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RECREAÇÃO

E LAZER

PROFESSOR
Me. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel
RECREAÇÃO E LAZER

NEAD
Núcleo de Educação a Distância
Av. Guedner, 1610, Bloco 4
Jd. Aclimação - Cep 87050-900 Maringá - Paraná
www.unicesumar.edu.br | 0800 600 6360

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância;


BITTENCOURT GABRIEL, Oldrey Patrick.
Recreação e Lazer. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel.
Maringá - PR.:UniCesumar, 2016. Reimpressão - 2021
170 p.
“Graduação em Educação Física - EaD”.
1. Recreação. 2. Lazer. 3. Educação. 4. EaD. I. Título.
ISBN 978-85-459-0837-1
CDD - 22ª Ed. 701.1
CIP - NBR 12899 - AACR/2

DIREÇÃO UNICESUMAR
Reitor Wilson de Matos Silva, Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho, Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva, Pró-Reitor de Ensino de EAD Janes Fidélis Tomelin, Presidente
da Mantenedora Cláudio Ferdinandi.

NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Diretoria Executiva Chrystiano Mincoff, James Prestes, Tiago Stachon, Diretoria de Graduação Kátia
Coelho, Diretoria de Pós-Graduação Bruno do Val Jorge, Diretoria de Permanência Leonardo Spaine,
Diretoria de Design Educacional Débora Leite, Head de Curadoria e Inovação Tania Cristiane Yoshie
Fukushima, Gerência de Processos Acadêmicos Taessa Penha Shiraishi Vieira, Gerência de Curadoria
Carolina Abdalla Normann de Freitas, Gerência de Contratos e Operações Jislaine Cristina da Silva,
Gerência de Produção de Conteúdo Diogo Ribeiro Garcia, Gerência de Projetos Especiais Daniel Fuverki
Hey, Supervisora de Projetos Especiais Yasminn Talyta Tavares Zagonel
Coordenador(a) de Contéudo Mara Cecilia Rafael Lopes, Projeto Gráfico José Jhonny Coelho,
Editoração Humberto Garcia da Silva, Designer Educacional Agnaldo Ventura, Ana Claudia Salvadego,
Qualidade Textual Hellyery Agda, Revisão Textual Helen Braga do Prado; Ludiane Aparecida de
Souza, Ilustração Bruno Pardinho, Fotos Shutterstock.

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Wilson Matos da Silva
Reitor da Unicesumar

Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande as demandas institucionais e sociais; a realização
desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, de uma prática acadêmica que contribua para o
informação, conhecimento de qualidade, novas desenvolvimento da consciência social e política e, por
habilidades para liderança e solução de problemas fim, a democratização do conhecimento acadêmico
com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência com a articulação e a integração com a sociedade.
no mundo do trabalho. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar almeja
Cada um de nós tem uma grande responsabilidade: ser reconhecida como uma instituição universitária
as escolhas que fizermos por nós e pelos nossos fará de referência regional e nacional pela qualidade
grande diferença no futuro. e compromisso do corpo docente; aquisição de
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar competências institucionais para o desenvolvimento
assume o compromisso de democratizar o de linhas de pesquisa; consolidação da extensão
conhecimento por meio de alta tecnologia e contribuir universitária; qualidade da oferta dos ensinos
para o futuro dos brasileiros. presencial e a distância; bem-estar e satisfação da
No cumprimento de sua missão – “promover a comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica
educação de qualidade nas diferentes áreas do e administrativa; compromisso social de inclusão;
conhecimento, formando profissionais cidadãos que processos de cooperação e parceria com o mundo
contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade do trabalho, como também pelo compromisso
justa e solidária” –, o Centro Universitário Cesumar e relacionamento permanente com os egressos,
busca a integração do ensino-pesquisa-extensão com incentivando a educação continuada.
boas-vindas

Willian V. K. de Matos Silva


Pró-Reitor da Unicesumar EaD

Prezado(a) Acadêmico(a), bem-vindo(a) à A apropriação dessa nova forma de conhecer


Comunidade do Conhecimento. transformou-se hoje em um dos principais fatores de
Essa é a característica principal pela qual a Unicesumar agregação de valor, de superação das desigualdades,
tem sido conhecida pelos nossos alunos, professores propagação de trabalho qualificado e de bem-estar.
e pela nossa sociedade. Porém, é importante Logo, como agente social, convido você a saber cada
destacar aqui que não estamos falando mais daquele vez mais, a conhecer, entender, selecionar e usar a
conhecimento estático, repetitivo, local e elitizado, mas tecnologia que temos e que está disponível.
de um conhecimento dinâmico, renovável em minutos, Da mesma forma que a imprensa de Gutenberg
atemporal, global, democratizado, transformado pelas modificou toda uma cultura e forma de conhecer,
tecnologias digitais e virtuais. as tecnologias atuais e suas novas ferramentas,
De fato, as tecnologias de informação e comunicação equipamentos e aplicações estão mudando a nossa
têm nos aproximado cada vez mais de pessoas, lugares, cultura e transformando a todos nós. Então, priorizar o
informações, da educação por meio da conectividade conhecimento hoje, por meio da Educação a Distância
via internet, do acesso wireless em diferentes lugares (EAD), significa possibilitar o contato com ambientes
e da mobilidade dos celulares. cativantes, ricos em informações e interatividade. É
As redes sociais, os sites, blogs e os tablets aceleraram um processo desafiador, que ao mesmo tempo abrirá
a informação e a produção do conhecimento, que as portas para melhores oportunidades. Como já disse
não reconhece mais fuso horário e atravessa oceanos Sócrates, “a vida sem desafios não vale a pena ser vivida”.
em segundos. É isso que a EAD da Unicesumar se propõe a fazer.
boas-vindas

Kátia Solange Coelho


Janes Fidélis Tomelin Diretoria de Graduação
Pró-Reitor de Ensino de EAD
e Pós-graduação

Débora do Nascimento Leite Leonardo Spaine


Diretoria de Design Educacional Diretoria de Permanência

Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está de maneira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja,
iniciando um processo de transformação, pois quando estes materiais têm como principal objetivo “provocar
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta
profissional, nos transformamos e, consequentemente, forma possibilita o desenvolvimento da autonomia
transformamos também a sociedade na qual estamos em busca dos conhecimentos necessários para a sua
inseridos. De que forma o fazemos? Criando formação pessoal e profissional.
oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capazes Portanto, nossa distância nesse processo de crescimento
de alcançar um nível de desenvolvimento compatível e construção do conhecimento deve ser apenas
com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos
se educam juntos, na transformação do mundo”. fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe
Os materiais produzidos oferecem linguagem das discussões. Além disso, lembre-se que existe
dialógica e encontram-se integrados à proposta uma equipe de professores e tutores que se encontra
pedagógica, contribuindo no processo educacional, disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em
complementando sua formação profissional, seu processo de aprendizagem, possibilitando-lhe
desenvolvendo competências e habilidades, e trilhar com tranquilidade e segurança sua trajetória
aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, acadêmica.
autor

Professor Mestre
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel
Mestre em Educação Física na área de Pedagogia do Movimento, Corporeidade
e Lazer pela UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba (2004). Especialista
em Educação Física pela UEM - Universidade Estadual de Maringá na área de
Lazer e Qualidade de Vida (2003). Graduado em Educação Física pela UEM -
Universidade Estadual de Maringá (2000) e Bacharel em Teologia pelo STAGS
- Seminário Teológico Reverendo Antonio de Godoy Sobrinho (2009). Atual-
mente é professor da UNICESUMAR - Centro Universitário de Maringá, atuando
principalmente nos cursos de Educação Física, Teologia e Administração, com
ênfase nas seguintes áreas: ciência política, políticas públicas, lazer, psicologia
do esporte e educação física escolar.
Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas e
publicações, acesse seu currículo disponível no endereço a seguir:
<http://lattes.cnpq.br/4353021635497581>.

6
apresentação

RECREAÇÃO E LAZER
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Cara(o) aluna(o), é com muita alegria que apresento O ideal é que a vida como um todo, e não apenas
a você o livro da disciplina Recreação e Lazer. Quan- a vida acadêmica, se desenvolva num movimento de
do ingressei no curso de Educação Física, movido, ação, reflexão e nova ação, e assim sucessivamente.
principalmente, pelo interesse em lazer e recreação, Precisamos compreender o porquê fazemos o que
devido ao meu envolvimento desde a adolescência fazemos e como se deu esta construção tão complexa
com acampamentos e outras atividades de lazer, não que é a vida da humanidade nas suas mais variadas
imaginava a riqueza que permeava esta temática. A facetas; e uma dessas nuanças da vida humana é
paixão fomentou um desejo de conhecer e me apro- justamente o lazer.
fundar nas discussões sobre esta área tão essencial Por isso, em nossa primeira unidade, priorizei as
para a vida humana. reflexões em torno de um conceito operacional de
É muito comum que aqueles que ingressam no lazer, que permita situar a articular nossa temática
curso de Educação Física esperem que as disciplinas principal aos conceitos de cultura, tempo e atitude
sejam mais “práticas” e menos “teóricas”. Coloco na contemporaneidade. Destas discussões iniciais e
estes dois termos entre aspas, pois acredito que estas basilares, para nossos estudos, emergem discussões
duas esferas do conhecimento são indissociáveis. como o processo de surgimento de uma classe ociosa,
Quando as separamos, o teórico torna-se, na ver- como ela ostenta tal posição e como isso se relaciona
dade, um discurso vazio, pois perde a sua dimensão com as barreiras ao lazer, que geraram movimentos
real, prática. Já o prático torna-se uma espécie de de reivindicação ao longo da história, como o de luta
“tarefismo”, ou seja, um fazer pelo fazer, mera téc- pelo “direito à preguiça”.
nica, apenas aplicações de receitas, sem nenhuma Na Unidade II, proponho que reflitamos sobre a
reflexão mais aprofundada. relação do lazer com o trabalho e as demais obrigações
Talvez com esta disciplina não seja diferente. sociais. Estas relações são fundamentais para a com-
Muitos, quem sabe, esperam que ela seja uma oficina preensão do lazer em toda a sua complexidade, pois no
na qual se ensine jogos, brinquedos, brincadeiras e, lazer e no trabalho corre o mesmo sangue social. Neste
de preferência, mais o como fazer do que o porquê. contexto, surge a figura do animador sociocultural, que
Obviamente que estas atividades são extremamente pode atender inúmeras demandas e ideologias, bem
importantes ao(à) futuro(a) professor(a), e devem como apresentar variadas características.
ser tratadas com a mesma seriedade e profundidade. Na unidade seguinte passamos a discutir o duplo
Contudo é de suma importância que compreendamos processo educativo no lazer. Tema de grande relevância
como o lazer surge no modelo de sociedade em que para a formação de qualquer educador, pois, em geral,
vivemos e como ele pode ser compreendido à luz do estamos condicionados a pensar na escola como for-
que denominamos teoria do lazer. madora apenas de valores para o mundo do trabalho
e pouco para o mundo do lazer. Contudo ambos são repertório pessoal de atividades é fundamental para
importantes e relevantes socialmente. Ao analisarmos a atuação profissional, e será mais eficaz na medida
o lazer como espaço/tempo privilegiado para o lúdico, que represente uma compreensão aprofundada das
somos, imediatamente, remetidos à necessidade de peculiaridades de faixas etárias e ambientes que de-
repensar a sua relação com a cultura de maneira mais mandem ações específicas.
ampla e também com nossos modelos e culturas, por Portanto, caro(a) acadêmico(a), espero que este
isso a nossa reflexão sobre estas relações. material contribua na sua formação, e que você avance
Outra temática que está muito presente nas discus- cada vez mais nas suas reflexões e ações profissionais.
sões da Educação Física é a qualidade de vida, razão Há muitos outros assuntos que poderiam ser tratados
pela qual dedico a Unidade IV à aproximação entre aqui, mas elenquei aqueles que considero fundamen-
lazer e qualidade de vida à luz dos conceitos que tratei tais para este momento de sua formação acadêmica.
nas unidades anteriores. Nesta aproximação emergem São inúmeras as possibilidades de aprofundamento
muitos outros temas, mas, devido à impossibilidade neste universo de conhecimento, que vão desde a lei-
de discutirmos todos ele nesta fase, elegemos a cor- tura de bons livros, como por exemplo os utilizados
poreidade e a questão dos espaços e equipamentos neste material, como o contato com outras institui-
específicos e não-específicos de lazer para nossas dis- ções de ensino que se dedicam a pesquisas no campo
cussões sobre lazer e qualidade de vida. do lazer, inclusive com reconhecidos programas de
Por fim, em nossa última unidade, apresento pós-graduação - tanto latu sensu quanto strictu sensu
uma proposta de elaboração de um repertório de / mestrado e doutorado -, e, ainda, a participação em
atividades em recreação e lazer. Com isso, entendo eventos (congressos, simpósios, encontros, semanas
que a relação teoria e prática pode ser garantida na acadêmicas etc.) relacionadas ao lazer e à recreação.
medida que temos um pano de fundo conceitual Não deixe de se aprofundar nesta temática. Ela não
profundo sobre o lazer, prevenindo a tentação de está relacionada apenas à sua vida profissional, mas à
simplesmente reproduzirmos atividades por meio de sua vida pessoal e daqueles que você ama e quer bem.
receitas prontas, sem nenhum senso crítico e emba- Sucesso e paz em sua jornada!
samento do a ação profissional. A construção de um
sum ário

UNIDADE I UNIDADE IV
INTRODUÇÃO AO LAZER E À RECREAÇÃO LAZER E QUALIDADE DE VIDA
14 Conceito operacional de lazer 108 Conceitos, valores e parâmetros em lazer e
18 Lazer, cultura, tempo e atitude qualidade de vida

24 Classe ociosa, emulação pecuniária e 114 Qualidade de vida, corporeidade e lazer


barreiras ao lazer 124 Lazer, espaço e equipamentos
28 O direito ao trabalho e o direito à preguiça
UNIDADE V

UNIDADE II
REPERTÓRIO DE ATIVIDADES EM RECREAÇÃO E
LAZER, RECREAÇÃO, TRABALHO E OBRIGAÇÕES LAZER

44 Lazer, trabalho e obrigações 146 Considerações gerais sobre repertório de


atividades em recreação e lazer
54 Lazer, animação sociocultural e recreação
152 Exemplo de repertório de atividades em rec-
reação e lazer
UNIDADE III
LAZER, LÚDICO E EDUCAÇÃO
74 Lazer e o duplo processo educativo 170 Conclusão Geral
78 Lazer como espaço para o lúdico
84 A cultura, o lúdico e a escola
INTRODUÇÃO AO LAZER
E À RECREAÇÃO

Professor Me. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta
unidade:
• Conceito operacional de lazer
• Lazer, cultura, tempo e atitude
• Classe ociosa, emulação pecuniária e barreiras ao lazer
• O direito ao trabalho e o direito à preguiça

Objetivos de Aprendizagem
• Descrever o processo de construção de um conceito
operacional de lazer na sociedade contemporânea.
• Articular os conceitos lazer, cultura, tempo e atitude
para a compreensão do lazer e da recreação na
contemporaneidade.
• Definir e descrever o surgimento do conceito de classe
ociosa, sua relação com a emulação pecuniária e as
barreiras ao lazer.
• Apresentar o processo de desenvolvimento histórico de
reivindicação pelo direito ao trabalho em concomitância
com a busca pelo direito à preguiça.
unidade

I
INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), iniciaremos nossos estudos com o objetivo principal de estabe-


lecer uma série de elementos teóricos que proporcionem um entendimento sobre
a teoria do lazer e algumas interlocuções já realizadas com a recreação.
O foco principal de construção e seleção dos conceitos a serem aborda-
dos inicialmente são as contribuições de certos aspectos que a teoria pode
trazer para a ação profissional do(a) professor(a) de Educação Física na
escola e em outros ambientes.
A relevância desta unidade é o destaque de aspectos que considero impor-
tantes para a compreensão das relações entre o lazer e o trabalho, historicamente
situados no modo de produção capitalista, visto que é o sistema no qual estamos
inseridos, com todas as particularidades de uma sociedade contemporânea. É
importante para essa compreensão que apresentemos um conceito operacional
de lazer, que perpassará todas as nossas discussões neste livro.
A articulação do conceito operacional de lazer com a cultura, num sentido
mais amplo, necessariamente, passa pela compreensão da atitude no tempo dis-
ponível. Este tempo ganhou, ao longo da história, uma possibilidade de status so-
cial, pois, em muito, casos, só é possível desfrutar de mais tempo livre com uma
condição econômica mais abastada ou tendo alguém que trabalhe para você.
Por isso nossa discussão sobre a emulação pecuniária às barreiras ao lazer.
Historicamente a luta pelo trabalho esteve atrelada à luta pelo lazer, por
isso é de suma importância a compreensão dos fundamentos históricos que
possibilitam o emergir do lazer como fenômeno tal qual o conhecemos hoje.
Esses fundamentos históricos não podem ser esgotados neste momento,
haja visto que se trata de estudos introdutórios sobre o lazer e a recreação,
mas vale o destaque para os movimentos que conquistaram uma série de
direitos às classes menos favorecidas.
Esperamos que todas as ideias apresentadas contribuam para este pri-
meiro contato com o lazer e a recreação.
Bons estudos!
RECREAÇÃO E LAZER

Um Conceito Operacional
de Lazer
Para formar uma base de análise ao lazer e a recre- balho e na questão do tempo (cotidiano), tendo como
ação e sua relação com as possibilidades de atuação pano de fundo o modo de produção capitalista.
profissional do(a) professor(a) de Educação Física, Em primeiro lugar, acredito na necessidade de
é necessário estabelecer, primeiramente, uma dis- estabelecer o conceito que será base a todas as refe-
cussão acerca do lazer, pois a opção por uma com- rências feitas neste estudo do lazer, pois conforme
preensão específica deste tema determinará toda a Marcellino (2002, p. 21) “a incorporação do tema
trajetória de raciocínio. ‘lazer’ ao vocabulário comum é relativamente re-
Serão destacados conceitos relativos ao lazer ba- cente e marcada por diferenças acentuadas quanto
seado em nosso foco de estudo, pois acredito que este ao seu significado”, situação esta que acredito gerar
tema, enquanto área de pesquisa e atuação, permite muitas confusões quando se busca estabelecer uma
várias abordagens. É muito importante reafirmar que abordagem e relações com outras esferas da dinâmi-
as bases para a compreensão do lazer estão nas rela- ca social, como a recreação, mais especificamente no
ções que se estabelecem no chamado mundo do tra- âmbito da Educação Física.

14
EDUCAÇÃO FÍSICA

Até mesmo a tentativa acadêmica de estabelecer Deste modo, me aproprio de um conceito opera-
uma definição de lazer torna-se tarefa complexa na cional de lazer e não propriamente de uma defini-
medida que não consegue abarcar todas as variáveis ção de lazer, mesmo que este conceito seja transitó-
da vida. Entretanto, enfatizo a contribuição de de- rio. Este conceito, do lazer historicamente situado,
terminados teóricos, no sentido de deflagrar e de- é apresentado por Marcellino (2001, p. 15-17) da
senvolver as discussões acadêmicas sobre a temática. seguinte forma:
Um exemplo dessa tentativa é o conceito de lazer es-
tabelecido por Dumazedier (1975, p. 34): 1- Cultura vivenciada (praticada, fruída ou
conhecida) no tempo disponível das obriga-
ções profissionais, escolares, familiares, sociais,
[...] conjunto de ocupações às quais o indivíduo
combinando os aspectos tempo e atitude. Falo
pode entregar-se de livre vontade, seja para re-
do concreto da sociedade contemporânea –
pousar, seja para divertir-se, recrear-se e entre-
como é, e não do devir, como deveria ser - in-
ter-se ou ainda para desenvolver sua formação
clusive de uma sociedade que eu próprio con-
desinteressada, sua participação social volun-
sidere mais justa. Quando me refiro à cultura,
tária, ou sua livre capacidade criadora, após
não estou reduzindo o lazer a um único conte-
livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações
údo, considerando-o a partir de uma visão par-
profissionais, familiares e sociais.
cial, como geralmente ocorre quando se utiliza
a palavra cultura, quase sempre restringindo-a
aos conteúdos artísticos. Aqui abordo os diver-
Apesar de fomentar outras discussões para o desen-
sos conteúdos culturais. E, finalmente, quando
volvimento conceitual de lazer, é possível estabele- vivenciada, não estou restringindo o lazer à
cer críticas pertinentes a esta conceituação. Uma prática de uma atividade, mas também ao co-
delas é feita por Faleiros (1980, p. 61) ao destacar nhecimento e à assistência que essas atividades
podem ensejar, e até mesmo à possibilidade do
que o conceito estabelecido por Dumazedier esbar-
ócio, desde que visto como opção, e não com
ra numa visão funcionalista e, ao tentar conceitu- a esfera das obrigações, no nosso caso, funda-
ar o lazer, não dá conta de toda a dinâmica social, mentalmente, a obrigação profissional.
sendo uma ferramenta que supre determinadas
necessidades, mas cria muitas outras. O conceito 2- O lazer gerado historicamente e dele poden-
de lazer de Dumazedier é identificado, portanto, da do emergir, de modo dialético, valores ques-
seguinte maneira: tionadores da sociedade de um modo geral, e
sobre ele também sendo exercidas influências
[...] um invólucro vazio para ser preenchido da estrutura social vigente. A relação que se es-
com as atividades que são desenvolvidas em tabelece entre lazer e sociedade é dialética, ou
função de determinadas necessidades, desde seja, a mesma sociedade que o gerou, e exerce
que realizadas distintamente de certas obriga- influências sobre o seu desenvolvimento, tam-
ções institucionalizadas. Esse conceito de lazer bém pode ser por ele questionada, na vivência
histórico parece buscar o seu conteúdo orga- de seus valores. No nosso caso específico, é o
nizando no mundo da aparência (FALEIROS, próprio sistema econômico [...] que gerou a
p. 61, 1980). possibilidade de lazer que temos, sendo cons-
tantemente adaptado, até mesmo pelos valores
vivenciados no próprio lazer.

15
RECREAÇÃO E LAZER

3- Um tempo que pode ser privilegiado para A citação apresentada, ao contrário do que pode
vivências de valores que contribuam para parecer, pela sua densidade conceitual, descom-
mudanças de ordem moral e cultural, neces- plica uma série de questões ao estabelecer um ar-
sárias para solapar a estrutura social vigente.
cabouço, um esqueleto, uma estrutura básica para
A vivência desses valores pode se dar de uma
perspectiva de reprodução da estrutura vigen- situarmos qualquer outra discussão que se deseja
te ou da sua denúncia e do seu anúncio - por fazer em torno do lazer.
meio da vivência de valores diferentes dos do- Portanto, nela considero estarem presentes
minantes -, imaginar e querer vivenciar uma os principais elementos que caracterizam o la-
sociedade diferenciada.
zer sob uma determinada visão de mundo, e que
nos auxiliam na compreensão do nosso papel en-
4- Portador de um duplo aspecto educativo quanto professores(as) de Educação Física den-
– veículo e objeto de educação, consideran-
tro e fora da escola.
do-se, assim, não apenas suas possibilidades
de descanso e divertimento, mas de desenvol- Lembre-se que, como destaca o autor, não se tra-
vimento pessoal e social. E aqui não se está ta de um conceito fechado sobre o lazer, mas é aber-
negando o descanso e o divertimento, mas to e, portanto, dinâmico, na medida que deve pres-
simplesmente enfatizando a dimensão menos
supor um constante processo de diálogo, inerente à
considerada do lazer, a de desenvolvimento
que o seu vivenciar pode ensejar. própria dialética. É o que ele denomina de conceito
operacional, pois visa a intervenção, a operacionali-
zação de reflexões e ações em torno do lazer.

16
EDUCAÇÃO FÍSICA

SAIBA MAIS

Os primeiros trabalhos sobre a questão do


lazer produzidos no Brasil são marcados,
na sua maioria, pela falta de “autenticida-
de”, principalmente se for levada em conta
a legitimidade da ligação com a realidade
social concreta. O que se verifica, em gran-
de número, é a simples “filiação” a esta ou
aquela corrente de pensamento, tomando
como critério a análise dos argumentos dos
seus autores, pertencentes a sociedades al-
tamente desenvolvidas tecnologicamente,
ou portadoras de sólida tradição cultural. A
Universidade brasileira iniciou, significativa-
mente, suas investigações sobre o assunto
somente a partir da década de 70. Entre os
anos 80 e 90 cresceu, de forma considerável,
o número de teses defendidas nesse campo,
principalmente relacionadas à educação e à
produção cultural.
Sugiro a todos aqueles que têm interesse em
conectar-se a uma comunidade em torno do
lazer e em conhecer os trabalhos atuais, que
participem do ENAREL - Encontro Nacional de
Recreação e Lazer que ocorre anualmente
em diferentes regiões do país com o objetivo
de difundir os estudos de atuação no lazer e
recreação.

Fonte: adaptado de Marcellino (2000, p. 5).

17
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer, Cultura,
Tempo e Atitude
A compreensão do lazer, a partir do conceito opera- Com relação ao aspecto temporal, há a neces-
cional apresentado anteriormente, está atrelada ao sidade de situar-se no aqui e agora, e não em pro-
entendimento do conceito de cultura em um sentido jeções futuras. Isso não significa que não devemos
mais amplo. Portanto, a cultura deve ser entendida buscar uma perspectiva ideal de mundo e lutar para
como um “conjunto de modos de fazer, ser, interagir o triunfo deste ideal. Significa, sim, que a busca das
e representar que, produzidos socialmente, envolvem explicações, reflexões e análises da sociedade são ba-
simbolização e, por sua vez, definem o modo pelo qual seadas em fatos materiais, concretos e não em supo-
a vida social se desenvolve” (MACEDO, 1982, 1984, p. sições e conjecturas sobrenaturais.
35). Além da estreita ligação com o trabalho, o lazer Esta historicidade, para a análise e entendimen-
possui, portanto, uma relação determinante com as to do lazer na sociedade contemporânea, deve levar
outras esferas de obrigações humanas, pois todas elas em conta as relações advindas do trabalho no modo
são parte da mesma cultura. de produção capitalista. É necessário destacar este

18
EDUCAÇÃO FÍSICA

aspecto, pois uma discussão que não situe o lazer A Revolução Industrial, como afirma Galbraith
historicamente pode caminhar para rumos diver- (1982), constituiu-se em um conjunto de transfor-
gentes de análise da temática. É necessário, ainda, mações, que a partir da metade do século XVIII,
destacar que não há uma oposição entre o lazer e o passou a alterar, primeiramente, a vida da Europa
trabalho, mas uma dependência. ocidental e, de forma acelerada, espalhou-se por
O desaparecimento de um significaria a ex- todo o mundo. Estas transformações estão ligadas
tinção do outro, pois é justamente a dinâmica do principalmente à substituição do trabalho artesanal,
trabalho nas sociedades capitalistas que permite a que utilizava basicamente as mãos e ferramentas,
compreensão do lazer da forma como o conceito pelo trabalho assalariado, com o predomínio do uso
operacional o descreve. de máquinas.
Analisar o lazer num modo de produção escra-
vista ou feudal possibilitaria entendimentos diferen-
tes do que seria o lazer hodierno, visto que as re-
lações estabelecidas entre os seres humanos seriam
outras, bem como as relações com o tempo, o que,
consequentemente, determinariam outras atitudes
diante desta estrutura temporal.
Até o século XVII, a vida humana, com exceção
de uma restrita elite de privilegiados, tinha suas ra-
zões primárias em elementos básicos da vida econô-
mica. A alimentação, vestimenta e moradia eram o
que havia de mais essencial à vida humana. Galbrai-
th (1982, p. 2) descreve a provisão destas necessida-
des da seguinte forma:

[...] e tudo provinha da terra. O alimento,


é claro. E da mesma forma, as peles de ani-
mais, a lã e as fibras vegetais. E as casas, na-
quela época, vinham da floresta próxima, da Desta forma, podemos perceber dois estágios distin-
pedreira ou da olaria. Até o advento da Re- tos para análise, mas que ocorrem de forma contí-
volução Industrial, e em muitos países muito nua, ou que, segundo Marcellino (2003, p. 20-21),
tempo depois dela, toda a economia era uma são contemporâneos e representativos de dois estilos
economia agrícola.
de vida diferentes.

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RECREAÇÃO E LAZER

1º) [...] sociedade tradicional, marcadamente Cria-se uma pequena janela temporal em que
rural, e mesmo nos setores urbanos pré-in- poderiam ser realizadas atividades virtuosas, dife-
dustriais, não havia separação entre as vá-
rentes das pesadas e alienantes cargas do trabalho
rias esferas da vida do homem. [...] O binô-
mio trabalho/lazer não era caracterizado e as industrial. É “a partir do momento que marca o iní-
ações se desenrolavam como na representa- cio da transição do estágio tradicional para o mo-
ção de uma peça teatral, com os “atores” atu- derno que se verifica a ruptura entre a vida como um
ando de forma integrada e linear, dominando
todo e o lazer, fazendo com que este adquira signifi-
toda a história de seus personagens; 2º) Na
sociedade moderna, marcadamente urbana, a cação própria” (MARCELLINO, 2003, p. 20).
industrialização acentuou a divisão social do Ainda, acerca da gênese do lazer em sua concre-
trabalho, que se torna cada vez mais especia- tude histórica, o autor afirma que:
lizado e fragmentado, obedecendo ao ritmo
da máquina e a um tempo mecânico, afastan-
[...] a gestação do fenômeno lazer, como esfe-
do os indivíduos da convivência nos grupos
ra própria e concreta, dá-se, paradoxalmente, a
primários e despersonalizando as relações.
partir da Revolução Industrial, com os avanços
[...] Caracteriza-se o binômio trabalho/lazer tecnológicos que acentuam a divisão do traba-
e as ações se desenvolvem como na gravação lho e a alienação do homem do seu processo e
de um filme, onde os “atores” participam de do seu produto. O lazer é resultado dessa nova
cenas estanques, sem conhecer a história de situação histórica – o progresso tecnológico, que
seus personagens, cenas essas frequentemente permitiu maior produtividade com menos tem-
interrompidas para serem retomadas em se- po de trabalho. Nesse aspecto, surge como res-
quências totalmente diferenciadas. posta às reivindicações sociais pela distribuição
do tempo liberado de trabalho, ainda que, num
primeiro momento, essa partilha fosse encarada
Marcellino (2003) afirma, ainda, que a industria-
apenas como descanso, ou seja, recuperação da
lização é o divisor de águas entre os dois estágios força de trabalho (MARCELLINO, 2003, p. 14).
(sociedade tradicional e moderna). Este proces-
so de mudança gera modificações significativas
no comportamento das pessoas, bem como no
meio-ambiente.
Esta quebra espaço-temporal, advinda de um
novo modo de produção, gerou novas atitudes por
parte dos trabalhadores, pois as relações com as
várias obrigações sociais também foram trans-
formadas. Destaco que houve uma ruptura, por
exemplo, do tempo/espaço de trabalho. Até então
o locus de trabalho estava intimamente ligado à
festa, ao lúdico, ao prazer. Ao passar por esta ci-
são, a alegria e o lúdico, que estavam presentes na
mesma esfera, passam a existir como possibilida-
des em espaços/tempos diferentes.

20
EDUCAÇÃO FÍSICA

Para Marcellino (2003, p. 11), a deterioração da destas instituições sociais no que diz respeito à ati-
qualidade e do significado da vida, a problemática tude, não que tenham se extinguido.
das relações sociais, movidas pela lógica da produ- O lazer da sociedade industrial e pós-industrial
tividade e acumulando os indivíduos em “fábricas, não é, portanto, o mesmo lazer dos gregos da
bancos, grandes edifícios de escritórios e ruas, onde antiguidade, mas um lazer gerado dialeticamente
a funcionalidade imediata constitui a maior preocu- no modo de produção capitalista e dele dependente.
pação” gera o afastamento de si próprio, do outro Ao mesmo tempo que este lazer foi gerado por uma
e da natureza, ocasionando, por exemplo, as várias certa dinâmica do modo de produção capitalista,
formas de violência urbana. ele é o locus privilegiado para geração de valores
Neste sentido, há a atribuição de uma grande questionadores dessa própria sociedade.
importância ao que é produtivo (gerador de bens
de consumo ou mercadorias). Deixam-se oculto os
resultados que este tipo de produtividade acarreta
para a expressividade humana. As pessoas, neste
contexto, são apenas engrenagens na lógica produ-
ção/consumo. A lógica deste processo está baseada
em valores imediatistas e utilitaristas. Trabalha-se
para consumir e consome-se para trabalhar, e, as-
sim, sustenta-se o mercado de produção.
Na perspectiva de um lazer que seja instrumento
de dominação, reduzindo ou extinguindo o confli-
to social - visto como reforço e não como reação à
alienação do homem contemporâneo, e mais ainda
como uma fonte de grandes rendas por meio da in-
dústria do lazer, de forma a alimentar o mercado -
podemos notar os altos graus de imposição advindos
de uma urgente necessidade do sistema econômico,
ou seja, seus membros além de produtores, têm que
se tornar também os consumidores. O trabalho industrial privou a possibilidade de en-
Outras características que devem ser conside- tretenimento, da presença do lúdico no ambiente de
radas no processo gestacional do lazer é a redução trabalho, como era possível, por vezes, no trabalho
do aspecto tempo de trabalho, nascido das reivin- rural, no qual as necessidades e anseios poderiam
dicações sociais, e a progressiva redução do tempo ser supridos até mesmo em meio à lida diária, numa
dedicado a outras obrigações, tais como familiares, dinâmica social mais humana. Camargo (1986, p.
sociais, religiosas e políticas. Além do aspecto tem- 144) faz a seguinte observação sobre esta transição:
po, houve uma progressiva redução da dominação

21
RECREAÇÃO E LAZER

[...] nas danças tradicionais, em quase todas lho e produto do trabalho. O trabalho passou a
as culturas, os gestos do trabalho na terra, na ser fragmentado, de difícil compreensão, dada
madeira, com os companheiros, são incorpo- a sua complexidade tecnológica. [...] a um tem-
rados e estilizados, demonstrando a ligação po natural, humano, uno, integral, do campo, a
efetiva e lúdica. Isso é impossível na linha de indústria opôs um tempo artificial, alienado da
montagem, onde a menor distração de um ele- produção, que não se integra nem à dinâmica
mento prejudica a produtividade dos demais. familiar [...] (CAMARGO, 1986, p. 144).
A própria organização do espaço de trabalho
inibe qualquer tentação de diversão e entrete- Uma reivindicação dos trabalhadores, em virtude
nimento. Enfim, as longas jornadas de traba- do nascimento de um tempo artificial que determi-
lho no início da industrialização, apenas dei-
nou a realização de atividades lúdicas compartimen-
xavam tempo para o sono.
talizadas e imprimiu nestas uma característica do
O processo de industrialização representou, efeti- próprio trabalho alienado (veja mais sobre isso na
vamente, uma quebra temporal que, com as novas Leitura Complementar), foi a tentativa da redução
atitudes e necessidades, criaram um novo padrão de da jornada de trabalho.
vida. A exploração, via longas jornadas de trabalho, Esta reivindicação nasceu devido a ausência de
impelia ao trabalhador, num primeiro momento, a um tempo de lazer na lógica de racionalização do
mera necessidade de descanso, no tempo liberado tempo instituída pelo capitalismo. Nos primórdios
do trabalho. Entretanto, neste tempo não era pos- da industrialização “trabalhava-se cinco mil horas
sível vivenciar qualquer outra possibilidade além da por ano, o que significava jornada diária de dezes-
recuperação para a próxima jornada. seis horas, de segunda a domingo, quase todos os
A busca por um modo de vida melhor, com o dias do ano” (CAMARGO, 1986, p. 145).
advento da Revolução Industrial, exigia uma dedica-
ção exclusiva à vida nas fábricas. Este tipo de traba-
lho preservou apenas a característica de longas jor-
nadas nos períodos de safras, inerentes ao trabalho
rural, no qual a grande maioria dos trabalhadores
estavam inseridos. Entretanto, uma característica
que era fundamental para um trabalho mais huma-
no havia sido perdida:

[...] o contato com a natureza, com os animais,


com a família. Ainda hoje, a linha de montagem,
implacável, não obedece a um ritmo natural de
trabalho e repouso. O relógio de ponto marca o
início dos turnos. Os gestos exigidos são artifi-
ciais, repetitivos. A única pausa, para a refeição,
não respeita os limites de cada um; é coletiva
e determinada pelas necessidades da produção.
Mais: rompe-se a relação entre tempo de traba-

22
EDUCAÇÃO FÍSICA

De acordo com Camargo (1986), aos dez anos


de idade se dava início a vida útil de um ser humano
para o trabalho, tendo fim apenas com a morte do
trabalhador. Neste sentido, o capitalismo emergente
preservava os traços do feudalismo ao sustentar o
ócio aristocrata por meio de uma dinâmica de traba-
lho caracteristicamente escravo, características que
ainda são preservadas, de forma desenvolvida nos
tempos modernos.

23
RECREAÇÃO E LAZER

A Classe Ociosa, a Emulação Pecuniária e


Barreiras ao Lazer
O filósofo, com estudos em sociologia, Thorstein O ócio e consumo conspícuo seriam uma de-
Veblen, num texto escrito em 1899, realizou uma monstração notável do poder por meio da própria
análise econômica da sociedade sob uma perspecti- possibilidade que o indivíduo possui de desfrutar do
va sociológica. Seu objetivo principal foi o de provar tempo disponível e das possibilidades de aquisição
que a classe ociosa surge pela emulação pecuniária, por intermédio do poder financeiro. Já o ócio e con-
ou seja, pela competição ou a demonstração de força sumo vicário seriam uma demonstração notável das
por meio do dinheiro. Apesar de não fazer uso espe- possibilidades do ócio e do consumo baseado em
cificamente do termo lazer, Veblen (1965) aborda al- uma capacidade, ou poder alheio.
guns conceitos que contribuem para a compreensão
do lazer na sociedade capitalista.
Dentre os vários conceitos que esta obra traz
como contribuição à teoria do lazer, destaco a sua
consideração de que ao longo da história, o ser hu-
mano procurou demonstrar o seu poder por meio
de alguns meios. Dentre eles a força física (proeza);
a pecúnia (dinheiro); o ócio e consumo conspícuo
(ostentatório); e o ócio e consumo vicário.

24
EDUCAÇÃO FÍSICA

Neste sentido, a sustentação da vivência e consu- De acordo com a obra A teoria da classe ocio-
mo no lazer estaria relacionada à capacidade que de- sa, de Veblen (1965), as pessoas superiores, ge-
terminado indivíduo ou grupo social possui de man- ralmente com o maior poder financeiro, domi-
ter uma massa de trabalhadores ao seu dispor para nam seus inferiores em pecúnia mediante gastos
realizar um trabalho que lhe sustente e que, conse- supérfluos. Já as menos favorecidas buscam, de
quentemente, seja favorável ao ócio e ao consumo. A todas as formas, alcançar o nível social dos pri-
tese de Veblen (1965, p. 14) consiste em afirmar que: meiros, esgotando todas as suas energias e posses.
A descrição da classe ociosa é feita da seguinte
[...] pessoas acima da linha da mera subsistên- forma, pelo autor:
cia nesta época, e em todas as épocas anterio-
res, não aproveitam o excesso que a sociedade
[...] compreende as classes nobres e as clas-
lhes deu visando primordialmente a propósitos
ses sacerdotais e grande parte de seus agre-
úteis. Não buscam elas expandir suas próprias
gados. [...] Estas ocupações não-industriais
vidas, viver com mais sabedoria, mais inteli-
das classes altas são em linhas gerais de
gência e mais compreensão, mas buscam im-
quatro espécies – ocupações governamen-
pressionar as outras pessoas pelo fato de serem
tais, guerreiras, religiosas e esportivas. [...]
possuidoras desse excesso.
Estas quatro formas de atividade dominam
o esquema de vida das classes altas - reis ou
Os processos e maneiras para gerar estas impres-
chefes –, estas são as únicas formas de ativi-
sões são denominados por este autor de “consumo dades permitidas pelo costume ou pelo bom
conspícuo”. A característica básica desta dinâmica é senso da comunidade. Na verdade, quando o
o dispêndio de dinheiro, tempo e esforço, quase de esquema é definido já nitidamente, até mes-
mo os esportes não se consideram atividade
todo inutilmente, na busca de expandir o ego.
legítima para os membros da classe mais alta
Um clássico exemplo dessa dinâmica de con- (VEBLEN, 1965, p. 20-21).
sumo conspícuo na sociedade industrial foi o au-
tomóvel. A escolha de um carro deixou de lado as Outro aspecto importante destacado por Veblen
questões exclusivamente funcionais, pois passou a (1965) é que as características das atividades ou fun-
ter fundamentos na manutenção ou aumento do ções industriais se desenvolveram de tarefas que,
prestígio diante da comunidade. primitivamente, nas sociedades bárbaras, cabiam às
mulheres. Este fato revela a valorização social, tendo
como parâmetro principal o conceito laboral atrela-
do ao gênero masculino, pois até mesmo em socie-
dades industrializadas, as atividades antes relegadas
ao gênero feminino passam a ser desempenhadas
pelos trabalhadores de ambos os gêneros, que sus-
tentam a possibilidade de ócio de uma classe supos-
tamente mais elevada.

25
RECREAÇÃO E LAZER

REFLITA Na sociedade contemporânea ainda podemos per-


ceber uma dificuldade maior por parte das mulheres
Você já parou para analisar a quantidade de para usufruírem do lazer, fator gerado principalmen-
bens e serviços que consumimos que são “ne- te pela dupla jornada de trabalho. Elas, além de ter de
cessidades desnecessárias”? Qual o impacto exercer determinada profissão, têm, em sua grande
disso nas relações humanas?
maioria, de realizar as tarefas, ainda, caracterizadas na
sociedade contemporânea como sendo apenas para
mulheres: as tarefas domésticas. Portanto, acentua-se,
Para Veblen (1965, p. 37), a diferença primária da ainda, as diferenças históricas com relação aos gêneros.
distinção entre classe ociosa e classe trabalhadora Há, além destas explicações, outras dinâmicas
é “[...] o trabalho feminino e o trabalho masculino, envolvidas que podem dar sustentação ao entendi-
existente nos primeiros estágios do barbarismo”. mento destas barreiras que limitam o acesso às ativi-
Destaco, por meio deste raciocínio, uma das facetas dades de lazer de maneira tanto quantitativa quanto
ligadas às barreiras para o lazer. qualitativamente. O fator econômico é considerado,
hodiernamente, o mais determinante para o acesso
ao lazer. As pesquisas realizadas sobre este tema, ape-
sar de muito restritas, demonstram, de acordo com
Marcellino (2000), que o acesso à recreação - ativi-
dades relacionadas aos conteúdos culturais do lazer
- é realizado preponderantemente por jovens, com
instrução e condições acima da média da população.

O fator econômico é determinante desde a dis-


tribuição do tempo disponível entre as classes
sociais, até as oportunidades de acesso à Escola,
e contribui para uma apropriação desigual do
lazer. São as barreiras interclasses sociais (Mar-
cellino, 2000, p. 23).
Estas barreiras seriam os entraves que inibiriam de-
terminada parte da população para a vivência do Com relação ao surgimento desta classe ociosa, Ve-
lazer. Dentre estas barreiras estão presentes as de ca- blen (1965) afirma que os valores e costumes cultu-
ráter econômico, de faixa etária, de instrução, aque- rais das sociedades/comunidades, em baixo estágio
las de acesso aos espaços e equipamentos, e ainda as de desenvolvimento, apontam para um desenvol-
relacionadas à violência e à questão do gênero. Com vimento gradativo da classe ociosa, no período de
relação aos espaços e equipamentos de lazer, vale transição da selvageria primitiva para o barbarismo.
destacar o seu aspecto de sacralização e, ainda, as A característica desta transição seria uma mudança
dificuldades para utilização por parte dos deficientes da passividade nas relações sociais passando a uma
físicos, por exemplo. relação de lutas, de guerra.

26
EDUCAÇÃO FÍSICA

[...] somente os indivíduos de temperamento ex-


O surgimento da classe ociosa seria, deste modo, cepcional conseguem, diante da desaprovação da
uma conjunção temporal ao início da propriedade comunidade conservar em última análise a pró-
privada. Esta interposição presente no processo de pria estima. Aparentemente, existem exceções a
esta regra, especialmente entre pessoas de fortes
desenvolvimento cultural seria necessária em virtu-
convicções religiosas; mas estas exceções aparen-
de das duas instituições terem origem por meio do tes não se podem considerar como exceções re-
mesmo conjunto de forças econômicas. ais, porque tais pessoas se apoiam usualmente na
aprovação presumível de alguma testemunha so-
“Onde quer que se encontre a instituição da brenatural de suas ações (VEBLEN, 1965, p. 43).
propriedade privada, mesmo sob forma muito
embrionária, o processo econômico tem o cará-
ter de uma luta entre os homens pela posse de Portanto, é uma construção sociocultural de fundo
bens” (VEBLEN, 1965, p. 38) econômico que possibilitou o surgimento de uma
classe ociosa imprimindo uma outra dinâmica à vida
Ao contrário da economia clássica que considera social. Veblen (1965) demonstra um certo pessimis-
apenas a luta pela subsistência. mo ao afirmar que a forma como a sociedade se de-
senvolveu e onde ela chegou não suprem as necessida-
des individuais, pois a base destas necessidades estão
no desejo, que por sua vez, está contaminado com a
necessidade de se impor e sobressair sobre outrem.
Portanto, as explicações da economia clássica para
a busca por satisfação de subsistência ou de conforto
físico são insuficientes para explicar a justificativa de
políticas voltadas ao progresso. A busca pela honra
e pelo reconhecimento torna-se uma luta constante.
Neste processo, a comparação geraria um mal enorme
à humanidade e, neste contexto, seria praticamente
impossível atingir uma realização definitiva e plena.
Portanto, a reflexão sobre uma classe privilegia-
da com o ócio ou atividades de lazer revela que ape-
sar de um fundo econômico por detrás das ações,
esta não se justifica por si só, mas pela possibilidade
Uma questão que poderia surgir é quanto ao motivo que tais recursos têm de obter e conservar a consi-
pelo qual os membros de uma determinada socie- deração de outros membros da comunidade. A ri-
dade sucumbem à pressão de ostentar determinadas queza possuída deve ser patenteada, sendo exposta
proezas, posses e o ócio, com as possibilidades a eles aos olhos alheios, pois sem uma demonstração aos
relacionadas. Destaco, dentre outros argumentos outros, não seria possível a atribuição de valor, con-
utilizados pelo autor, o de caráter psicossocial, com sideração e, consequentemente, de uma possível ele-
relação à emulação: vação do status social de quem a possui.

27
RECREAÇÃO E LAZER

O DIREITO AO TRABALHO E O
DIREITO À PREGUIÇA
Na obra O direito à preguiça, publicada original- benesses do lazer, com as possibilidades de desfru-
mente em forma de panfleto revolucionário em tar das virtudes daquilo que Lafargue, intencional-
1880, Paul Lafargue demonstra inquietação pelo mente, denomina preguiça, como forma de criticar
fato de os trabalhadores perceberem que sustentam um dos setes pecados capitais.
o ócio de uma classe privilegiada que os explora, Lafargue deixa claro que os trabalhadores de
mas que ao lutar pelos seus direitos ao trabalho, sua época não tinham possibilidades de acesso aos
sem se darem conta, estão perdendo direitos ao mesmos direitos e privilégios da “preguiça” de seus
tempo disponível. Lutam tanto pelo trabalho, que patrões, mas que deveriam se atentar para tal explo-
se esqueceram da importância de usufruírem das ração, desigualdade e injustiça.

28
EDUCAÇÃO FÍSICA

[...] antecipando Walter Benjamin, procede


à genealogia da religião capitalista, sua ética
protestante que exige abnegação ao trabalho,
prometendo ascese mundana na produção de
mercadorias. ‘Uma estranha loucura’, escreve
Lafargue, ‘dominou as classes operárias das na-
ções onde reina a civilização capitalista’. Essa
loucura traz como consequência misérias in-
dividuais e sociais que há séculos torturam a
triste humanidade.

A crítica à sociedade moderna é o elemento pre-


cursor da obra de Lafargue. A tirania do mercado
Para Matos (2003, p. 8), Lafargue manifesta seu pio- e do trabalho alienado são confrontados pelo autor
neirismo, principalmente, ao tratar do processo de a partir das necessidades de uma vida que encon-
libertação do operariado (proletário) não apenas tre sentido em valores de autonomia e liberdade. A
num processo de luta pela extinção do capital e de busca da transformação do cotidiano é evidente em
seus detentores, mas em “permitir ao operário li- sua linguagem retórica, objetivando atingir o âmago
vrar-se de sua alma, que é o princípio redobrado de das emoções do leitor, com uma variedade de senti-
sua própria sujeição”. mentos, advindos de suas descrições da sociedade.
A obra principal de Paul Lafargue consiste em Como afirma Chaui (1999, p. 31), Lafargue:
uma apresentação paradoxal e polêmica da aliena-
ção no modo de produção capitalista. Publicada no [...] não apenas sabe que a oralidade é essencial
num panfleto revolucionário, mas sabe também
Jornal Socialista L’Égalité, em uma sequência de ar-
que poderá obter um efeito de grandes propor-
tigos, de 16 de junho a 4 de agosto de 1880, foi edi- ções se constituí-lo de maneira retórica, operan-
tada em conjunto em 1881, revista e concluída no do em seu campo com muitas gamas e tonalida-
cárcere de Sainte-Pélagie em 1883. Segundo Chaui des de emoções, a fim de comover e persuadir.
(1999, p. 16), “O Direito à Preguiça teve sucesso
sem precedentes, comparável apenas ao Manifesto Essa preocupação com a retórica textual é expressa
Comunista, tendo sido traduzido para o russo antes de imediato com a escolha do título da série de pan-
mesmo deste último”. fletos. O título original do panfleto foi: O Direito à
O direito à Preguiça, para Matos (2003, p. 7), Preguiça. Refutação da Religião de 1848. A escolha
pode ser classificado como um manifesto filosófico do termo “preguiça”, segundo Chaui (1999), não foi
por seu tom interpelativo e mobilizador, pois: acidental. Ao contrário, teve uma intenção clara de

29
RECREAÇÃO E LAZER

reportar-se incisivamente às questões religiosas. Tal


escolha “[...] não é uma irreverência ‘materialista’ de
um ateu empedernido e sim a crítica materialista do
trabalho assalariado ou do trabalho alienado, pois
este é o objeto de O Direito à Preguiça” (CHAUI,
1999, p. 30). Lafargue, inteligentemente, constrói
sua retórica em forma de incisiva paródia aos ser-
mões religiosos, seguindo suas regras.

Ao escolher e propor como um direito um pe- Neste sentido, Matos (2003, p. 13) afirma que
cado capital, o autor visa diretamente ao que
Lafargue foi um dos pioneiros a “romper com o
denomina “religião do trabalho”, o credo da
burguesia (não só francesa) para dominar as caráter sadomasoquista da civilização contem-
mãos, os corações e as mentes do proletariado, porânea”. A autora afirma ainda que O direito à
em nome da nova figura assumida por Deus, preguiça é uma descrição antecipada das realida-
o Progresso. Esta escolha é duplamente con- des vividas na contemporaneidade, pois faz uma
sistente. Em primeiro lugar, é consistente com
incisiva crítica à lógica de mercado, da indústria,
as obras de Lafargue nesse período, quando
se ocupa com a origem das religiões, da cren- ciência e técnica, afirmando que sua ética é an-
ça num deus pessoal transcendente, na alma e ti-humana e que, portanto, sua moral precisa ser
sua imortalidade, na vida futura de salvação ou negada e substituída por outra na qual o ser hu-
danação. Por que a burguesia crê em Deus e na
mano esteja efetivamente no controle.
imortalidade da alma?, indaga ele em vários es-
critos. Por que dessa crença ela chega às ideias Segundo Chaui (1999, p. 33), as obras de
de justiça, caridade e bem? Porque, responde maior influência para Lafargue foram: Manuscri-
ele, a burguesia tolerou e patrocinou o desen- tos Econômicos de 1844 e o primeiro volume de O
volvimento das ciências da natureza (pois isso
Capital, ambos de seu sogro Karl Marx. O pressu-
era necessário para o capital), mas não tolera
e sim reprime toda tentativa de conhecimen- posto principal de O direito à preguiça, segundo a
to científico da realidade social (pois sabe que autora, é o “significado do trabalho no modo de
tal conhecimento a desmascara e enfraquece) produção capitalista, isto é, a divisão social do tra-
(CHAUI, 1999, p. 24). balho e a luta de classes”.
Neste sentido, De Masi (2001, p. 29) afir-
A ideia de Progresso como um deus é desenvolvida ma que Lafargue não estabelece uma apologia à
em A religião do Capital, também de autoria de La- preguiça que vai contra o trabalho, defendendo
fargue, sempre de forma irreverente e contundente. “o direito ao ócio como única forma de equi-
A obra deixa evidente uma busca de rompimento líbrio existencial [...]”. A forma utilizada pelo
com a realidade calcada na exploração da e na acei- autor é a contraposição a “[...] outros direitos,
tação desta dominação por parte dos trabalhadores, então defendidos para os operários: o direito
que buscam cada vez mais trabalhar e servir à reali- ao trabalho, reivindicado pelos revolucionários
dade criada pelo capital. de 1848 [...]”. Este é um dos pontos de severas

30
EDUCAÇÃO FÍSICA

críticas à obra de Domenico De Masi: a utiliza- Platão e Aristóteles, esses pensadores gigantes
ção e/ou tradução indevida de termos que ori- [...], queriam que os cidadãos de suas Repúbli-
ginalmente expressavam uma clara intenciona- cas ideais vivessem na maior ociosidade, pois,
acrescentava Xenofonte, ‘o trabalho tira todo
lidade do autor. Neste sentido, ao referir-se ao o tempo e com ele não há nenhum tempo livre
“Direito ao ócio”, entendo que deva permanecer para a República e para os amigos’. Segundo
a terminologia original do autor, “Direito à pre- Plutarco, o grande título de Licurgo, ‘o mais
sábio dos homens, para admiração da poste-
guiça”, pela sua clara intencionalidade.
ridade, era ter concedido a ociosidade aos ci-
dadãos da República, proibindo-os de exercer
qualquer trabalho’.

Obviamente, a ociosidade destes cidadãos da Repú-


blica era sustentada pelo trabalho escravo de uma
outra classe. Por isso, a historicidade é fator sempre
presente nos textos de Lafargue, que se preocupa em
salientar aquilo que considera como determinante
no desenvolvimento da sociedade: a economia ca-
pitalista. Esta economia, ao imprimir o ritmo frené-
tico da produção industrial, reduzia os operários a
praticamente nada. De Masi (2001, p. 30) apresenta
A crítica a este mundo dominado por injustiças so- um quadro com basicamente três tipos de indivídu-
ciais é descrita por Lafargue, por meio de um humor os que compunham a sociedade na qual Lafargue
contundente. Ao descrever o capitalismo como uma elaborava seu texto:
nova forma de religião, apresenta operários embru-
tecidos pelos dogmas do trabalho, os quais produ- [...] de um lado a classe dos operários, cada vez
mais imprensados pelos ritmos da produção
zem sua própria destruição. Reivindica uma nova
industrial, dilacerados na própria carne e com
redistribuição do tempo para que se possa desfrutar os nervos arrebentados, obrigados ao ‘papel de
de outras virtudes que a vida oferece, pois, devido máquina fornecedora de trabalho sem trégua
a uma dinâmica de trabalho exploradora e desme- nem remissão’, intelectualmente degradados e
dida, os trabalhadores são privados desse usufruto. fisicamente deformados pelo esforço e absti-
nência a eles impostos. De outro lado estava a
A inspiração para esta recuperação das virtudes
classe dos capitalistas ‘condenados ao ócio e ao
da preguiça é encontrada por Lafargue, segundo prazer forçado, à improdutividade e ao super-
Matos (2003, p. 12), “nas tradições grega e romana - consumo’. No meio havia a estupidez astuta dos
a skolé e o ótium”. mexeriqueiros encarregados do desperdício
vistoso dos ricos.

31
RECREAÇÃO E LAZER

Este quadro delineia parte do quadro que levava A obra O Direito à Preguiça é, portanto, uma ten-
Lafargue a utilizar um tom de indignação em seu tativa de recuperar uma esfera da dinâmica hu-
discurso, pois não aceitava que a preguiça dos ricos mana que havia sido perdida pelos trabalhadores
fosse garantida pelo trabalho desmedido dos po- contemporâneos a Paul Lafargue. A busca por mais
bres, num regime de trabalho, em média, de quinze dignidade no trabalho havia posto de lado uma
horas por dia, de forma insalubre. Chaui (1999, p. outra esfera da vida humana que, para o autor, era
16) afirma que O Direito à Preguiça é um retrato da tão importante quanto o próprio trabalho, sob uma
organização social burguesa, que almejava atingir a perspectiva diferente da que os trabalhadores vi-
consciência mais profunda do proletariado enquan- nham experimentando.
to classe social. Portanto, “é a crítica da ideologia do Neste sentido, esta obra é de grande relevância
trabalho, isto é, a exposição das causas e da forma para a compreensão do lazer como um direito so-
do trabalho na economia, ou o trabalho assalariado”. cial, inclusive garantido pelo Artigo 6º da Constitui-
ção brasileira de 1988. Toda tentativa de usurpar os
REFLITA direitos dos trabalhadores a uma melhor qualidade
de vida, com dignidade e justiça ganha resistência na
Quando você ouve a palavra preguiça, ela lhe compreensão histórica de luta pelo direito à pregui-
soa mais positivamente ou negativamente? ça, ou direito ao ócio, ou de forma mais ampla, como
Não é interessante que Paul Lafargue tenha considero neste texto, direito ao lazer.
optado pelo uso de um termo tão controverso
para defender o lazer para classe proletária?

32
considerações finais

C
aro(a) aluno(a), procurei, nas primeiras reflexões deste estudo, abor-
dar alguns conceitos que considero necessários para a compreensão do
lazer e da recreação, situando-os historicamente. Entendo que existam
outros aspectos relativos ao lazer que não foram discutidos, no entanto,
justifica-se pelo próprio objetivo do estudo que exige o entendimento do lazer
sob uma ótica específica.
O conceito operacional de lazer adotado em nossas discussões ajuda-nos a
situar os debates em torno do tema. Há outros conceitos de lazer, e a opção por
um deles, obviamente, demonstra uma certa visão de mundo e um projeto de
sociedade da qual o lazer faz parte e tem grande relevância.
A existência de uma classe ociosa e os embates em torno das jornadas de tra-
balho sempre estarão presentes em sociedades que têm como base a exploração
do trabalho alheio. Neste sentido, a atuação dos diferentes profissionais no lazer
requer um entendimento do seu papel ou como legitimador, distrator, crítico, ou
transformador de uma determinada realidade da qual o lazer faz parte, mas que é
entendido, apenas, como uma parte da cultura mais ampla da sociedade.
As lutas históricas para a melhoria da qualidade de vida do trabalhador, da
qual O Direito à Preguiça faz parte, devem sempre ser compreendidas à luz da
forma como a sociedade está estruturada. Certamente haverá grupos que vão
desejar manter seu status quo, porque isto lhes convém. Como educadores, mais
especificamente como professores, devemos entender nosso papel neste processo
de conscientização, que, apesar de estar nas mais diferentes áreas da vida, estão
galgadas na mesma infraestrutura concebida historicamente.
Portanto, nestas reflexões iniciais, deve ficar claro o potencial transforma-
dor que o lazer possui. Para muitos, ele pode ser considerado uma área de me-
nor relevância. Contudo, não é isso o que percebemos quando nos aprofunda-
mos na teoria do lazer. O mesmo sangue que corre no mundo do trabalho é o
que corre no lazer e, neste sentido, a mesma importância que se dá ao trabalho
deve ser dada ao lazer.

33
atividades de estudo

1. Em vez de definir o lazer, Marcellino (2001) apresenta um conceito ope-


racional de lazer e não especificamente de uma definição. Apresente os
quatro elementos fundamentais deste conceito operacional de lazer.

2. No contexto industrial há uma redução significativa da possibilidade de


divertimento durante o tempo de trabalho. O lúdico no ambiente de traba-
lho dá lugar à pressão da produção e ao paulatino processo de alienação e
desumanização. Não mais o instrumento serve ao ser humano, mas o ser
humano serve à máquina. Assim, de que forma Camargo (1986) descre-
ve a transição do trabalho rural para o trabalho industrial?

3. O filósofo Thorstein Veblen publicou em 1899 uma análise econômica da


sociedade, sob uma perspectiva sociológica com vistas a demonstrar que
a “classe ociosa” nasce pela emulação pecuniária. Ao longo da história, o
ser humano procurou demonstrar o seu poder por meio de alguns meios,
tais como a força física (proeza), a pecúnia (dinheiro), o ócio e consumo
conspícuo (ostentatório), e o ócio e consumo vicário. Defina emulação
pecuniária, ócio e consumo conspícuo, e ócio e consumo vicário.

4. Paul Lafargue escreveu em 1880 uma série de artigos que deu origem à
sua obra O direito à Preguiça, que ganhou status de um manifesto filosó-
fico por seu caráter interpelativo e mobilizador. Qual a razão para Paul
Lafargue escolher o termo “preguiça” para compor o título de sua
principal obra?

5. Por que o trabalho alienado é caracterizado como desumanizante?

34
LEITURA
COMPLEMENTAR

O que é o trabalho alienado?


Para entendê-lo, é preciso, primeiro, lembrar que, para Marx e Lafargue, o trabalho, em
si mesmo, é uma das dimensões da vida humana que revela nossa humanidade, pois é
por ele que dominamos as forças da natureza e é por ele que satisfazemos nossas ne-
cessidades vitais básicas e é nele que exteriorizamos nossa capacidade inventiva e cria-
dora – o trabalho exterioriza numa obra a interioridade do criador. Ou, numa lingua-
gem vinda da filosofia de Hegel, o trabalho objetiva o subjetivo, o sujeito se reconhece
como produtor do objeto. Para que o trabalho se torne alienado, isto é, para que oculte,
em vez de revelar, a essência dos seres humanos e para que o trabalhador não se re-
conheça como produtor das obras, é preciso que a divisão social do trabalho, imposta
historicamente pelo capitalismo, desconsidere as aptidões e capacidades dos indivídu-
os, suas necessidades fundamentais e suas aspirações criadoras e os force a trabalhar
para os outros como se estivessem trabalhando para a sociedade e para si mesmos.
Em outras palavras, sob os efeitos da divisão social do trabalho e da luta de classes, o
trabalhador individual pertence a uma classe social - a classe dos trabalhadores -, que,
para sobreviver se vê obrigada a trabalhar para uma outra classe social - a burguesia -,
vendendo sua força de trabalho no mercado. Ao fazê-lo, o trabalhador aliena para um
outro (o burguês) sua força de trabalho que, ao ser vendida e comprada, se torna uma
mercadoria destinada a produzir mercadorias. Reduzido à condição de mercadoria que
produz mercadorias, o trabalho não realiza nenhuma capacidade humana do próprio
trabalhador, mas cumpre as exigências impostas pelo mercado capitalista.
[...] Em suma, não as percebe como objetivação de sua subjetividade humana, mas
como algo que parece não depender de trabalho algum para existir - o produto apa-
rece como outro que o produtor. Além disso, as condições impostas pelo mercado de
trabalho são tais que os trabalhadores vendem sua força de trabalho por um preço
muito inferior ao trabalho que realizam e por isso se empobrecem à medida que vão
produzindo riqueza .

Fonte: Chaui (1999, p. 33-35).

35
RECREAÇÃO E LAZER

O direito à preguiça
Paul Lagargue
Editora: Hucitec/Unesp
Sinopse: o Direito à Preguiça (em francês, Le Droit à la Paresse) foi
um panfleto revolucionário que trata das questões relativas ao tra-
balho na sociedade capitalista urbano-industrial e da luta por melhores condições de tra-
balho, principalmente no que tange às jornadas excessivas. Na época em que foi escrito, as
jornadas de trabalho tinham em média 12 horas e poderiam exceder em muito este tempo.
O dogma de que o trabalho dignifica o homem é criticado de forma severa por Lafargue. A
santificação do trabalho e a demonização da preguiça (ócio) é algo destrutivo ao ser humano
na opinião do autor. Com este panfleto, muitas conquistas trabalhistas são alcançadas ao
redor do mundo.
Comentário: para as discussões em torno do lazer esta é uma obra clássica e fundamental.
Nelas estão expostas as bases que justificam a luta pelo lazer como um direito social. Qual-
quer ação política em torno do lazer requer o conhecimento desta obra como elementos
revelador de um período histórico marcado por profunda exploração e desumanização do
trabalho e, consequentemente, do lazer.

Por meio deste documentário é possível compreender como e porque a Revolução Industrial
foi na deflagrada na Inglaterra. A compreensão deste momento histórico é significativa para
o entendimento de como o trabalho foi se estruturando no modo de produção capitalista e,
consequente, gerando o que conhecemos hoje como lazer.
Documentário BBC - Revolução Industrial na Inglaterra
Para saber mais, acesse o site disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RZL-
SYKmWrjw>.

36
EDUCAÇÃO FÍSICA

Tempos Modernos
Ano: 1936
Sinopse: Chaplin trabalha em uma fábrica e em virtude de um tipo
de trabalho repetitivo, extenuante e praticamente escravo sucum-
be a um colapso nervoso. Em virtude deste quadro, é internado em
um hospício. Ao retornar à “vida normal” encontra a fábrica fechada. Tem contato, então,
com uma jovem que realiza furtos para sobreviver. Chaplin se envolve numa confusão em
uma manifestação e é tomado como o líder comunista por ter levantado uma bandeira ver-
melha, dando a entender que ele estava liderando uma greve e acaba sendo preso. Após ser
solto, consegue um emprego numa outra fábrica, mas logo os operários entram em greve
novamente e ele se envolve novamente em confusão. É preso novamente, por acertar, sem
querer, uma pedra na cabeça de um policial. A jovem que conhecera nas ruas consegue tra-
balho como dançarina num salão de música e consegue um emprego de garçom para Cha-
plin. Mas novamente as confusões voltam a acontecer. Então os dois seguem, numa estrada,
rumo a mais aventuras emocionantes e divertidas para eles.
Comentário: este é filme é um marco ao retratar de forma cômica a alienação no mundo do
trabalho. Para as discussões no campo do lazer e recreação é um ótimo retrato de como o
trabalho na sociedade urbano-industrial se estruturou e suas implicações para o tempo livre.

37
referências

CAMARGO, L. O. L. O que é lazer. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.


CHAUI, M. S. Cultura de democracia: o discurso competente e outras falas. 7.
ed. São Paulo: Cortez, 1997.
______. Introdução. In: LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec/
Unesp, 1999.
DE MASI, D. (org.). A economia do ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
DUMAZEDIER, J. Questionamento teórico do lazer: Porto Alegre: Centro de
estudos do Lazer e Recreação/PUC-RGS, 1975.
FALEIROS, M.I.L. Repensando o lazer. In: Perspectivas, n. 3, p. 51-65, 1980.
GALBRAITH, J. K. A era das incertezas. São Paulo: Pioneira, 1982.
LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec; Unesp, 1999.
MACEDO, C. C. Algumas observações sobre a cultura do povo. In: VALLE, E.;
QUEIROZ, J. (Org.) A cultura do povo. 2. ed. São Paulo: EDUC. 1982.
MARCELLINO, N. C. Estudos do lazer: uma introdução. 2. ed. Campinas: Au-
tores Associados, 2000.
______. (org.) O lazer na empresa: alguns dos múltiplos olhares possíveis. In:
______. Lazer & Empresa: múltiplos olhares. Campinas: Papirus, 2001. p. 3-22.
______. Lazer e educação. 9. ed. Campinas: Papirus, 2002.
______. Lazer e humanização. 7. ed. Campinas: Papirus, 2003.
MATOS, O. A dignidade da preguiça, a dignidade humana (prefácio). In: LA-
FARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Claridade, 2003.
VEBLEN, T. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições.
São Paulo: Pioneira, 1965.

38
gabarito

1.
• Cultura vivenciada (praticada, fruída ou conhecida) no tempo disponível das
obrigações profissionais, escolares, familiares, sociais, combinando os aspectos
tempo e atitude.
• O lazer gerado historicamente e dele podendo emergir, de modo dialético, valo-
res questionadores da sociedade de um modo geral, e sobre ele também sendo
exercidas influências da estrutura social vigente.
• Tempo privilegiado para vivências de valores que contribuam para mudanças
de ordem moral e cultural, necessárias para solapar a estrutura social vigente.
• Portador de um duplo aspecto educativo – veículo e objeto de educação, consi-
derando-se, assim, não apenas suas possibilidades de descanso e divertimento,
mas de desenvolvimento pessoal e social.
2. Ele afirma que no ambiente rural era possível, apesar de toda dureza inerente ao
trabalho, conciliar elementos lúdicos, como as danças tradicionais, com os gestos
do trabalho na terra, na madeira, com os companheiros. Este eram incorporados e
estilizados, demonstrando a ligação efetiva e lúdica. Na linha de montagem da Era
Industrial isso não seria mais possível, pois a menor distração de um elemento pre-
judica a produtividade dos demais, além de ser um perigo para o indivíduo e seus
companheiros de trabalho. A organização do espaço industrial dificulta a diversão
e entretenimento, além do que, no início do processo de industrialização, com as
longas jornadas de trabalho, só restava tempo para o descanso, e não para diverti-
mento e desenvolvimento pessoal e social.
3. Emulação pecuniária é a competição ou a demonstração de força por meio do di-
nheiro. O ócio e consumo conspícuo são demonstrações de poder por meio da frui-
ção do tempo disponível e das possibilidades de aquisição neste tempo por meio do
poder financeiro. O ócio e consumo vicário são demonstrações de possibilidades do
ócio e do consumo baseados em uma capacidade, ou poder alheio, ou seja, a vivên-
cia e consumo no lazer estaria relacionada à capacidade que determinado indivíduo
ou grupo social possui de manter uma massa de trabalhadores ao seu dispor para
realizar um trabalho que lhe sustente e, consequentemente, este seja favorável ao
ócio e ao consumo.
4. A escolha do termo preguiça reporta-se às questões religiosas. Lafargue constrói
sua retórica em forma de incisiva paródia aos sermões religiosos, seguindo suas
regras. Preguiça é um dos sete pecados capitais e o que ele objetivou foi um ataque
ao “credo da burguesia”, ao que denomina “religião do trabalho”, cujo o deus seria o
Progresso. Ao descrever o capitalismo como uma nova forma de religião, apresenta
operários embrutecidos pelos dogmas do trabalho, os quais produzem sua própria
destruição. Reivindica uma nova redistribuição do tempo para que se possa desfru-
tar de outras virtudes que a vida oferece e que, devido a uma dinâmica de trabalho
exploradora e desmedida, priva os trabalhadores deste usufruto. A preguiça seria o
que hoje denominamos de lazer, com suas possibilidades de descanso, divertimento
e desenvolvimento.
5. No trabalho não alienado, o sujeito se reconhece como produtor do objeto. No traba-
lho alienado, a essência do ser humano é ocultada, e o trabalhador não se reconhe-
ce como produtor das obras. A divisão social do trabalho desconsidera as aptidões
e capacidades dos indivíduos, suas necessidades fundamentais e suas aspirações
criadoras. O trabalhador individual não é mais subjetivo, humano, pertencente a ele
mesmo, mas a uma outra classe, a quem vende sua força de trabalho no mercado.
Quando o trabalhador aliena para um outro (o burguês) sua força de trabalho, se
torna uma mercadoria destinada a produzir mercadorias, portanto desumanizado,
coisificado.

39
LAZER, RECREAÇÃO,
TRABALHO E OBRIGAÇÕES

Professor Me. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
• Lazer, trabalho e obrigações
• Lazer, animação sociocultural e recreação

Objetivos de Aprendizagem
• Esclarecer as relações entre lazer, trabalho e as demais obrigações
humanas na sociedade atual.
• Compreender o surgimento do animador sociocultural no processo
de desenvolvimento histórico do lazer e do trabalho.
unidade

II
INTRODUÇÃO

Prezado(a) aluno(a),
Em nossa segunda unidade, buscaremos compreender um pouco mais sobre
a relação do lazer como mundo do trabalho, bem como com as demais obriga-
ções sociais. Além disso, é necessária a compreensão de como se dá o surgimento
do animador sociocultural neste processo de desenvolvimento do lazer até ca-
racterizar-se na sociedade contemporânea. O tema do profissional do lazer, ou
animador sociocultural, como adotaremos em nossas discussões, será abordado
especificamente em nossa última unidade, mas se faz necessária, neste momento
a abordagem para fins de compreensão do desenvolvimento histórico do lazer.
Não é possível lançar as bases para uma real compreensão do lazer sem que
estabeleçamos uma relação com o mundo do trabalho. O mesmo sangue social
que corre no trabalho corre no lazer. Qualquer alteração em um, certamente afe-
tará o outro. O que se deseja é que o profissional que atue em qualquer campo
do lazer tenha uma base consistente para compreender e perceber o potencial
transformador que possui o lazer. Tido por muitos como “coisa não séria”, o lazer
tem, em si, brechas que podem questionar modelos sociais desumanizadores e
fomentar ações de mudança.
A compreensão do lazer deve ser feita também na relação com demais obri-
gações sociais. Assim como o trabalho tem relação direta com o lazer, há tam-
bém uma relação direta entre as obrigações religiosas, sociais, político-par-
tidárias e familiares na determinação do que acontece no tempo disponível,
pois tais obrigações também são geradoras de valores.
Esperamos que, com as reflexões propostas nesta unidade, você seja ins-
tigado a, ao menos, questionar a realidade na qual está inserido(a), anali-
sando e verificando se cada um dos argumentos apresentados são coeren-
tes diante das suas vivências pessoais. Caso você esteja vislumbrando uma
atuação no campo do lazer, estas reflexões certamente propiciarão uma
formação diferenciada como animador sociocultural.
Bons estudos!
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer, Trabalho e
Obrigações
Tratar do lazer é abordar necessariamente o tempo As lutas para reivindicação de novas jornadas de
de trabalho e as obrigações religiosas, sociais, polí- trabalho, bem como para a humanização deste,
tico-partidárias e familiares, conforme Marcellino foram marcadas pelo sofrimento em todo o mun-
(2000, p. 7-9). Lembre-se de que as obrigações estu- do. Camargo (1986) descreve o processo históri-
dantis são uma categoria de trabalho. Com relação co de reivindicação aos direitos trabalhistas afir-
à questão das obrigações sociais, vale destacar que: mando que as primeiras lutas foram sangrentas,
pois havia uma constante repressão policial às
[...] para se caracterizar uma determinada práti- manifestações. Na Europa, na metade do século
ca social como obrigação é necessário analisá-las
XIX, foram conquistados os primeiros resultados
a partir dos aspectos tempo e atitude. As obriga-
ções religiosas, por exemplo, podem ser caracte- das reivindicações trabalhistas. Com a chegada
rizadas desta forma ao estarem presas a um tem- de trabalhadores europeus já treinados no Brasil,
po pré-determinado e uma atitude que está de formando uma nova cultura do trabalho em solo
acordo com um anseio intrínseco do indivíduo. brasileiro, herdou-se, também, a consciência de
A religião, neste sentido, pode ser caracterizada
classe “com consciência sobre os rumos da luta
como lazer desde que não seja obrigatória e es-
teja respondendo a ao menos um dos conteúdos pela redução da jornada de trabalho” (Camargo
do lazer (MARCELLINO, 2000, p. 17-19). 1986, p. 146).

44
EDUCAÇÃO FÍSICA

Em 1891, ocorreu o Congresso Internacional do


Trabalhadores, em Bruxelas, cuja a síntese foi a luta
em direção à jornada diária de trabalho de oito ho-
ras. Este congresso impulsionou os congressos ope-
rários em todo o mundo. No Brasil, o primeiro con-
gresso foi em 1892, constando a luta pela jornada de
trabalho de oito horas. Faltava ainda um amadureci-
mento para tais discussões e ações efetivas.
Apenas em 1907, com um número de 3.258 em-
presas e 150.841 funcionários, ocorre a grande greve
brasileira, em primeiro de maio, nas principais ca-
pitais do país e nas cidades de Sorocaba, Santos e
Campinas. A partir deste momento, paulatinamen-
te, as conquistas pela redução da jornada de traba-
lho vão sendo conquistadas (CAMARGO, 1986).

Para se ter uma ideia da fragilidade que permeia as


discussões sobre a redução da jornada de trabalho,
é necessário perceber, por exemplo, que no Brasil a
industrialização ocorreu aceleradamente no fim do
século XIX. Em 1901 houve a primeira grande gre-
ve brasileira, reivindicando uma jornada de traba-
lho de onze horas, em São Paulo. Em 1902, no Rio
de Janeiro, e em 1905, em Sorocaba, tiveram greves
que reivindicavam redução das jornadas vigentes
de quinze a dezesseis horas. Em 1903, no Rio de Ja-
neiro, consegue-se a redução da jornada diária para Várias manifestações repressivas ocorrem, subsi-
nove horas e meia. diadas pelo capital. A concepção dos detentores do
capital, os grandes industriais, era que o tempo de
Embora as lutas para redução das jornadas de lazer poderia desvirtuar mais a sociedade. Em 1917,
trabalho datem do início do século, é a partir de
1930 que se passou a cuidar entre nós, de ma-
por exemplo, o parecer ao primeiro projeto de lei
neira sistemática, da elaboração de leis sociais, que regulamentava a jornada de trabalho de oito ho-
protetoras do trabalho, incluindo o aumento do ras, foi tachado de “anárquico, subversivo e imoral”
tempo liberado diário, nos fins de semana e nos (CAMARGO, 1986, p. 147). Em 1917 ocorre a se-
fins de ano (férias). Essas leis foram uma con-
gunda grande greve nacional, reivindicando o final
quista dos movimentos de trabalhadores, ape-
sar da propaganda estadonovista querer camu- de semana de lazer, com os sábados à tarde e domin-
flar a situação (MARCELLINO, 2003, p. 35). gos livres para tal.

45
RECREAÇÃO E LAZER

Portanto, os argumentos apresentados reforçam considerado como vazio de significados por poder
a ideia de que o lazer possui íntima relação com o ter como característica a possibilidade de ócio. Ou-
trabalho e que o processo de redução da jornada tras vezes não se trata o lazer com a devida serieda-
deste favoreceu o desenvolvimento do lazer. Entre- de, pois a possibilidade de divertimento é considera-
tanto, é necessário destacar que não é apenas na re- da como coisa para matar o tempo.
lação com o trabalho que o lazer se desenvolve. Na Com relação à existência e caracterização do lazer
medida que o tempo dedicado às obrigações coti- na sociedade urbano-industrial, é necessário destacar
dianas diminuem, tende a crescer o seu tempo e as que para que ele exista é condição sine qua non que
possibilidades para seu desenvolvimento. as obrigações diárias cessem, ou seja, o tempo para
A recíproca é inversamente verdadeira. Um a concretização e caracterização do lazer é o tempo
aumento no tempo de trabalho e/ou das obri- fora das obrigações do trabalho diário. Há um caráter
gações cotidianas, por necessidade, ambição ou liberatório no lazer, resultado de livre escolha.
qualquer outra razão, tende a privar o ser humano
de uma possibilidade de vivência de valores ine-
rentes ao próprio lazer.
Um problema enfrentado principalmente nas
sociedades menos desenvolvidas e com problemas
sociais emergenciais, como é o caso do Brasil, é
o de considerar determinadas atividades cotidia-
nas como de primeira necessidade e outras como
facultativas, ou desnecessárias. Marcellino (2003)
afirma que, em muitos momentos, as atividades
de lazer são tratadas como sobremesa ou modis-
mo e que, para superar esta concepção, o assun-
to deve ser tratado com seriedade, no sentido de
compreender seu significado e importância para
a vida humana. Na esteira destas considerações,
Marcellino (2003, p. 17) propõe considerá-lo “não
como simples fator de amenização ou alegria para
a vida, mas como questão mesmo de sobrevivên-
cia humana, ou melhor, de sobrevivência do hu-
mano no homem”.
Outro aspecto relevante para considerarmos
acerca do lazer, além do seu significado, são os va-
lores atribuídos a ele. Os mais frequentes são diver-
timento e descanso, gerando, desta forma, atitudes
negativas com relação ao lazer. Por vezes o lazer é

46
EDUCAÇÃO FÍSICA

Há um relativo caráter desinteressado que caracte- [...] seu tempo fora do trabalho vê-se amea-
riza o lazer, sem fins econômicos, por exemplo. O çado por uma fadiga, amiúde mais psíquica
lazer tem como funções o descanso (físico e mental), do que física, que pesa, até destruí-la, sobre
a capacidade que tem de divertir-se e mesmo
o divertimento (quebra da rotina cotidiana obriga-
de recuperar-se. Sejam agressivas ou depres-
tória) e o desenvolvimento (pessoal e social). “Nas sivas, as reações afastam o trabalhador das
atividades de lazer busca-se, assim, um estado de promessas de uma vida de lazer ao mesmo
satisfação pessoal que engloba toda a personalidade tempo divertida e enriquecedora, orientada
em um nível de cultura mais elevado. Seu
do indivíduo” (MARCELLINO, 2003, p. 26).
papel de consumidor padronizado dos pro-
Com relação ao tempo de trabalho e ao tempo dutos do sistema, de que constitui uma en-
de não trabalho (tempo liberado), precisamos enfa- grenagem, aumenta seu bem-estar material,
tizar que esta dicotomia deve ser analisada especi- porém não faz senão acentuar nele o dese-
quilíbrio, as tensões entre a vida de trabalho e
ficamente no mundo urbano-industrial. Um outro
a existência fora do trabalho (FRIEDMANN,
problema relacionado à aquisição de mais tempo 1964, p. 166).
disponível para o ser humano é a questão de não es-
tarem preparados para usufruírem deste tempo, por
estarem condicionados às dinâmicas alienantes do
mundo do trabalho, passam a desconhecer a si mes-
mos, seus gostos, anseios e virtudes. Ou ainda, por
possuírem uma renda insuficiente para seu sustento,
passam a realizar trabalhos informais para prover a
subsistência de si e da família.
Neste sentido, Friedmann (1964) afirma que
o processo de industrialização exerce no traba-
lhador uma ação múltipla geradora de variados
fenômenos sociais. Em muitos casos, segundo o
autor, o trabalho rotineiro e enfadonho gera uma
compensação oposta fora do trabalho e por ve-
zes aumenta o sentimento de apatia: contudo o
tempo fora do trabalho passa a relacionar-se a
uma possibilidade ou de compensação dos males
do trabalho ou de vivência de valores de trans-
formação social. No primeiro caso destacamos a
seguinte afirmação:

47
RECREAÇÃO E LAZER

Portanto, além do problema de reivindicação de Portanto, muito mais do que reivindicar mais
tempo fora do trabalho, há o sério problema da qua- tempo para o usufruto do lazer e suas possibilida-
lidade deste, dedicado às atividades nele vivenciadas. des, se fazem necessárias ações educativas que, con-
Mais uma vez, conforme afirma Friedmann (1964), forme o conceito operacional de lazer adotado para
as características de um trabalho em migalhas são este estudo, eduquem pelo e para o lazer. Educar
impressas nas atividades de lazer. A alienação de um pelo lazer seria o modo como as atividades de lazer
é caracterizada no outro. Bosi (1978, p. 35) expres- poderiam desenvolver pessoal e socialmente seus
sa essa questão de forma pertinente ao afirmar que praticantes, sem necessariamente instrumentalizá-
“[...] se no trabalho e no lazer corre o mesmo sangue -lo. Já educar para o lazer seria a implementação de
social, é de esperar que a alienação de um gere a eva- ações educativas que conscientizassem a população
são e processos compensatórios em outro”. de que o lazer não precisa estar atrelado à indústria
cultural para que dê prazer e que há sim a necessida-
de de transcendência de um grau conformista para
um grau crítico e criativo (DUMAZEDIER, 1980b).

Além da preocupação, que há décadas é fomentada,


acerca de políticas de redistribuição do tempo, das
quais destaca-se a militância de Paul Lafargue e Ber- Esta superação pode ocorrer em meio a vivência e
trand Russell, o problema da qualidade de tempo no atitude favorável na forma de se conhecer, viven-
lazer é outra séria questão a ser refletida, pois con- ciar e refletir sobre os conteúdos culturais presentes
forme adverte Marcellino (2003, p. 36), nas atividades de lazer que, conforme Dumazedier
(1980a, p. 110), podem ser classificadas de acordo
[...] está em jogo uma série de forças que vi- com a predominância maior dentre cinco interes-
sam o controle do tempo dos dominados e seu
ses. O interesse pode ser compreendido como “o
aproveitamento na produção. Afinal, ‘tempo é
dinheiro’, e no sistema de produção vigente, ‘di- conhecimento que está enraizado na sensibilidade,
nheiro é poder’. na cultura vivida”.

48
EDUCAÇÃO FÍSICA

Para Dumazedier, há cinco categorias distintas SAIBA MAIS


quanto ao conteúdo das atividades: interesses físicos,
os práticos ou manuais, os artísticos, os intelectuais
A Ginástica para todos, anteriormente
e os sociais. Camargo (1986) apresenta a categoria cunhada como GG (Ginástica Geral), é uma
do conteúdo turístico. Vejamos o que engloba cada modalidade bastante abrangente, valen-
do-se das várias propostas de Ginástica
um desses conteúdos culturais do lazer.
(Artística, Rítmica, Aeróbica, Trampolim,
Os conteúdos Físico-esportivos estão relaciona- Acrobática, dentre outras), além de variadas
dos às manifestações do lazer associadas ao movimen- possibilidades de manifestações corporais.
Estas podem ser diversos tipos de danças
to ou ao exercício físico. Eles podem assumir íntima
e expressões folclóricas, apresentados por
relação com a arte, como nas danças ou no jogo de ca- meio de coreografias musicadas em gru-
poeira. Todavia lembre-se: o que determinará a classi- pos, com propostas livres e criativas, sempre
fundamentadas nos elementos gímnicos,
ficação de um determinado conteúdo cultural do lazer
oportunizando a expressão dos aspectos
é a prevalência de suas características sobre outras que multiculturais de quem as desenvolve e,
sejam de outros conteúdos. Como nos casos citados, principalmente, sem qualquer tipo de li-
mitação para a sua prática, seja quanto às
por vezes, pode não ser tão simples realizar esta classi-
possibilidades de execução, sexo ou idade.
ficação, pois, o aspecto estético, por exemplo, pode ser
Fonte: adaptado de Centro esportivo virtual ([2017],
muito evidente, o que o classificaria dentro dos conte-
on-line)1.
údos artísticos do lazer. É o caso também de algumas
ginásticas, como por exemplo, a Ginástica para Todos.

49
RECREAÇÃO E LAZER

Outra característica dos conteúdos físico-esportivos


é o favorecimento de novas relações com a natureza
e superação dos limites do próprio corpo. Neste sen-
tido há uma proximidade grande com os conteúdos
turísticos do lazer ou com os sociais, por exemplo.
Os esportes de aventura, as caminhadas, os clubes
de corrida, desde que permaneçam fora das obriga-
ções sociais, carregam essas características, e neles
há, portanto, as possibilidades de participação de in-
tervenção do professor de Educação Física.

O terceiro conteúdo cultural do lazer são os ar-


tísticos, nos quais há a prevalência do imaginário e
do estético, uma busca pela beleza e encantamento,
no qual está presente, por exemplo, um alto grau de
contemplação. Os sentimentos e as emoções, por-
tanto, têm grande preponderância, neste conteúdo,
atrelado às manifestações artísticas; como exemplos,
destacamos as festas tradicionais, espetáculos, litera-
tura de ficção, música e artes plásticas.

O segundo conteúdo cultural do lazer são os prá-


ticos ou manuais. Sua principal característica é a
prevalência da capacidade de manipulação, de
transformação de objetos ou materiais, ou para li-
dar com a natureza ou como resistência ao consu-
mismo e a massificação da indústria. Reproduz si-
tuações das sociedades tradicionais, por exemplo, o
artesanato, bricolagem, cultivo de plantas e criação
de animais. Estas ações podem atribuir ao que se-
ria o lazer uma característica de “semi-lazer”, pois é
possível que tais manifestações, por mais prazero-
sas que sejam, ganhem, ora ou outra, conotação de
trabalho ou de obrigações.

50
EDUCAÇÃO FÍSICA

Os conteúdos intelectuais do lazer são aqueles em rizariam os interesses sociais, mesmo não haven-
que há um anseio pelo contato com o real, com in- do contato físico. Acredito que sim. Elas carac-
formações objetivas e racionais. Podem estar rela- terizam os interesses sociais, pois assim como o
cionados tanto a interesses delimitados apenas na contato presencial, real, há sociabilidade espontâ-
esfera do lazer quanto ligados ao trabalho e às obri- nea e organizada.
gações. Pode parecer ambiguidade, e pode ser, mas
o que delimita são, como já discutido, os aspectos
tempo e atitude.

Os encontros familiares podem ser uma categoria


de semilazer, pois como mencionamos anterior-
Os interesses intelectuais estão intimamente ligados mente, apesar do aspecto tempo e atitude carac-
ao conhecimento vivido, experimentado. Acessar terísticos do lazer, podem estar presentes as obri-
documentários em áreas de interesses ligadas ao gações sociais. Exemplos destes interesses são os
mundo real, realizar um curso sem o caráter obri- tradicionais happy hours, encontros para cafés,
gatório, ler um livro por interesse pessoal, são exem- associações das mais diversas e em muitos casos
plos destes interesses. cultos religiosos de caráter congregacional.
Os interesses sociais são a quinta categoria de
classificação dos conteúdos culturais do lazer. Os REFLITA
interesses destes conteúdos estão relacionados à
busca por relacionamentos, contatos face a face,
Você já parou para pensar que os clubes de
ligadas ao repouso, divertimento e informação. corrida, ou o tradicional futebol dos finais de
Um questionamento que sempre nasce deste con- semana estejam mais associados a interesses
teúdo cultural do lazer é com relação às relações sociais do que aos físico-esportivos?

virtuais. O questionamento seria se elas caracte-

51
RECREAÇÃO E LAZER

O último conteúdo cultural do lazer, classificado Vale destacar que as categorias passividade e ati-
sempre a partir do aspecto tempo e atitude, são os vidade no lazer não estão associadas ao grau de
de interesses turísticos, nos quais há uma quebra da movimento relacionado a um determinado con-
rotina temporal e/ou espacial e o contato com novas teúdo cultural. A prática e consumo estão ligados
situações, paisagens e culturas. Excursões, passeios e à atitude e aos níveis de participação que podem
viagens são exemplos destes interesses. É bom lem- ser: elementar (conformista); médio (crítico); ou
brar que não me refiro apenas à execução ou vivên- superior ou inventivo (criativo). Passividade ou
cia. Neste caso, o planejamento, com todo seu grau atividade estão relacionadas, portanto, a estes três
de expectativa e excitação, e o rememorar a vivên- níveis apresentados.
cia, por meio de fotos, vídeos ou numa reunião de
amigos, tem o mesmo grau de importância quanto REFLITA
a vivência em si.
Alcançar a tão almejada qualidade de vida A criança, enquanto produtora de cultura,
requer um equilíbrio entre cada um destes inte- necessita de espaço para essa criação. Im-
resses, conforme o tempo e atitudes individuais, possibilitada torna-se consumidora passiva.

numa perspectiva dos três “D’s” do lazer: descan- (Nelson Carvalho Marcellino).
so (físico e/ou mental); divertimento (quebra da
rotina); desenvolvimento (pessoal e/ou social).
São opções prazerosas pela atividade, nas quais
a pessoa pode realizar observando, fazendo, ou Entretanto, há a necessidade de que as pessoas que
conhecendo algo, pois todas elas caracterizam a estão em atitude favorável ao lazer se conscientizem
possibilidade de fruição. de todas as possibilidades presentes neste tempo/es-
paço. A informação é o primeiro mecanismo para
que a conscientização aconteça de modo satisfató-
rio, de forma que as atividades, ou a opção pelo ócio,
envolva o indivíduo em sua complexidade. Nesse
sentido, as atividades de lazer devem conceber o ser
humano de maneira integral.

Para tanto, é necessário que os indivíduos co-


nheçam as atividades que satisfaçam os vários
interesses, sejam estimulados a participar e
recebam um mínimo de orientação que lhes
permita a opção caracterizadora do lazer. A es-
colha só será possível se houver conhecimento
das várias alternativas que o lazer oferece (Mar-
cellino, 2003, p. 43).

52
EDUCAÇÃO FÍSICA

O processo educativo pelo e para o lazer deve ser O lazer é um modelo cultural de prática social
considerado, acima de tudo, como uma atitude po- que interfere no desenvolvimento pessoal e so-
cial dos indivíduos. Essa é a chamada educa-
lítica entendida em seu sentido mais amplo e não
ção informal, numa sociedade que, não apenas
apenas como ligação político-partidária, como ati- através da escola ou da família, mas também
tude que lida com as diferentes relações de poder dos seus pontos de encontro, das informações
e as consequências advindas dessas relações. Além difusas de tevê, jornais, outdoors, cinema bate-
-papos, se converte numa sociedade educativa
disso, o lazer, enquanto espaço político, educativo e,
(CAMARGO, 1986, p. 165-166).
por que não, ideológico, pode ser considerado como
espaço de resistência ao consumismo imposto pela Além disso, em oposição a uma dinâmica de resis-
lógica do mercado dos dias atuais. tência possível no lazer, há o perigo da utilização
O cuidado destacado pelo autor com relação da agradável força do esporte e lazer, por exemplo
às práticas concretas do lazer se refere às apro- “para a atenuação de conflitos sociais e, por que não
priações as quais o lazer está submetido. Por vezes dizer, para forjar um sentimento de identidade co-
o lazer é submetido a interesses governamentais, mum” (VALE, 1988, p. 49), sentimento este que pro-
por exemplo, sendo por eles explorado, devido a duz uma barreira que impede a percepção das reais
seu alto potencial educativo. desigualdades sociais.

53
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer, Animação Sociocultural


e Recreação
A atuação dos voluntários ou profissionais envolvi- [...] aproxima-se em muito do papel exerci-
dos com o lazer deve estar permeada de uma cons- do pelos intelectuais na mudança intelectual e
moral proposta na obra do pensador Antonio
ciência do potencial e dos perigos que envolvem o Gramsci. Esse autor pode ser situado como um
lazer, aparentemente tidas como atividades inocen- dos principais responsáveis, senão o principal,
tes. Portanto, a atuação no campo do lazer é, antes pelo resgate do valor da atuação no plano cul-
tural. Suas reflexões, calcadas sobretudo nas
de mais nada, uma ação educativa, tão importante
experiências vividas – sempre foi um militante
e necessária quanto a educação formal. Além deste cultural – são, via de regra, consolidadas em di-
entendimento do animador sócio-cultural, do recre- retrizes para o estabelecimento de uma política
ador, ou qualquer outra denominação que se dê ao cultural. Os objetivos da política cultural pro-
posta por Gramsci situam-se em duas frentes
indivíduo que esteja envolvido com estímulo e orga-
interligadas: uma de derrubada da ideologia
nização de práticas de lazer, destacamos a seguinte dominante, e outra de reconstrução. Em sínte-
afirmação sobre seu papel: se, o que se busca em ambas as frentes é a re-

54
EDUCAÇÃO FÍSICA

novação democrática e humanista da cultura e


da sociedade. E para tanto o autor prega a ne-
cessidade da mudança intelectual e moral, ou,
em outras palavras, uma Revolução Cultural
(MARCELLINO, 2003, p. 75).

O lazer, enquanto campo de educação não formal, é


ainda um locus privilegiado para uma vivência cul-
tural de forma lúdica. Esta ludicidade é que tende
a livrar o indivíduo de suas máscaras, necessárias a
algumas práticas sociais cotidianas. Ainda com rela-
ção ao potencial educativo advindo do lazer, destaco
que, além das possibilidades de aprendizado, é um
campo de exercício da participação social com ca-
racterísticas lúdicas. A recreação, ou seja, as atividades de lazer, confor-
me Bruhns (1997, p. 39), tem um alto componen-
A esse processo se denomina educação não- te lúdico que está associado “à improvisação livre e
-formal ou animação cultural, ou ainda, anima-
fantasias sem controle”. Conforme Caillois (1990),
ção sociocultural. Seu objetivo é mostrar que
o exercício de atividades voluntárias, desinte- esta concepção de lúdico, associada ao termo pae-
ressadas, prazerosas e libertatórias pode ser o dia, refere-se a atividades livres, sem obrigatorieda-
momento para uma abertura a uma vida cultu- de, num tempo e espaço específicos, sem expectativa
ral intensa, diversificada e equilibrada com as ou previsão de resultados, a não ser a própria satis-
obrigações profissionais, familiares, religiosas e
fação associada à sua prática, improdutiva, mas as-
políticas (CAMARGO, 1986, p. 167).
sociadas e fundamentadas em determinadas regras.
A animação sociocultural é entendida por Marcelli- O papel educativo do animador sociocultural, nessa
no (1996, p. 61-62) como perspectiva, seria menos o de liderar práticas de la-
zer e mais o de mostrar as infinitas possibilidades de
[...] atividade desenvolvida por profissionais ou participação social e de autorealização por meio do
amadores que dominem pelo menos um setor
lazer perante a vida.
cultural e que tenham como característica adi-
cional uma consciência social que os impila a Caberia ao animador motivar os indivíduos para
querer difundir esse seu bem cultural”. a criação e o desenvolvimento de práticas dentro do
bairro, da escola e/ou da empresa, destacando as
A formação destes agentes deve ser alicerçada em possibilidades de mobilização para eventos de lazer,
competência técnica, vontade social e compromis- por exemplo, advindos da própria mobilização da
so político, na concepção que já destacamos, , sendo comunidade, mesmo com recursos materiais escas-
um elo entre o patrimônio cultural e cultura diária, sos e com a mão de obra dos próprios beneficiários,
atuando como elemento de diálogo entre ambas. conforme sugere Camargo (1986).

55
RECREAÇÃO E LAZER

Parker (1978, p. 10), ao apresentar seu entendi- sociedade contemporânea, que possam impedir esta
mento sobre o lazer, destaca o papel de organizações revolução cultural, há uma grande reivindicação com
e instituições que gerenciariam as práticas de lazer, relação à dinâmica do lazer em suas mais variadas di-
sob uma concepção moralista no sentido de ameni- mensões, principalmente no ambiente urbano. Para
zar os conflitos advindos de interesses divergentes, o que haja um real entendimento e valorização do lazer,
que me parece descaracterizar a própria possibilida- enquanto um dos elementos do processo de humani-
de de diferentes atitudes advindas do lazer. Eis seu zação, deve ocorrer uma contribuição
entendimento:
[...] através da promoção de atividades e da
[...] o lazer é o tempo livre de trabalho e de outras adoção de medidas que facilitem a participação
obrigações, e também engloba atividades que se popular, para o entendimento e valorização do
caracterizam por um sentimento de (relativa) li- lazer no senso comum.
berdade. Como sucede com outros aspectos da
Para isso, além de tempo e espaço disponíveis, a
vida e da estrutura social, o lazer é uma experi-
ação cultural dos animadores é básica. É preciso
ência dos indivíduos, um atributo do grupo ou
que esses profissionais ou amadores, engajados
de outra atividade social, e possui organizações
em grupos ou organizações, distingam os alia-
e instituições relevantes que procuram atender
dos a quem devem se associar e os obstáculos
às necessidades de lazer, reconciliar interesses
a serem transpostos na sua tarefa pedagógica.
conflitantes e implementar as políticas sociais.
Do seu engajamento, quase sempre marcado
pela incerteza dos resultados a serem obtidos,
É possível perceber que uma real revolução cultu- dependerá a efetivação do lazer como elemen-
ral que envolva, dentre outros aspectos, a questão to de mudança ou de acomodação, como fator
do lazer deve levar em conta o processo de institu- de humanização ou simples bem de consumo
(MARCELLINO, 2003, p. 80-81).
cionalização da cultura, de forma geral. A desapro-
priação progressiva das práticas institucionalizadas,
pela própria ação popular, pode ser considerada Este apelo a uma mudança, principalmente no que
uma forma de resistência. O que se deve priorizar, diz respeito ao lazer, é fruto da percepção que o
no entanto, é que estas manifestações possibilitem mundo do trabalho em si não dá conta de explicar
uma crítica ao próprio mundo do trabalho de onde a existência humana e que já não a satisfaz suficien-
este lazer, de forma dialética, emerge. temente. O conformismo e o problema da insatis-
Com relação a um processo de mudança que faci- fação no trabalho geram problemas sociais latentes;
lite a instauração de uma nova ordem no plano cultu- um exemplo na sociedade contemporânea seriam as
ral, podemos destacar que a sociedade contemporâ- torcidas de futebol, que passam a agir de forma vio-
nea se encontra em um momento histórico adequado lenta sem ao menos terem consciência das razões,
para sua efetivação, pois conforme Marcellino (2003, quando, na realidade, a causa pode estar justamente
p. 80-81), há um “[...] apelo dos novos valores que numa insatisfação social, relacionada, por exemplo,
se verifica atualmente, valores esses também gerados ao trabalho, uma espécie de catarse. Este é apenas
na prática do lazer”. Na sequência de sua argumenta- um exemplo da evasão que o “trabalho em miga-
ção, afirma que mesmo com as barreiras existentes na lhas” pode gerar à dinâmica social.

56
EDUCAÇÃO FÍSICA

REFLITA A privação desta humanização expressiva do/no


trabalho tem, portanto, impresso características ge-
Já notou como em certas partidas esportivas, radoras de patologias. Estas patologias são demons-
as pessoas, tanto praticantes quanto especta- tradas grandemente pelas reações negativas fora do
dores, têm descargas emocionais que podem espaço/tempo de emprego. Por vezes a violência ur-
estar associadas à violência? Você já associou
isso à catarse? bana é um exemplo claro destas patologias.
O homem perdeu um locus privilegiado de ma-
nifestação e, neste sentido, almeja por um reencon-
tro consigo mesmo, com o outro e com a natureza,
por meio de uma outra possibilidade que seja di-
ferente daquela vivenciada pelo trabalho assalaria-
do e alienado. O lazer torna-se, neste sentido, um
espaço/tempo privilegiado para que o trabalhador
perceba que existem meios de resistir ao processo
em curso, que o leva, cada dia mais, a descaracteri-
zar suas mais inerentes virtudes.
Este trabalho, de forma geral, não permite a ex-
pressão e produção cultural do ser humano. A má-
Com relação à evasão, podemos perceber que o tra- quina, a produção em série e outros meios inerentes
balho na sociedade capitalista ocidental moderna ao trabalho industrial fazem com que o trabalhador
não está propiciando, de forma geral, a possibili- se limite a executar uma tarefa previamente solicita-
dade de expressão, satisfação e sustento. Neste sen- da, sem necessariamente questioná-la ou criar sobre
tido, percebemos a seguinte observação de Fried- ela. Ressalto que não é apenas no trabalho industrial
mann (1964, p. 169-170): que isto acontece, pois há características do traba-
lho alienado até mesmo em profissões que aparente-
[...] toda evasão, na opinião dos psicólogos,
mente permitem ações críticas e criativas, como por
constitui um comportamento mais ou menos
neurótico, acompanhado, sob diversas formas, exemplo, as ligadas às produções intelectuais, artís-
de recalque, de separação com relação a uma ticas, dentre outras.
parte do real, de frustração e, às vezes, mesmo Em um texto, denominado de “Elogio ao La-
de tendências agressivas. [...] Todavia, há diver- zer”, original de 1932, o autor britânico Bertrand
sas formas de evasão no lazer [...]. O homem
‘alienado’, na civilização técnica do capitalismo, é
Russell afirma que o ser humano já trabalhou em
infeliz: ‘ao consumir diversão, procura reprimir demasia, afirma que “a crença de que o trabalho
a consciência de sua infelicidade. Empenha-se é virtuoso é imensa e nociva e que o necessário
em ganhar tempo e, em seguida, se inquieta em a ser pregado nos países industriais modernos
matar o tempo que ganhou’. A insatisfação do
é muito diferente de toda a pregação passada”
trabalho em migalhas constitui, em nossa opi-
nião, um dos principais aspectos desta alienação. (RUSSELL, 1977, p. 9).

57
RECREAÇÃO E LAZER

Por mais que a proposta de Russell pareça sensata


e humana, há que se perceber a observação de um
ser humano parcial. O lazer não pode ser conside-
rado como única fonte de realização humana. A
forma como o trabalho se caracterizou na socieda-
de moderna deve ser repensada, para que as com-
pensações ou evasões deem lugar a uma consciên-
cia crítica e criativa frente às várias possibilidades
de realização humana.
A abordagem feita por Russell (1977) acerca
do lazer e do trabalho, analisa-os como se fossem
independentes um do outro, e “[...] faz com que
não seja levado em conta que a alienação em um
dos campos venha a gerar atitudes de evasão ou
compensação no outro” (MARCELLINO, 2003, p.
27-28). Sua proposta é uma proposta de mudança,
mas que demonstra pequenos traços de uma visão
funcionalista, sendo que esta pode ser caracteri-
A proposta de Russell (1977) é de uma jornada de zada da seguinte forma:
trabalho de quatro horas, o que acabaria com o pro-
blema do desemprego. A ciência e a máquina repre- [...] a visão funcionalista da relação trabalho/
lazer não considera a ordem causal no tempo
sentariam a redenção da humanidade. Sua principal
– a não ser no sentido da recuperação de for-
preocupação é a de moralização social. Neste senti- ças – que encontramos já na “Crítica da Razão
do, faz as seguintes afirmações: Pura” de Kant, onde ele demonstra que o tempo
anterior determina o seguinte (MARCELLINO,
[...] é parte essencial de qualquer sistema social 2003, p. 27-28).
que adote essa jornada de quatro horas, que a
educação seja mais eficiente e que tenha como
objetivo, em parte, ensejar o gosto que permita Portanto, um problema sumário para o entendi-
às pessoas desfrutar o lazer de modo inteligen- mento do lazer passa pela questão da cosmovisão
te. [...] Pelo menos um por cento deverá dedicar adotada pelo autor. De acordo com os autores
o tempo não empregado no serviço profissional
a tarefas de importância pública e, visto que não
apresentados e seus questionamentos e conclu-
dependerá disso para ganhar a vida, sua origi- sões, percebo que certas abordagens podem levar
nalidade será livre, [...]. De todas as qualidades a conclusões opostas acerca do lazer. Esta possibi-
morais de que o mundo mais precisa é a índole lidade de uma leitura enviesada fica evidente em
e ela é consequência de conforto e segurança
De Masi (2001).
para todos; em lugar disso, optamos pelo tra-
balho excessivo a cargo de uns e pela miséria e O sociólogo italiano do trabalho, Domenico De
pela fome de outros (RUSSELL, 1977, p. 22-24). Masi, utiliza duas obras de matrizes teóricas opostas

58
EDUCAÇÃO FÍSICA

para justificar sua tese de que o ócio deve ser uti- Para defender sua tese o autor utiliza integralmente
lizado como forma de gerar criatividade, mas com os textos de Paul Lafargue e Bertrand Russell, sem
vistas ao mundo do trabalho, historicamente situado situar a militância político/ideológica de cada autor.
no modo de produção capitalista, numa expressão Neste sentido, deixa de perceber e destacar a ínti-
denominada de “Ócio Criativo”. ma relação do trabalho gerado historicamente na
Ao apresentar na íntegra os textos já mencio- sociedade capitalista e o lazer advindo desta mesma
nados de Bertrand Russell e Paul Lafargue, o faz sociedade. Não destaca a íntima relação entre eles,
como se a visão de mundo dos dois autores fosse afirmando, apenas, que ambos estão sofrendo um
a mesma que a sua. Além deste problema, reali- processo de fusão e que dentro em breve a sociedade
za uma tradução livre que não leva em conta, por passará a desfrutar de uma civilização do ócio.
exemplo, a intenção de Paul Lafargue ao escolher o O ócio descrito por De Masi é um ócio diferente
vocábulo “preguiça” e não o “ócio” para fazer parte da forma como se apresenta contemporaneamente.
do título de sua obra. Este ócio estaria a serviço do trabalho e vice-versa.
Ao tentar justificar sua tese, de que estamos pró- Viver os valores possíveis do ócio seria vivenciar os
ximos a uma civilização do lazer - que já havia sido próprios valores do mundo do trabalho.
apresentada e defendida por outros autores - e que Acredito que esta atitude “profética”, além de
esta sociedade “pós-industrial” precisa de uma in- já ter sido utilizada por outros autores, é peri-
versão de rota, afirma que: gosa, ao propor o estabelecimento de uma nova
dinâmica em substituição à existente. Além do
[...] pela primeira vez, após a civilização gre- mais, deixa de levar em conta que há outros
ga, o trabalho não representa mais a categoria
agravantes que impedem com que toda a popu-
geral que explica o papel dos indivíduos e da
coletividade. Pela primeira vez, depois da Ate- lação usufrua deste modelo de sociedade. Há um
nas de Péricles, são o tempo livre e a capacidade problema do desemprego estrutural, por exem-
de valorizá-lo que determinam o nosso destino plo, e neste sentido a miserável população nes-
não só cultural como também econômico (DE ta situação não poderia desfrutar de um “ócio
MASI, 2001, p. 12).
criativo”, por já viver uma ociosidade (imposta),
extremamente criativa por sinal, que a impele a
mover possibilidades acima de suas forças para
gerar meios de sobrevivência.

59
RECREAÇÃO E LAZER

Desta forma, retomo a consideração sobre o con- se comparadas a outras esferas da vida social. E o
ceito operacional de lazer adotado neste estudo, mais preocupante é que o estabelecimento de um
que destaca a necessidade de entendimento do la- quadro hierárquico de formalização de políticas
zer em sua concretude histórica e tal qual se en- para outras áreas deixa o lazer, por vezes em se-
contra estruturado na sociedade contemporânea, gundo plano.
não como será, mas como é. Analisar o tema lazer Entretanto, mesmo quando elaboradas políticas,
em qualquer sociedade deve merecer o destaque de estas tendem a permanecer no papel, esperando pela
entendimento de todos os fatores que envolvem e boa vontade dos executivos municipais. E como afir-
se destacam na estruturação e desenvolvimento da ma Marcellino (1996, p. 2):
sociedade em questão.
Entendo que apesar de muito se falar sobre o [...] é preciso considerar que as propostas de
trabalho não podem ficar restritas à elaboração
lazer e de este estar previsto como um direito ao de documentos, muitos deles até com ‘boas in-
cidadão brasileiro, as ações via políticas públicas tenções’, mas que acabam se transformando em
a esta área estão aquém do que poderiam estar, discursos vazios [...].

60
EDUCAÇÃO FÍSICA

SAIBA MAIS [...] falar em política de lazer significa falar não


só de uma política de atividades - que na maioria
das vezes acabam por se constituir em eventos
De acordo com a Constituição Federal de isolados -, e não em política de animação como
1988, no Art. 6º, os direitos sociais do cida- processo; significa falar em redução de jornada
dão brasileiros são: “educação, saúde, ali- de trabalho - sem redução de salários -, e, por-
mentação, trabalho, moradia, transporte, tanto, numa política de reordenação do tempo,
lazer, segurança, previdência social, proteção numa política de transporte urbano, que abranja
à maternidade e à infância e assistência aos os espaços e os equipamentos de lazer - incluin-
desamparados. do a moradia e seu entorno; e, finalmente, numa
Para manter-se atualizado sobre a alterações política de formação de quadros, profissionais e
via emendas constitucionais, acesse o link voluntários, para trabalharem de forma eficiente
disponível em: <http://www2.camara.leg.br/ e atualizada. Resumindo: o lazer tem sua espe-
atividade-legislativa/legislacao/Constituico- cificidade, inclusive como política pública, mas
es_Brasileiras/constituicao1988.html> não pode ser tratado de forma isolada de outras
questões sociais (MARCELLINO, 2001, p. 58).
Fonte: o autor.

É evidente, novamente, o vínculo do lazer com ou-


tras esferas sociais. Não é necessário afirmar que va-
mos chegar a uma civilização do ócio, ou do lazer,
Destaco estas questões relativas às ações no âmbito para que este seja devidamente valorizado. O neces-
do lazer, de cunho político, pois há a necessidade de sário é o estabelecimento de ações (políticas) que va-
mudanças de ordem social que propiciem uma nova lorizem e respeitem o ser humano em todas as suas
dinâmica à vida social. Creio que estas dinâmicas se possibilidades de manifestações sociais.
concretizariam de forma satisfatória somente com A valorização de uma esfera social não deve se
um destaque para as políticas governamentais de la- tornar outra esfera com menor valor ou desprovida
zer que, como já salientamos, não se desvinculam de valor, mas considerar que existe um ser humano
das políticas de trabalho e emprego. É necessário que influencia e é influenciado por estas questões
evidenciar, portanto, que: sociais, sendo uno, e não fragmentado, nas suas vi-
vências e manifestações.

61
considerações finais

E
spero que ao longo da leitura desta Unidade, você tenha percebido que
há um alto grau de complexidade no lazer. Se você achava que o lazer e
a recreação estavam associados apenas a jogos e brincadeiras deve ter
percebido quão grande foram as lutas históricas para poder usufruir
dos valores do lazer: descanso, divertimento e desenvolvimento. Portanto, lazer
também é coisa séria!
Vimos que o trabalho em migalhas, fragmentado, alienado, tem reflexo di-
reto no lazer, pois eles são dois lados da mesma moeda. A mudança do trabalho
influencia diretamente no lazer e a mudança do lazer diretamente no trabalho -
cuja estrutura deflagra os riscos de evasão e compensação.
As obrigações na sociedade contemporânea influenciam e são influenciadas
pelas práticas de lazer, ou simplesmente recreação. A recreação age como um ele-
mento que pode despertar pessoas de um estado de conformismo diante de uma
realidade que lhes rouba a humanidade. Neste sentido, as obrigações influenciam
diretamente no lazer e são por ele influenciadas.
Sob o ponto de vista da relação lazer, recreação, educação e Educação Física,
é necessário pensar no desenvolvimento do trabalho na sociedade capitalista oci-
dental, urbano-industrial, mais especificamente na organização e ações de redis-
tribuição de tempo à classe trabalhadora (ao proletariado), e nas possibilidades
de vivências fora do tempo de trabalho e das obrigações sociais.
Neste sentido faz-se necessário aprofundar as discussões em torno do enten-
dimento das temáticas lazer, lúdico e educação, tendo como cenário o trabalho
estruturado no modo de produção capitalista. Para isso, é fundamental o papel
do animador sociocultural, pelo seu caráter educativo e potencialmente revolu-
cionário. Obviamente não devemos jamais perder a visão do todo, e para que isto
não ocorra, é necessário o desenvolvimento de uma atitude filosófica, entendida
como uma reflexão que vá às raízes de diferentes temas, de forma rigorosa, com
vistas à compreensão de aspectos mais variados da complexidade social, trans-
cendendo a superficialidade, um dos grandes maus do nosso tempo.

62
atividades de estudo

1. As discussões em torno da redução da jornada 4. A superação de uma dimensão conformista do


de trabalho estão intimamente ligadas ao pro- lazer pode ocorrer por meio de uma vivência e
cesso de industrialização. No Brasil, por exem- de atitudes favoráveis na forma de se conhe-
plo, a industrialização ocorreu aceleradamente cer, vivenciar e refletir sobre os conteúdos cul-
no fim do século XIX. Com isso, houve em 1901 turais presentes nas atividades de lazer. Sobre
a primeira grande greve brasileira, cujo o obje- esses conteúdos culturais, Dumazedier (1980a)
tivo era o estabelecimento de uma jornada de apresenta cinco interesses, ou conteúdos cul-
trabalho de onze horas diárias, em São Paulo. turais, e Camargo (1986) complementa com
Em 1902 no Rio de Janeiro e em 1905 em So- mais um. Explique o que são estes conteúdos
rocaba, tiveram greves que reivindicavam redu- culturais do lazer e apresente quais são es-
ção das jornadas vigentes de quinze a dezesseis tas classificações.
horas. Em 1903, no Rio de Janeiro, consegue-se
a redução da jornada diária para nove horas e 5. Sabemos que para a ação em animação so-
meia. Sendo assim, estabeleça uma relação ciocultural é fundamental o conhecimento
entres os dados apresentados e o lazer. dos interesses e o estímulo e oferta a dife-
rentes vivências associadas aos conteúdos
2. É comum ouvirmos expressões como “o traba- culturais do lazer. Neste sentido, escreva
lho dignifica o homem” ou “cabeça vazia ofici- brevemente cada um dos seis conteúdos
na do diabo”, “tempo é dinheiro”, “deus ajuda culturais do lazer.
quem cedo madruga” etc. São declarações que
expressam uma certa visão de mundo sobre o 6. O lazer possui uma íntima relação com as ques-
trabalho e o lazer, mas que podem ter como tões de cunho político, pois há a necessidade
propósito legitimar uma ideologia para a ma- de mudanças de ordem social que propiciem
nutenção de um determinado estado no qual uma nova dinâmica à vida social. Para que es-
se encontra a sociedade. Como geralmente é tas modificações ocorram, é necessário um vín-
encarado o lazer nesta perspectiva? Como culo com as políticas de trabalho e emprego.
superar esta concepção? Discorra sobre esta especificidade do lazer
enquanto política pública e sua relação com
3. Além de um processo de reivindicação por me- estas outras políticas, com base em Mar-
lhores condições de trabalho associadas, entre cellino (2001).
outros fatores, diretamente a jornadas de tra-
balho, bem como ao cuidado com as obrigações
no tempo livre de trabalho, ou seja, no tempo
liberado, quais ações são necessárias para
que o lazer seja vivenciado de maneira ade-
quada? Explique brevemente estas ações.

63
LEITURA
COMPLEMENTAR

UM DOGMA DESASTROSO
“Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos pre-
guiçosos”.
Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civili-
zação capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois
séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão mo-
ribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua
progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economis-
tas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram
ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar
aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e mo-
ralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões
da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do
trabalho na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de
toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild,
servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas
que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem
para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião
ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e
olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquina. Quando, na nossa
Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir
procurá-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o
ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de pos-
suir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar
o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de
aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvi-
do na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em
cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas Os
Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos

64
LEITURA
COMPLEMENTAR

era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da


inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de
Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos es-
magava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar.
Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do
homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe,
Deus nobis hoec otia fecit (Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade).
Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Contemplai o crescimento dos
lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda
a sua glória, não se vestiu com maior brilho.” (4) Jeová, o deus barbudo e rebarbativo,
deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de
trabalho, repousou para a eternidade.
Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgâni-
ca? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos,
esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha;
os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que
amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequenos burgue-
ses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas,
mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para
olhar com vagar para a natureza.
E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das na-
ções civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho
servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos,
esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho.
Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da
sua paixão pelo trabalho.

Fonte: Lafargue (2003, p. 21-23).

65
RECREAÇÃO E LAZER

Elogio ao Ócio
Bertrand Russell
Editora: Sextante
Sinopse: nesta clássica obra, Bertrand Russell vislumbra de forma
irônica um futuro em que muitos poderiam fruir do ócio de maneira
prazerosa, sem pesos advindos de uma moral do trabalho. Na sua abordagem, brinca com
um passado em que isso era privilégio de poucos, garantido pela exploração de muitos, a
massa proletária. No mundo que ele intui e antecipa, as máquinas garantiriam que todos pu-
dessem se ver livres da fadiga brutal, por isso a importância do desenvolvimento tecnológico.
Sua proposta é de uma jornada de trabalho de quatro horas, e as demais seriam dedicadas
ao descanso, desenvolvimento e divertimento, pelas quais o ser humano seria mais criativo
e feliz.
Comentário: esta obra é fundamental para as reflexões sobre a possibilidade de uma organi-
zação social que rompa com a santificação do trabalho, tal qual se encontra estruturado na
sociedade contemporânea e, em muitos casos, bem como com a consequente demonização
do ócio. A defesa de uma sociedade que usufrua do ócio passa pela discussão do lazer e da
necessidade de se educar pelo e para o lazer. Como fazer isto é um desafio aos profissionais
envolvidos nesta área, não como meros reprodutores, mas como criadores e recriadores de
modus vivendis.

Para aqueles que desejam conhecer mais e saber das pesquisas recentes ligadas ao campo
do lazer, recreação e animação sociocultural, sugerimos o acesso periódico Licere - Revista
do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer/UFMG. A Revista é pu-
blicada desde 1999, o que propicia um conhecimento amplo sobre os principais assuntos
discutidos no campo do lazer.
Para saber mais, acesse o link disponível em: <https://seer.ufmg.br/index.php/licere>.

66
EDUCAÇÃO FÍSICA

Clube da Luta
Ano: 1999
Sinopse: o filme foi inspirado no romance de mesmo nome de Chu-
ck Palahniuk, de 1996. O enredo é protagonizado por um “homem
comum”, sem nome apresentado, que vive uma vida medíocre e
descontente com seu trabalho. Como trabalhador de classe média alta, com um bom em-
prego, sente-se enredado pelo sistema, e afirma diariamente que sente-se a cópia, da cópia,
da cópia. Uma instabilidade financeira leva-o a uma angústia profunda que deflagra crises
psicológicas e insônia. Diante de uma profunda crise de identidade, forma então um clube de
combate juntamente com um vendedor de sabonetes.
Comentário: o filme é uma severa crítica ao capitalismo, mais especificamente sobre a ver-
tente do consumismo, que faz com que as coisas não pertençam mais às pessoas, mas as
pessoas às coisas. As crises de identidade de grande parte da população levou à criação de
grupo de ajuda mútua no qual se buscava o alívio para as crises advindas de um cotidiano
maçante. O personagem de Edward Norton empreende uma fuga da realidade que conside-
ra sem sentido e fingida, e para isso começa a desapegar-se de tudo que considera de valor.
A busca pela quebra da alienação ao modo de produção capitalista que leva ao consumismo
(trabalhar para consumir, consumir para trabalhar) leva-o ao outro extremo do que vivia até
então. É possível estabelecer um paralelo entre os valores alienantes de um tipo de trabalho
no modo de produção capitalista e o risco da evasão do real que a recreação poderia pro-
porcionar. Os dois extremos são perigosos. Mas a vivência de valores distintos do mundo do
trabalho pode, num movimento dialético, proporcionar um equilíbrio e uma genuína trans-
formação e quebra de um estilo de vida alienado.

67
referências

BOSI, E. Cultura de massa e cultura popular: leituras operárias. Petrópolis: Vo-


zes, 1978.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponí-
vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 29 mai. 2017.
BRUHNS, H. T. Introdução aos estudos do lazer. Campinas: Ed. Unicamp, 1997.
CAILLOIS, R. Os jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990.
CAMARGO, L. O. L. O que é lazer. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
DE MASI, D. (org. e int.). A economia do ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
DUMAZEDIER, J. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: SESC,
1980a.
______. A teoria sociológica da decisão. São Paulo: SESC, 1980b.
FRIEDMANN, G. O trabalho em migalhas: especialização e lazeres. São Paulo:
Perspectiva, 1964.
LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Claridade, 2003.
MACEDO, C.C. Algumas observações sobre a cultura do povo. In: VALLE, E. e
QUEIROZ, J.(Org.) A cultura do povo. 2. ed. São Paulo: EDUC. 1982.
MARCELLINO, N. C. (org.). Políticas públicas setoriais de lazer: o papel das
prefeituras. Campinas: Autores Associados, 1996.
______. Estudos do lazer: uma introdução. 2. ed. Campinas: Autores Associados,
2000.
______. (org.) O lazer na empresa: alguns dos múltiplos olhares possíveis. In:
______. Lazer & Empresa: múltiplos olhares. Campinas: Papirus, 2001. p. 13-22.
______. Lazer e humanização. 7. ed. Campinas: Papirus, 2003.
PARKER, S. A sociologia do lazer. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
RUSSELL, B. Elogio ao lazer. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

Referências On-Line#
1
Em: <http://cev.org.br/biblioteca/ginastica-geral-gg/>. Acesso em: 26 mai.
2017.

68
gabarito

1. Os dados apresentados sobre o processo de indus- 5. Conteúdos físico-esportivos: estão relacionados às


trialização e as manifestações reivindicando a redu- manifestações do lazer associadas ao movimento ou
ção da jornada de trabalho reforçam a ideia de que ao exercício físico. Eles podem assumir íntima relação
o lazer possui íntima relação com o trabalho e que o com a arte, como, nas danças ou no jogo de capoeira.
processo de redução de sua jornada favoreceu o seu Por meio dos conteúdos físico-esportivos há o favore-
desenvolvimento. Contudo, não é apenas na relação cimento de novas relações com a natureza e supera-
com o trabalho que o lazer se desenvolve, pois se o ção dos limites do próprio corpo.
tempo dedicado às obrigações cotidianas diminuí- Conteúdos práticos ou manuais: há prevalência da
rem, o tempo disponível tende a crescer, bem como capacidade de manipulação, de transformação de ob-
as possibilidades de desenvolvimento do lazer. O in- jetos ou materiais, ou para lidar com a natureza ou
verso também é verdadeiro. Um aumento no tempo como resistência ao consumismo e a massificação da
de trabalho e/ou das obrigações cotidianas, por ne- indústria. Reproduz situações das sociedades tradicio-
cessidade, ambição ou qualquer outra razão, tende a nais, como o artesanato, bricolagem, cultivo de plan-
privar o ser humano de uma possibilidade de vivência tas e criação de animais.
de valores inerentes ao próprio lazer.
Conteúdos artísticos: há a prevalência do imaginário
2. Em virtude de muitas sociedades, inclusive a brasilei- e do estético, uma busca pela beleza e encantamen-
ra, passarem por um processo de desenvolvimento to, no qual está presente, por exemplo, um alto grau
em vários âmbitos, com sérios problemas socioeco- de contemplação. Os sentimentos e as emoções têm
nômicos, determinadas atividades humanas passam grande preponderância neste conteúdo atrelado às
a ser consideradas de primeira necessidade, e outras manifestações artísticas.
como facultativas, ou desnecessárias. Neste sentido, Conteúdos intelectuais: há um anseio pelo contato
o lazer pode ser tratado como sobremesa, modismo, com o real, informações objetivas e racionais. Podem
algo sem tanta importância, quando colocado ao lado estar relacionados a interesses delimitados apenas na
daquilo que se considera urgente. Para superar esta esfera do lazer quanto ligados ao trabalho e às obri-
concepção, o lazer deve ser tratado com seriedade, gações. Estão intimamente ligados ao conhecimento
no sentido de compreender seu significado e impor- vivido, experimentado.
tância para a vida humana, considerando-o não como
simples recriação da força de trabalho, como compen- Conteúdos sociais: estão relacionados à busca por
sação para as mazelas laborais, mas como um tema relacionamento, contatos face a face, ligadas ao re-
essencial à vida humana. pouso, divertimento e informação. Os encontros fami-
liares podem ser uma categoria de semilazer, pois po-
3. Mais do que reivindicar mais tempo para o usufruto dem estar presentes no campo das obrigações sociais.
do lazer e suas possibilidades, se fazem necessárias Conteúdos turísticos: há uma quebra da rotina tem-
ações educativas que, conforme o conceito operacio- poral e/ou espacial e o contato com novas situações,
nal de lazer, eduque pelo e para o lazer. Educar pelo paisagens e culturas. O planejamento e o rememorar
lazer seria o modo como as atividades de lazer pode- a vivência, são tão importantes quanto a vivência in
riam desenvolver seus praticantes pessoal e social- loco deste conteúdo.
mente, sem, necessariamente, instrumentalizá-lo. Já
educar para o lazer seria a implementação de ações 6. Políticas de lazer e não apenas políticas de atividades,
educativas que conscientizassem a população de que pois em muitos casos acabam sendo apenas o even-
o lazer não precisa estar atrelado à indústria cultural to pelo evento. As políticas de lazer devem ser con-
para que dê prazer e que há sim a necessidade de sideradas com base no processo e não apenas num
transcendência de um nível conformista para um ní- produto a ser ofertado. Por isso a íntima relação com
vel crítico e criativo. as políticas de redução da jornada de trabalho, obvia-
mente sem redução de salário. Em outras palavras,
4. O interesse pode ser compreendido como “o conheci- estamos tratando de uma políticas de reordenação do
mento que está enraizado na sensibilidade, na cultu- tempo, de transporte urbano, de espaços e equipa-
ra vivida” (DUMAZEDIER, 1980a, p. 110). Dumazedier mentos de lazer, de moradia e de formação de quad-
categoriza os conteúdos das atividades em interesses ros, profissionais e voluntários, para trabalharem de
físicos-esportivos, práticos ou manuais, artísticos, in- forma eficiente e atualizada. Portanto, o lazer tem sua
telectuais e os sociais. Camargo apresenta a categoria especificidade, como política pública, mas não pode ser
do conteúdo turístico. tratado de forma isolada de outros direitos sociais, ga-
rantidos pela Art. 6º da Constituição Federal de 1988.

69
LAZER, LÚDICO E EDUCAÇÃO

Professor Me. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
• Lazer e o duplo processo educativo
• Lazer como espaço para o lúdico
• A cultura, o lúdico e a escola

Objetivos de Aprendizagem
• Compreender o duplo processo educativo presente no lazer.
• Analisar o lazer como lócus privilegiado para o lúdico.
• Estabelecer relações entre a cultura, o lazer e a escola.
unidade

III
INTRODUÇÃO

Estimado(a) aluno(a),
Os temas desta unidade são de suma importância para o processo formativo
do(a) licenciado(a), pois, em muitos momentos, ele é fonte de grandes mal-en-
tendidos. A relação lazer, lúdico e educação necessariamente passa pela busca
de uma compreensão mais aprofundada sobre os temas. O lazer, como já assu-
mimos em nosso conceito operacional, é cultura. Neste sentido, a relação entre
lazer, lúdico e educação ocorre sob esta perspectiva.
A compreensão de educação, como veremos, também deve transcender a visão
limitada de que ela ocorre apenas de maneira formal, em instituições concebidas
para este fim. Compreendemos a educação, assim como cultura em seu sentido
mais amplo. Quando o lúdico entra nos debates, há uma riqueza enorme nas dis-
cussões, mas também o aumento do risco das más compreensões, principalmente
no que diz respeito à instrumentalização do lúdico no campo educacional. Além
disso, por mais contraditório que seja, há aqueles que concebem como lazer ati-
vidades no tempo de trabalho e obrigações. Daí a necessidade de discussão sobre
a presença do lazer na escola e como se dá esta relação à luz das teorias do lazer.
Compreender que o lazer tem um duplo processo educativo, como veículo
e objeto da educação, e entender como isto ocorre nos ajuda a prevenir uma
série de incongruências entre a reflexão e a ação tão necessárias ao lazer.
Certamente todas as nossas discussões, não apenas nesta unidade, expres-
sam uma certa visão de mundo (cosmovisão) que não devem ser tomadas
como doutrinas ou dogmas, pois quer no campo da filosofia, quer da ciên-
cia principalmente, o que se almeja é que os conceitos sejam debatidos e
superados, caso sejam inconsistentes.
Por fim, devemos refletir sobre a relação cultura, lúdico e escola. Como
uma matriz curricular deve ser concebida? À luz das exigências do mundo
do trabalho ou levando-se em consideração o lúdico tão relevante para a
infância? As respostas a perguntas como estas norteiam nossas ações e as
fundamentam rumo a uma práxis pedagógica.
Boas reflexões!
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer e o Duplo Processo


Educativo
O lazer está intimamente ligado à educação, como já tanto pessoal, quanto do mundo à nossa volta.
mencionamos anteriormente. Ora ele atua como veí- Então, desfrutar desses momentos como veículo
culo da educação, ora como objeto da educação. Isto educativo, pode fomentar momentos de profun-
é denominado na teoria do lazer de duplo processo da crítica e criatividade.
educativo do lazer. Entendamos do que se trata.
O lazer como veículo de educação leva em conta
sua potencialidade de desenvolvimento pessoal e so-
cial nos indivíduos. Neste sentido, Marcellino (2000,
p. 50-51) considera que ele cumpre objetivos consu-
matórios e instrumentais.
Os objetivos consumatórios estão ligados ao
relaxamento, à contemplação e ao prazer que
tais práticas propiciam. Pode parecer um “nada
fazer”, mas, ao contrário, como veículo educati-
vo, carrega um imenso potencial de descoberta,

74
EDUCAÇÃO FÍSICA

REFLITA sobre uma lógica capitalista, como vimos nas unida-


des anteriores, o tempo disponível para as atividades
A velocidade é o ritmo das máquinas. Mas de lazer ou, simplesmente, recreação pode servir ape-
nós não somos máquinas. Somos seres da nas a uma dimensão muito restrita. Se não há uma
natureza [...]. E a natureza é sempre vagaro-
sa. É perigoso introduzir a pressa num corpo abordagem do lazer como objeto, seja na educação
que tem suas raízes na lentidão da natureza. formal, seja na educação não formal, corre-se o risco
(Rubem Alves). de o lazer ser entendido apenas como “recriação”, ou
seja, recriar, recuperar a força de trabalho para que
ele volte com todo ânimo ao ambiente da produção.
Já os objetivos instrumentais são aqueles associa- Enfim, para que haja a fruição do lazer é muito
dos à realidade concreta e sua compreensão. Há um importante que se discuta e se ensine sobre ele. Se
desenvolvimento pessoal e social envolvido nestas como educadores desejamos que haja uma supera-
práticas. A sensibilidade, em vários aspectos, é esti- ção da dimensão conformista para uma dimensão
mulada pelas atividades recreativas, tanto no cresci- crítica e criativa, necessitamos ensinar nossos alunos
mento das questões mais intrínsecas de crescimento as diferentes possibilidades no tempo disponível.
intelectual, físico, estético etc. quanto nas oportuni- Imagine como seria se nós tivéssemos disciplinas
dades para conhecer pessoas. Quando nos referimos que tocassem nestas questões. Que seus conteúdos
a conhecer, estamos nos referindo também ao apro- não apenas visassem ao ambiente de trabalho. Será
fundamento dos relacionamentos que um dia já ini- que não é por isso que disciplinas como artes e edu-
ciamos, mas que permanecem, por algum motivo, cação física pareçam mais leves do que outras como
na superficialidade. matemática, português etc.? Não estou afirmando
que estas não possam ter abordagens que não neces-
sariamente estejam associadas ao mundo do traba-
lho, mas que levam em conta o lazer.
Cabe aqui outra pergunta importante. Que dis-
ciplina, no contexto da educação formal, deveria
ter em seus conteúdos o lazer como objeto? Talvez
a resposta, sem uma breve reflexão, possa levar às
disciplinas que já mencionamos. Até porque, pense
comigo, que outra matriz curricular de graduação
tem a disciplina recreação e lazer, ou outra com
nome semelhante? Sim, há disciplinas que contem-
O lazer como objeto da educação, que compõe o se- plam jogos, brinquedos, brincadeiras etc., mas, em
gundo pilar do duplo processo educativo, é o lazer geral, têm uma visão de instrumentalização do jogo,
ensinado. Ora, você poderia se perguntar: “mas pre- do brinquedo e da brincadeira. Eles não são vistos
cisamos mesmo ensinar as pessoas sobre o lazer?”. como um fim em si mesmo, mas como meios para
Pense comigo! Se nossa sociedade está estruturada levar a algo. Exemplo: jogos matemáticos; gincana

75
RECREAÇÃO E LAZER

de língua portuguesa; torneio de futsal etc. Vejam, É óbvio que os conteúdos devem considerar tanto o
estamos tratando de educação para o lazer, ou o mundo do trabalho quanto o do lazer. Porém pouco
lazer como objeto. Quem ensina ou deve ensinar se discute o brincar, por mera fruição, na matemá-
como usufruir do tempo disponível? tica, na língua portuguesa, na biologia etc. Pior, às
Todas as disciplinas escolares podem tratar do la- vezes o prazer associado a essas disciplinas é esque-
zer como objeto. Não há a necessidade que matrizes cido, quando não, extinto. Não estou propondo uma
contemplem conteúdos voltados apenas para o mun- apologia ao hedonismo, uma das grandes marcas da
do do trabalho e apenas ao mundo do lazer, pois eles modernidade líquida, que coloca como parâmetro
não são dicotômicos, mas compõem a mesma dinâ- valorativo o prazer acima de tudo, ou seja, se dá pra-
mica da vida, estruturada nos moldes atuais. Claro zer é bom, e se tira é ruim. Sabemos que aprender,
que isto pode ser uma questão mais da abordagem por vezes, rouba o prazer imediato. Contudo me
do professor em sala de aula do que uma previsão em proporciona um outro tipo de prazer, posterior ao
programas de disciplina, se é que eles deveriam existir. momento do esforço de passar horas a fio em cima
dos cadernos, livros e computador.
SAIBA MAIS Nossa alma é lúdica. Na criança, esta ludicidade
é muito mais evidente, pois ainda não foi furtada.
Depois de já ter revolucionado os moldes tradi- No adulto, talvez vá se perdendo esta característi-
cionais de ensino na Escola da Ponte, o profes- ca, pois somos ensinados de que “isto é coisa de
sor português José Pacheco, hoje um estudioso criança e isto é coisa de gente grande”. Como afir-
da realidade brasileira, aposta na mudança de
mentalidade dos professores e no apoio dos ma Huizinga (2012), no prefácio de sua obra, além
governos para haver inovação em educação. de homo sapiens e homo faber, somos homo ludens:
Segundo o educador, é preciso que as iniciati- “já há muitos anos que vem crescendo em mim a
vas isoladas que ele tem visto pelo país sejam
registradas, avaliadas e incentivadas para não convicção de que é no jogo e pelo jogo que a civili-
serem perdidas. Mais que isso: os professores zação surge e se desenvolve”.
devem se dispor a mudar para adotar uma pos-
tura mais descentralizada, aberta à reflexão, ao
diálogo e à diversidade.
Pacheco se tornou mundialmente conhecido
por revolucionar uma escola pública portu-
guesa, a Ponte, utilizando uma metodologia
ousada: ele acabou com turmas, salas de aula,
disciplinas e passou a ensinar conforme a moti-
vação dos alunos. Lá, são os próprios estudan-
tes que se organizam em grupos heterogêneos
para estudar os assuntos que lhes interessam,
são autônomos para pesquisar, apresentar os
resultados para os colegas e, quando se sentem
prontos, avisam que podem ser avaliados.

Fonte: Gomes (2012, on-line)1.

76
EDUCAÇÃO FÍSICA

O termo escola deriva do grego scholé, que significa A própria passagem de níveis elementares para
tempo livre. Imagine como seriam as nossas escolas superiores teria condições de se concretizar
mais rapidamente, através da ação educativa
se fôssemos ensinados e estimulados a valorizarmos
para o lazer somada à sua vivência, do que se
os potenciais de descanso, divertimento e desen- dependesse unicamente da participação nas
volvimento do lazer. Pense além, se pelos conteú- atividades, ou seja, se se restringisse à educação
dos compartilhados, e não apenas ministrados ou pelo lazer (MARCELLINO, 2000, p. 51).
expostos, pudéssemos associá-los além do dia da
prova ou do vestibular, mas à vida, de forma não Como vivemos em um contexto em que pratica-
fragmentada. Pense na associação da escola com os mente tudo é comercializado, não seria diferente
conteúdos culturais do lazer: físico-esportivos, inte- com o lazer, sendo que a tendência do modo de
lectuais, práticos ou manuais, artísticos, sociais e tu- produção contemporâneo é criar cada vez mais
rísticos. Acredito que, certamente, a escola ganharia “necessidades desnecessárias”. A mídia tem a ca-
outra “ânima”, seria mais animada. pacidade de ditar certos modismos que reforçam o
A tarefa não é tão simples, porém nenhuma ta- bombardeio de produtos, nas mais variadas esferas
refa de vanguarda, principalmente com relação à da indústria, inclusive da indústria cultural. Educar
educação, o é. Sempre é um desafio, mas é daque- para o lazer, portanto, pressupõe a possibilidade
les que vale a pena. Marcellino (2000, p. 51), dian- de superação de uma homogeneização, e favore-
te deste esforço, faz o seguinte questionamento: cimento de uma autonomia por meio de uma cri-
ticidade e criatividade pessoal e coletiva. Quando
como educar para o lazer conciliando a trans- se fala em coletividade, pressupõe-se a articulação
missão do que é desejável em termos de valores,
para o debate e formulações de políticas públicas
funções, conteúdos, etc., com suas característi-
cas de livre escolha e expressão? que envolvam, inclusive, a melhoria de quadros
e equipamentos de lazer - isso ajudaria a superar
Porque pode parecer contraditório que se eduque parte das barreiras já apresentadas, ou ao menos
para algo que pressupõe uma atitude favorável e es- uma delas, a de caráter financeiro.
pontânea, sem um caráter obrigatório. Contudo é
justamente nesta problemática que está a resposta. REFLITA
Quanto mais informações, diálogo, crítica e criati-
vidade sobre o lazer, muito mais provável que o in- Você já pensou quantas pessoas usufruem
divíduo tenha autonomia em seu tempo disponível. de seu tempo disponível sem nunca terem
Como Marcellino (2000) responde à sua própria realizado uma reflexão sobre ele? Condicio-
nados, programados sem conseguir projetar
provocação, haverá mais autenticidade, favorecendo um outro cenário e outras possibilidades.
a escolha diante de alternativas variadas.

77
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer Como Espaço


para o Lúdico
Homo sapiens, homo faber, homo ludens. Como de- As crianças e os animais brincam porque gos-
finir a humanidade por meio destas três categorias? tam de brincar, e é precisamente em tal fato
que reside sua liberdade. Seja como for, para
Ou mais, como elas convivem entre si? Um ser hu-
o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma
mano que pensa, raciocina, produz conhecimento e função que facilmente poderia ser dispensada,
trabalha, transforma este conhecimento em cultura, é algo supérfluo. Só se torna uma necessida-
fabrica objetos, tecnologia, mas que tem dentro de si de urgente na medida em que o prazer por ele
uma necessidade de brincar, de jogar. Neste sentido, provocado o transforma numa necessidade. É
possível, em qualquer momento, adiar ou sus-
como afirma Huizinga (2012), a humanidade extra-
pender o jogo. Jamais é imposto pela necessi-
pola sua dimensão racional, haja visto que o jogo é dade física ou dever moral e nunca constitui
irracional: e o autor além, ao afirmar que as mais uma tarefa, sendo sempre praticado nas ‘horas
importantes atividades arquetípicas da humanidade de ócio’ (HUIZINGA, 2012, p. 11).
são caracterizadas pelo jogo.

78
EDUCAÇÃO FÍSICA

O sapiens, o faber e o ludens estão presentes em nomia, ou seja, as regras são impostas externamente
nossa natureza humana, no entanto o mais difícil e não partindo do próprio sujeito.
é fazer com que estas três esferas se manifestem A tensão do homo faber pode estar relacionada
concomitantemente. Pensar e fazer, não como re- a prazos, perigos, metas, responsabilidades etc., ou
alidades dicotômicas. Trabalhar e divertir-se tal- seja, o melhor é aquele que produz mais e melhor.
vez sejam realidades mais difíceis ainda de con- Como afirma Han (2015, p. 23), “a sociedade do sé-
ciliar, não que seja impossível, culo XXI não é mais a sociedade dis-
mas na forma como a nossa ciplinar, mas uma sociedade de
sociedade se estruturou, desempenho”. Atualmente,
parece cada vez mais temos uma mudança em
complicado esta harmo- espaços de trabalho, que
nização. Poucos têm o demandam mais criativi-
privilégio de considerar dade do que meramente
seu trabalho como uma trabalho braçal; não im-
fonte perene de diversão porta tanto a disciplina,
e satisfação, de prazer, desde que haja uma per-
mas ainda assim, há um formance esperada. Em
caráter de obrigatorie- algumas empresas pro-
dade se a atividade está dutoras de softwares, por
na categoria trabalho. exemplo, o trabalho parece
O homo faber, de acordo com ter se aproximado mais da arte
Camargo (1998), está envolto por disciplina, do que apenas de uma mera execução
tensão e produtividade. As posturas no ambiente de de função. Por isso, o ambiente pode ser decorado
trabalho foram criadas para atender às demandas de acordo com o gosto de cada um, os horários são
no trabalho. Apesar de hoje termos as normas re- flexíveis, a diversão está mais presente, mas ainda
gulamentares do trabalho, que inclusive tratam da assim caracteriza-se uma obrigação, não há tanta
questão ergonômica, as posturas e atitudes são arti- ênfase na disciplina, no padrão, mas uma alta exi-
ficiais, assume-se um papel em determinado tempo gência no desempenho. Ainda há prazos, metas, exi-
e ambiente para o cumprimento de determinada de- gências e a pressão certamente ocorrerá se a concor-
manda, exigência. Há uma heteronomia e não auto- rente ameaçar roubar uma fatia no mercado.

79
RECREAÇÃO E LAZER

SAIBA MAIS O homo ludens tem como característica principal,


como vimos inicialmente na definição de Huizin-
Há uma discussão pelo mundo afora sobre ga (2012), a liberdade, por isso a rotina, a disci-
a “sociedade do cansaço”. Seu formulador plina, as posturas artificiais, entram em choque
principal, é um coreano que ensina filosofia com essa essência de divertimento, que tende ao
em Berlim, Byung-Chul Han, cujo livro com o
mesmo título acaba de ser lançado no Brasil relaxamento, à improdutividade, de acordo com
(Vozes 2015). O pensamento nem sempre é as exigências do mundo do trabalho. O homo lu-
claro e, por vezes discutível, como quando se dens está mais próximo de sua essência natural,
afirma que “cansaço fundamental” é dotado
de uma capacidade especial de “inspirar e pois ele é espontâneo.
fazer surgir o espírito” (cf. Byung-Chul Han,
p. 73). Independentemente das teorizações, Se observarmos o crescimento de uma crian-
vivemos numa sociedade do cansaço. No Bra- ça, veremos que o homo ludens vem primeiro.
sil além do cansaço sofremos um desânimo O bebê, na sua primeira infância, é totalmen-
e um abatimento atroz. te e apenas ludens. Ele exercita seus sentidos,
Consideremos, em primeiro lugar, a socieda-
sua voz, procura esticar seus membros, em
de do cansaço. Efetivamente, a aceleração do
resumo, exprimir-se. O homo faber pouco a
processo histórico e a multiplicação de sons,
de mensagens, o exagero de estímulos e co- pouco emerge desse homo ludens, seja espon-
municações, especialmente pelo marketing taneamente da própria brincadeira e dos ob-
comercial, pelos celulares com todos os seus jetos externos à própria brincadeira [...] seja
aplicativos, a superinformação que nos chega quando, induzida pelos pais, a criança assi-
pelas mídias sociais, nos produzem, dizem mila a noção de “dever”. Assim, do ponto de
estes autores, doenças neuronais: causam vista da ontogênese, da nossa história indivi-
depressão, dificuldade de atenção e uma sín- dual, sem dúvida o ludens vem antes do faber
drome de hiperatividade. (CAMARGO, 1998, p. 23).
Fonte: Boff (2016, on-line)2.

80
EDUCAÇÃO FÍSICA

Neste sentido, a obra Homo Ludens: o jogo como ele- o lazer é o lócus privilegiado para a manifestação
mento da cultura, de Johan Huizinga, publicada em do lúdico. Se você retornar ao conceito operacional
1938, é desenvolvida com as inter-relações entre o de lazer que estabelecemos no início dos nossos es-
jogo e as variadas esferas da vida humana: direito, tudos perceberá que há muita proximidade entre o
guerra, conhecimento, poesia, filosofia e arte. Isto lazer e o lúdico.
demonstra a concepção de que o jogo tem papel es- O lazer como cultura vivenciada no tempo dis-
sencial em nossa essência humana. Muito do que se ponível, assim como o lúdico, tem como recom-
busca compreender, ainda hoje, sobre o ser huma- pensa a satisfação provocada pela própria situação.
no poderia encontrar sua resposta nesta perspectiva Estar envolto pelo ambiente do lazer, no entanto,
ontológica do ser humano. pressupõe a possibilidade de opção pela atividade
Huizinga (2012) afirma em suas reflexões que a fes- ou pelo ócio (MARCELLINO, 2001). Neste sentido,
ta também possui um alto grau de ludicidade. Na festa, como fica o lúdico no ócio, ou seja, na opção pelo
assim como no jogo, o cotidiano é quebrado, a alegria é nada fazer. Diante disso, o que podemos afirmar é
um dos elementos marcantes e a liberdade está presen- que há o “D” do descanso dos valores do lazer, que
te. Neste sentido, ao refletirmos sobre a relação lazer, não necessariamente pressupõe ludicidade. Não ne-
lúdico e educação, é de suma importância que as festas cessariamente desenvolvimento e divertimento.
sejam objeto de ensino, não apenas como elemento fol- É possível, como vimos, que haja ludicidade no
clórico, mas como vivência e lócus de ludicidade. ambiente do trabalho e das obrigações. Contudo, ao
Contudo, diante das nossas reflexões, cabe, ain- cessar o prazer, não se tem a liberdade de interrom-
da, explicitar a pergunta que se apresenta no pano per a atividade. Neste sentido, como já caracteriza-
de fundo das nossas abordagens iniciais sobre o lú- mos, o ambiente escolar hodierno, como um espaço
dico: “o lúdico não se manifesta apenas no lazer?” de trabalho e obrigações, estabelece uma interde-
Espero que tenha ficado evidente que não. Porém, pendência com o lazer.

81
RECREAÇÃO E LAZER

REFLITA

Como você se sente no seu espaço de obri-


gações (profissionais, educacionais sociais,
familiares, religiosas, político-partidárias)?
Você conseguiria atribuir um valor de zero a
dez à sua ludicidade nestas esferas?

Por que é que o trabalho em nossa sociedade se es-


truturou desta forma? Por que o prazer fica relegado
a uma pequena faixa de tempo e as obrigações a uma
grande parcela? Por isso, ao educar para o lúdico,
implicitamente ocorre uma denúncia da dicotomia
“prazer/realidade”. Não deveria ser assim, mas a for-
ma como o trabalho é concebido no modo de pro-
dução capitalista exige um abandono da essência e
a impõe padrões que podem até garantir segurança,
mas roubam a liberdade; podem até garantir o sus-
tento material, mas não sustentam o essencial, ou
seja, tende a usurpar a nossa humanidade.
Este “furto do lúdico”, conforme denomina Mar-
cellino (2002), acaba ocorrendo cada vez mais cedo
na infância. Quando Camargo (1998) afirma que o
faber emerge do ludens, é necessário salientar que
não necessariamente isso deva significar a imposição
de um sobre o outro, ou pior, a morte de um pelo su-
focar do outro. As rotinas de obrigações das crianças
que, além das obrigações escolares, são compelidas
a se dedicar a inúmeras outras atividades, priva-as
de uma vivência genuína do lúdico, como um espa-
ço de liberdade, criatividade e alegria. Novamente
é importante frisar que o lúdico não está restrito a
uma esfera específica, mas é no lazer que encontra
seu espaço/tempo privilegiado.

82
EDUCAÇÃO FÍSICA

83
RECREAÇÃO E LAZER

A Cultura, o Lúdico
e a Escola
Como estamos nos situando no universo da recre- Como já percebemos, o brincar está permeado
ação e do lazer, nesta unidade mais especificamente por um aspecto simbólico de profunda importância
na relação lazer, lúdico e educação, percebemos até na produção cultural humana. Além disso, brincar
aqui que o universo do lazer, principalmente sob a faz parte do processo de inserção cultural, “se expres-
ótica da educação, possui inúmeras possibilidades sa como linguagem e como processo de elaboração
de abordagens, e seria impossível um estudo exaus- de significados e sentidos coletivos, contextualiza-
tivo neste momento. Contudo, cabe ainda ressaltar, dos e enraizados no universo social que o legitima”
neste momento de nossa caminhada por este uni- (ISAYAMA; GOMES, 2008, p. 160). Por meio do
verso do lúdico, alguns aspectos que já pontuamos brincar, seja de forma espontânea ou não, somos in-
na primeira unidade quando estabelecemos o con- seridos nas relações sociais desde a mais tenra infân-
ceito operacional de lazer. cia. Portanto, a cultura, entendida num sentido mais

84
EDUCAÇÃO FÍSICA

amplo como aquilo que é produzido pela ação hu- da infância, e que cada vez mais vêm sendo nega-
mana, em contraposição àquilo que é meramente na- das à próprias crianças, que se forma a base de uma
tural, é apresentada à criança por meio de uma certa participação crítica e criativa”. Como consequência,
linguagem, ou seja, há um processo de enculturação podemos perceber cada vez mais uma redução na
ao qual a criança responde e no qual estamos inse- capacidade imaginativa, criativa e comunicativa na
ridos e somos reinseridos ao longo de nossas vidas. adolescência, juventude e até mesmo na fase adulta.

E não faltam estudos tentando detectar ‘cien-


REFLITA
tificamente’ as causas para esse efeito. Entre
aquelas são apontadas a ‘massificação’, o ‘des-
respeito aos dialetos das classes menos favo-
Você teve uma infância cheia de brincadeiras?
Quais foram as mais marcantes? Já refletiu recidas’, a ‘imposição da linguagem oficial’ etc.
sobre os valores que estas brincadeiras for- Sem deixar de levar em conta esses fatores, pen-
maram em você?! so que a ‘pobreza’ de experiência de vida huma-
na, e nela, à restrição do lúdico. E essa ‘pobreza’
não é exclusivamente de classes sociais. Nesse
aspecto todos somos pobres. É nesse senti-
do que entendo as crianças, consideradas por
O brincar, como elemento significativo e representa-
Korczak, como vítimas ‘da miséria’, ou ‘do ex-
tivo de diferentes culturas, perpassa diferentes mo- cesso’ (MARCELLINO, 2002, p. 57).
mentos históricos e diferentes delimitações geográ-
ficas. Uma brincadeira entrecruza histórias, tempos Apesar de ainda termos muita miséria em nosso país e
e espaços. Debortoli (2004, p. 20) afirma que: no mundo, experimentamos nos últimos anos uma sig-
nificativa redução da quantidade de miseráveis e uma
[...] não se brinca apenas com um objeto, brinca- melhoria significativa na qualidade de vida. Contudo,
-se com uma memória coletiva que muitas vezes
mesmo a positividade traz consigo alguns perigos, pois
transcende quem brinca e o próprio momento
da brincadeira: objetos, tempos, substâncias, re- como afirma Han (2015, p. 14), contemplamos um
giões, épocas, cidades, países, estações do ano, paulatino desaparecimento da alteridade, que é reflexo
rituais, aos mais amplos e ricos contextos huma- de uma época pobre de negatividades. O autor conside-
nos. Prefiro dizer que toda brincadeira consiste ra que os adoecimentos neuronais do século XXI não
num jogo, no sentido mais pleno da construção
têm mais uma dialética da negatividade, mas da positi-
de regras e instauração de uma dinâmica coleti-
va de significação de suas relações. vidade -“são estados patológicos devidos a um exagero
de positividade”-: (2015, p. 14). Em sua trajetória de ra-
O risco da modernidade que se exacerba cada vez ciocínio, Han considera que a carência faz com que as
mais naquilo que podemos denominar, na contem- pessoas busquem a absorção e a assimilação, mas com a
poraneidade, de modernidade líquida, é que a crian- superabundância surge o problema da rejeição e da ex-
ça como sujeito da ação e produção cultural é deixa- pulsão. A padronização deixa o ser humano vulnerável,
da de lado para se tornar uma mera consumidora de pois “o igual não leva à formação de anticorpos. Num
produtos culturais. Como afirma Marcellino (2000, sistema dominado pelo igual não faz sentido fortalecer
p. 40), “é através dessas atividades tão características os mecanismos de defesa” (HAN, 2015, p. 16).

85
RECREAÇÃO E LAZER

A civilização do consumo corre o risco da pa- ca nasce e se evidencia com os componentes alegria,
dronização e sua consequente vulnerabilização. riso, entusiasmo, prazer e divertimento, expressos
Além disso, a competição econômica cria um pa- pelos participantes em determinado contexto cultu-
drão de ser humano feliz. Cada vez mais podemos ral e social; por isso a íntima relação entre a cultura,
ter indivíduos passivos, meros consumidores dos em sentido amplo, e a ludicidade.
produtos culturais e cada vez menos produtores e Como mencionamos, um dos problemas que
exercitadores de sua criatividade. Um exemplo des- não é recente em nossa sociedade, mas que vem
te processo são os lançamentos constantes de jogos se exacerbando com o passar do tempo, é o mero
virtuais tanto para consoles quanto para smartpho- consumo do brinquedo, o que gera uma indústria
nes e tablets; as babás virtuais, denominadas assim cultural voltada para a criança, mas que arrefece um
por alguns. Como afirmam Dallari e Korczack movimento cultural da criança, como, o do fazer o
(1986, p. 64), parece haver um desejo, evidente ou brinquedo. Oliveira (1986, p. 35) afirma que “o há-
não, de que “a criança não incomode, mesmo que bito de crianças fazerem seus próprios brinquedos
sua alegria seja apenas aparente”. Neste contexto, perdeu muito terreno para a prática consumista de
como concluem os autores, há uma padronização comprar pronto”. Em alguns casos, quando o ímpe-
da própria alegria, que mata a espontaneidade e to da curiosidade irrompe nas crianças, são tolhidas
consequentemente a felicidade autêntica que ema- pelos adultos em nome da preservação do caro brin-
na genuinamente de seu interior. quedo comprado. Percebemos em algumas crianças
A manifestação cultural lúdica não está apenas mais novas um interesse maior pela embalagem do
no brinquedo e no brincar, segundo Oliveira (2007). que pelo próprio brinquedo, pois o que está em jogo
No brincar há uma experiência lúdica, mas que é a descoberta e a construção da realidade cuja liber-
transcende este meio. A manifestação cultural lúdi- dade de exploração é necessária.

86
EDUCAÇÃO FÍSICA

SAIBA MAIS A liberdade tem sido um problema para o desen-


volvimento da criança em muitos casos. Perceba
Um jardim de infância norueguês decidiu que o ambiente doméstico não é projetado ou con-
eliminar todos os brinquedos das salas. O cebido adequadamente para a exploração infantil.
resultado foi crianças muito mais criativas Tudo deve estar no seu devido lugar, em nome da
para brincar e criar.
As crianças tinham a disposição apenas caixas ordem doméstica. Como afirma Oliveira (1986), os
de papelão, mantas, tecidos, as almofadas do elementos naturais (terra, areia, madeira, folhas,
sofá, mesas e cadeiras. No lado de fora, ape- pedras etc.) são vistos como representantes do caos,
nas os aparelhos do playground e a natureza.
Logo depois da mudança observou-se que de uma desordem para o mundo adulto. Mesmo os
as crianças usaram mais a imaginação para brinquedos industrializados, que poderiam ofere-
criar adereços que precisavam durante as cer um rico potencial de peças para remontagem,
brincadeiras. As agulhas se transformaram
em espadas, caixas de papelão eram barcos podem ser cerceados em nome de sua preservação.
e folhas eram dinheiro. “A situação de quebra do brinquedo pode implicar,
Outro ponto foi que os conflitos entre as além disso, uma penalização da criança: um casti-
crianças reduziram e se tornou mais fácil para
todas as crianças brincarem. Afinal, se tudo go, o fato de ficar sem brinquedo ou uma surra”(O-
era imaginado, ninguém era dono de nada. LIVEIRA, 1986, p. 34).
O projeto foi tão bem sucedido que a creche O brincar, como processo criativo, vinculado
vai provavelmente continuar a ter períodos
livres de brinquedo. Especialmente do lado ao fenômeno da curiosidade (SANTIN, 1994) faz
de fora das classes. com que expressemos algo genuinamente humano
As crianças não reclamaram da experiência em nosso contato com a natureza e seus elemen-
nem expressaram saudades do brinquedo,
segundo a diretora. tos. Valorizar o brinquedo como transcendência
ao consumo e como forma de expressão cultural,
Fonte: Catraquinha (2015, on-line)3.
é valorizar a própria humanidade, atribuindo ao
brinquedo um papel fundamental para o desenvol-
vimento humano ligado à criatividade, à geração
do novo. O brinquedo pode se tornar um elemento
para o exercício dialético, ou seja, uma realidade
posta pode ser negada e dela surgir uma nova rea-
lidade. Este é o espiral do conhecimento, essencial
ao desenvolvimento humano, que necessita de um
espaço de liberdade para a produção cultural, não
apenas para seu consumo.
Além da imposição do universo do adulto
sobre a cosmovisão infantil, há o perigo, pelo
poupar de tempo, ao recorrer ao brinquedo
pronto, do que Roland Barthes (1980) deno-
mina de “aburguesamento do brinquedo”. A in-

87
RECREAÇÃO E LAZER

dústria, ao conceber os brinquedos, recorre ho-


diernamente, muito menos ao papel, à madeira,
ao ferro etc. e mais a elementos sintéticos, prin-
cipalmente os diferentes tipos de plásticos. Bar-
thes (1980, p. 42) afirma que:

[..] o aburguesamento do brinquedo não se


reconhece só pelas suas formas, sempre fun-
cionais, mas também pela sua substância. Os
brinquedos vulgares são feitos de uma matéria
ingrata, produtos de uma química e não de uma
natureza. Atualmente muitos são moldados em
massas complicadas: a matéria plástica tem as- Esta lógica da indústria cultural faz com que produ-
sim uma aparência simultaneamente grosseira
tos sejam adaptados ao consumo massificado e no
e higiênica, ela mata o prazer, a suavidade, a
humanidade do tato. [...] O brinquedo é dora- qual ela mesma determina este consumo. Um dos
vante químico, de substância e de cor; a própria problemas gerados pela indústria cultural ao mas-
matéria-prima de que é constituído leva a uma sificar seus processos é gerar a falsa sensação no
cinestesia da utilização e não do prazer.
consumidor de que é ele quem está no comando,
sujeito do processo, quando na verdade não passa
A concepção dos brinquedos industrializados é de um objeto. A lógica da mass media, termo que
realizada por adultos, bem como sua confecção, pode substituir indústria cultural em determinados
sua promoção - em grande parte pela mídia volta- contextos, é que não são as massas o fiel da balança,
da ao público infantil - e, em muitos casos, a aqui- mas a própria indústria cultural (ADORNO, 1971).
sição também é realizada pelo adulto. Isso é uma
mera imposição cultural do adulto à criança, que Na medida em que nesse processo a indústria
cultural inegavelmente especula sobre o esta-
além de reforçar a lógica do adulto em miniatura,
do de consciência e inconsciência de milhões
cria consumidores dentro da lógica do modo de de pessoas às quais ela se dirige, as massas não
produção capitalista. Barthes (1980, p. 36) adverte são, então, o fator primeiro, mas um elemento
que mesmo o brinquedo artesanal e semi-indus- secundário, um elemento de cálculo; acessório
trial pode entrar nesta lógica consumista. “Impor- da maquinaria. O consumidor não é rei, como
a indústria cultural gostaria de fazer crer [...].
ta analisar como esses produtos do divertimento,
As massas não são a medida mas a ideologia
criados num sistema específico de relações entre da indústria cultural, ainda que esta última não
produção, venda e consumo, encerram [...] signi- possa existir sem a elas se adaptar (ADORNO,
ficados expressivos”. 1971, p. 288).

88
EDUCAÇÃO FÍSICA

Percebemos, portanto, que o furto do lúdico, como Cada vez mais vemos um aumento nas barrei-
denomina Marcellino (2002), pode estar relaciona- ras para que, principalmente, as crianças deixem de
do também à grande indústria de massa, voltada ser meras consumidoras de cultura e passem a ser
especificamente para o público infantil. A lógica produtoras. Vale observar que, principalmente em
da indústria e, consequentemente, do comércio e a grandes cidades, umas das barreiras é a limitação de
venda com vista ao lucro, obviamente, deixam em espaço, em primeiro lugar, mas que pode estar dire-
segundo plano aspectos como conteúdo se seus pro- tamente atrelada ao fator tempo. Discutiremos mais
dutos, apesar de todas as leis em torno do comércio detidamente esta questão na próxima unidade.
em território nacional - já insuficientes na dinâmica Outra barreira à produção cultural, como já
do comércio globalizado. mencionamos, ainda é, infelizmente, a exploração
A lógica da indústria cultural é a do sempre igual, da mão de obra infantil, que reduziu nos últimos
mas com roupagens diferentes, para que sempre se anos no Brasil, mas que ainda está presente em
consuma o igual na essência, mas diferente na esté- nossa sociedade. Pior do que isso, ainda é possível
tica, gerando um status, por se ter o mais novo pro- encontrar famílias inteiras em regime de trabalho
duto do mercado. “Toda práxis da indústria cultural escravo. Como falar em conhecimento, apreensão
transfere, sem mais, a motivação do lucro às criações cultural? Como tratar de uma criticidade das vi-
espirituais” (ADORNO, 1971, p. 288). A ideologia vências e imposições da indústria cultural? Como
da indústria cultural, neste sentido, não promove estimular uma criação, criatividade, produção
uma autonomia, consciência, mas um conformismo, cultural, independente da faixa etária? Portanto,
por meio do qual não há possibilidade de confronta- como qualquer assunto que envolva o ser huma-
ção ou transformação da ordem estabelecida. no em sociedade, é necessário conceber o proble-
Como conclui Adorno (1971, p. 294), “a cons- ma da cultura, do lúdico e, consequentemente, da
trução ideológica da indústria cultural não visa educação numa perspectiva mais ampla, atrelada a
uma vida feliz, mesmo que discurssem assim, nem várias outras esferas que compõem o rico mosaico
mesmo à uma nova arte da responsabilidade moral”, da vida em sociedade.
mas a uma conformidade aos interesses dos podero- O furto do lúdico ocorre, como salienta Mar-
sos. Há uma falsa satisfação gerada, que pode durar cellino (2002), não apenas pelas privações de es-
pouco tempo, concebida de forma a compensar um paço/tempo, mas também pela bem-intencionada
vazio existencial, que pode até gerar uma “sensação transformação de elementos que no lazer são po-
confortável de que o mundo está em ordem” mas tencialmente lúdicos para meios de aquisição de
que “frustra-as na própria felicidade que ela iluso- conhecimento no processo educativo, em atividade
riamente lhes propicia”. Isso impede a construção da utilitária. A lógica da fruição, se é que ela tem uma
autonomia de indivíduos que pensem e ajam cons- lógica, racionalmente concebida, é a preparação
cientemente, e, por consequência, sejam mais con- para o futuro, a formação de um indivíduo pro-
tentes, com uma vida mais significativa. dutivo, que é justamente a lógica burguesa, pois a

89
RECREAÇÃO E LAZER

aprendizagem é necessária à vida adulta, à negação cionalista e instrumental do brincar. Quando o brin-
do ócio: negócio. O jogo, nesta dinâmica utilitária, car, como elemento cultural, se torna passivo, não há
funcionalista, é instrumentalizado para treinar, ou espaço para a criatividade, mas à mera reprodução
adestrar, partindo do pressuposto de que sempre em conformidade à uma realidade imposta. É óbvio
deseja ser “gente grande”, quando na verdade, ao que o adulto pode preservar a rica cultura produzi-
que tudo indica, a criança é estimulada a crescer e da pelas gerações anteriores e transmitir às gerações
o adulto deseja reviver a infância. mais novas, isto é educação, e é um dever. Contudo,
devemos lutar para que as barreiras que impedem as
crianças de transcenderem o mero dado sejam su-
peradas e haja efetivamente uma produção cultural
da criança, e não apenas para a criança. Como afir-
ma Oliveira (2007, p. 132), a referência, de maneira
geral, é de “manutenção da ordem social vigente a
ser aceita de forma submissa e acrítica”. Nesta lógica,
não há luta pela alegria, ludicidade, prazer, “vivência
temporária do não-real, do não-usual e da fantasia
– elementos centrais do brincar e que permeiam as
atividades de lazer”, pois eles são justamente brechas
que podem vir a solapar a ordem social vigente.
O brinquedo como um elemento cultural significa- E a escola? Como fica diante deste confronto en-
tivo, dotado de uma linguagem específica que tem tre uma cultura imposta e a necessidade uma produ-
em si, potencialmente, a capacidade lúdica, corre o ção cultural genuína? Ela está, e nisto consideremos
risco de se tornar um “microcosmo adulto”. Nesta professores, alunos, coordenadores, diretores etc.,
perspectiva, torna-se mais um elemento de utilita- em meio a uma disputa; diante de exigências para a
rismo dominante, como uma imposição da cultu- formação do mercado de trabalho, do mundo do ne-
ra adulta à infância. Com isso, corre-se o risco de gócio, e da educação para o lazer, para brincar, para
uma padronização da infância, da cultura infantil, a o lúdico. Como afirma Snyders (1988, p. 196):
essencialmente lúdica, aceitando tacitamente uma
heteronomia adulta. “Brinquedos/mercadorias, [...] o drama da escola é que muitos alunos re-
correm a ela em busca de como se desenvolver
brinquedos/álibis da convivência inválida, para a
em uma direção que os atrai, mas a orientação
mera demonstração de uma falsa felicidade adulta” imposta consegue com frequência restringir até
(MARCELLINO, 2002, p. 69). mesmo a força de desejar. A escola, lugar onde
Quando a criança se encontra no patamar de se educam os futuros trabalhadores – ou lugar
mera consumidora da cultura adulta, e neste caso onde se renuncia educá-los? O medo de tornar
(ou continuar) se renuncia a educá-los? O medo
não estamos apenas nos referindo à indústria cul-
de formar (ou continuar) trabalhador, peque-
tural, mas a qualquer meio de imposição cultural à no empregado substitui o medo do inferno – e
criança, de forma geral, caracteriza-se a visão fun- quase não se progride em direção a alegria.

90
EDUCAÇÃO FÍSICA

[...] a escola preenche duas funções: preparar o


Apesar de não ser o objeto específico de nossa dis- futuro e assegurar ao aluno as alegrias presen-
cussão, estes questionamentos nos levam a outros tes durante esses longuíssimos anos de escola-
bem mais profundos, reflexões que permeiam a ridade que a nossa civilização conquistou para
filosofia da educação. A primeira é justamente so- ele (SNYDERS, 1993, p. 27).

bre qual seria a vocação, o chamado da escola, para


Snyders (1993), é construir pontes entre as pessoas Isto é tão sério e relevante para os dias atuais que
e a cultura esta é arte de todos os envolvidos na autores como Diamandis e Kotler (2012) veem que a
educação: a do pontífice, do construtor de pontes ludicidade, a diversão, e por que não dizer a alegria,
- construir caminhos para que passemos juntos de já não seriam suficientes diante de uma competição
um lugar a outro no conhecimento. A educação é pela atenção de nossas crianças e jovens. A cultura
“local de apropriação cultural, superação rumo à tecnológica e a produção midiática se tornaram ad-
alegria cultural através da vivência de certas con- versários em muitos casos para a escola tradicional,
dições de comunicação, de adaptação e de apoio de com recursos limitados à lousa e giz.
pessoa a pessoa”. Conclui sua reflexão reportando-
-se à posição freudiana de que a escola tem a mis- Em meio à internet, videogames e aqueles 500
canais de TV a cabo, a competição pela aten-
são de “integrar o mais secreto, o mais inquietante
ção das crianças tornou-se implacável. Se o
do afetivo com o discernimento racional” (SNY- tédio é a causa número um da evasão escolar,
DERS, 1993, p. 90; 95). então o nosso sistema educacional novo preci-
Quando olhamos para o século XXI, com sa ser eficaz, escalonável e altamente divertido.
sua riqueza e diversidade midiática, percebemos Na verdade, altamente divertido pode não ser
suficiente. Se quisermos realmente preparar
que o desafio não é tão simples assim. Quantas
nossas crianças para o futuro, o aprendiza-
pontes estão construídas. Lindas pontes, mas do precisa se tornar viciador (DIAMANDIS;
que levam a lugares questionáveis, e pior, sem KOTLER, 2012, p. 224).
opções. Tornam as pessoas ovelhas de rebanho,
em vez de de cabritos monteses. Permitam ana-
logia, mas pensem em quantos adultos infelizes
que foram crianças cheias de vida, que aos pou-
cos foram sendo domesticadas, padronizadas,
arrebanhadas e, como ovelhas de um rebanho,
tiveram suas identidades furtadas. Tinham po-
tencial para explorar as grandes montanhas do
conhecimento, mas foram vítimas dos medos
que tolheram os ímpetos da curiosidade infantil,
dos sonhos, da essência lúdica. A única forma
de um aluno não se distrair ou se enfadar com a
escola é se alegrando nela e com ela.

91
RECREAÇÃO E LAZER

Como já dissemos, não é apenas a preparação para o outra consigam desfrutar de um pouco de diversão
futuro, mas um equilíbrio entre a cultura acumulada em meio ao tédio.
ao longo do tempo, a alegria do conhecimento pre- A escola necessita, portanto, fundamentar sua
sente e a esperança criativa para o futuro. Contudo o práxis em conteúdos que sejam significativos e te-
que chama mais atenção na citação anterior é que a nham ligação com a cultura na qual os sujeitos es-
diversão tão propalada em alguns círculos educacio- tejam inseridos. Neste sentido, no mínimo, seria
nais como a panaceia para a crise educacional pode necessária uma anamnese para que o professor co-
não ser suficiente, pois, segundo os autores, não se nhecesse a realidade de seu alunado e gerasse algo
trata apenas de ser divertido, mas viciante, como os que propiciasse maior aproximação e vínculo entre
grandes concorrentes da educação conseguiram fa- ambos. Com isso, uma produção coletiva diante dos
zer, por meio de seus produtos. diferentes conteúdos, dos quais os brinquedos, jogos
O risco de não nos conscientizarmos desta e brincadeiras fazem parte, seria viável e natural, e
situação e não refletirmos para encontrarmos so- por que não dizer, divertida, lúdica, sem necessaria-
luções que lidem com a cultura, sem necessaria- mente uma instrumentalização do lúdico.
mente instrumentalizar o lúdico, é cedermos a um
pacto da mediocridade: o professor finge que ensi- A escola deveria ser um lugar de alegria para
os alunos e também para os professores. [...]
na e o aluno finge que aprende. Para que não haja
Eu gostaria que o trabalho dos alunos na esco-
aborrecimentos diante da necessidade imposta la fosse vivido de modo bastante diferente: as
da presença nos bancos escolares, os alunos re- obrigações, inevitáveis tanto num caso como
signam-se para evitar problemas maiores e cum- no outro, não representam aqui condições de
prem o papel que se espera. Estarão, como afirma produtividade e de lucro, mas etapas em dire-
ção à alegria – a menos que se chegue ao ex-
Snyders (1988, p. 189), “muito felizes se puderem
tremo de dizer que o trabalho escolar poderia
eliminar o desagradável de algumas compensa- ser o exemplo precursor do que será o trabalho
ções recreativas, se puderem criar uma atmosfera adulto livre (SNYDERS, 1993, p. 33).
‘simpática’ com um professor ‘simpático’”. Ainda
de acordo com o autor, mesmo que isto não tenha
nenhum significado efetivo,

ainda que isto não responda a nenhum de seus


problemas, não os ‘alimente’ realmente e perma-
neçam a cem léguas de tudo aquilo que há de im-
portante em sua vida e na cultura elaborada ao
menos o tempo exigido naquela cultura imposta
(Snyders, 1988, p 189),

Com exigências produtivas segundo a lógica do


adulto, que em sua maioria está associada à lógica
do modo de produção vigente, pode ser que hora ou

92
EDUCAÇÃO FÍSICA

É claro que estamos tratando especificamente do la- O fato é que não é tão simples dosar a ale-
zer da criança e do direito à alegria, para além das gria sem abdicar do papel de educador, indepen-
obrigações, principalmente a escolar, mas vale lem- dentemente se está na escola ou não, pois mesmo
brar que a alegria que se tem no lazer deve instigar o no lazer, não há apenas o aspecto da “curtição”,
questionamento do porque não seria assim também do fruir, mas há necessidade de dedicação e dis-
na escola. A alegria na escola traria consigo prazer ciplina. A alegria verdadeira requer certo rigor,
pelo presente em ser o que é, com as vantagens e não é um “deixe rolar”, “deixe acontecer”. A ale-
desvantagens da faixa etária, vislumbrando as ricas gria duradoura está baseada em disciplina. Estas
possibilidades do devir, sem necessariamente perder relações precisam estar claras para os educado-
o espírito lúdico da infância, mas também sem ne- res, pois, por vezes, em nome da alegria, as au-
cessariamente infantilizar o adulto. “Felicidade por las perdem seus objetivos e se confundem com
crescer e continuar a viver seu passado infantil sem o próprio lazer, num tempo reservado a um tipo
amargura” (SNYDERS, 1993, p. 60). de obrigações, inerente a própria vida. O lazer
Boas perguntas para fazermos a nossos alunos pode até ocorrer na escola, mas fora do tempo
seriam se eles consideram a escola um local de ale- das obrigações, utilizando sua estrutura como
gria ou tristeza; quais momentos em que há alegria um equipamento não específico de lazer.
na escola; se há na escola adultos que brincam; entre Não podemos deixar de salientar que, em mui-
outras. Isso nos levaria, como professores(as), a re- tos momentos, a escola se torna um ambiente hostil,
fletir sobre estratégias para tornar a escola cada vez difícil de suportar, se colocada ao lado dos momen-
mais alegre. Vale lembrar que a escola tem seu papel tos livres de lazer. Nestes momentos não há as pres-
específico e não deve abrir mão do oferecimento da sões de atingir metas, passar por avaliações, lidar
cultura às novas gerações, pensando o que aqueles com obrigações de atividades por vezes em sentido,
conteúdos podem gerar para uma vida plena, ínte- cuja pergunta por vezes é: onde aplico isso em mi-
gra e com sentido. nha vida? O lazer, que ocorre na extra escolaridade,
Um risco que podemos correr é querer igualar como denomina Snyders (1993, p. 37), é, de maneira
o tempo das obrigações escolares ao lazer. A escola geral, uma atividade opcional.
necessita reencontrar sua própria alegria, a alegria
da curiosidade, da descoberta, do acesso ao conhe- [...] muitas das atividades da vida extra escolar
(esporte, música) se orientam para fins próxi-
cimento de forma autônoma e responsável. A alegria
mos, estão pouco preocupados em preparar
pode estar na própria condição gregária do ser hu- para ao futuro e não pesam portanto como pre-
mano e nas trocas de experiências, no compartilhar, ocupações distantes, mesmo quando o resulta-
nas coproduções, nas cooperações, mais do que nas do é medíocre.
competições. Condições que, por vezes, são subtra-
ídas de nossos alunos em nome de um discurso de Neste sentido é que está posto o grande desafio de
disciplina e organização: uma sala de aula organiza- resgatar a alegria na escola e da escola, sem que
da, alunos enfileirados, copiando a matéria do qua- ela se confunda com o próprio lazer, seja em que
dro e sonhando com o momento de mais liberdade. disciplina for.

93
RECREAÇÃO E LAZER

O aluno corre o perigo de sentir-se vencido obrigações com o prazer de estar descobrindo, como
pela escola (“eles” são mais fortes, tenho que ir à um sujeito do processo e não como um mero objeto.
escola), enquanto meu problema, minha tarefa
e meu tormento são estudar como a alegria es-
O adulto amará a juventude não só pelo que ela
colar pode levar a melhorar sobre as alegrias da
promete ser, mas pelo que ela já é, ou seja, um
cultura inicial e da cultura do lazer (SNYDERS,
período que merece ser vivido, ao invés de um
1993, p. 50).
mero tempo de exercícios, nos dois sentidos da
palavra (SNYDERS, 1993, p. 30).
Este incômodo demonstrado deveria ser o de todo
professor comprometido com o ser humano, em pri- A escola não será um lugar de projeções futurísticas
meiro lugar, e que contribui com a humanidade por apenas, mas de vivência do lúdico sem negociar seus
meio de um meio tão relevante e precioso como a objetivos e valores. Um espaço/tempo em que, de
educação formal. O aluno deve ser motivado a gos- forma lúdica, alegre, pela própria essência do desco-
tar da fase que está vivendo, a fruir de tudo que ela brir, do aprender e do produzir conhecimento ocor-
pode oferecer e não apenas esperar que a alegria es- ra uma dinâmica de apreensão e produção cultural
teja no futuro. Aprender a equilibrar as disciplinas e pelos alunos sujeitos do processo.

94
considerações finais

Caro(a) aluno(a), a compreensão das relações entre lazer, lúdico e educação é de


suma importância para a formação profissional em Educação Física. Ter claro
os potenciais educativos do lazer, quer como veículo, quer como objeto, defla-
gra uma série de reflexões necessárias à atuação profissional. Além disso, o lazer
como lócus privilegiado para o lúdico estabelece uma relação natural com a in-
fância e a necessidade de garantia do direito à alegria nesta faixa etária.
Como pudemos perceber, os debates que afloram destas relações são amplos
e variados; um rico campo de pesquisa e reflexões. Possivelmente esta tenha sido,
para muitos, a primeira oportunidade de reflexão acerca do potencial que o lazer
possui para o desenvolvimento do ser humano em suas múltiplas facetas.
O lazer, enquanto veículo de educação, carrega uma infinidade de conteúdos
culturais que devem levar seus participantes a um processo de autoconhecimen-
to, em primeiro lugar, mas que não ocorre sem o conhecimento do outro e do
ambiente que o cerca. Destas relações emergem outros temas, como, por exem-
plo, a ética. Perceba como se tornam ricas as reflexões sobre o ser humano em
suas múltiplas facetas.
Quando estabelecemos a relação com a infância, o mesmo processo é defla-
grado. Infância, lazer e direito à alegria nos remetem ao processo de construção
histórica do modelo de criança em diferentes épocas e o que isto reflete no aspec-
to da ludicidade e no lazer.
Todos estes aspectos devem manter clara a concepção de que a educação pos-
sui uma complexidade e importância muito grande para a vida humana. Portan-
to, independente de sermos educadores nos modelos formais ou não formais,
nossa responsabilidade é de cada dia mais, paulatinamente, aumentarmos nosso
repertório, nosso conhecimento nas mais diferentes áreas do conhecimento, para
uma compreensão cada vez maior do ser humano. Esta aprendizagem cumulativa
deve redundar numa ação consciente, engajada e não alienada.

95
LEITURA
COMPLEMENTAR

É BRINCANDO QUE SE APRENDE...


No meu tempo parte da alegria de brincar estava na balê, aula de judô, aula de inglês, aula de equitação,
alegria de construir o brinquedo. Fiz caminhõezinhos, aula de computação - não lhes sobra tempo para fa-
carros de rolemã, caleidoscópios, periscópios, aviões, zer brinquedos para os filhos. ( Será que as crianças de
canhões de bambu, corrupios, arcos e flechas, cataven- hoje sabem que os brinquedos podem ser fabricados
tos, instrumentos musicais, um telégrafo, telefones, um por eles?). Hoje, quando a menina quer boneca, a mãe
projetor de cinema com caixa de sapato e lente feita com não faz a boneca: compra uma boneca pronta que faz
lâmpada cheia d’água, pernas de pau, balanços, gangor- xixi, engatinha, chora, fala quando a gente aperta um
ras, matracas de caixas de fósforo, papagaios, artefatos botão, e é logo esquecida no armário dos brinquedos.
detonadores de cabeças de pau de fósforo, estilingues. Pobres brinquedos prontos! Vindo já prontos, eles nos
Fazendo estilingues desenvolvi as virtudes necessárias roubam a alegria de fazê-los. Brinquedo que se faz é
à pesquisa: só se conseguia uma forquilha perfeita de arte, tem a cara da gente. Brinquedo pronto não tem
jaboticabeira depois de longa pesquisa. Pesquisava a cara de ninguém. São todos iguais. Só servem para o
forquilhas - as mesmas que inspiraram Salvador Dali - tráfico de inveja que move pais e filhos, como esse tal
exercendo minhas funções de ´controle de qualidade´ ´bichinho virtual...´
- arte que alguns anunciam como nova mas que existiu Fiquei com vontade de fazer um sinuquinha. Naquele
desde a criação do mundo: Deus ia fazendo, testando e tempo não havia para se comprar. Mesmo que houvesse
dizendo, alegre, que tinha ficado muito bom. Eu ia com- não adiantava: a gente era pobre. Como tudo o que vale
parando a infinidade de ganchos que se encontravam a pena nesse mundo, a fabricação começava com um ato
nas jaboticabeiras com o gancho ideal, perfeito, simé- intelectual: pensamento: quem deseja pensa. O pensa-
trico, que existia em minha cabeça. Pois ´controle de mento nasce no desejo. Era preciso, antes de construir o
qualidade´ é isso: comparar o ´produto´ real com o sinuquinha de verdade, construir o sinuquinha de men-
modelo ideal. As crianças já nascem sabendo o essen- tira, na cabeça. Essa é a função da imaginação. Antes de
cial. Na escola, esquecem. Piaget eu já sabia os essenciais do construtivismo: meu
Os grandes, morrendo de inveja mas sem coragem conhecimento começava com uma construção mental
para brincar, brincavam fazendo brinquedos. As mães do objeto. Diga-se, de passagem, que o homem vem
faziam bonecas de pano, arte maravilhosa hoje só cul- praticando o construtivismo desde o período da pedra
tivada por poucas artistas. As mães modernas são de lascada. Piaget não descobriu nada: ele só descreveu
outro tipo, sempre muito ocupadas, correndo prá lá aquilo que os homens (e mesmo alguns animais) sem-
e prá cá, motoristas, levando as crianças para aula de pre souberam.

96
LEITURA
COMPLEMENTAR

[...]
Deliciei-me com uma estoria do ´Pato Donald´. O pro- Brinquedo é qualquer desafio que a gente aceita pelo
fessor Pardal, cientista, resolveu dar como presente de simples prazer do desafio - sem nenhuma utilidade. São
aniversário ao Huguinho, Zezinho e Luizinho, brinquedos muitos os desafios. Alguns são desafios que tem a ver
perfeitos. Fabricou uma pipa que voava sempre, mesmo com a habilidade e a força física: salto com vara, encaça-
sem vento. Um pião que rodava sempre, mesmo que fos- par a bola de sinuca; enfiar o pino do bilboquê no buraco
se lançado do jeito errado. E um taco de beisebol que da bola de madeira. Outros tem a ver com nossa capaci-
sempre acertava na bola, mesmo que o jogador não es- dade para resolver problemas lógicos, como o xadrez, a
tivesse olhando para ela. Mas a alegria foi de curta dura- dama, a quina. Já os quebra-cabeças são desafios à nossa
ção. Que graça há em se empinar uma pipa, se não existe paciência e à nossa capacidade de reconhecer padrões.
a luta com o vento? Que graça há em fazer rodar um pião É brincando que a gente se educa e aprende. Cada pro-
se qualquer pessoa, mesmo uma que nunca tenha visto fessor deve ser um ´magister ludi´, como no livro do Her-
um pião, o faz rodar? Que graça há em ter um taco que mann Hesse. Alguns, ao ouvir isso, me acusam de querer
joga sozinho? Os brinquedos perfeitos foram logo para o tornar a educação uma coisa fácil. Essas são pessoas
monte lixo e os meninos voltaram aos desafios e alegrias que nunca brincaram e não sabem o que é o brinquedo.
dos brinquedos antigos. Quem brinca sabe que a alegria se encontra precisamen-
Todo brinquedo bom apresenta um desafio. A gente olha te no desafio e na dificuldade. Letras, palavras, núme-
para ele e ele nos convida para medir forças. Aconteceu ros, formas, bichos, plantas, objetos (ah! o fascínio dos
comigo, faz pouco tempo: abri uma gaveta e um pião que objetos!), estrelas, rios, mares, máquinas, ferramentas,
estava lá, largado, fazia tempo, me desafiou: ´ - Veja se comidas, músicas - todos são desafios que olham para
você pode comigo!´ Foi o início de um longo processo de nós e nos dizem: ´Veja se você pode comigo!´ Professor
medição de forças, no qual fui derrotado muitas vezes. bom não é aquele que dá uma aula perfeita, explicando
É preciso que haja a possibilidade de ser derrotado pelo a matéria. Professor bom é aquele que transforma a ma-
brinquedo para que haja desafio e alegria. A alegria vem téria em brinquedo e instiga o aluno a brincar. Depois de
quando a gente ganha. No brinquedo a gente exercita o cativar o aluno, não há quem o segure.
que Nietzsche denominou ´vontade de poder´.
Fonte: Alves (2014, on-line)4.

97
atividades de estudo

1. O lazer, como veículo de educação, tem em si uma potencialidade de de-


senvolvimento pessoal e social dos indivíduos. À luz desta afirmação, Mar-
cellino (2000) considera que ele cumpre objetivos consumatórios e instru-
mentais. Discorra sobre cada um destes dois objetivos.

2. Além ser veículo de educação, o lazer também deve ser objeto de educa-
ção, tanto da educação formal (que ocorre de forma sistematizada, privile-
giadamente na escola) quanto da educação não formal (de forma não sis-
tematizada, que ocorre fora das instituições dedicadas ao ensino). Neste
sentido, explique o lazer enquanto objeto da educação.

3. As classificações homo sapiens, o homo faber e o homo ludens estão presen-


tes em nossa natureza humana. Elas estão emaranhadas e manifestam
elementos fundamentais da essência do ser humano. A dosagem de cada
uma dessas facetas determina os valores que cada indivíduo e socieda-
de priorizará. Neste sentido, exponha elementos fundamentais para a
compreensão do homo ludens.

4. Podemos perceber que há grande embasamento legal para que se asse-


gure o direito das crianças de vivenciar sua essência lúdica. A criança é um
cidadão, com suas singularidades, bem como com suas pluralidades. O
lazer é um desses direitos garantidos por lei. Contudo, infelizmente, ainda
é visto como não tão urgente, diante de outros direitos sociais mais urgen-
tes. Discorra sobre esta problemática da privação ao lazer e ao brincar
apontando ao menos uma solução para sua superação.

5. A criança encontra meios de expressão simbólica de experiências e dese-


jos por meio do lúdico, segundo Marcellino (2002). O lúdico, nesse senti-
do, é a linguagem inerente ao brincar que não está restrito ao universo
infantil, mas deveria contagiar o lazer em todas as etapas da vida. Vigot-
sky (1984), Piaget (1983), Winnicott (1975), Friedmann (1996) entre outros
autores, ao investigarem o universo do brincar, voltaram-se necessaria-
mente ao universo infantil. Assim, explique a relação essencial entre a
criança e o brincar.

98
EDUCAÇÃO FÍSICA

Lazer e Educação
Nelson Carvalho Marcellino
Editora: Papirus
Sinopse: o livro é fruto da dissertação de mestrado do autor na
área de Filosofia da educação. Ele busca verificar as relações entre
o lazer, a escola e o processo educativo, com vistas a uma alternativa pedagógica. O autor
realiza uma reflexão filosófica sobre o lazer como elemento pedagógico de significação, pro-
pondo fundamentos para a pedagogia da animação. Analisa a relevância do papel da escola
na relação com lazer, ora como instrumento, ora como objeto da educação. Analisa os mal
entendidos sobre os temas lazer e educação; discorre sobre o duplo aspecto educativo do
lazer; os equívocos na relação lazer e escola; e por fim, propõe elementos para o que deno-
mina “Pedagogia da Animação”.
Comentário: a obra é de profunda relevância para os estudos do lazer de forma geral e mais
especificamente para a relação lazer e escola. O autor é profícuo nos escritos sobre o tema,
sendo um dos mais respeitados nesta temática.

Brincante
Ano: 2014
Sinopse: Brincante é um documentário de sobre Antônio Nóbrega,
um artista mambembe de um teatro itinerante. Seus espetáculos,
que percorrem todo Brasil, são compostos por fantoches, truques,
música, dança e teatro. As apresentações são de teor lúdico infantil, apesar de críticas saga-
zes ao mundo adulto. Não há uma distinção entre o que costumeiramente denomina-se de
cultura erudita e cultura popular, pois no documentário ambas estão amalgamadas.

99
RECREAÇÃO E LAZER

Instituto Brincante
O Instituto Brincante, busca resgatar, conhecer, assimilar e recriar manifestações artísticas
brasileiras, numa perspectiva da nossa rica diversidade cultural. Pesquisa e reelabora da cul-
tura brasileira, com vistas a propiciar novos valores e modos de ser que propiciem ao indiví-
duo novas maneiras de pensar e viver a sociedade contemporânea. Sua Missão é: promover
o enriquecimento humano por meio do estudo e da pesquisa da arte e da cultura brasileiras,
formando e capacitando jovens, crianças, artistas e educadores e contribuindo para ampliar
sua consciência cultural e social. Sua Visão é: ser reconhecido pelos seus mantenedores e
pelo público em geral como um centro de referência irradiador da cultura brasileira e forma-
dor de intérpretes e educadores.
Para conhecer mais, acesse o link disponível em: <http://www.institutobrincante.org.br/>.

Escola da Ponte
A Escola da Ponte é, nas palavras de Rubem Alves, “a escola que sempre sonhei sem imaginar
que pudesse existir”, título de um livro sobre ela, publicado pela Papirus Editora. O modelo
pedagógico da escola rompe com os modelos tradicionais. O espaço é partilhado por todos,
não há separação de turmas, não há sinais sonoros, não há competição, mas muita coopera-
ção. É um espaço de jogo, divertido, mas com regras, construídas coletivamente.
Para conhecer mais, acesse o link disponível em: <http://www.escoladaponte.pt/>.

100
referências

ADORNO, T. W. A indústria cultural. In: COHN, G. ______. Lazer e qualidade de vida. In: MOREIRA,
Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Com- W.W. (org.). Qualidade de vida: complexidade e
panhia Editora Nacional/EDUSP, 1971. educação. Campinas: Papirus, 2001.
ALVES, R. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Pla- ______. Pedagogia da animação. 4. ed. São Paulo:
neta do Brasil, 2008. Papirus: 2002.
BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980. OLIVEIRA, P. S. Brinquedo e indústria cultural. Pe-
CAMARGO, L. O. L. Educação para o lazer. São trópolis: Vozes, 1986.
Paulo: Moderna, 1998. OLIVEIRA, D. T. R. de. Brinquedos e brincadeiras
DALLARI, D.; KORCZAK, J. O direito da criança ao populares no Programa Esporte e Lazer da Cidade.
respeito. São Paulo: Summus, 1986. In: BRASIL. Brincar, jogar, viver. Programa Esporte
DEBORTOLI, J. A. O. Brincadeira. In: GOMES, C. L. e lazer na Cidade. v.1. n.1. Jan. 2007. p. 127-138.
(org.). Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio
Autêntica, 2004. de Janeiro: Zahar, 1983.
DIAMANDIS, P. H.; KOTLER, S. Abundância: o futuro SANTIN, S. Educação Física: da alegria do lúdico à
é melhor do que você imagina. São Paulo: HSM, 2012. opressão do rendimento. Porto Alegre: EST, 1994.
FRIEDMANN, A. Brincar: crescer e aprender: o res- SNYDERS, G. A alegria na escola. São Paulo: Ma-
gate do jogo infantil. São Paulo: Moderna, 1996. nole, 1988.
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to da cultura. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. escola a partir de textos literários. Rio de Janeiro: Paz
HAN, B. C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, e Terra, 1993.
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ISAYAMA, H. F.; GOMES, C. L. Lazer e as fases da Paulo: Martins Fontes, 1984.
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2
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3
Em: <https://catraquinha.catracalivre.com.br/geral/aprender/indicacao/jardim-de-infancia-da-noruega-reti-
ra-brinquedos-das-salas-o-resultado-foi-criancas-mais-criativas/>. Acesso em: 29 maio. 2017.
4
Em: <http://pre.univesp.br/e-brincando-que-se-aprende#.WS10C-vyuUl>. Acesso em: 30 maio. 2017.

101
gabarito

1. Os objetivos consumatórios estão ligados ao rela- 4. Para superar a problemática apresentada é funda-
xamento, à contemplação, e ao prazer que determi- mental que as crianças tenham garantido acesso a um
nadas práticas proporcionam. Em muitos casos, a lócus (tempo/espaço) para a vivência do lúdico. Neste
aparência é de que não se está fazendo nada, mas lócus, deve ser estimular a criatividade, a produção
quando atrelado a um processo educativo de educa- cultural e não apenas o consumo e a reprodução da
ção “para” e não “pelo”, é justificável e necessária a cultura do adulto. Não devemos focar apenas na for-
fruição destes momentos, que poderá favorecer en- mação para o futuro, mas na realidade presente, na
tão um ambiente de educação sim “pelo” lazer, aliás criança como um sujeito presente. A criança corre o
com grande potencial educativo. risco de que o universo das obrigações prive, paulatina
Os objetivos instrumentais são aqueles associados à e sorrateiramente, a vivência do lúdico, por isso ações
realidade concreta e sua compreensão. Há um desen- que priorizam o lúdico devem ser a marca fundamen-
volvimento pessoal e social envolvidos nestas práti- tal da infância, com a vivência dos jogos, brinquedos
cas. A sensibilidade, em vários aspectos, é estimulada e brincadeiras. As barreiras ao lazer, que são peculia-
pelas atividades recreativas. Tanto um crescimento res a cada fase da vida, e as condições econômicas,
das questões mais intrínsecas de crescimento intelec- sociais e culturais, também devem ser superadas por
tual, físico, estético etc., quanto oportunidades para meio de ações políticas que garantam efetivamente os
novos relacionamentos estreitamentos de outros. direitos de todo cidadão. Na infância, apesar de todo
respaldo legal, ainda há crianças que têm responsa-
2. Este lazer é ensinado. Isto é necessário pois a so- bilidades no orçamento familiar e/ou são responsá-
ciedade capitalista restringe o tempo para a fruição veis pelo trabalho doméstico de maneira exacerbada.
em virtude da mudança da dinâmica no mundo do Mesmo nas famílias mais abastadas, há o exagero das
trabalho, que se torna, de maneira geral, alienado, obrigações cada vez mais precoces, como, nas aulas
tornando também o lazer alienado. Se o lazer não for particulares, escolinhas das mais variadas ordens e
ensinado, seja na educação formal ou na educação nos compromissos sociais junto a seus pais, que por
não formal, há o risco de ser entendido apenas como tantas vezes são enfadonhos e impõe uma inércia que
“recriação”, ou seja, recriar, recuperar a força de tra- não é inerente à infância e que faz parte do processo
balho para que ele volte com todo ânimo ao ambien- paulatino de morte do lúdico. Esta privação ao direito
te da produção. Portanto, para que haja a fruição do à alegria inerente à infância por meio do lúdico tem
lazer, é fundamental que se discuta e se ensine sobre gerado um quadro de enfermidade às mais variadas,
ele, ocorrendo uma superação da dimensão confor- que poderiam ser prevenidas e curadas por ações
mista para uma dimensão crítica e criativa, atrelada simples de priorização do lúdico na infância.
ao tempo disponível.
5. Nas brincadeiras, as crianças vivenciam experiências
3. O Homo Ludens extrapola a dimensão do pensar que nenhuma outra esfera social favorece, como o
e do fazer de maneira pragmática e funcionalista, cultivo do imaginário, da fantasia e do não-real. Nas
pois o jogo em si é irracional. Huizinga (2012) che- brincadeiras, as crianças sonham acordadas, mo-
ga a afirmar que as atividades arquetípicas da hu- mentos em que surgem as aspirações e os desejos,
manidade são caracterizadas pelo jogo, pois tanto criando um mundo mágico, alegre, espontâneo e in-
crianças quanto animais brincam por brincar, como tenso. Por isso, o futuro enche-se de esperança e de
expressão de sua liberdade. O homo ludens não está possibilidades de superação do imediato, que pode
sujeito a imposições, brinca, joga, quando deseja ser infeliz. Na brincadeira, tanto para a criança quan-
pelo mero prazer de brincar. O jogo nesta dimensão to para o adulto, renascem elementos que pareciam
jamais é imposto. O homo ludens tem como caracte- impossíveis, mas que voltam a alimentar a vida em
rística principal a liberdade. A rotina, a disciplina, as sua riqueza de possibilidades. Winnicott (1975) afirma
posturas artificiais, entram em choque com esta es- que o brincar conduz à experiência cultural e constitui
sência de divertimento. Ele tende ao relaxamento, à seu fundamento. A criatividade tem terreno fértil na
improdutividade, conforme as exigências do mundo brincadeira, pois não tem limites impostos pelos pa-
do trabalho. O homo ludens está mais próximo de drões comuns na sociedade e, como se sabe, todo co-
sua essência natural, pois é espontâneo. Segundo nhecimento novo requer o rompimento com o que já
Camargo (1998), o homo ludens está manifesto gran- está posto, num exercício constante de descoberta e
demente nas crianças, mas, paulatinamente, vai superação. Walter Benjamim (2009) afirma que o brin-
dando espaço ao faber na própria brincadeira, bem car significa libertação, pois no brinquedo, instrumen-
como pelo ensino do dever por parte dos adultos. to para o brincar, há a predominância da imitação.
Neste sentido, o jogo tem papel essencial em nos- Brincar significa libertar-se dos horrores do mundo
sa essência humana. Muito do que se busca com- por meio da reprodução miniaturizada. As crianças,
preender ainda hoje sobre o ser humano poderia rodeadas por um mundo de gigantes, criam para si,
encontrar sua resposta nesta perspectiva ontológi- enquanto brincam, um pequeno mundo próprio, pro-
ca lúdica do ser humano. tegido por leis de sua própria cultura.

102
UNIDADE
IV
LAZER E QUALIDADE DE VIDA

Professor Me. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
• Conceitos, valores e parâmetros em lazer e qualidade de vida
• Qualidade de vida, corporeidade e lazer
• Lazer, espaço e equipamentos

Objetivos de Aprendizagem
• Fundamentar as discussões entre lazer e qualidade de vida à luz dos
conceitos básicos da temática.
• Estabelecer uma relação entre a corporeidade e lazer com vistas à melhoria
da qualidade de vida.
• Compreender de que forma os espaços e equipamentos específicos e não-
específicos de lazer interferem na qualidade de vida.
unidade

IV
INTRODUÇÃO

Prezado(a) aluno(a),
Uma expressão que ganhou muita notoriedade nos últimos anos é
“qualidade de vida”. Como veremos, existem várias definições e concep-
ções em torno desta expressão. Ela, necessariamente, passou a ser discu-
tida no ambiente acadêmico. Como a Educação Física bebe em várias ci-
ências (Biologia, Química, Física, Psicologia etc.), bem como na filosofia,
vários subtemas emergem quando trata-se da discussão sobre qualidade
de vida. Um deles, impreterivelmente, é a relação lazer e qualidade de vida.
Devido à amplitude do tema, apresentaremos forma introdutória,
sob uma perspectiva geral mas também na relação com a Educação Físi-
ca, os principais elementos conceituais que possibilitam a aproximação
entre as temáticas lazer e qualidade de vida. Dentro destas discussões,
vários elementos acabam emergindo de maneira mais evidente, e um de-
les é a questão da corporeidade. É comum escutarmos de alunos, ao dis-
cutirmos epistemologia da Educação Física, que o objeto de estudo desta
área é o corpo. Bem, do que estamos falando? Que concepção de corpo
é esta? O que levou a uma ampliação do conceito de corpo, comumente
utilizado, para a expressão corporeidade. Por isso, além de um compre-
ender a corporeidade em si, buscaremos associá-la ao lazer a partir de
um conceito específico de qualidade de vida.
Não seria possível oferecer os elementos fundamentais para a discussão
proposta para esta unidade sem passarmos pela discussão sobre espaço,
equipamentos e natureza. A valorização dos espaços, bem como a criação
e animação dos equipamentos específicos e não-específicos de lazer, são
preponderantes para a vivência do lazer de maneira adequada. Um diálogo
permanente entre os animadores e os legisladores possibilita uma signifi-
cativa melhora na qualidade de vida associada ao lazer e aos espaços, bem
como à preservação do meio ambiente. Além disso, há um campo amplo
de atuação junto à natureza, e não é diferente à Educação Física, que pode
e deve atuar neste campo de maneira coerente, consciente e responsável.
RECREAÇÃO E LAZER

Conceitos, Valores e Parâmetros em


Lazer e Qualidade de Vida
Uma das expressões muito presente em nosso vo-
cabulário neste início de século XXI é qualidade
de vida. Como vários outros termos, há diferentes
REFLITA
conceitos por trás desta expressão, que podem variar
de acordo com cada autor e a abordagem escolhida.
Em nosso caso, estamos tratando da questão do la- Quando você ouve a expressão “qualidade de vida” o

zer dentro da perspectiva da formação de professo- que vem à sua mente? Em geral você costuma ouvir

res(as) para a educação básica, mais especificamente esta expressão associada a quais fatores?

na discussão com o lazer e a recreação.

108
EDUCAÇÃO FÍSICA

A expressão qualidade de vida pode ser nova, mas atrelada a um aspecto quantitativo, principalmente
o conceito deste termo já está presente na história no que diz respeito à longevidade. Nahas (2001, p.
da humanidade há muito tempo, apenas ganhando 197) considera que “sempre foi uma aspiração hu-
uma nova roupagem em meio às novas característi- mana viver por muitos anos, com a melhor condição
cas e demandas da sociedade contemporânea. Aliás, de saúde e autonomia possíveis até os últimos dias”.
para cada cultura, seja ela em nível micro ou macro, E, com o desenvolvimento da ciência, principalmen-
há um fator subjetivo por trás do termo qualidade te no último século, tem sido possível atingir este
de vida. Se já é um desafio situar a questão da qua- objetivo, pois o conhecimento gerado pela ciência
lidade de vida pelos variados entendimentos que promove melhorias em questões como saneamento,
a expressão pode ter, imagine atrelá-lo às diversas higiene, tratamento da água, conservação de alimen-
compreensões e conceituações sobre ele. Como afir- tos, produção de medicamentos, conscientização so-
ma Rosário (2001. p. 158): bre o consumo de certos alimentos, atendimento de
saúde e mudanças no estilo de vida de forma geral.
nos habituaram, não há muito, à expressão
‘qualidade de vida’, que assume aos olhos
de cada observador os contornos desenha-
dos pela sua sensibilidade, sua cultura, seus
meios econômicos e, quantas vezes, por alie-
nações e frustrações.

Neste sentido, os paradigmas de qualidade de vida


parecem estar associados à forma como cada grupo
encontra-se organizado, à sua relação com o meio
em que está inserido e de acordo sua evolução no
tempo, ou seja, a qualidade de vida está situada his-
toricamente, no tempo e no espaço.
A anseio humano de buscar cada vez mais me-
lhorar suas condições de vida, o que alguns deno-
minam de progresso, outros evolução, ou ainda,
desenvolvimento, tem para muitos antropólogos do A expressão “qualidade de vida” aparece significati-
século XIX, segundo Dawsey (2001, p. 29), a ideia vamente nos escritos da década de 1980, mas ainda
do “quanto mais, melhor”. Cotudo, como ele mesmo estavam atrelados, de forma geral, às questões rela-
salienta, talvez a questão central não esteja no quan- tivas à pobreza, exclusão e desigualdade social em
to, ou seja, numa questão quantitativa, mas esteja no esfera mundial. A necessidade premente por ações
aspecto qualitativo. governamentais de combate à miséria, à mortali-
Este desejo do ser humano de melhorar suas dade infantil e à desigualdade social de forma geral
condições de vida, ou buscar a boa vida, como os fomentou pesquisas com vistas a diagnosticar o qua-
gregos da antiguidade denominavam, também está dro mundial daquilo que passou a ser denominado

109
RECREAÇÃO E LAZER

de qualidade de vida. Contudo, este termo não re- o “Agita São Paulo”, implantação de ATI´s (Acade-
cebeu, a priori, uma clara definição, e assim que a mias da Terceira Idade) em espaço públicos, incenti-
mídia passou a utilizá-lo, foi incorporado de forma vos por meio da mídia para romper o sedentarismo,
polissêmica, como destacam Guimarães e Martins ações contra o tabagismo, entre tantas outras ações
(2004). Ao ser utilizado pelo senso comum, para o que poderíamos citar, demonstram as preocupações
termo qualidade de vida, uma década depois da in- com o bem-estar para além do ambiente de trabalho,
tensificação das pesquisas, temos o seguinte quadro: e, mais do que isso, atrelou-se o discurso da qualida-
de de vida e saúde às questões de moradia, educação,
Na década de 1990 essa polissemia já permite política, violência, lazer, convivência longevidade e
vários usos para o termo: fala-se em qualidade
satisfação (SIMÕES, 2001).
de vida quando se debate o problema da cida-
dania, de como ela é afetada pela pobreza e pela
miséria, nesse caso em sintonia com o mote
das pesquisas e programas humanitários. Fala-
-se de qualidade de vida quando se discute os
serviços e os equipamentos que uma cidade ou
província disponibiliza aos seus habitantes. Re-
laciona-se o tema à vida saudável, qualidade de
alimentação e nutrição, acesso de determinado
grupo ou sociedade a certos bens de consumo
ou, mesmo, a espaços e produtos destinados ao
lazer, ao turismo ou ao consumo de bens cultu-
rais (GUIMARÃES; MARTINS, 2004, p. 192).

No senso comum, a expressão qualidade de vida ficou


associada às melhorias ou “alto padrão de bem-estar
na vida das pessoas, sejam elas de ordem econômi-
ca, social ou emocional” (ALMEIDA; GUTIERREZ;
MARQUES, 2012, p. 15). Contudo, ainda não há um
único significado à expressão, que sempre parece es-
tar associada a determinados fatores, sempre asso-
ciados a uma perspectiva de melhoria da vida.
O final da primeira década dos anos 2000 já in-
corporara o discurso da qualidade de vida de manei-
ra polissêmica, mas com um apelo significativo às
questões da saúde e do estilo de vida, tanto no am-
biente de trabalho quanto fora dele. Questões como
ergonomia e segurança no trabalho ganharam ênfase
nas pesquisas e atuação profissional de várias áreas,
principalmente na área da saúde. Programas como

110
EDUCAÇÃO FÍSICA

Tudo isso reforça a ideia da polissemia, ou seja, a de saúde, longevidade, satisfação no trabalho, sa-
quantidade tão variável de significados para a mes- lário, lazer, relações familiares, disposição, prazer
ma expressão. Buscando superar este problema, e até espiritualidade. Num sentido mais amplo,
Betti (2002) buscou realizar uma análise semântica, qualidade de vida pode ser uma medida da pró-
iniciando pelo termo qualidade. Na sua incursão es- pria dignidade humana, pois pressupõe o atendi-
paço temporal buscou um respaldo filosófico para a mento das necessidades humanas fundamentais
análise e concluiu que a evolução do termo culmi- (NAHAS, 2001, p. 5).
nou com o sentido daquilo que determinado objeto Cada ser humano possui individualidade, ca-
tem de características, mas que não necessariamen- racterísticas, interesses, aspirações, idiossincrasias.
te revela sua essência, qualidades e probabilidades. Portanto, os modelos de qualidade de vida ten-
Seria uma forma de pautar um aspecto valorativo, dem a ser os mais diversos. Contudo, vale lembrar,
ou seja, seria possível dizer se algo é bom ou ruim, como já discutimos em outros momentos, que so-
pautando-se pela qualidade. Contudo, o problema mos bombardeados pela indústria cultural a con-
é que o aspecto da qualidade, portanto, é extre- sumirmos determinados produtos, tendendo a le-
mamente subjetivo, pois aquilo que é considerado var a uma homogeneização dos gostos, aquilo que é
bom para uns pode não ser para outros e vice-versa. comumente denominado de moda, ou modismos.
Porém, ainda assim, como afirma Simões (2001, p. Assim, esta indução para as preferências coletiviza-
169) “qualidade é a palavra presente na contempo- das tornam os parâmetros para análise de qualida-
raneidade, que pode ser articulada com a ideia de de vida muito transitórios e fugidios, característica
condição, de função, de atitude, de posição ou ter da modernidade líquida.
outro sentido em consequência da abrangência que
esse tema possui”, o que mantém o risco de polisse-
mia quando atrelado ao termo vida.
Então, qualidade de vida está recheada de um
aspecto subjetivo que pode sofrer modificações
ao longo da vida de cada pessoa. Fatores que hoje
podemos associar a uma melhor qualidade de
vida podem não ser tão mais significativos daqui
alguns anos.
Existe, porém, consenso em torno da ideia
de que são múltiplos os fatores que determinam
a qualidade de vida de pessoas ou comunidades.
A combinação desses fatores que moldam e dife-
renciam o cotidiano do ser humano, resulta numa
rede de fenômenos e situações que, abstratamente,
pode ser chamada de qualidade de vida. Em geral,
associam-se a essa expressão fatores como: estado Figura 1 - Zygmunt Bauman

111
RECREAÇÃO E LAZER

Na modernidade líquida - para muitos sinônimo de precisamos reconstruir o senso de coletividade? É


pós-modernidade - a questão da identidade, ou seja, possível tratar de qualidade apenas do ponto de
a essência do sujeito e da subjetividade, obviamente vista individual? Individualismo, hedonismo, rela-
é a vida de um sujeito, ou de vários, se tratada na co- tivismo, consumismo, relações virtuais permitem
letividade, é vulnerável, e arrisco a dizer, em alguns uma volta às grandes utopias relacionadas a valores
casos, inexistente. As identidades adotam um me- como justiça, paz, igualdade, liberdade, fraternida-
canismo parasitário, onde o hospedeiro oferece os de, amor, entre tantos outros?
parâmetros. Como afirma Bauman (2005, p. 57-58):

[...] estamos agora passando da fase “sólida” da SAIBA MAIS


modernidade para a fase “fluida”. E os “fluidos”
são assim chamados porque não conseguem
manter a forma por muito tempo e, a menos que Podemos dizer que a modernidade líquida é
sejam derramados num recipiente apertado, a época atual em que vivemos. É o conjunto
continuam mudando de forma sob a influência de relações e instituições, além de sua lógica
até mesmo das menores forças. [...] Autorida- de operações, que se impõe e que dão base
des hoje respeitadas amanhã serão ridiculari- para a contemporaneidade. É uma época de
liquidez, de fluidez, de volatilidade, de incer-
zadas, ignoradas ou desprezadas; celebridades
teza e insegurança. É nesta época que toda
serão esquecidas; ídolos formadores de tendên-
a fixidez e todos os referenciais morais da
cias só serão lembrados nos quizz shows da TV; época anterior, denominada pelo autor como
novidades consideradas preciosas serão atira- modernidade sólida, são retiradas de palco
das nos depósitos de lixo; causas eternas serão para dar espaço à lógica do agora, do consu-
descartadas por outras com a mesma pretensão mo, do gozo e da artificialidade.
de eternidade [...] carreiras vitalícias promisso- Antes de Bauman criar o conceito de moderni-
ras mostrarão ser becos sem saída. dade líquida, já Marx e Engels caracterizavam
a modernidade como o processo histórico
que derretia todas as instituições de outras
Como salienta Bauman (2005), o valor do carpe épocas, como a família, a comunidade tradi-
diem, de cultivar, aproveitar o dia, que em mui- cional (culturalmente peculiar e fechada para
tos casos tem como motivo outra expressão latina, forasteiros) e a religião (vide a secularização
dos Estados-nação no século XX). O objetivo
tempus fugit, no sentido de que o tempo foge, es- do derretimento proposto pela modernidade
corre pelos vãos dos dedos, é uma reação à falta de era questionar cada ponto da vida, descartan-
valores ou ao discurso de que eles existem, mas que do a irracionalidade e a falta de justificativa
plausível que cada objeto de crítica continha,
demonstram não durarem muito tempo. Neste con- mas mantendo ou realocando no projeto ra-
texto, como afirmar os valores atrelados à subjetivi- cional e iluminista suas características ainda
dade da qualidade? Quais as grandes preocupações aproveitáveis.

da humanidade neste início de século XXI? Exacer- Fonte: Siqueira (2013, on-line)1.
ba-se o individualismo ou estamos percebendo que

112
EDUCAÇÃO FÍSICA

Vale destacar que, em 1990, a ONU - Organização mos demasiadamente nas riquezas materiais, des-
das Nações Unidas criou um comitê para diagnos- considerando as ações humanas e o meio no qual
ticar a desigualdade social mundial, e o parâmetro estes estão inseridos. Além disso,
criado foi denominado de IDH - Índice de Desen-
volvimento Humano. O IDH lida principalmente “condicionar as oportunidades de conhecer e
escolher um repertório de valores pertencentes
com aspectos ligados à educação, expectativa de vida
à sociedade em que o indivíduo está presente
e renda. São considerados neste índice, também, as- é um outro dado que restringe a proposta de
pectos particulares de cada grupo. Nahas (2001, p. qualidade de vida”,
6-7) destaca a importância de outros indicadores
como mortalidade, morbidade, desemprego, des- pois rouba a possibilidade de autonomia, e legitima
nutrição e obesidade, e distingue alguns parâme- uma alienação, um pertencimento ao outro, uma he-
tros fundamentais para o diagnóstico da qualidade teronomia que solapa a possibilidade de uma vida
de vida: 1. Parâmetros Socioambientais: moradia, plena e com significado.
transporte, segurança, assistência médica, condições
de trabalho e remuneração, educação, opções de la-
zer, meio ambiente etc. 2. Parâmetros individuais:
hereditariedade e estilo de vida (hábitos alimentares,
controle de stress, atividade física habitual, relacio-
namentos e comportamento preventivo).
Podemos perceber quão complexo é diagnosti-
car e avaliar a qualidade de vida, tanto pela ques-
tão da variedade e imprecisão de conceitos, quanto
pela complexidade dos elementos associados. Não
que devamos abandonar este intuito na busca pela
melhoria da vida, mas é necessário ter a clareza de
que, como bem alerta Moreira (2001, p. 16), o con-
ceito atual de qualidade de vida, de forma geral,
precisa ser entendido em sua complexidade, pois
corre-se o risco, por exemplo, de valorizar ape-
nas a quantidade de anos a mais, “mesmo que isso
possa significar indiferença, mais exacerbação de
competitividade. Portanto, é necessário saber ver,
saber perceber, saber conceber e saber pensar”. Ou
ainda, como destaca Simões (2001, p. 176), focar-

113
RECREAÇÃO E LAZER

Qualidade de Vida,
Corporeidade e Lazer
Quando tratamos da questão da autonomia, seja Como vimos, tanto o lazer quanto a qualida-
em que esfera for, não estamos considerando que o de de vida podem sofrer a polissemia, o risco de
indivíduo poderá criar suas próprias regras e viver muitos significados. Portanto, associar este dois
como bem entender, pois isto certamente feriria a temas requer cuidados que devem estar presentes
de outrem. Porém o que estamos destacando é uma em qualquer processo reflexivo, acadêmico ou não.
atitude ativa, crítica, reflexiva e não apenas confor- Como destaca Pimentel (2003, p. 79), “o lazer não
mista, consumista. Sabemos que o consumo é im- fugiu dos discursos sobre a qualidade de vida, vis-
portante, aliás vital, o problema é sua exacerbação to ser um tempo de recomposição do ser humano”.
que redunda em alienação, em um fazer por fazer, Obviamente esta é uma visão funcionalista do la-
comprar por comprar, e no fim das contas, em uma zer, pois o vê apenas como forma de recuperação
vida infeliz, sem significado. da força, em muitos casos à força de trabalho que

114
EDUCAÇÃO FÍSICA

sustenta o modo de produção, ou seja, “recriação”, O caráter ativo, caracterizado pela participação na
recreação. Voltamos a destacar que o lazer não vida social e cultural e pelo progresso pessoal livre,
pode ser tratado isoladamente de outras esferas da e marcado pelas possibilidades de descanso, diverti-
vida, pois é “parcialmente enganoso entender o la- mento e desenvolvimento, está intimamente ligado à
zer como uma promoção do bem-estar porque o autonomia. No entanto, em muitos momentos, há a
lazer também precisa de qualidade para ocorrer” tendência, na perspectiva do que a ciência moderna
(PIMENTEL, 2003, p. 79). Ele promove o bem-es- favoreceu, de uma supervalorização do racional em
tar, mas requer uma atitude positiva, ativa, atrelada detrimento do existencial. Como destacam Moreira
a outras esferas da vida. e Simões (2008, p. 177), no pensamento cartesiano
Esta atitude ativa requer que os animadores “fica determinado que o pensar prevalece sobre a
socioculturais, agentes de cultura, recreadores, “la- existência”. A atividade, neste sentido, pode ficar re-
zerólogos”, ou qual for o termo que se utilize para os legada à dicotomia corpo/alma, razão/emoção etc.
envolvidos com a práxis do lazer - entendida como Nahas (2001, p. 208), por exemplo, ao atrelar a
teoria e prática indissociadas -, embasem suas ações qualidade de vida ao que denomina de “lazer ativo”,
em três elementos fundamentais (DUMAZEDIER, sugere que haja envolvimento de amigos, família, que
2014. p. 257-258): privilegie-se o contato com a natureza e atividades
em que haja prazer da realização. Afirma que: a prá-
1. A atitude ativa implica ao menos periodica- tica de atividades físicas é, antes de tudo um direito
mente, uma participação consciente e voluntá-
ria na vida social. Opõe-se ao isolamento e ao
de cada pessoa e deve ser garantido pelas instituições
recolhimento social ao que Durkheim chama em geral - escolas, universidades, empresas, clubes
de “anomia”. [...] Essa participação diz respeito e associações de bairro, sejam públicas ou privadas
à família, à empresa, ao sindicato, à vida civil, a (NAHAS, 2001, p. 208). Apesar de concordarmos
todos os grupos e modos de vida.
com esta abordagem, devemos salientar que uma in-
2. Ao menos periodicamente, a atitude ativa terpretação errônea pode levar a crer que lazer ativo
implica uma participação consciente e volun-
é todo aquele em que há atividade ou exercício físico.
tária na vida cultural. Opõe-se à submissão
às práticas rotineiras, às imagens estereotipa- A caracterização de ativo ou passivo para o lazer está
das e às ideias preconcebidas de determinado mais ligada a um padrão de autonomia e, por que não
meio social. [...] dizer, de integralidade na ação vivenciada, em que
3. Finalmente a atitude ativa exige sempre um não é apenas a razão; mente, emoção de um lado e
progresso pessoal livre pela busca, na utiliza- corpo do outro. Para Dumazedier (2014, p. 257), “a
ção do tempo livre, de um equilíbrio, na me-
atividade de lazer em si mesma não é passiva ou ativa,
dida do possível pessoal, entre o repouso, a
distração e o desenvolvimento contínuo e har- mas o será pela atitude que o indivíduo assumir com
monioso da personalidade. relação às atividades decorrentes do próprio lazer”.

115
RECREAÇÃO E LAZER

Discutir a relação lazer e qualidade de vida re- associada à perspectiva da corporeidade, sob a
quer que superemos a tendência de a realizarmos ótica do lazer, deve transcender a mera busca
apenas pelo olhar biológico, mas construindo um por um bom funcionamento orgânico. O lazer
consistente alicerce cultural. Desta forma, o refe- não pode, mesmo com o discurso da melhoria
rencial das ciências humanas é fundamental para da qualidade de vida, assumir a responsabilida-
esta aproximação. “Daí a consequência imediata de de de meramente preparar o corpo para interes-
tornar a relação corpo/lazer mediada pela reponsa- ses que explorem seu potencial.
bilidade uma das grandes questões das ciências hu- O modo de vida ocidental se desenvolveu
manas” (MOREIRA; SIMÕES, 2008, p. 183). O lazer pautado por princípios que acabavam colocando
em aproximação com a qualidade de vida necessita o corpo numa posição relegada a outros valores.
se reaproximar, como defendem os autores, do con- Portanto, não poder-se-ia falar em corporeidade
ceito de corporeidade, substituindo a concepção de numa perspectiva dualista cuja raiz encontra-se
corpo, que está permeada pela visão dualista. Mais no pensamento platônico que teve sua influên-
ainda, lidar com a corporeidade não como mero cia sobre o cristianismo. Contudo, vale salientar
conceito, mas como um modo de crescimento, su- que, mesmo para Platão, este dualismo psicofísi-
peração e autonomia. co não significava desprezo ao corpo, mas, pau-
latinamente, abre caminho à construção de uma
Compreender qualidade de vida requer o en- concepção medieval do corpo como cárcere da
tendimento sobre os fenômenos corporeidade
alma, fonte de todos os pecados e que, por isso
e motricidade: primeiro, a corporeidade, no
sentido de superações conceituais históricas, mesmo, deveria ser punido.
como, por exemplo, as velhas dicotomias pre-
sentes no mundo Ocidental desde a Grécia
antiga e reforçadas quando do surgimento das
ciências estruturadas; segundo, a motricidade,
para mostrar, provavelmente, a necessidade
de incorporá-la ao ato educativo, ao lado da já
consagrada taxionomia da aprendizagem psi-
cossociocognitiva (MOREIRA, 2001, p. 23).

Uma vivência corporal com qualidade requer


que voltemos a compreender e valorizar o cor-
po não numa perspectiva meramente funcio-
nal, mas existencial. O conceito de qualidade de
vida, sob a ótica do lazer, e mais especificamente
na relação com seus conteúdos físico-esportivos,
precisam dialogar e revisar o conceito de corpo
e quem sabe assumir a perspectiva mais ampla
e holística da corporeidade. Qualidade de vida Figura 2 - Platão

116
EDUCAÇÃO FÍSICA

No cristianismo medieval, ao corpo o lugar do


pecado e da perdição do ser humano, deveria nos afirma Medina (1998), mesmo os monismos que
ser o menos ativo possível. Qualidade de vida, reduzem a substância corpórea à espiritual, ou vi-
aqui, era sinônimo de renúncia aos desejos do ce-versa, encontram dificuldades em se afirmar por
corpo ou, em última análise, à vida. O impor- meio da palavra.
tante era preparar uma vida com qualidade no
futuro, vida essa desprovida de corpo (MOREI-
RA; SIMÕES, 2008, p. 177).

Compartilhamos da concepção de que a história


não pode ser entendida como uma sucessão de fa-
tos no tempo, mas o modo como os seres humanos,
sob condições específicas, formulam seus métodos e
maneiras de existir socialmente. Este modo de vida
está presente em outras esferas como a econômica,
política e cultural, sendo que as realidades podem
ser meramente reproduzidas (o que é mais cômodo)
ou acrescidas de novos significados (CHAUI, 1987).
As ações no e pelo corpo são, antes de mais nada,
Nas ciências humanas, a divisão cartesiana re-
localizadas no tempo e no espaço. Os acontecimen- dundou em interminável confusão acerca da
tos diários fazem com que o corpo seja entendido relação entre mente e cérebro; e, na física, tor-
dia a dia de uma maneira diferente, pois a história nou extremamente difícil aos fundadores da
e a cultura o fazem possuir uma dinâmica tal qual a teoria quântica interpretar suas observações
dos fenômenos atômicos. Segundo Heisenberg,
social. Entender o corpo historicamente situado na que se debateu com o problema durante anos,
sociedade capitalista ocidental é buscar desvendar o ‘essa divisão penetrou profundamente no espí-
processo que o determinou como produto histórico rito humano nos três séculos que se seguiram a
e cultural. É entendê-lo como resultado de mudan- Descartes, e levará muito tempo para que seja
substituída por uma atitude realmente diferen-
ças sociais que determinaram o modo de atribuição
te em face do problema da realidade’ (MEDI-
de significados a este corpo. NA, 1998, p. 54).
As linhas de pensamento filosófico que com-
põem, de forma geral, o pensamento popular da so- Considerado o “pai da filosofia moderna”, Descar-
ciedade contemporânea - principalmente as ideias tes deu grande importância ao método e ao valor
advindas do platonismo, cristianismo e cartesianis- do conhecimento. Até então (Antiguidade e Idade
mo que tenderam a dicotomizar ou até tricotomizar Média), o valor investigativo era essencialmente on-
a forma de entender o ser humano e a realidade em tológico, voltado para a razão última das coisas. O
geral - tornaram o entendimento do corpo estanque. pensamento cartesiano introduz uma nova forma de
Por vários séculos o pensamento em nossa civiliza- ver a realidade, numa colocação crítica e gnosiológi-
ção nutre-se do dualismo psicofísico, ou corpo-es- ca, sendo o primeiro ponto investigativo o valor do
pírito, em suas diferentes versões. Entretanto, como conhecimento humano (MONDIN, 1981).

117
RECREAÇÃO E LAZER

A compreensão da vida com base na concepção


cartesiana permeia-se da falsa possibilidade de se tra-
tar de assuntos relativos ao corpo, separados da alma,
bem como do espírito. Entretanto, uma reflexão ou
investigação que envolva o ser humano deve enten-
dê-lo como uno, numa dinâmica social, histórica e
cultural complexa. Daolio (2000, p. 44) adverte que:

[...] no fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se


mistura. Os fatos que nos interessam não são
fatos especiais de tal ou qual parte da menta-
lidade; são fatos de uma ordem muito comple-
xa, a mais complexa que se possa imaginar. São
aqueles para os quais proponho a denominação
de fenômenos de totalidade, em que não apenas
o grupo toma parte, como ainda, pelo grupo,
todas as personalidades, todos os indivíduos na
sua integridade moral, social, mental e, sobre-
tudo, corporal e material.

A construção histórica e cultural do corpo não deve


ser compreendida separada de toda dinâmica social.
O princípio da totalidade é de suma importância ao
se traçar um possível olhar rumo a uma intervenção
Figura 3 - René Descartes que tenha como foco um interesse físico-esportivo,
ou a busca de um entendimento ou ressignificação
A principal influência de Descartes na visão de do corpo, o que possivelmente reorientaria todas
mundo foi, principalmente, o reforço do pensar di- as práticas educativas que envolvem o corpo, sejam
cotomizado da realidade. Ao introduzir a noção de elas no âmbito da educação escolar, no lazer ou em
que a investigação filosófica não deve iniciar-se pe- outra esfera da sociedade.
las coisas, mas pela mente humana, dissemina a con- Um projeto de mudança social e ressignificação
cepção de dualidade da realidade, na qual o mundo do corpo passa pela compreensão do ser humano inte-
das coisas seria um e o mundo da mente/conheci- gralmente, como força de produção - como parte dos
mento seria outro. A ideia do cogito, ergo sum (penso meios de produção -, movimentado pelo trabalho hu-
logo existo) atribui, na concepção cartesiana, a ideia mano e responsável pela existência de toda a riqueza.
de substância ao pensamento. Neste sentido, o pen- Entretanto, nos últimos séculos, o que se percebe é um
samento seria algo existente por si só, independen- alienar deste corpo juntamente com a estruturação ca-
temente da realidade corpórea. O existir por si só dá pitalista do trabalho. O corpo do trabalhador tornou-
ao pensamento o caráter de substancialidade. -se “coisa”, objeto para determinado fim: o lucro.

118
EDUCAÇÃO FÍSICA

alienação o corpo adquiriu significado de máquina,


a própria mente, considerada parte separada do cor-
po, alienou-se da mesma forma, produzindo ideias
para sustentar o capitalismo. O que até então carac-
terizava-se pela escravidão do corpo, determinou a
escravidão da mente, sem tréguas, em um constante
produzir, ou no que denominaria de “ócio criativo”,
com base em De Masi (2001, p. 11) - sociólogo ita-
liano do trabalho -, pois “a sociedade pós-industrial
decididamente privilegia a produção de bens ima-
teriais (serviços, informações, símbolos, valores e
estética) e os produtores de ideias”.
O questionamento sobre o porquê da busca pela
liberdade, autonomia ou ressignificação corporal
está explícita na própria luta pela vida.

No fundo a luta de todos nós deve ser uma luta


por mais vida, uma luta dos corpos por sua
libertação. Nesta perspectiva, o nosso senso
crítico deve estar atento para todas as dimen-
sões do humano, quer a nível de nossa própria
subjetividade e intersubjetividade, quer a nível
Eu me refiro ao corpo humano que, nos últimos das infraestruturas que condicionam com os
séculos, foi objeto de uma terrível operação de conflitos e contradições situados historicamen-
disciplina; poderíamos dizer, inclusive, que a li- te, que nos impedem de crescer enquanto seres
berdade do espírito, a liberdade do intelecto foi humanos (MEDINA, 1998, p. 108).
adquirida ao preço da não liberdade do corpo
humano, cujo preço envolve um processo no
qual o corpo foi cada vez mais forçado dentro
de relações que não lhe são adequadas. Poderí-
amos dizer mesmo que, nesse sentido, o corpo
humano é a verdadeira vítima desse processo
histórico (KAMPER, 1998, p. 21-22).

O entendimento do corpo como força de trabalho


desatrelado do espírito e da alma, com suas possibi-
lidades consideradas sublimes, tornou o ser huma-
no integralmente escravo de um sistema produtivo.
Esta escravidão por completo evidencia o caráter de
unicidade do ser humano, pois se pela exploração e

119
RECREAÇÃO E LAZER

O desenvolvimento humano, portanto, passa pela A sociedade do negócio (negação do ócio) e a exi-
possibilidade que temos, primeiramente como gência para o aumento da produção extrapola o
espécie, de nos situarmos historicamente, com- ambiente da empresa e se alastra por toda a vida,
preendermos nossas teorias, revisá-las, imprimir- chegando até as vias do desempenho nos relaciona-
-lhes subjetividades, e agir dentro de um padrão mentos e no lazer. Regras, prazos, metas, sanções,
ético de respeito à vida e à liberdade. Agir de acor- menos desperdício de tempo, ditam o parâmetro do
do com nossa própria concepção de corpo é criti- é a qualidade total. Contudo, construir um conceito
car nossas ações diárias sobre ele, entendendo os claro de qualidade de vida associada à corporeidade
porquês de cada atitude e ação. É, ainda, perceber e ao lazer requer a recuperação do processo de nor-
para onde tais ações nos levam como indivíduos matização do corpo para determinados fins e a sua
que vivem e convivem. superação para um referencial mais humano. Além
Diante das considerações realizadas é possível disso, não há como apenas realizar este exercício se
perceber que a concepção de qualidade de vida pode esta compreensão não chegar às bases do processo
correr o risco de ser determinada pela lógica da má- educativo, principalmente da educação formal, mas
quina, que por não adoecerem, não serem passio- não apenas nele. Por isso, a educação para e pelo o
nais, não oferecem risco de abstinência ao trabalho e lazer ganha fundamental significado de transcen-
não lutam por direitos melhores. A lógica do capital dência de um modelo que corre o risco de parame-
não facilita a relação qualidade de vida, corporei- trizar a qualidade pela produção e desempenho.
dade e lazer na medida em que o lazer passa a ser Como afirmam Moreira e Simões (2008, p. 182),
pensado como meio para a qualidade de vida, que a reconstrução do conceito de corpo, associado à
está embasada em uma lógica produtivista. Neste qualidade de vida e lazer requer o retorno às coisas
sentido, como afirmam Moreira e Simões (2008, p. simples da vida, como “andar mais descalço”, “nadar
175), “em muitas oportunidades, o lazer associa-se a mais em rios”, “apreciar mais entardeceres”, “viajar
uma recuperação da força produtiva e não necessa- mais leve”, “viver o dia a dia com menos medos ima-
riamente a uma vida qualitativa”. ginários”. A construção da corporeidade requer a
incorporação de “signos, símbolos, prazeres, neces-
Com a expansão da classe média e a estrutu- sidades, através de atos ousados ou através de recuos
ração da indústria e do comércio, não se al-
necessários sem achar que um nega o outro”. O ser
tera a concepção de qualidade de vida para a
sociedade, há a solidificação do conceito como humano é a própria corporeidade, mas esta talvez
sinônimo de aumento de capital, de acúmulo tenha sido perdida diante de tantos desequilíbrios
de bens materiais, além da obtenção de maior da vida em nome de valores que vão de encontro à
lucro em menor tempo. O projeto e o processo própria vida e, consequentemente, ao próprio con-
são de aceleração, de velocidade, exigindo dos
ceito de qualidade de vida, como, por exemplo, o
menos favorecidos uma única ação: ter força de
trabalho para ter produtividade com qualidade outro, a natureza, nós mesmos, com nossas virtudes,
(SIMÕES, 2001, p. 171). defeitos e carências.

120
EDUCAÇÃO FÍSICA

O lazer atrelado a esta perspectiva da corporeida- REFLITA


de não necessitaria de “es” como destaca Marcelli-
no (2001, p. 50): “chega de ‘lazer e’. Vamos falar de De que forma podemos perceber em nossa
lazer e pronto. A felicidade, o prazer não precisam sociedade um distanciamento do ser humano
de justificativas”. Isto é um retorno ao que de mais de si mesmo? Quais os principais fatores, na
sua percepção, que favorecem este desequi-
humano podemos ter. O prazer pela própria vida, a líbrio? Há caminhos de um reequilíbrio deste
gratidão por estar vivo e diante de infinitas possibi- quadro?
lidades. O lazer quando atrelado à qualidade de vida
pode correr o risco de perder sua própria essência
em nome de uma justificativa da sociedade admi- Portanto, nossos paradigmas de qualidade de vida
nistrada racionalmente, que contribuiu para a frag- precisam ser revistos constantemente, pois aqueles
mentação da essência humana, em um mundo de que construímos até agora em nossa história dão
racionalidade exacerbada e pouca existencialidade. conta de certos aspectos, talvez considerados mais
Esta corporeidade no lazer é a superação, transcen- importantes, ou mais urgentes por aqueles que os
dência que vai ao encontro do humano e da natureza arquitetam, mas que não dão conta da vida em toda
e com isto encontra a si mesmo. a sua complexidade. Por mais contraditório que isto

121
RECREAÇÃO E LAZER

pareça, pois temos mais qualidade do que nossos foi sendo submetido ao longo de sua existência. A
ancestrais sob certos aspectos, “nós, que olhamos a atitude do indivíduo deve estar galgada na autono-
conquista do ‘nosso’ modelo de qualidade de vida mia consciente do sujeito, em sua integralidade, não
como o saboroso fruto da liberdade que os tempos apenas no racional, mas também nele. Não pode fi-
modernos nos trouxeram” (ROSÁRIO, 2001, p. car resumida a atitudes mecânicas, automatizadas,
158), podemos ainda assim nos encontrarmos va- mas num esforço de busca pelo conhecimento cons-
zios, infelizes e sem perspectivas diante de um uni- tante que, no caso do lazer, como destaca Dumaze-
verso de possibilidades. Contudo é certo que, como dier (2014, p. 264), pressupõe um grande esforço
conclui Rosário (2001, p. 167): de auto educação por meio do qual cada um estará
atento à necessidade de equilíbrio “atividades de re-
os horizontes que vamos criando condicionam cuperação, recreação e desenvolvimento”, conforme
as formas da qualidade de vida a que aspiramos;
as diferentes demandas do dia a dia.
porque somos puxados pelo futuro, porque neces-
sitamos experimentar o novo e porque, instintiva-
mente, perseguimos mais o melhor do que o bom. Essa escolha levará o indivíduo a estabelecer
uma hierarquia nas suas atividades físicas, ma-
nuais, intelectuais e sociais e em todas as opor-
Não devemos ser pessimistas, avançamos muito em tunidades a fortalecer a autonomia e a estrutura
nossa história. O prazer é sim fundamental em nos- de sua personalidade, procurando ao mesmo
sa perspectiva de melhoria de qualidade de vida. O tempo alcançar uma melhoria na sua participa-
cuidado deve ser com o hedonismo, como prazer a ção consciente e voluntária na vida da socieda-
de (DUMAZEDIER, 2014. p. 263).
qualquer custo, exacerbado, que em muitos casos re-
lega o cuidado com a própria saúde. Por outro lado,
a negação do prazer também é perigosa, pois priva o E vale destacar ainda que:
ser humano de experiências enriquecedoras na sua
existência. Um exemplo é a alimentação, que por [...] em todos os campos do lazer, as atitudes
ativas deveriam ser observadas e analisadas
mais que seja saudável e apresente aspectos nutri-
sem dogmatismo. O conjunto dessas atitudes
cionais exigidos para uma saúde positiva, não será ativas contribuiria para formar em cada grupo
consumida por muito tempo se não for palatável. e para cada indivíduo um estilo de vida. O es-
Isto também se aplica à atividade física, como sa- tilo de vida poderia ser definido como o modo
lienta Nahas (2001, p. 208): “as pessoas podem estar pessoal pelo qual cada indivíduo ajeita sua vida
cotidiana. [...] a individualidade de inúmeros
bem informadas e até terem uma atitude favorável,
trabalhadores têm mais oportunidades de afir-
mas não escolherão um estilo de vida ativo se isso mar-se nas atividades livres e cada vez menos
não estiver associado ao prazer”. no trabalho como atualmente é concebido. Re-
A construção de um estilo de vida positivo, ou correndo a essas atividades, o indivíduo terá
tempo e oportunidade para encontrar e desen-
com qualidade, por mais polissêmica que seja a re-
volver o estilo de sua própria vida, mesmo com
lação deste termo quando associado à vida humana, relação ao trabalho. A procura e a realização de
está concatenado com a conscientização do indiví- um estilo de vida conferem ao lazer seu mais
duo na vida social e nos condicionamentos aos quais alto significado (DUMAZEDIER, 2014. p. 263).

122
EDUCAÇÃO FÍSICA

Lazer, corporeidade e qualidade de vida têm, por- SAIBA MAIS


tanto, uma relação fundamental. Qualidade de vida
pressupõe o fruir de uma vida boa, do prazer, do O corpo somos nós em nossa existência hu-
bem-estar, da alegria, de justiça, de conceber novos mana. Ele se constitui a todo o momento sob
sonhos e projetos, pessoais e coletivos, enfim, valo- influência de pessoas, do mundo e de nós
mesmos. Nossa corporeidade faz-se na diver-
res tão prementes à humanidade. O lazer, atrelado sidade dos sentidos e significados ao longo
aos seus conteúdos físico-esportivos, por exemplo, da história. Nós, seres humanos presentes,
tem um alto potencial de propiciação de momentos somos sujeitos de nosso discurso, em contato
com um mundo complexo. Somos corpos-su-
felizes e, portanto, no aumento da qualidade de vida, jeitos, vividos, que consideramos as possibili-
e mais, na oportunidade de conscientização da exis- dades corporais e nos relacionamos com as
tência, por meio de um reencontro com o próprio mais diversas experiências significativas, em
busca permanente da auto-superação. A nos-
corpo, bem como com o do outro, na perspectiva sa corporeidade vai sendo configurada nos
da corporeidade, conforme definida anteriormente. momentos de apreensão do mundo por meio
O lazer, como almeja Dumazedier (2014), poderá dos hábitos os quais vão sendo incorporados.

significar rompimento de imposições, de repressões, Fonte: Martins (2008, p. 33).


advindas das obrigações, tantas vezes exacerbadas
na vida, bem como um reavaliar do cotidiano, vi-
vências, preconceitos, ideias prontas que impedem
um exercício de esperança e da criatividade, tão fa-
vorecidas pelo espírito lúdico.

123
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer, Espaço e
Equipamentos
Um elemento fundamental a se levar em conta na paço. As características de meros coletores e caçado-
relação lazer e qualidade de vida, que em alguns res do que a natureza lhes oferecia foram cedendo
momentos de nossas discussões já tangenciamos, é espaço ao desenvolvimento das técnicas de cultivo e
a questão do espaço urbano e da natureza. Não há criação de animais para a subsistência. Com o passar
como conceber a possibilidade de constante melho- do tempo, as grandes aglomerações e assentamen-
ria na qualidade de vida e suas possíveis relações tos foram dando origem às cidades, impulsionadas,
sem tratarmos, mesmo que introdutoriamente, des- posteriormente, por vários fatores, como os entron-
te aspecto cultural tão relevante para o ser humano. camentos de rotas de comércio, por exemplo. Este
As sociedades humanas foram aos poucos se processo significou uma grande mudança para a
organizando de forma a chegarem num estágio de vida em sociedade, com muitas vantagens, mas tam-
sedentarismo, de assentamento em determinado es- bém muitos desafios.

124
EDUCAÇÃO FÍSICA

O tipo de cultura produzida, até então, pela hu- É interessante perceber que efeitos globais têm iní-
manidade deu lugar a novas formas de produções cio nas ações individuais que vão se avolumando
pelo ser humano por meio do trabalho compreendi- por meio das relações comunitárias até ganharem
do num sentido amplo. Tudo aquilo que o ser huma- tais dimensões. Esta modificação do espaço pelo ser
no produz na sua relação com a natureza, compreen- humano se dá por meio das técnicas mais elementa-
dendo que os demais seres humanos são parte desta res, desenvolvidas para adequar o meio à sua volta e
natureza, é expressão de sua cultura. A qualidade garantir os elementos fundamentais à sua vida. Para
de vida, portanto, situada em diferentes momentos Santini (1993, p. 34):
históricos e em diferentes espaços de convivência, é
também a expressão da cultura de um povo. com a experiência de seu corpo, o homem
organiza seu espaço, adequando-o às suas ne-
Com o passar do tempo, portanto, o ser humano
cessidades biopsicossociais [...] este espaço, or-
modifica o espaço no qual está inserido como uma ganizado e animado, constituído de um meio
forma, em princípio, de melhorar seu modo de vida. físico, estético e psicológico é o meio ambiente.
Contudo, nem sempre este processo ocorreu e ocor-
re de maneira ordenada, utilizando-se de elementos Note que a questão da corporeidade volta à tona e
racionais, podendo constituir, a médio e longo pra- está na base das experiências de organização espacial
zo, caos para a convivência dos seres humanos entre como elemento fundamental da vida em sociedade.
si, bem como com a fauna e a flora circundante. Bas- Diante destas considerações, podemos inferir
ta fazermos uma breve avaliação de alguns grandes que qualquer processo que deseje subjugar o ou-
centros urbanos que cresceram desordenadamente, tro terá no domínio do corpo um elemento basilar
sem um planejamento, e perceber os efeitos negati- ao seu intento. Como destaca De Pellegrin (1999),
vos causados por esse processo. Vale lembrar que, a ocupação do espaço na sociedade hodierna está
hoje, os efeitos já não se limitam a consequências lo- profundamente atrelada a questões de poder. Dian-
cais, pois são de ordem planetária, como é o caso do te disso, a corporeidade que está na base desta or-
superaquecimento global. ganização espacial, de acordo com Santini (1993),
ganha um significado político profundo, pois do-
minar o corpo é ter poder também sobre o espaço,
e este, por sua vez, possui grande valor na socieda-
de capitalista contemporânea.

O crescimento desordenado, a especulação


imobiliária, enfim, uma série de fatores vem
contribuindo para que o quadro das nossas ci-
dades não seja dos mais promissores, quer na
defesa de espaços, quer em termos da paisagem
urbana, quando se fala da contemplação estéti-
ca. Em nome da economia e da funcionalidade,
muito se tem feito “enfeiando” a paisagem ur-
bana (MARCELLINO, 2008. p. 16).

125
RECREAÇÃO E LAZER

A relação do espaço com o tempo constitui um ele- REFLITA


mento basilar na compreensão a que o ser humano
foi impelido ao longo de sua organização em socie- Como são os espaços de lazer em sua comu-
dade. Segundo De Pellegrin (1999), tempo e espaço nidade? Você acredita que sua comunidade
acabam por se confundir em alguns momentos, pois consegue fruir do tempo livre de uma maneira
adequada tendo espaços para tais vivências?
por meio do tempo o espaço é constituído, e nesse es-
paço descortina-se novos momentos históricos, sen-
do elementos de referências fundamentais para a vida
humana. Podemos caracterizar esta dinâmica como Estes desequilíbrios podem gerar, por exemplo, aglo-
um processo dialético que leva a um movimento pen- meração de pessoas em determinados espaços, en-
dular da história, num diálogo constante entre tempo quanto em outros não há aproveitamento adequado,
e espaço, tendo o ser humano o anseio por uma vida isso ocorre ou pelo bombardear da indústria cultural,
mais digna como mediador deste processo. insegurança de determinados ambientes, concentra-
O processo de urbanização, como já menciona- ção populacional em determinadas regiões ou pela co-
mos, tem seus bônus, mas também ônus. Há conse- modidade do transporte que fornece o deslocamento
quências danosas nos crescimentos desordenados a certos ambientes de convívio. Porém, como salienta
das cidades, que hodiernamente são potencializa- De Pelegrin (1999), a aglomeração satura as potencia-
das, como salienta Marcellino (2008, p. 17), pela lidades de determinados equipamentos de lazer, pois
“ação predatória, motivada pelos interesses imedia- ele não se torna convidativo e limita sua utilização.
tistas” que, invariavelmente, geram sérios proble-
mas “que afetam a qualidade de vida e o lazer das
populações, contribuindo com a violência e a falta
de segurança, inclusive”.
Tratando-se especificamente dos espaços des-
tinados ao lazer, deve ser realizada, para a profun-
da compreensão da problemática e implementação
de ações criativas, uma análise que leve em conta
outros elementos que compõem a vida na cidade,
como a distribuição populacional, por exemplo, que
influencia diretamente na questão do transporte ur-
bano e possui uma relação direta com conservação
das áreas verdes, que por sua vez influencia em dese- Neste sentido, ao falarmos em democratização do
quilíbrios ambientais, como proliferação de pragas e espaço e dos equipamentos de lazer, devemos levar
diminuição da qualidade do ar. Enfim, os elementos em consideração que “para a efetivação das carac-
estão concatenados e, portanto, influem diretamente terísticas do lazer é necessário, antes de tudo, que
nas relações humanas, que poderiam ser potenciali- ao tempo disponível corresponda um espaço dispo-
zadas por espaços urbanos adequados ao lazer. nível” (MARCELLINO, 2008. p. 15). No cotidiano,

126
EDUCAÇÃO FÍSICA

fora dos períodos de feriados, férias e recessos, este


espaço é justamente o espaço da cidade, espaço des-
tinado ao convívio.
Quando nos referimos a equipamentos de lazer,
que podem estar inseridos no espaço urbano ou não,
nos respaldamos na classificação de Requixa (1980)
que diferencia equipamentos específicos de equipa-
mentos não-específicos de lazer.

Como equipamento não-específico entende os


que, em sua origem, não foram construídos para
a prática das atividades de lazer, mas que depois
tiveram sua destinação específica alterada, de
forma parcial ou total, criando-se espaços para
aquelas atividades. O autor coloca que hoje os
espaços das cidades precisam ser aproveitados
de modo a se tornarem polivalentes. Entre esses
Atrelados a este equipamento não-específico estão
equipamentos não-específicos estão: o lar, a rua,
o bar, a escola, etc. Já os equipamentos específicos as calçadas, ruas e praças. Contudo, a violência de
são construídos com essa finalidade, podendo forma geral, tem sido um fator limitador no uso des-
ser classificados pelo tamanho, atendimento aos ses equipamentos. As brincadeiras infantis realiza-
conteúdos culturais, ou outros critérios (REXIA,
das nas ruas (queimada, betes, futebol, pipa, bolinha
1980 apud MARCELLINO, 2008. p. 15).
de gude etc.) são cada vez mais raras, mais ainda,
O lazer do brasileiro ocorre, preponderantemente, as festas populares que mobilizavam os bairros pra-
nos lares e, portanto, é o principal equipamento não- ticamente desapareceram. As praças raramente são
-específico. Contudo, cabe novamente avaliarmos a ocupadas para atividades espontâneas de lazer. As
qualidade destas oportunidades neste equipamento. que são ocupadas, em geral, possuem equipamentos
Quando tratamos das barreiras para o lazer, consi- específicos tais como quadras esportivas, pistas de
deramos as de classe social, econômica e de gênero. skate e mesas para jogos. Ainda assim, como salienta
Se visualizarmos rapidamente a dinâmica em muitos De Pellegrin (1999, p. 154):
lares da nossa sociedade, poderemos notar que no
tempo disponível há muito pouco que se possa fazer [..] os equipamentos de lazer que atendem aos
interesses físico-esportivos obedecem, via de re-
em um espaço pequeno, e que, em muitos casos, está
gra, aos padrões dos esportes mais tradicionais
saturado pelas demandas das obrigações domésticas. e das regras oficiais desses esportes. Isso pode
Quando cessam as obrigações, faltam oportunidade restringir o uso do espaço àquelas modalidades
no espaço restrito, como jogos (de mesa, de tabuleiro, tradicionais e, ainda que elas sejam praticadas,
virtuais etc.), leitura (infelizmente ainda uma minoria haverá barreiras arquitetônicas para certas fai-
xas etárias e pessoas portadoras de necessida-
em nosso país), convivência virtual e o consumo de
des especiais, por exemplo.
programas de televisão, em geral dos canais abertos.

127
RECREAÇÃO E LAZER

Também cada vez mais raros são os coretos e palcos Entre os equipamentos não-específicos de lazer
com programações periódicas. Em alguns casos ain- também estão as escolas. Elas têm em si um grande
da prevalecem as ferinhas que comercializam uma potencial para o estímulo à vivência do lazer. Con-
variedade de produtos, que apesar de não serem tudo, muitas possuem alguns impeditivos, como,
classificadas, a priori, como ações de um conteúdo por exemplo, o seu funcionamento em três turnos
do lazer, favorecem, por exemplo, a vivência dos in- ou ainda o receio pela depredação o espaço. Mes-
teresses sociais do lazer. mo assim, seriam possíveis ações que favorecessem
Os bares também estão nesta categoria, mas o acesso da comunidade à vivência de certas práticas
abarcando, ainda hoje, um alto grau de preconceito. neste espaço, promovendo o convívio social, ativi-
Estes espaços de convívio apresentam soluções a fim dades práticas ou manuais, utilizando as quadras
de superar certos tabus por meio de variadas ativi- e gramados para vivência dos conteúdos físico-es-
dades culturais que envolvem artes, esportes, entre portivos, outra ação seria a abertura à utilização das
outras. No entanto, como salienta Marcellino (2008, bibliotecas como forma de incentivo à leitura, “con-
p. 18), “os tradicionais ‘botequins’, onde se ‘jogava tação de histórias”, ou ainda o compartilhar do co-
conversa fora’, são substituídos, nas áreas ‘nobres’ pe- nhecimento transmitido produzido pelos docentes
las lanchonetes, onde o consumo rápido desestimula e discentes, palestras e exposições artísticas, mos-
a convivência”, mas ainda assim são alternativas para tras de talentos da comunidade, enfim, ações que
vivência de certos conteúdos/interesses culturais do promovam também os conteúdos artísticos. E os
lazer, mas favorecem mais o social e em alguns casos conteúdos turísticos? Ficariam de fora? Como este
parte dos artísticos. conteúdo tem como principal característica a que-

128
EDUCAÇÃO FÍSICA

bra da rotina espaço/temporal, iniciativas com acan- Este é um grande desafio para todos aqueles en-
tonamentos que promovam intercâmbio escolares volvidos com o lazer, principalmente os que tam-
poderiam também atender a este conteúdo cultural bém estão ligados à educação formal. Por isso a
do lazer. Percebam a riqueza possibilidades que as relevância de discutirmos estas questões num
escolas oferecem mesmo não sendo um equipamen- curso de licenciatura, pois teremos a oportuni-
to específico de lazer. dade de realizar a ação de dentro para fora des-
te equipamento, mas não de maneira unilateral.
As escolas contam com grandes possibilidades Esta construção do lazer na escola deve trilha um
para o lazer, em termos de espaço, nos vários
caminho biunívoco, uma via de mão dupla, em
campos de interesse: quadras, pátios, auditó-
rios, salas, etc. Deve-se considerar, ainda, seus parceria com os membros da comunidade, reali-
períodos de ociosidade, em férias e fins de se- zando um diagnóstico sobre seus anseios e cons-
mana, e a existência de vínculos com a comu- truindo por meio da estratégia da ação comunitá-
nidade próxima. No entanto, a tão propalada ria a ação devida.
“abertura comunitária” desses equipamentos
Infelizmente, esta utilização e construção cole-
não vem se verificando, talvez pelo temor dos
riscos de depredação. Já tive oportunidade de tiva pode esbarrar em uma série de fatores, alguns
desenvolver atividades de lazer em escolas, em já pontuados anteriormente. Numa sociedade que
trabalhos comunitários e, ao contrário do que cada vez mais se estrutura em torno da lógica ne-
se possa imaginar à primeira vista, uma ação
oliberal, há uma gradativa tendência de sucatea-
bem realizada nesse sentido, só contribui para
aumentar o respeito das pessoas pelo equipa- mento do público e uma valorização do privado,
mento, uma vez que, à medida que o utilizam, tornando mais difíceis as alternativas de participa-
vão desenvolvendo sentimentos positivos, pas- ção popular na construção do lazer. Esta democra-
sando a colaborar na sua conservação. No en-
tização dos espaços de lazer não pode estar pautada
tanto, o que se verifica, na maioria das vezes,
é a ‘abertura’ desses equipamentos apenas para apenas pela construção de mais espaços e equipa-
‘festas’, cujo objetivo principal é a arrecada- mentos específicos ou não. É de suma importância
ção de fundos para a sua manutenção (MAR- que além da preservação do patrimônio público
CELLINO, 2008. p. 18). existente haja um cuidado para não supervalorizar
determinados equipamentos, tornando-o inacessí-
vel em vez de favorecer sua utilização e, portanto,
subutilizado e até inutilizável. Como bem salienta
Marcellino (2008, p. 19):

[...] a ação democratizadora precisa abranger


a conservação dos equipamentos já existen-
tes, sua divulgação, ‘dessacralização’, e incen-
tivo à utilização, através de políticas específi-
cas, e a preservação do patrimônio ambiental
urbano.

129
RECREAÇÃO E LAZER

SAIBA MAIS O lazer situado hodiernamente no modo de


produção capitalista pode ficar relegado ao aspec-
As praças, um dos mais característicos exem- to do consumo de bens e serviços, podendo ser
plos de espaços livres, são unidades urba- exacerbado em uma lógica consumista, na qual,
nísticas fundamentais para a vida urbana, em muitos momentos, acredita-se que para ser fe-
configurando-se como locais para a prática liz é necessário consumir aquilo que está associa-
de lazer passivo e ativo, além de servirem ao
encontro e à convivência das pessoas e às ati-
do pela mídia como elemento de felicidade. Não
vidades culturais e cívicas. Têm presença mar- se percebe que esta lógica da satisfação associada
cante na composição das cidades, levando-se meramente ao consumo é fugidia. Vale salientar
em consideração sua diversidade e seu uso novamente que não estamos execrando o consu-
pela população, representando importantes
mo necessário à vida em sociedade, mas apenas
elementos, tanto históricos como culturais.
Marx (1980) refere-se à praça como logra- salientando o perigo de atribuir ao consumo - em
douro público por excelência, que deve sua nosso caso específico o do lazer - a única possibi-
existência, sobretudo, aos adros de nossas lidade de sua vivência, quando, na verdade, pode
igrejas, tendo surgido entre nós para reunião
não ser a mais sadia, pois pouco envolve a auto-
de gente e atividades diversas, diante de ca-
pelas ou igrejas. nomia e participação do sujeito na planejamento,
No século XIX e até meados do século XX, vivência e rememoração da experiência fruída. A
as praças tinham grande importância para privatização de espaços pode tornar o lazer mais
a vida citadina, funcionando como local de
uma mercadoria inacessível a uma boa parte de
lazer e sendo o centro dos acontecimentos
e novidades que ocorriam na cidade.
população, o que vai de encontro a uma política
de democratização dos espaços urbanos, mais es-
Fonte: Silva, Lopes e Lopes (2011, p. 199).
pecificamente dos espaços de lazer.

Uma luta popular fundamental é contra a lógica da


privatização de determinados espaços. Por mais que
se justifique que os serviços privados sejam de maior
qualidade do que o público, deve-se lutar para que
também o público seja oferecido com a qualidade
necessária e seja gratuito. Com isso percebemos que
a luta pelo direito ao lazer, previsto em nossa consti-
tuição, requer uma conscientização política e a per-
cepção dos jogos de poderes que estão por trás de
ações aparentemente tão inocentes como são as que
envolvem o lazer.

130
EDUCAÇÃO FÍSICA

Vale destacar, diante das discussões já realizadas, quando muito as áreas verdes, preservadas e zeladas
que consideramos espaço urbano na perspectiva da pela administração pública, como parques, hortos,
definição sintetizada por De Pellegrin (2004, p. 73): jardins e praças. Contudo, os espaços vazios tam-
bém têm um papel preponderante nestas reflexões,
[..] termo genérico que diz respeito aos luga- pois tanto os espaços construídos quanto os vazios
res em que se desenvolvem ações, atividades,
têm sua importância para a qualidade de vida dos
projetos e programas de lazer de modo geral.
Em contexto restrito, é possível encontrar a indivíduos. Seria sufocante, como em alguns casos
expressão espaço de lazer sendo usada para de- é, viver em espaço em que pouco vazio há e que, por
signar um lugar específico ou para caracterizar conta disso, a convivência fica prejudicada.
determinado equipamento. Do ponto de vista No espaço vazio, os três “Ds” do lazer também
mais amplo, espaço de lazer refere-se a um dos
podem ser vivenciados e, na verdade, precisam
aspectos de uma política de lazer. Diz respei-
to a como se organizam os diferentes equipa- dele para sua consecução. Descanso, divertimento
mentos em uma cidade, como são distribuídos, e desenvolvimento pessoal e social estão associa-
que tipo de possibilidades oferecem. Refere-se, dos intimamente a esses espaços. Como afirma De
também, aos espaços potenciais (vazios urba-
Pellegrin (1999, p. 152), numa dimensão subjetiva,
nos e áreas verdes, por exemplo), aqueles que
podem vir a transformar-se concretamente em o espaço vazio “[...] é um palco para a imaginação,
equipamento de lazer. Em suma, a expressão para o questionamento e para o conflito; permite ao
espaço de lazer diz respeito a toda a rede de ser humano pensar sobre seu presente, mas também
equipamentos de lazer, vazios urbanos e áreas
em situações futuras, esperadas, desejadas ou imagi-
verdes de uma cidade.
nadas”. Quanto maior o vazio, mais auto percepção
existencial é fomentada; basta você se colocar diante
O que desejamos com estas discussões é enfatizar da imensidão do mar e olhar para o horizonte, ou
que sem uma reflexão sobre os espaços urbanos, contemplar um céu estrelado, ou subir no alto de
com suas construções, áreas verdes e espaços va- uma montanha para se dar conta da pequenez, fra-
zios, fica inviável um aprofundamento nos aspec- gilidade e efemeridade da vida humana. Porém ao
tos que envolvem a relação lazer e qualidade de mesmo tempo, apesar desta delicadeza e fugacidade,
vida. Esta relação também está conectada com o é possível que uma atitude de humildade e gratidão
duplo processo educativo de acesso ao conheci- brote em nossos corações. Por isso a importância do
mento - já discutido anteriormente -, a crítica ao vazio e mais, - nele e por meio dele nos damos conta
percebido e à novas proposições, alternativas para da nossa correria, do que vale mais a pena, do que
a constante melhoria dos espaços e das possibili- é feita a nossa alma e de toda nossa potencialidade.
dades de usos desses espaços. Numa sociedade tão barulhenta, talvez o que falte
Ao apresentar sua síntese sobre espaço urbano, é justamente o silêncio, tantas vezes amedrontador,
De Pellegrin (2004) fala sobre os vazios. Um risco não apenas externo, mas interno. Os espaços vazios
que corremos ao tratar de espaços e equipamentos nos mostram que tudo pode ser transformado, in-
de lazer é visualizarmos apenas as construções e clusive as nossas vidas.

131
RECREAÇÃO E LAZER

A utilização dos espaços ainda é, de forma geral,


precária em nossa sociedade, principalmente dos
equipamentos não-específicos. Porém quais ações
poderiam ser deflagradas no sentido de solucionar
essas deficiências? Marcellino (2008, p. 18-19) apre-
senta três pontos fundamentais na busca de melho-
ria da utilização de equipamentos não-específicos de
lazer e sua consequente democratização:

1- a necessidade de desenvolvimento de uma


política habitacional, que considere, entre ou-
tros aspectos, também o espaço para o lazer - o
A discussão e valorização dos espaços vazios é tão im- que não é fácil num país como o nosso, com alto
portante para o espaço urbano, e consequentemente déficit habitacional, e que deve estimular alter-
para o lazer, pois ele fomenta a convivência, a lidar com nativas criativas em termos de áreas coletivas;
conflitos pessoais e interpessoais e as possibilidades de 2- a consideração da necessidade da utilização
soluções criativas para os dilemas dos seres humanos. dos equipamentos para o lazer, através de uma
Como destaca De Pellegrin (1999), a vida na cidade é política de animação;

uma vida de “cheios” que dominam o espaço; e nessa 3- a preservação de espaços urbanizados “vazios”.
disputa entre cheios e vazios parece que há uma ten-
dência de quanto mais cheio o externo, mais vazio o Portanto, uma ocupação adequada dos espaços, que
interno e quanto mais vazio o externo, maior a possibi- redunde em qualidade de vida para a população,
lidade de ordenação do mundo interior. contemplando os vários direitos afetos ao espaço ur-
É muito interessante perceber como a criativi- bano, requer uma racionalização de processos que
dade é estimulada no vazio. Apesar de, em grande sejam consubstanciados em leis e que expressem a
parte, os vazios urbanos serem utilizados com os visão administrativa - começando pelos municípios
conteúdos físico-esportivos do lazer, preponderan- - de uma política de valorização e humanização do
temente pelos “campinhos” de futebol, há outras espaço urbano. Neste processo deve estar implícita a
ações ligadas, por exemplo, aos conteúdos práticos necessidade não apenas de criar os espaços e conser-
ou manuais. Hortas comunitárias mobilizam um vá-los, bem como seus equipamentos, mas também
grande grupo em torno do vazio e a sua apropria- de dar “alma”, animá-los, e neste sentido os papéis,
ção gera um vínculo criativo não apenas para aquele tanto do voluntariado quanto dos profissionais es-
empreendimento, mas para a vida. pecializados, são fundamentais.

132
considerações finais

Estimado(a) aluno(a),
Mais uma vez percebemos a riqueza das inter-relações da temática lazer ao
realizarmos algumas incursões pela qualidade de vida. Apesar das diferentes
abordagens conceituais relacionadas à qualidade de vida, é possível eleger em
diferentes campos de atuações focos específicos que juntos componham o atendi-
mento às diferentes necessidades humanas para que a qualidade da vida humana
seja cada vez melhor.
Com relação ao lazer, há inúmeras possibilidades de aproximações à quali-
dade de vida. A corporeidade parece ser a mais específica quando analisamos o
lazer pela perspectiva da Educação Física. Porém, cada área de conhecimento po-
derá focar suas reflexões e intervenções à luz do seu arcabouço teórico. Contudo,
a teoria do lazer aparece como uma possibilidade de agregar diferentes áreas para
discussões ora multi, ora inter e, quem sabe, transdisciplinares.
A questão dos espaços e equipamentos associados ao lazer e à qualidade
de vida é outro assunto urgente, que deve ser discutido numa perspectiva, no
mínimo, multidisciplinar, pois uma vez ocupados, o processo de reversão e re-
planejamento destes espaços se torna ainda mais complicado. O planejamento
dos espaços urbanos, levando em consideração inclusive os vazios, como vi-
mos, necessita de uma reflexão sobre a utilização de equipamentos específicos
e não-específicos de lazer.
Todas estas discussões, obviamente, passam pelas diferentes cosmovisões,
principalmente de caráter político. Portanto, é impossível realizar tais reflexões
sem que, posteriormente, haja propostas de intervenções via políticas públi-
cas, quer seja de lazer, quer seja de urbanização. Contudo, o ideal é que es-
tas propostas nasçam de discussões de diferentes áreas, com a aproximação
da comunidade com a qual estamos lidando. Eis aí um grande desafio para os
profissionais do lazer advindo de diferentes áreas do conhecimento, que como
educadores(as), contribuamos de maneira consistente, por meio da nossa ação/
reflexão, jamais desvinculadas.

133
LEITURA
COMPLEMENTAR

Companheiros no cotidiano lúdico: os animais e a natureza


Os netos com quem estive nascem e crescem na cidade, mas tanto quanto possível
mantêm contato com os animais e com a natureza. Não há casa que não tenha cão
ou pássaro. Na residência do sr. Benedito, Tinoco é o cachorro mais velho; não é tão
brincalhão quanto Rex, mais novo, e atentíssimo a qualquer acontecimento em torno
da casa. Bastante “serelepe”, às vezes, é mantido preso, o que o contraria muito, provo-
cando reação inconformada por meio de insistentes latidos. Na casa de dona Betânia,
as atenções maiores se voltam para o papagaio, a quem ensinou a falar e até cantar.
Quando não está de muita prosa, a própria Betânia canta alguma coisa para ele, sem
interromper o trabalho que estiver realizando: “Meu louro!/ Que caça, meu louro?/ É o
rei que vá à praça,/Meu louro.”
Na casa de dona Jacira, está Princesa, cadelinha dócil com as crianças e presença obri-
gatória nas brincadeiras de casinha. “A gente pega na mão dela”, conta Roberta, “e
ela anda!”. Já na casa da dona Rosalina, Rambo e Luana formam o casal de cachorros,
enquanto na casa de dona Alda é Cascão o guarda e amigo de seus netos. Só não gosta
de muita proximidade humana quando está dedicado a um de seus hábitos prediletos.
Jerry avisa: ! se você chegar perto quando ele está comendo osso, ele morde!”
Junto com os animais, as crianças desfrutam também de um contato tão estreito quan-
to possível com a natureza. Nada parecido, é fácil entender, com seus avós, que cres-
ceram em zonas rurais, tento rios como vizinhos e alegres corridas com cabritos em
noites de lua cheia. Mas, pelo menos, podem pisar na terra, existente no quintal, na
escola, no passeio ou em terrenos baldios. Nas árvores, encontram companhia sempre
disposta a qualquer aventura - limoeiro, mangueira, mamoeiro, mexeriqueira, laranjei-
ra, bambu, abacateiro, além das existentes das ruas, a exemplo da sibipiruna. Servem
como abrigo do sol, instigam o desafio de serem escaladas e, além de tudo, são pontos
escolhidos por alguns netos, segundo me disseram, para se proteger da chuva. Ao que

134
LEITURA
COMPLEMENTAR

pude alcançar, banhos de chuva são muito apreciados por eles, embora nem tanto
pelo avós. A areia existente em certas casas, à espera de futura reforma ou melhoria,
se acomoda às caçambas de pequeninos caminhões, vira bolinho nas brincadeiras de
casinha, transforma-se em platarforma fofa para acolher escorregões ou saltos e ser-
ve de munição nas guerras, que são desencadeadas sob mínimo pretexto. Pedrinhas,
pauzinhos e gravetos felizmente são lembrados neste instante, são usados em outros,
menos contundentes, como quando Danila faz o “quintal inteiro de casinha”.
Soube por Jerry que a escola pública onde estuda mantém canteiros para que os alunos
de cada classe se incumbam de semear e cuidar de um jardim. Cultivar plantas é uma
das atividades prediletas de Jerry. A avó, orgulhosa desta habilidade do neto, reservou-
-lhe um pequeno espaço, que o menino cerca de muito esmero. Com a terra e algumas
mudas, formou seu pequeno jardim. Vai olhá-lo diariamente, rega-o três vezes por se-
mana e, como todo bom jardineiro, gaba-se de que as plantas não morrem em suas
mãos. Lá estão: crisântemos, azaléias, folhagens, maçã, espadas-de-são-jorge, violetas,
uma planta que “tem lá na pracinha” e outra dada por seu amigo, por enquanto sem
nome definido. Retribui a gentileza oferecendo outras mudas a ele, de sorte que possa
também entre eles florescer duradoura amizade.
Em tempos de inverno, a fogueira é sempre uma alegria nos quintais, nos passeios
ou nos terrenos vazios. Em torno dela, inúmeras brincadeiras acontecem: esconde-es-
conde, rela-rela, lanterna, “Bom-Bril”, pé-na-lata, mamãe da rua...Com o calor do fogo,
temperado pela brisa fria, tendo o céu, a lua e as estrelas a animar as brincadeiras,
quem há de ficar em casa? É assim que, assistidos às vezes pelos mais velhos, meninos
e meninas, de mãos dadas com os elementos naturais, transformam os espaços da rua
em terrenos de festa, quase todos os dias.

Fonte: Oliveira (1997).

135
atividades de estudo

1. A expressão qualidade de vida pode ser nova, mas o conceito por trás
deste termo já está presente na história da humanidade há muito tempo,
apenas ganhando uma nova roupagem em meio às novas características
e demandas das diferentes sociedades. Neste sentido, o que significa a
polissemia relativa à qualidade de vida? Exemplifique-a.

2. O lazer é, sem dúvida, promotor do bem-estar, mas requer uma atitude po-
sitiva, ativa, atrelada a outras esferas da vida. Além disso, não pode ser tra-
tado isoladamente, alheio a outras esferas da vida. A atitude ativa requer
dos animadores socioculturais que teoria e prática estejam indissociadas.
Neste sentido, Dumazedier (2014) destaca três elementos fundamentais
para que haja genuinamente esta atitude ativa no lazer. Apresente-os e
descreva-os.

3. Para a Educação Física, um elemento fundamental ao discutir-se qualidade


de vida associada ao lazer é a questão da corporeidade. A vivência corporal
com qualidade requer que voltemos a compreender e valorizar o corpo,
não numa perspectiva meramente funcional, mas existencial. O conceito
de qualidade de vida, sob a ótica do lazer, e mais especificamente na re-
lação com seus conteúdos físico-esportivos, precisam dialogar e revisar o
conceito de corpo e quem sabe assumir a perspectiva mais ampla e holísti-
ca da corporeidade. Segundo Moreira e Simões (2008), o que seria neces-
sário para a reconstrução do conceito de corpo, distorcido ao longo do
desenvolvimento da história da humanidade, atrelado à qualidade de
vida e ao lazer?

4. Ao associarmos lazer e qualidade de vida, numa perspectiva mais ampla,


necessariamente, devemos discutir a questão do espaço urbano. Não há
como conceber a possibilidade de constante melhoria na qualidade de
vida sem abordarmos as consequências da má distribuição do espaço.
Neste sentido, discorra sobre os aspectos negativos de um desordena-
do processo de urbanização e suas potenciais consequências para o
ser humano e, consequentemente, para o lazer.

5. Ao tratarmos da questão do processo de urbanização associada ao lazer,


necessariamente, devemos compreender os equipamentos de lazer. Re-
quixa (1980) distingue duas categorias de equipamentos de lazer. Apre-
sente e descreva a classificação deste autor e cite exemplos de equi-
pamentos nas duas categorias.

136
EDUCAÇÃO FÍSICA

Qualidade de Vida: complexidade e educação


Wagner Wey Moreira (org.)
Editora: Papirus
Sinopse: o livro trata de alguns dos principais desafios com relação
à qualidade de vida para o século XXI. Relaciona a qualidade de vida
com temas como: cultura, lazer, motricidade, beleza estática, ambiente, escola, portadores
de necessidades especiais, infância, adolescência, juventude, idade adulta, além de ricas dis-
cussões adjacentes a estas relações temáticas.
Comentário: para o(a) professor(a) de Educação Física, esta é uma obra fundamental para
introduzir os debates sobre temas que certamente estarão presentes no labor diário com
cultura corporal de movimento, numa perspectiva educacional.

Terra: existe um futuro?


Neste documentário do Discovery Channel, a temática é o aquecimento global e seus efeitos
destrutivos, tanto no presente como no futuro, caso ações imediatas não sejam tomadas.
Com o auxílio da computação gráfica, cenários são criados como um prognóstico das ações
presentes. Contudo, há indicações de caminhos para a reversão deste quadro. Caso nada
seja feito, catástrofes cada vez maiores surgirão, bem como uma convulsão social diante da
escassez de recursos naturais.
Para saber mais, acesse o link disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZeD7e-
BWwYSw>.

137
RECREAÇÃO E LAZER

A era da estupidez
Ano: 2009
Sinopse: o filme parte de uma questão fundamental: “Por que não
salvamos o planeta enquanto ainda tivemos chance?”. Esta é a per-
gunta de um arquivista que vive no alto de uma torre no Ártico der-
retido. Seu papel é zelar pelo conhecimento produzido pela humanidade. Várias histórias
são narradas paralelamente. Uma delas é a de um homem que reflete sobre a indústria de
combustíveis fósseis e o desperdício e ajudou a resgatar Nova Orleans, depois do furacão
Katrina. Outra é a de um empresário indiano planeja uma empresa aérea para pessoas de
baixa renda. Crianças iraquianas relatam a fuga. Enfim, histórias que sintetizam a estupidez
humana que pode levar o planeta à total destruição se nada for feito.

138
referências

ALMEIDA, M. A. B.; GUTIERREZ, G. L.; MARQUES, R. Qualidade de vida:


definição, conceitos e interfaces com outras áreas de pesquisa. São Paulo: escola
de Artes, Ciências e humanidades – EACH/USP, 2012.
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.
BETTI, M. Esporte espetáculo e mídias: implicações para a Qualidade de Vida.
In: MOREIRA, W. W.; SIMÕES, R. (orgs). Esporte como fator de Qualidade de
Vida. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002.
CHAUI, M. Conformismo e resistência. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
DAOLIO, J. Da cultura do corpo. 5. ed. Campinas: Papirus, 2000.
DAWSEY, J. C. Coisa de Macunaíma: cultura e dialética da qualidade de vida. In:
MOREIRA, W. W. (org.). Qualidade de vida: complexidade e educação. Campi-
nas: Papirus, 2001.
DE MASI, D. (org.). A economia do ócio. Rio de janeiro: Sextante, 2001.
DE PELLEGRIN, A. Os contrastes do ambiente urbano: espaço vazio e espaço de
lazer. Dissertação - Mestrado em Educação Física. Faculdade de Educação Física
da Universidade Estadual de Campinas, 1999.
______. Espaço de lazer. In: GOMES, C. L. (org.) Dicionário crítico do lazer.
Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 73-75.
DUMAZEDIER, J. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 2014.
GUIMARÃES, E.; MARTINS, V. L. A. Qualidade de Vida. In: GOMES, C. L.
(org.). Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
KAMPER, D. O trabalho como vida. São Paulo: Annablume, 1998.
MARCELLINO, N. C. . Lazer e qualidade de vida. In: MOREIRA, W. W. (org.).
Qualidade de vida: complexidade e educação. Campinas: Papirus, 2001. p. 45-59.
______. Lazer e sociedade: algumas aproximações. In: MARCELLINO, N. C.
(org.). Lazer e Sociedade: múltiplas relações. Campinas: Alínea, 2008. p. 11-26.
MARTINS, K. L. Corporeidade: uma expressão da comunicação humana como
possível vertente da fonoaudiologia. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
-graduação em Educação Física. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracica-
ba, 2008.

139
referências

MEDINA, J. P. S. O brasileiro e seu corpo: educação e política do corpo. 5. ed.


Campinas: Papirus, 1998.
MONDIN, B. Curso de filosofia. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1981. v. 2.
MOREIRA, W. W. (org.). Qualidade de vida: complexidade e educação. Campi-
nas: Papirus, 2001.
MOREIRA. W. W.; SIMÕES, R. Lazer e qualidade de vida: a corporeidade hu-
mana. In: MARCELLINO, N. C. (org.). Lazer e Sociedade: múltiplas relações.
Campinas: Alínea, 2008.
NAHAS, M. V. Atividade física, saúde e qualidade de vida: conceitos e sugestões
para um estilo de vida ativo. Londrina: Midiograf, 2001.
OLIVEIRA, P. S. Companheiros no cotidiano lúdico: os animais e a natureza. In:
BRUHNS, H. T. (org.). Introdução aos estudos do lazer. Campinas: Unicamp,
1997. p. 25-26.
PIMENTEL, G. G. A. Lazer: fundamentos, estratégias e atuação profissional. Jun-
diaí: Fontoura: 2003.
REQUIXA, R. Sugestões de diretrizes para uma política nacional de lazer. São
Paulo: SESC, 1980.
ROSÁRIO, A. M. T. do. Qualidade de vida: juventude, idade adulta e educação.
In: MOREIRA, W. W. (org.). Qualidade de vida: complexidade e educação. Cam-
pinas: Papirus, 2001.
SANTINI, R. C. Dimensões do lazer e da recreação: questões espaciais, sociais e
psicológicas. São Paulo: Angelotti, 1993.
SIMÕES, R. (Qual)idade de vida na (qual)idade de vida. In: MOREIRA, W.W.
(org.) Qualidade de vida: complexidade e educação. Campinas: Papirus, 2001.
SILVA, G. C.; LOPES, W. G. R.; LOPES, J. B. Evolução, mudanças de uso e apro-
priação de espaços públicos em áreas centrais urbanas. In: Ambiente Construí-
do, Porto Alegre, v. 11, n. 3, p. 197-212, jul./set. 2011.

Referências On-Line
1
Em: <http://colunastortas.com.br/2013/07/22/modernidade-liquida-o-que-e/>.
Acesso em: 31 maio. 2017.

140
gabarito

1. A expressão qualidade de vida se destaca na década 4. O processo de urbanização traz consequências dano-
de 80, atrelada mundialmente, de forma geral, à po- sas, principalmente quando ocorre de maneira desor-
breza, exclusão e desigualdade social. Contudo, não denada. Atualmente, os interesses imediatistas, como
houve uma clara definição e, desta forma, a mídia pas- por exemplo do mercado imobiliário, geram sérios
sou a utilizá-la de maneira polissêmica, ou seja, com problemas que afetam a qualidade de vida e o lazer,
variados e diferentes significados. Na década de 90 a gerando mais violência e falta de segurança. Com re-
qualidade de vida atrelou-se ao problema da cidada- lação aos espaços destinados ao lazer, é necessário
nia, à pobreza e à miséria, aos serviços e equipamen- um entendimento da problemática num sentido mais
tos que uma cidade ou província disponibiliza aos seus amplo e a implementação de ações criativas, basea-
habitantes, à vida saudável, qualidade de alimentação das numa análise que leve em conta outros elemen-
e nutrição, acesso de determinado grupo ou socieda- tos que compõem a vida na cidade, como distribuição
de a certos bens de consumo ou, mesmo, a espaços e populacional, diretamente ligada à questão do trans-
produtos destinados ao lazer, ao turismo ou ao consu- porte urbano, com relação direta na conservação das
mo de bens culturais. No senso comum, a expressão áreas verdes, que por sua vez influencia em desequilí-
qualidade de vida ficou associada às melhorias ou alto brios ambientais, como proliferação de pragas e dimi-
padrão de bem-estar na vida das pessoas, sejam de nuição da qualidade do ar. A má distribuição do espa-
ordem econômica, social ou emocional. No final da ço causa aglomeração de pessoas em determinados
primeira década dos anos 2000, a qualidade de vida lugares, enquanto que em outros não há aproveita-
atrela-se mais diretamente à saúde e ao estilo de vida, mento adequado, o que satura as potencialidades de
tanto no ambiente de trabalho quanto fora dele. determinados equipamentos de lazer, pois ele não se
torna convidativo e limita sua utilização. A democrati-
2. A atitude ativa no lazer, segundo Dumazedier (2014), zação do espaço e dos equipamentos de lazer está as-
requer que: 1) haja uma participação consciente e sociada diretamente ao tempo e ao espaço disponível,
voluntária na vida social (família, empresa, sindicato, condições sine qua non que o lazer ocorra.
vida civil etc.), e não uma anomia, ou seja, um isola-
mento e recolhimento social; 2) ocorra uma participa- 5. Segundo Requixa (1980), equipamentos de lazer po-
ção consciente e voluntária na vida cultural, em opo- dem ser classificados em específicos e não-específi-
sição à submissão às práticas rotineiras, às imagens cos. Os equipamentos específicos são projetados e
estereotipadas e às ideias preconcebidas de determi- edificados para uma finalidade específica, e sua clas-
nado meio social; e 3) exista um constante progresso sificação está atrelada ao tamanho, atendimento aos
pessoal livre pela busca, na utilização do tempo livre, conteúdos culturais, ou outros critérios mais especí-
de um equilíbrio, na medida do possível pessoal, entre ficos. Os exemplos são: quadras de esportes, pistas
o repouso, a distração e o desenvolvimento contínuo de skate, bibliotecas, teatros, hortas comunitárias. Os
e harmonioso da personalidade. equipamentos não-específicos são aqueles que não
foram concebidos para a prática das atividades de la-
3. Moreira e Simões (2008) consideram que uma legíti- zer, mas que por algum motivo passam a ser utiliza-
ma reconstrução do conceito de corpo, associada à dos, no tempo disponível, para um determinado inte-
qualidade de vida e lazer, exige um retorno às coisas resse do lazer. Exemplos; lar, bar, escola, rua, galpões
simples da vida, como o retorno ao contato direto com abandonados etc. Sempre é importante salientar que
a natureza: o solo, os rios, os lagos, o céu, a chuva, o que caracterizará a utilização do equipamento para
animais de forma geral, bem como outros seres hu- o lazer é o aspecto tempo e atitude.
manos, de maneira mais estrita. E mais, “viver o dia-a-
-dia com menos medos imaginários”. A construção da
corporeidade requer a incorporação de “signos, sím-
bolos, prazeres, necessidades, através de atos ousa-
dos ou através de recuos necessários sem achar que
um nega o outro”. O ser humano é a própria corpo-
reidade, mas que talvez tenha sido perdida diante de
tantos desequilíbrios da vida em nome de valores que
vão de encontro à própria vida e, consequentemente,
ao próprio conceito de qualidade de vida, como por
exemplo, o outro, a natureza, nós mesmos, com nos-
sas virtudes, defeitos e carências.

141
REPERTÓRIO DE ATIVIDADES
EM RECREAÇÃO E LAZER

Professor Me. Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
• Considerações gerais sobre repertório de atividades em recreação e lazer
• Exemplo de repertório de atividades em recreação e lazer

Objetivos de Aprendizagem
• Apresentar considerações fundamentais sobre um repertório de atividades
em recreação e lazer.
• Propor um modelo de repertório de atividades em recreação e lazer.
unidade

V
INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a),
Chegamos à nossa última unidade. Muitos acadêmicos, ao ingressa-
rem no curso de Educação Física e se depararem com as disciplinas que
cursarão, podem pensar que a disciplina Recreação e Lazer se resume ao
ensino de um rol de atividades para aplicação em diferentes ambientes e
para grupos etários, de maneira mais técnica. Contudo, como você perce-
beu, há uma vasta base teórica no campo do lazer e da recreação, grande
parte dela atrelada às pesquisas realizadas pelos programas de pós-gradu-
ação strictu sensu (mestrado e doutorado) ligados à Educação Física.
Entretanto, além desta base teórica, como já dissemos, o que deseja-
mos é que haja uma práxis pedagógica, conquistada por meio da apro-
ximação da teoria e da prática de maneira indissociável. Pois como sa-
lientamos, teoria sem prática é “discurso vazio” e prática sem teoria é
“tarefismo”. Neste sentido, o profissional em recreação e lazer deverá ser
muito dinâmico, pois poderá atuar em muitos ambientes e com diferentes
faixas etárias. A literatura apresenta muitas exigências ao animador so-
ciocultural. Apresentamos, nesta unidade, um exemplo, diante de tantas
possibilidades, de como compor um repertório de atividades. Os “manu-
ais” de atividades são sempre um risco, pois podem transformar-se em
meros receituários. O que irá diferenciar sua utilização é quem os utiliza-
rão e de que maneira o fará. Qual sua formação? Qual seu nível de refle-
xão? Qual sua capacidade de criação e de recriação de atividades diante
de diferentes contextos. Não podemos infantilizar o adulto, nem sequer
“adultizar” a criança, erro que muitos profissionais acabam cometendo.
Esperamos que o exemplo apresentado, baseado na experiência de um
grupo específico de pesquisa em lazer, seja um estímulo à composição de
seu próprio repertório. Este exercício, além de terapêutico, pois nos remete a
vivências lúdicas ao longo da nossa história, é também um registro histórico
cultural de diferentes contextos Brasil afora, e, quem sabe, além-fronteiras.
Divirta-se! Recrie-se!
RECREAÇÃO E LAZER

Considerações Gerais Sobre


Repertório de Atividades em
Recreação e Lazer
A necessidade de tratar da questão do repertório Em primeiro lugar, há o perigo do animador so-
de atividade em recreação e lazer justifica-se por ciocultural alicerçar a sua atuação nos manuais, ou no
dois motivos opostos: de um lado a dependência que, costumeiramente, denominamos de “receituário”.
exacerbada dos manuais, utilizados de maneira O problema de tratar o repertório como um livro de
acrítica; e do outro o desprezo pela elaboração de receitas é que sem uma capacidade de compreensão
um repertório. O que desejamos é justificar essa profunda sobre as atividades corre-se uma série de ris-
necessidade com base em tudo aquilo que discu- cos, como por exemplo infantilizar o adulto ou tratar
timos até aqui, a expressão de uma cosmovisão a criança como um adulto em miniatura. Portanto, o
em torno da temática lazer e recreação, encon- cuidado é para não passar a ideia de que o animador é
trando, portanto, um equilíbrio entre estas duas apenas um reprodutor, sem embasamento ou reflexão.
posições antagônicas. O risco dos manuais é arrefecer a criatividade.

146
EDUCAÇÃO FÍSICA

Por outro lado, há o risco de desprezar a elabo- Em 2002, Marcellino organizou o Repertório
ração de um repertório, por medo de que os anima- de atividades de recreação e lazer: para hotéis,
dores criem uma dependência e caiam no primeiro acampamentos, clubes, prefeituras e outros, obra
erro descrito anteriormente. No entanto, a elabo- que já conta com várias edições. A experiência
ração de um repertório pode ser realizada à luz de foi tão bem-sucedida que em 2007 organizou
toda teoria do lazer, bem como outras referências, Lazer e recreação: repertório de atividades por
como, por exemplo das teorias do desenvolvimen- ambientes, que em 2010 ganhou o volume dois,
to humano, da psicomotricidade, da neurociência com a participação de diferentes autores. Por
etc., podendo subsidiar a compreensão de grupos de fim, diante do sucesso das publicações, lançou
interesses, ambientes e equipamentos. Sempre de- em 2013 Lazer e recreação: repertório de ativi-
vemos salientar o cuidado de não instrumentalizar dades por fases da vida. Um dado interessante é
os jogos, brinquedos e brincadeiras, pois, como já que, sem realizar um juízo de valor, cada uma
mencionamos, a justificativa para o lazer é a alegria, destas obras apresenta uma vasta lista de livros
o prazer e a felicidade proporcionada, e ponto final. e alguns sites a serem consultados que também
Como afirma Marcellino (2013, p. 9), para se apresentam repertórios de atividades que podem
manter uma ideia de um repertório coerente com ser aplicados ao lazer e à recreação.
toda teoria do lazer, devemos entender que toda ati- As fichas que compõem as obras supracitadas
vidade pode e deve passar um constante processo de são frutos das vivências e experiências de muitos
reinterpretação. A experiência profissional e pesso- anos de profissionais que estão engajados no pro-
al é o que norteará tais ações, “embasada em teoria, cesso de ação/reflexão/nova ação, característico
confrontada na ação do cotidiano, e acompanhada do processo dialético necessário para a formação
do necessário exercício de reflexão constante”. e desenvolvimento do conhecimento que gera uma
Uma das experiências com repertório de ativida- mudança constante na atuação profissional. Como
des que considero melhor sucedida é a encabeçada salienta (Marcellino, 2013), a proposta de um re-
pelo Prof. Nelson Carvalho Marcellino na liderança pertório é que haja autonomia de cada animador
do GPL - Grupo de Pesquisas em Lazer (GPL), da Fa- no sentido de analisar e conhecer as fichas e as ex-
culdade de Educação Física (Facef) da Universidade periências de cada autor, vivenciar as atividades
Metodista de Piracicaba (Unimep), grupo do qual fiz para que isto redunde na construção de um reper-
parte de 2002 a 2005. Com pesquisadores de diferen- tório pessoal de atividades. O processo de elabo-
tes áreas e níveis acadêmicos, e com diversificadas ex- ração das fichas é fundamental para o exercício
periências pessoais e profissionais, o GPL conseguiu profissional do animador, pois o tira de uma zona
atrelar a teoria do lazer e o exercício profissional em de conforto, de um conformismo, que certamente
diferentes ambientes e com diferentes faixas etárias. redundará num mero consumismo das atividades
Esta experiência favorece a práxis, pois além da vi- pelos participantes, indo de encontro com toda te-
vência das atividades socioculturais há um processo oria debatida até aqui.
de crítica, reflexão e de recriação das atividades.

147
RECREAÇÃO E LAZER

O modelo de fichas utilizadas nas obras organi- concomitantemente, ora com prevalência de um ou
zadas por Marcellino são muito simples e muito efi- outro - além do caráter subjetivo de adesão à ativi-
cazes. São compostas pelos seguintes campos: dade, que o colocaria dentro de certa classificação
1. Nome da atividade; para uns -, ora em outra categoria para outro, pois
2. Conceito; estamos tratando da atitude nas vivências.
3. Descrição detalhada;
4. Recursos necessários (instalações, materiais,
humanos);
5. Montagem;
6. Funcionamento;
7. Possibilidades de utilização (ocasiões, am-
bientes etc.);
8. Possibilidades (necessidades) de adaptação;
9. Experiências já desenvolvidas;
10. Outras observações.

Considero que esses dez elementos possibilitam além


do registro dos elementos fundamentais para o com- Não podemos esquecer também que conhecimento,
partilhar das atividades com diferentes grupos, uma criticidade e criatividade sempre devem estar como
abertura para a recriação em diferentes ocasiões, am- pano de fundo das atividades. O descanso, diverti-
bientes, com diferentes equipamentos, materiais e re- mento e desenvolvimento pessoal e social também
cursos humano. As experiências já desenvolvidas dão pautam a atitude no lazer, por isso é importante que
um toque pessoal, que todo animador deve registrar, o animador não obrigue a participação, pois para ser
como um diário de bordo, que certamente suscitarão lazer deve ser voluntária, tendo em vista que pode
considerações e observações importantíssimas. haver a opção pelo descanso no tempo livre. A insis-
Além dos campos presentes nas fichas, as obras tência e obrigação mata o espírito do lazer.
mencionadas estão organizadas, basicamente, em
duas categorias: ambientes e fases da vida. Consi- Acreditamos, tendo em vista os conteúdos do
lazer, que o ideal seria que cada pessoa prati-
dero que estes dois parâmetros combinados cobrem
casse atividades que abrangessem os vários
inúmeras possibilidades de atuação profissional do grupos de interesses, procurando, dessa forma,
animador, além de situá-lo quanto a viabilidade das exercitar, no tempo disponível, o corpo, a ima-
vivências. Volto a frisar que, além destes parâme- ginação, o raciocínio, a habilidade manual, o
tros, os conteúdos sociais das atividades - práticos relacionamento social, o intercâmbio cultural e
a quebra da rotina, quando, onde, com quem
ou manuais, físico-esportivos, intelectuais, artísti-
e da maneira que quisesse. No entanto, o que
cos e turísticos - são balizadores interessantes para se verifica é que as pessoas geralmente restrin-
a classificação das atividades. Contudo, há em dife- gem suas atividades de lazer a um campo espe-
rentes atividades a combinação de vários interesses, cífico de interesse. E geralmente o fazem não

148
EDUCAÇÃO FÍSICA

por opção, mas por não terem tomado contato Um repertório de atividades em recreação e la-
com outros conteúdos. Nesse sentido, o papel zer não deve ser concebido de maneira abstrata.
da ação do animador sociocultural é funda-
Cada profissional deve iniciar seu processo de
mental, procurando diversificar ao máximo as
atividades oferecidas, em termos de conteúdos. elaboração de um rol de atividades olhando para
(MARCELLINO, 2013, p. 10-11). sua própria história, relembrando suas vivências
em diferentes contextos e registrando suas expe-
Portanto, a diversificação e a contextualização, frutos da riências e percepções sobre determinadas ativi-
criatividade, exigem um contato direto com as vivên- dades. Repertórios prontos, como os sugeridos
cias e histórias de cada animador. Além disso, a ideia anteriormente e referendados nesta obra, servem
de um repertório auxilia aqueles que desejam se en- como norteadores e inspiradores para novas ex-
volver com diferentes grupos e ambientes tendo como periências, por meio do referencial que cada um
base os diversos conteúdos culturais do lazer. Um vo- constrói ao longo de seu processo formativo, sem-
luntário, por exemplo, pode ser desafiado a participar pre cotejado pela crítica e criatividade. Os reper-
da animação de determinado grupo em determinado tórios, como salienta Marcellino (2002, p. 12-13;
ambiente e, motivado por um profissional com maiores 16) devem “passar pelo crivo profissional, com as
competências e conhecimentos, sentir-se instigado a se devidas e necessárias adequações”. A vida do ani-
aprofundar nos estudos sobre determinado conteúdo. mador, tanto pessoal quanto profissional, é o que
Este tipo de experiência deflagra o processo dialético pauta a alimentação, atualização e revisão de um
de recriação com base em diferentes experiências, bem repertório. Os diferentes repertórios disponíveis,
como um possível despertar de atuação profissional. com os mais variados fins e embasamentos teó-
A ideia de um repertório serve como auxílio e ricos, não devem passar pelo juízo de valor, mas
não como fundamento da atuação profissional para servir como meio de inspiração, de busca por no-
formação e atuação profissional de animadores so- vas experiências, que devem receber a impressão
cioculturais, tanto voluntários quanto profissionais, pessoal de cada novo animador, numa nova expe-
com formação superior ou não. Auxilia cursos de riência por meio da convivência.
formação em diferentes áreas, em nível superior ou
não, a terem um referencial para a aplicação contex-
tualizada, conforme o interesse mais evidente em
cada formação, ligado ao campo do lazer.
REFLITA

Outro aspecto importante, e que vale a pena


ressaltar, é que durante todo processo de ela-
Dedique alguns minutos para relembrar as
boração de nossas fichas, procuramos levar em principais atividades de seu repertório em
conta que o lazer, como esfera de manifesta- diferentes fases da vida (Infância, adolescên-
ção humana, é pleno de possibilidades. A sor- cia, juventude etc.). Registre estas atividades e
te/azar, a competição, a imitação, a vertigem, se não lembrar de detalhes das brincadeiras,
como nos lembra Caillois (1990) são compo- procure recuperar suas características.
nentes do jogo (MARCELLINO, 2002, p. 11).

149
RECREAÇÃO E LAZER

Os parâmetros seguidos como exemplos são das Uma das possibilidades de elaboração de um re-
obras de referência apresentadas em nosso mate- pertório de atividades é a classificação das atividades
rial, mas é necessário salientar que não ansiamos a partir de faixas etárias, ou como denomina Mar-
por impô-las a quem quer que seja. Pelo contrário, cellino (2013), por fases da vida. O objetivo deste
o objetivo é ter um bom ponto de partida para que parâmetro é que o animador que trabalhará com di-
cada um, conforme sua necessidade e percepção, ferentes faixas etárias considere as peculiaridades de
crie seus parâmetros, classificações, fichas e ou- cada fase da vida para que as atividades atendam a in-
tras formas de registro. teresses específicos (MARCELLINO, 2013, p. 9-10).

150
EDUCAÇÃO FÍSICA

Trataremos do repertório de atividades de re- são enriquecidas ao longo do tempo. Deve ser le-
creação e lazer em diferentes fases da vida apenas a vado em conta que os profissionais de diferentes
título de exemplo, pois, se fizermos isso, unindo-o formações terão à sua disposição diferentes espa-
aos diferentes ambientes, praticamente teríamos ços, equipamentos e relações socioculturais (MAR-
que reproduzir obras de grande envergadura para CELLINO, 2007, p. 9).
tratar de cada possibilidade específica. Nas fases da Como já construímos um bom referencial teó-
vida, apresentamos, também, um exemplo de ficha rico e, certamente, esta será uma faixa etária atin-
de atividade para cada uma das quatro fases para gida grandemente por nossa atuação profissional,
que fique evidente como se aplicam os diferentes utilizaremos a infância como exemplo de composi-
elementos que a compõe. ção de um repertório básico de atividades. São dois
Como sugestão para a elaboração do repertório, elementos básicos: a) Referencial teórico sobre o
a partir de diferentes parâmetros, é importante que parâmetro adotado; b) Fichas de atividades. Quan-
haja considerações gerais sobre ele. Por exemplo, no to ao referencial, pode ser apresentado em forma
caso das crianças, o que deveria ser considerado de de texto, mas ainda assim sugerimos, para constan-
mais importante para a faixa etária? Suas necessida- te revisão e consulta, que haja uma síntese, como a
des, a forma como lida com a frustrações, capacida- apresentada a seguir, com base no texto introdutó-
des etc. Da mesma forma com a pré-adolescência, rio Considerações sobre o lazer na infância, (SILVA;
adolescência, juventude, idade adulta e terceira ida- MARCELLINO, 2013, p. 15-22) da obra Lazer e
de. Obviamente que o objetivo não é apresentar um recreação: repertório de atividades por fases da vida
tratado sobre o desenvolvimento humano, mas situ- (MARCELLINO, 2013), e um exemplo de atividade
armo-nos a partir das nossas necessidades imediatas para criança sugerida por Silva e Marcellino (2013,
ao intermediar a vivência das atividades. p. 26). Sugerimos que o referencial e as fichas sejam
Estas considerações cabem também aos dife- registradas em folhas separadas, procurando arqui-
rentes ambientes. Cada um deles traz em si necessi- vá-las em pastas que facilitem a manipulação e o
dades e possibilidades específicas, que demandam acréscimo de novas atividades ao repertório, bem
do animador a capacidade de permanente renova- como a alteração de informações das atividades já
ção do seu repertório conforme as suas vivências registradas neste.

151
RECREAÇÃO E LAZER

Exemplo de Repertório
de Atividades em
Recreação e Lazer

152
EDUCAÇÃO FÍSICA

EXEMPLO DE ESTRUTURA DE REPERTÓRIO INFANTIL

Principais considerações sobre a infância e lazer


1. A criança se situa entre o natural e o 10. Por meio do prazer, o brincar possibilita às
social, ou seja, ela precisa ser vista não crianças a vivência de sua faixa etária, e ain-
apenas como organismo em movimento, da contribui, de modo significativo, para sua
mas como ser enraizado “em um tempo e formação como seres realmente humanos,
um espaço, alguém que interage com es- participantes da cultura da sociedade em
tas categorias, que influencia o meio onde que vivem, e não meros indivíduos requeri-
vive e é influenciado por ele” (PERROT- dos pelos padrões de “produtividade social”.
TI, 1982, p. 12). 11. O que caracteriza o jogo é menos o que se
2. É preciso destacar a necessidade de questio- busca do que o modo como se brinca, o es-
nar a pretensa disponibilidade de tempo na tado de espírito com que se brinca (BROU-
infância e sua fruição livre e espontânea. GÈRE, 2002, p. 21).

3. Ao considerar o uso concreto do tempo na 12. Não estimular ou reforçar estereótipos


infância, uma das primeiras observações ou preconceitos relativos às questões de
que se fazem necessárias é deixar de enten- gênero e lazer, que cercam o desenvolvi-
dê-lo apenas como o tempo do brinquedo, mento das atividades.
do lúdico, do lazer. 13. O lúdico não deve ser considerado como
4. A criança deve ser considerada como um “coisa não séria”.
ser do presente e não somente do devir. 14. Jogar significa colocar algo em jogo e, as-
5. As crianças, como seres brincantes e joga- sim, colocar-se em jogo. O animador deve
dores, não são produtivas e têm no prazer o superar atitudes autoritárias, portanto.
princípio determinante de suas vidas, o que 15. Os jogos podem ser classificados em qua-
não interessa para a nossa sociedade. tro componentes, segundo Caillois (1990):
6. Variando de acordo com a estrutura social, competição (agon), acaso (alea), imitação
a formação do caráter social muda de acor- ou disfarce (mimicry) e vertigem (inlix).
do com o momento histórico, e é inserida 16. Os quatro componentes do jogo se situam
na infância, podendo ser estimulada ou numa linha de duas extremidades: paedia (di-
frustrada na vida adulta. vertimento, improvisação livre, fantasia sem
controle) e ludus (convenções aceitas, barrei-
7. A socialização das crianças predestinadas
ras imposta, parcelas de esforço, empenho).
ao sucesso, pela situação de classe, começa
cada vez mais precocemente. 17. O brinquedo é suporte para brincadeira.
8. Falta espaço, motivação e orientação para 18. A brincadeira está mais próxima da paidea.
atividades grupais e práticas criativas. 19. O jogo está mais vinculado ao ludus.
9. O animador tem grande responsabilidade 20. Os esportes se caracterizam como jogos (lu-
como estimulador das crianças como pro- dus) codificados e federados.
dutoras de cultura e como mediador entre a
produção cultural e as crianças. 21. Não existe uma criança, mas várias, com
repertórios variados, um ser concreto e
não abstrato.

153
RECREAÇÃO E LAZER

Ficha de atividade de recreação lazer para crianças

FICHA Nº ___
Nome da atividade: Cabanagem ou “brincando de cabana”

• Conceito: atividade, para grandes e pequenos grupos, que pretende resgatar


a prática de construir cabanas e suas possibilidades lúdicas.
• Descrição detalhada: após selecionar o material, o grupo se organiza para
confeccionar cabanas.
• Recursos necessários (instalações, materiais, humanos):
• espaço com paredes ou apoios para as cabanas;
• lençóis ou tecidos de diferentes tamanhos;
• barbante;
• tesouras;
• caixas de papelão;
• retalhos;
• objetos e materiais diversificados, conforme o interesse do grupo;
• dois animadores.
• Montagem: é bastante interessante convidar os participantes para a esco-
lha e a preparação dos materiais.
• Funcionamento: os animadores orientam a confecção das cabanas.

154
EDUCAÇÃO FÍSICA

• Possibilidades de utilização (ocasiões, ambientes etc.): pode ser utilizada


em diferentes espaços de atuação - clubes, acampamentos, colônias de fé-
rias - com crianças e adolescentes. Algumas adaptações tornam possível a
atividade com adultos.
• Possibilidades (necessidades) de adaptação: se realizada em espaços aber-
tos, procurar utilizar também recursos naturais, geralmente encontrado
no solo (galhos, flores, tronco de árvores etc.).
• Experiências já desenvolvidas: vivenciada pela primeira vez em curso de for-
mação de professores (adultos e posteriormente adaptada para outros locais,
como escolas e colônias de férias).
• Outras observações: é possível agregar esta atividade a outras, como, por
exemplo: contação de histórias (crianças) ou jogos de estratégia (adoles-
centes), fazendo uso do espaço da cabana. O “brincar de casinha” foi outra
possibilidade explorada pelas crianças.

Atenção!

Os parâmetros podem variar e ao longo do tempo agregarem mais informações.


Na obra de Marcellino (2013) há apenas quatro divisões nas fases da vida, mas
nada impede que, conforme a necessidade, o animador realize mais subdivisões
das faixas etárias. Ainda a título de exemplo, apresentamos mais três fichas que
apresentam atividades voltadas para jovens (STOPPA; DELGADO, 2013, p. 72),
adultos (ALVES; ISAYAMA, 2013, p. 131) e idosos (BARBOSA; CAMPAGNA,
2013, p. 174), respectivamente.

155
RECREAÇÃO E LAZER

EXEMPLO DE FICHA DE ATIVIDADE PARA JUVENTUDE

FICHA Nº ___

Nome da atividade: Caça ao tesouro


• Conceito: equipes têm de “caçar” as pistas espalhadas pelo espaço que está
sendo realizada a atividade para poder achar o tesouro ao final da última
pista.
• Descrição detalhada: a resolução de cada pista leva ao local da outra pista.
As pistas podem ser feitas das mais variadas maneiras. O objetivo é achar
o tesouro que está escondido e, assim, vencer atividade.
• Recursos necessários (instalações, materiais, humanos):
• cartolina;
• papel sulfite;
• uma animador por equipe;
• uma caneta por equipe;
• uma lanterna por equipe;
• um coordenador da caça;
• uma lanterna para o coordenador.

156
EDUCAÇÃO FÍSICA

• Montagem: as pistas, previamente preparadas e numeradas pelos ani-


madores, são também por eles escondidas. Um pedaço de cartolina é
dobrado ao meio: na frente consta o número da pista, e, na parte interna,
a pista a ser decifrada. A pista número um é dada em mãos, ao mesmo
tempo, para as equipes, que a resolvem e vão à procura da segunda pista,
a qual estará escondida no local apontado na primeira pista decifrada
por eles, e assim sucessivamente.
• Funcionamento: as equipes caçam as pistas, acompanhadas pelos anima-
dores. Cada pista resolvida leva a equipe ao local da outra pista. É im-
portante que a equipe permaneça unida. Vence aquela que encontrar o
tesouro, passando por todas as pistas, que possuem uma sequência.
• Possibilidades de utilização (ocasiões, ambientes etc.): de preferência em
local externo e amplo, em qualquer horário (dia ou noite). Se a atividade
foi feita em local fechado, as pistas não terão que ser encontradas, apenas
decifradas, uma após a outra.
• Possibilidades (necessidades) de adaptação: as pistas devem ter grau de
dificuldade médio ou alto para não desanimar os participantes.
• Experiências já desenvolvidas: em hotéis, day camps, e com alunos dos
cursos de Educação Física e Turismo.
• Outras observações: o número de participantes de cada equipe não deve
ultrapassar 12, dando condições a todos de tomar parte da atividade. De-
vem se espalhar as pistas por locais previamente observados, sendo im-
portante que os participantes já conheçam o espaço da atividade. A ordem
dos locais deve ser alternada para não provocar congestionamento das
equipes no mesmo lugar e na mesma hora.

157
RECREAÇÃO E LAZER

EXEMPLO DE FICHA DE ATIVIDADE PARA ADULTOS

FICHA Nº ___

Nome da atividade: Guerrilha


• Conceito: brincadeira noturna cujo objetivo é achar a bandeira e desco-
brir a senha do time adversário.
• Descrição detalhada: divide-se o grupo em duas equipes. Elas devem
combinar uma senha secreta e esconder sua bandeira. Cada participante
deve ter uma fita colada no braço. Ao sinal do animador, cada participante
deve tentar encontrar a bandeira da outra equipe e descobrir sua senha.
• Recursos necessários (instalações, materiais, humanos):
• duas bandeiras;
• fita crepe colorida (duas cores);
• duas lanternas;
• dois animadores.

158
EDUCAÇÃO FÍSICA

• Montagem: os animadores devem dividir o grande grupo em duas


equipes; pode-se fazer a divisão das equipes de acordo com o critério
dos participantes. Feita a divisão, cada participante deve ter uma fita
colada no braço, com a cor correspondente à sua equipe. Os animado-
res explicam o jogo.
• Funcionamento: após a montagem, cada equipe deve combinar uma se-
nha e esconder sua bandeira; os participantes devem se espalhar pelo es-
paço, tentando achar a bandeira da outra equipe, individualmente ou em
pequenos grupos. Quando cruzarem com alguém pelo caminho, os par-
ticipantes devem dizer as senhas secretas; se for a mesma senha, significa
que são da mesma equipe e continuam à procura da bandeira da equipe
adversária; se as senhas forem diferentes, significa que são adversários;
nesse caso, um deve tirar a fita do braço do outro, e quem perder a fita está
fora do jogo. Ganha a equipe que descobrir a senha do outro e encontrar
a bandeira da outra equipe.
• Possibilidades de utilização (ocasiões, ambientes etc.): acampamentos,
gincanas, encontros etc.
• Possibilidades (necessidades) de adaptação: não há limite de idade,
desde que as crianças menores sejam acompanhadas por adultos ou
crianças maiores.
• Experiências já desenvolvidas: acampamentos com adultos em Nova
Odessa (SP).
• Outras observações: as lanternas devem estar com os animadores, caso
seja necessário interferir durante o jogo.

159
RECREAÇÃO E LAZER

EXEMPLO DE FICHA DE ATIVIDADE PARA IDOSOS

FICHA Nº ___

Nome da atividade: Passa arco


• Conceito: atividade de interação e coopera- meiro ao último companheiro da coluna sem
ção entre os participantes. tocar as mãos nele e sem deixá-lo cair. O ani-
• Descrição detalhada: um arco (bambolê) de- mador dará o sinal de início.
verá ir de uma ponta a outra da coluna sem • Possibilidades de utilização (ocasiões, am-
que os participantes toquem as mãos nele. bientes etc.): esta atividade é adequada para
• Recursos necessários (instalações, materiais, diversas ocasiões e pode ser realizada tam-
humanos): bém com pessoas mais jovens.
• arcos (bambolês); • Possibilidades (necessidades) de adaptação:
os participantes podem utilizar algum incre-
• animador sociocultural.
mento que dificulte um pouco mais os movi-
• Montagem: os idosos deverão se dispor em
mentos, como chapéus, por exemplo, ou até
colunas com as mãos dadas. O arco será colo-
mesmo ficar sentados.
cado nos ombros do primeiro participante da
• Experiências já desenvolvidas: vivência já
coluna sem que se inicie a brincadeira.
realizada com grupos de convivência e outros
• Funcionamento: mantendo as mãos dadas,
grupos de idosos.
os participantes deverão passar o arco do pri-

160
EDUCAÇÃO FÍSICA

Quanto aos demais parâmetros utilizados para a Portanto, são inúmeras as possibilidades e pa-
composição de um repertório de atividades em re- râmetros para a elaboração de um repertório de
creação e lazer, à luz das obras elaboradas por Nel- atividades. O importante é levar em conta as con-
son Carvalho Marcellino juntamente ao GPL, há a siderações feitas inicialmente e rememorar as ex-
utilização dos ambientes como elementos classifica- periências pessoais desde a infância do animador
dores das atividades. Não descreveremos cada um até o momento em que está vivendo, deixando fluir
deles, mas a mesma lógica aplicada às fases da vida a criatividade para inventar e reinventar atividades.
cabe a cada um dos ambientes. Primeiro as conside- O espírito lúdico de cada um deve vir livremente
rações teóricas sobre os ambientes e depois as fichas à tona, como uma forma de expressão e manifes-
de atividades para cada ambiente no mesmo modelo tação humana que, no compartilhar, ganha novas
proposto. Os elementos apresentados nos dois volu- nuances e expande a possibilidade de participação
mes do repertório por ambientes (MARCELLINO, e imersão cultural para diferentes faixas etárias e
2007; MARCELLINO, 2010) são: Acampamento de em diferentes ambientes, propiciando vivências ri-
Férias; Brinquedotecas; Clubes; Colônias de Férias; cas que, espontaneamente, gerem a todos os envol-
Ambientes Escolares (pátios e salas de aula); Festas; vidos prazer e felicidade.
Meio Ambiente; Meio Aquático (piscinas); Quadras
Esportivas; Comunidades; Biblioteca; Condomí- SAIBA MAIS
nios; Cruzeiros Marítimos (navios); Empresas; Es-
portes Radicais; Grupos Religiosos; Hospitais; Ho-
A riqueza dos jogos e brincadeiras da nossa
téis; Ônibus; e Spas. cultura brasileira está ligada diretamente à
nossa miscigenação e o repertório que cada
grupo trouxe de sua cultura específica. Um
elemento muito marcante na cultura de brin-
cadeiras, brinquedos e jogos brasileiros é
a presença de elementos da cultura indíge-
na. Para saber um pouco mais, sugerimos
a leitura do Livro Jogos e Culturas indígenas:
possibilidades para a educação intercultural
na escola, disponibilizado pelo Ministério do
Esporte em seu site <http://www2.esporte.
gov.br/arquivos/snelis/esporteLazer/cedes/
jogosCulturasIndigenas.pdf>.
Ainda para saber mais sobre tais elementos e
sua influência, acesse: <https://brasileirinhos.
wordpress.com/2016/04/19/brinquedos-e-
-brincadeiras-da-nossa-cultura-indigena/>.

Fonte: o autor.

161
RECREAÇÃO E LAZER

Prezado(a) aluno(a),
Pudemos perceber que os campos para atuação profissional em recreação
e lazer são vastos. Contudo, isso pode gerar uma superficialidade perigosa para
atuação do animador sociocultural. Os perfis deste animador também são ca-
racterizados de diferentes formas, por diferentes autores, e o que determinará
sua construção é a autonomia do profissional diante dos diferentes contextos e
desafios. Esta atuação requer, necessariamente, uma construção consciente de
um repertório básico de atividades com embasamento para diferentes públicos e
contextos, levando-se em conta suas especificidades.
Portanto, como pudemos perceber, atuação profissional consistente no cam-
po do lazer não pode ser meramente técnica. Obviamente que, assim como em
diferentes áreas, há técnicas específicas envolvidas. Contudo, o que diferencia-
rá os diferentes animadores socioculturais são as habilidades para associar toda
uma base teórica à sua intervenção em diferentes situações. Isto sim resgata um
bom sentido para a recreação, mais no sentido do profissionais recriarem as ati-
vidades, conforme diferentes demandas.
A composição de um repertório ao longo da trajetória não apenas profissio-
nal, mas também de vida, é de uma riqueza espetacular. Resgatar atividades da
infância, sistematizá-las, refletir sobre cada uma delas, recriá-las, reinventá-las,
enfim, exercer uma ação crítica e criativa sobre elas, enriquece sobremaneira as
possibilidades de atuação no lazer.
Um profissional capacitado no campo do lazer, assim como em outras áreas,
sempre está buscando novos conhecimentos e experiências. A partir dos diferen-
tes conteúdos culturais do lazer podemos estabelecer o nosso “check-list” peri-
ódico, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional. O mesmo valor que
atribuirmos ao trabalho devemos atribuir ao lazer. Este equilíbrio é um grande
desafio tanto para nós profissionais quanto para aqueles a quem servimos com
nossos conhecimentos e intervenções. Que consigamos encontrar este equilíbrio
para uma vida cada vez melhor.

162
LEITURA
COMPLEMENTAR

Saberes e competências na formação de


educadores e educadoras
1. Competências referentes ao comprometimento com • Não basta ter cultura – De que sentido de cultura
os valores inspiradores da sociedade democrática falamos? Da “alta” cultura? Da “cultura de massa”?
Da “cultura popular”? Precisamos saber um pouco
• Não basta ter animação – A alegria precisa estar alia-
mais sobre as referências culturais dos nossos con-
da à competência político-democrática; precisa ter
textos educativos; compreender as relações entre
clareza de seus fins. Não pode ser ingênua. [...].
o processo educativo vivido na escola, em outros
• Não basta ter bom senso – O bom senso supõe que
contextos educativos e o contexto sociocultural
haja apenas um senso – o “bom”. No entanto, a mo-
mais amplo em que estão inseridas essas práticas
dernidade nos ensinou que o senso é plural, que
educativas; promover uma prática educativa que
a educação e o lazer são lugares de conflitos, que
leve em conta as características dos educandos,
não há como desqualificar a posição do outro. É
de seu meio social, seus temas e necessidades do
preciso, por isso, ter disponibilidade para o diálogo.
mundo contemporâneo; motivar a formação de
Saber escutar. [...].
grupos de interesses culturais no lazer, criando
• Não basta ter talento – O talento é indispensável ao
condições para a diversificação e a democratiza-
exercício de qualquer vivência que busca qualida-
ção de múltiplas vivências de conteúdos culturais,
de, mas, na ótica da qualidade lúdica, precisa ser
ampliando possibilidades para os sonhos, as expe-
aliado à reflexão e aos princípios da ética demo-
riências, as apropriações e as recriações de sabe-
crática: dignidade humana, justiça, respeito mútuo,
res. O lazer é um dos lugares dos nossos projetos e
participação, responsabilidade, solidariedade. [...]
aventuras, momento de nos expandirmos em todo
2. Competências referentes à compreensão do nosso
tipo de expressão e de viver a unidade entre o que
papel social na educação para o lazer
sentimos, pensamos e fazemos.
• Não basta ter intuição – A intuição implica, em última 3. Competências referentes ao domínio dos conteúdos
análise, ouvir a própria consciência, arriscando-se a a serem socializados, de seus significados em dife-
ir de encontro à sua própria razão. Não há como rentes contextos e articulações interdisciplinares
abandonar o senso crítico e desenvolver reflexões
• Não basta saber conteúdos – Não basta que o edu-
contínuas sobre os saberes e as experiências cons-
cador e a educadora tenham conhecimentos sobre
truídas. É preciso discutir os próprios valores, os
lazer. É preciso que saibam mobilizá-los, transfor-
dos outros e os do contexto social histórico. Daí
mando-os em ação. O domínio de conhecimentos
a importância da pesquisa e da reflexão filosófica
específicos no campo do lazer deve ser articulado
para a apreensão da realidade. [...]
com questões envolvidas com a vivência do lazer

163
LEITURA
COMPLEMENTAR

e a identificação de alternativas de resolução de – e a recriação cultural coletiva. Além disso, não dá


dificuldades surgidas nessas concretizações. A para pensar que a educação pelo e para o lazer
ampliação e o aprofundamento de conhecimento ocorre na prática – errando e acertando. O saber
são, pois, traços definidores da relação entre la- experiencial precisa ser alimentado com outros sa-
zer, educação e socialização para a cidadania. Falo beres, que podem servir de apoio para novas rein-
do conhecimento não como produto acabado e fe- venções e de trocas de experiências que fortalecem
chado em si mesmo, mas como aquele que instiga lideranças e equipes interdisciplinares.
a busca de novos conhecimentos, por isso é crítico 4. Competências referentes ao domínio do conheci-
e criativo, ciente de sua história e integrado à rea- mento pedagógico, ao conhecimento de processos
lidade, que é multifacetada. O lazer como campo de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento
de experiências interdisciplinares é um espaço de da prática pedagógica e ao gerenciamento do pró-
convergência de projetos e ações de especialistas prio desenvolvimento de ações educativas lúdicas
e educadores de diferentes áreas: administrado-
• Não basta ter o domínio técnico – A educação pelo
res, artistas, técnicos, pesquisadores, líderes co-
e para o lazer não pode ocorrer alheia à formação
munitários e outros que se congregam nas bus-
moral fundada na ética lúdica e no gosto estético,
cas lúdicas. Juntos, ensinam, aprendem, criam e
bem como no conhecimento de processos de in-
recriam ações e saberes, fortalecendo parcerias,
vestigação que possibilitem o aperfeiçoamento da
otimizando intervenções.
prática pedagógica; não pode ser alheia à partici-
• Não basta ter experiência – As experiências vividas
pação coletiva e cooperativa na elaboração, gestão,
precisam ser potencializadas com o desenvolvi-
desenvolvimento e avaliação dos projetos educati-
mento da criatividade, da curiosidade, da busca
vos. Nas atividades lúdicas, os sujeitos brincantes
do novo. Neste sentido, é fundamental a busca da
são parceiros, cúmplices e corrresponsáveis pelo
autonomia dos educandos nas tomadas de deci-
jogo – deles nascem as formas de organização dos
sões sobre a eleição dos conteúdos, abordagem
riscos, as táticas, as técnicas de superação dos limi-
metodológica, criação de diferentes tempos e es-
tes e de expressão de diferentes formas estéticas
paços de vivência lúdica, mobilização de recursos
do conteúdo cultural experienciado. Eles constro-
múltiplos desvelados nas interações culturais lúdi-
em mecanismos lógicos de uso de espaço e tempo,
cas, não se esquecendo da importância da riqueza
expandindo-se neles e ampliando-os como espa-
das diferentes experiências dos educadores, edu-
ços de liberdade.
cadoras e educandos os sujeitos têm experiências
Fonte: Pinto (2001, p. 67-69).
diferenciadas. Na educação pelo e para o lazer, é
importante valorizar a história do outro – o que traz

164
atividades de estudo

1. O profissional que atua no campo do lazer pos- 4. O animador sociocultural tem um rico campo
sui uma série de nomenclaturas. Ora é deno- de atuação, com inúmeras possibilidades e
minado de monitor, ora de recreador, agente oportunidades, mas que requer uma consciên-
cultural, orientador social, entre tantas outras cia das especificidades e alcance da sua ação.
denominações. Esta variedade de termos pode Com relação à possibilidade de atuação neste
revelar uma falta de identidade profissional. campo profissional, quem pode atuar e como
Animador sociocultural é o termo que adota- deve ser o processo formativo?
mos em nossos estudos. Neste sentido, des-
taque alguns elementos essenciais para a 5. A melhoria constante na formação profissional
compreensão desta nomenclatura dada ao para o lazer redundará na melhoria da atua-
profissional que atua no campo do lazer. ção profissional, levando-se em consideração
o duplo processo educativo (educação pelo e
2. A ação do animador sociocultural deve pre- para o lazer). Portanto, estamos tratando da
zar por um profissionalismo que demonstre o formação de educadores que estejam compro-
valor da sua atuação. Para que esta ação seja metidos com a transformação social com vistas
efetiva, Dumazedier (s.d.) classifica diferentes à justiça, igualdade e qualidade de vida. Pinto
níveis do animador, de acordo com seu grau (2001, p. 67-69), nesta ótica, sintetiza saberes
de especialização. Pina (1995) apresenta uma e competências e considera preponderantes
síntese desta estrutura piramidal apresentada para o processo formativo do educador, que
por Dumazedier. Descreva como seria esta devem embasar também atuação do animador
estrutura piramidal e teça algumas conside- sociocultural. Apresente quais são estes ele-
rações relevantes sobre a questão da espe- mentos e sua importância para o animador.
cialização profissional.

3. Sem dúvida alguma a atuação no lazer, seja li-


gada apenas a um dos seus conteúdos culturais
ou a todos eles, traz uma grande satisfação.
Contudo, um grande risco ao animador socio-
cultural é optar por uma atuação específica no
campo do lazer baseada em suas experiências
de prazer com o lazer. Neste sentido, destaque
alguns alertas para a opção neste campo de
atuação profissional.

165
RECREAÇÃO E LAZER

Lazer e Recreação: repertório de atividades por fases da


vida.
Nelson Carvalho Marcellino (org.)
Editora: Papirus.
Sinopse: a obra foi organizada pelo professor Dr. Nelson Carvalho
Marcellino. Os professores que elaboraram as fichas são pesquisadores e atuantes em dife-
rentes áreas do lazer. O objetivo da obra é compartilhar repertório de atividades de recrea-
ção e lazer para profissionais de diferentes áreas, não como um receituário, mas como um
estímulo ao registro das atividades vivenciados por cada um em diferentes contextos e faixas
etárias distintas. A obra contém atividades de lazer e recreação a partir de um modelo de
fichas que estimula novas experiências com as atividades propostas.

Para compor seu repertório e saber um pouco mais sobre ações educacionais lúdicas, indica-
mos alguns sites que irão ajudar você a recuperar algumas atividades talvez já vivenciadas, e
conhecer outras muito interessantes.

Escola Oficina Lúdica: <http://www.escolaoficinaludica.com.br/>.

Jogos.com.br: <http://www.ojogos.com.br/>.

Sociedade Ibero Americana de Jogos Cooperativos: <http://jogoscooperativos.com.br/>.

Associação brasileira de brinquedotecas: <http://brinquedoteca.net.br/>.

Rei da Derivada: <http://www.reidaderivada.com/>.

Sumaê - Somas com Chapéu: <http://www.summaeh.com/>.

166
EDUCAÇÃO FÍSICA

Tarja Branca: a revolução que faltava


Ano: 2014
Sinopse: o título do filme já é uma brincadeira ao opôr-se aos remé-
dios de tarja preta. O objetivo é apresentar a importância do brincar
não apenas para a infância, mas para qualquer idade. Defende a
necessidade urgente da ludicidade diante de uma realidade cada vez mais opressora e es-
tressante. Este estresse não está associado apenas à vida adulta, mas também às crianças,
com uma carga cada vez maior de obrigações e sem tempo e espaço para o compartilhar de
brincadeiras que correm o risco de se perderem.
Comentário: este documentário é obrigatório a qualquer educador, não apenas aos que li-
dam diretamente com animação sociocultural, pois trata de um tema de extrema relevância
para os dias atuais. A reflexão sobre o brincar não deveria ficar relegada apenas à infância,
mas à própria reflexão sobre o Homo Ludens, obra de Johan Huizinga, cuja leitura certamen-
te enriqueceria as reflexões sobre esta temática.

167
referências

ALVES, C.; ISAYAMA, H. F. Considerações sobre o lazer na idade adulta. In:


______. (org.). Lazer e recreação: repertório de atividades por fases da vida. 3.
ed. Campinas: Papirus, 2013.
BARBOSA, F.S.; CAMPAGNA, J. A animação sociocultural e o segmento idoso:
reflexões e sugestões. In: ______. (org.). Lazer e recreação: repertório de ativida-
des por fases da vida. 3. ed. Campinas: Papirus, 2013.
BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T. M. O Brincar
e suas teorias. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
CALLOIS, R. Os jogos e o homens. Lisboa: Cotovia, 1990.
MARCELLINO, N. C. (org.). Repertório de atividades de recreação e lazer: para
hotéis, acampamentos, clubes prefeituras e outros. Campinas: Papirus, 2002.
______. (org.). Lazer e recreação: repertório de atividades por ambientes. Cam-
pinas: Papirus, 2007.
______. (org.). Lazer e recreação: repertório de atividades por ambientes. Cam-
pinas: Papirus, 2010. v. 2.
______. (org.). Lazer e recreação: repertório de atividades por fases da vida. 3.
ed. Campinas: Papirus, 2013.
PERROTTI, E. A criança e a produção cultural. In: ZILBERMAN, R. (org.). A
produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 9-27.
PINA, L. W. Multiplicidade de profissionais e de funções. In: MARCELLINO, N.
C. Lazer: formação e atuação profissional. Campinas: Papirus, 1995.
PINTO, L. M. S. M. Formação de educadores e educadoras para o lazer: saberes e
competências. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. v. 22, n. 3, maio. 2001.
p. 53-71.
SILVA, D. A. M.; MARCELLINO, N. C. Considerações sobre o lazer na infância.
In: ______. (org.). Lazer e recreação: repertório de atividades por fases da vida.
3. ed. Campinas: Papirus, 2013.
STOPPA. E. A. S.; DELGADO, M. A juventude e o lazer. In: ______. (org.). Lazer
e recreação: repertório de atividades por fases da vida. 3. ed. Campinas: Papirus,
2013.

168
gabarito

1. Entre vários elementos que são relevantes para a o prazer em seus períodos de lazer pode não ser a
compreensão do que é o animador sociocultural, mesma ao atuarem profissionalmente, podendo, em
podemos destacar que o conceito de animação vem geral, gerar frustração. Para o animador sociocultural,
de ânima, que no grego é alma, o que ao atrelar-se o lazer do outro é o seu tempo de trabalho, com as
ao lazer indica aquilo que dá emoção, sentimento, e, pressões inerentes às exigências envolvidas. Stoppa
mais estritamente, está ligado ao prazer. A animação e Isayama (1999) alertam sobre esta questão ao afir-
sociocultural tem uma ligação educacional direta com marem que fins de semana e férias são períodos de
o lazer, em seu duplo processo educativo, cujo obje- trabalho para o animador, o que limita suas opções
tivo é propiciar uma fundamentação social e política de lazer. Salientam, ainda, que o relacionamento fa-
para que ocorram mudanças tanto na cultura, quanto miliar é prejudicado, pelo mesmo motivo anterior. Há
na sociedade. Ela busca contribuir para a cidadania, ainda, do ponto de vista das instituições de lazer, um
em busca de uma melhor qualidade de vida, com vis- desgaste no relacionamento com os demais amigos e
tas a uma transformação social, para tornar a nossa colegas de trabalho, gerado pela falta de divisão clara
realidade mais justa e humanizada. A animação so- entre os momentos de trabalho e de lazer, confundin-
ciocultural visa revalorizar a cultura por meio de uma do situações e espaços ora de trabalho, ora de lazer.
participação real e criativa, e não simplesmente uma
reprodução e um consumo cultural. 4. O lazer é um campo multidisciplinar, assim como a
atuação profissional nele, possibilitando a concretiza-
2. O animador sociocultural constantemente especiali- ção de propostas interdisciplinares, por meio da par-
za-se aprofundando seus conhecimentos a partir dos ticipação de profissionais com diferentes formações.
conteúdos culturais do lazer. A atuação profissional Há profissionais sem uma formação em nível superior,
geralmente inicia a partir do interesse por um dos mas que podem ficar limitados a determinadas ações,
conteúdos culturais do lazer, contudo deve ampliar pois há profissões, como no caso da Educação Física,
para os demais, para que a atuação não seja obtusa. que são regulamentadas. Os profissionais com forma-
Conhecimentos, experiências e formação são funda- ção superior terão seu campo específico de atuação
mentais para uma atuação cada vez mais consistente. como nas artes, práticas físico-esportivas, conteúdos
Na estrutura piramidal, baseada na especialização e intelectuais do lazer etc., mas poderão ampliar seu
experiência, quanto mais acima da pirâmide, maiores leque para outras esferas. O importante é que, in-
a formação, conhecimento e experiências mais abran- dependentemente de qual seja o campo de atuação
gentes (amplos e diversificados). No vértice, estão os dentro do lazer, se acredite na necessidade de forma-
animadores de competência geral, profissionais, que ção específica e aprofundada sobre este fenômeno.
dominam a área e suas interfaces, que, segundo Pina As competências e habilidades exigem um constante
(1995), poderiam atuar como gestores e/ou consulto- aperfeiçoamento profissional, cuja base deve estar
res. O meio dessa estrutura seria formado por anima- galgada nos fundamentos de formação profissionais,
dores profissionais de competência específica, domi- sejam por meio de um curso superior ou não.
nando pelo menos um dos seis conteúdos culturais
do lazer. Pina (1995) divide este meio da pirâmide em 5. A primeira competência, segundo Pinto (2001), é o
duas categorias: as funções especializadas (mais abai- comprometimento com os valores inspiradores da
xo) e as funções polivalentes (mais acima). Na base sociedade democrática. A segunda é a compreensão
da estrutura piramidal de atuação profissional, está o do papel social na educação para o lazer. A penúltima
voluntariado, essencial para que a difusão esteja atre- competência, segundo o autor, é o domínio dos con-
lada à participação cultural. É necessário a preparação teúdos a serem socializados, de seus significados em
e capacitação destes animadores voluntários. diferentes contextos e articulações interdisciplinares.
E, por fim, o domínio do conhecimento pedagógico, de
3. Um dos riscos é de se tornarem bobos da corte. A processos de investigação que possibilitem o aperfei-
vulnerabilidade profissional, por incompetência e/ou çoamento da prática pedagógica e o gerenciamento
por busca de destaque leva muitos a perderem suas do próprio desenvolvimento de ações educativas lúdi-
identidades, sendo sempre simpáticos, e muitas vezes cas. Estes quatro elementos são basilares para atua-
sem graça e inoportunos. O prazer no trabalho com o ção profissional em qualquer campo da educação,
lazer, naturalmente, gera o bom humor e não a alegria pois indicam competências que são dinâmicas. Não
forçada como uma fantasia que se veste para desem- basta a formação em determinado conteúdo, com
penhar um papel, pois não há como ter um profissio- receitas meramente técnicas, que apesar de impor-
nal da animação sociocultural carrancudo o tempo tantes, podem gerar um imobilismo profissional. Com
todo. Quanto mais competência e seriedade profis- tais competências, o profissional deverá aprender a
sional maior será a leveza advinda da tranquilidade e fazer a leitura dos diferentes momentos históricos e
prazer de estar fazendo o que dignamente se faz. A criar e recriar constantemente seu repertório.
opção por trabalhar com o lazer por terem vivenciado

169
RECREAÇÃO E LAZER

conclusão geral

Chegamos ao final de mais uma etapa da sua jorna- no trabalho na sociedade capitalista, quer dialo-
da acadêmica, caro(a) aluno(a). Nosso desejo é que gando com o lúdico, educação, qualidade de vida,
as reflexões propostas neste material tenham contri- bem como justificando a necessidade de um re-
buído para seu enriquecimento pessoal e instigado pertório básico de atividades para o animador so-
você a continuar suas leituras sobre o tema princi- ciocultural, esperamos ter instigado você a lançar
pal abordado neste material, bem como outros que um olhar diferente para o lazer. Como você per-
emergirão durante seus estudos. cebeu, a estruturação do tempo e das atividades
É certo que não seria possível esgotar toda com- realizadas nestes recortes temporais determinam
plexidade das discussões sobre recreação e lazer em uma série de dinâmicas pessoais e sociais, e, neste
poucas unidades, mas, sem dúvida, os fundamentos sentido, caracterizam as diferentes formas como a
destas temáticas foram lançados, e o que definirá sua sociedades se organizam.
eficácia será sua busca pela práxis pedagógica. Esta é Como educadores, a compreensão destas dinâ-
caracterizada por um constante movimento de ação, micas lançam desafios importantíssimos, não ape-
reflexão, nova ação. Este espiral do conhecimento ja- nas para o trabalho no tempo livre, mas também na
mais acabará, pois o ser humano é dinâmico. Como forma como organizamos, selecionamos e trabalha-
afirmou o filósofo Heráclito (535 a.C. - 475 a.C.), mos diferentes conteúdos. Você aluno(a) tem papel
“ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, fundamental para discussão das riquíssimas possi-
pois quando nele se entra novamente, não se encon- bilidades ligadas ao descanso, divertimento e desen-
tra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. volvimentos pessoal e social.
Portanto, quer tratando de aspectos mais con- Que sua jornada acadêmica continue, cada vez
ceituais e históricos do lazer, atrelados ao mundo mais, cheia de significado! Carpe Diem! Tempus Fugit!

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