontem e de hoje, as suas permanências e escapatórias.

Este é um livro de escritoras putas. Putas escritoras.


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S. V.
Sou do interior e criada em Belo
Horizonte. Mais de 30 anos de rua
Guaicurus, rua São Paulo, avenida
Paraná e praça. Com meus filhos
criados, o meu sonho agora é acabar
de reformar minha casa.
Sobrevivi com esse trabalho,
vou contar pra vocês
Sou S.V., nascida no interior. Minha mãe, quando estava
me esperando, teve gripe asiática. Por isso, quando nasci
de parteira, eles acharam que eu estava morta e me joga-
ram para lá. Foram cuidar da minha mãe que passava
muito mal. Aí eu mexi, disse minha mãe. A parteira falou
“nossa, ela está viva”, e me arrumou e me enrolou, mas eu
também estava passando muito mal. Minha avó me levou
ao médico. Depois de uma semana, ele falou “sua neta tem
pouco tempo de vida, não vai durar nem um mês”. Minha
avó então me batizou para eu morrer, porque não podia
morrer pagã naquela época. Depois descobriram que eu
tinha nascido com asma.

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Morei com minha avó até meus 6 anos, quando vim
morar com a minha mãe em BH. Depois minha avó mor-
reu. Eu era muito mimada pela minha avó. Cheguei para
morar com a minha mãe em um cômodo sem luz, um
irmão e ela esperando outro filho. Minha mãe me ensinou
a cuidar dos meus irmãos para ela trabalhar. Ela se mudou
para o bairro Goretti, depois comprou uma casa em outro
lugar. Só que eu estudava e olhava meus irmãos, e brin-
cava depois que arrumava a casa e a cozinha. Brincava
de queimada, rouba-bandeira, de casinha, caí no poço e
passa anel.
Era uma moça muito comportada, mas, quando fiz
17 anos e meio, virei outra pessoa. Conheci uma colega
que gostava de dançar. Ela me chamou para ir com ela na
matinê – era das 14 às 18h. A gente ia embora, só que eu
comecei a conhecer os rapazes, comecei a namorar. Depois
da matinê, minha colega deu a ideia de falar com a minha
mãe que a gente ia para a igreja. Era mentira. A gente ia
para o parque. Antigamente, tinha parque nos bairros.
Ficávamos um tempo, depois íamos embora. Aí comecei a
beijar um, a beijar outro e arrumei namorado para namo-
rar em casa. Terminava com ele, arrumava outro, depois
voltava com ele. Só que a gente começou a sarrar para
valer, só não transava. Mas eu comecei a deixar pôr na
minha perna. Vocês acreditam que eu engravidei só sar-
rando nas coxas sem ele me penetrar. Não tinha certeza
de que estava grávida, porque eu sempre o deixava pôr
na minha coxa e nunca tinha acontecido nada. Pois eu
estava mesmo grávida.
Eu trabalhava em casa de família na época. Vocês
sabem o que é chiqueirinho, onde os bebês brincam? Fui
fazer a faxina, aí peguei aquele chiqueirinho cheio de
brinquedos. Eu tive cólica, trabalhei o dia inteiro sentindo
cólica. Eu dormia no serviço. Quando foi de noite, estava
com muita dor. Fui tomar banho. Desceu uma bola e eu
passando mal a noite toda, depois tive hemorragia o dia
inteiro. Esperei minha patroa chegar e falei que ia resol-
ver alguma coisa. Fui no serviço da minha colega que me
levou na Santa Casa; me transferiram para a maternidade
para eu fazer uma curetagem.
Daí seis meses depois engravidei de novo. Nasceu um
menino, mas o pai e eu não demos certo. Era meu namo-
rado, terminei com ele e arrumei serviço. Fiquei quase
um ano sem ter relações sexuais, mas aí eu conheci um
colega da minha amiga de serviço, comecei a namorá-lo.
Em menos de um mês tive relação sexual com ele e engra-
videi de novo. Falei com ele que estava grávida, ele falou
com a mãe dele. Ela disse que olhava meu outro filho,
que eu podia morar perto dela. Só que eu falei com ele
que não ia, porque não o amava a ponto de morar junto.
Continuei grávida e ganhei o menino já trabalhando de
carteira assinada. Arrumei outros namorados, mas não
deu certo, terminei, fiquei uns tempos sem ter relações
sexuais, porque não podia tomar remédios para evitar
gravidez, porque eu passava mal, muito mal. Dormi na
fila para pôr o DIU. Chegou a minha vez, ela perguntou
“você está menstruada?”, eu falei “não”; “então não pode
pôr o DIU”, ela disse. Naquela época, a gente era muito
mal informada.
Em 1983, arrumei outro namorado, primeira rela-
ção sexual, engravidei de novo. Aí era o terceiro filho. A
empresa onde eu trabalhava perdeu o contrato; a firma
que entrou fixou os empregados antigos. Eu não podia ser
fixada porque estava grávida. Ganhei menino, fiquei três
meses de licença, voltei a trabalhar e aí eles me manda-
ram embora. Eu, com três filhos, desempregada. Comecei

12
a passar aperto, minha família estava cansada de me aju-
dar, porque um filho ano sim, ano não. Pedi ajuda numa
creche para deixar meus filhos lá e ir trabalhar, fim de
semana eu ia lá pegá-los. Ela falou “assim não tem. Tem
assim: você leva os três filhos de manhã e busca à tarde”.
E em outra: “pega duas passagens para ir, duas para vol-
tar” – não dava para mim. Elas ficaram olhando para mim;
eram três mulheres. De repente, uma falou “para ficar fácil
para você, deixa esse menino que está no seu colo aqui, a
gente põe para adoção. Com dois filhos, fica mais fácil para
você”. Saí de lá com meu filho no colo, nem olhei para trás.
E falei “vou me virar sozinha, não vou pedir ajuda para
ninguém”. Mas fui pedir ajuda em outro lugar, para eu
ganhar leite em pó. Não passei também, porque só daria se
meus filhos estivessem desnutridos e ficassem com menos
peso. Pensei, “sabe o que eu vou fazer? Vou fazer vida”.
Comecei na praça. Queria subir para a rua Paraná à
noite. As meninas da praça diziam que não podia, porque
as mulheres iriam brigar comigo. Um dia, estava cheia de
contas para pagar e falei “vou subir para a Paraná”. Fui de
calça verde, tênis, uma blusa de manga comprida xadrez.
Fiquei lá no paredão sem ganhar dinheiro um mês. Mas
eu chamava os homens, pedia a eles um real. Aí de manhã
tinha dinheiro, pão, leite, verdura. Uma mulher trabalhava
lá e falou “você tem filhos, também tenho”. Ela falou “deste
jeito você não vai ganhar dinheiro não, tem que vir com
roupa curta, saia curta”. Recebi o acerto da firma, com-
prei saia curta e fui trabalhar. Comecei a ganhar dinheiro,
paguei jardim para os meus filhos. Fiz casa, dois cômo-
dos. Mas eu ficava a noite toda na rua, batalhando, só ia
embora 6 horas: chuva, frio. Eu fui cansando, aí comecei
nos hotéis da Guaicurus. Só na Guaicurus fiquei 25 anos.
Na rua, teve muita briga comigo. As mulheres antigas
brigavam muito comigo. Depois elas se acostumaram.
No meu primeiro dia na zona boêmia, eu subi e um
homem lá falou “veio procurar quarto?”. Falei “vim, né”.
“Cadê seu lençol?” Eu falei que não trouxe não. “Cadê
toalha, sabonete, papel toalha?” Não tinha levado nada,
porque não sabia que precisava. O homem me arrumou
tudo e fui para o quarto. “Tem que ficar só de calcinha e
sutiã”. Abri a porta, um tanto de homem parado em frente
à minha porta. Fiz uns programinhas, mas é muito dife-
rente trabalhar na rua e no hotel. No primeiro dia, fiquei
umas três horas apenas, não quis mais ficar. Falei com o
homem que era o gerente, “estou indo embora, não vou
ficar mais”. Nesse dia, ele nem cobrou a diária. As coisas
foram se ajeitando. Não queria trabalhar na rua, porque
tinha de ficar a noite toda. Voltei para o hotel e fiquei tra-
balhando. Eu me apaixonei quatro vezes. Eu achava que
só se amava uma vez só, e não – eu amei e me apaixonei
quatro vezes.
Na zona, eu aprendi muita coisa, o negativo e o posi-
tivo. Presenciei história verdadeira. Uma era de uma
mulher que trabalhava perto de mim. Ela tinha freguês
que vinha toda semana, fazia programa com ela e depois
falava “vou tirar você deste lugar quando eu receber uma
herança”. Ele ficou falando isso durante um ano. Um dia,
quase chegando o Natal, ele chegou e falou “pode arrumar
suas coisas, vim te buscar, porque recebi a herança”. Ela
arrumou e foi embora com ele.
Vou contar para vocês as experiências, malícia e mal-
dade, que eu tive de aprender sozinha. Um dia um homem
entrou para fazer programa comigo, eu não tinha troco
para dar a ele. Ele falou “vou descer lá embaixo, troco e
trago o dinheiro para você”. Ele está até hoje trocando o
dinheiro. Um dia eu estava deitada, porque eu trabalhava

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deitada. Vi uma mulher do hotel gritando, aí fiquei em pé
na porta para ver o que tinha acontecido. Ela gritando e
falando que tinham roubado o dinheiro dela todo, e ela
guardava o dinheiro debaixo da cama. Vi outras mulheres
comentando que o homem tinha roubado a calcinha dela
trabalhar; outras reclamavam que eles roubavam sutiã,
outras que eles roubavam consolo. Aí eu pensei “nossa,
esses homens roubam tudo, vou malocar meu dinheiro,
só vou deixar uns trocadinhos para dar troco”. Quando
os homens entrarem no quarto, vou ficar de olho neles
até irem embora.
Um dia, entrou um para fazer programa. Quando ele
tirou a blusa falou “saí da cadeia agora”. Aí eu falei que eu
também já fui presa e isso deu uma quebrada. Abaixou a
voz, fez o programa e pagou. Lembro de um que entrou
e falou “eu moro na Cabeça de Porco, Cabeça de Porco é
favela perigosa”. Quando ele fechou a boca, eu falei “eu
moro na Pedreira Prado Lopes”. Ele falou “você mora lá?”
Eu falei “moro”. “Você conhece fulano de tal?” Eu falei
“conheci”. Aí ele abaixa o tom, transa, paga e vai embora.
Transei várias vezes com homem com revólver; deixa o
revólver em cima da mesa, eu nem pergunto se é polícia
ou malandro. Só uma vez que um deles me falou que era
ladrão. Já transei com homem com faca – tirou a roupa,
pôs a faca em cima do tênis e a calça por cima, mas ele
não viu que eu estava reparando. Pra esse, depois que
vestiu a roupa, eu perguntei porque ele estava com faca.
Ele falou que um ladrão o roubou na avenida Olegário
Maciel. Eu ficava bem atenta com eles... Se eu percebesse
algum perigo, ia para perto da porta. Gostava de fazer
amizade com as mulheres, porque elas também salvavam
a gente. Eu também, quando via o homem gritando com
a mulher, “não vou pagar, não vou”, chamava o segurança
ou o porteiro. Por isso, acho importante sermos amigas
umas das outras.
Na zona, a gente não pode ficar com medo de nada. Se
eles percebem que a gente está com medo, transam e não
pagam, e ainda roubam. Nunca aconteceu isso comigo,
mas eu sei que já aconteceu com algumas mulheres. Outra
coisa, não transo com homens casados que são vizinhos
meus. Eles chegam, falam comigo “quanto você cobra?”.
“Não vou transar com você”. Ele fala “eu te dou mais”, eu
falo “não”, “pode transar com outras mulheres daqui, não
tenho nada com a sua vida”. Eu nunca contei para elas que
via os maridos na zona. E, por coincidência, na semana
seguinte fui fazer compras e a esposa de um deles falou
“S, você vai comprar, entra que te dou carona”. Entrei no
carro dela, fomos conversando dentro do carro. Aí pen-
sei, “tá vendo, se eu tivesse ficado com o marido dela, não
tinha coragem de pegar carona com ela”. Mas também
não comentei nada com ela. Uma das meninas falou
uma palavra: “submissa”. Mas eu a entendo. Esse mundo
nosso é muito louco. Eu, quando ia na formatura dos meus
filhos, eu não ficava à vontade. Ficava pensando “será que
alguém aqui me conhece do hotel?” Ficava cismada. Na
minha cabeça, eles iam ficar gozando dos meus filhos, e eu
não queria que eles passassem por isso. Naquele tempo,
não tinha a Aprosmig, não tinha estagiários, não tinha
ninguém para gente saber dos nossos direitos. Lembro
uma vez em que meu filho – com 17 anos e meio – começou
a namorar uma moça em casa. Quando ele namorava já há
uns nove meses, sempre falava “mãe, os pais dela querem
conhecer a senhora”. Eu falava “tá bom, qualquer dia eu
vou lá”. Aí pensava comigo, “não vou não. E se o pai dela já
me viu na zona ou algum parente dela”. Perguntei ao meu
menino se os pais dela é que moram no lote, “não, mãe, é

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igual aqui: mora a família toda no lote, tio-primo-sobrinha-
-irmã”. Pensei “não vou não”. Teve um dia que ele chegou e
falou “os pais dela estão esperando a senhora tal dia, vão
fazer até uma festa”. Eu não fui. Namorando ela, os pais
dela o cobraram por mim e por outras coisas que acontece-
ram com eles. Eles terminaram sem eu conhecer a família
dela. Passaram-se uns meses, arrumou outra namorada e
não fui conhecer a família dela também. Arrumou outra,
ela me chamava, eu não ia. Eles já estavam juntos há 2
anos e meio e eu não conhecia os pais dela. E ele começou
primeiro, a irmã dela começou depois e a sogra já tinha
ido lá. Aí teve namorada do meu filho que sentou perto
de mim e falou “eu te chamo várias vezes para você ir lá
em casa conhecer meus pais e você não vai. Minha irmã
tem pouco tempo e os pais dele já foram lá. Minha irmã
falou comigo que acha que você não gosta de mim”. “Não,
não e isso não, porque estou trabalhando, fico um pouco
sem tempo”. “Então vou fazer meu aniversário tal e espero
você lá”. Eu falei “eu vou”, e fui tremendo. Ela chegou me
apresentando para todos os parentes, e lá fui eu para o
marido da prima. A prima estava perto. Na hora que pegou
na minha mão ele falou “parece que eu te conheço”. Aí
eu disfarcei, “tem muita gente que se parece”. Sempre eu
estava indo na casa da mãe dela, aí quebrou esse tabu.
No começo, sempre escutava os conselhos das mais
experientes. Lembro que uma falou comigo “para não
ter infecção urinária, você compra na farmácia Sepurin”.
Aprendi pela experiência que se o homem está com roupa
suja, largando serviço, não tem problema ficar com ele.
Eu ficava com qualquer homem, de preservativo mesmo.
Só de conversar com o homem, eu sabia se ele estava
bêbado, drogado ou se vai dar trabalho para mim. Do
bêbado cobrava adiantado. Bêbado não goza. Quando dava
o tempo, eu falava “acabou o tempo, vai ficar?” Tinham uns
que ficavam, outros iam embora. Os que ficavam eu falava
“então levanta e pega o dinheiro, porque é adiantado”. Mas
eu tinha muito freguês. Uns me davam material escolar
para os meus filhos, davam presente, cesta básica.
Não pode falar com ninguém quanto você ganha.
Porque, no hotel, trabalhava uma mulher que, eu acho,
era do Espírito Santo. Ela trabalhava no hotel Brasil, aí ela
mudou de hotel, foi para o Imperial. Ficou trabalhando
um mês, mas estava chegando o Natal e, no Natal, o hotel
não ia abrir. Ela tinha uma colega que conheceu na zona e
tudo ela falava com ela. Falou para a colega “vou arrumar
um lugar para eu dormir e ficar o dia inteiro, porque o
hotel só vai abrir no dia 26 de dezembro”. Mas ela já tinha
falado com a colega dela que já tinha arrumado vinte mil
reais, mas precisava mais para fazer a festa de 15 anos da
filha dela. A colega dela namorava um traficante e comen-
tou com ele do dinheiro que ela tinha. Ele falou “vamos
roubá-la, você falou que ela não tem onde dormir. Vamos
chamá-la para ela ir para Motel Carmo, lá nós a rouba-
mos”. Aí ela com a amiga “olha, você não tem onde dormir,
quando o hotel fechar, eu sei de um lugar tranquilo. Fico
aqui na zona, mas durmo lá todos os dias. Se quiser, eu
te levo”. Aí ela “quero sim, à noite você me chama que eu
vou com você”. Ela arrumando a bolsa dela e falou com
a amiga “vou guardar este dinheiro direito, é para fazer
a festa da minha filha de 15 anos e ainda falta”. A amiga
já tinha visto onde ela tinha guardado. Elas foram para
Motel Carmo. Chegaram, o porteiro deu a chave a ela, eles
foram jantar juntos, ela voltou, tomou banho. Quando deu
uma hora, não sei a hora certa, foi depois de uma hora, a
amiga dela bateu no quarto dela. Ela já estava dormindo.
Ela bateu, acordou e falou “quem é?”. A amiga dela falou

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“sou eu”, ela abriu. Quando abriu, o namorado da amiga
– que era traficante – entrou e enforcou ela. Ela morreu
e eles roubaram o dinheiro. Eu conheci a que morreu e a
que matou. A polícia prendeu todos os envolvidos. Na hora
em que ele estava a enforcando, tinha uma mulher dando
descarga para ninguém escutar o barulho. O traficante
foi preso, mas depois foi solto. Eles o mataram porque ele
estava devendo droga. Essa mulher, que deu todas as dicas,
a polícia sumiu com ela. Eu nunca mais a vi.
Na zona, eu não escolhi homem para transar. Quem
escolhe muito, na hora do almoço e na diária não vai ter o
dinheiro. Transava com novo, idoso, deficiente, com qual-
quer um; chulé, quando acabava eu abria a janela e pas-
sava desinfetante.
Vou contar para vocês meu envolvimento com droga
na prostituição. Maconha fumei três vezes. Não gostei,
quase morri, meu coração acelerou. Cocaína cheirava só
quando o freguês trazia para cheirar. Eu cheirava uma
carreira, mas não gostava, e nunca comprei nem maconha
nem cocaína. Uma vez, eu estava no quarto, aí chegou
um rapaz falando “eu vendo comprimido, você não vai
engordar e vai ficar mais animada”. Eu falei “me dá dois”,
sempre fim de semana eu tomava dois. Eu trabalhava no
hotel Brasil e lá fechava às 2 horas da madrugada, sexta e
sábado. Porque, antigamente, eram só onze hotéis e eles
fechavam meia-noite, aí era muito homem que subia. O
rapaz passou vendendo um comprimido capetinha. Ele
era vermelho. Eu tirava a bolinha da cápsula e tomava com
água. Ficava muito doida, transava várias vezes e não can-
sava, guardava dinheiro. Só que, quando fechava o hotel,
ia tomar banho, deitava na cama, não conseguia dormir.
Fechava os olhos doida para dormir e não conseguia. Via
o dia amanhecer sem dormir. Então era sábado de manhã,
o hotel já aberto e lá eu deitada, toda amarrotada, porque
não tinha dormido à noite. O que eu tinha ganhado à
noite, perdia no outro dia, porque não trabalhava. Pedia
para o fazedor de mandado buscar miojo completo para
mim, porque comida normal não descia. Ia enrolando o
dia e tendo prejuízos, porque sábado de manhã é bom o
movimento. Quando dava 4 horas, comprava o compri-
mido e tomava, aí eu começava a trabalhar de novo.
Teve uma tarde que uma conhecida da zona me cha-
mou no quarto dela e falou “S, eu uso isso para eu traba-
lhar. Experimenta para você ver”. Nem sabia direito como
que usava aquela droga, mas ela me ensinou, “é assim,
olha, você faz assim, e assim”. Ela me deu umas quatro
vezes. Alivia rápido. Fui lá no quarto, pedi a ela, ela falou
“eu não tenho, mas o rapaz vai me levar na favela para
buscar, você vai com a gente e compra, ajuda na gaso-
lina”. Eu falei “fechou, quando ele chegar, se eu estiver
ocupada, você bate”. O rapaz chegou e eu fui comprar
outro tipo de droga. Fiquei viciada. Ia na favela com-
prar. Se algum homem tivesse, trocava sexo pela droga.
O hotel em que eu trabalhava passou a ter muitos trafi-
cantes vendendo essa droga. Só que, quem usa essa droga,
perde o respeito. Lembro de uma noite em que eu estava
com a porta aberta e o traficante entrou com revólver e
copo de bebida. Simplesmente entrou com um tanto de
droga para enrolar, para vender. Eu ficava pensando, “meu
deus, se a polícia chegar, vai me prender por este tanto de
droga”. Ele enrolava e ia embora. Um outro que vendia
droga para mim falou “eu consegui casa, carro, moto, vida
boa em menos de um ano, só vendendo droga”. Esse era
discreto, educado; se eu tivesse ocupada, ele me esperava
para vender droga. Algumas mulheres o chamavam para
transar e ele “não, estou esperando a S”. Mas fiquei mesmo

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viciada. Teve um sábado que desci lá embaixo e comprei
meu almoço. Até hoje me lembro do almoço, marmitex,
quentinha. Era arroz, maionese, carne assada, farofa.
Comi quatro colheres, aí bateu no meu quarto, perguntei
quem era, ele falou “fulano de tal”, era o traficante. Parei
de comer e comprei a droga. Fui até 2 horas sem comer e
só comprando droga.
Uma vez, foi eu e dois rapazes comprar droga na favela
Nova Granada. A gente dava o dinheiro e ele dava a droga.
Ele não me via, nem eu o via. Só que nesse lugar não tinha.
A gente rodou a favela toda, procurando até achar. Fomos
em outras favelas, onde o beco não tem luz, tudo escuro.
Perdi muitas conhecidas por causa da droga. Ficavam
devendo traficante e eles matam. Tinha uma que quando
eu comecei a usar essa droga ela já usava e a gente usava
juntas. Vou usar. Depois se acha que tem gente perse-
guindo; acha que tem polícia no corredor. É muito ruim,
e eu só emagrecendo. Fui ao médico e ele falou “você está
muito abaixo do seu peso, vai pegar seu peso”. E eu só
usando essa droga maldita. Uma vez, fui tomar banho
e notei um caroço no meu seio. “Opa, o que é isto?” Fala
na televisão que qualquer caroço no seio tem que ir ao
médico. Eu fiz exame, fiz biópsia. Deu que era benigno e
estava do tamanho de um caroço de feijão. Eu falei “tem
que tirar, falam na televisão que não pode deixar”. Fiz mais
exames, mamografia, aí eles resolveram tirar o caroço. Eu
com ponto no seio e querendo usar droga. Só não usei
porque não encontrei. Eu estava em casa, um ano depois
que eu tirei o nódulo e ainda estava na droga. Caí de cama
em casa, fiquei muito doente, não conseguia levantar. No
quarto dia, eu falei “tenho que ir ao médico”. Levantei 5h30
da manhã, subi o morro para pegar o ônibus, porque eu
pegava na BR. Toda hora eu sentava porque meu corpo
estava muito ruim. Cheguei lá em cima 6h15 e peguei o
ônibus, parei quase na porta do hospital. Fui falar com a
moça “onde faz a ficha?” Ela falou “aqui está de greve, vai
lá na Santa Casa”. Eu fui na Santa Casa. Cheguei lá, eles
falaram “não estamos atendendo, vai no Odilon Behrens”.
Eu cheguei lá eram 7h da manhã e não tinha dinheiro para
ir ao Odilon. Voltei para a clínica que estava de greve e
fiquei sentada. Chegavam idosos, outras pessoas, e a moça
falava “estamos de greve”. Eles iam embora e eu fiquei
sentada lá, porque estava passando muito mal e não dava
para eu voltar para casa daquele jeito. Quando foi quase
meio-dia, a moça de manhã saiu para almoçar e a outra
moça sentou lá. Eu levantei e falei com ela se tinha jeito de
me atender que eu estava passando muito mal. Ela falou
“espera aí que eu vou perguntar direito”. Falei com ela “vou
sentar no banco porque não estou conseguindo ficar em
pé”. Ela saiu lá de dentro e fez sinal para mim. Fui até ela
e ela falou “pode entrar”. Eu entrei e fui para uma sala. Lá
estavam o médico e os alunos dele. Eu fiz exames, raio X,
e deu que eu estava com pneumonia muito grave e sinu-
site. Eles me perguntaram se eu bebia ou usava droga. Eu
falei “uso droga, uso pedra”; eles falaram “crack”. O médico
falou “você vai ter que escolher, ou morre ou vive. Para
viver, vai ter que parar de usar droga. Nós aqui vamos
dar a primeira injeção, você vai levar a receita e serão 19
injeções, de manhã e à noite”. Eles me liberaram 7h da
noite. No outro dia, já em casa, pedi a meu filho para ir no
posto pegar. Ele trouxe o remédio, mas esqueceu de pedir
a seringa e a agulha. Voltou lá e trouxe seringa e agulha.
Eu não tinha dinheiro e a família preocupada com minha
doença. Não tinha ninguém para aplicar a injeção. À noite,
minha irmã ligou para uma outra e ela achou uma mulher
para aplicar, mas ela não cobrou nada. Meu cunhado a

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buscava todas as noites. Quando ela chegou lá em casa,
conversa vai, conversa vem, ela era cunhada da minha
colega; ela foi muito generosa comigo. Chegava para apli-
car a injeção, tirava minha pressão primeiro. “Gente, eu
não tinha dinheiro para pagar conta de luz, água”. Falei
com meu cunhado para ele pagar que depois eu o pagava.
Geladeira vazia. Passou uma mulher vendendo iogurte, de
morango e de coco, e pagaria dali um mês. Comprei, enchi
a geladeira. Iogurte. Ficava olhando para os meus filhos
e família, todo mundo preocupado. Eu sentava e pensava
“eles nem sabem porque eu estou doente”. Foi por causa
da droga. Pensei “vou parar, meus filhos precisam de mim”.
Na época, eles eram adolescentes e o mais velho era jovem.
Tomei as injeções todas, fiquei mais forte. Fiquei vinte
dias em casa. Aí fui para zona de novo, pensei “não vou
para o hotel Brasil não, porque lá tem muito traficante.
Vou para o Imperial”. Assim eu fiz, fui para o Imperial,
fiquei quietinha no 3º andar. Arrumei um dinheirinho, fim
de semana voltei para casa. Não ganhei muito dinheiro
não, porque estava muito magra. Depois voltei para o
Imperial para ficar quinze dias. Estou lá tranquila quando
chega um freguês que usava crack. Quase todos os dias ele
ia lá, levava, aí eu usava com ele. Foi embora. Passaram-se
três meses depois da pneumonia, fui para o hotel Brasil
de novo. A maioria dos traficantes estavam presos; só
havia dois. Chegou um e falou “você vai querer?”. Eu falei
“não”, ele foi embora. Depois chegou o outro e eu falei
“não quero não”. “Vou vender não, tem aqui para nós dois”.
Ele entrou, eu usei. Depois ele voltou, “quer comprar?”, eu
comprei. Fiquei usando depois que o hotel fechou, não
dormi direito, fiquei me sentindo culpada. Lembrei do
que o médico tinha falado e me deu uma revolta. Pensei
“meu Deus, meus filhos ainda precisam de mim, tenho
que parar com essa droga”. Quando foi à noite, ele deu um
passo no meu quarto, eu falei “nunca mais você entra no
meu quarto. Não vou usar droga nunca mais”. Aí eu parei,
nunca mais usei. Foi embora e voltou na outra semana.
Quando cheguei era sábado à tarde no hotel. Uma conhe-
cida minha falou “S, lá no jogo do bicho tá tendo mega
bicho, 4-5-6 você ganha. Eu joguei e ganhei dinheiro bom.
Paguei minhas dívidas, paguei meu cunhado. Fiz compras
para casa. Só sei que nesse jogo eu ganhei cinco vezes.
Minha vida melhorou muito depois que eu parei de usar
droga. E sabe aquele rapaz que tinha moto-casa-carro?
Perdeu tudo, foi preso e perdeu tudo.
Hoje eu estou fazendo 60 anos. Era para eu ter um
carro na garagem, casas alugadas, mas droga, bebida e os
namorados da zona me atrapalharam um pouco. Mas não
tem problema. Hoje eu estou com saúde, os filhos criados,
todos moram perto de mim – só um mora comigo. Agora
sim eu estou mais perto da família, participando mais com
a minha família.

23/04/2018

24
26
Camila P.
GP.
16 fatos
que passam na vida
de uma garota de programa

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1. Alguns homens me procuram somente para conversar.
Me pagam pelo diálogo que não conseguem ter em casa.

2. Brochar é mais normal do que você pode imaginar.

3. Garotas de programa conseguem ganhar tanto dinheiro


porque realizam fetiches que os homens não têm coragem
de confessar a ninguém.

4. Tem muito homem do tipo machista que procura uma


garota de programa para ser passivo. Muito mesmo.

5. A história de que uma mulher sempre faz sexo oral


melhor em uma mulher do que um homem é mito. Já
testei. Essa teoria nem sempre procede.

6. A maioria dos puteiros têm problemas com roupa de


cama e, muitas vezes, os lençóis são trocados uma vez por
dia. Tudo em nome da economia.

7. Uma média de 75% dos homens que nos procuram são


casados. Outros 10% são noivos ou namoram.

8. As explicações que os homens comprometidos dão


sobre procurar uma garota de programa geralmente são
duas: enjoaram do sexo com a mulher ou têm vergonha
de revelar suas fantasias.

9. O pior é o dia em que uma garota de programa sai da


zona só com o dinheiro da passagem.

10. O horário do almoço: tem garota de programa que nem


almoça ou não tem o dinheiro ou não pode gastar.
11. Tem homem que faz programa diferente, estranho.
Eu, como garota de programa, não gosto e às vezes tenho
medo de morrer.

12. Acreditem: tem homem que pede para transar sem


camisinha, mesmo sabendo dos riscos.

13. O segredo de um oral bem feito é a vontade e a atitude.


Preguiça é algo que não pode existir na vida de uma GP.

14. A época do 13º é quando temos mais procura.

15. Se você acha que a vida de uma garota de programa é


fácil, experimente transar cinco vezes por dia.

16. As coisas na vida dependem sempre de um ponto de


vista. Pergunte, por exemplo, a uma GP o que ela pensa
sobre quem transa com várias pessoas sem cobrar.

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Tudo
Serei um pouco de tudo
Um pouco do melhor deste mundo
Cabe em mim tudo que é luz
Que ensina e que conduz
Serei: sempre evolução.
Namorada

Garota de programa
só é traição
se sua namorada
for real.

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34
Blanca
“Capitu, apesar daqueles olhos que o
Diabo lhe deu... Você já reparou nos
olhos dela? São assim de cigana oblí-
qua dissimulada. Pois, apesar deles,
poderia passar, se não fosse a vaidade
e a adulação”.

Dom Casmurro, 1899, de Machado de Assis


Geovane

Sexto cliente do dia (e ainda não é nem meio dia).


Estava deitada, de bruços, como sempre. Olho alguém
parado me observando na porta. Quando olho para cima
chego a ter até um frio na espinha.
Geovane, 27 anos.

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Ele chega, com uma sacolinha das lojas Americanas.
Com Rafaello (eu amo e ele sabe) e três barras de Diamante
Negro. Ele me abraça. Me beija. Afinal, além de cliente,
somos amigos.
Ele conhece a Pâmela.
Ele é do tipo de cliente para quem não sei mentir. Ao
olhar nos meus olhos, ele conhece o fundo da minha alma.
Talvez porque é muito parecido comigo. O que ele menos
está preocupado ali é com o sexo.
Moreno, malhado, um sorriso que me entorpece. Diz
que estava com saudades e logo caio em seus braços,
dando um beijo, daqueles cinematográficos. Geovane é
tão perdido quanto eu. Por isso acho que a gente com-
bina tanto.
Ele senta na ponta da minha cama. Entrelaço-o por trás
com as minhas pernas. Na verdade, eu faço isso com todos
que chegam ao meu quarto. Dá uma espécie de aconchego
misturado com sensualidade. Ele passa os olhos no meu
quarto, repara o Albocresil em cima da estante. Pergunta
se estou com algum problema ginecológico.
Olho para ele com um tom irônico e peço para ele
examinar com a língua, já que está tão desconfiado. Ele
levanta as sobrancelhas e ri. Geovane é minha versão
feminina. Ele não sabe, mas eu daria para ele o dia todo
de graça. Noto que ele trocou o perfume. Já o disse o quão
sou ligada em cheiros. Ele me dá um beijo na testa e repara
que meu cabelo cresceu. Que estou mais magra. Agora ele
está desabotoando meu babydoll.
Ele beija meu corpo todo. Eu me viro num movimento
surpresa e fico por cima. Ameaço chupar o pau dele sem
colocar camisinha. Ele me segura pelo cabelo e me dá um
tapa de leve em minha cara. Ele é extremamente vaidoso
e um nojo com esse pau dele. E, claro, só ameaço chupar
ele sem nada porque sei que vou o irritar. “Uma hora,
quando você menos esperar, vou sentar com força, sem
camisinha”.
Com Geovane não tem nada que eu possa fazer que
ele não conheça. Ele conhece muito meu universo. Afinal,
está infiltrado nele. Geovane que é Geovane para mim é
Bernardo para seus clientes.
Ele é garoto de programa. E dos bons. Ele é o único
cliente que quando fico de quatro não me preocupo se a
camisinha vai sair. Afinal, ele é ainda mais chato do que eu.
É muito louco isso, né? Ele come e dá para outros caras.
Pega o dinheiro para gastar com uma prostituta. Segundo
ele, Pâmela é a melhor terapia que ele já fez até hoje. Ele, ao
contrário de mim, se deprime porque tem essa profissão
e fica na dúvida se é gay ou não.
– Eu como outros caras pensando em você.
– Então, meu amor, você não é gay. Isso é trabalho.
– Cê tá rebolando muito forte, a camisinha vai estourar.
– É essa a ideia, haha, quero te dar um filho!
Ele me trava com as pernas. Ele sabe exatamente
quando eu estou quase gozando sem eu dar uma palavra.
Com o Geovane não tem buceta travando certa. Não tem
garganta profunda certa. É realmente pau a pau. Parece
até uma disputa de ego. Para ver quem é o mais gostoso
e quem aguenta mais.
Ele para de me comer. Enfia os dois dedos exatamente
no meu ponto G.
– Isso é pra você aprender a não se achar tanto.
Vou para o céu. E quando estou toda mole, ele enfia o
dedo de novo.
– Isso é pra você saber quem é teu homem.
Ele não me faz gozar. Me faz ter orgasmos.
Ele se prostitui para vir fazer “terapia” com uma

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prostituta. Quando estou com ele, vejo o quanto sou
perigosa. O quanto um bom sexo é perigoso. Ele me faz
entender o motivo pelo qual meus clientes me esperam
na porta por horas corridas.
É muito louco essa coisa que temos. Com ele não
adianta fingir que gozei ou dar aquela travada com a
buceta na ponta do pau dele. Ele tem o total controle da
situação. E me olha com superioridade, da mesma forma
que eu olho para meus clientes. Ele é superior. Afinal, eu
que gozei primeiro.
Ele é superior, mas paga por isso. Ele que me faz gozar
ou eu que estou recebendo para ele me fazer gozar e ser
superior? Não há nada que eu faça que o surpreenda,
embora, ele diz, o jeito que eu faço é diferente.
Ele pode até me fazer ter orgasmos, mas, a pomba gira
aqui é das boas. O santo é forte.
Ele goza e ainda diz que gozou porque quis.
Eu o questiono e pergunto por que ele está lá na zona.
Me responde que eu sou macumbeira. Ainda bem que ele
sabe. Nós rimos. Ele me paga. Diz que volta. Eu afirmo
que volta. Ele diz que eu sou tipo uma droga. Que vício.
Eu respondo que coloco cocaína na pepeca. Eu tomo um
banho. Ele desembaraça meus cabelos com a escova. Eu
desembaraço todo aquele psicológico dele. Que é tão
fodido quanto o meu.
Bolo
Pedi um amor e ele me deu um bolo mofado. “Eu pedi
amor”, disse.
– Isso é amor.
– Mas não vai me fazer mal?
– Talvez.
Olhei de novo e percebi uma larvinha de mosca saindo
da cobertura.
– Vai querer ou não? – Ele olhava a larva também.
– Não sei. – A larvinha agora afundava cada vez mais
no bolo.
– Eu não vou ficar parado o dia todo aqui, sabe.
Lembrei que não sabia cozinhar e levei o bolo para a
casa. Primeiro tentei tirar tudo que se movia na cobertura,
mas era impossível. Me contentei em raspar o mofo, fechar
os olhos e engolir uma garfada.
Vomitei.

40
Dormi com o estômago roncando e acordei com uma
dor de barriga dos infernos. Não saí de casa nos próximos
três dias: sem amor, não tinha vontade de tomar banho
nem de escovar os cabelos. Não queria olhar o céu e nem
os olhos das pessoas. No quinto dia sem amor, não quis
abrir as pálpebras muito menos as janelas da casa.
Prestes a perder as forças, olhei para a mesa e resolvi
tentar de novo. O estômago reclamou, mas não devolve.
O intestino resolveu não opinar. Fui dormir indigesta e
ao mesmo tempo aliviada. Pela manhã, as maquiagens
do banheiro voltaram a fazer sentido. As roupas no chão
pediram para serem penduradas. A maçaneta da porta
pedia para ser girada e eu obedeci.
A cada passo, sentia o estômago revirar, mas também
sentia que estava viva. Segui na rua disfarçando uns arro-
tos enquanto olhava vitrines.
À noite, resolvi encarar o bolo de novo.
Ele não pareceu tão ruim quanto no dia anterior. Na
verdade, olhando de lado nem dava para ver a parte feia.
Segui comento o bolo, segui com o estômago revirado e,
mais importante, segui com vontade de entrar no ônibus
e pagar minhas contas.
Até que o bolo acabou.
Preocupada, fui até ele pedir mais amor. O bolo que
ele me entregou estava coberto de moscas.
- Está fedendo demais. – comentei.
- É o que eu tenho.
Não consegui colocar sobre a mesa da sala já que atraía
mais moscas. Botei dentro do forno e cortei uma fatia:
o cheiro era insuportável. Tampei o nariz, aproximei o
garfo da boca, tentando não mastigar as moscas mortas.
Sabendo que não poderia ficar sem amor e nem me livrar
de todos os insetos, engoli. O estômago não roncou nem
a garganta contraiu: já estavam habituados.
Quando o amor acabou, ele me entregou um prato
fundo.
– Mas isso é vômito!
– Eu chamo de amor.
Entendi que era bolo vomitado e resolvi guardar na
geladeira. No dia seguinte provei uma colherada antes
de ir trabalhar e, para a minha surpresa, eu já não sentia
mais gosto de nada. Tomei outra colherada à noite, para
garantir que iria ter vontade de tomar banho e sair com
meus amigos.
No dia seguinte tive um pouco de febre, mas segui
dando umas colheradas.
Dois dias depois, a cabeça doeu.
A febre voltou.
A garganta inchou.
Sem conseguir engolir o amor, fechei as cortinas e
esperei a morte bater. Quando ouvi o som da campainha,
suspirei aliviada.
Mas não era ele.
Não era alguém que eu conhecesse. Um ar de esqui-
sito, braços tatuados e trazia um prato com uma espécie
de massa branca. Leve, limpa, tinha cheiro de primavera.
– Isso não é amor. – Eu disse.
– É amor, sim. – Parecia surpreso.
– Não, não é. – Eu ri.
Os olhos dele encheram de lágrimas. Antes que eu
pudesse mudar de ideia, pegou a torta de creme e deu
pedaço por pedaço em minha boca.

42
Beijo
Como mais um clichê dos dias atuais, seguia
eu minha vida monótona e cômoda: uma compa-
nheira, alguns animais, casa, carro e nenhuma feli-
cidade. Não em razão de algum problema pessoal
com a pessoa com quem partilhava meus dias, mas
por conta do motivo pelo qual estávamos juntos e
insistíamos em não aceitar o fim: comodismo. Sim,
o fator que hoje em dia une muitos casais.

44
Pois bem, seguia meus dias assim, cercados de
monotonia e comodismo, até que um dia fui con-
vidado por amigos a ir aos hotéis da zona boêmia
de Belo Horizonte, coisa que não fazia desde a ado-
lescência. Nunca tinha visto “graça” em ir a esses
lugares e pagar por sexo; não entendia como alguns
homens, mesmo com mulheres “bacanas” em casa,
iam a esses lugares para fazer sexo com uma pessoa
desconhecida. Não entendia a graça até me ver na
situação de muitos deles, vivendo em um relaciona-
mento sem paixão.
Nesse primeiro retorno aos hotéis vi algumas
garotas realmente lindas que, fora daquele contexto,
muitos ignorantes e machistas classificariam como
sendo “meninas pra casar”. Porém nessa primeira
ida não tive coragem de fazer nenhum programa.
Alguns dias depois, voltando para casa sozinho,
resolvi dar uma volta por lá, onde acabei encon-
trando uma garota cujo nome não me recordo, que
era muito bonita e bastante simpática, acabando
por me convencer a fazer um programa com ela.
Depois dessa primeira experiência, acabei frequen-
tando esses hotéis de forma mais rotineira.
Em um dia, como outro qualquer, acabei indo
em um desses hotéis como quem não quer nada,
mais para matar o tempo do que realmente para
fazer algum programa, até que eu vi uma garota
que de algum modo me chamou atenção. A princí-
pio fiquei meio sem jeito e confuso, passando pela
sua porta algumas vezes. Lembro que ela estava dei-
tada, muito bonita, lendo um livro. Tomei coragem,
fui até sua porta, conversamos um pouco e combi-
namos como seria nosso programa. Ao entrar em
seu quarto começamos a conversar. Ele disse seu
nome, mas prefiro chamá-la de “Paixonite”. Durante
a conversa percebi que tínhamos algumas coisas em
comum. Após um breve banho, ela saiu do banheiro
e começou a passar um hidratante em seu corpo,
me dando a oportunidade de admirá-la, e ela era
realmente linda!
Ao me aproximar fiquei embriagado pelo seu per-
fume e quando senti o toque da sua pele foi como
se uma corrente elétrica atravessasse todo o meu
corpo. Nunca havia experimentado tal sensação e
fui me deixando levar. Beijei seu pescoço, seu rosto
e acabei lhe dando um leve beijo nos lábios. Pensei
que ela iria reclamar e até brigar comigo, mas para
minha surpresa ela me puxou e me deu um beijo.
A partir daquele dia nunca mais esqueci aquele
beijo. Fui para casa e a rotina voltou ao normal,
quer dizer, quase ao normal, pois aquele beijo insis-
tia em voltar aos meus pensamentos. Resolvi vol-
tar ao hotel para rever Paixonite, mas confesso que
fiquei com medo dela não se lembrar de mim. Eu
mais parecia um adolescente indo encontrar com
sua paixão de escola e quando a vi, para minha sur-
presa e alegria, ela se lembrou, deixando até trans-
parecer um pouco de alegria em me ver.
Depois do segundo encontro, minhas “visitas” à
Paixonite se tornaram mais corriqueiras, até que
um dia, ao voltar ao hotel, ela não estava lá. Várias
semanas se passaram sem eu vê-la ou saber notí-
cias suas. Confesso que fiquei um pouco abalado,
mas aceitei o fato, afinal, esse seria o destino mais
óbvio. Que futuro teria essa relação? No fundo sen-
tia alguma coisa a mais por Paixonite, sabia que não

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era apenas tesão, mas de certa forma isso criava um
conflito em mim e meu subconsciente tentava negar
esse sentimento.
Alguns meses depois, mesmo fazendo programas
com outras garotas, Paixonite ainda povoava meus
pensamentos. Eu não conseguia esquecer aquele
beijo! Andava pelos corredores e sempre que via
alguma garota com o tipo físico parecido com o
dela ia correndo em sua direção, na esperança de
ser Paixonite. Já havia perdido as esperanças até
que, um dia, já conformado, ao passar por um corre-
dor, vejo uma garota em um quarto deitada e lendo,
muito parecida com Paixonite. Parei no corredor
e pensei “não é ela”. Voltei a caminhar, mas uma
voz me dizia para eu voltar e conferir, e eis que era
Paixonite! Tentei disfarçar minha felicidade em revê-
-la, mas sei que foi em vão. Porém, ao ver sua reação
e perceber que ela também estava feliz em me rever,
isso me deixou nas nuvens.
Estar com Paixonite sempre foi algo muito inco-
mum, era como se eu a conhecesse minha vida toda.
Era tão familiar seu toque, a maneira como nos
encaixávamos; era algo que eu realmente não con-
seguia explicar. Voltamos a manter uma constância
de encontros. Até que em uma tarde de novembro ela
me disse que no final de 2017 iria parar, que voltaria
para sua cidade e teria uma vida “normal”. Apoiei
sua decisão, pois apesar de saber que nunca mais a
veria e que isso partiria meu coração, sabia que isso
era o certo a se fazer. Ao longo de dezembro fui me
preparando para a despedida que ocorreu próximo
ao réveillon. Nunca vou esquecer daqueles momentos
e do prazer (em sentido amplo) que senti naquele dia.
Fui para casa arrasado, mas não entendia o por-
quê. Na verdade, eu entendia sim, mas minha cons-
ciência insistia em negar o que eu sentia. Antes de
ir embora trocamos contatos, mas imaginava que
ela nunca entraria em contato comigo. Eis que na
virada de ano recebo uma felicitação que nunca
esperei: era Paixonite me desejando um feliz ano
novo. Fiquei receoso, mas respondi, e, quando nos
demos conta, havíamos passado toda a madrugada
conversando. No dia seguinte, ao refletir sobre tudo,
meu coração falou mais alto que minha razão e per-
cebi o que há muito eu já sabia: estava apaixonado
por Paixonite.
Porém, como isso era possível? Tinha meu rela-
cionamento, responsabilidades. Como viver essa
paixão? A princípio fiz o que a maioria das pes-
soas faria: fui covarde e neguei o que sentia. Disse
a Paixonite que era melhor nunca mais nos vermos
e que deveríamos seguir nossas vidas. Não consigo
descrever como isso foi difícil. Porém, o destino
quando quer pregar uma peça... Eis que não resisti
e voltei a conversar com Paixonite. Nessa conversa
tomei conhecimento de que ela havia voltado para o
hotel e resolvi voltar a me encontrar com ela. Numa
noite, minha companheira, já desconfiada em razão
do abismo que nos separava estar cada vez maior,
passou por mim e acabou descobrindo toda minha
relação com Paixonite.
Ambas ficaram arrasadas: minha companheira
pela traição e vergonha que a fiz passar, e Paixonite
pelo fato de eu ter mentido que era solteiro e, de
certa forma, também a traído. Eu também fiquei

48
arrasado. Nunca tive a intenção de magoar nin-
guém, mas minha covardia acabou machucando
duas pessoas. Pedi perdão e fiz de tudo para dimi-
nuir o transtorno para ambas e me afastei.
Apesar do meu afastamento e de tudo que pas-
sou, confesso que ainda pensava muito em Paixonite.
Eu estava apaixonado por ela e não conseguia tirá-
-la de meus pensamentos, mas, atendendo aos seus
pedidos, não mais voltei ao hotel e nem tentei qual-
quer contato. Até que um dia, em pleno sábado de
carnaval, eu estava em casa, ainda magoado com
tudo o que havia feito, e eis que Paixonite me chama.
A princípio pensei que ela pudesse estar planejando
alguma vingança ou algo do tipo, mas eu estava
apaixonado e louco para vê-la. Resolvi então aceitar
seu convite e ir ao seu encontro. Hoje tenho certeza
que foi a decisão mais acertada que tomei. Foi uma
noite maravilhosa, que se repetiu por quase todo o
feriado. Percebi que tudo o que sentia por Paixonite
era recíproco, e que ela também estava apaixonada
por mim e que nós não conseguíamos mais parar
de pensar um no outro.
Passamos a nos ver regularmente, agora fora
do hotel, hotel este onde Paixonite não mais vol-
tou a trabalhar. Passaram-se algumas semanas,
alguns meses e, sim, estamos juntos até hoje. E, sim,
é uma história clichê de um cara que conhece uma
garota em um bordel e eles se apaixonam. E, digo
mais, nunca estive tão feliz em toda a minha vida.
É, caro leitor, às vezes histórias românticas tipo as
dos filmes do Adam Sandler acontecem na via real.
Eu não vim para me explicar. Nunca me imaginei em
tal situação que o destino me colocou e jamais imaginei o
rumo que minha vida tomaria. Talvez, se me contassem o
que aconteceria comigo, com certeza eu iria rir, debochar
e, soberba do jeito que sou, iria querer pisar no destino,
nessas linhas que foram escritas certo, mas que, se não
fossem tão tortas, não teriam se cruzado.
Na vertente do sincretismo ketu, de origens africa-
nas, sou filha de Iemanjá, e podem ter certeza que sou de
Iemanjá todinha. Até então eu morava muito próxima à
praia, e sempre ia conversar com minha mãe, nunca me
achei digna de pedir nada a ela, fora saúde e proteção.
No dia 31 de dezembro de 2017 foi diferente e, logo, vocês
entenderão o porquê.
Eu tinha uma vida meio que “perfeita”, porém vazia.
Sempre que conversava com minha mãe eu me pergun-
tava o porquê. Morava em frente à praia, tinha um namo-
rado que fazia tudo por mim, estudos e por aí em diante.
O que eu ainda não sabia é que meu “namorado perfeito”
não passava de um manipulador e que eu vivia um conto
de farsas em um relacionamento para lá de abusivo. Um
dia, farta de tudo, pedi à minha mãe Iemanjá que se meus
planos não coincidissem com os dela, que a vontade dela
prevalecesse, só não sabia que ela levaria isso tão a sério.
Num lapso de brigas e insinuações sem fundamento, meu
relacionamento acabou. Acreditem, foi aí que a minha
vida começou.
Quando cheguei em Belô, era viciada em antidepres-
sivos. Todo tipo de remédios que você pode imaginar –
misturava tudo. Na verdade, acho que queria morrer, mas
não era suficientemente corajosa para isso, até porque, na
minha religião, suicídio é inaceitável. Eu me sentia um
lixo, estava acabada psicologicamente e não conseguia

50
acreditar que alguém pudesse pagar para sair comigo.
Porém, para manter a vida que eu levava e ajudar a minha
família, não tinha muitas opções. Perdi até a bolsa da
faculdade; era prostituição ou tráfico.
As contas não esperam e eu, prestes a me formar, sem-
pre pensava que isso tudo acabaria. Por diversas vezes,
no final do expediente, cheguei a tomar banho com cân-
dida pois me sentia suja. Até entender que eu não estava
tão errada, e me perdoava por tudo isso. Com o tempo
me acostumei e eu era uma das garotas mais procuradas
do lugar onde eu trabalhava. Ficava 15 dias aqui e 15 na
praia. Sempre fui muito profissional e estabelecia uma
relação muito saudável com meus clientes – era muito
difícil alguém sair insatisfeito do meu quarto. Até então
não sentia o peso da palavra prostituta: eu era meio que
“namoradinha de todo mundo” com direito a ganhar cho-
colate e massagem. Eu era a rainha dos clientes estranhos:
muitos entravam no meu quarto só por atenção mesmo,
pra conversar, lamber meu pé. A Blanca agradava a quase
todo mundo.
Minha rotina de garota de programa era muito orga-
nizada, com direito a pró-labore e livro de caixa. Blanca
era uma empresa. Minha matemática era muito sim-
ples: 26x50 que daria uma média de R$1.300,00 ao dia.
Geralmente batia essa meta sexta, sábado e segundas.
No resto do tempo me contentava quando batia R$800,00.
Isso era mais do que o suficiente para fazer meus planos e
ajudar minha família. Aliás, era mais que esperei ganhar
em toda minha vida. Quando pensava o tanto que minha
mãe e irmã estavam precisando, a prostituição ficou uma
coisa tão banal que eu tirava de letra. Eu era um perso-
nagem e ponto.
No dia 17 de maio, um dia como outro qualquer, mal
sabia eu que tudo o que eu acreditava iria cair por terra,
por causa de um beijo (iniciantes, não beijem!). Eu estava
lendo deitada na cama e a regra na minha porta sempre
foi muito clara: se passar a mão em mim tinha que pagar
o programa, afinal, não estava lá de graça. Estava lendo
“Gisele, a amante do inquisidor” – foi desse livro que tirei
“Blanca” – quando olhei para a minha porta e vi um cara
meio esquisito – mas, não sei explicar, parecia que eu o
conhecia.
Nesse dia, já havia atendido 18 clientes, já era noite e
eu estava com minha meta batida, mas estava com pre-
guiça de fechar a porta e nem era tão tarde assim. Ele me
perguntou quanto cobrava para fazer um programa “mais
tranquilo” e logo fechamos. Eu o acomodei em meu quarto
e logo fui tomar um banho. Sempre fazia isso em progra-
mas mais demorados, até porque eu sou muito olfativa e
muito vaidosa nesse aspecto. Tomei banho olhando para
o espelho. Vai que ele inventava de me roubar, né?
Cheguei perto dele e ele, muito atrevido, beijou minha
boca (o erro mais certo de toda minha vida). Acabei bei-
jando de verdade (e que beijo!). Resumindo, ele passou a
virar frequentador do meu quarto. Quando fui para casa
fiquei uns meses sumida, mas pensava nele frequente-
mente. Eu mal sabia o nome dele e ele só sabia que eu
era “Blanca” e, acreditem, foi o suficiente para eu me
apaixonar.
Na minha cabeça era brisa errada porque eu traba-
lhava muito chapada, mas todo mundo via que, sei lá, eu
tinha um carinho pelo policial que acabou sendo minha
paixonite. Quando o reencontrei não soube explicar o que
houve, mas não consegui disfarçar o sorriso. Eu decidi
parar em dezembro, que janeiro não voltaria, mas já estava

52
apaixonada e não entendia o por que dele ter me dado um
fora. Pasmem! O embuste era casado.
Era 2:36 da manhã e eu acordo assustada com uma
ligação e, por incrível que pareça, era o cara que havia me
dado um fora, na semana anterior. Eu acordo a Isadora,
minha amiga, e mando mensagem para ele: “O que tu
quer comigo?” Ele me enche de perguntas, mas como era
um fresco, seria bem a cara dele fazer isso. Quando ele
escreve “oque” junto já olho para Isadora e falo: “não é ele,
mas vamos ver quem é”. Ela, a esposa, me chama para ir à
casa dele, me confessa que ele é casado. Isadora, treteira,
já estava se trocando: “vamos lá, se ela tiver lá, arreben-
tamos ela”.
Eu sempre durmo com música. A música que estava
tocando na hora era a poesia acústica do meu perfume,
Poison Girl. Eu nunca mais usei aquele perfume depois
disso. Aquele perfume tem cheiro de “olha o que você faz
na vida das pessoas, maldita”. Eu lembro de flashes de
mim, vomitando e chorando encostada na porta (coisa de
canceriana que ama um drama) depois que ela desligou
o telefone chorando também. Era uma angústia que se
desatinava no meu peito e um sentimento de culpa.
Caramba! Eu já estava apaixonada, e não sabia o que
fazer. Ameacei ele de morte; ameacei quebrar o carro dele;
ameacei milhares de coisas e planejei outras milhões. Eu
estava tão engajada numa vingança e estava gastando
tanta energia nisso que todos à minha volta já previam o
que eu não queria ver: eu realmente estava apaixonada.
Até então, sinceramente, eu nunca havia sentido o peso
da prostituição, até ver a moça com quem sem querer
eu fiz uma puta maldade. Minha amiga me convence de
que eu tinha que falar com ele. Na verdade, eu já estava
convencida, só queria que alguém me ajudasse. Amiga é
para essas coisas, não? Ela falou com ele e pasmem! Depois
de tantas ameaças ele foi me ver (cômico, né?). A minha
vontade era enfiar um machado na cabeça dele.
Chegou o carnaval: foda-se, vou meter o louco esses 3
dias. G. me chama para ir para o Rio. Um médico bonitinho
me chama para ficar com ele e eu decido viajar com minha
melhor amiga. Chegando lá, me dá a louca e volto para
casa. Eu sentia ódio porque estava morrendo de saudades
e não queria mais ninguém que não fosse aquele desgra-
çado. Ele fodeu com meu perfume e minha música, mas
a vontade de ficar com ele foi maior. Eu só não sabia que
essa vontade, esse borbulho todo, era amor. E foi por amor
que tive coragem de sair da prostituição de uma vez por
todas. Acho que se não fosse por essa paixonite, esse amor,
essa coisa que nem eu sei descrever, não seria tão forte.
De tudo que eu aprendi na vida só tenho duas coisas
a dizer: 1) nada é certo e 2) a vida sempre continua. E eu,
da forma mais louca e esquisita do mundo, encontrei a
pessoa que quero passar o resto dos meus dias. Portanto,
meninas, não beijem, não peçam nada a Iemanjá que vocês
realmente não queiram e, acima de tudo, não importa com
quantos você ficou, o que importa é o último.

54
56
S. P. S.
55 anos, mãe de um menino, avó de
uma menina. Sou profissional do
sexo, conhecida por Lu.
Largando a profissão.
Lulu
– Oi, oi. Tudo bem?
– Tudo.
– Tomando uma cerva?
– Muito calor! Gosto daqui muito.

58
Esta conversa levou a um namoro de 8 anos. Era pura
paixão! Eu era uma profissional do sexo, ele casado, pai de
4 filhos e avô. Foi uma paixão avassaladora. Eu, a MULHER
MAIS FELIZ DO MUNDO! Éramos só felicidade. Ele não
tinha hora para voltar para casa; eu me sentindo amada.
Foi aí que descobri que meu mundo era rosa. Minha vida
era amar e Ser amada.
De noite eu era Santuza. De dia a Lulu da Guaicurus.
Meu coração estava em festa, os meus familiares o ado-
ravam e éramos o casal nota 1000! Mas ele não sabia a
minha verdadeira profissão.
Barzinhos, motéis, passeios à beira da Lagoa da
Pampulha, idas ao aeroporto para olhar os aviões deco-
larem, almoços no Verdinho e jantar à luz de velas. Tudo
perfeito. Achei que estava grávida e ele feliz por ser pai
pela quinta vez.
Mas tudo que construímos sobre mentiras tende a ruir.
Meu mundo ruiu. Uma Mulher que trabalhava nos hotéis
nos viu e contou tudo para ele. O mundo é pequeno. Eles
se encontraram no Sacolão do Caiçara:
– Oi. Aquela mulher, a Lulu, que se encontrava de mãos
dadas com você é sua esposa?
– Não, ela é minha namorada.
– Você sabe onde ela trabalha?
– Ela tem uma pensão do ex-marido.
– Aquilo não passa de uma puta lá da Guaicurus. Vai
lá no hotel “tal” quarto “tal” que você vai ver a pensão.
...
“DEUS, DEUS! Quem está na minha porta, parado,
olhando para mim com os olhos cheios de lágrimas!”
Eu não falei nada, ele também não. Só nos olhamos.
O mundo parou. Silêncio total. Nunca mais nos falamos.
Mas a mulher que me entregou, eu a joguei debaixo de
um ônibus, mas Deus colocou sua mão e ela não morreu.
Nós, profissionais do sexo, vivendo em um mundo de
mentiras. Nosso mundo é construído assim: somos mar-
cadas pelo preconceito de nós mesmas. Não somos amigas
umas das outras, puxamos o tapete uma das outras, aí
sim achamos que somos felizes. Destruíram minha vida.
Nunca mais amei ninguém e agora sou somente a Lulu
do quarto 226.

60
Aquece sua alma
Descanse o coração
Tranquilize os pensamentos
Deixe Deus trabalhar
Ele não dorme
E da gente, sempre vai cuidar.
62
R. P. B.
Eu nasci no interior de Minas Gerais.
Perdi minha mãe com 8 anos de
idade. Fui criada pela minha avó. Fui
ensinada a ser independente desde
muito cedo. Comecei a trabalhar
com 17 anos de idade. Minha música
preferida é Os Anjos, d’O Rappa.
Palavra em movimento

Movimento a palavra amor em ações gestos canções.


Movimento a palavra alegria em sorrisos abraços
amigos.
Movimento a palavra coragem em batalhas e intensa
liberdade.
Movimento a palavra carinho quando pego a sua mão e
sou
um abraço apertado que até escuta o som sonoro do
seu coração.
Movimento a palavra chuva quando permito gotas de
carinho cair
sobre um irmão.
Movimento a palavra tempo quando não me paraliso
diante
do triste momento e corro em direção ao sol esse sol,
esse
que brilha na estrada e se chama amor!
Movimento a palavra sonho quando sou movida pelo
desejo de vencer.
Movimento a palavra estrutura quando permaneço
forte e inabalável
em meio à fúria do impetuoso vento.
E assim com força e pensamento eu movimento cada
movimento cada
Momento.

64
Um dia fui criança

Um dia fui criança colhendo as estrelinhas


no azul da imaginação.
Eu era a poesia de viver uma vida sem
rancor. Metade de mim era música
e a outra era amor, mas a violência
já habitava o meu pequeno mundo.

Alcoolizada, espancada sempre


subestimada, hoje eu cresci, mas ainda
sou chamada de vagabunda,
Vagabunda mesmo é arte que as pessoas conhecem
de falar tanta asneira.

Às vezes eu me disfarço de mar.


É para transbordar a liberdade
para não viver assim presa nas garras
da maldade.

Às vezes eu me disfarço de espelho.


É para ver se alguém se olha em
mim e vê que por trás das pinturas
desse mundo a alma é um jardim.
Mundo estúpido

O preconceito é cego não vê a beleza da flor que vai


além da cor além dos olhos além da dor.
A misoginia é uma roda que esmaga mulheres todos os
dias ignorância cega que nada constrói.
Raio de sol é minha esperança corpo de mulher cora-
ção de eterna criança para me livrar da discriminação
tão vazia e tão fria é pura hipocrisia é pura estupidez
mundo estúpido sem calor sem
Sensatez.

66
Meus gigantes

Eu queria que o amor, a compaixão e a disciplina


fossem estrelas guiando o meu olhar.
Mas, todos os dias, tenho que derrubar meus gigantes:
preconceitos, violências, violações dos meus direitos.

No mundo das aparências


ninguém vê meu coração,
muito menos a música
que pulsa no meu peito.

Ainda bem que a esperança é raio de sol


nos meus dias de chuva
e a bondade é chuva nos meus dias de sol.
Sou a arte pintada pelas mãos de Deus,
um pequeno girassol.

Se não, o que seria de mim?


Apenas os cacos de tudo que se quebrou.
Por isso que eu prefiro minhas verdades
para viver de beleza
mesmo sob as sombras da
Maldade.
Pintura Viva

Meu rosto é a pintura de um antigo pintor.


Minha alma é o mistério de antigo amor.
Quem é o homem para julgar a beleza da flor?

Estou buscando o sol da minha liberdade,


mas é que ele só brilha em raios fúlgidos nos palácios de
Brasília.
Se Deus não fosse a luz sol que brilha aqui dentro
a vida seria tão fria.

Eu sou uma flor rosa Maria de todas as Marias


que como eu são subestimadas rotuladas julgadas sim
eu sou
flor Maria aquela que também teve seu sonho de amor
destruído pela violência.

Eu só acho agora que uma Mulher quando é vista


sozinha devia ser símbolo de independência e liberdade
não de vadiagem ou de abandono.

A primeira coisa que a Ignorância matou nesse mundo


foi a mulher.
Sempre subestimadas sempre objetificadas sempre
negadas
e às vezes fazem isso em nome de Deus.
Deus não é misógino.
Melhor seria que aquele cristão cínico fosse ateu.

68
Preconceito

Conceito pré-concebido se faz inimigo não pode ser


amigo.
Nas asas do sonho e da liberdade me abrigo é para fugir
do perigo,
Que não ouve o meu clamor quando meu coração san-
grando clama por justiça.

Preconceito é uma sombra dos olhos que não tem luz.


Eles julgam a beleza e regam com violência ao invés de
regar a alma com amor.
Às vezes o meu mundo fica sem cor, então eu me lem-
bro de quem eu sou.

Se o amor fosse a chuva que rega nossa semente


Talvez nossos bosques tivessem mais flores na prática e
não apenas no hino nacional,
Mas é que a prática é difícil quando a misoginia é uma
roda que esmaga Mulheres.

E depois me perguntam por que sou feminista.


Feminista sim porque eu não posso aceitar que
A maldade desse mundo me faça sangrar.
Mundo selva de concreto

Para enfrentar a maldade do mundo tem que ser


Guerreira. Coragem, força, ousadia, disciplina.
Mas muitos querem subestimar minha capacidade.
Sou fera, sou flor e sou de verdade.

Eu me abrigo nas asas do sonho para fugir


Do perigo. Eu me abrigo nas asas de Deus
Para fugir da maldade. Estou sempre
Fugindo, pois querem mutilar a minha
Liberdade.

Eu me entorpeço de esperança e fé.


É para não sentir as dores. Pinto o
Meu universo de cores alegres.
É medo de chorar então vou me
Pintar me alegrar me curar.

Os violentos invadiram o meu íntimo


Jardim e arrancaram minhas flores.
Mas não estou só, o pintor das
Estrelas está comigo e é nas asas
Desse velho amigo que eu me abrigo.
Deus não quer o meu sexo, quer o
Meu sorriso.

70
Autoestima

Quando tentarem te fazer chorar, cante.


Quando tentarem te derrubar, se levante.
Quando te rotularem, deixa a beleza
de dentro transbordar como se fosse
Mar. O que a bravura dessas águas vai
mostrar? Que as palavras se tornam
pequenas diante da real beleza.

Palavras apenas palavras pequenas.


Estigma

Um sinal uma marca ou uma cicatriz mas quem vê os


sinais
que o mundo me deixou não vê dentro de mim a beleza
interior
que o mundo não roubou.

72
É fácil julgar difícil e viver na minha pele enfrentar
minhas batalhas
onde a injúria corta como fio de navalha para ser eu
tem que ser
de fibra de raça de cristal se quebra e docinho se derrete
quem
sabe das minhas verdades comigo não se mete e se
meter tem
que admitir que eu sou apenas ser humano com o
direito de sorrir.

Para iluminar meu universo busco minha estrela bem


querer
o defensor dos pecadores o rei que usou coroa de
espinhos
sou pintada nos cenários desse mundo com pinturas
estranhas
que não fazem jus à minha luta não fazem jus ao meu
caráter as garras
da mentira me arranham beleza interior me encanta
porque
julgar a vida é uma atividade insana.

Não sou vulgar e muito menos santa mas para os


machistas
misóginos eu sou apenas a caça do dia e ainda falam
que
lugar de mulher é no fogão e na pia lugar de mulher é
lutando
direito dona do jogo fazendo as regras roubando a cena
o preconceito a nossa vida envenena então o orgulho
e a discriminação têm que morrer para a verdade
nascer.
74
Jeane Corrêa
Sou do Espírito Santo. Tenho três fi-
lhos. Gosto muito de escrever roman-
ces. Tenho dez escritos. Meu sonho é
publicá-los. Também sou artesã: faço
jogo de banheiro, tapetes e várias
coisas de crochê.
Meu tempo

1.

O céu está nublado


Meu coração acelerado
Sentindo a emoção
De estar junto do seu coração

O amor que sinto


Consome a minha alma
Não vejo a hora de colar
A minha boca na sua
Meu corpo colado ao seu
E as batidas do meu coração
Baterem no ritmo do seu

Ah, como é bom estar amando alguém assim como amo


você
Sentir meu corpo tremer ao te ver
Falta até a respiração e perco a voz ao ouvir você
Ai como é bom amar você, contigo o paraíso conhecer.

76
2.

Você me fez te amar perdidamente


Me fez perder meu tempo com você
Eu tinha a vida toda pela frente
Hoje não tenho tempo para viver

O tempo passou depressa


Apaixonada eu não percebi
Nos seus braços eu fiquei
E por muito tempo me distrai
Eu não enxergava
O que não me fazia tão bem assim
Hoje confesso desesperada
Eu não tenho mais tempo para mim.
3.

Não sei como começar


Sempre na minha adolescência sonhei casar
Casei, amei, chorei
Com as traições e desilusões

O tempo passou
Fui em busca da felicidade
Saí do interior
Para a grande cidade
Encontrar o meu príncipe encantado

Ele me pegou nos braços


Me beijou nos lábios e me levou para a prostituição
O tempo passou e não percebi
Nos braços dele fiquei por muito tempo, me distraí

Hoje,
Cansada
Velha
E abatida
Eu não tenho tempo mais para mim.

78
4.

A corrida dessa vida


É preciso entender
Que você vai cair
Rastejar, sofrer
Cada segundo a mais
Você vai entender
Que tudo vale a pena
Para crescer

E sentindo o cheiro das flores


E aprendendo com as dores
E passando por provações
E às vezes é no escuro que se enxerga a direção

A gente aprende quando chora


Quando sente saudade
Aprende até quando alguém
Falta com a verdade

Aprende também com a ingratidão


Maldade, inveja e com a solidão
Tudo na corrida da vida
Temos como lição.
80
Isadora
Tenho 28 anos e sou garota de pro-
grama há quatro anos.
Quatro anos

Assim começa minha história como profissional do


sexo: com um filho de quatro meses, morando em um
barracão de piso de terra, paredes só no tijolo sem reboco,
um colchão de solteiro, um fogão velho, uma geladeira
velha, sem portas e sem janelas na casa. Era assim que eu
morava, sem dinheiro para comprar comida nem roupas
para meu filho – trabalho não tinha. Foi quando eu pedi
um jornal velho à vizinha e comecei a procurar emprego.
Não me encaixava em nenhuma vaga, quando ao folhear
o jornal lá estava o salário dos meus sonhos, R$1.500,00
por semana. Como poderia alguém ganhar tanto dinheiro?

82
Em letras grandes o anúncio dizia: contrata-se garotas de
18 a 28 anos para trabalhar como acompanhante de luxo,
alimentação e transportes pagos. Já imaginava de que tipo
de trabalho aquele anúncio tratava, mas mesmo assim
criei coragem, peguei o telefone da vizinha emprestado
e liguei. Do outro lado da linha um homem com voz de
sono respondeu:
– Felinas Nightclub. – Eu tremia do outro lado da
ligação.
– Alô, queria saber sobre o anúncio do jornal. – Ele me
interrompeu dizendo:
– Qual sua idade?
– 24. – Respondi.
– Sua altura? Peso? Cor? – Eram tantas perguntas que
estava ficando ainda mais nervosa, mas respondi a todas.
– Então te espero às cinco. – Me passou o endereço e
disse que um carro me esperaria no final do metrô.
Quando cheguei ao endereço um carro velho me espe-
rava com um homem com cara de bandido e ele disse:
– Prazer, meu nome é Cobra.
Eu tremia e pensava em milhões de coisas horríveis,
quando ele, para quebrar o silêncio, perguntou:
– Já trabalhou em algum lugar antes? – Eu respondi
que não. Ele, para quebrar o clima de tentação, me pergun-
tou se eu sabia que tinha teste de sofá para as novatas.
– Como assim?
– Brincadeirinha. – Quando chegamos... imagine um
lugar feio. Logo na entrada veio uma moça, com um ar
barraqueiro, totalmente nua, dizendo:
– Nossa, mais uma novata, assim fica difícil ganhar
dinheiro.
Eu baixei a cabeça e subi as escadas. Cheguei em um
bar com uma sinuca, um pole dance, paredes pretas e
vermelhas e uma estrela grande brilhante no teto. Achei
a decoração de péssimo gosto e tinha também um sofá. A
faxineira estava limpando o chão, me tratou muito bem
e me perguntou se era a minha primeira vez. Balancei a
cabeça dizendo que sim.
– Posso fazer algumas perguntas? – Ela me respondeu
que sim. Eu perguntei como funcionava tudo, o que tinha
que fazer no quarto e ela me explicou.
Nesse momento chegou o dono – era muito bonito, o
tipo de homem que gosto. Ele veio em minha direção e
me deu um beijo na boca. Eu fiquei vermelha igual a um
pimentão e ele disse:
– Senta, o beijo foi só para dar sorte.
Conversamos muito. Ele era divertido e muito engra-
çado – parecia que eu já o conhecia –, me perguntou qual
nome eu iria usar e eu respondi que seria o meu, claro.
Aí ele disse:
– Você não deve usar teu nome verdadeiro e nunca
diga seu nome verdadeiro a ninguém, nem quanto você
ganha – vai ter muita gente querendo te derrubar.
Escolhi Isadora, o nome que uso até hoje.
Fui me arrumar e vesti um vestido vermelho, uma san-
dália bege, um batom e pronto, era o que eu ainda tinha.
Subi as escadas e as mulheres me olharam com um olhar
de ódio. Trabalhei demais nessa noite e ganhei R$930,00
em uma só noite. Precisava tanto daquele dinheiro que
os céus resolveram me escutar.
No final da noite, pedi para que, se possível, eu pudesse
me deitar um pouco para descansar até o dia acabar de
amanhecer. O dono só pagou a mim naquele dia, liberou
todo mundo do bar, menos eu, jogou um lençol no sofá
e disse:
– Pode se deitar, mas o problema é que esta é a minha

84
cama que vou dividir com você.
Para mim não foi nenhum sofrimento. Terminei a noite
nos braços do cafetão.
Quando o dia amanheceu fui embora e deixei ele dor-
mindo. No metrô me bateu um arrependimento e pensei
em me jogar na frente do trem, me matar, mas os R$930,00
que estavam no meu bolso não deixaram. Parei na ave-
nida Brasília do bairro São Benedito e comecei comprar.
Comprei roupa, sapatos, comida para o meu filho, muita
fralda e um chiqueirinho para servir de berço para ele.
Uma felicidade tomou conta de mim. Cheguei em casa
de taxi, com tudo o que tinha comprado e meu irmão que
estava construindo o barraco para mim perguntou:
– Onde arrumou tudo isso? – Eu, sem pensar duas
vezes, disse:
– Me tornei puta. Não aceito nenhum julgamento.
Ele fez uma cara para o meu lado e eu lhe disse:
– Vai ficar aí parado? Me ajuda a subir com as compras.
– Acho que nesse dia engordei meu filho uns cinco quilos.
No segundo dia de trabalho escovei o cabelo, fiz a unha
que estava horrível e fui trabalhar. Nesse momento todo
mundo já sabia que eu tinha dormido com o dono. As
meninas já me odiavam e as piadinhas começaram:
– Chegou ontem e acha que já está sentando na janela.
– Eu fingia que não escutava. Estava ali para sustentar
meu filho, e não para picuinhas. Falavam mal de mim para
os clientes, me xingavam e eu nem ligava. Quanto mais
me xingavam, mais eu trabalhava. Quando terminou a
noite, fui dormir em um quarto de programa quando o
dono me chamou e disse:
– Onde você acha que vai?
– Vou dormir um pouco.
– A partir de hoje você dorme comigo.
Os dias foram passando e eu me tornei a garota que
mais trabalhava na casa. Os homens queriam ficar com a
namorada do chefe. Quantas vezes ele, com crise de ciú-
mes, descia e ficava sentado em frente à janela em que
eu estava fazendo programa para ouvir se eu estava gos-
tando... Baguncei a cabeça do dono e ele não deixava eu
tocar nele com cheiro de outro homem. Um dia ele me
chamou e me perguntou se eu não queria parar de fazer
programa e gerenciar a casa. Eu aceitei – estava muito
apaixonada por ele. Foi tão bom quando desci a escada e
aquela mesma garota me disse:
– Ah lá, a patroinha acha que o dono a leva a sério,
acha que está sentada na janela. – Pela primeira vez eu
respondi:
– Só você ainda não percebeu que eu não estou sentada
na janela, estou dirigindo o carro.
Na mesma noite ele me apresentou como gerente da
casa para os funcionários e as garotas faltaram morrer.
Ele me colocou como gerente geral. Não ligava, comecei
a ficar responsável por tudo: estoque, propaganda, entre-
vistar garotas, tudo se resolvia comigo. O dono vendo que
eu era muito responsável começou a ficar cada vez mais
ausente e eu me sentindo cada vez mais sozinha. Não
queria ser só a funcionária perfeita, queria aquele homem
para mim. Tudo que qualquer um ia resolver, ele nem se
mexia mais e dizia:
– Resolve com a Isa.
Eu queria nós dois juntos, não só eu.
Depois de um ano com essa rotina eu ia em casa no
máximo uma vez por semana. Vivia minha vida para ele,
em função dele; parecia que ele exercia um poder sobre
mim. Mesmo eu não querendo aquela situação, não que-
ria deixá-lo. Amava ele mais que a mim, morria de ciúmes

86
dele e as mulheres faltavam se jogar em cima dele. Tinha
crises de ciúmes, não sei se por insegurança ou cansaço,
mas minhas crises eram horríveis. Ele tentava me acalmar
e dizia que me amava, mas eu não conseguia acreditar, até
que apareceu uma amiga de infância. Ela em beleza não
se comparava a mim, era bem mais velha que eu, gordi-
nha, um tipo que ele não gostava, mas, mesmo assim, ela
faltava se jogar nua em cima dele e eu morria de ódio. Até
que um dia, já cansado de tanto ciúmes, numa sexta-feira,
começou a beber cedo e essa mulher chegou e começou a
beber com ele – e eu já cansada, estava virada de sono há
uma semana. Juntei minhas coisas sem ninguém perce-
ber e fui embora.
Ele me ligou desesperado, mas eu já tinha pegado
um ônibus, deixado meu filho com meu irmão e via-
jado para uma boate no interior de Minas. Voltei a ser
garota de programa, mesmo com o coração partido. Fui
embora. Precisava viver, ser eu, não mais uma sombra
dele. Trabalhei em quase todas as boates do interior de
Minas. Fui para São Paulo, onde só passei raiva e não
ganhei dinheiro – não sabia como trabalhar lá. Voltei
para o interior e foi quando o movimento começou a cair
muito. Fiquei desesperada e uma menina de boate me
falou do sobe e desce chamado Brilhante. Eu já conhecia
de nome, mas achava que era fim de carreira – tinha uma
imagem horrível daquele lugar. Imagine, me prostituir por
R$40,00? Impossível.
Nesse momento eu morava com uma amiga e ela tam-
bém estava desesperada, pois também tinha um filho.
Meu filho morava com babá e as contas não paravam de
chegar. Resolvi conhecer. Quando cheguei pensei: “que
lugar estranho”. As mulheres seminuas ou nuas na porta,
bem diferente de boate. Não deixei de observar o quanto
todas eram lindas e pensei o por quê dessas mulheres não
estarem na noite – se estão aqui, deve dar dinheiro. Fui
à gerência e fui muito bem tratada pela gerente. Ela me
explicou como tudo funcionava, me alugou um lençol, me
vendeu camisinha e papel. Para mim, dentro do quarto, foi
normal, já sabia como trabalhar. Ganhei R$550,00 em três
horas, fora a diária. Para mim foi bom para o primeiro dia.
Nunca trabalhei nua, não sei se por vergonha ou timidez,
mas isso deixa os homens curiosos.
Fiquei um ano no Brilhante à tarde e de manhã em
outro hotel chamado Cristal, que conheci por acaso.
Estava passando na rua quando uma cara me pegou
pelo braço e me levou para conhecer – parecia que estava
escrito na minha cara: “procura-se zona”. Trabalhei assim
de 8 às 21h, de segunda à sábado. Não sei por qual motivo
tudo que conquistei com programas eu perdi, meu carro,
casa e mobília. Perdi para o meu irmão. O mesmo irmão
que passou fome comigo me deu um grande prejuízo, e
as economias emprestei para uma grande amiga e perdi
também. Só não perdi o que eu gastei aproveitando com
meu filho, que hoje em dia mora comigo. Hoje já estou
cansada de trabalhar assim e não tenho como sair. Vou
voltar a estudar para conseguir um emprego que, mesmo
que não me pague tudo que recebo nos hotéis, me dê con-
dições de criar meu filho dignamente.
Quatro anos se passaram desde que coloquei pela
primeira vez meu pé em um bordel. Hoje vejo o quanto
amadureci nesse tempo. Vi e vivi coisas que uma pessoa
com 50 anos não viu. Vi garotas machucadas, estupradas,
viciadas em drogas, humilhadas e penso no porquê de nós
garotas termos que passar por essas situações. É só um
trabalho e um trabalho muito difícil, mas é só um trabalho.
Quase nenhuma garota está ali dentro com aquele sorriso

88
falso porque gosta, e sim por necessidade. Além de sofrer
com trabalho ainda sofremos com o preconceito, tanto da
sociedade como dos próprios homens que frequentam
os hotéis. Das religiões nem se fala! É um caso à parte,
até porque se existe um céu chegaríamos primeiro, como
diz a bíblia. Alguns deles têm coragem de entrar, transar
e, depois, dizer que se continuarmos com esse trabalho
iremos para o inferno, pois Deus não aceita um pecado
como esse. Sério?
90
Mariely da Silva
Tenho 33 anos.
Trinta e três

Meu nome é Mariely.


Tenho 33 anos e sou de São Paulo.
Vim para Belo Horizonte após uma
Separação.

Sempre trabalhei como profissional


Do sexo. Desde os 20 anos,
Pois não tinha estudos e nem
Profissão, porque
Eu era casada e meu ex não
Deixava eu trabalhar.

Então decidi entrar pra vida,


Pois o dinheiro entrava rápido
E em grande quantidade,
E assim permaneço
Há 13 anos.

Tenho quatro filhos.


O mais velho mora em São Paulo,
Meus 3 comigo.
Ganhei um bebê há 12 dias.
Moro em Belo Horizonte
Há 6 anos.

Tenho planos:
Terminar o curso de técnico em Enfermagem.
Foi promessa para minha mãe
Já falecida.

92
“Mãe,
Eu vou cursar
E me formar
Em Enfermagem”.
94
Fátima Muniz
49 anos, maranhense. Mãe, filha, avó.
Puta ativista, profissional do sexo.
Manual do Cliente
Regras de limpeza:

• Não cuspa no chão.


• Não coloque os pés nas paredes.
• Use as lixeiras (não coloque lixo nas escadas
ou janelas).
• Seja asseado: lave as mãos e pênis antes e
depois do sexo.
• Faça xixi após o sexo: a urina é ótima para
limpar e matar bactérias.
• Não coloque seus dedos na vagina ou ânus.
Suas unhas estão cheias de sujeira e bacté-
rias e as unhas podem machucar.
• Não fume nos corredores: todo mundo sabe
que é proibido.

96
Antes de entrar no quarto:

• Não chegue gritando nas portas: converse baixo com


a garota. O hotel, clientes e garotas não precisam
saber o combinado para o programa. Cada garota tem
um jeito de trabalhar e seu próprio tipo (anal, beijo,
carinho, tempo, seios, etc.).
• Não me chame de tia ou prima. Além de não ser legal,
nos incomoda. Primeiro que você não está na pré-es-
cola. E, em segundo lugar, temos sobrinhos e primos
de sangue e seria errado fazer sexo com eles.
• Não nos pergunte se damos o “cu”. Pergunte se faze-
mos anal ou completo. É mais educado e, se a garota
não fizer, não insista. Tem muitas garotas que fazem
e é só combinar o preço.
• Combine preço, tempo e tipo de programa. Pergunte
o que a garota faz ou não faz. Assim não haverá
engano.
• Não fique chateado se as garotas não ficarem con-
versando com vocês nas portas. Isso nos atrapalha
porque pode haver cliente interessado em ficar com
a garota e pode ir embora procurar outra. Tempo
é dinheiro e só ganhamos com o cliente dentro do
quarto, com a porta fechada.
• Não se faça de bobo ou besta. Quando parar na
nossa porta e perguntarmos se você quer fazer um
programa você não precisa responder “O quê? Não
entendi!” Você está na zona. O que você acha que
estamos perguntando ou oferecendo? Sexo, é claro.
• Não nos pergunte “E aí, você aguenta fazer com dois?”
Fazemos na média 25 a 30 programas por dia. A ques-
tão não é aguentar dois: é questão de segurança não
ter dois homens no quarto ao mesmo tempo.
• Se você não foi bem atendido na porta, se você
achar que a garota não foi educada ou não te deu
atenção, vá para a próxima e tente até que uma seja
legal e você ache que vai dar certo.
• Pergunte só o essencial ao programa. Nosso signo,
idade, nome verdadeiro, estado civil, onde nascemos
ou filhos é particular e gostamos de manter isso
fora do nosso local de trabalho. Não são todas, mas
respeite as que não querem falar sobre o assunto.
• Não fique na porta nos elogiando – “Nossa, você é
linda e gostosa”. O maior elogio é nos escolher para
o programa. Só assim teremos dinheiro para a diária
e para pagar as nossas contas.
• Não faça do hotel uma praça pública. Não fique
parado nos corredores e na frente dos quartos
batendo papo com os amigos, falando alto: tem pes-
soas trabalhando e nossos trabalho precisa da con-
centração dos clientes. O barulho pode atrapalhar.
• Não bata nas portas quando fechada. A mulher está
ocupada trabalhando e o cliente está pagando. Seja
educado: espere ou dê uma volta.
• Não ande nos corredores com o telefone na mão e
ligado. As meninas precisam de privacidade para
exercer a profissão: elas têm receio de serem filma-
das e colocadas na internet.

98
Após entrar no quarto:

• Tenha a certeza do combinado no programa: tempo,


tipo de sexo e preço.
• Se a garota não fizer algum tipo de sexo (oral sem
camisinha, anal, beijo na boca, tocar nos seios, colo-
car dedos na vagina ou ânus) não insista: é opção
da garota, respeite. Por isso, é importante combinar
antes. Assim, quando você entrar no quarto já sabe
como será o programa.
• Não fique zangado se a garota perguntar depois que
você entrar no quarto se você quer um programa
mais demorado ou mais caprichado: estamos ofere-
cendo nossos serviços. Você aceita ou não e ainda
vale o primeiro combinado.
• Acabou o tempo combinado e a garota avisou, você
tem duas opções: continuar e combinar outro preço
e tempo ou parar. O que não pode é pedir mais um
tempinho falando que está “quase gozando”, que
“está vindo” e assim ficar enrolando. Pague mais e
continue o programa tranquilo.
• Bebidas, estresse, cansaço e falta de sono atrapa-
lham na ereção. Esteja ciente disso e não nos culpe
se seu amiguinho não levantar.
• O não pagamento do programa pode gerar processo,
no caso, de estupro. Mesmo nós sendo “putas”, foi
combinado e acertado o preço. Estupro é crime e
não tem fiança.
100
Laura
Nasci em Caraíbas. Meu nome é
Laura. Tenho 60 anos e trabalho há
32 na Guaicurus. Em 1973 comecei a
trabalhar em uma confecção como
aprendiz e saí como costureira.
Comecei em 1981. Sou cruzeirense
apaixonada. A música que mais
gosto é “Boate Azul” e a flor que mais
gosto é orquídea, de preferência azul.
Na minha história, conheci italiano,
argentino, japonês, coreano, inglês,
português. Conheci juiz, desembarga-
dor, advogado, engenheiro, contador
e homens simples, pessoas maravi-
lhosas e de muito caráter.
A dor da saudade
não tem cura
ou
Xô Preconceito!
– O Meu Nome é
Felicidade

102
Meu nome é Laura e tenho 60 anos. Nasci em
Paraopeba. Na verdade, em um arraial que se chama
Caraíbas, distrito de Paraopeba. Nasci no dia 21 de julho
de 1957 e sou do signo de câncer. Talvez isso faça jus ao
lado família que tenho. Sou muito caseira, mas gosto
muito de passear, de curtir a vida, porque a vida é feita
de momentos.
Mas, vamos lá. Deixe eu falar um pouco sobre a minha
infância. Começo de quando, como se diz, me conheço por
gente. Nasci de uma família de dez irmãos, seis mulhe-
res e quatro homens. As mulheres nasceram primeiro,
depois vieram os homens. Sou filha de pais de origem
muito humilde. Meu pai era lavrador, capinava na roça e
plantava arroz, feijão e melancia. Enfim, o que se chama
de boia-fria. Minha mãe cuidava da casa e das crianças.
Ela fazia o almoço e ia para roça ao meio dia ajudar meu
pai. Na verdade, quando já estávamos no grupo, que ficava
em uma fazenda, era minha irmã mais velha que cuidava
da casa e que nos levava para a escola.
Lembro que tive uma infância sofrida, pois, para che-
gar à escola, tínhamos que ir a pé; caminhávamos 40 minu-
tos para chegar ao Grupo e mais 45 para voltar para casa.
Tínhamos que enfrentar uma estrada de terra que, às
vezes, agradava, pois tinha cheirinho de natureza. Quando
era época da colheita de pequi, goiaba ou araçá, o cheiro
encantava. Era maravilhoso sentir esse cheiro. Apesar de
todo sacrifício e pobreza, éramos felizes.
Em Caraíbas só tinham oito casas. A da minha família,
a da minha tia e de algumas pessoas que trabalhavam no
arraial. Minha tia se chamava Geralda e tinha 14 filhos.
Alguns deles iam com a gente para a escola. O grupo esco-
lar era muito grande e ao lado tinha uma igrejinha que se
chamava Capela de São Geraldo. Minha professora, por
incrível que pareça, se chamava Laura Maria Lopes. Era
minha prima de terceiro grau. Era uma professora muito
linda, com seus cabelos longos. Era muito carismática e
tratava todos os seus alunos com o maior carinho. Ela
tinha uma verdadeira adoração por mim e pela minha
irmã gêmea, a Áurea. Íamos para a escola descalças, muito
mal arrumadas, mas todas limpinhas. Chamávamos aten-
ção pela nossa beleza, uma beleza natural. Estudávamos
com dedicação e tínhamos a nossa infância e nossa
ingenuidade.
As manhãs, em dias de aula, eram frias. Na roça, se você
colocava uma vasilha d’água do lado de fora da casa, no
outro dia ela estava congelada. Às vezes era difícil tam-
bém porque nem sempre a gente tinha o que comer, pois
tudo dependia da colheita. Se era época de banana ou de
laranja, tudo bem. Tinha merenda na escola: mingau de
aveia, mingau de trigo e sopa de legumes. Para comer no
caminho para a escola, que era longo, levávamos farinha
com açúcar ou fubá molhado. Na roça, a gente pegava o
fubá, afogava na água e colocava o óleo e mexia.
A gente tomava banho no rio: um banho de água fria.
Em Caraíbas tinha uma fartura de água, de peixes. Talvez
isso explique porque a gente conseguia sobreviver a tanta
miséria. Às vezes se comia peixe, alguns ovos de galinhas
e se comia da plantação. Quando meu pai precisava fazer
alguma compra, ele tinha que sair de Caraíbas e ir até
Paraopeba a cavalo. Eram três horas de viagem.
Lembro que minha mãe sempre reclamava da vida que
a gente levava no interior. Ela era uma mulher semianal-
fabeta. E era muito bonita e guerreira. Trabalhava muito e
ajudava meu pai a capinar. Era uma mãe muito carinhosa,
nunca deixava a peteca cair: era uma mulher guerreira,
uma fortaleza. Ela era tão corajosa que fez o meu parto e

104
da minha irmã sozinha. E, acredite se quiser, no meio do
pasto, ao lado de um curral, nascemos. Às oito horas da
manhã, ela contava, meu pai, Américo do Espírito Santo,
tinha saído para fazer compra em Paraopeba. Tinha saído
às cinco da manhã e ela tinha ficado em casa com meus
irmãos. Foi quando começou a se sentir indisposta: ela
parecia estar adivinhando que aquele dia não seria como
qualquer outro. Ela levou minhas irmãs para a casa da
minha tia Geralda e, quando voltava, sozinha para casa,
começou a sentir contração. Minha mãe deitou na grama,
ao lado do curral. Às oito da manhã nasceu minha irmã
Áurea. Eu demorei meia hora para nascer. Eu não sei por-
que demorei tanto tempo para nascer, pois eu, Laura, sou
uma mulher de atitude e transparente. Será que estava
com medo de encarar esse mundo louco? Depois que deu
à luz, foi socorrida por um padeiro, o Waldecir. Passando
pela porteira, ele encontrou minha mãe naquela situa-
ção e, assim, foi à casa da minha tia pedir ajuda. À noite
aconteceu uma grande festa, a notícia já tinha se espa-
lhado. Naquela manhã nasceram as gêmeas de Caraíbas
e à noite todo mundo queria as conhecer. O comentário
foi um só: o nascimento no pasto, ao lado do curral, das
gêmeas de Caraíbas.
Continuamos por anos em Caraíbas. Minha irmã,
Dalvinha, linda e loira, nasceu. E, depois de um ano, nasceu
Glorinha. Daí veio Roberto, o primeiro homem da famí-
lia. Ele nasceu doente, com um mês já estava com bron-
quite asmática. Como não tinha um hospital por perto,
sua saúde foi só piorando. Com um ano e doze meses,
faleceu. Nesse dia, tinham muitas pessoas do arraial no
enterro: aquele caixãozinho branco, tão pequeno, e aquele
corpinho tão frágil. Mesmo novinha eu não sabia como
expressar tanta dor e tanto sofrimento que tinha por toda
a família. Nossa casa estava repleta de pessoas que foram
se despedir do meu irmãozinho. Meu pai e minha mãe
choravam. Nossa ingenuidade era tanta que, quando o cai-
xão saiu para ser enterrado, minha irmã Edna perguntou
para minha mãe se Roberto só estava indo passear. Mas,
minha mãe, em lágrimas, disse: “não, minha filha, ele foi
morar com o papai do céu”. Cresci pensando nas palavras
de minha mãe, mas, ainda assim, achava que, um dia, ele
voltaria. Só com o tempo começamos a entender o que
tinha acontecido.
Em um Natal, minha tia e primos foram passar a festa
com a gente. Foi um grande dia. Ganhamos presente –
bonecas, pulseiras e brincos – e minha mãe ganhou uma
grande cesta de Natal. Era um momento bom, mágico.
Nunca tínhamos ganhado tantos presentes: era sinal do
progresso que começava a chegar à Caraíbas. Meu tio
tinha uma situação financeira melhor: ele tinha terras
e vendeu um pedaço delas para um açougueiro que se
chamava Nhô Leandro, uma pessoa que, como se diz, é
iluminada por Deus. Ele ficou amigo de meu pai e foi como
um anjo em nossas vidas: deu emprego para meu pai e,
com o tempo, nos tornamos muito unidos. Nossa família
passou a se entrosar com a família dele, nascendo uma
grande amizade. Meu irmão, José Antônio, é afilhado de
batismo de Nhô Leandro. Foi trabalhando para ele que
meu pai nos levou para morar em Paraopeba. Em Caraíbas
só tinha grupo escolar e na cidade já tinha o colégio, para
nossas séries mais avançadas.
Quando chegamos em Paraopeba, minha irmã foi tra-
balhar em uma fábrica de tecelagem e eu como empre-
gada doméstica. Nossa vida era tranquila, mudamos para
uma casa grande, com um grande pé de abacate na frente.
Tinha uma padaria na rua e perto tinha uma delegacia e

106
um asilo. Na nossa rua era onde tinham grandes festas.
Em todo mês de maio tinham barraquinhas com quen-
tão, pipoca, pé de moleque. Nessas festas também tinha
música ao vivo e eu e minha irmã, Áurea, éramos as mais
solicitadas para dançar. Éramos muito bonitas. Os rapa-
zes ficavam encantados com nossa beleza e ofereciam
músicas para gente. Lembro que a música mais tocada
era Índia. Ela sempre se repetia, tal como na versão de
Paulo Sérgio. Dedicavam a música para nós duas.
O tempo passou e continuamos em Paraopeba por um
bom tempo. Mas nem tudo foram flores. Meu pai pas-
sou a agredir a minha mãe e começou a ir para a gandaia
só voltando no outro dia. Se a vida era boa antes, foi aí
que começou o nosso calvário. Meu pai não era o mesmo:
arrumou uma amante em Caetanópolis, cidade vizinha,
e todo dinheiro que ganhava gastava na farra. O patrão
começou a reclamar da falta de responsabilidade com o
serviço. Continuava nos ajudando, mas já não era mais a
mesma coisa. Não tínhamos mais controle. Minha mãe,
então, escreveu para outro compadre dela que morava em
Belo Horizonte e pediu ajuda a ele.
Esse compadre deixou que a gente morasse no barra-
cão dele por três anos, até que a situação melhorou. Eu
me lembro bem do dia que chegamos à BH. Foi em um
domingo de manhã. Lembro que o motorista que trouxe
a nossa mudança de Paraopeba tinha o apelido de Deco
e era cruzeirense doente. Ele já era nosso amigo há muito
tempo. No dia, teve o jogo Cruzeiro versus Bahia e ele nos
levou ao Mineirão. Eu nunca mais me esqueci daquele
jogo. Para minha surpresa, o time ganhou: foi amor à pri-
meira vista. Eu era uma torcedora pé quente. Nesse dia me
apaixonei pelo Cruzeiro e, sempre que podia, ia aos jogos
do time, junto com minha irmã Áurea. Fomos convidadas
por Aldair Pinto para participar da charanga do Cruzeiro.
Até porque, com nossa beleza, a gente encantava qualquer
cruzeirense que estava do lado da charanga.
Com o passar do tempo eu arrumei um emprego. Fui
trabalhar na confecção Tony, no Carlos Prates. Entrei lá
como aprendiz e saí de lá como costureira profissional. Era
meu primeiro emprego de carteira. Era feliz, pois era uma
jovem bonita e sonhadora. Trabalhava muito. Acordava
5:30 e andava a pé para o serviço todos os dias.
Conheci um rapaz muito bonito que se chamava
Glauco. Ele me mandava flores, telegramas. Me mandava
telegramas com letras do Roberto Carlos. Comecei a amar
ainda mais as músicas do Roberto, maravilhosas. Glauco
era um bom rapaz, chegamos a namorar. Para mim, era
um grande recomeço. Ele morava quase em frente de onde
eu trabalhava. Certo dia, chegando em casa, encontrei um
telegrama com a seguinte frase: “onde você estiver, não se
esqueça de mim”. Essa frase me tocou tanto que até hoje,
às vezes, sinto saudade daquele tempo. Ele era um rapaz
muito bacana, mas tinha uma doença grave, degenera-
tiva. Quando ele morreu, fiquei muito triste porque eu
gostava muito dele. Ele era filho de italianos. Eu nunca
esqueci aquele rapaz tão lindo e deficiente. Seu rosto era
tão lindo, tão suave. Ele tinha uma alegria contagiante
pela vida, por estar ao meu lado. Glauco era um anjo que
só veio ao mundo para trazer o amor e a felicidade, pois,
quem estava ao seu lado, jamais sentia tristeza. Eu era
muito feliz com ele.
Algum tempo depois, o Roberto Carlos veio dar um
show em Belo Horizonte e fui lá, tentar acalentar o meu
coração, pois, quando Glauco faleceu, ficou uma dor muito
profunda no meu coração. Aquela dor de que se fala, a dor
da saudade; e a dor da saudade não tem cura e não tem

108
cura mesmo. E sempre quando Roberto Carlos voltava
para fazer shows em Belo Horizonte eu ia, quase sempre
sozinha, e ficava pensando em Glauco, naquele homem
maravilhoso, que tinha aparecido em minha vida, mas
que ficou tão pouco tempo ao meu lado.
O tempo foi passando. Mesmo sentindo a falta de
Glauco, eu arrumei um namorado chamado Gilberto. Era
um moreno muito bonito e trabalhava na COPASA, mas
era um rapaz muito possessivo, ciumento. Lembro que,
certa vez, eu e minha irmã Dalvinha iríamos a um show
do Roberto Carlos e comentei com ele. Ele me disse que
se eu fosse ao show ele terminaria o namoro. Eu, muito
brincalhona, respondi: “mais vale um show do Roberto do
que o meu Gilberto”. E eu fui ao show, no sábado. Quando
foi domingo, para minha surpresa, ele apareceu na minha
casa, com toda a sua família, para almoçar lá. Falei que fui
ao show e ele disse que não ia terminar o namoro porque
me amava e por eu ter sido uma mulher transparente e
por ter contado tudo para ele.
Eu e Gilberto continuamos namorando. Eu era ainda
muito nova, mas ele queria se casar. Eu falei que não que-
ria me casar ainda e daí terminamos o namoro. Eu conti-
nuei trabalhando na confecção até que ela decretou em
falência. E, no meio disso tudo, eu também descobri que
estava grávida da minha pequena K., e como não tinha
como comprar enxoval para minha filha, tudo ficou muito
complicado. Arrumei um emprego de vendedora de roupa
de porta em porta, mas as coisas não deram muito certo,
porque trabalhar como vendedora às vezes dava mais pre-
juízo do que lucro. Tive que me virar porque minha mãe
não aceitou bem a notícia de que seria avó. Para ela, que
vinha do interior, semianalfabeta, mãe solteira era pros-
tituta. Minha mãe não me deu apoio e acabou sendo uma
fase muito difícil quando eu mais precisava.
Só Dalvinha tinha me dado suporte, mas acabou
indo embora com o namorado, que era caminhoneiro,
para Goiás. Veja que destino: tão linda, trabalhava como
demonstradora de beleza da Perfumaria Lourdes. Ela
abandonou tudo por um grande amor. Infelizmente,
quando ela estava lá, as coisas não foram como o esperado.
Ela ficou grávida e, quando nasceu o Juliano, passados 16
dias, ela morreu de infecção hospitalar, por causa do parto.
Eu perdi o chão, porque além de perder a minha irmã,
minha parceira, minha melhor amiga, não tinha mais uma
conselheira que me apoiava. Foi um vazio tão grande, por-
que a dor da saudade não tem cura. Hoje vejo ela na minha
sobrinha, já que elas se parecem muito. Temos que con-
tinuar mesmo sentindo muita saudade, esperando o dia
em que nos encontraremos na eternidade. Sou católica e
acredito que, um dia, vamos nos encontrar.
Lembro quando minha mãe me colocou para fora de
casa quando minha filha estava com 4 anos de idade. Sofri
muito, mas essa dor não se comparava à dor que senti
quando minha irmã faleceu. Eu precisava ser forte, tinha
que cuidar da minha filha. Quando Dalvinha morreu eu
já estava na rua São Paulo, fazendo programa. Eu não tive
escolha: devido a tantas dificuldades e necessidades, tive
que continuar me prostituindo. Trabalhei muitos anos
nesse hotel e lá fui convidada a ser vice-presidente da
Associação das Profissionais do Sexo. As reuniões eram
no Hotel Montanhês, na rua Guaicurus. Depois nos muda-
mos para o Centro Cultural da UFMG, na avenida Santos
Dumont. Aceitei ser vice-presidente porque eu sempre me
identifiquei como sendo uma mulher família que gosta
de ajudar as pessoas. Como 90% das garotas de programa
são de outros estados, elas sempre me pediam conselhos.

110
Os próprios donos dos hotéis falavam para elas me pro-
curarem. Não sei quantas garotas eu já ajudei, levando
para o médico, fazendo acolhimento, trabalhando como
redutora de danos.
O tempo passou e eu continuo na Guaicurus. Essa era
a missão que eu tinha que carregar. Hoje em dia não existe
mais a Associação das Profissionais do Sexo. Atualmente
eu trabalho na Aprosmig – Associação das Prostitutas de
Minas Gerais, uma ONG sem fins lucrativos, fundada em
2009. Sou vice-presidente e amo o trabalho que faço, mas
às vezes penso em me aposentar. Por enquanto, pretendo
ficar mais uns três anos, pois só não saí até hoje porque
não quis, já que recebo pensão pela morte do meu marido,
por termos ficado juntos por sete anos. Tivemos uma vida
tranquila, mas, infelizmente, ele faleceu.
Hoje eu tenho um apartamento e pude ajudar muito
a minha família. Ajudei também minha filha, que morou
na Europa, fazendo faculdade. Eu dei força para ela, para
ela se sentir amparada fora do Brasil. Hoje eu me sinto
realizada: tenho uma filha linda que só me dá orgulho. Ela
é a prova de que para ser uma boa mãe não se precisa de
muito. Uma boa mãe é aquela que é amiga de seus filhos,
que os respeita e que tira ao menos duas horas na semana
para se dedicar a eles. Hoje, eu, Laura, aconselho a todas
as mães que cuidem mais de seus filhos, que amem mais
os seus filhos, porque, diante de tantas coisas que acon-
teceram em minha vida, eu me considero uma mulher de
atitude, uma mulher de caráter, uma mãe guerreira, uma
mulher que lutou pela filha e que sabe que a filha tem um
futuro brilhante. Me considero uma mulher feliz, vito-
riosa, porque tenho muito amor para dar, independente
de tudo o que vivi. Eu amei e fui amada.
Porém, meu coração hoje está triste. Eu conheci um
canadense que viria me buscar, mas abri mão desse amor
porque minha filha era muito nova. E eu, como uma mãe-
zona que sou, nunca teria coragem de levar minha filhinha
para morar em um lugar tão frio e tão distante. Não me
arrependo de ter aberto mão desse amor, apesar de ser
o único homem que me fez feliz depois de tanto tempo
na Guaicurus. Esse foi o único por quem me apaixonei
enquanto fazia programa. Até hoje brinco que sinto o calor
da sua pele em meu corpo. Quando abri mão desse amor,
eu me senti vazia por dentro. Se fosse hoje, eu acho que
iria, já que minha filha já é uma garota independente, estu-
dou, já se formou, morou na Europa, é professora.
Hoje eu me sinto realizada, mas, antes da minha apo-
sentadoria, quero deixar o meu legado. Brinco que sou
patrimônio histórico da Guaicurus. Por isso, no carnaval,
subi no palco da Guaicurus e anunciei que vou fundar o
meu bloco de carnaval, o Xô Preconceito! – O Meu Nome
é Felicidade. Quando ele for para rua, aí sim eu vou ser
uma mulher realizada. Mas, mesmo aposentada, vou con-
tinuar a visitar as garotas e trabalhando como voluntária.
E vou pegar o meu passaporte e fazer uma grande via-
gem internacional. Quem sabe ao Canadá, ao encontro
da felicidade?
Espero que, com toda essa história que contei, resu-
mida em alguns tantos, as pessoas gostem, porque, apesar
de tudo que passei, sou uma mulher feliz e realizada. Eu
quero continuar a ajudar as pessoas. Eu sou uma mulher
que venceu e tenho uma vida muito boa.

112
Poema para Dalvinha

Dalvinha,
No seu corpo
Germinou a semente
E foi Deus quem a plantou.
Um dia estaremos juntas
Na eternidade.

Felicidade
Não é tudo que a gente
Consegue alcançar.
A vida, às vezes,
Tem momentos felizes
E momentos tristes,
Mas todos nós dizemos
Que temos que aproveitar
Os bons momentos
Que temos na vida.

Porque a vida
É feita de momentos.
Muitas vezes,
Por um segundo,
A nossa vida não é mais feliz.
114
Vânia Rezende
65 anos. Mãe, avó, 2°grau completo,
moradora de Olinda e nascida no
Recife. Prostituta, bissexual, coorde-
nadora administrativa da Associação
Pernambucana das Profissionais do
Sexo. Integrante do fórum LGBT-PE,
do Movimento Negro Uiala Mukaji.
Vida Fácil

me chamam de puta
rapariga prostituta
garota de programa
messalina meretriz
quenga profissional do Sexo
trabalhadora sexual vadia
vagabunda mulher da vida fácil
kkkk
vida fácil.
Vida vivida sofrida estigmatizada
marcada como um ferro que fere as entranhas.
Vida sim porque mulher
é vida
e toda mulher
é mulher da vida.

116
118
Lourdes Barreto
77 anos, nascida na Paraíba e radica-
da no Pará. Puta ativista desde 1979,
fundadora do Grupo de Mulheres
Prostitutas do Estado do Pará
(Gempac) e, junto com Gabriela Leite
(1951-2013), criadora da Rede Brasileira
de Prostituição.
Puta
Sou puta de raiz, uma puta que quer ganhar o mundo,
uma puta que veio ao mundo. Sou uma puta com-
panheira, uma puta de luta, que busca por direitos e
cidadania em uma sociedade hipócrita e falso mora-
lista. Sou uma puta mulher para fazer a diferença, uma
puta como sempre, e serei sempre. De todas as horas, de
todas as noites, de todos os dias e de todas as manhãs:
uma puta de coragem. Na boate, no cabaré, na rua, na
esquina, na noite, no navio, no garimpo e nas barragens.
Uma puta das pepitas, da luz vermelha, da penumbra,
do laquê, puta da estrada, de todos os lugares, nos pos-
tos de gasolina, nas garagens, no sistema prisional, que
vai em qualquer lugar sem medo de ser feliz, de viver
as fantasias (nossas e dos outros). Uma puta bem puta
mesmo, uma puta que questiona e que luta, uma puta
mãe, uma puta avó, uma puta mulher, uma puta de raiz,
uma puta como sempre.

120
nota dos organizadores

“Se as ciências
sociais descrevem
as regras do jogo,
a literatura ensina
como jogar”

Gayatri Chakravorty Spivak

122
O projeto A Voz das Putas surgiu do desejo de que
mulheres que trabalham como prostitutas na rua
Guaicurus pudessem contar suas histórias e, principal-
mente, que contassem elas mesmas. Mulheres de dife-
rentes idades manifestaram a vontade de participar,
configurando um grupo bastante diverso de escritoras.
Algumas possuíam contato com a escrita, outras menos.
Para a construção do livro, foram realizadas oficinas de
criação literária desenvolvidas exclusivamente para elas.
Durante os encontros, compartilhamos a reflexão sobre a
importância da literatura, sobre textos literários de outras
autoras mulheres (como Ana Martins Marques, Carolina
Maria de Jesus, Tatiana Pequeno, Wislawa Szymborska,
entre outras), para que elas compartilhassem entre si suas
criações. Esses encontros não funcionaram como uma
oficina tradicionalmente poderia funcionar. Era necessá-
rio criar um espaço com o mínimo de poder e o máximo
de prazer para que elas apresentassem e, a partir de suas
experiências de vida e de seus contatos com a literatura,
discutissem os textos umas das outras.
Os textos aqui apresentados são, em quase a totali-
dade, oriundos das oficinas em que a escrita foi estimu-
lada como forma de simbolizar a própria vida e o acesso
à literatura como um direito de todos. Em Guaicurus – A
Voz das Putas, facetas literárias se apresentam com um
sabor, por vezes, pouco estimulado e conhecido, mas que
é, à sua maneira, marcante. Que suas leitoras e leitores
compartilhem desse pequeno festim de palavras. E que
espaços de leitura, produção e criação literária se espa-
lhem e adentrem cada vez mais nossa sociedade, com a
participação das vozes pouco ouvidas, que hão de ser cada
vez mais escutadas.
124

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