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HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO FÍSICA

PROFESSOR
Dr. Carlos Herold Junior
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

NEAD
Núcleo de Educação a Distância
Av. Guedner, 1610, Bloco 4
Jd. Aclimação - Cep 87050-900 Maringá - Paraná
www.unicesumar.edu.br | 0800 600 6360

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância;


JUNIOR, Carlos Herold.
História da Educação Física. Carlos Herold Junior.

Maringá - PR: Unicesumar, 2018. Reimpresso em 2023.


192 p.
“Graduação em Educação Física - EaD”.
1. Educação Física. 2. Corpo na História. 3. Práticas Corporais. 4. EaD. I.
Título.

ISBN 978-85-459-0523-3
CDD - 22ª Ed. 701.1
CIP - NBR 12899 - AACR/2

DIREÇÃO UNICESUMAR
Reitor Wilson de Matos Silva, Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho, Pró-Reitor Executivo de EAD William Victor
Kendrick de Matos Silva, Pró-Reitor de Ensino de EAD Janes Fidélis Tomelin, Presidente da Mantenedora Cláudio
Ferdinandi.

NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Diretoria Executiva Chrystiano Mincoff, James Prestes, Tiago Stachon, Diretoria de Graduação Kátia Coelho, Diretoria
de Cursos Híbridos Fabricio R. Lazilha, Diretoria de Pós-Graduação Bruno do Val Jorge, Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine, Diretoria de Design Educacional Débora Leite, Head de Curadoria e Inovação Tania Cristiane Yoshie
Fukushima, Gerência de Processos Acadêmicos Taessa Penha Shiraishi Vieira, Gerência de Curadoria Carolina Abdalla
Normann de Freitas, Gerência de Contratos e Operações Jislaine Cristina da Silva, Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia, Gerência de Projetos Especiais Daniel Fuverki Hey, Supervisora de Projetos Especiais Yasminn
Talyta Tavares Zagonel Supervisora de Produção de Conteúdo Daniele C. Correia
Coordenador(a) de Conteúdo Mara Cecilia Rafael Lopes, Projeto Gráfico José Jhonny Coelho,
Editoração Humberto Garcia da Silva, Designer Educacional Ana Claudia Salvadego, Qualidade
Textual Hellyery Agda, Revisão Textual Danielle Loddi, Pedro Afons Barth Ilustração Bruno Pardinho,
Fotos Shutterstock.

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Wilson Matos da Silva
Reitor da Unicesumar

Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande as demandas institucionais e sociais; a realização
desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, de uma prática acadêmica que contribua para o
informação, conhecimento de qualidade, novas desenvolvimento da consciência social e política e, por
habilidades para liderança e solução de problemas fim, a democratização do conhecimento acadêmico
com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência com a articulação e a integração com a sociedade.
no mundo do trabalho. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar almeja
Cada um de nós tem uma grande responsabilidade: ser reconhecida como uma instituição universitária
as escolhas que fizermos por nós e pelos nossos fará de referência regional e nacional pela qualidade
grande diferença no futuro. e compromisso do corpo docente; aquisição de
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar assume competências institucionais para o desenvolvimento
o compromisso de democratizar o conhecimento por de linhas de pesquisa; consolidação da extensão
meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos universitária; qualidade da oferta dos ensinos
brasileiros. presencial e a distância; bem-estar e satisfação da
No cumprimento de sua missão – “promover a comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica
educação de qualidade nas diferentes áreas do e administrativa; compromisso social de inclusão;
conhecimento, formando profissionais cidadãos que processos de cooperação e parceria com o mundo
contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade do trabalho, como também pelo compromisso
justa e solidária” –, o Centro Universitário Cesumar e relacionamento permanente com os egressos,
busca a integração do ensino-pesquisa-extensão com incentivando a educação continuada.
boas-vindas

Willian V. K. de Matos Silva


Pró-Reitor da Unicesumar EaD

Prezado(a) Acadêmico(a), bem-vindo(a) à A apropriação dessa nova forma de conhecer


Comunidade do Conhecimento. transformou-se hoje em um dos principais fatores de
Essa é a característica principal pela qual a Unicesumar agregação de valor, de superação das desigualdades,
tem sido conhecida pelos nossos alunos, professores propagação de trabalho qualificado e de bem-estar.
e pela nossa sociedade. Porém, é importante Logo, como agente social, convido você a saber cada
destacar aqui que não estamos falando mais daquele vez mais, a conhecer, entender, selecionar e usar a
conhecimento estático, repetitivo, local e elitizado, mas tecnologia que temos e que está disponível.
de um conhecimento dinâmico, renovável em minutos, Da mesma forma que a imprensa de Gutenberg
atemporal, global, democratizado, transformado pelas modificou toda uma cultura e forma de conhecer,
tecnologias digitais e virtuais. as tecnologias atuais e suas novas ferramentas,
De fato, as tecnologias de informação e comunicação equipamentos e aplicações estão mudando a nossa
têm nos aproximado cada vez mais de pessoas, lugares, cultura e transformando a todos nós. Então, priorizar o
informações, da educação por meio da conectividade conhecimento hoje, por meio da Educação a Distância
via internet, do acesso wireless em diferentes lugares (EAD), significa possibilitar o contato com ambientes
e da mobilidade dos celulares. cativantes, ricos em informações e interatividade. É
As redes sociais, os sites, blogs e os tablets aceleraram um processo desafiador, que ao mesmo tempo abrirá
a informação e a produção do conhecimento, que não as portas para melhores oportunidades. Como já disse
reconhece mais fuso horário e atravessa oceanos em Sócrates, “a vida sem desafios não vale a pena ser vivida”.
segundos. É isso que a EAD da Unicesumar se propõe a fazer.
boas-vindas

Kátia Solange Coelho


Janes Fidélis Tomelin Diretoria de Graduação
Pró-Reitor de Ensino de EAD
e Pós-graduação

Débora do Nascimento Leite Leonardo Spaine


Diretoria de Design Educacional Diretoria de Permanência

Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está de maneira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja,
iniciando um processo de transformação, pois quando estes materiais têm como principal objetivo “provocar
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta
profissional, nos transformamos e, consequentemente, forma possibilita o desenvolvimento da autonomia
transformamos também a sociedade na qual estamos em busca dos conhecimentos necessários para a sua
inseridos. De que forma o fazemos? Criando formação pessoal e profissional.
oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capazes Portanto, nossa distância nesse processo de
de alcançar um nível de desenvolvimento compatível crescimento e construção do conhecimento deve
com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens – Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos
se educam juntos, na transformação do mundo”. fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe
Os materiais produzidos oferecem linguagem das discussões. Além disso, lembre-se que existe
dialógica e encontram-se integrados à proposta uma equipe de professores e tutores que se encontra
pedagógica, contribuindo no processo educacional, disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em
complementando sua formação profissional, seu processo de aprendizagem, possibilitando-lhe
desenvolvendo competências e habilidades, e trilhar com tranquilidade e segurança sua trajetória
aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, acadêmica.
Professor Doutor
Carlos Herold Junior

Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/2011).


Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/2009). Doutorado
em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/2006). Mestrado em Educação
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM/2000). Graduação em Educação Física pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM/1995).
Profissionalmente, atua como professor universitário desde o ano de 1999, quando ingressou
no Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO,
Guarapuava). Em 2013, passou a trabalhar no Departamento de Educação Física da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM) e hoje leciona as disciplinas de Didática em Educação
Física, Lutas e Análise dos Dados Qualitativos em Educação Física.

Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas e publicações,
acesse seu currículo, disponível no endereço a seguir:

<http://lattes.cnpq.br/9723444517016722>.
apresentação do material

História da Educação Física


Carlos Herold Junior

Caro(a) aluno(a), ao escolhermos determinada profissão tomamos uma importante


decisão. Tal decisão gera muitas consequências, dizendo muito do que já somos e,
sobretudo, muito daquilo que seremos em muitas dimensões de nossa vida, para
além da dimensão profissional.
Ao folhear este livro sobre a “História da Educação Física”, você indica a escolha
por conhecer de um modo mais aprofundado um universo ligado ao ensino das
variadas práticas corporais e de seu ensino. Digo mais aprofundado pois, para
muitos de nós, não faltam recordações nem “conhecimentos” sobre a natureza do
envolvimento com essas práticas: nas escolas e fora delas, nós brincamos, joga-
mos, treinamos. Adultos, preocupamo-nos com nossa saúde, com nossa aparência
ou apenas nos divertimos com essas atividades. Enfim, é muito improvável que
alguém, na condição de iniciar qualquer curso universitário, não possua algum
conhecimento sobre as atividades associadas ao universo das práticas corporais.
É a história delas que estudaremos.
Antes de entrarmos na reflexão sobre essa história, é importante você ter claro que
as diferentes disciplinas do curso proporcionam variados olhares sobre o conjunto
de atividades citadas anteriormente e as perspectivas de trabalho com elas. Sabemos
que quando olhamos algo de um lugar, vemos algumas coisas mais claramente,
enquanto outras são totalmente negligenciadas ou têm sua visão atrapalhada por
alguma coisa que se interpõe entre nosso olhar e aquilo que queremos ver. Quando
optamos por estudar o universo das práticas corporais e sua presença na escola por
meio de um viés histórico, é importante reconhecer que isso nos trará a condição
de olhar a escola, as práticas corporais, os professores e os alunos nas aulas de aula
de educação física de um modo mais complexo. Enxergaremos coisas que não
eram percebidas antes. Com este estudo, espero que você passe a verificar que, nas
milhares de aulas de educação física - nas quais professores e alunos se relacionam,
todos os dias, país afora, em uma sucessão de fatos, problemas e expectativas do
dia a dia escolar - há uma história a ser estudada, conhecida e produzida. Uma
história percebida como lupa, como um telescópio, a capacitar seu olhar para
enxergar, atentamente, tanto as nuances quanto os horizontes mais amplos. Com
essas lentes, que você saiba da existência de um caminho percorrido por profes-
sores e alunos de outras épocas, que levou até o contexto em que vivemos, o qual
apresentação do material

merece ser alvo da atenção daqueles que darão vida a de “jogarem bola” ou “suarem a camisa”. Admirar
essa história, daqui para frente. belezas e se espantar com absurdos, insuspeitos para
Demonstrar as vantagens de se conhecer a histó- muitos olhos, é a condição à qual aspira este livro
ria da educação física não deve secundarizar o re- sobre a História da Educação Física.
conhecimento de que esse olhar não consegue ver Essa intenção de estudar a história da educação física
tudo, e muito do que se vê na reconstrução desse será composta de cinco unidades. Na primeira, explico
caminho não tem a clareza que gostaríamos. Talvez algumas características da análise histórica e busco
você experimente, durante a rica gama de disciplinas aprofundar as considerações sobre a importância desse
que serão oferecidas em seu curso, que conhecer estudo no curso. Na segunda unidade veremos que,
as coisas de uma forma mais clara também produz em diferentes períodos, homens e mulheres entendiam
“escuridões”. No caso da história da educação física, e sentiam diferentemente seu corpo e o corpo dos
será mostrado que, embora ela tenha ajudado todo outros. Na unidade III o foco é práticas corporais. A
um campo do conhecimento a se conhecer melhor e próxima unidade evidencia diferentes modos como
propor alternativas a alguns de seus problemas, ela, muitas das práticas corporais ainda hoje existentes
constantemente, tem suas observações refeitas, da surgiram e eram avaliadas, sendo estudada, também,
mesma maneira que tem a importância de seu olhar sua importância no lazer, na cultura e na educação. Na
questionada. Espero mostrar que o valor do estudo quarta unidade veremos que, embora a educação, o
da história da educação física também acontece por corpo e as práticas corporais tenham raízes profundas
evidenciar que as competências, as experiências e a na história da humanidade, a escola e a disciplina de
sabedoria acumuladas com o passar do tempo de- educação física são invenções mais recentes, e são elas,
vem ser, sempre, regradas, limitadas, continuamente no processo de sua construção, que iremos entender.
postas em dúvida. Dúvidas que aumentam na mesma Focaremos esse processo também no contexto brasi-
proporção de uma curiosa avidez, e, certamente, cul- leiro, na última unidade. Acredito que, com o apoio
tivá-las nos dará a capacidade de encontrar não ape- dessa trajetória, você perceberá e entenderá muito
nas soluções, mas novos problemas, novos desafios e daquilo que experimentou como aluno da educação
limites. Sem esse cultivo intelectual, as aulas educação básica e aquilo que poderá fazer como professor(a)
física continuarão apenas a ser aquilo que são para de educação física.
quem não estuda tal campo: crianças e jovens indo
para a quadra e voltando para a sala de aula depois Ótimos estudos!
sum ário

UNIDADE I
O CONHECIMENTO HISTÓRICO E O
PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA
16 Tem história em um curso de educação física?
19 A importância do conhecimento histórico para o professor de educação
física
28 O que se estuda na história da educação física?
33 Como se produz o conhecimento histórico sobre a educação física?
38 A história da educação física também tem uma história
43 Considerações Finais
46 Referências
49 Gabarito

UNIDADE II
PENSANDO O CORPO NA HISTÓRIA
54 O corpo não é apenas sua anatomia
61 A filosofia começa e continua...no corpo
67 Eu tenho um corpo ou sou um corpo? Os muitos eus e os muitos corpos
que existiram na história
73 Os ódios e os amores devotados ao corpo na história
78 Prazeres e deveres no cuidado com o corpo
82 Considerações Finais
87 Referências
88 Gabarito
sum ário

UNIDADE III
OLHANDO HISTORICAMENTE AS
PRÁTICAS CORPORAIS
94 As muitas práticas corporais
98 A ginástica
102 Os jogos
106 O esporte
110 As lutas e as artes marciais
115 Considerações Finais
119 Referências
121 Gabarito

UNIDADE IV
EDUCAR É EDUCAR O CORPO:
A ESCOLA E A EDUCAÇÃO FÍSICA
126 Educação corporal e educação física escolar
131 Educar o corpo na escola, para quê?
135 A educação física escolar tornar-se... escolar
139 As ciências da educação, o corpo e a educação física: o longo século XX
142 O corpo tem lugar na escola?
146 Considerações Finais
150 Referências
151 Gabarito
sum ário

UNIDADE V
A EDUCAÇÃO FÍSICA NA HISTÓRIA DA
ESCOLA BRASILEIRA
156 Escola e educação física na passagem ao século XX: muitos pensamen-
tos e uma realidade
162 Discutindo a presença das práticas corporais na escola brasileira: plurali-
dade de modelos
168 Formando professores de educação física: o que fica dessa história?
175 Os caminhos até nós: como a educação física escolar se tornou o que é?
179 Educação física e escola: pensando futuros ao pensarmos passados
184 Considerações Finais
189 Referências
191 Gabarito
O CONHECIMENTO HISTÓRICO E O
PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Professor Dr. Carlos Herold Junior

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta
unidade:
• Tem história em um curso de educação física?
• A importância do conhecimento histórico para o professor
de educação física
• O que se estuda na história da educação física?
• Como se produz o conhecimento histórico sobre a
educação física?
• A história da educação física também tem uma história

Objetivos de Aprendizagem
• Sublinhar que a formação profissional em educação física
possui uma história.
• Evidenciar a importância de se estudar história em um
curso de educação física.
• Estudar os principais assuntos abordados quando se
estuda a história da educação física.
• Ponderar as possibilidades e as dificuldades na produção
do conhecimento histórico em educação física.
• Analisar a história da produção do conhecimento histórico
em educação física.
unidade

I
INTRODUÇÃO

A
ssim como conhecemos pela prática muitas das atividades
corporais e muito de seu ensino na escola por termos sido
alunos, também temos alguma familiaridade com o ato de
começar estudando algum assunto abordando sua história.
O hábito tem o seu valor, afinal, como ocorre em todos os hábitos que
possuímos, ele caracteriza-se por ser um automatismo que nos liberta
para pensarmos em coisas mais interessantes.
O que faremos nesta unidade, todavia, é nos preocuparmos menos com
o que compraremos no mercado e mais com a caminhada que até lá nos leva.
Ou seja, o alvo das reflexões nos próximos tópicos é a “caminhada” histórica
que realizaremos nas próximas unidades, pensando na sucessão de seus pas-
sos, na velocidade desses passos e nos cuidados que devemos ter para chegar
onde queremos, sem muitos tropeços e desvios no caminho. Nosso destino
final é “enchermos a nossa sacola” com tudo aquilo que precisamos para
pensar nas práticas corporais e na educação física escolar historicamente.
Realizar essa postura intelectual de pensar os passos de um tipo de
reflexão antes de se abordar o conteúdo da própria reflexão é algo bastan-
te importante, embora demande algum zelo e esforço. Do mesmo modo
que a caminhada fica um pouco mais lenta quando deliberamos a su-
cessão dos gestos que nos levam à frente, analisar a “análise histórica”
demandará algumas voltas, alguns passos para trás, algumas paradas que
podem gerar impaciência aos mais apressados. Entretanto, depois de fei-
ta a reflexão sobre o até então “automático” gesto de “saber o aconteceu”,
iniciaremos o estudo da história em melhores condições para se apreciar
a beleza, os detalhes e as lacunas da história que será analisada, coisas que
não víamos devido à pressa com que caminhávamos. Realizar a promessa
de pensar as características de uma determinada forma e de encarar os
assuntos educacionais passa pela busca de algumas respostas: quais as ra-
zões e as maneiras de se estudar história em um curso de educação física?
Bons estudos!
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

TEM HISTÓRIA
EM UM CURSO DE
EDUCAÇÃO FÍSICA?
Caro(a) aluno(a), quando vemos as diferentes ins- ção de textos, na participação de aulas expositivas
tituições de ensino superior divulgarem seus cur- e discussões sobre variados temas.
sos de educação física, comumente essa divulgação Para alguns acadêmicos, todavia, isso não é uma
é associada a imagens de acadêmicos jogando ou surpresa. Afinal, muitos procuram os cursos de edu-
praticando algum tipo de atividade corporal sob cação física devido à grande experiência prática que
a supervisão de um professor. É compreensível possuem nos variados campos das atividades cor-
que assim seja, pois, de fato, durante um curso de porais e, por isso, ansiosamente aguardam e, cor-
educação física, são momentos bastante relevantes retamente, cobram um curso com uma boa carga
aqueles em que executamos e passamos a conhe- horária de conteúdos científicos e culturais que in-
cer diferentes formas de movimentação corporal. crementem sua formação. Na atualidade, de forma
Mesmo que não seja essa a intenção desses atos pu- geral, os cursos atendem a essa demanda, colocando
blicitários, é corriqueiro o espanto de alguns aca- em suas matrizes curriculares disciplinas de dife-
dêmicos quando se deparam com outra rotina. Em rentes áreas do conhecimento. Entretanto, apesar da
alguns, gera-se alguma surpresa o fato de que, ao variedade de áreas de conhecimento presentes nas
lado da tão divulgada e apreciada prática de ativi- matrizes curriculares dos cursos de educação físi-
dades, os cursos de educação física possuam, tam- ca, é comum se caracterizarem por uma maior vi-
bém, uma grande quantidade de disciplinas cujo sibilidade e presença de disciplinas cuja vinculação
empenho manifesta-se na forma de leitura e reda- acadêmica encontra-se nas ciências biológicas e da

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EDUCAÇÃO FÍSICA

saúde. Fisiologia, anatomia, bioquímica, nutrição, more, incorporando outras matrizes disciplinares
biomecânica, entre outros, são importantes campos para serem estudadas e conhecidas por todos.
de estudo que, historicamente, têm marcado o ramo Essa tentativa vem sendo feita de modo mais in-
de educação física. Há boas e justas razões para isso, tenso nos últimos 30 ou 40 anos no campo da educa-
e elas poderão ser entendidas mais a frente nes- ção física e, entre outras coisas, redundou na publi-
te livro. Por ora, essa constatação deve apenas nos cação de um documento que direciona ou que guia
ajudar a marcar que, ladeando essas disciplinas de as instituições de ensino superior quando elas criam
cunho biológico, as disciplinas vinculadas aos cam- cursos de educação física. Trata-se da Resolução n.º
pos da pedagogia e das ciências humanas e sociais, 07 do Conselho Nacional de Educação, de 2004. Ela
da filosofia e da história também se fazem presentes, institui as diretrizes curriculares nacionais para os
embora não sejam por elas que um curso de educa- cursos de educação física (BRASIL, 2004). Impor-
ção física seja reconhecido. Sublinho que a presença tante para a reflexão desse tópico é o que lemos no
dessas últimas disciplinas nas matrizes curriculares artigo 4 do documento e que nos ajuda a entender o
não é algo que passou a acontecer apenas nos últi- fato de você estar folheando as primeiras páginas de
mos anos. Desde o início dos processos sistemáticos um livro sobre história da educação física:
de formação profissional no campo da educação fí-
sica no Brasil, a partir de 1920, é possível verificar O curso de graduação em Educação Física de-
verá assegurar uma formação generalista, hu-
a presença de disciplinas que abordavam a história.
manista e crítica, qualificadora da intervenção
Porém a história “ocupava um lugar menor e gozava acadêmico-profissional, fundamentada no ri-
de um prestígio intermediário, já que embora fosse gor científico, na reflexão filosófica e na condu-
teórica era não-médica” (MELO, 1999, p. 22). ta ética (BRASIL, 2004, p. 1).
Temos, então uma situação bastante curiosa:
ao ingressarmos em um curso de educação física Tão importante quanto o parágrafo que acabo de citar
tomamos contato com algumas tradições. Mencio- é o primeiro inciso desse mesmo parágrafo. Nele, se
nei duas: a que o reduz às práticas corporais e uma endossa a necessidade das duas tradições menciona-
outra que enxerga o curso de educação física como das anteriormente se conjugarem a um outro conjun-
relacionado ao campo das ciências biológicas. Digo to de reflexões, pautadas em conhecimentos advindos
curiosa, pois, nenhuma dessas tradições é equivo- das ciência humanas, da filosofia e da história:
cada por elas mesmas. Elas têm sua importância na
formação dos professores de educação física e não O graduado em Educação Física deverá estar
qualificado para analisar criticamente a reali-
precisam ser assumidas como erradas ou até men-
dade social, para nela intervir acadêmica e pro-
tirosas. A tentativa daqueles que têm pesquisado a fissionalmente por meio das diferentes mani-
formação profissional de educação física e daqueles festações e expressões do movimento humano,
que nela ingressam é refletir sobre as razões dessa visando a formação, a ampliação e o enrique-
realidade se manifestar com tais tradições, visando cimento cultural das pessoas, para aumentar as
possibilidades de adoção de um estilo de vida fi-
encontrar espaços para que essa formação se apri-
sicamente ativo e saudável (BRASIL, 2004, p. 1).

17
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Interessante verificarmos que esse “dever ser” de um outras formas de reflexão realizam-se na matriz cur-
curso de educação física, ao lado de enfatizar o rigor ricular quando ela aborda a “dimensão do conheci-
científico, prioriza, também, uma formação “gene- mento” que trata a “relação ser-humano e sociedade”
ralista, humanista e crítica”, sustentada na “reflexão (BRASIL, 2004, p. 3). Essas considerações evidenciam
filosófica e na conduta ética” (BRASIL, 2004, p. 1). que você escolheu um campo profissional que está
Caminhando para o mesmo sentido, vemos no ar- se submetendo a um processo de ampliação de suas
tigo 6 das mesmas diretrizes serem mencionadas “com- práticas formativas. Apesar de algumas antigas práti-
petências de natureza político-social” e “ético-moral” cas ainda estarem presentes, muitas delas por terem,
em igual pé de igualdade com as “competências técnico- ainda, seu valor, a elas agregam-se outras concepções.
-profissionais e científicas”. Nessa análise, elas formam a Por meio delas realiza-se a defesa de que os futuros
“concepção nuclear do projeto pedagógico de formação professores de educação física devem ser formados
do graduado em educação física” (BRASIL, 2004, p. 2). com um olhar mais matizado e mais competente para
Tudo isso deve ser mantido a sua frente, sobre- visualizar coisas que antes não eram tomadas como
tudo, se for considerado que você está iniciando sua importantes. Um olhar que dê condições de pensar
informação. Durante sua trajetória no curso, é im- a relação ser-humano e sociedade para além das for-
portante não perder de vista que o rigor científico é mas usuais ou cotidianas que temos feito por estar-
um dos componentes que se materializam no veio mos vivos e sermos inteligentes, e que continuarão a
fortemente biologizante das matrizes curriculares dos ser feitas quando pensarmos em outras dimensões da
cursos de educação física. Sendo ele um traço muito vida social para a qual não somos, sistematicamente,
valioso desses cursos, o fomento de uma formação formados. Por esse motivo o estudo atento, também
crítica, que capacite aos acadêmicos refletirem filo- em um curso de educação física, de disciplinas que
soficamente e eticamente suas problemáticas forma- possuam relação com a sociologia, antropologia, filo-
tivas, também o é. Isso demanda a presença de outras sofia e história. Por esse motivo, a resposta à pergunta
formas de reflexão. Nesse caso, as que se vinculam às que intitula este item é: sim, tem história no curso de
ciências humanas, sociais e históricas. No documen- educação física! E você aprenderá um pouco mais so-
to que está servindo de base a estas reflexões, essas bre as características deste estudo nos itens seguintes.

18
EDUCAÇÃO FÍSICA

A IMPORTÂNCIA DO
CONHECIMENTO HISTÓRICO
PARA O PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Na atualidade, o vocábulo “conhecimento” tem sido relativizarmos o peso dessa defesa da ciência como
alvo de grande atenção. Quando falamos “conheci- condição única de superação de muitas limitações
mento”, dificilmente a ele associamos ideias negati- sociais, verificando outras variáveis - as políticas e as
vas, problemas ou perda de tempo. É o contrário que éticas, por exemplo -, igualmente importantes para a
ocorre: é muito corrente o raciocínio que atribui ao análise e superação de desafios sociais, econômicos e
conhecimento a possibilidade de solução de todos morais. A quem defende esse tipo de posicionamen-
os nossos problemas sociais. Essa crença, geralmen- to, uma justificativa para tanto é o fato de que uma
te, associa, unilateralmente, o conhecimento a “co- postura menos ufanista em relação à produção e di-
nhecimento científico” fusão do conhecimento científico possibilitaria uma
Do mesmo modo como ocorre com muitos as- postura intelectual mais atenta à complexidade não
suntos, não podemos, simplesmente, descartar a as- apenas sobre os assuntos que se quer conhecidos,
sertiva, atribuindo a ela o resultado de um delírio. O mas sobre a nossa capacidade e limites de conhecer
que há algum tempo se concorda é a necessidade de essas mesmas coisas.

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

A quem se dedica à produção e difusão do conhe- ‘Papai, então me explica para que serve a his-
cimento histórico, essas questões são de fundamental tória’. Assim um garoto, de quem gosto muito,
interrogava há poucos anos um pai historiador.
importância. Em primeiro lugar, atribuir à produção
[...] Alguns, provavelmente, julgarão sua formu-
e à difusão do conhecimento científico a possibilida- lação ingênua. Parece-me, ao contrário, mais
de de uma evolução social caracteriza como impor- que pertinente. O problema que ela coloca, com
tante apenas o conhecimento diretamente útil. Em a incisiva objetividade dessa idade implacável,
não é nada menos do que a da legitimidade da
segundo lugar, essa utilidade é, constantemente, en-
história. Eis portanto o historiador chamado a
tendida como mensurável, captada matematicamen- prestar contas (BLOCH, 2001, p. 41).
te, deixando de lado contradições valorativas, sociais
e políticas, tomadas, assim, como subjetivas, não Bloch, então, passa a construir algumas reflexões,
relevantes e até geradoras de dificuldades ao conhe- iniciando-as pela constatação de que a história exer-
cimento exato daquilo que nos aflige. Aos historia- ce uma atração muito forte nas pessoas. Com efeito,
dores e aos estudiosos da história da educação física, para além dos esforços acadêmicos feitos nas uni-
tratam-se de posicionamentos que geram muita difi- versidades, mas muito relacionadas ao que nelas é
culdade, sobretudo pelo fato de essa ótica deixar bas- produzido, há uma enormidade de livros sobre fa-
tante difícil a resposta às seguintes indagações: para tos, personalidades, curiosidades extraídas dos mais
que serve a história? Qual a utilidade da história para diferentes tempos. Mas o historiador francês não
o enfrentamento dos problemas atuais? Qual o valor perde a paciência e reconhece que “uma ciência nos
da história para quem trabalhará como professor de parecerá sempre ter algo de incompleto se não nos
educação física? Historiadores de um modo geral e ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor” (BLOCH,
pesquisadores e professores de história da educação 2001, p. 45). Essa ajuda é proporcionada pelo conhe-
física têm se ocupado dessas questões. Vamos, então, cimento produzido pelo historiador, considerando-
analisar algumas tentativas de respondê-las. -o como uma possibilidade, como um “esforço para
Para pensarmos de forma mais atenta na ques- conhecer melhor” (BLOCH, 2001, p. 46).
tão da utilidade e da objetividade do conhecimento Nesse esforço, porém, Bloch não desconsidera que
histórico, um caminho interessante é voltar nossa a história é uma “ciência na infância” (BLOCH, 2001,
atenção para uma obra de grande valor no campo p. 47). Essa advertência não deve ser tomada como um
da história: “Apologia da História”, de March Bloch reconhecimento de que quando a vida adulta chegar, ela
(2001). Quando fazemos uma apologia, fazemos não poderá conhecer todas as problemáticas que hoje (ou
apenas a defesa ou o elogio de algo, mas fazemos isso ainda nos anos em que escreveu Bloch) são “desespe-
de uma forma apaixonada, intensa. March Bloch fez radamente refratárias a um conhecimento racional”
isso enquanto estava preso pelo exército alemão, no (BLOCH, 2001, p. 47). Dito de outro modo, é impor-
contexto da II Guerra Mundial. O livro se inicia de tante reconhecer que a possibilidade de pensarmos
um modo bastante ilustrativo para o começo de um melhor a nós mesmos e, por isso, assumir a utilidade
curso de graduação que tem sua atenção voltada da história, não leva à necessidade de os historiadores
para um campo de atuação relativamente distante tomarem seu conhecimento como um conhecimento
das inquietações de um historiador. Inicia Bloch: menor ou menos “científico”. Afinal, se “toda ciência, to-

20
EDUCAÇÃO FÍSICA

mada isoladamente, não significa senão um fragmento no campo da educação física, aproximadas às tais
do universal rumo ao conhecimento” (BLOCH, 2001, p. ciências exatas e biológicas, podem ser entendidas e
50), o conhecimento histórico é importante, é útil, justa- superadas naquilo em que elas são limitadas. Trazer
mente por produzir um conhecimento que, assim como para a educação física os “perpétuos arrependimen-
a criança, questiona todos os assuntos concernentes aos tos” do conhecimento histórico e dos historiadores
seres humanos em sociedade, com a mesma postura será um passo gigantesco para todos aqueles, cien-
“implacável”, com a mesma “curiosidade de um rapazo- tistas, historiadores e professores de educação física,
la” (BLOCH, 2001, p. 43). Por isso, Bloch faz sua Apolo- possam de “maneira mais segura”, “orientar racional-
gia, que pode ser sintetizada na passagem a seguir: mente seus esforços” (BLOCH, 2001, p. 49).
Perpetuamente arrepender-se do conhecimento
Não sentimos mais a obrigação de buscar impor que produz, ou seja, justificar, renovadamente, a rele-
a todos os objetos do conhecimento um mode-
vância e o limite da reflexão histórica, é uma postura
lo intelectual uniforme, inspirado nas ciências
da natureza física, uma vez que até nelas esse muito rica, necessária e recorrente nos pesquisadores
gabarito deixou de ser integralmente aplicado. da história da educação física. Em muitas oportuni-
Não sabemos ainda muito bem o que um dia dades eles se voltam a essa questão, estimulando-nos
serão as ciências do homem. Sabemos que para e, com certeza, buscando estímulos para eles mesmos,
existirem - mesmo continuando, evidentemen-
na tarefa de “orientar racionalmente seus esforços”
te, a obedecer às regras fundamentais da razão
- não precisarão renunciar à sua originalidade, (BLOCH, 2001, p. 49). Melo (1999), ao introduzir um
nem ter vergonha dela (BLOCH, 2001, p. 49). livro ao qual recorreremos com frequência no desen-
volvimento de nossas reflexões, endossa o valor da
Vamos nos atentar para a relevância dessa afirmação reflexão sobre a importância da história, quando pen-
para se pensar nas possibilidades do conhecimento sada em curso de formação inicial em educação física:
histórico em um curso de educação física. Em primei-
ro lugar, Bloch (2001) nos evidencia que, aos estudar- Por que temos que estudar história em um cur-
so de graduação em Educação Física? É possível
mos dimensões da vida societária, a precisão comu-
que esta pergunta já tenha sido diversas vezes
mente associada à ciência não é nem possível e nem pronunciada entre alguns estudantes e profes-
desejável. Ele afirma, inclusive, que nem nos limites sores dos diversos cursos superiores ligados à
das ciências que se aproximam do tradicional cânone formação do professor de Educação Física es-
das ciências exatas e das ciências biológicas, isso já palhados pelo Brasil. Afinal, em que o estudo
da história estaria a contribuir na formação do
não vinha acontecendo em sua época. Ao observar
futuro professor? Haveria realmente espaço e
isso para o campo da história e com isso justificar sua necessidade de uma disciplina específica para
importância intelectual para se evitar o “horror das estudos dessa natureza? (MELO, 1999, p. 19).
responsabilidades” (BLOCH, 2001, p. 46), ou seja,
para se querer impactar positivamente a vida que se Treze anos depois que foram publicadas essas dú-
vive, Bloch gera outro impacto para quem pensa na vidas, outra pesquisadora que será bastante citada
formação em educação física: mais um estímulo para neste livro, Goellner (2012) redigiu um texto com
se reconhecer que as já citadas tradições formativas a mesma característica: argumentar a importância

21
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

sobre a história da educação física na formação dos entendem o passado, enxerga algumas característi-
futuros professores deste campo. Compreensível é cas que, acredito, nos ajudam a entender a recorrên-
que o mesmo tom problematizador que lemos no cia dos questionamentos apresentados anteriormen-
texto de Melo (1999) também marque o artigo de te pelos pesquisadores da história da educação física.
Goellner (2012) já no seu início: Em primeiro lugar, Lee (2006) nota que é comum a
compreensão de que “o passado é como uma pai-
Por que estudar História no curso de formação sagem distante, atrás de nós, simplesmente fora do
em Educação Física? Que aplicabilidade o co-
alcance, fixa e eterna” (LEE, 2000, p. 137). Por isso,
nhecimento histórico tem na atuação cotidiana
dos seus professores e professoras? Com tantas o único conhecimento possível desse tempo distante
informações disponibilizadas pelas novas tec- só se alcança via testemunhas. Isso acaba por levar à
nologias de informação, porque é necessário ler concepção de que estudar e aprender história redu-
autores clássicos da área? Se a Educação Física é zir-se-ia à absorção de testemunhos fidedignos, tra-
uma área voltada para a saúde, a performance e
zidos pelo professor e pelos livros utilizados por ele.
a educação corporal de crianças, jovens e adul-
tos, o que interessa o conhecimento histórico?
(GOELLNER, 2012, p. 37) Muitos estudantes, então, operam com um con-
junto de ideias que funcionam bem na vida co-
tidiana, mas que tornam a história impossível.
A estratégia que adoto para evidenciar a importân- Porque há um passado permanente, somente
cia de estudarmos história da educação física nas uma consideração verdadeira pode ser feita.
páginas que se seguem é inspirada nesses pesquisa- O passado consiste de eventos testemunháveis,
dores. Ao compreendermos a razão das perguntas então as afirmações dos historiadores sobre “o
que aconteceu” são como depoimentos de tes-
que os alunos, na sua implacável objetividade, nos
temunhos de segunda mão (LEE, 2006, p. 139).
colocam, damos a ela sua importância. As perguntas
são repetidas, é posto em evidência que elas são jus- Contrariamente a essas concepções, Lee (2006) evi-
tas, mas, igualmente, a dúvida colocada explicita um dencia que o passado não é imutável. Na realidade,
desconhecimento a ser encarado, qual seja: as carac- as visões sobre ele são constantemente alteradas, ge-
terísticas e a importância de estudarmos história. rando um processo contínuo de revisão, de questio-
Em primeiro lugar, vale sinalizar essas hesita- namento de verdades e reelaboração de explicações.
ções de todos aqueles que começam a estudar a “his- Nesse sentido, o conhecimento histórico não deve-
tória de alguma coisa” quando têm mais interesse no ria ser assumido como cópia do passado, como algo
“alguma coisa” e não no “história”, explica-se pela resolvido de uma vez por todas. Hobsbawn (2007)
persistência de uma concepção de história bastante nos ajuda a entender como isso é possível. Mesmo
simplificada. Essa simplificação, na maioria dos ca- que não possamos deixar de verificar que muitas das
sos, persiste no avanço dos anos escolares e, talvez, coisas hoje são como são devido ao passado que ti-
justamente por esse avanço, essa concepção simplis- veram, o raciocínio oposto também é verdadeiro: o
ta tenha lançado raízes tão profundas no entendi- conhecimento que temos do passado é dependente
mento de muitos. Lee (2006), ao estudar a maneira dos problemas e das condições que temos no pre-
como alunos da educação básica e do ensino médio sente. Isso é dito pelo historiador da seguinte forma:

22
EDUCAÇÃO FÍSICA

O “homem” era a chave para a anatomia do ma- sibilidades a serem escolhidas existiam por serem
caco. Claro que não se trata de um procedimen-
resultantes, por serem consequências de escolhas
to anti-histórico. Implica que o passado não
pode ser entendido exclusiva ou primordial- anteriormente feitas. Dito de outro modo, compre-
mente em seus próprios termos: não só porque endemos que “o que temos atualmente foi construí-
ele é parte de um processo histórico, mas tam- do e não fruto exclusivo do acaso, tampouco estava
bém porque somente esse processo histórico escrito em um ‘livro dos destinos’” (MELO, 1999, p.
nos capacitou a analisar e compreender coisas
24). Exemplificando essa “utilidade” da história da
relativas a esse processo e ao passado (HOBS-
BAWN, 2007, p. 173). educação física, imagine pensar na seguinte proble-
mática: a partir de quando as aulas de educação fí-
Essas considerações evidenciam de modo bastante sica na escola passaram a ser tão relacionadas com
interessante que, ao estudarmos história, a todo mo- as quatro modalidades desportivas, como muitos de
mento o modo como esse conhecimento é produzido nós conhecemos? Pensar historicamente nessa ques-
é trazido à baila. Lee (2006), ao fazer o diagnóstico tão remete-nos a olhar para momentos em que isso
que apresentei anteriormente, também verifica que, não acontecia, para momentos em que as “obvie-
naquelas concepções de passado que inviabilizam dades” e os “erros” eram outros, com o objetivo de
uma concepção de “literacia histórica”, “a pergun- captar uma realidade deixando de existir em nome
ta ‘como sabemos?’ simplesmente não surge (LEE, de outra. Nessa transformação, não apenas as esco-
2006, p. 137). Ora, voltamos à característica que dá lhas dos professores são importantes, mas o valores
à história, no entender de Bloch (2001), ao mesmo sociais que passaram a vigorar, configurações polí-
tempo, seu limite e seu potencial. Não por acaso, tico-ideológicas que ganharam espaço, incrementos
essa relação entre conhecimento histórico e como tecnológicos, surgimento de novas práticas que fo-
esse conhecimento histórico é produzido é algo que ram abraçadas por muitas pessoas.
também aparece nas justificativas dadas por Melo Para resumir, “pensar historicamente” é a ca-
(1999) e Goellner (2012), quando justificam a his- pacidade de pensar os assuntos que nos interessam
tória da educação física como reflexão valiosa aos como construções humanas no tempo. É a capacida-
futuros professores. de de verificar que as pessoas que existiram antes de
Para Melo (1999, p. 26), o estudo da história nós e que trabalharam com questões semelhantes às
da educação possibilita a quem pensa no assunto nossas encontraram soluções para os mesmos pro-
a “possibilidade de aprender a compreender histo- blemas, viram problemas onde hoje vemos soluções.
ricamente um problema”. Mas o que isso significa? Ou que viram problemas onde hoje não vemos nada
Significa muitas coisas, algumas delas enfatizadas de que indique a existência de algo que, inacreditavel-
modo persuasivo pelo autor. Em primeiro lugar, ao mente, deu muita dor de cabeça em outros momen-
estudarmos o passado de algum fenômeno, assunto tos. De algum modo, estudar história se torna uma
ou campo profissional, podemos pensar no fato de espécie de laboratório onde se ponderam as possi-
aquelas pessoas terem feito escolhas - algumas difí- bilidades e os limites humanos em fazer seus gestos
ceis - entre as possibilidades que para eles existiam. e pensamentos produzirem os resultados esperados.
Além disso, podemos entender que muitas das pos- “Como eles lidaram com isso?”, “Como eu lido com

23
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

isso?”, “Por que eles se ocupavam com aquilo?”, ou que vivemos, e isso por outra razão que não ape-
“Por que eles não perdiam tempo com que algo que nas pelo fato de agirmos e pensarmos em circuns-
nos ocupa?”, tratam-se de questões que fazemos a tâncias, com valores e raciocínios que herdamos,
todo tempo quando estudamos história. como tradição, daqueles que nos antecederam.
Goellner (2012, p. 37) segue um caminho se- Conhecemos melhor o nosso contexto quando
melhante quando afirma que “[...] a História contri- estudamos história, pois só a estudamos quando
bui para conhecer o presente e a nós mesmos”. Ela nos colocamos questões a serem respondidas. Es-
aprofunda alguns dos pontos que elenquei quando sas questões surgem devido aos desafios que en-
apresentei as justificativas de Melo (1999) sobre as frentamos em nosso cotidiano. Elas surgem, pois
razões de estudarmos a história da educação física. percebemos nossa hesitação no modo de abordar
Goellner (2012) lista uma série de questionamentos problemas importantes que atrapalham as ações
que você não dever perder de vista ao ler esta e as que tínhamos planejado, levando-nos ao esforço
unidades subsequentes: de entender melhor a situação.
Esse melhor entendimento, é necessário su-
Como, então, formar profissionais sem sensibi- blinhar, não se refere apenas ao entendimento que
lizá-los para a percepção de que tudo tem his-
devemos ter na hora de tomarmos nossas decisões
tória, inclusive o corpo e sua movimentação?
Como qualificá-los a atuar no campo da saúde, profissionais na escola, por exemplo. Pensar histori-
do esporte, da educação e do lazer sem que te- camente impacta o entendimento da nossa própria
nham condições de entender que os discursos forma de pensar nossas problemáticas, gerando con-
e as práticas que circulam no entorno desses sequências muito valiosas ao campo da pesquisa que
campos não foram sempre os mesmos e que são
existe, prioritariamente no Brasil, na universidade.
constantemente modificados e ressignificados?
(GOELLNER, 2012, p. 37). Taborda de Oliveira (2015), ao criticar a forma im-
ponente com que a tradição do olhar biologizante
Nas próprias perguntas já temos importantes in- existe na educação física e moldar um modo corren-
dícios para que possamos “sensibilizar os alunos te e único de se pensar em nossas questões, aponta
dos cursos de graduação a estudar história” (GO- a reflexão histórica como fundamental para superar
ELLNER, 2012, p. 37), oferecendo respostas e, esse limite. Vamos ler uma das passagens onde o au-
portanto, justificativas a esse estudo. A autora vai tor faz isso, veementemente:
ao encontro do posicionamento de Melo (1999)
quando defende que a grande “utilidade” e tam- Parece claro que reconhecer a dimensão histó-
rica desse processo poderia significar um abalo
bém a grande “beleza” de estudarmos história é o
nas estruturas autorreferentes que sustentam a
fato de abordarmos as intenções, os problemas e partilha do conhecimento do campo da educa-
as ações das pessoas que viveram em outros tem- ção física, o que redundaria no reconhecimento
pos. Também concordam entre si os autores que, da legitimidade dos outros para auferir recur-
quando fazemos isso, ao mesmo tempo em que co- sos, poder e lugares de profissionalização. Ou
seja, abriria-se uma fratura na corporação, que
nhecemos um “outro contexto” damos um passo
seria obrigada a admitir a multiplicidade de
importantíssimo para conhecermos o contexto em

24
EDUCAÇÃO FÍSICA

possibilidades de produção do conhecimento, tante é o campo que se detém na investigação sobre


os múltiplos regimes de verdade que convivem
a história das mulheres. Interessante notar que esse
na ambiência acadêmica e a necessidade de es-
tabelecimento de uma atitude dialógica menos campo de estudos desenvolve-se de modo parale-
prepotente e mais colaborativa no plano das lo às mudanças sociais, econômicas e políticas que
investigações em e sobre a educação física no deram existência ao processo e à luta das mulheres
Brasil. Ora, as regularidades históricas, venham pela vida em um mundo mais igualitário em todos
de onde vier, não são atemporais e invariáveis e
os aspectos. Até então, eram comuns os estudos
são pautadas em disputas por status, recursos e
poder profissional, algo subliminarmente, mas históricos que afirmavam que, em muitas dimen-
nunca publicamente, reconhecido (TABORDA sões da vida social, ou em quase todas, a presença
DE OLIVEIRA, 2015, p. 213). feminina tinha sido desprezível, ou que muitos dos
valores e práticas atribuídos a homens e a mulheres
Desejo que você note, caro(a) aluno(a), que estu- eram uma herança longínqua da história. O incô-
dar os assuntos da educação física historicamente modo gerado pelas lutas, a necessidade de melhor
impacta, ao mesmo tempo em que resulta, na ne- se aparelhar a elas, entendendo contra o que se lu-
cessidade de entendermos nossos hábitos intelec- tava e como poder-se-ia, afinal, ser construído um
tuais. Muitos desses hábitos podem seguir em fren- mundo em que as mulheres, por exemplo, pudes-
te. Outros deverão ser deixados para trás. Temos sem sentir mais ambição pela carreira profissional
aqui um exemplo da situação mais comum quando e menos pelo destino da maternidade, fez com que
estudamos história: aprende-se que as coisas nem muitas análises históricas surgissem, mostrando
sempre foram do jeito que são. Elas foram constru- que muitas das coisas que assumimos como natu-
ídas e, por isso, podem ser mudadas, aperfeiçoadas rais no que diz respeito aos lugares até então ocu-
ou abandonadas. pados pelas mulheres, longe de serem uma obra do
Se essa percepção do modo como o estudo do acaso ou da natureza, foram uma construção histó-
passado traz resultados ao presente é fundamental, rica. Emblemático dessa consequência é o livro de
igualmente importante é o raciocínio inverso: che- Elisabeth Badinter, cujo título já explicita o modo
gamos a um ponto em que poderíamos afirmar que é como uma determinada parte do passado da his-
o presente que explica o passado. Se a afirmação não tória feminina passou a ser vista de outro modo:
inviabiliza o entendimento mais corriqueiro, mas “Um amor conquistado: o mito do amor materno”
ainda válido, de que estudamos história para conhe- (BADINTER, 1985).
cer os caminhos que nos trouxeram até aquilo que Um segundo exemplo pode ser encontrado
hoje somos, a assertiva acrescenta, mais uma vez, a quando pensamos no surgimento de toda uma es-
problemática da produção do conhecimento históri- pecialidade do estudo histórico voltada à educação.
co em nosso estudo: muito do que vemos no passado A história da educação passou a agregar uma maior
explica-se por aquilo que vivemos no presente. quantidade de pessoas interessadas nela, justamente
Nesse ponto, três exemplos ajudarão você a en- no momento em que a sociedade, durante o século
tender melhor tal ideia. Nos dias de hoje, um cam- XIX e início do século XX, assistiu ao fenômeno co-
po de estudo histórico muito interessante e impor- nhecido como “escolarização da sociedade”. Ou seja,

25
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

por motivos que você entenderá mais a frente, na- ção física e pesquisadores buscaram entender e pro-
quele período a escola passou a ser o espaço educa- por novos objetivos para guiar a ação pedagógica do
cional preponderante em termos sociais e culturais. professor de educação física na escola.
De início, trata-se aí de algo bastante complicado de A efervescência foi grande, materializada na pu-
entender, haja vista que, para nós, é difícil imaginar blicação de livros e de artigos, bem como no surgi-
um momento em que a escola não fosse obrigatória, mento de numerosos eventos em que se discutiam
que não fosse pensada para todos os membros da a questão. De um modo geral, havia um sentimento
sociedade e que até mesmo não fosse voltada igual- de grande insatisfação por parte de muitos professo-
mente aos meninos e às meninas. Todavia, o que nos res de educação física ao constatarem que, na esco-
interessa agora é verificar que os esforços para fazer la, a disciplina tinha se transformado no ensino e na
a escola ser frequentada por todas as crianças en- prática de esportes, sobretudo as já citadas quatro
contraram muitos problemas e muitas resistências. modalidades coletivas. A insatisfação sustentava-se
Não foi fácil, igualmente, gerar um ambiente peda- na incapacidade deste cenário em fornecer justifica-
gógico propício ao aprendizado em um contexto em tivas pedagógicas afinadas à estrutura escolar, para
que muitas crianças da mesma idade estivessem reu- que a sociedade passasse a perceber de forma clara
nidas em torno de um único professor. Justamente que a educação física, assim como os outros compo-
quando esses problemas afligiam as sociedades na nentes curriculares, tinha “autonomia pedagógica”
realização de seus planejamentos educacionais, mui- (BRACHT, 1992). Valter Bracht (1992) foi um dos
tas pessoas buscaram entender o contexto educa- principais interlocutores nesse debate. Essa impor-
cional historicamente. Compreenda que, apesar de tância podemos perceber na veemência com que ele
ser algo contraintuitivo, buscar entender o passado se expressava ao diagnosticar um dos fundamentos
quando o presente se mostra pleno em desafios não da “crise da educação física”:
é tergiversar o que deve ser feito. Ou seja, se se tra-
tar de um problema que nos garanta algum tempo, Mais uma vez a Educação Física assume os
códigos de uma outra instituição, e de tal for-
nessa ótica um bom modo de atacá-lo seria olhá-lo
ma que temos então, não o esporte da esco-
indiretamente, voltando os olhos para outro lugar, la e sim o esporte na escola, o que indica sua
mas mantendo o pensamento e o coração naquilo subordinação aos códigos/sentido da institui-
que devo e quero fazer, imediatamente. ção esportiva. O esporte na escola é um braço
O terceiro exemplo ilustra de forma bastante prolongado da própria instituição esportiva.
Os códigos da instituição esportiva podem
clara o modo como problemas imediatos estão na
ser resumidos em: princípio do rendimento
cabeça do historiador. atlético-desportivo, competição, comparação
A década de 1980 foi o período em que o cam- de rendimentos e recordes, regulamentação
po da educação física iniciou uma reflexão sobre sua rígida, sucesso esportivo e sinônimo de vitó-
ria, racionalização de meios e técnicas. O que
estrutura acadêmica e, sobretudo, sobre as justifica-
pode ser observado é a transplantação reflexa
tivas que explicavam sua presença na escola. Em um destes códigos do esporte para a Educação Fí-
processo conhecido na área como “Crise da Educa- sica (BRACHT, 1992, p. 22).
ção Física” (MEDINA, 1983), professores de educa-

26
EDUCAÇÃO FÍSICA

A citação, em sua integralidade, é muito importante da aptidão física e do que se convencionou cha-
para tudo o que aconteceu no campo da educação mar de ‘formação do caráter’ – auto-disciplina,
hábitos higiênicos, capacidade de suportar a
física escolar desde então. Mas para a discussão que
dor, coragem, respeito à hierarquia (BRACHT,
estamos fazendo sobre a importância da história da 1992, p. 20).
educação física, sugiro que você preste especial aten-
ção às palavras “Mais uma vez…”. Note que elas in- Dizendo de outra maneira, é muito interessante
dicam um processo de continuidade, de repetição de para as reflexões deste livro que, justamente em
algo que já vinha acontecendo há um bom tempo. A um momento em que se buscava respostas a de-
expressão denota que o autor está clamando a neces- safios do tempo em que se vivia, os professores de
sidade de uma mudança, de uma ruptura com uma educação física lançaram seus olhares ao passado,
situação avaliada como indesejável, a ser superada. buscando condições privilegiadas para pensarem
Essas primeiras palavras são sinais bastante eviden- em suas questões. Tratava-se, com certeza, de uma
tes da forma como aqueles professores pensavam estratégia intelectual que não visava, apenas, bus-
as urgências que enfrentavam na hora de explicar a car algo a ser refutado no presente, tomada como
importância da educação física escolar: eles busca- plena de vícios e erros. Buscava-se com essa postu-
vam no passado, na história da ação pedagógica dos ra perspectivar uma presença acadêmica e escolar
professores de educação física que tinham vivido as que possibilitasse a condição de evidenciar que a
décadas anteriores, fundamentos para se explicar o ação profissional e pedagógica dos professores de
conjunto de problemas contra os quais lutavam. No educação física era consciente de suas possibilida-
texto de Bracht (1992) que estamos analisando, em des e de suas limitações. De forma resumida, esse
muitas passagens explicita-se essa postura de des- esforço, ao mesmo tempo, foi causa e resultado
crever um presente a ser mudado por aquilo que ele do importante conjunto de estudos históricos no
carrega das tradições herdadas. Na citação a seguir, campo da educação física, do esporte e do lazer
quando o autor fala sobre a educação física na histó- que começaram a surgir. Esses estudos foram tão
ria, salta aos olhos o fato de ele buscar exprimir uma importantes que vamos nos debruçar sobre eles
realidade que se empenhava em mudar: daqui a algumas páginas. Graças a esse conjunto
de estudos, você lê este livro sobre a história da
Mas não somente os métodos ginásticos de ins- educação física.
piração militar foram, principalmente nas qua-
Entendida a importância de se estudar a história
tro primeiras décadas de nosso século, levados
à escola, como também os próprios instrutores de forma geral e da educação física de modo par-
ou ‘aplicadores’ dos métodos. Ora, a prepara- ticular, sugiro que pensemos em uma questão pri-
ção militar inclui historicamente a exercitação mordial nisso tudo: o que estudamos, quando estu-
corporal com o objetivo do desenvolvimento damos história da educação física?

27
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O QUE SE ESTUDA NA
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA?

Se os professores de história, a exemplo de Bloch Assim como foi feito no item anterior, antes de
(2001), sentem-se um pouco embaraçados na hora responder a questão em sua totalidade, sugiro que
responderem “Para que serve a história?”, uma olhemos para o modo como os historiadores pen-
questão cuja mistura de obviedade de complexi- sam nessa problemática a partir dos desafios que
dade causa algum espanto nos estudantes, quando enfrentam na hora de responderem dúvidas tão
começam a construir uma reflexão de matiz histó- importantes como esta. Do mesmo modo, também,
rico: “O que estudar quando estudamos história?” Bloch (2001) nos apoiará nessa reflexão. Para res-
ou, no caso deste livro, “O que se estuda na história pondermos a pergunta sobre o conteúdo que se es-
da educação física?” tuda/aprende nos cursos de história, leiamos alguns

28
EDUCAÇÃO FÍSICA

momentos de “Apologia da História” em que o his- das daqueles que a criaram, são os homens que a
toriador francês nos mostra o “objeto da história”: história quer capturar. Quem não conseguir isso
será apenas, no máximo, um serviçal da erudi-
ção. Já o bom historiador se parece com o ogro
[...] o objeto da história é, por natureza, o homem. da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali
Digamos melhor: os homens. Mais que o singu- está a sua caça (BLOCH, 2001, p. 54).
lar, favorável à abstração, o plural, que é modo
gramatical da relatividade, convém a uma ciên-
cia da diversidade. Por trás do grandes vestígios Não satisfeito com essa definição, mais à frente o au-
sensíveis da paisagem, (artefatos ou máquinas), tor complementa a definição, afirmando que a histó-
por trás dos escritos aparentemente mais insípi- ria se trata de uma “ciência dos homens, no tempo”
dos e as instituições aparentemente mais desliga-
(BLOCH, 2001, p. 55).

29
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Há algumas coisas a serem bem entendidas na agir-se-á mais “sensatamente renunciando ao de his-
reflexão anterior. Acredito que você tenha notado toriador” (BLOCH, 2011, p. 66).
que Bloch (2001) usa o plural de homem, “homens”, Vou sublinhar o ponto que vejo como central
pois ele afirma que estudar história é, necessidade, neste momento: embora estejamos acostumados a
estudar a diversidade. Quando ele nos mostra que o encarar o estudo da história como sinônimo de da-
olhar do historiador quer ver “por trás” dos objetos, tas, descrição de sequência de eventos, nomes de
dos escritos, das instituições, enfim, para onde se di- líderes políticos e religiosos, embora essas informa-
rige o olhar, entende-se a presença humana nesses ções sejam importantes para muitas coisas quando
“artefatos”. Além disso, Bloch (2001) cuida de adver- estudamos um determinado tempo, elas são ape-
tir que essa busca pelas intenções, realizações, pro- nas uma pequena parte daquilo que podemos saber
blemas, hesitações e belezas da humanidade dos ho- quando nos debruçamos e consumimos esforços e
mens se dá atrelada à ideia de que tudo isso existe no tempo para estudar um determinado período. Bloch
tempo, ou seja, foram artefatos construídos em um (2001) nos ajuda a entender que o objeto do estudo
determinado momento e que em outros momentos da história é a busca pela compreensão dos esforços
foram transformados, extintos ou abandonados. Ao envidados pela humanidade ao se fazer, com pode-
pensar em um gesto, nobre ou maléfico, importante res e fraquezas, na mesma medida com que eles nos
ou banal para o historiador, ele só “julgará ter pres- constituem. Ou seja, são homens e mulheres que-
tado conta disso depois de ter fixado, com precisão, rendo conhecer homens e mulheres, igualmente hu-
seu momento na curva dos destinos tanto do homem manos, mas que manifestavam essa humanidade de
que foi seu herói como da civilização que teve como formas diferentes por viverem em “outras florestas”,
atmosfera” (BLOCH, 2001, p. 55). Se assim como o ou em outros tempos. E ainda mais importante que
“ogro” o historiador vai atrás da “carne humana” que isso é o modo como essa questão de valor intelectual
lhe interessa, diferentemente do assombroso animal, relaciona-se com o “aqui e agora” não apenas da so-
ele tenta avaliar as razões que levaram as “vítimas” a ciedade na qual nos inserimos, mas no que você e eu
estarem onde estão. Sem buscar esse conhecimento somos, hoje. A beleza e a clareza com as quais Bloch
relativo aos motivos que podem explicar a presen- (2001) registra esse pensamento é algo remarcável:
ça ou a ausência humana nessa “floresta do tempo”,
aquele que se aventura a estudar história torna-se, Na verdade, conscientemente ou não, é sem-
pre as nossas experiências cotidianas que, para
apenas, um “serviçal da erudição” (BLOCH, 2001, p.
nuançá-las onde se deve, atribuímos matizes
54), um “útil antiquário” (BLOCH, 2001, p. 66). Em- novos, em última análise os elementos, que
bora mantenha alguma utilidade, esse serviçal, esse nos servem para reconstituir o passado: os pró-
antiquário apaixonado por datas e eventos come- prios nomes que usamos a fim de caracterizar
morativos, esquece que “o frêmito da vida humana, os estados de alma desaparecidos, as formas
evanescidas, que sentido teriam para nós se
que exige um duríssimo esforço de imaginação para
não houvéssemos antes visto homens viverem?
ser restituído aos velhos textos, é (aqui) diretamente Vale mais (cem vezes) substituir essa impregna-
perceptível a nossos sentidos (BLOCH, 2001, p. 66). ção instintiva por uma observação voluntária e
Ao virar as costas para o “frêmito da vida humana”, controlada (BLOCH, 2001, p. 66).

30
EDUCAÇÃO FÍSICA

É importante repetir que tanto a redação deste li- mas que possam interessar a todos os especialistas
vro quando a sua leitura é uma tentativa de cola- de algum modo. No caso da história da educação
borar na valorização dessa impregnação instintiva física, o tema “Esporte e Educação na História”
que nos leva a querer conhecer o passado desde norteia a preferência por determinados tipos de
que nos percebemos como seres humanos. Toda- trabalhos e estudos que se aproximem daquilo que
via, trata-se de se buscar uma maneira que nos é o alvo da discussão do congresso. Para que a co-
capacite a fazê-lo por meio de uma observação munidade de pesquisadores, professores e alunos
voluntária e controlada, ou seja, lendo e pesqui- tenha ciência do eixo reflexivo das discussões, é
sando sistematicamente historiadores que versam redigida uma apresentação, que oferece uma des-
sobre dimensões da tal “humanidade do homem” crição e explicação do assunto e de sua relevância
que nos interessam. para o avanço da pesquisa. Convido você a ler um
Em nosso caso, sabemos que o interesse está trecho dessa apresentação para que possamos dis-
calcado em investigarmos a educação física, histo- cuti-la nos parágrafos seguintes:
ricamente. Então, conforme o que foi discutido an-
teriormente, é importante que você tenha claro que, O tema eleito concebe a Educação como um
conjunto de processos culturais amplos que
na imensidão de assuntos a serem estudados pelos
implicam conhecimento e prática dos usos e
historiadores, este livro e os estudos de história da costumes de uma sociedade, tendo como fi-
educação física abarcam uma parcela bem específica nalidade introduzir indivíduos e grupos em
da vida social e cultural. distintas esferas da vida pública. Não se trata,
Antes de seguir em frente, uma lembrança aqui, exclusivamente, da educação realizada
no interior da instituição escolar, com seus
deve ser feita. O título deste livro, história da edu-
programas, atividades e procedimentos pró-
cação física, foi dado em razão de ser esse o título prios; ritmos e tempos; arquiteturas, mobiliá-
da disciplina na qual você irá estudá-lo. Porém, é rio e tudo o que compõe sua rica cultura ma-
crucial que não se perca de vista o termo “educa- terial, mesmo que tudo isso possa ser também
objeto da delimitação temática deste evento.
ção física” tem uma acepção larga para englobar
Trata-se aqui de problematizar e historicizar
práticas que recebem outras denominações. Para o lugar do Esporte, da Educação Física e do
ilustrarmos os assuntos que são estudados sobre a Lazer na configuração, constituição e efeti-
denominação “história da educação física”, lanço va realização de distintos, amplos e extensos
processos educativos (escolares ou não) que
mão da existência de um evento específico, dedi-
constituem as modernas sociedades. Nesta
cado a esse estudo. Trata-se do Congresso Brasileiro perspectiva poderíamos afirmar que o espor-
de História do Esporte, Lazer e Educação Física. No te, a educação física e o lazer educam, pois,
ano de 2016, sua décima quarta edição aconteceu ao criarem regras e comportamentos comuns,
em Campinas e teve como tema central “Esporte usos comuns do corpo, induzindo indivíduos
a cuidarem de si, e, nesse movimento, a prote-
e a Educação na História”. Quando os eventos aca-
gerem-se de suas próprias forças e impulsos,
dêmicos acontecem, eles reúnem pesquisadores contribuem para a assegurar a vida em socie-
de uma determinada área do conhecimento para dade e as trocas entre as gerações (XVI CHE-
debaterem temas, ao mesmo tempo, específicos, LEF, 2016, on-line)1.

31
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Em primeiro lugar, observe que, ao proporem o ído a partir de um importante evento na área de
tema “Esporte e Educação na História”, os organi- educação física, possa ter deixado alguma clareza
zadores veem essa temática como algo valioso tan- sobre a grande variedade e importância dos temas
to na atualidade quando em diferentes momentos que podem ser discutidos em um curso de história
do passado. Nesse caso, espera-se receber estudos da educação física. Você verá que a estrutura das
que focalizem essa relação em outros períodos que unidades seguintes a esta primeira foi construída
não o nosso, em diferentes lugares e com a atenção com muitos desses questionamentos postos, como
voltada a diferentes aspectos. Quais deles, segundo se fossem mapas para os caminhos que percorro.
a apresentação do evento? É sublinhado que “edu-
cação” não será entendida como algo que acontece
SAIBA MAIS
apenas na escola, embora a educação que lá ocorre-
ra não seja posta de lado. Essa advertência é impor-
tante. Afinal, boa parte do estímulo que se oferece Se estudar aspectos históricos relativos aos
à prática dos esportes não se sustenta nos benefí- esportes e ao lazer é um dos momentos
marcantes no curso de formação inicial em
cios formativos que eles providenciam às crianças e educação física, o mesmo vale dizer para a
aos jovens? Quais eram esses benefícios, em outras educação física na educação básica. Em todas
épocas? Quem divulgava esses benefícios e como as regulamentações e diretrizes curriculares
do componente curricular educação física,
essa divulgação ocorria? Quais consequências que ensinar os alunos a pensarem historicamente
essa busca gerava na forma como as pessoas se rela- os esportes, a ginástica, os jogos, as lutas, a
cionavam com seu corpo e com o corpo dos outros? dança e o lazer é defendido como uma das
principais colaborações dos professores de
Nessa relação, nessa prática educativa e recreativa, educação física à educação das crianças e
quais eram os objetos, as roupas e lugares em que jovens. Esse é um aspecto muito interessante
os grupos se reuniam para realizar essas atividades? dos cursos de formação de professores: ao
mesmo tempo em que você amplia seus ho-
De que modo os diferentes governos em diferentes rizontes conhecendo dimensões da realidade
níveis (federal, estadual e municipal) estimularam até então desapercebidas, é necessário não
determinadas práticas e barraram outras tantas? esquecer que essa ampliação cultural deverá
capacitar os licenciandos para processarem
No final das contas, poderíamos perguntar: de que esse conhecimento, transformando-o em
forma pensar e praticar o esporte educacionalmen- temas de ensino para o seu trabalho como
te possibilitou condições fundamentais para que as professor nas escolas.

diferentes sociedades, nas quais esses pensamentos Fonte: o autor, baseado em Unesp (DARIDO, [2016],
e práticas existiram, reproduzam-se ou se transfor- on-line)2.

mem? Acredito que esse rol de questões, constru-

32
EDUCAÇÃO FÍSICA

COMO SE PRODUZ

CONHECIMENTO HISTÓRICO
SOBRE A EDUCAÇÃO FÍSICA?
Caro(a) aluno(a), se temos muitos questionamen- O que faremos neste tópico é refletir sobre al-
tos, é justo almejar que se inicie a construção de res- gumas questões básicas relativas à produção do
postas para eles. Tudo aquilo que você lerá e pensará conhecimento histórico. Para mantermos o hábito
neste livro sobre a história da educação física é o re- analítico que adotei neste livro, inicialmente va-
sultado de pesquisas realizadas há algumas décadas. mos verificar como essa produção do conhecimento
Essas pesquisas produziram e produzem a gama de ocorre no campo mais amplo da história, pois é par-
conhecimentos e de novos questionamentos que, tir dele que boa parte da pesquisa histórica que hoje
como vimos anteriormente, são responsáveis por existe vem se pautando. Feito isso, volta-se a estudar
nos proporcionar olhares renovados não apenas so- a educação física e o conhecimento histórico que
bre o passado de um campo profissional, mas para hoje é produzido nesse campo.
os desafios que ele enfrenta em sua atualidade.

33
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Vimos, há alguns parágrafos, que os historia- pode ser narrada em primeira ou na terceira pessoa”
dores reconhecem que a beleza e a importância do (VEYNE, 1998, p. 18). Dito de outro modo, as expe-
conhecimento que produzem são justificadas pelo riências são diferentes e, obviamente, a reflexão so-
fato de se reportarem à ação dos homens no tempo. bre elas será muito diversa, gerando assim narrativas
Essa vinculação a uma determinada temporalidade díspares. Ainda assim, essa miríade de olhares é fun-
lança como desafio as condições existentes para que damental para que possamos conceber a Batalha de
um conjunto de ações, pensamentos ou eventos seja Waterloo, ou qualquer outra coisa na história, como
narrado de um modo a produzir um conhecimen- existente e cognoscível.
to que possibilite aos consumidores desse conheci- Ora, ainda assim fica a dúvida: disso deve-se
mento alguma segurança sobre aquilo que leem e concluir que produzir uma “narrativa verídica” é
ensinam, no caso dos professores. Paul Veyne é au- algo impossível, levando-nos a ver nesses esforços
tor de um livro chamado “Como se escreve a histó- de pesquisa dos historiadores um mero mosaico de
ria” (VEYNE, 1998). Embora ele fale que a história opiniões? Mesmo que essa compreensão seja recor-
é uma “narrativa verídica”, é importante ter claro rente, o que leva muitos a criticarem ainda mais a
que entre essa narrativa e a experiência que se teve história como campo do conhecimento, produzir co-
de um determinado ato ou evento há uma grande nhecimento histórico é um ato intelectual diferente
distância. Ou seja, a esperança de se ter uma nar- da criação literária, embora seja a ela relacionada. A
rativa totalmente fidedigna ao objeto da narração é literatura, que assim como a história consegue fazer
algo já assumido como horizonte inalcançável por com que “um século caiba em uma página” (VEY-
parte de quem escreve história. Veyne (1998) toma NE, 1998, p. 18), também lida com a dificuldade de
como exemplo a Batalha de Waterloo, para mostrar retratar, interessantemente, um determinado tempo.
que no bojo desse evento as percepções sobre os in- Todavia, se na literatura a “defasagem que sempre
contáveis gestos, sobre os momentos mais decisivos separa a experiência vivida da reflexão sobre a narra-
e relacionados ao desfecho da derrota ou da vitória, tiva” gera “experiências estéticas interessantes”; para
há um abismo compreensível entre a experiência e o historiador a clareza desse distanciamento gera a
a reflexão sobre a experiência vivida por todos os salutar “descoberta de um limite” (VEYNE, 1998, p.
envolvidos. Explicando esse ponto de outro modo, 18). Em uma passagem bastante esclarecedora sobre
a experiência dos diferentes atores que deram vida o fato desse limite não ser um desqualificador desse
à batalha em questão é dificilmente alcançada, em conhecimento, lemos:
sua plenitude, por qualquer reflexão a ser feita so-
O campo da história é, pois, inteiramente inde-
bre ela, mesmo que essa reflexão ocorresse imedia-
terminado, com uma única exceção: é preciso
tamente após a batalha ter acontecido. Um soldado que tudo o que nele se inclua tenha, realmente,
raso, um general, um civil, alguém que teve um ente acontecido. Quanto ao resto, que a textura do
querido morto ou um familiar que vê seu parente campo seja cerrada ou rala, completa ou lacu-
nar, não importa; uma página da Revolução
retornando para casa depois dos confrontos, cada
Francesa tem uma trama suficientemente cer-
uma dessas pessoas teria uma percepção, uma sen- rada para que a lógica dos acontecimentos seja,
sação diferente. Isso nos faz perceber que a “história quase completamente, compreensível e para

34
EDUCAÇÃO FÍSICA

que um Maquiavel ou Trotsky tivesse podido supostos que afastem as narrativas históricas “dos es-
tirar dela toda uma arte da política; no entan- tudos excessivamente descritivos [...] e [da] carência
to, uma página de história do Antigo Oriente,
de evidências documentais”. Como resultado, os ana-
que se reduz a uns poucos dados cronológicos e
contém tudo o que se sabe de um ou dois impé- listas da história da educação física se preocuparam
rios, dos quais só restou o nome, ainda assim é com o fato de muitos dos estudos produzidos até a
história (VEYNE, 1998, p. 25). década 1980 serem escritos de um modo distanciado
dos procedimentos e cuidados metodológicos. Esses
Essa insegurança, essa lida cotidiana com um pen- cuidados podem ser sumarizados nas ponderações
samento exposto ao seu “limite”, impede que o his- feitas a partir da reflexão de Veyne (1998).
toriador conheça o passado diretamente, mas o co- Assume-se que advertências como as feitas
nheça apenas por pequenas partes que lhe chegam por Melo (1999) levaram os estudos históricos do
do tempo estudado que ele tem acesso. Para narrar campo da educação física a experimentarem uma
o passado o historiador depende de documentos “renovação historiográfica” (TABORDA DE OLI-
produzidos no contexto estudado, a fornecer-lhe in- VEIRA, 2007, p. 117). Porém, Taborda de Oliveira
dícios que o permitam exercer sua reflexão apoiado (2007) não poupa críticas a esse movimento, notan-
na concretude disso que se chama de “fontes pri- do que mesmo existindo em um contexto atento e
márias”: “A história é, em essência, conhecimento com um olhar mais voltado à renovação dos modos
por meio de documentos” (VEYNE, 1998, p. 18). de se abordar a história bem como de seus objetos
Todavia, é importante que a produção desse conhe- de estudo, existe paralelamente “permanência dos
cimento não trate apenas de encontrar uma grande marcos políticos, econômicos ou intelectuais da da-
quantidade de documentos sobre um determinado tação” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2007, p. 123).
assunto: é necessário o historiador colocar esses do- De qualquer modo, em que pese essas advertên-
cumentos para dialogarem entre si, exercendo sua cias e críticas, sempre necessárias a todos que pro-
capacidade de questioná-los, dando-lhes condições duzem conhecimento, é importante reconhecer que
de tornar uma temática compreensível ao leitor. hoje há uma produção historiográfica interessante,
Você deve prestar atenção ao fato de que pro- rica e variada no campo da educação física, supe-
duzir conhecimento histórico é um diálogo entre a rando os tradicionais escritos que primavam apenas
capacidade do historiador em formular perguntas pela listagem de nomes, datas, eventos e/ou sua re-
perspicazes e buscar documentos para construir lação com os marcos políticos (império, república
respostas a partir dos documentos que encontrar. É etc.) do mundo sócio-histórico que circunda os fe-
essa capacidade que gera uma “superfície tranquili- nômenos estudados.
zadora da narrativa” (VEYNE, 1998, p. 26), levando Para termos uma ideia da riqueza da reflexão his-
os leitores e verem nesse conhecimento de “natureza tórica atinente à educação física e às práticas corpo-
lacunar” um “verdadeiro reflexo”. rais, proponho que olhemos mais proximamente o
No campo dos estudos históricos produzidos na conteúdo e o funcionamento dos Centros de Memó-
educação física, Melo (1999, p. 42) identifica a ne- ria voltados ao esporte e à educação física, existentes
cessidade dos pesquisadores pautarem-se em pres- no país. Tratam-se de instituições que recebem, or-

35
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

ganizam, classificam e disponibilizam o acesso a do- Quando falamos em documentos, dificilmente


cumentos relacionados a um determinado tema para imaginaríamos que os objetos também são assumi-
pesquisadores. Nesse caso, tratam-se de documentos dos como tais. Associamos documentos à escrita,
importantes para a construção de análises históricas ao texto. O acervo de objetos do CEMEF-UFMG
sobre questões valiosas à educação física. Em 2013, o é composto, em sua maioria, por instrumentos
Centro de Memória da Educação Física, do Esporte e científicos de toda natureza, relacionados à medi-
do Lazer (CEMEF) da Universidade Federal de Minas ção de variadas grandezas associadas ao esporte e
Gerais (UFMG), organizou uma coletânea (LINHA- ao exercício. Ao nos confrontarmos com esse tipo
LES; NASCIMENTO, 2013) onde se pode ter uma documental, a dúvida que surge é relativa ao que
ideia dos tipos de documentos que lá estão e, conse- fazer com ele em termos analíticos, perspectivando
quentemente, do teor das pesquisas, tendo por base os modos com os quais se pode construir análises
o conjunto documental sob a guarda da instituição. históricas. Para tanto, o seguinte esclarecimento é
Os arquivos pessoais doados por professores que importante:
trabalharam na Escola de Educação Física da UFMG
e também por ex-alunos da instituição é um con- [...] é necessário pensar no alargamento do
rol documental, refletindo sobre a constru-
junto documental bastante variado. Em primeiro lu-
ção mais equilibrada de fontes. A análise fei-
gar, registra-se que são documentos doados, muitas ta aqui permitiu fazer a relação entre o ins-
vezes, por familiares dos professores. Os itens que trumento e a constituição de conhecimentos
compõem esse acervo são variados: tratam-se de li- relacionados à Antropologia, Medicina, His-
vros, correspondências, planos de aula, fotografias, tória Natural e Educação Física. Aqui, não se
trata de dar preponderância ou não ao docu-
certificados, etc. Além da curiosidade gerada por
mento escrito, mas entender a cultura mate-
tais documentos, há o impacto de eles terem sido ge- rial tridimensional como um manancial que
rados no fomento de problemáticas a serem investi- pode nos dar informações não acessíveis por
gadas. Linhales, Cunha e Fonseca (2013) sublinham fontes escritas, e concebê-las dentro de um
intercâmbio recíproco entre as duas possibi-
o que pode ser analisado nesses vestígios, ponderan-
lidade de obtenção de informação (GOMES;
do questões suscitadas aos pesquisadores durante o BRAGHINI, 2013, p. 97).
procedimento de organização do acervo:
Igualmente importantes na hora de acessarmos
[...] os arquivos pessoais constituem também outras temporalidades que não a nossa, são as fo-
significações reveladoras de laços e vínculos
tografias. No CEMEF-UFMG há 1622 fotografias
sociais, redes de pertencimento e formação
das quais os indivíduos fizeram parte. Ou seja, disponíveis para consulta (MORENO, SEGAN-
o modo como cada uma marca seu percurso TINI, 2013, p. 112). Contrariando um determi-
próprio e, ao mesmo tempo, desvenda ele- nado senso comum que enxerga nas fotografias
mentos que compõem uma história social da um “retrato fiel” de um outro tempo, os historia-
Educação Física [...] (LINHALES; CUNHA;
dores que pesquisam temas relacionados à educa-
FONSECA, 2013, p. 73).
ção física, ao esporte e ao lazer buscam verificar

36
EDUCAÇÃO FÍSICA

nas fotos não apenas aquilo que eles diretamente tornar-se um documento para a pesquisa histórica,
mostram, mas outros detalhes, como o enquadra- na medida em que articula ao contexto histórico e
mento escolhido pelo fotógrafo, o arranjo dos fo- social que o produziu um conjunto de elementos
tografados, as razões que levaram à fotografia em intrínsecos à própria expressão cinematográfica”
questão, bem como os diferentes modos com que (KURNIS apud FREITAS; LINHALES, 2013, p. 117).
as pessoas executavam esse ato de legar à poste- Outras formas de documentos têm sido uti-
ridade um registro de um fato, de um evento ou lizadas pelos pesquisadores. Jornais, cinema e
de uma pessoa. As autoras explicitam o potencial entrevistas com pessoas que viveram no contex-
analítico gerado pelas fotografias quando, ao con- to que se quer estudar são exemplos da varieda-
cluírem suas reflexões, ponderam o valor desse de documental encontrada pelos historiadores
“documento”: e que alimentam suas pesquisas. Desse ponto
de vista, quem vai estudar história da educa-
Fotografias ampliam nosso olhar para facetas ção física, do lazer e do esporte, ao interessar-se
dos processos educacionais recaídos sobre o pela multifacetada capacidade humana de criar,
corpo, percebidos nas maneiras de vestir, nos
transformar e dar significado às práticas corpo-
gestos, nas práticas autorizadas, no que fica
de fora da imagem. Através da fotografia po- rais, aos prazeres corporais e ao cuidado com
dem-se captar as maneiras como o corpo se o corpo, necessita de meios que permitam que
apresenta nos espaços destinados às práticas essa reflexão aconteça.
corporais, os modos autorizados do corpo Essa noção ampliada de documento (FARIA
estar presente nas instituições de ensino da
FILHO; VIDAL; PAULILO, 2004) é algo já reco-
Educação Física. O potencial das fotografias
está também em decifrar os discursos subli- nhecido como fundamental aos historiadores de
minares às imagens: eugênicos, civilizadores, todos os campos, e, igualmente, pelos historiado-
modernos, cívicos, higiênicos (MORENO; res que voltam sua atenção às problemáticas da
SEGANTINI, 2013, p. 114).
educação física. Entretanto, esse ampliação nem
sempre foi assumida como necessária ou possível.
Seguindo esse trajeto de ampliação daquilo que ser- Isso porque hoje o que se pratica como procedi-
ve de apoio documental aos estudiosos da história mento incontornável de produção do conheci-
da educação física, os registros de filmagens apre- mento é o resultado do questionamento de uma
sentam-se como outra possibilidade importante. De determinada tradição construída por gerações de
modo comparável ao que ocorre com a fotografia, na professores de educação física interessados e re-
análise desse material o pesquisador deverá se ater ao datores e livros da educação física. Para finalizar
contexto em que foi produzido o material, o público este tópico, convido você a conhecer um pouco
a quem estava voltado, bem como as potencialidades dessa tradição. Afinal, você já percebeu que dar
técnicas existentes e efetivamente usadas na produ- um passo para trás é uma atitude sábia para quem
ção das imagens. Por conta dessa razão, “o filme pode pretende ir para frente.

37
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

A HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO FÍSICA
TAMBÉM TEM UMA HISTÓRIA

Ao propor a importância de entendermos nossos ria da educação física também é uma história que
desafios historicamente, somos, então, levados ao desde o início do século XX até a atualidade mu-
estudo de um conhecimento que já vem sendo dou o modo com o qual o conhecimento históri-
elaborado por pessoas que viveram e pensaram co foi produzido e divulgado sobre o campo da
antes que estivéssemos em condições de o fazer. educação física, dos esportes e do lazer, e tem ex-
No caso do conteúdo deste livro sobre a história perimentado mudanças em seus procedimentos
da educação física, muitas das informações e das e concepções. Ter conhecimento sobre esse pro-
reflexões que estão aqui e que você lê e lerá nas cesso de mudança, o que esse conhecimento era e
próximas páginas são resultado de um acúmulo e, deixou de ser, é o grande objetivo deste momento.
também, de sucessivas mudanças na forma como Com ele, compreenderemos que “pensar histo-
o conhecimento histórico foi elaborado e divul- ricamente” implica aplicar esse pensamento aos
gado no interior de nosso campo. Resumindo o esforços investigativos na hora em que eles pro-
ponto com o qual encerro esta unidade, a histó- duzem sua “narrativa verídica” (VEYNE, 1998).

38
EDUCAÇÃO FÍSICA

o resguardo de informações, até hoje pode ser


Faremos essa reflexão buscando, mais uma encontrada, inclusive com características seme-
vez, o apoio das análises feitas por Melo (1999). lhantes às de então (MELO, 1999, p. 35).
Nessas análises, a história da educação pode ser
vista a partir de características intelectuais agru- Para ilustrar a forma como a história era abordada
padas em quatro fases. nessa fase, vale a pena nos determos à obra “A poesia
A primeira fase compreende as primeiras dé- do corpo ou a gymnastica escolar: sua história e seu
cadas do século XX. Não havia naquele momento valor”, publicada em 1915 e escrita por Fernando de
uma produção bibliográfica sistemática em torno da Azevedo. Verifica-se que no título a história recebe
questão. O grande ímpeto que levou aos poucos li- uma grande atenção, embora no livro os aponta-
vros existentes sobre esse olhar histórico em relação mentos efetivamente históricos resumam-se a sete
à educação física foi o de trazer informações relati- páginas, das 215 que possui a obra. Nas páginas em
vas ao seu passado, sem a preocupação em fazer essa que fala da “gymnastica através do tempo”, Azeve-
retomada com a busca por documentos ou por qual- do (1915, p. 24) inicia uma exposição com a história
quer outro procedimento sistematizado de pesquisa. egípcia, passando pela China, Grécia, Roma, Idade
Melo (1999), embora cite outros livros relacionados Média e Renascimento. O autor estuda o desenvol-
à história do esporte, sublinha que característicos vimento de métodos ginásticos no século XVIII e
desse primeiro momento foram os livros de Lauren- XIX para afirmar que, no momento em que ele vi-
tino Lopes Bonorino, intitulado “Histórico da Edu- via, a “gymnastica (era) na prática uma das maiores
cação Física”, e também as análises espalhadas nos aspirações, como na teoria um dos problemas mais
escritos de Fernando de Azevedo. De acordo com estudados na idade contemporânea” (AZEVEDO,
Melo (1999, p. 35), é possível verificar nesse conjun- 1915, p. 30). É fundamental que seja compreendido
to de reflexões da primeira fase “perspectivas histo- que a ida a “outras civilizações” serviu para endossar
riográficas de seu tempo”, a saber, o fato de aquelas aquilo que Azevedo via como verdade em sua época,
reflexões se apoiarem em marcos cronológicos ex- deixando-nos a vívida impressão que o uso da histó-
ternos à educação física, em que, por exemplo, esta ria teve o objetivo de endossar algo que ele queria ar-
era pensada a partir do regime político vigente (im- gumentar como incontestável: o valor da ginástica.
pério, república, etc.). Soma-se a esse traço a ênfase O marco utilizado para definir a existência de
na positividade das informações, com um objetivo uma segunda fase na produção historiográfica da
memorialista de reunir nomes e datas “marcantes” educação física é a obra de Inezil Penna Marinho
no que tange às práticas corporais e a educação por (1915-1985). A quantidade de livros, textos, artigos
elas obtida. Sobre essa fase, afirma Melo (1999): produzida por Marinho, bem como a qualidade teó-
rica de suas reflexões, o colocam não apenas como o
Os autores, no entanto, não pareciam querer “maior estudioso da história da educação física e do
defender ou provar nada, mas simplesmente
esporte no Brasil” (MELO, 1999, p. 35), mas como
guardar fatos e datas para que não se perdes-
sem no tempo. [...] De fato, este tipo de obra, um de seus “maiores intelectuais (DALBEN, 2011,
ligada à história dos esportes, escrita por não p. 59). Nos últimos anos, a trajetória de Inezil Penna
acadêmicos e sem outra preocupação do que Marinho tem recebido bastante atenção de pesqui-

39
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

sadores interessados no desenvolvimento histórico Perceba que os objetivos desta primeira unidade são
da educação física, em virtude da sua prolífica atua- ecos daquilo que dizia Marinho na década de 1950.
ção como professor, escritor e pesquisador com foco Afinal, o que ele está pensando na citação anterior?
dirigido à cultura física. Ele estava bastante preocupado com a importância
No que diz respeito à análise histórica realizada da história na formação dos alunos. Para isso, ao
por Marinho, Melo (1999) nota que pela primeira mesmo tempo em que é ponderada a preocupação
vez a pesquisa em história sobre a educação física com o ensino dessa especialidade, ele manifesta uma
assumiu a característica de não ser mera compila- concepção de história e de conhecimento que sus-
dora de reflexões ou opiniões de terceiros. Marinho tentava os levantamentos e as pesquisa que fazia.
empreendeu uma rotina de levantamento de docu- A terceira fase demarcada por Melo (1999) é a
mentos, rotina essa bastante aproximada ao que se que passou a existir na década de 1980 e que teve
presumia ser a produção do conhecimento histórico grande representatividade no livro “Educação Física
sustentada “no levantamento de fatos, datas, nomes, no Brasil: a história que não se conta”, escrito por
sem a preocupação de análise crítica do material Lino Castellani Filho e publicado em 1988. O pró-
encontrado” (MELO, 1999, p. 36). A existência de prio título do livro deixa entrever um dos objetivos
uma reflexão historiográfica bastante aprimorada de Castellani Filho (1988): discutir problemáticas
em Inezil Penna Marinho podemos verificar em um que não foram discutidas até aquele momento, nos
discurso por ele pronunciado, publicado em 1958, estudos históricos sobre a educação física. O interes-
onde o professor preocupa-se com a relação entre se maior do autor era demonstrar o modo como a
ensino e pesquisa na formação dos professores de história da educação física brasileira esteve alinhada
educação física: aos interesses econômicos e políticos das classes do-
minantes, em uma abordagem que se caracterizava
O importante do estudo da história não é a como marxista e repudiava a tentativa de se fazer
memorização dos fatos e datas, não é a fixação
uma análise que não assumisse a luta política como
daquilo que os compêndios, formalizaram e, al-
gumas vezes, até padronizaram. Como profes- norte da ação dos professores de educação física.
sor de história desejo suscitar em meus alunos o Não há como deixar de reconhecer que esse livro
interesse que os leve à investigação dos fatos, ao exerceu grande influência no momento em que foi
aproveitamento das experiências por outros po- publicado e nas décadas seguintes, o que foi ajuda-
vos, a interpretação dos dados oferecidos à sua
do por ter sido publicado em momento de grande
razão (MARINHO apud MELO, 1999, p. 38).
intensidade das discussões que buscavam pensar o

40
EDUCAÇÃO FÍSICA

papel da educação física na sociedade e, sobretudo, Essas críticas feitas à terceira fase já sinalizam as
na escola. Isso coloca em evidência, mais uma vez, o características da produção historiográfica existen-
modo como a busca pela história não é uma atitude te no campo da educação física desde então. Melo
desinteressada, inócua a quem deve tomar decisões, (1999) não fala em uma quarta fase, mas penso que
imediatamente. poderíamos enxergar no conjunto de estudos pro-
Melo (1999), muito embora reconheça esse va- duzidos na atualidade uma tentativa de superar os
lor, não deixa de criticar a obra de Castellani Filho problemas metodológicos observados. Trata-se de
(1988). Em que pese Castellani Filho (1988) ter um desafio ainda em curso, que tem contado com
“significado uma importante mudança de enfoque” a aproximação dos pesquisadores de nosso campo
(MELO, 1999, p. 39), ao se estudar o modo como aos debates existentes no campo da história. De al-
o livro composto, em termos, de metodologia do gum modo, a tentativa que fiz nas reflexões desen-
trabalho de pesquisa histórica, verificou-se que a volvidas nesta unidade existem por conta de meus
adoção de uma perspectiva marxista não significou esforços em acompanhar essas mudanças. Trata-se
uma ruptura com o modo tradicional de produzir de um empenho que avalio ser pleno de resultados
história no campo da educação física. Melo (1999) é interessantes para colaborar na continuidade das
contundente quando elabora sua crítica, afirmando: pesquisas que objetivam entender as práticas cor-
porais e a educação que nelas se baseia, a partir de
A periodização continua a se submeter a especi- uma ótica histórica.
ficidades exteriores ao objeto, além de referen-
darem uma impressão de continuidade e line-
aridade sempre tão presente em todas as fases
anteriores; a história é entendida como respon- REFLITA
sável por explicar linearmente o presente, fato
agravado por uma compreensão que parte do
presente com hipóteses traçadas já basicamente A Educação Física tem sido utilizada politica-
confirmadas, o que praticamente faz forjar no mente como uma arma a serviço de projetos
passado os elementos necessários para provar a que nem sempre apontam na direção das
hipótese inicial; a exasperação da crítica ao ca- conquistas de melhores condições existen-
ráter documental-factual das obras anteriores ciais para todos, de verdadeira democracia
findou por muitas vezes no dispensar de dados, política, social e econômica.
fatos e nomes, tão importantes em qualquer es-
(João Paulo S. Medina)
tudo historiográfico (MELO, 1999, p. 39).

41
considerações finais

P
rezado(a) aluno(a), nesta primeira unidade propus uma caminhada
mais lenta para pensarmos, mais detidamente, nas características da
reflexão histórica voltada à educação física e aos esportes. Eliminar
os automatismos desse gesto de querer saber o passado das coisas, tão
corriqueiro e, por isso mesmo desconhecido, dá a ele um potencial que antes não
era notado. Embora o curso de educação física para alguns se relacione à prática
de atividades corporais ou ao estudo de anatomia e fisiologia, nele também se
coloca como necessidade estudarmos a história dos desafios científicos e profis-
sionais enfrentados por professores que viveram e atuaram antes de nós.
Nessa simples atitude de voltar nossa atenção para outras épocas, há cui-
dados e reflexões que buscam justificar a relevância de o conhecimento histó-
rico continuar a ser produzido e ensinado. Produzido por pesquisadores que
são formados para tanto, ensinado por professores que também recebem uma
formação específica para isso, todos lidando com uma forma de pensamen-
to plena de fragilidades, mesmo assim, e justamente por essa possibilidade de
gerar vários olhares sobre o mesmo objeto, muito significativo para o enten-
dimento não apenas do passado, mas de nós mesmos. O desafio de lidar com
a característica lacunar do conhecimento histórico, levou ao desenvolvimento
de procedimentos de pesquisa histórica que hoje são adotados também por
professores de educação física. Você viu que o estudo da história da educação
física também tem uma história, sendo uma atitude intelectual que vem nos
acompanhando com o passar do anos e submetendo-se a mudanças importan-
tes. Perceba que mudança e transformação são palavras-chave em um campo
intelectual normalmente despreciado por se acreditar que ele lide com algo
pronto, acabado, morto, enterrado, de uma vez por todas. Não é isso, não é? Por
essa razão há bastante coisa a ser estudada nessa história.

42
atividades de estudo

1. A partir das reflexões desenvolvidas nesta unidade, como justificar a im-


portância de se estudar história em um curso de educação física?

2. Pondere algumas características do conhecimento histórico.

3. Qual a importância dos documentos para a pesquisa histórica?

4. Diferencie as quatro fases da produção historiográfica no campo da edu-


cação física.

5. A partir da leitura da apresentação redigida por Medina ao livro “Educação


Física no Brasil: a história que não se conta”, especifique o modo como a
história é vista por Castellani Filho (1988).

43
LEITURA
COMPLEMENTAR

Discussões sobre o documento na produção historio- cam - os historiadores. [...] Cada vez mais nitidamente,
gráfica são tema de muitas publicações, de trabalhos a produção historiográfica fundamenta-se pesadamen-
apresentados em eventos científicos, num esforço claro te nos documentos, nas fontes que fornecem informa-
de compreensão sobre a pluralidade dos documentos ção. Menos na busca da prova e mais da construção de
disponíveis para a pesquisa histórica, suas característi- sentidos a partir dos indícios; e, de maneira desejável,
cas, possibilidades de exploração, acessibilidade, entre ancorada em algum instrumento de análises de caráter
outros aspectos. [...] Utilizemos a clássica estratégia da mais conceitual. [...] Mas algo preocupa num cenário que
consulta aos dicionários. Segundo o Dicionário Aurélio, costumo chamar de “entusiasmo pelos documentos”.
documento significa “qualquer base de conhecimento, fi- A clareza cada vez maior acerca dos procedimentos da
xada materialmente e disposta de maneira que se possa pesquisa histórica; o relativo vigor com que se exige a
utilizar para consulta, estudo, prova etc.”, sendo também atenção a esses procedimentos, sobretudo na formação
“escritura destinada a comprovar um fato”. Já fonte apre- acadêmica dos pesquisadores; a crescente organização
senta vários significados: “aquilo que origina ou produz; dos arquivos e a disponibilização cada vez mais ampla
origem, causa”. Também “procedência, proveniência, ori- de documentos conforme o avanço das tecnologias são
gem”. E ainda “que fornece informação sobre determina- elementos que ajudam a alçar essa “matéria-prima” qua-
do tema”. Quanto a testemunho, significa “depoimento”, se que à condição do conhecimento histórico propria-
“prova, testemunha”, mas também “indício, vestígio”. mente dito. [...] temos visto uma grande concentração
[...] Embora haja pontos em comum em todas essas de- de esforços sobre os documentos que nem sempre se
finições, pode-se ver como elas não têm exatamente o faz acompanhar de equivalente análise e de construções
mesmo significado, estando, contudo, profundamente explicativas e relacionais.
relacionadas ao uso que delas - e das coisas que indi- Fonte: Lima e Fonseca (2013, p.19-22).

44
material complementar

Educação Física + humanas


Marco Paulo Stigger
Editora: Autores Associados
Ano: 2015
Sinopse: trata-se de uma coletânea em que pesquisadores do campo da
educação física brasileira evidenciam a importância das ciências humanas
tanto na formação inicial de professores quanto na pesquisa de diferentes
temas relacionados às práticas corporais e à educação física escolar.
Comentário: ao ler os capítulos do livro, além da importância de se es-
tudar filosofia, sociologia, antropologia e história nos curso de educação
física, você perceberá que a existência desses estudos lida com a luta por
maior espaço acadêmico nas instituições de ensino superior.

Narradores de Javé
Ano: 2004
Sinopse: um pequeno vilarejo tem seu sossegado dia a dia revolucionado
quando os moradores recebem a notícia que deverão se mudar pois o lugar
em que vivem será inundado para a construção de uma represa. Para evitar
esse desfecho, a única alternativa era mostrar a importância histórica da
vila. Em torno da construção dessa situação, o enredo do filme se desenrola.
Comentário: embora não trata, especificamente, sobre um tema da histó-
ria da educação física, ao assistir o filme você poderá pensar na importân-
cia e nas dificuldades enfrentadas no momento em que se quer escrever
uma narrativa histórica.

O Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte realiza o Congresso Brasileiro


de Ciências do Esporte a cada dois anos. Acesse o link a seguir e conheça os
anais dos eventos organizados a partir de 2005. Em cada um dos eventos há
os trabalhos do Grupo Temático de Trabalho (GTT’s) Memórias da Educação
Física do Esporte, em que há um bom número de trabalhos e pesquisas de
variados temas da história concernente aos assuntos deste livro.
Link: <http://www.cbce.org.br/anais.php>.

45
referências

AZEVEDO, F. de. A poesia do corpo ou a gymnastica escolar: sua história e seu


valor. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1915.
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
BLOCH, M. Apologia da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001
BRACHT, V. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica. In: Educação
Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. p. 15-32.
BRASIL. Resolução n.º 07, de 31 de março de 2004. Conselho Nacional de Edu-
cação. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação
em Educação Física, em nível superior de graduação plena. Câmara de Educação
Superior. Brasília-DF: Câmara de Educação Superior, 2004.
CASTELLANI FILHO, L. Educação física no Brasil: a história que não se conta.
Campinas-SP: Papirus, 1988.
DALBEN, A. Inezil Penna Marinho: formação de um intelectual da educação
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FARIA FILHO, L. M. de; VIDAL, D.; PAULILO, A. A cultura escolar como cate-
goria de análise e como campo de investigação na história da educação brasileira.
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FREITAS, J. V.; LINHALES, M. A. Imagens em movimento: metodologia de tra-
balho desenvolvida no acervo fílmico do CEMEF/UFMG. In: LINHALES, Meily
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ência de um Centro de Memória. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p. 117-136.
GOELLNER, S. V. A importância do conhecimento na formação de professores
de educação física e a desconstrução da história no singular. Revista Kinesis,
Santa Maria-RS, v. 30, n. 1 p. 37-55, jan./ jun. 2012.
GOMES, A. C. V.; BRAGHINI, K. M. Z. Potencialidades de pesquisa em história
das ciências a partir do acervo de objetos do CEMEF/UFMG. In: LINHALES, M.
A.; NASCIMENTO, A. Organizando arquivos, produzindo nexos: a experiência
de um Centro de Memória. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p. 85-102.

46
referências

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LIMA E FONSECA, T. N. de. História, memória e documentos. In: LINHALES,
M. A.; NASCIMENTO, A. Organizando arquivos, produzindo nexos: a expe-
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LINHALES, M. A.; NASCIMENTO, A. Organizando arquivos, produzindo ne-
xos: a experiência de um Centro de Memória. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
LINHALES, M.A; CUNHA, L. B. da; FONSECA, D. F. M. Os arquivos pessoais
do CEMEF/UFMG: memórias de si, memórias da educação física. In: LINHA-
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MEDINA, J. P. S. A educação física cuida do corpo...e “mente”. Campinas-SP:
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MELO, V. A. de. História da Educação e do Esporte no Brasil: panorama e pers-
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MORENO, A.; SEGANTINI, V. C. Sobre fotografias: da coleção à fonte. In: LI-
NHALES, M. A.; NASCIMENTO, A. Organizando arquivos, produzindo nexos:
a experiência de um Centro de Memória. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p.
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TABORDA DE OLIVEIRA, M. A. O que a história da educação tem a dizer sobre
o campo da educação física e o seus contornos atuais. In: STIGGER, M. P. (Org.).
Educação Física + Humanas. Campinas-SP: Autores Associados, 2015. p. 203-
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______. Renovação historiográfica na educação física brasileira. In: SOARES, C.
(Org.). Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação. Campinas-SP:
Autores Associados, Fapesp, 2007. p.117-138.
VEYNE, P. M. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. 4. ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

47
referências

Referências On-Line

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2
Em: <http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/41549/1/01d19t03.pdf>.
Acesso em: 06 out 2016.

48
gabarito

1. Estudar história da educação física, do esporte e do lazer é relevante, pois,


permite-nos apreender de modo mais atento as relações, ações e valores
profissionais com as necessidades e as contradições da sociedade de um
determinado tempo.

2. O conhecimento histórico caracteriza-se pela impossibilidade de ser livre


de lacunas e totalmente isento de influências socioculturais de quem o
produz. Esses traços, por sua vez, dão a esse conhecimento sua importân-
cia, afinal, ele realiza em si mesmo a condição de ponderar o que podemos
e o não podemos conhecer sobre nós mesmos.

3. É a partir dos documentos produzidos em determinada época que pode-


mos acessá-la e pensá-la. Nesse sentido, a pesquisa histórica consiste na
busca e na análise crítica dos diferentes tipos de documentos que nos per-
mitem costurar reflexões sobre diferentes aspectos da vida social e cultu-
ral de outros tempos que não o nosso.

4. A partir da análise de Melo (1999), a história da educação física é compos-


ta por quatro momentos. No primeiro, tratou-se de redigir apontamentos
históricos a partir de comentários extraídos de livros de filosofia, sobre-
tudo. No segundo, caracterizado pela ação de Inezil Penna Marinho, pas-
sou-se a acumular informações buscadas em fontes primárias, reunidas
linearmente em uma linha do tempo. A terceira marcou-se pela influência
do marxismo, em uma leitura da realidade de característica marxista que
segundarizou o levantamento documental na construção das reflexões.
Por fim, a última fase é caracterizada pela aproximação dos historiadores
da educação às discussões teórico-metodológicas existentes no campo da
história.

5. Considerando a apresentação de Medina no livro de Castellani Filho (1988),


vemos que este busca na história a demonstração de que por trás de cada
aula de educação física realiza-se um amplo processo de reprodução das
desigualdades sociais e injustiças políticas, características incontornáveis
do capitalismo.

49
PENSANDO O CORPO NA HISTÓRIA

Professor Dr. Carlos Herold Junior

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta
unidade:
• O corpo não é apenas sua anatomia
• A filosofia começa e continua...no corpo
• Eu tenho um corpo ou sou um corpo? Os muitos eus e os
muitos corpos que existiram na história
• Os ódios e os amores devotados ao corpo na história
• Prazeres e deveres no cuidado com o corpo

Objetivos de Aprendizagem
• Pensar na atribuição de valores culturais ao corpo.
• Sublinhar a importância do corpo em muitas questões
filosóficas.
• Analisar diferentes modos de perceber o próprio corpo na
história.
• Estudar variadas visões dirigidas ao corpo em diferentes
períodos históricos.
• Avaliar percepções conflitantes em relação à corporeidade
em outras épocas.
unidade

II
INTRODUÇÃO

C
aro(a) aluno(a), não há muitas dificuldades em perceber
que cursos de educação física dão bastante atenção ao cor-
po. Afinal, se fizermos o esforço de lembrar de alguns anún-
cios sobre os outros cursos, em muitas deles são mostrados
pessoas conversando, sentadas à frente de um computador, desenhando,
misturando substâncias, lendo livros em bibliotecas, cuidando de plantas,
etc. Obviamente, em todas essas imagens, vemos corpos. Quero, apenas,
sublinhar a diferença no que diz respeito ao “envolvimento corporal”:
nessa diferença, entendemos em algumas imagens que certas pessoas es-
tão pensando enquanto outras estão, apenas, movimentando-se.
Isso pode ser ainda mais facilmente percebido na escola. Nela, os lu-
gares, os tempos e os modos, alternadamente, voltam a atenção ora ao
pensamento, ora ao corpo, conforme boa parte das rotinas que carac-
terizam essa instituição. Sabemos que o corpo ocupa um lugar, mere-
ce atenção, ou seja, tem alguma importância. Todavia, esse valor deve
ser pensado, pois ele se realiza na alternância entre momentos corporais
e momentos mentais. Olhemos, historicamente, o corpo. A percepção
atenta ao corpo é tão arraigada em nosso cotidiano que, aparentemente,
ela não deveria gerar o trabalho de entendê-la, para além de vivê-la.
Nesta unidade, ao estudar o corpo na história, pretendo convencer
você a pensar o contrário. Teremos como ponto de partida um duplo en-
tendimento: em primeiro lugar, esse valor atribuído ao corpo no mundo
contemporâneo não está isento de contradições e limites no que tange à
consideração da dimensão corpórea dos homens e das mulheres. Em se-
gundo lugar, a partir do conjunto dessas contradições que hoje vivemos
em relação a nossa condição corporal, pode-se verificar na história que,
em muitos aspectos, o corpo recebeu diferentes olhares e mobilizou va-
riadas práticas, com modos e intensidade também dessemelhantes.
Bons estudos!
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O CORPO
NÃO É APENAS
SUA ANATOMIA
54
EDUCAÇÃO FÍSICA

Faço a você uma advertência: a afirmação de haver me vamos pensando na integração dos diferentes
muitas outras coisas no corpo além de sua própria sistemas que compõem nosso organismo, aumenta
anatomia pode soar um tanto quanto estranha. E proporcionalmente o prazer que sentimos ao per-
isso não apenas pelo fato de percebermos o corpo ceber que os esforços dos nossos estudos vão nos
dos outros e o nosso próprio pela forma geral que capacitando a entender cada vez mais sobre cada
eles têm. Percepção essa que também se constrói em gesto que executamos.
olhares que buscam detalhes ou partes, que tiramos Reitero o que já pensamos: mesmo os limi-
da integralidade corporal para uma gama variada tes anatômicos do corpo já fizeram muita tinta ser
de interesses. Do mesmo modo que digo ser alguém consumida em milhares e milhares de páginas. Se
bonito ou bonita, consigo dizer que alguém tem uma deixarmos nossas aulas de anatomia e fisiologia das
pele bonita, belas mãos, um cabelo deslumbrante ou universidades e entrarmos em consultórios médicos,
qualquer outra parte não tão atraente. fisioterápicos, nos consultórios de nutricionistas e
Será percebida alguma estranheza na crença de o fonoaudiológicos, veremos em cada uma dessas es-
corpo ser mais que sua anatomia, sobretudo quando pecialidades, bem como em suas subespecialidades,
você começar a estudá-lo, sistematicamente, no de- que o volume de informação fica cada vez maior. Se
correr de seu curso. Lembre-se que esse estudo é um assumirmos que cada uma dessas áreas e de suas
dos pontos mais característicos dos cursos de edu- ramificações elabora procedimentos para lidar com
cação física não apenas hoje, mas também em sua diferentes aspectos e problemas que dizem respeito
história. Com certeza, a sensação que muitos aca- a nossa anatomia e nossa fisiologia, de fato, conclui-
dêmicos tinham e ainda têm quando mergulham no remos que entender o corpo humano como célula,
fascinante mundo dos estudos anatômicos é a de um tecidos, órgãos e o arranjo desses elementos a gerar
espanto com a quantidade de detalhes passíveis de algum “funcionamento” já é algo bastante razoável,
reflexão e de denominação presentes em qualquer para dizer o mínimo.
parte do corpo que venha a ser estudada. Para piorar Essa sucessão de espantos causados pela gigan-
ou deixar a surpresa ainda mais arrebatadora, sem- tesca quantidade de informações pauta-se na ideia
pre nos chega aos ouvidos que, em outros cursos da de que o corpo é algo natural, dotado de forças e li-
área de saúde, a carga horária e o detalhamento dos mites naturais. Por serem mecanismos estáveis e in-
estudos nesse campo são ainda maiores. variáveis nos humanos, excetuando-se em casos atí-
Se falamos em anatomia, é inevitável não pen- picos, eles tornam concreta a ideia de uma natureza
sarmos na importância e na energia que consumi- humana, cuja anatomia é a mais visível das provas.
mos para entender o funcionamento do conjunto Não é a únicas, pois há aquelas provas que não ve-
de nossos órgãos. Folhear os atlas de anatomia mos. Afinal, mesmo aquilo que chamamos de “ins-
mais detalhados só não proporciona mais momen- tinto” é também assumido como natural. Eles não
tos de reconhecimento de nossa ignorância do que são detectáveis nas formas dos corpos, mas em mui-
aqueles que experimentamos quando entramos tas coisas que fazemos com ele: ao lado de nossas
nos meandros da fisiologia humana. A imensidão necessidades vitais - como comer, beber, não sentir
do território intelectual a ser conquistado, confor- frio ou calor, a reprodução -, há o medo, a raiva, a

55
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

tristeza, a dor, enfim, uma gama de sensações assu- Evidenciar que os seres humanos têm sua vida
e adaptações prefiguradas e paralelas a dos
midas como universais e incontornáveis, bastando
animais - está na base da dúvida sobre a re-
estar vivo para fazê-las ou senti-las. Em que pese alidade do limite moral que nos separam das
todas essas considerações apontem para elementos feras. A grande questão é saber se tememos ou
que já dão ao corpo a condição de ser um assunto aceitamos a dissolução dessa fronteira (KING-
DON, 2003, p. 33).
intrigante e extenso em sua própria natureza, sabe-
mos que há algum tempo nem mesmo essa natureza
é assumida como imutável, expandindo ainda mais Você percebeu que já estamos dando um olhar mais
os limites anatômicos. histórico àquilo que assumíamos como imutável:
Kuper (1996) pergunta se hoje somos todos o nosso corpo. Há muitas controvérsias e debates
darwinianos, referindo-se à importância da teoria sobre isso. Um aprofundamento em tal assunto es-
elaborada por Charles Darwin. A pergunta denota capa ao objetivo deste livro. A utilidade de mencio-
que, apesar do caráter controverso na teoria para ná-lo é outra: evidenciar que a abordagem históri-
muitos, ela pode ser considerada uma das maiores ca que fazemos no âmbito dos cursos de educação
realizações intelectuais da humanidade. Dos nu- física é mais aproximada do estudo das maneiras
merosos impactos gerados pelas ideias de Darwin, como esses “limites anatômicos” são vistos, utili-
um dos principais é a concepção de que a “nature- zados, entendidos e percebidos pelas pessoas em
za humana” não nasceu pronta por ser resultante diferentes épocas.
de um processo evolutivo. Da teoria da evolução
das espécies depreende-se uma determinada pers-
pectiva histórica de que até a variedade de espécies
surge como resultado de um processo aleatório de
construção. Interessante notar que, ao apoiar essa
impactante constatação, Darwin reconhece que
“Man still bears in his bodily frame the indelible
stamp of his lowly origin” (DARWIN apud KUPER,
1996, p. 4). Com isso, Darwin não afirma uma dis-
solução da ideia de uma natureza anatômica. Pelo
contrário, ele a fortalece por afirmar que essa nossa
anatomia e as das demais espécies não possuem li-
mites tão claros. Mesmo no âmbito dos limites cor-
porais, as consequências para o nosso entendimen-
to corporal e daquilo que nos faz seres humanos é
grande, conforme afirma um importante estudioso
da história de nossa espécie:

56
EDUCAÇÃO FÍSICA

Essa delimitação é importante para separarmos a tem mais do que sua anatomia é, justamente, enten-
nossa abordagem histórica da importante abordagem der como surge o estudo dessas “formas”.
evolucionista. Mesmo reconhecendo que esses nos- É possível perceber em nosso cotidiano alguns
sos atuais limites têm “apenas” 35.000 anos e que ain- dos elementos que marcaram o processo de surgi-
da estejam em um lento, silencioso, mas incontrolável mento e desenvolvimento dos estudos sobre a ana-
processo de adaptação e/ou evolução, não são eles que tomia nos séculos XVI e XVII. Para muitos acadê-
nos ocuparão. Para nós, é mais importante verificar micos que iniciam seus estudos em cursos da área
que uma “história do corpo” é uma história que busca de ciências da saúde, as primeiras aulas de anatomia
entender no passado o modo como nossa “natureza” não são momentos de grande tranquilidade ou de
gerou reflexões, acusações e práticas, em alguns casos um despertar do conhecimento científico. Frequen-
muito diferentes das nossas. Dito de outra maneira, temente testemunha-se o desajeito, o medo, o nojo
nós temos a mesma estrutura corporal que tiveram os e a resistência dos acadêmicos não apenas ao cheiro
antigos gregos, os medievais, os homens modernos e dos laboratórios, mas à presença dos cadáveres e ao
os nossos avós. Entretanto, em cada uma dessas épo- seu manuseio. Não pretendo explicar ou justificar
cas, do ponto de vista dos sentimentos gerados e per- essas sensações, mas elas são importantes para a
cebidos por essa estrutura, bem como do valor social nossa reflexão em dois pontos: grosso modo, fre-
dado para ela, poderíamos dizer que houve muitos quentemente esses acadêmicos e essas acadêmicas
outros corpos e muitos outros olhares para ele. sentem algum desconforto com as aulas de anato-
Para ilustrarmos que muitos dos olhares que mia ou pela abjeção gerada pelo corpo sem vida,
hoje damos ao corpo não existiram desde sempre, pela textura das diferentes partes expostas; ou, en-
vale a pena voltarmos nossa atenção para o proces- tão, a resistência tem uma característica mais reli-
so de construção de um modo de conceber o corpo, giosa ou sentimental, um constrangimento por se
que possibilitou a gigantesca quantidade de infor- mexer naqueles corpos humanos postos em condi-
mações que hoje temos sobre ele: estudar anatomia, ção de objetos manipuláveis, situação essa sentida
ensinar anatomia, produzir o conhecimento relativo como oposta à humanidade. Mesmo para quem tem
a nossa anatomia, apesar de sua óbvia importância menos sensibilidade, é difícil não se pegar dando
para a história da medicina, para a atualidade e, azo a reflexões como essas.
conforme já vimos, para os cursos de formação em Todavia não se questiona, nos dia de hoje, a re-
educação física, são práticas que têm apenas quatro levância desses espaços formativos que são os la-
ou cinco séculos. Parece muito, mas lembre-se dos já boratórios de anatomia. É inconcebível qualquer
citados 35.000 anos de vida do homo sapiens, além profissional sair de sua formação inicial em nível
das muitas outras sociedades e épocas que simples- superior sem conhecimentos importantes sobre
mente ignoraram esse tipo de abordagem anatômica as diferentes estruturas corporais. Se somarmos a
do corpo. Podemos começar a entender que um dos isso as regulamentações existentes para possibilitar
fatos mais marcantes para percebermos que o corpo que cadáveres estejam disponíveis para esse estudo,

57
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

verificamos que os estudos de anatomia são parte isso não é muito diferente do que ocorre em todos
constituinte de nosso cotidiano. os outros momentos da história, é algo reconhecido
Convido-lhe a pensar o processo histórico que a grande intensidade e velocidade com que essa dis-
levou a essa “naturalidade”, a essa quase necessidade cussão passou a existir no processo conhecido como
que temos de conhecer o corpo de forma detalhada. transição da sociedade feudal à sociedade capitalis-
A ideia é verificarmos que não apenas a possibilida- ta. Tratam-se de transformações gestadas e nascidas
de de profissionais acessarem, visualmente, o inte- no curso de cinco ou seis séculos, mas que conhece-
rior corporal, mas o fato de muitas tecnologias de ram suas consequências mais marcantes a partir dos
imagem com as quais médicos e pacientes podem séculos XV e XVI, consolidando-se no XVII e XVIII.
visualizar o que acontece lá dentro, são resultan- As mudanças econômicas e políticas que foram
tes de um imenso conjunto de esforços que tocam se processando na estrutura feudal da sociedade eu-
o surgimento de um panorama cultural e científico ropeia e o surgimento de uma nova forma de orga-
nos séculos XV e XVI. O que eu proponho a você é nização social, ao mesmo tempo, estimularam e fo-
prestar atenção às modificações socioculturais que ram estimuladas por uma nova concepção relativa à
existiram nesse momento que tornaram possível, humanidade dos homens e das mulheres. Essa nova
realizável e necessário o gesto de olhar o corpo em concepção reposicionou a percepção humana sobre
seus detalhes. Insisto: essas modificações podem ser si mesma em muitos aspectos.
tomadas como o indício de que uma outra forma de O primeiro deles que vale a pena ser considera-
entender o corpo humano estava nascendo e que ela do é que, paulatinamente, foi tomando força e vo-
teve impactos profundos não apenas nos desdobra- lume uma grande atenção às capacidades humanas
mentos médico-científicos dos séculos seguintes, de pensar e entender a si mesmo e o mundo a sua
mas, do mesmo modo, na maneira como os homens volta. A herança intelectual típica da idade média,
e as mulheres passaram a ver sua humanidade. pautada na desconfiança dessas capacidades e na sua
Durante esse período da história ocidental, a subjugação em relação à autoridade da Igreja Cató-
sociedade europeia vivia um intenso momento de lica, foi se tornando alvo de críticas. Interessante ve-
transição. Em vários pontos de vista, muitos setores rificarmos que uma mudança tão radical possa ter
da sociedade questionavam opiniões, instituições; ocorrido. Com efeito, a postura intelectual de pensar
outros setores defendiam estruturas sociais, polí- mais e mais aprofundadamente sobre todos os as-
ticas e religiosas tradicionais, gerando, assim, um pectos da vida, além de ter desabrochado, foi algo
grande debate em torno dos rumos da sociedade. Se que aconteceu com uma qualidade bem diferente da

58
EDUCAÇÃO FÍSICA

que então existia: tratou-se de revisitar a tradição in- florescimento de um sentimento mais claro sobre si
telectual existente e dominante nos últimos dez sé- mesmo, em que “minhas características” são toma-
culos em nome de uma outra postura. Essa postura das como aquilo que “me” tornam único e especial
advogava o grande potencial existente em cada ser perante todo o resto do mundo.
humano para entender e perguntar, potencial com Digno de nota é o modo como essas duas gran-
o qual homens e mulheres tinham sido agraciados des novidades se alimentam. Se de um lado percebo
por Deus. Note você que, de uma postura intelec- e enalteço a capacidade humana de pensar os pro-
tual menos ativa justificada na autoridade de Deus, blemas e as belezas do mundo de um modo autô-
a sociedade a partir dos séculos XIII e XIV vai se nomo e cada vez mais aprofundado, paralelamente
tornando mais simpática a uma postura oposta, jus- a consideração dessa capacidade vai reforçando o
tificando as capacidades para tanto como presentes apreço que tenho por mim mesmo. É compreensí-
que nos foram dados por Deus. Embora esse pro- vel, pois de algum modo os limites do mundo são
cesso não tenha ocorrido de um modo tranquilo ou resultantes desse olhar e desse pensamento que nada
rápido, foi se consolidando de uma maneira a rela- deixam intocados. O inverso também é verdadeiro:
cionar a vida humana não à aceitação passiva de um a admiração que cada indivíduo passa a ter por si
pensamento consolidado pela tradição, mas a um mesmo e a defesa de que essa admiração é um tra-
pensamento que deveria ser justificado pela razão e ço tipicamente humano, torna a busca por conheci-
por sua adequação aos fatos. mento algo relacionado a própria felicidade, a pro-
Muito relacionado a esse despontar de uma dução de uma vida mais plena, assim percebida no
postura intelectual que busca eliminar as autori- gozo dessas capacidades.
dades religiosas e o teocentrismo a elas ligado, é O caminho que levou esse conjunto de transfor-
importante ter claro que igualmente fundamen- mações culturais a uma nova percepção corporal não
tal foi o despontar de um processo de individu- foi reto, livre de debates, idas e vindas. Todavia chegou
alização, em que as pessoas passaram a discernir onde hoje estamos: nosso corpo é visto, escrutinado,
limites mais claros entre sua individualidade e as comparado, dissecado em seus mínimos detalhes.
demais pessoas e instituições com as quais se re- Um teórico dos estudos sobre corpo, David Le
lacionavam. Para nós, é algo bizarro imaginar que Breton (2003a) nos explica que o processo que levou
em alguns momentos essa percepção possa não ter ao “homem anatomizado” foi de grande importância
existido, mas conforme a sociedade avançava rumo em um duplo aspecto: levar à riqueza e amplitude do
ao mundo moderno do capitalismo, assistiu-se ao conhecimento corporal as quais fiz menção anterior-

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

mente, além de ter contribuído para uma das postu- passagem das reflexões de Le Breton vale a pena ser
ras filosóficas mais relevantes para o desenvolvimen- lida para você dimensionar a revolução cultural a
to da ciência, a saber: a “distinção feita entre o corpo que estava sendo submetido o corpo humano com o
e a pessoa humana” (LE BRETON, 2003a, p. 46). Isso desenvolvimento do “olhar anatômico”:
também foi fundamental para que o conhecimento
anatômico se aprofundasse em ritmo aceleradíssimo. Os anatomistas partem para a conquista do
segredo da carne, indiferentes às tradições, às
Para entender essa relação, é necessário conside-
proibições, relativamente livres no que con-
rar que, no início da idade moderna, essa separação cerne à religião, eles penetram no microcosmo
entre “pessoa e corpo” não havia. Essa inexistência com a mesma independência de espírito que
gerava muito constrangimento na possibilidade de Galileu ao invocar um traço matemática no
considerar que, no corpo morto, a “pessoa” não esta- espaço milenar da Revelação (LE BRETON,
2003a, p. 53).
va mais “lá”. Ou seja, os limites demarcados pela pele
não seriam, nessa ótica, rompidos sem proporcio-
nar grandes choques morais e religiosos. Le Breton Dito de outra maneira, o lugar do homem no uni-
(2003a) é claro quando afirma: “Com os anatomis- verso estava sendo reformulado pelos avanços no
tas, o corpo deixa de se esgotar na significação da conhecimento do “muito grande”, sobre o planeta,
presença humana. O corpo é posto entre parênte- o universo etc. O mesmo espírito científico invadia
ses, dissociado do homem, ele é estudado ele mes- o espaço do “muito pequeno”, penetrando cada vez
mo, como uma realidade autônoma” (LE BRETON, mais fundo nos nossos tecidos corporais para conhe-
2003a, p. 48). Por essa razão, os primeiros anato- cê-los, oferecendo-os à vista de todos. O “milagre de
mistas foram considerados “iconoclastas”. Afinal, o Deus” passou a ser abordado pelos anatomistas em
choque dos dogmas cristãos produzido pela lâmina um processo que colocou a materialidade corporal
do bisturi chegava ao ponto religioso central: abrir o exposta, ato possível pelas mudanças socioculturais
que agora passa a ser considerado um cadáver, algo então experimentadas. Mudanças que fizeram o cor-
sem vida, condenado a desaparecer, inviabilizava po receber outra atenção e desempenhar papéis so-
um dos pontos de apoio da ideia de ressurreição: cietários antes inexistentes. Por essa razão, a análise
“Deixar o corpo em pedaços é destruir a integridade histórica, com a perspicácia da análise anatômica,
humana, é arriscar-se a comprometer a perspectiva demonstra que atribuímos aos olhares que damos
da ressureição” (LE BRETON, 2003a, p. 48). Outra ao corpo muitos significados.

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EDUCAÇÃO FÍSICA

A FILOSOFIA
COMEÇA…
E CONTINUA NO
CORPO
61
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Superada um pouco da surpresa de se estudar histó- Nos itens anteriores tem sido feita a tentativa de
ria em um curso de educação física, podemos mer- evidenciar que outros campos intelectuais são in-
gulhar de uma forma mais plena na reflexão sobre o contornáveis na formação profissional em educação
processo histórico que, de alguma forma, sustenta física. Pensar historicamente é a ação que demarca
aquele sentimento inicial de espanto. Ou seja, por um desses campos. Além disso, vimos que ela é uma
que facilmente entendemos que há uma separação reflexão que evidencia a historicidade de pratica-
entre movimentar-se corporalmente e o pensamen- mente tudo que, normalmente, é assumido como
to que fazemos sobre esses movimentos? não possuidor de história. Ou, para ficarmos no âm-
Você lembra que fiz menção às propagandas so- bito do corpo, algo possuidor de uma história redu-
bre cursos de educação física no início da primeira zida ao processo de evolução de uma natureza, tal
unidade. Foi visto, também, que é até concebível para como nos explica Charles Darwin.
muitos entender cientificamente diversos aspectos Ao se assumir que o corpo também tem uma
das práticas corporais e do trato profissional com história ligada aos modo como ele é percebido,
elas. O espectro de especialidades científicas que uma das primeiras questões que deve nos chamar a
lançam luzes à fisiologia humana no momento em atenção é a seguinte: a clara separação entre movi-
que executamos diversas atividades é amplo. Além mentar-se e pensar que se manifesta no modo como
disso, pesquisadores dessas áreas aprofundam cada concebemos o que vem a ser pensamento, corpo e
vez mais o conhecimento que se tem da quase tota- suas relações, ocupou pensadores em outras épocas
lidade corpórea do homem. Muitas pesquisas foram e ainda inquieta muitos estudiosos. Para olharmos
feitas desde os primeiros anatomistas nos séculos XV essa questão mais proximamente, vamos adotar o
e XVI. Diversas áreas biomédicas floresceram, estu- procedimento que sustenta este livro: vamos pensá-
dos bioquímicos levaram a drogas mais precisas e -la historicamente.
eficientes na ação de numerosos problemas de saúde Se a problemática é a relação entre o corpo e
que nos afligem. Ou seja, compreendemos que, se há o pensamento, acredito valer a pena estudarmos o
uma dimensão intelectual com presença marcante no processo de surgimento da filosofia que ocorreu na
campo da educação física, essa é a dimensão que ex- sociedade grega em volta dos séculos V e IV a.C.
plica o funcionamento corporal. O que nos interessa Normalmente, assumimos os estudos em filosofia
agora é pensarmos que essa “reflexão científica” sobre como algo demasiadamente distante dos proble-
o corpo e seus movimentos assenta-se na necessidade mas práticos e concretos. Não é incomum termos
de assumir que há uma reflexão sobre o corpo que uma imagem negativa dos filósofos, como pessoas
o entende como objeto, como algo a ser conhecido. alheias à realidade em que vivem, apegadas que são
Uma reflexão que o trata como um assunto do pen- ao “mundo das ideias”. Essa (des)consideração da
samento por ser muito diferente desse mesmo pensa- filosofia deve ser questionada, caso você queira en-
mento. Trata-se de uma obviedade? Talvez não. tender os assuntos concernentes à educação física.

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EDUCAÇÃO FÍSICA

Em primeiro lugar, é importante você ter claro Para atingir essa necessidade de bem pensar os
que o surgimento da filosofia na Grécia Clássica não rumos da cidade, foi imprescindível a nascente fi-
deve nos fazer esquecer que a sociedade grega re- losofia ponderar a relação dos cidadãos com as leis,
cebia influências de muitas outras culturas que, ao com a formação dos futuros cidadãos, as possibili-
seu modo, pensavam em suas problemáticas a partir dades de comportamentos corretos e do sentido a
de suas próprias condições. Fundamental nesse pro- ser dado à vida por esses comportamentos. Nessa
cesso de surgimento de uma nova forma de pensar, avaliação, entender o modo como diferentes senti-
racional por excelência, e que dá à Grécia o tão ci- mentos e capacidades humanas se relacionavam e se
tado status de “Berço da Civilização Ocidental”, foi opunham foi um passo incontornável. Nesse ponto
o fato de a filosofia ser uma nova postura perante a o processo de nascimento da filosofia traz elementos
vida individual e social gestada a partir de transfor- bastante interessantes para pensarmos o corpo e seu
mações históricas tocantes à sociedade, à economia, relacionamento com as demais capacidades huma-
à percepção que os gregos tinham deles mesmos e, nas, sobretudo o pensamento racional. Como nos
sobretudo, à política. ensinam Braunstein e Pépin (1999, p. 13), a maneira
Esse último aspecto deve ser mantido muito pró- como os gregos pensaram o corpo “depende estrei-
ximo na hora de você pensar as razões que levaram tamente do seu sistema de pensamento, fundado na
ao surgimento da reflexão filosófica. A consideração noção de racionalidade e harmonia”. Para o alcance
do aspecto político da questão não deve ser subes- dessa racionalidade, o corpo é visto apenas como
timado. O desenvolvimento da pólis como forma um instrumento. Ele é o que deve ser superado para
social da sociedade que cria a filosofia colocou em que a alma alcance a verdade que se busca nos deba-
questão a necessidade de se pensar no aspecto fun- tes filosóficos e políticos.
damental de toda sociedade política: o uso do diá-
logo para deliberação dos rumos da “cidade”. Parece Se o corpo constitui um problema para os fi-
lósofos gregos, é porque lhes apareceu como a
algo trivial, mas não é. Em sociedades não políticas,
soma de uma longa e difícil luta entre dois prin-
esse elemento discutido das decisões não se faz sen- cípios: um, em relação com a racionalidade, o
tir. Na política, as decisões são pensadas e tomadas inteligível porque material; o outro, em relação
a partir da capacidade argumentativa dos cidadãos. com o sensível, por estar ligado ao mundo além.
Interessante verificar o modo como essa necessidade O corpo definiu-se como uma dualidade, cor-
po-alma, do mesmo modo que a humanidade
atinente à condução dos assuntos concretos da vida
se divide em filósofo e não filósofo, o homem
comunitária colocou como necessidade e possibili- vive pelo espírito e o que vive pelos sentidos.
dade uma reflexão que levasse a sociedade a tomar [...] Só a alma retém a sua atenção, detentora
boas decisões, livremente adotadas depois da delibe- do conhecimento único, só ela pode levar à
verdade, ao não esquecimento (BRAUSTEIN;
ração dos partícipes.
PÉPIN, 1999, p. 21).

63
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Essa nascente dualidade, por sua vez, não deve ser tinham seus corpos treinados no ginásio por meio
concebida como uma simples relação de desprezo de práticas que estudaremos na próxima unidade.
em relação ao corpo, algo que foi muito marcante De qualquer modo, perceba que o dito “berço”
nos séculos que se sucederam à construção do do- da civilização traz em si elementos que nos fazem
mínio da Igreja Católica e que se consolidou a partir pensar na relevância da dimensão intelectiva e cor-
do século IV d.C.. É interessante observar que, di- pórea do homem. A dificuldade é entender como
ferentemente do que ocorrera durante a Idade Mé- essas dimensões são consideradas em diferentes mo-
dia, a Antiguidade Clássica sustentou-se em uma mentos, sem esquecer que em uma mesma realidade
“complementaridade, mais do que sobre a oposição pode haver modos diferenciados de avaliar o corpo.
do inteligível e do sensível” (BRAUSTEIN; PÉPIN, Há alguns anos isso me fez analisar a presença do
1999, p. 23). Com efeito, entendemos que o lugar corpo na história grega, enxergando nela uma con-
do corpo e sua relação com o pensamento não é traposição entre a necessidade do cultivo intelectu-
fácil. Platão, em um de seus diálogos, afirma que al imprescindível ao mundo político e o elogio da
o corpo é o “túmulo” da alma. Mesmo assim, há força e da aparência física como traços constituintes
elementos na história grega que nos permitem afir- de uma sociedade agonística e guerreira. Ao reali-
mar um relacionamento entre elementos estéticos, zar tal análise, marquei essa contraposição, deixan-
eróticos e intelectuais. do superlativas duas partes corporais: de um lado a
“língua grande”, de quem fala, argumenta e elabora
A verdadeira sabedoria, traduzida pela beleza, seu argumento por meio da retórica; e de outro o
residia mais uma vez no equilíbrio da persona-
“ombro largo”, que simboliza a força dos atletas e dos
lidade. A maneira como os gregos percebiam
esse equilíbrio transparece na importância guerreiros como figuras elogiadas na estrutura so-
que davam ao Eros, cujo sentido de “amor” se ciocultural grega. Xenófanes, vivendo no período de
estende bem para lá do desejo físico, para in- 540 a 470 a.C., explicita um registro elucidativo da
cluir, também a paixão intelectual e espiritual desconfiança que a valorização do corpo gerava em
(BRAUSTEIN; PÉPIN, 1999, p. 25).
parte dos gregos:

Para apreendermos a importância do pensamento Não é justo preferir a força à verdadeira sabedo-
ria. Se há na cidade um bom pugilista ou um bom
que lemos na citação, lembremo-nos da profusão de
atleta distinguido no Pentatlon, na luta ou na cor-
corpos belos que nos vêm à mente quando pensa- rida - que é a mais importante das provas atléticas
mos na estatuária feita pelos gregos e na importân- nas competições entre os homens - nem por isto
cia que possuía o corpo nu para a sociedade grega. estará, por ele, melhor governada (XENÓFANES
Nudez cuja exibição era privilégio dos cidadãos, que apud HEROLD JUNIOR, 2007, p. 100).

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EDUCAÇÃO FÍSICA

A intenção é fazer que fique claro para você, queri- mos se apresenta como um conjunto de cor-
do(a) aluno(a), que o nascimento de uma sociedade pos, produto de uma actividade humana ou da
natureza, que a ordem e a organização devem
política baseada na reflexão e argumentação racio-
trazer estabilidade e coesão. O corpo humano
nal dos problemas da pólis colocou em evidência é a reprodução orgânica desse conjunto. Por
a dimensão corporal do homem. Esse destaque se extensão, podemos dizer que o corpo políti-
deu pela negação dessa dimensão em nome da in- co são é aquele cujos corpos constituintes se
completam, funcionam e se reúnem perfei-
teligência e do discurso, do mesmo modo que levou
tamente, sem nenhuma disfunção (BRAUS-
muitos a defenderem como incontornável e neces- TEIN; PÉPIN, 1999, p. 18).
sária a reflexão sobre o corpo para se aprimorar a
capacidade de se conhecer a verdade e tomar boas Essa longa citação ajuda você a compreender o
decisões conectadas a aspectos estéticos e eróticos fato de que, na construção do imenso e belo edi-
da vida. Desse ponto de vista, a sociedade grega clás- fício artístico, filosófico e político da sociedade
sica é um alvo de reflexões muito importante para grega, o corpo humano ofereceu motivos relevan-
pensarmos na história do corpo e das práticas edu- tes para o entendimento da concatenação e das
cacionais a ele associadas. No momento em que as rupturas existentes entre o homem, a natureza e
bases intelectuais ocidentais se formavam, podemos a sociedade. Como integrar esses três âmbitos foi
ver nesse mesmo processo de formação que o corpo o que levou ao nascimento da filosofia. É a partir
fornecia muitos dos motivos que levaram à emprei- do corpo que ela nasce. Sem as dúvidas provocadas
tada filosófica e política. Mais uma vez, Braustein pelas mudanças corporais, pelas vontades que por
e Pépin (1999) nos explicam o valor que possuía o elas sentimos, pela percepção do mundo que temos
corpo para os gregos: por intermédio de suas estruturas, o pensamento
não teria ampliado os horizontes do modo como
Daí decorre o conceito do corpo humano ocorreu a partir do século V a.C. Como poderiam
onde a própria ideia de desmesura está exclu-
dizer Braunstein e Pépin (1999), esses horizontes
ída, porque, mais do que qualquer defeito, ela
se opunha ao ideal de harmonia matemática extrapolaram, em muito, os limites do corpo hu-
e de disciplina do indivíduo. Os gregos con- mano. Mas a força e o ímpeto para esse rompimen-
denavam-na no plano moral tanto como a to enraizam-se no corpo. Por isso, as belas obras do
temiam no plano. A desmesura chocava-os pensamento começam e terminam nos contornos
política, moral e esteticamente. [...] Assim, ter
corporais que, sabemos, constroem-se não apenas
um corpo belo, um corpo são, depende antes
de mais nada de uma profunda serenidade em em sua anatomia, mas nos modos como os perce-
perfeita correspondência com a harmonia do bemos. Entender esses modos é o que podemos
universo. [...] Sem dúvida que é porque o cos- considerar como meio do estudo da história.

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

SAIBA MAIS

Estudar historicamente o corpo é uma pos-


tura que não deixa intocada, nem mesmo,
uma de nossas mais certas percepções: as
diferenças anatômicas que nos capacitam
a afirmar a existências dos sexos. Thomas
Laqueur (2001) ao falar sobre a invenção
do sexo, explica que até o século XVIII não
havia a concepção que afirmava haver uma
diferença entre homens e mulheres. Até
então, assumia-se que as mulheres seriam
aquelas que teriam ficado no meio do ca-
minho do processo de desenvolvimento
que levava ao desenvolvimento total do
ser humano, materializado na conformação
anatômica masculina. Nesse ponto tam-
bém, o desenvolvimento da anatomia, da
medicina e da obstetrícia foi fundamental
para afirmar que homens e mulheres são
diferentes. Há que se reconhecer a posi-
tividade dessa constatação. Todavia, não
deve ser posto de lado que ela fortaleceu
muitos discursos pseudo-científicos a atri-
buir às mulheres uma “condição natural”
ligada à maternidade. Tudo isso endossa a
constatação de que o entendimento que se
tem sobre o corpo é histórico e não pode
ser reduzido ao aspecto científico. Afinal,
nesse aspecto também, penetram muitas
compreensões culturais e políticas que ca-
racterizam uma determinada sociedade
que vê e avalia o corpo humano a partir
dessas compreensões.

Fonte: o autor, baseado em Laqueur (2001).

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EDUCAÇÃO FÍSICA

EU TENHO UM CORPO
OU SOU UM CORPO?
OS MUITOS EUS E OS
MUITOS CORPOS QUE
EXISTIRAM NA
HISTÓRIA

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Caro(a) aluno(a), nos itens anteriores foram complexa sinergia. Complexa, pois ela é um dos
abordados alguns pontos para nos ajudar a en- pontos que ainda vêm exigindo grande atenção de
tender diferentes modos com os quais o corpo foi muitos cientistas e filósofos, embora cotidianamen-
visto, avaliado e percebido em outros momentos te a mencionada conexão não seja assumida como
da história. Tão acostumados que estamos a lidar existente ou importante.
com o nosso corpo que assumi a necessidade de Nesse item continuaremos a aprofundar nossa
fazer um esforço para tentar entender essa obvie- reflexão sobre o corpo na história, pensando outra
dade, deixando de enxergar nela algo inevitável obviedade, buscando entendê-la em seu processo
ou existente desde sempre. de construção. Muito relacionada à separação entre
O primeiro passo foi percebermos que nem o mundo das ideias e do corpo é a separação entre
mesmo a natureza corporal está imune à passagem o “eu” e o corpo. É esta separação que nos permite
do tempo, afinal, até essa “natureza” é resultante de dizer que temos um corpo, ou “eu gosto do meu
um processo de adaptação e transformação disso corpo”. Mais uma vez vale a advertência: tratam-
que hoje somos em termos corpóreos. O segundo -se de usos cristalizados no cotidiano e com quais
passo, dado quase simultaneamente ao primeiro, resolvemos muitos problemas do dia a dia. O que
foi percebermos que, ao olharmos corpos, perce- se quer é entender isso que tanto fazemos, ou essas
bemos coisas que não se reduzem ao dado visto, expressões que tanto dizemos, pondo em destaque
apesar de nele se apoiarem. Ou seja, o modo como que elas foram construídas em outros momentos
avaliamos, sentimos desejo ou repulsa por deter- históricos e que foram importantes para a supera-
minados corpos, objetos e atitudes, é dependente ção de muitas posturas filosóficas e culturais não
dos valores sociais, culturais e políticos vigentes em mais condizentes com o mundo que, então, nascia.
um mesmo momento e compartilhados por todos Nos próximos parágrafos vamos ver como o cor-
que dão vida ao convívio social, palco onde a aten- po passou a ser objeto de uma determinada forma
ção ao corpo ocorre. de pensamento a partir dos séculos XV e XVI, que
Além dessas constatações, foi abordada outra marcam o início da idade moderna.
obviedade, evidenciando que, historicamente, os li- De algum modo, já comentamos sobre esse pe-
mites assumidos como inquestionáveis podem ser ríodo da história quando falamos do florescimento
problematizados: ao estudarmos um pouco da so- da anatomia. Com efeito, o fato de uma determina-
ciedade grega, vimos que o reconhecimento normal- da sociedade passar a enxergar como necessário e
mente atribuído às conquistas culturais, artísticas e normal dissecar cadáveres é um indício importante
intelectuais, não deve ser visto como o resultado de para nos ajudar a entender a separação entre o “eu”,
uma negação à dimensão corpórea dos homens e a subjetividade, a sensação de ser uma pessoa, de um
das mulheres. O contrário é que foi defendido, com lado; e a materialidade corporal, do outro.
o intuito de entender que a oposição entre as ideias Quando estudamos história, acostumamo-
e o corpo, entre o ideal e o real, entre o abstrato e o -nos a entender as sociedades em constante pro-
concreto, longe de ser uma diminuição da relevância cesso de mudança e transformação. Mudanças
do corpo em relação à mente, é resultante de uma que ocorrem ora mais rapidamente, ora mais len-

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EDUCAÇÃO FÍSICA

tamente, mas perceptíveis em todas as épocas e Sublinho a grande diferença que existiu no
lugares. Entretanto, é tranquilamente aceito que o modo como os gregos da Antiguidade Clássica e
processo de transição do feudalismo ao capitalis- os medievais experimentaram seus corpos. Mas es-
mo aconteceu em um ritmo e uma profundidade culpir estátuas de belos corpos, admirar com olhar
que fizeram muitos aspectos da vida societária cheio de desejo um corpo nu ou castigar o próprio
tornarem-se muito diferentes do que eram nos corpo, ou queimar transgressores em espetáculos,
séculos precedentes. sob um determinado ponto de vista, é a mesma coi-
Nos séculos XV, XVI e XVII surgiram novas ma- sa: enxergar no corpo o locus de realização daquilo
neiras de se entender praticamente tudo. Passou-se que os outros e nós somos. Eles eram seus corpos.
a advogar uma nova forma de se pensar a nature- Os corpos eram eles.
za, a política, a religião, a educação e, obviamente, a Com a crise dos valores típicos do mundo feudal,
composição do próprio homem. Na conjunção des- assistimos a transformações sócio-históricas que le-
sas novas posturas perante a vida que marcaram o varam ao capitalismo. Forjou-se um outro conjunto
surgimento da modernidade, uma nova maneira de de posturas, de mentalidades e de visões de mundo
se entender o corpo surgiu. que começaram por construir nossa capacidade de
Vimos que na Grécia a tensão entre corpo e pen- nos pensarmos como diferentes, ou como proprie-
samento existia, mas o mencionado tensionamento tários de um objeto: o corpo. Com essa capacidade,
considerava uma certa estética da vida, em que essa o corpo deixa de caracterizar a particularidade de
separação era dificilmente vivenciada. Estudamos cada indivíduo, bem como sua vinculação à huma-
que essa consideração da sinergia das dimensões nidade, caracterização essa que passou a ser privilé-
humanas não era tranquila ou inquestionável, mas gio do pensamento e da razão.
marcou aquele momento histórico. Vamos pensar e entender como essa separação
De um modo diferente em muitos aspectos, al- se tornou possível, como ela se relacionou com ou-
guma inseparabilidade entre corpo e reflexão tam- tros aspectos da vida sociocultural dos séculos XVI
bém pode ser vista no homem medieval. A impor- e XVII, bem como o impacto que ela gerou nas ques-
tância do corpo, visto como fonte dos pecados e a tões culturais e educacionais tanto interessam futu-
tentativa de diminuí-lo, reprimi-lo e subjugá-lo à fé ros professores de educação física.
cristã, não deixava de lado a importância dessa di- Um elemento importante para nos ajudar a en-
mensão corpórea do homem nos ritos eclesiásticos. tender as transformações que nos interessam nesse
Afinal, assumia-se que era por meio do corpo con- momento foi pautado nas críticas à autoridade da
trolado que a fé poderia se manifestar e se ampliar, Igreja, sobretudo quando esta tentava explicar as
explicitando uma assunção de que o cristão não se grandes questões atinentes à natureza e ao homem
separava de seu corpo no seu longo e difícil cami- e sua relação com Deus. Essa autoridade, que estava
nho que levava até a religação com Deus. Para o me- sendo cada vez mais criticada, fazia suas afirmações,
dieval religar-se a Deus passava pelo esforço diário defendia suas verdades a partir de uma determina-
de desligar-se dos pecados causados pelas vontades, da tradição, tomada como inquestionável, como não
pela tentação associada à carne. suscetível de crítica. Isso, evidentemente, inviabili-

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

zava qualquer possibilidade de se construir expli- Essa desconfiança do intelecto humano levou à bus-
cações diferentes, mais satisfatórias a quem não se ca de instrumentos que potencializassem a capaci-
contentava com a maneira de se explicar a natureza dade humana de ver e entender aquilo que queria. A
e o lugar do homem nela. citação seguinte é bastante conhecida no campo da
No interior da afirmação dessa antiga autorida- filosofia, por ilustrar a forma como o caminho que
de, foi se fortalecendo a defesa de outros modos de se levou ao método científico foi se pavimentando:
conhecer e pensar as problemáticas a serem conhe-
cidas. Essa novidade apoiava-se na crença de que as E, se nos acusam de arrogantes, cumpre-nos
afirmações eram feitas por meio de uma autoridade, observar que isso seria verdadeiro de alguém
que pretendesse traçar uma linha reta ou um
carência de evidências empíricas observáveis. Além
círculo, melhor que algum outro, servindo-se
disso, passou-se a advogar que o conhecimento não apenas da segurança das mãos e do bom gol-
deveria se adequar a qualquer tipo de tradição, mas pe de vista. No caso, haveria uma comparação
que deveria espelhar a natureza, independentemen- de capacidade. Mas se alguém afirma poder
te das preferências de quem elaborava as explica- traçar uma linha mais reta e um círculo mais
perfeito servindo-se da régua e do compasso,
ções. De fato, uma das principais críticas feitas ao
em comparação a alguém que faça uso apenas
modo de conhecer que existiu antes do advento da das mãos e da vista, esse com certeza não seria
ciência moderna foi sua parcialidade, sua incapaci- um jactancioso. O que ora dizemos não se re-
dade de gerar afirmações inquestionáveis, exatas e fere somente aos nossos primeiros esforços e
produtoras de consequências benéficas justamente tentativas, mas também aos dos que se segui-
pela imprecisão com que eram feitas. ram com os mesmos propósitos. Pois o nosso
método de descoberta das ciências quase que
Perceba o nascimento da ciência, entendida
iguala os engenhos e não deixa muita margem
como uma forma de conhecimento que produziu à excelência individual, pois tudo submete
numerosas consequências, justamente pelo modo a regras rígidas e demonstrações (BACON,
como passou a ser produzida: baseada na experi- 1984 [1620], p. 83).
mentação e no método. Fundamentais nessa cons-
trução foram os pensamentos de Francis Bacon É possível notar que o traço distintivo da ciência
(1984) e René Descartes (1979). Na construção da como forma de conhecimento era o fato de ela ser
ciência moderna, foi necessário fazer-se frente àque- produzida por meio de instrumentos, por meio
les que diziam ser o suficiente um bom argumento. de métodos que diminuíam as influências das fra-
Bacon (1984) contrapunha essa posição, afirmando: gilidades humanas que impediam a elaboração
de conclusões, “claras e distintas”, como defendia
O intelecto, deixado a si mesmo, na mente sóbria, Descartes (1979). Este, aliás, redigiu o “Discurso
paciente e grave, sobretudo se não está impedida
do Método”, para demonstrar que havia encontra-
pelas doutrinas recebidas, tenta algo na outra via,
na verdadeira, mas com escasso proveito. Porque do um procedimento que o dava a segurança “de
o intelecto não regulado e sem apoio é irregular usar em tudo minha razão, se não perfeitamente,
e de todo inábil para superar a obscuridade das ao menos o melhor que eu pudesse…” (DESCAR-
coisas (BACON, 1984 [1620], p. 17). TES, 1979 [1637], p. 40). Nesse raciocínio, a perfei-

70
EDUCAÇÃO FÍSICA

ção no uso da razão não existia, pois, como afirma Para o filósofo, é essa capacidade racional que dife-
o próprio Descartes em outro trabalho de grande rencia o homem de qualquer outra coisa existente,
importância na história da filosofia ocidental, a além de ser ela a portadora daquilo que me diferen-
razão existe unida a um corpo que não deixa de cia dos outros homens, de um modo significativo.
atrapalhá-la no momento em que ela realiza opera- Afinal, quando olho para as outras pessoas, perce-
ções para descobrir o que deseja. Por esse motivo, o bo diferenças entre nossos corpos, mas esses, sem a
nascimento do método científico colocou o corpo faculdade de entender, são “res extensa” (DESCAR-
em um lugar de bastante suspeição, conforme nos TES, 1979), são objetos, como são as pedras, as ár-
ajudar a pensar Valter Bracht: vores e os outros animais. Esse modo de entender
a presença corporal do homem levará à concepção
Nas teorias do conhecimento da modernidade, do “corpo-máquina” que será desenvolvida nos sé-
que têm sua expressão máxima no chamado
culos posteriores, mas encontra em Descartes e no
método científico (a ciência moderna), o cor-
po ou a dimensão corpórea do homem aparece processo de florescimento da ciência moderna seu
como um elemento perturbador que precisa ser momento fundador.
controlado pelo estabelecimento de um proce- Temos, assim, uma sociedade que nascia, que
dimento rigoroso (BRACHT, 1999, p. 71). propunha uma nova forma de conhecimento que
pretende instrumentalizar o entendimento humano
Para que a reflexão evidencie a forma como um com um método que diminui a influência do “cor-
novo entendimento se faz sobre nosso corpo, note po-máquina” no momento em que faço aquilo que
que está em jogo a capacidade de bem conhecer- me distingue como ser humano: pensar. Compre-
mos as coisas. Esse esforço não é novidade no sé- ende-se por esse raciocínio a razão da dissecação
culo XVI, mas o modo como o problema fora re- anatômica por nós abordada há algumas páginas,
solvido é o que nos interessa. Descartes (1979), nas expandir-se nesse mesmo momento: o cadáver, não
“Meditações”, reconhece que o problema tocava mais possuidor daquilo que nos faz humanos, o en-
em uma tradicional maneira de se entender o que tendimento, a razão, pode ser dissecado, fracionado,
são os homens e o que eles poderiam conhecer: “é aberto, exposto, tocado, sem qualquer constrangi-
quase impossível desfazer-se tão prontamente de mento. Aquilo fez parte de uma pessoa, e, em cima
uma antiga opinião” (DESCARTES, 1979 [1641], da bancada para ser estudado, tem o mesmo estatuto
p. 98). Mas qual seria a “nova opinião” a ser abra- de uma planta ou de qualquer outro objeto a ser co-
çada por Descartes? nhecido pela experimentação científica.
Os impactos disso para a ciência foram sabida-
[...] só concebemos os corpos pela faculdade de mente gigantescos. O mesmo ocorreu para as práti-
entender em nós existente e não pela imagina-
cas educacionais: falar em uma “educação física”, ao
ção e nem pelos sentidos, e que não os conhe-
cemos de os ver ou de tocá-los, mas somente lado de uma “educação intelectual” tornou-se algo
por concebê-los pelo pensamento, reconheço mais fácil. Além disso, conforme o conhecimento
que nada há mais fácil de conhecer do que meu anatômico se expandia, a parte corporal da educação
espírito (DESCARTES, 1979 [1641], p. 98). foi recebendo defensores na mesma medida em que

71
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

se entendeu de forma científica os diferentes pro- tensos debates entre filósofos e cientistas. A posição
cessos existentes e necessários para a manutenção cartesiana de que nosso corpo é apenas uma máqui-
da vida. Manipular essas variáveis, seja por meio de na, e como tal deve ser conhecida, recebeu muitas
corridas ou por meio de cirurgias, tornou-se possí- críticas e ainda tem sido refutada de muitas formas.
vel em um momento em que as sociedades foram as- De qualquer modo, observa-se que essa concepção
sumindo como importante que os indivíduos, entre do “corpo-máquina” e de que podemos conhecer
outras coisas, deveriam cuidar de seus corpos. E essa apenas seu “funcionamento” deu ao campo da edu-
decisão foi, racionalmente, tomada por um “novo cação física muitas de suas características, sobretu-
eu”, a partir de dados científicos que foram se acu- do na construção das matrizes disciplinares prefe-
mulando. A forma como nos percebemos, donos de rencialmente estudadas nos variados processos de
nossos corpos, foi primordial para que tenhamos nas formação. Por esse motivo, focalizar o corpo sob um
escolas um momento dedicado à “educação física”. ponto de vista histórico proporciona condições para
Essa percepção dualista sobre o homem, desde entender muito daquilo que você encontrará no cur-
o século XVII tem sido objeto de numerosos e in- so e no exercício da profissão.

72
EDUCAÇÃO FÍSICA

OS ÓDIOS E OS AMORES
DEVOTADOS AO CORPO
NA HISTÓRIA
Ao desnaturalizar a forma como concebemos o cor- A necessidade de fazermos esse esforço analí-
po humano, percebemos muitas questões e proble- tico para vermos no corpo coisas que extrapolem
mas, além dos meramente biológicos, anatômicos sua anatomia já é compreendida por você. Afinal,
e fisiológicos. Conforme ficou claro nos itens ante- desde o florescimento da ciência moderna e seus
riores, embora esses problemas atinentes à natureza princípios metodológicos pautados na experimen-
do corpo já ofereçam desafios complexos a todos tação e no reconhecimento da diferença entre o
aqueles que querem estudá-lo, essa complexidade pensamento e a extensão, entre a razão e o corpo,
não nos deve levar a esquecer que, a tal materialida- a forma preponderante de conhecermos o corpo
de formada por células e tecidos, agregam-se modos é a avaliação cuidadosa dessa “máquina”. Como
muito variados de entendê-la. Entender esses modos toda “máquina”, o corpo deve ser desmontado em
é um dos objetivos mais interessantes a serem alcan- suas menores partes, as quais devem ser vistas,
çados por uma reflexão que tematize a história da medidas, isoladas em seu funcionamento. Enfim,
educação física. a ciência anatômica proporcionou uma fonte mui-

73
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

to rica de conhecimento que, sabidamente, levou por exemplo, é vista por alguns estudiosos como
a muitas possibilidades médicas impensáveis em o momento em que a razão filosófica teria feito
sociedades nas quais o corpo e a razão eram inse- sua aparição pela anulação da dimensão corpórea.
paráveis. Por isso, ao analisar a matriz curricular Para outros, teria sido aquela sociedade o tempo
de seu curso, a importante ênfase biologizante dos que possuiu um horizonte ainda não alcançado no
cursos de educação será compreendida por você que diz respeito à educação física.
enquanto uma construção histórica que traz para Essa ambiguidade pode ser vista, também, em
os dias de hoje o processo de construção da pró- um período da história normalmente associado
pria ciência e seu olhar matematizante ao corpo e à depreciação corporal: a Idade Média. Le Goff e
à educação que dele se ocupa. Truong (2010), ao estudarem o corpo nesse mo-
Se a alternância entre momentos históricos nos mento da história da humanidade, fazem-nos per-
quais o “eu” e o corpo não se diferenciavam, com ceber a maneira contraditória com o que o corpo
momentos em que se pode afirmar que “tenho um era percebido. E isso sem esquecermos que esta-
corpo”, trouxe consequências científicas e filosóficas mos falando de um momento em que as questões
de primeira ordem, há uma outra maneira de olhar- religiosas tinham grande relevância na organiza-
mos o corpo para além da sua anatomia, que também ção da sociedade. No seio dessas questões, aborda-
foi e ainda é muito relevante, em termos históricos. das a partir de uma perspectiva cristã-católica, o
Seja como elemento constituinte da humanidade ou corpo era tomado como fonte dos pecados, contra
como objeto a ser conhecido pela razão que escruti- os quais deveria lutar o devoto em seu caminho
na um objeto, em diferentes sociedades, de diferen- rumo à correta adoração de seu Deus. Todavia,
tes épocas, ora alternaram-se, ora combinaram-se mostram os historiadores, não podemos tomar os
ódios e amores dispensados ao corpo. Por ódios e discursos religiosos como as únicas fontes de com-
amores, refiro-me a variadas maneiras de enxergar preensão de um determinado “ódio” ao corpo. Eles
em nossa materialidade corporal ou algo a ser cui- nos mostram que durante toda a Idade Média, ao
dado ou algo a ser desprezado. lado de discursos e práticas que denegriam a nos-
Antes de analisarmos a questão historica- sa “carne”, havia uma vida cotidiana em que essa
mente, sublinho a necessidade de pensarmos na mesma “carne” era desfrutada pelos cristãos de um
combinação entre diferentes formas de valorizar modo mais intenso do que aquele que presumiría-
o corpo na história. O modo mais usual é enten- mos ser, se nos ativéssemos apenas aos pensamen-
dermos sentimentos opostos sobre o corpo como tos que atribuíam energias pecaminosas às vonta-
pertencentes a momentos diferentes. Nesse racio- des que surgem do corpo.
cínio, a uma época que tivesse devotado grande O mesmo pode ser dito em relação ao avanço
devoção ao corpo, sucederia outra em que o cor- da ciência moderna e dos desdobramentos da ciên-
po teria sido, apenas, odiado ou desqualificado. cia anatômica. A atenção dedicada ao cadáver, dis-
As análises que fizemos nos itens anteriores, aliás, secado zelosa e habilmente pelo anatomista, é um
de alguma maneira, deixam entrever a necessida- indicativo de uma diminuição ou de uma elevação
de de evitarmos tal postura. A Grécia Clássica, do lugar do corpo na vida social? Tanto para os gre-

74
EDUCAÇÃO FÍSICA

gos quando para os modernos, a resposta é ambígua.


Sobre a problemática do corpo no início da época
moderna, Herold Junior (2004) afirma:

Momento de “liberação” ou “valorização”! Essa


assertiva [...] ser vista com suspeita, permitindo
verificar que, nos albores da idade moderna, o
corpo foi alvo, também, de uma “vigilância”, de
um “esquadrinhamento”, de um “controle” não
vivenciados pelos medievos (HEROLD JU-
NIOR, 2004, p. 222).

A ambiguidade em relação ao corpo que leva a ava-


liações e considerações contrastantes a ele é uma
questão que tem ocupado muitos filósofos há um
bom tempo. Se tenho me esforçado em demonstrar
que na história do pensamento filosófico o lugar do
corpo é ambíguo, não podemos esquecer que con-
tra ele levantaram-se muitas vozes, ocasionando Um dos pensadores mais controversos da histó-
em muitas suspeitas contra o corpo. Emblemático, ria filosófica foi Karl Marx. Entre muitas questões
nesse sentido, foi o que discutimos sobre o desen- tocadas por sua reflexão, está a valorizada feita por
volvimento da ciência moderna. Bracht (1999) nos Marx no que tange ao trabalho. Para ele, era essa
ajudou a perceber que, ênfase da nascente ciência no “atividade”, esse “fazer”, o ponto mais importante
concreto, no mensurável, ela se construiu com uma para entendermos muitos impasses filosóficos que
desconfiança muito grande sobre aquilo que perce- há séculos incomodavam os pensadores e políticos.
bemos pelo “nosso corpo”. Ao explicar a sociedade capitalista pela luta de clas-
Essa percepção, por sua vez, levou a numerosas e ses que se desenrola no campo produtivo da riqueza
importantes defesas sobre o papel do corpo na cons- necessária à sobrevivência da sociedade, Marx de-
trução de todas as nossas conquistas culturais, in- fende que é o trabalho o ato caracterizador da hu-
telectuais e artísticas. Nesse sentido, alguns autores manidade do homem. Desse ponto de vista, filoso-
e ideias elaboradas no século XIX são importantes fia, política, artes, educação, momentos dedicados
para pensarmos na existência de uma reflexão que ao “mundo das ideias”, são práticas sociais depen-
dê ao corpo uma importância diferente daquela que dentes da inescapável necessidade de atender ao que
é dada pelo olhar anatômico. ele chama de “primeiro ato histórico”.

75
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, Outra ponderação filosófica importante para pen-
bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas sarmos nos lugares ocupados pelo corpo humano na
mais. O primeiro ato histórico é, pois, a reprodu-
história encontramos em Friedrich Nietzsche. Ela-
ção dos meios para a satisfação dessas necessida-
des, a produção da própria vida material, e este é, borando um dos pensamentos mais inquietantes da
sem dúvida, um ato histórico, uma condição fun- filosofia ocidental, esse filósofo colocou o corpo em
damental de toda a história, que ainda hoje, assim um lugar central no conjunto de suas ideias. Afinal,
como há milênios, tem de ser cumprida diaria- ao fazer a crítica a todas as pretensões metafísicas
mente, a cada hora, simplesmente para manter os
homens vivos (MARX; ENGELS, 2007, p, 33).
que passaram a existir desde a antiguidade grega,
Nietzsche (2012) viu no conjunto dessas pretensões
Note que há nessa reflexão construída por Marx o ódio a que tenho me referido ao falar sobre o cor-
um componente muito próximo e consequente do po na história. Em um de seus livros mais lidos, “As-
desenvolvimento científico moderno. A saber, uma sim falava Zaratustra”, há um capítulo, cujo título é
tentativa de dar aos fatos, e não às ideias, ou ao que “Dos que desprezam o corpo”. Nietzsche tece suas
pensamos sobre os fatos, elementos primordiais para críticas à filosofia, evidenciando a importância do
entendermos o mundo social construído, socialmen- corpo, da seguinte forma:
te, por homens e mulheres. E nesse sentido, a atenção
que hoje damos ao corpo é uma resultante dessa ten- Aos que desprezam o corpo quero dizer a mi-
nha opinião. O que devem fazer não é mudar
tativa. É o que tento deixar claro, quando afirmo que:
de preceito, mas simplesmente despedirem-se
do seu próprio corpo, e por conseguinte, fica-
Os autores do Manifesto do Partido Comunis-
rem mudos. “Eu sou corpo e alma” - assim fala
ta estão mostrando que a prática, o concreto, o
a criança. - E por que se não há de falar como
corporal, a reprodução da existência, enfim, to-
as crianças? Mas o que está desperto e aten-
das as coisas vistas como baixas ou irrelevantes
para o mundo “celestial” da reflexão filosófica to diz: - “Tudo é corpo e nada mais; a alma
e do pensamento em geral, devem ser conside- é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.
radas para explicar variadas dimensões da vida O corpo é uma razão em ponto grande, uma
social. Sem esquecer diferenças metodológicas multiplicidade com um só sentido, uma guer-
e temáticas existentes, não haveria semelhanças ra e uma paz, um rebanho e um pastor (NIET-
de grande calibre entre essas intenções do mar- ZSCHE, 2012, p. 43).
xismo e o esforço dos estudiosos do corpo em
mostrar sua importância para vida hodierna e
histórica das diferentes sociedades? (HEROLD Trata-se de uma afirmação contundente que pre-
JUNIOR, 2009, p. 219). tende ter o efeito de colocar em destaque algo visto

76
EDUCAÇÃO FÍSICA

como, habitualmente, posto em segundo ou até ter- Adorno e Horkheimer (1985, p. 217) reconhecem:
ceiro lugar. Entretanto, essa luta entre posicionar “Na civilização ocidental e provavelmente em toda
algo em posição primária ou secundária, na pior a civilização, o corpo é tabu, objeto de atração e re-
das hipóteses, é um endosso daquilo que se procura pulsão”. Nessa reflexão, o já mencionado “interesse
esconder. Por essa razão, em meados do século XX, pelo corpo” é resultado do “auto-rebaixamento do
Adorno e Horkheimer (1985, p. 215) afirmaram: homem ao corpus”, ao cadáver, tornando-o “obje-
“Sob a história conhecida da Europa corre, subter- to de dominação, de matéria bruta” (ADORNO;
rânea, uma outra história”. Eles diagnosticam na HORKHEIMER, 1985, p. 217), algo que já vimos
história da civilização o lugar dos “instintos e pai- como paralelo à ampliação da capacidade científica
xões humanas” que manifesta-se no “interesse pelo de entender o corpo.
corpo”, que eles caracterizam pela díade “amor-ó- A sociedade na qual vivemos ainda é passível de
dio”. Foi essa caracterização que levou à estrutura ser pensada por essa tensão entre amor e ódio, no
da reflexão deste item. Afinal, ela tem uma impor- que diz respeito ao corpo. Conseguiríamos, depois
tância inegável na hora de entendermos o corpo dessas análises, afirmar que a mencionada “revolu-
tanto em sua história quanto na atualidade na qual ção somática” na qual passamos a viver no século
vivemos e pensamos. XX é uma expressão de interesse pelo corpo, final-
Os dois filósofos alemães viveram em uma so- mente liberada a atenção sempre dada a ele pelos
ciedade em que o corpo já contava com uma gama “desprezadores do corpo” criticados por Nietzsche.
de práticas e olhares que assumiram como necessá- Por outro lado, o cultivo do corpo, tão alardeado
rios os cuidados que levaram o século XX a viven- em nosso cotidiano, já não seria um indício de que
ciar uma “revolução somática” (JENSEN, 2013). Ou passamos a vê-lo como relevante para a constru-
seja, Adorno e Horkheimer conseguiram captar que ção de uma vida com mais significado? Reconhecer
na história os diferentes modos com que se pensa e essa ambiguidade, na ausência de respostas con-
se percebe o corpo são ambíguos. Essa ambiguidade tundentes para ela, já é um avanço. Ao lidar com
é também perceptível em contextos muito preocu- tal ambiguidade, conhecer um pouco da história
pados com o corpo e suas práticas, tal como é nosso relacionada ao corpo é um dos procedimentos que
próprio contexto. Em ponderações que nos ajudam nos possibilitam perspectivar uma lida mais clara
a pensar nossas atuais dificuldades de entender- com os dilemas que emanam do fato de, ao mesmo
mos o lugar do corpo em diferentes esferas sociais, tempo, termos e sermos corpo.

77
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

PRAZERES E DEVERES
NO CUIDADO COM O
CORPO
Depreende-se da leitura dos quatro tópicos ante- naquilo que somos. A sociedade contemporânea é
riores a importância que o corpo possuiu e possui reconhecida por muitos analistas como uma épo-
em termos individuais e sociais. Mesmo que em ca que dá ao corpo, à sua saúde e à sua aparência
alguns momentos o corpo seja avaliado negati- uma grande atenção. Le Breton (2003b) reconhece
vamente, não se colocou em questão a necessi- que, na atualidade, o corpo se transformou naquilo
dade de nos ocuparmos dele. Aliás, foi um dos que eram as ideias, as posições políticas e filosófi-
pontos que recebeu maior atenção das reflexões cas: reconhece-se, mais facilmente, a pessoa como
anteriores o fato de discursos desqualificadores portadora e veiculadora de valores e signos sociais
em relação ao corpo não significarem que ele era muito mais por sua “composição corporal” e menos
irrelevante para a sociedade onde esses discursos sobre o que ela fala de si mesma. Se você lembrar
foram produzidos. que a ciência moderna caracterizou-se por separar
A julgar pelo mundo no qual vivemos, pare- o homem de seu corpo, é inevitável a constatação de
ce ser muito distante a existência de pensamentos estarmos, em muitos aspectos, corrigindo o “erro de
e práticas que busquem diminuir o valor do corpo Descartes” (DAMÁSIO, 2012).

78
EDUCAÇÃO FÍSICA

Com efeito, no mundo atual, não apenas os remé- por outros analistas depois de Adorno e Horkheimer
dios, os cremes, as vitaminas e outros artefatos farma- (1985), não têm impedido que se busquem os pra-
cológicos ou médicos estão à disposição das pessoas. zeres oriundos dos cuidados ao corpo. Mesmo que
Há todo um conjunto de práticas terapêuticas, massa- eles se tornem uma espécie de dever, uma obrigação,
gens, meditações, práticas corporais alternativas que gerando, por sua vez, muita ansiedade e frustração.
buscam realizar, plenamente, todas as possibilidades Uma sensação muito comum quando nos depa-
corpóreas, alcançando algo que Adorno e Horkhei- ramos com algumas das dificuldades que essa cen-
mer (1985, p. 218) afirmavam não ser possível: “Não tralidade do corpo proporciona é nos esforçarmos
se pode mais reconverter o corpo físico (Körper) no para verificar o processo de construção do conjunto
corpo vivo (Leib)”. Os dois filósofos alemães, que de valores, conhecimentos e práticas associadas ao
pensavam na sociedade nas décadas de 1940 e 1950, cuidado corporal. Do que vimos até agora, pode-se
já adiantam um impasse que nos ajuda a considerar a inferir a facilidade com que encontraríamos outras
presença e a importância do corpo no mundo atual. épocas, bastante recuadas, homens e mulheres bus-
Ao verificarem, acertadamente, o peso da ciência na cando meios para adequar seus corpos aos padrões
forma como o corpo é posto em uma espécie de pe- de beleza reinantes no mundo em que viviam.
destal nas relações cotidianas, mais uma vez a tensão No item anterior, fiz menção ao que Jensen
amor-ódio em relação ao corpo é perceptível e defini- (2013) chama de “revolução somática”. Ele estudou,
da por eles por uma ânsia mensuradora, que, seguin- especificamente, a sociedade alemã nas décadas de
do os passos da ciência moderna, quantifica a exis- 1920 e 1930 para perceber que, em muitas dimen-
tência e o modo como experimentamos nosso corpo. sões sociais daquela sociedade, a valorização do
corpo se devia não apenas à expansão de práticas
Ela [a busca pela saúde] transformou o passeio corporais, praticantes e organizações burocráticas
em movimento e os alimentos em calorias, de
que se organizavam, como federações e assemelha-
maneira análoga à significação da floresta viva
na língua inglesa e francesa pelo mesmo nome dos. Ele notou, também, o aumento da quantida-
que significa também ‘madeira’. Com as taxas de de pessoas interessadas em assistir aos variados
de mortalidade, a sociedade degrada a vida a eventos desportivos que passaram a acontecer. Ou-
um processo químico (ADORNO; HORKHEI- tra conclusão muito interessante do livro de Jensen
MER, 1985, p. 219).
(2013) foi notar que que a expansão de variadas
modalidades desportivas e do público consumidor
Perceba que nessas críticas, ao modo como o corpo dessas práticas foi possível, ao mesmo tempo em que
vinha sendo valorizado, está explícita a constatação possibilitou uma nova forma de se relacionar com o
de que a importância dada ao corpo não significa, corpo. Por isso ele enxerga uma revolução somática,
necessariamente, o alcance de um estado de supera- na qual ver corpos bonitos, atléticos, bronzeados, do
ção das históricas subjugações as quais foram postas mesmo modo que ambicionar ter corpo com essas
o corpo, seus movimentos e suas sensações. Por outro características impulsionou a expansão de um estilo
lado, a adesão das pessoas a esses cuidados eviden- de vida ativo, ligado ao cultivo de valências físicas e
ciam que essas observações críticas, feitas também da aparência corporal.

79
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Vale notar um impacto muito relevante propor- XX: a identidade das pessoas vai dependendo, cada vez
cionado pela expansão desse olhar atento ao corpo: mais, daquilo que sentiam e faziam com seus corpos.
ele foi absorvido tanto por homens quando por mu- O mesmo processo de valorização do corpo e dos
lheres. Jensen (2013) nos explica que, na sociedade cuidados associados a ele também podem ser visto
alemã, essa ascensão do corpo a um lugar de destaque no Brasil, desde as primeiras décadas do século XX.
subverteu alguns papéis tradicionalmente atribuídos Sevcenko (2012, p. 576), ao estudar desdobramen-
aos homens e às mulheres. Aos homens, que antes se tos históricos observáveis no Rio de Janeiro nos anos
interessavam apenas pelo cultivo da força e da resis- de 1920, observa a existência de uma “nova ética do
tência, emblematizadas na ética guerreira, agregou- corpo em ação”. Chamou a atenção do historiador
-se a preocupação com a aparência corporal, passível que uma certa propensão à atividade e à exibição do
de ser admirada pela harmonia, pelos músculos tra- corpo tivessem passado a compor traços mais carac-
balhados, sem menção a qualquer utilidade prática terísticos da sociedade carioca. Entre outras razões,
para a força, conquistada em horas dedicadas ao trei- essa visibilidade do corpo o levou a ver nos anos em
namento. Se a ligação masculina com a força é uma questão a existência de uma “capital radiante”, em
continuidade do que já existia do ponto de vista da que se inaugurava uma nova forma de vida.
histórica construção de gênero, perceba que a inquie- O cuidado com corpo e a concretização dessa
tação estética, até então atribuída às mulheres, passou “nova ética” corporal foi muito estimulada pelas
a fazer parte do horizonte cotidiano dos homens. mudanças no vestuário. Soares (2011) diagnosti-
Algo semelhante ocorre com as mulheres. Con- ca o nascimento de uma nova percepção corporal
forme uma nova sensibilidade corporal ia sendo cons- pelo modo com que as pessoas passaram a valorizar
truída, aumentou o número de mulheres realizando determinadas roupas, em detrimento de outras. Im-
práticas corporais anteriormente assumidas apenas portante nesse raciocínio foi a primazia do conforto,
por homens. Consequentemente, a imagem de uma elegância e eficiência, pontos que foram muito co-
mulher mais musculosa, mais bronzeada, ativa e pre- nectados com o nascimento de um estilo desportivo
ocupada também com sua performance foi, paulati- de ser, com roupas, práticas corporais e olhares inte-
namente, tornando-se algo menos raro de ser visto. É ressados para tudo isso. Vivia-se anos:
importante não perdermos de vista que, nessas trans-
formações que homens e mulheres iam experimen- [...] bastante férteis na composição de uma nova
sensibilidade urbana acolhedora de uma diver-
tando e realizando, houve discursos que buscavam
sidade e intensidade de práticas corporais que
normatizar o que seria o ideal corporal para homens afirmam e confirmam outros comportamentos,
e mulheres. Essas normativas mantiveram sua impor- outros gestos, em outras palavras, novas manei-
tância, mas quando o assunto foi o usufruto que pode ras de viver (SOARES, 2011, p. 3).
ser proporcionado pelo corpo, esses discursos regula-
dores tiveram seus poderes limitados e as pessoas en- Nessa fertilidade de cuidados sobre o corpo e o que
contravam maneiras de apropriarem-se de seus corpos nele tocava, o raciocínio médico-higiênico foi im-
com o fito de construir sua identidade. E é essa a gran- portante. Fundamental na realização desse raciocí-
de questão que vai sendo colocada ao longo do século nio foi a justificativa de que as roupas deveriam ser

80
EDUCAÇÃO FÍSICA

mais leves, deixar mais partes do corpo expostas ao [...] a transformação do embelezamento em gê-
sol, tudo com o objetivo de aproximá-lo de uma na- nero de primeira necessidade marcou profun-
tureza, afastada, também, pelo peso dos antigos ves- damente o século. Foi quando ornamentar-se
deixou de ser um gesto moralmente suspeito ou
tuários. Nesse sentido, é importante reconhecer a
típico de uma minoria mundana para se transfor-
existência de uma “educação do corpo e dos compor- mar em direito de pobres e ricos, jovens e idosos.
tamentos associado ao modo de vestir-se” (SOARES, Misturado ao milenar sonho de rejuvenescer, o
2011, p. 22). A defesa do conforto, do bem-estar e embelezamento virou uma prova de amor por si
mesmo e pela vida - não somente um dever, mas
da leveza ao se vestir fortalecia, estimulada pela ne-
um merecido prazer; não simplesmente um tru-
cessidade de dar liberdade aos movimentos, deixar que para ser amado, mas uma técnica para se sen-
a pele respirar. Em suma, perceba que, no conjunto tir adequado, limpo e decente. E, ainda, a história
desses posicionamentos, os cuidados do corpo avo- do embelezamento habita zonas do imaginário
ligadas à minar vontade de se livrar da doença e
lumavam-se, impactando desde visões de mundo até
escapar da morte. Trata-se, portanto, de um tema
nossos pequenos gestos do dia a dia, como se vestir. revelador das maneiras de lidar com coisas con-
Vale a pena registrar que, paralelamente ao surgi- sideradas tão supérfluas quanto essenciais, tanto
mento dessas inquietações concernentes à roupa, houve belas, quanto feias (SANT’ANNA, 2014, p. 16).
toda um defesa da importância da água, do sol, da natu-
reza, enfim, assumida como fonte de saúde e bem estar É imperativo atentar-se para o peso de algumas pa-
corporais. É das primeiras décadas do século XX o de- lavras na longa citação anterior. O que passou a ser
senvolvimento do hábito de ir à praia, banhar-se no sol, o corpo a partir do século XX? Um “direito”, um
curtir a areia, ou seja, essa ideia de comunhão com uma “amor por si mesmo”, um “dever”, um “merecido
determinada paisagem cultural, algo ainda hoje muito prazer”. “Supérfluo”? Sim. Mas, “essencial”, também.
defendido e percebido por muitos de nós, que dava seus É difícil deixar de enxergar nessa história do corpo
primeiros sinais. O fortalecimento dessas práticas, as- a construção de um longo caminho que chega até
sociadas a novos hábitos vestimentares, forjou no início nós, até você, e à nossa decisão de estudarmos, mais
do século XX a mencionada revolução somática (JEN- detalhadamente, os assuntos que nos interessam em
SEN, 2013) também na sociedade brasileira. um curso de educação física.
Isso podemos constatar na forma como diversas
REFLITA
práticas de embelezamento foram adotadas por mu-
lheres, mas também por homens, desde esse perío-
do. Sant´Anna (2014) estudou a história da beleza Para os senhores da Grécia e do feudalismo,
no Brasil. Trata-se de uma inquietação existente em a relação com o corpo ainda era determinada
pela habilidade e destreza pessoal como con-
outras sociedade e outras épocas, mas que ganhou dição da dominação. O cuidado com o corpo
intensidade incomparável no momento que estamos tinha, ingenuamente, uma finalidade social.
estudando, justamente pela forma como o corpo O kalos kagathos (o belo e bom) só em parte
era uma aparência.
passou a ser visto, socialmente. Emblemática dessa
nova visão é a relevância que passou a ter o “embele- (Theodor Adorno e Max Horkheimer)

zamento”, como nos explica autora:

81
considerações finais

Prezado(a) aluno(a), o corpo é um dos principais objetos de análise quando pen-


samos em muitos aspectos da vida cultural, social e política.
A intimidade com que nos relacionamos com o nosso próprio corpo e com
o corpo dos outros coloca alguns desafios quando ambicionamos pensar esse
conjunto de relações. Como pensar algo tão pessoal, tão íntimo, de um modo a
conseguir estabelecer um diálogo interessante e produtor de novos entendimen-
tos partilhados com vistas a esclarecer assuntos e resolver problemas que afligem
uma época? Dito de outro modo, como é possível uma história do corpo? Esse
desafio não tem impedido muitos historiadores de se ocuparem da questão. O
empenho desses historiadores, como você já sabe, sustenta-se no fato de o corpo
ser uma questão de grande importância nos dias de hoje, gerando o ímpeto de
pensá-la em outras épocas.
Realizar esse ímpeto, ir àqueles que muito escreveram sobre muitas coisas e
perceber que o corpo era uma de suas preocupações a ladear outras, é um ato
muito interessante para percebermos a historicidade do corpo, superando a re-
corrente visão que o associa a uma imutável natureza. Esta unidade pretende ter
evidenciado alguns resultados que podemos extrair de tal reflexão. As diferentes
maneiras de valorizarmos ou odiarmos o corpo, pensá-lo como inextricavelmente
ligado às conquistas espirituais da humanidade, ou posto como obstáculo a essas
conquistas, partícipe das variadas formas com que homens e mulheres entende-
ram-se a si mesmo em outras sociedades, geradora de práticas voltadas ao seu
cuidado, enfim, estudar o corpo sob um ponto de vista histórico é um esforço
relevante, sobretudo para quem pretende atuar profissionalmente com aspectos
pedagógicos ligados às igualmente numerosas práticas voltadas a esses cuidados.
É para algumas dessas práticas que voltaremos nossa atenção na próxima unidade.

82
atividades de estudo

1. Relacione o desenvolvimento da ciência moderna com o modo com que o


corpo passou a ser visto.

2. Ao analisar a sociedade grega clássica, como podemos pensar de modo


relacional o nascimento da filosofia e a história do corpo?

3. Qual é o incremento intelectual proporcionado pelos estudos históricos


sobre o corpo?

4. De que modo o “interesse pelo corpo” que vemos na história é marcado


pela tensão entre amor e ódio, como dizem Adorno e Horkheimer (1985)?

5. Como podemos enxergar a tensão anteriormente mencionada nos varia-


dos procedimentos voltados ao cuidado com o corpo?

83
LEITURA
COMPLEMENTAR

A HISTÓRIA E OS MODELOS DE CORPO

1 - As três faces do corpo


Inúmeras são as maneiras de se referir ao corpo e de habitá-Io; inúmeras são as ma-
neiras de representá-Io e de lhe dar forma; é a dispersão desses indícios possíveis que
impressiona inicialmente. Um olhar mais profundo revela como a diversidade dos terri-
tórios do corpo é abundante no seio de cada cultura e de cada época: a competência do
ortopedista não é comparável à do artista, do mesmo modo que a prática do esportista
não é a do mímico ou do ator. Mecânica, energia, expressão e sensibilidade se repartem
numa multiplicidade de corpos, cada qual em sua singularidade, com seus saberes, seus
imaginários, seus domínios, até mesmo seus objetos. É necessário medir essa abundân-
cia de referências corporais, essa variedade que proíbe agrupá-Ias em uma mesma dis-
ciplina científica ou mesmo, dar-Ihes uma coerência e uma unidade a priori. Podem-se
distinguir pelo menos três grandes faces da existência corporal: todas possuem seus
próprios investimentos e singularidades, e, é claro, sua própria história. A primeira é a
do princípio da eficácia: recursos técnicos que o corpo retira da mecânica e dos sistemas
orgânicos, ou seja, a sua capacidade de ação sobre os objetos. Pode-se pensar aqui nas
habilidades dos trabalhadores manuais e nos procedimentos físicos quotidianos, como
também nos saberes e nas práticas colocadas em jogo para a manutenção do corpo, o
aumento de sua resistência ou de seu poder, saúde, higiene ou mesmo treinamentos
corporais variados. A segunda destas faces é a do princípio de propriedade: posse, pelo
corpo, de um espaço e, nele, de um território totalmente pessoal, ou seja, apropriação do
ser no mais íntimo de si, nos limites de sua dimensão biológica. Imaginem-se, portanto,
as representações das fronteiras corporais, daquilo que recobre o corpo - as “muralhas
da intimidade” - ou, ainda, os lugares a partir dos quais se definem as violências e os
atentados físicos. Esta face mostra-se de suma importância, pois suas variantes históricas
revelam deslocamentos de sensibilidade, que se referem não somente à relação com o
outro, mas, também, para consigo mesmo. A terceira face é a do princípio de identidade:
manifestação, pelo corpo, de uma interiorização ou de um pertencimento que designa o
sujeito, ou seja, o recurso de mensagens e de trocas a partir de sinais e de expressões de
natureza física. Pode-se pensar aqui os recursos expressivos, a emissão de mensagens,
a emergência de um sentido voluntário ou involuntário. Nesta terceira face pode-se pen-
sar, ainda, nas manifestações de prazer e de dor reforçando a ancoragem do sujeito.

84
LEITURA
COMPLEMENTAR

2 – O corpo e o objeto
Estas três faces demonstram o quanto a história do corpo pode revelar-se hetero-
gênea, mobilizar objetos muitas vezes diferentes, até mesmo inconciliáveis. É mais
em direção à prudência epistemológica e metodológica que ela deveria, então, con-
duzir. Esta história, porém, poderia tornar-se mais legítima ao captar um objeto
com precisão: objeto que outras abordagens tiveram dificuldade em apreender,
objeto que revela aquilo que não existiria, a não ser no momento e no lugar em
que é captado. Mostrar, por exemplo, com Le Goff (1967, p. 440), que a “civiliza-
ção medieval é a civilização do gesto”, é abrir um campo de reflexão sem limites
a respeito dos modos de sociabilidade em via de solidificação e de diferenciação,
assinalando ao mesmo tempo os obstáculos e as inovações que implicam o lugar
ainda muito marginal da escrita; é dar uma densidade inédita às modalidades in-
teiramente corporais dos juramentos e dos contratos, das solenidades remarcáveis
ou dos usos muito quotidianos; é ler esta tentativa antiga de inscrever no corpo um
código ainda à procura das suas transposições em signos escritos. A partir deste
único enunciado, um espaço difuso de práticas e de gestualidades anódinas tor-
na-se bruscamente relevante para acentuar a originalidade da sociedade da qual
surgem. No limite, a Idade Média existe “diferentemente”, quando se leva em con-
sideração estas inscrições corporais que a importância - logo mais central - da es-
crita permitirá deslocar. O corpo, dentro deste quadro preciso de um intercâmbio
específico e relacional, tornou-se, assim, um objeto suscetível de esclarecer um
mundo. Abundantes são os exemplos desses objetos corporais que foram se tor-
nando objetos “elucidativos” de uma época e de uma sociedade. O investimento
na construção de uma história do corpo consiste tanto em recenseá-los quanto
em explorá-los. Contudo, é necessário, às vezes, saber tornar complexas as repre-
sentações e desconfiar de nossos próprios esquemas representativos, aqueles de
homens e mulheres que pertencem à sociedade de hoje.

Fonte: Vigarello (2003, p. 22-23).

85
material complementar

Anatomias: uma história cultural do corpo humano


Hugh Aldersey-Williams
Editora: Record
Ano: 2016
Sinopse: a partir de exemplos tirados da literatura, filosofia e his-
tória, o autor aborda como as visões sobre o corpo humano são
devedoras do tempo em que foram criadas. Na segunda parte,
o autor estuda partes e órgãos específicos, cruzando de modo
esclarecedor conhecimentos oriundos da anatomia e fisiologia
com os conhecimentos das ciências humanas, filosofia e história.

Gattaca
Ano: 1997
Sinopse: trata-se de uma ficção científica em que o poder con-
trolador da ciência faz frente às fragilidades corporais humanas.
Essa força científica é desafiada, justamente, por essas fragili-
dades. Afinal, são elas que deixam entreabertas as portas para
aquela sociedade se tornar mais humana.

Na Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos está dis-


ponível o acesso a muitas páginas do livro “De corporis humani
fabrica” (1543), de Andre Vesálio (1514-1564). A obra é fundante
no desenvolvimento do conhecimento anatômico que, como vi-
mos, marcou o nascimento de um grande interesse pelo corpo.
Ainda assim, observe que nos desenho o corpo aparece em con-
texto, ou seja, localizado no espaço, sinalizando que o processo
de objetificação científica, ou de isolamento da variável, ainda
estava em curso. Acesse, confira!
Link: <https://ceb.nlm.nih.gov/proj/ttp/vesaliusgallery.htm>.

86
referências

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______. Corpo, pensamento educacional e práxis: a
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“teoria” e a “prática” da Educação Física nos albores
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KINGDON, J. Lowly origin: where, when, and why


our ancestors first stood up. Oxford: Princeton Uni-
versity Press, 2003.

87
gabarito

1. O desenvolvimento da ciência moderna, pautado na primazia do méto-


do científico e na identificação da razão como traço distintivo do homem,
possibilitou que o corpo fosse tratado como máquina, à semelhança dos
outros animais.

2. Ao romperem com as explicações míticas até então predominantes, os


gregos construíram uma reflexão racional que tematizou e se sustentou
nos sentimentos enraizados no corpo.

3. Ao estudarmos a história do corpo, podemos perceber que nossa dimen-


são corpórea não se reduz a uma natureza anatômica, mas compreende
os modos como a percebemos e a pensamos. Esses modos foram diferen-
tes em outros períodos da história. Estudá-los é uma maneira de entender
o corpo como o percebemos hoje.

4. Adorno e Horkheimer (1985) diagnosticam que na história das civilizações


o corpo sempre fora uma questão. Mesmo em períodos nos quais o corpo
foi cuidado com grande atenção, é possível verificar o incômodo gerado
pelo corpo, que sempre fragiliza nossa intenção de controlá-lo racional-
mente.

5. Se tomarmos o século XX como exemplo, o lugar central ocupado pelo cor-


po e seu cuidado sinaliza uma tentativa mais intensa de controlar as vonta-
des e sentimentos que emanam do corpo. Se isso foi um elemento impor-
tante para uma fruição não existente em outros momentos, também se
experimenta um certo mal-estar gerado pelo controle sobre o corpo, que
se amplia na mesma proporção de novas técnicas, produtos e prescrições.

88
UNIDADE
III
OLHANDO HISTORICAMENTE AS
PRÁTICAS CORPORAIS

Professor Dr. Carlos Herold Junior

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta
unidade:
• As muitas práticas corporais
• A ginástica
• Os jogos
• O esporte
• As lutas e as artes marciais

Objetivos de Aprendizagem
• Refletir historicamente sobre a grande variedade de
práticas corporais.
• Avaliar questões históricas em torno do desenvolvimento
da ginástica.
• Pensar na importância do lúdico na história da sociedade
contemporânea.
• Entender a historicidade da importância do fenômeno
desportivo.
• Abordar problemáticas relativas à formação das lutas e
artes marciais.
unidade

III
INTRODUÇÃO

N
a trajetória até aqui percorrida, você percebeu, caro(a) alu-
no(a), em primeiro lugar, que o conhecimento histórico
tem uma relação muito próxima com a realidade atual. Essa
constatação foi evidenciada em sua importância, pois ela si-
naliza que os esforços analíticos dos historiadores da educação física não
são empreitadas de quem não está disposto a resolver os muitos problemas
imediatos que nos afligem. Ficou explícito que o contrário é o correto: a
nossa área enveredou pelo caminho das abordagens históricas devido às
urgências que passaram a incomodar os professores de educação lá no iní-
cio da década de 1980 e que, de algum modo, ainda são nossos incômodos.
No segundo passo que juntos demos na ampliação de nosso olhar
histórico para as problemáticas profissionais da educação física, colocou-
-se em destaque que o corpo humano também existe e existiu, historica-
mente. Pensamos nos modos como essa mesma natureza e as percepções
em relação a ela vão se transformando, com o passar do tempo. Nessa
ótica, até a tão comum oposição entre pensamento e corpo pode ser pro-
blematizada. Vê-se o valor da história para nos ajudar a entender que tra-
ços aparentemente óbvios da vida individual e social nem sempre foram
assim considerados. Também no segundo passo coisas que atribuímos
como traços do presente foram evidenciadas como igualmente perten-
centes a outras épocas. Viver corporalmente é algo que nos acompanha
há mais de um século.
Sabendo que boa parte da atuação profissional e pedagógica em edu-
cação física ocorre em torno da ação pedagógico com esportes, exercí-
cios, ginásticas, lutas, jogos e dança, é oportuno voltarmos nossa atenção
a essas práticas. Com isso, a pretensão é entendermos como tais práticas
passaram a existir e contaram com o empenho de muitas pessoas em
praticá-las e de outras tantas em ensiná-las e divulgá-las por conta de
variados benefícios a serem conquistados por meio delas.
Bons estudos!
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

AS MUITAS PRÁTICAS
CORPORAIS

A
ntes de considerarmos a história de Interessante verificar que esse esforço em saber
práticas corporais abordadas pelo tra- aquilo que nos interessa em termos históricos tem
balho profissional e pedagógico em uma relação muito próxima com conhecer os nossos
educação física, é necessário termos interesses no mundo atual. Você se lembra que esse
alguma clareza sobre o assunto. Além disso, é im- foi um ponto muito enfatizado na primeira unidade:
portante sabermos aquilo que não será abordado pensar historicamente só é possível por pensarmos o
nesse estudo. Desse ponto de vista, um esforço mui- mundo no qual vivemos. Essa ênfase será útil a você
to recorrente nos empreendimentos científicos de na análise que proponho logo a seguir. Para iniciar o
forma geral e naqueles que são feitos no campo da estudo de uma história das práticas corporais, pro-
história e da história da educação física é estabelecer ponho uma questão: dentre as muitas práticas cor-
limites, os mais definidos possíveis, entre aquilo que porais existentes, o que explica que algumas sejam
compõe o nosso assunto e aquilo que fica de fora ou estudadas em um livro sobre história da educação
que extrapola o alcance da nossa atenção. física e outras não?

94
EDUCAÇÃO FÍSICA

A questão é aparentemente ingênua, mas tem veria se dar sem questionamentos. Nessa reflexão,
sua importância. Sobretudo se você considerar que, Bracht (1992) constatou que a educação física não
na unidade anterior, estudamos que os próprios en- possuía autonomia pedagógica, afinal, o professor
tendimentos sobre o que é corpo, o que é pensa- de educação física tinha seus saberes, códigos e
mento, a relação entre eles mudam com o passar procedimentos ditados pelas instituições despor-
do tempo. O mesmo ocorre com os cuidados que tivas e não pela pedagogia, pela didática, pela edu-
devotamos ao corpo, com as práticas que adotamos cação, em suma.
para moldá-lo a determinados projetos sociais, cul- Somando-se ao empenho dos professores em
turais e religioso, enfim, a natureza corpórea tem fazerem frente a essa situação, delimitar o conheci-
sua história marcada por uma tensão entre mudan- mento caracterizador da relevância pedagógica da
ça e permanência. Mudanças e permanências rela- educação física aglutinou energias. Um dos resul-
tivas aos modos como aquilo que fazemos com os tados mais visíveis desses esforços foi pensar esses
nossos corpos é visto e avaliado, de modos discre- limites em torno do passou a ser conhecido como
pantes em um mesmo período histórico. Como re- “cultura corporal”. Tendo como fonte as práticas
sultado, ambicionar estudar a história da educação produzidas socialmente, nessa óptica defendia-se a
física elegendo conhecer historicamente as práticas existência de uma “seleção de conteúdos da educa-
corporais deixa de ser algo óbvio. E deixou de ser ção física” (SOARES, 1992, p. 63). Resultante da se-
óbvio porque a complexidade da questão foi perce- leção é a cultura corporal que, ao ser composta por
bida por professores que têm buscado pensá-la na esportes, jogos, ginásticas, danças e lutas, teria a:
atualidade. Vamos estudar um pouco dessas tenta-
tivas de estabelecer limites. [...] pretensão de possibilitar ao aluno da escola
pública entender a realidade social interpretan-
Em um processo que será estudado em outros
do-a e explicando-a a partir dos seus interes-
momentos do curso, a partir de 1980 muitos pro- ses de classe social. Isso quer dizer que cabe à
fessores de educação física passaram a se debater escola promover a apreensão da prática social
para definir as razões que justificavam sua presen- (SOARES, 1992, p. 63).
ça na escola. A intensidade dos questionamentos
foi tanta que acabou recebendo a denominação de Nessa discussão, é importante ser percebido que, ao
“crise da educação física”, um modo de se referir à tentarem encontrar justificativas pedagógicas para
constatação de que não havia muito acordo sobre a presença da educação física na escola, os espor-
o que seria o assunto a ser abordado pelos profes- tes, jogos, ginásticas, danças e lutas passaram a ser
sores de educação física na escola. A resposta até considerados “práticas sociais”, “expressão corporal
então aceita sem maiores problemas, o esporte, como linguagem” (SOARES, 1992, p. 62).
passou a não mais contar com a unanimidade que A grande questão dessa luta para se definir o
possuía. Argumentava-se que essa ênfase esportiva conteúdo a ser abordado pelos professores de edu-
era sentida em outros lugares da sociedade e que cação física, mais uma vez, dava-se na tentativa de
na escola a presença dessa prática corporal não de- superar o paradigma biológico, anatômico, fisioló-

95
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

gico e reduzido à técnica desportiva. Já ficou claro Observamos que nas últimas décadas, a Educa-
que é difícil essa tensão não ser mencionada nas dis- ção Física tem sido alvo de reflexões filosóficas,
pedagógicas, sociológicas, conceituais, entre
cussões sobre a história da educação física. Aliás, foi
outras, que têm proporcionado grandes avan-
a explicitação desse embate que levou ao estímulo ços no sentido de delinear novas intervenções
para pesquisá-la historicamente, enxergando-a em pedagógicas, bem como no fato de situá-las
realidades que não apenas a nossa. como área acadêmica a partir de definições de
seu objeto de estudo (MELO, 2006, p. 107)
De qualquer maneira, essa busca conceitual em
relação ao ser da educação física se mostrou como
um luta política e epistemológica, relacionada aos Chamo sua atenção para palavras importantes na
modos como entendemos e ensinamos assuntos citação, como “delinear novas intervenções peda-
concernentes ao corpo, ao movimento corporal gógicas” e também “situá-las como área acadêmica”.
existente em alguns contextos. Digo “em alguns Elas evidenciam que socializar conhecimento na es-
contextos” pois nem todos os movimentos corporais cola e produzir conhecimento na universidade são
foram assumidos como interessantes ou abordáveis processos diferentes, porém interligados. Para Melo
pelos professores de educação física. (2006), a clareza dessa ligação, a ser providenciada
No ano de 2002, aconteceu na cidade de Na- pelas reflexões filosóficas, pedagógicas, sociológicas
tal o I Colóquio Brasileiro sobre Epistemologia e históricas, é fundamental para as definições relati-
e Educação Física. Ao lado de ser um evento vas ao objeto estudo, perseguido pela pergunta ela-
importante por evidenciar a forma como as dis- borada por ele, apresentada imediatamente anterior.
cussões filosóficas também são empreendidas no Bracht (2006) também toma a mesma pergunta
campo da educação física, dele resultou um livro como trampolim de suas reflexões. Para o autor, o
intitulado “Epistemologia, saberes e práticas da esforço a ser executado sobre a questão é romper os
educação” (NOBREGA, 2006). Obviamente, um limites da “conotação biológico-naturalista”, enxer-
debate muito recorrente no evento foi a relação gando a educação física em sua “necessária vincula-
entre os saberes das ciências de matriz biológica ção com a cultura” (BRACHT, 2006, p. 97). Por essa
e os saberes das ciências de cunho humanístico, razão, continua o autor:
histórico e filosófico. E muito dependente desse
debate, dois capítulos do livro versam sobre as [...] a melhor forma de nominar e caracterizar o
objeto dessa prática social que vimos chaman-
dificuldades em determinar o objeto de conhe-
do de Educação Física, é tomá-la como uma
cimento da educação física. Um deles intitula-se forma de intervenção pedagógica a partir, e
“Educação Física e critérios de organização do com diferentes práticas corporais de movimen-
conhecimento” (MELO, 2006). Depois de per- to (BRACHT, 2006, p. 97).
guntar-se: “Corporeidade, cultura corporal, cul-
tura de movimento ou cultura corporal de movi- Sabendo que o termo “práticas corporais de movi-
mento?” (MELO, 2006, p. 107), o autor endossa a mento” ainda deixaria espaços para ambiguidades,
problemática que tenho tratado neste item, escre- Bracht (2006, p. 98) esclarece que se tratam de práti-
vendo o seguinte: cas “realizadas no mundo do não trabalho - excluin-

96
EDUCAÇÃO FÍSICA

do portanto, aquelas ligadas diretamente ao traba- prescindíveis para nos aproximarmos, ao mesmo
lho e à reprodução”. tempo, dos outros e de nós mesmos.
O que está em jogo nessa construção político- Ao estudar as práticas corporais que propo-
-conceitual é, de um lado, ampliar o entendimento mos nos próximos itens, concretizamos na abor-
de prática, corpo e práticas corporais, englobando dagem histórica inquietações que levam profes-
dimensões sociais, culturais e históricas. Interes- sores contemporâneos a olharem para a prática
sante que, depois de ampliar esse entendimento, o social e caracterizarem a “cultura corporal de
resultado é especificar, limitar, deixar de fora “prá- movimento” como uma cultura formada por gi-
ticas corporais de movimento” que não seriam nástica, esporte, jogos, lutas e dança. É com essa
utilizadas na intervenção pedagógica em educa- compreensão que, entre as muitas práticas cor-
ção física. Silva e Damiani (2005), ao tomarem as porais, priorizamos os elementos anteriores, fo-
práticas corporais como um item de pesquisa e de calizando-os como práticas sociais, como agluti-
intervenção e demonstrarem sua preferência por nadoras de avaliações, percepções e perspectivas
conceituar o conteúdo da educação física como educacionais existentes em diferentes épocas.
“prática corporal” em detrimento à “atividade fí- Ao focarmos essas avaliações, percepções
sica”, também demonstram o peso desse processo e perspectivas, pretende-se romper com um
duplo de ampliação/delimitação do entendimento procedimento analítico muito comum quando
para pensarmos o fazer pedagógico dos profes- se fala em história das práticas anteriormente
sores de educação física. Ao colocarem suas ex- listadas: não serão o foco do estudo o nome de
pectativas formativas, as autoras proporcionam atletas, a mudança de uma técnica esportiva
condições interessantes para que possamos pro- a outra ou listagem de competições e resulta-
ceder à análise histórica de práticas que, em di- dos obtidos pelo Brasil. Enfim, ao tomarmos
ferentes épocas, mesmo sem total consciência de a ginástica, o esporte, a luta, a dança e os jo-
seus participantes e divulgadores, geraram uma gos como objetos de análise histórica, conside-
experiência educativa. Essa experiência é tomada rando-os como “práticas corporais”, o objetivo
como característica das práticas corporais a serem é proporcionar condições para se entender o
estudadas nos próximos itens, pois elas, de algum modo como essas práticas foram ganhando a
modo, realizariam mais intensamente perspecti- importância que hoje possuem na vida de mui-
vas educacionais valiosas para a sociedade. Esse tas pessoas, no valor econômico e cultural que
valor se concretizaria na possibilidade dessas prá- em torno delas se avolumam, e, sobretudo, en-
ticas de fomentarem significados mais legítimos tender a maneira como a prática de cada uma
na vida de quem as executa por meio do desenvol- delas, em diferentes épocas, veiculou valores e
vimento de uma necessária percepção da alterida- projetos sociopolíticos que foram importantes
de daqueles com quem se divide, de muitas for- à construção das sociedades nas quais existi-
mas, os tempos e os espaços durante a execução ram, bem como são importantes para a exis-
dessas mesmas práticas. Dito de outro modo, as tência de possibilidades pedagógicas para a
práticas corporais entendidas seriam meios im- educação física na escola.

97
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

A GINÁSTICA
98
EDUCAÇÃO FÍSICA

É compreensível que muitos procurem os cursos que simbolizam sua importância o resultado de um
de educação física visando se capacitarem para movimento histórico que evidenciou a importância
trabalharem nas academias de ginástica. Afinal, do corpo, das práticas corporais e da reflexão sobre
em um passeio pelo centro e pelos subúrbios das elas para a sociedade.
cidades, grandes, médias e pequenas, é muito di- Há algumas páginas, você verificou como o
fícil não passarmos em frente de uma. O mais co- nascimento do mundo moderno, em que a ciência
mum é vermos várias. floresceu como forma de conhecimento e o capita-
As modalidades de ginástica que nelas encon- lismo como modo de produção, implicou um novo
tramos são variadas. Com música, apenas com apa- olhar para o corpo. Estudamos que esse novo olhar
relhos, com pesos, mais agitadas, mais tranquilas, sobre o corpo não foi um elemento isolado ou se-
a expansão de academias de ginástica evidenciam cundário ao nascimento de uma sociedade que
o modo como o exercitar o corpo, separando, al- fazia frente ao dogmatismo da sociedade feudal.
ternadamente, as partes exercitadas, ganhou uma Tratava-se de uma verdadeira revolução social, em
imensa popularidade. Ou seja, a adesão à essas que novos entendimentos sobre sociedade, os seres
práticas denota parcializar o trabalho muscular, as humanos, as instituições e sobre o corpo estavam
valências físicas a serem trabalhadas, enfim, pensar nascendo. Esse processo foi descrito como mani-
o corpo como se ele fosse uma máquina é uma es- festo no desenvolvimento da prática anatômica,
pécie de sabedoria que paira o dia a dia das aca- elemento central e ao mesmo tempo resultante do
dêmicas. Com isso, não estou secundarizando que método científico.
muita desinformação, incorreção, abuso de drogas e Interessante verificar que foi muito relevante
outras coisas vis não sejam feitas em nome do corpo nessa colocação do corpo humano como um dos
perfeito. Mas, como vimos na unidade anterior, esse pontos de apoio da transformação que acontecia
culto ao corpo que acontece nesses “templos” busca um olhar atento à forma como os gregos da épo-
concretizar o olhar esquadrinhador e parcializador ca clássica concebiam a dimensão corpórea do ho-
da ciência em relação ao corpo humano. Nesse sen- mem. Eram comuns os escritores dos séculos XVI,
tido, tanto as ginásticas que vemos hoje existirem XVIII e XVIII defenderem o valor do corpo em vá-
nas academias quanto as variadas modalidades es- rias dimensões da vida societária, justificando que
portivas ginásticas são práticas que exemplificam essa importância era reconhecida pelos gregos. É
de modo muito claro a maneira como o “olhar cien- no nascimento do mundo moderno que “educação
tífico” em relação ao corpo tem uma importância física” se torna uma expressão a ganhar cada vez
muito grande no mundo atual. mais notoriedade. Para citar um exemplo, um fi-
Entretanto, essa quase obviedade nem sempre foi lósofo tão importante no mundo moderno como
assim percebida. Ela foi construída em um processo John Locke (1632-1704), ao escrever uma obra
bastante interessante de ser estudado. Afinal, ao nos chamada “Alguns pensamentos sobre a educação”
debruçarmos nesse estudo, mais uma vez temos a (1693 [2012]), inicia sua reflexão falando sobre a
possibilidade de perceber um fato corriqueiro em saúde, em parágrafos onde as referências ao mundo
sua complexidade, enxergando nos automatismos grego são frequentes.

99
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O termo “ginástica” vem de um verbo grego que, no corpo algo a ser escrutinado pelo espírito, pelo
diferentemente do que aconteceu no mundo mo- olhar científico. Olhar esse que será fundamental
derno e do que acontece ainda hoje, não significa no isolamento de variáveis, como o bom funciona-
“modalidade” ou “modalidades”. O verbo em ques- mento da máquina, do organismo, assumidos como
tão significava algo mais próximo de “treinamento”, importantes para a sociedade e para os indivíduos,
“preparação” para um esforço. Preparação essa feita mas tomados como diferentes e não constituintes da
com o corpo nu (gymnos). Essa transformação con- razão humana que constrói a vida em sociedade, a
ceitual, aparentemente sem importância, diz muito linguagem, as artes etc.
da força da ginástica do mundo atual, do mesmo É essa forma de entender o corpo que será fun-
modo que nos ajuda a pensar na grande distância damental na criação da ginástica, tal como se passou
entre o mundo moderno e o mundo grego, no que a entendê-la a partir do século XVIII. Se essa visão
tange ao corpo. cientificista foi ganhando força a partir do século
Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que o XVI, é importante não desconsiderar que ela não
termo “educação física” não existia na língua grega. foi se impondo de forma tranquila ou sem enfrentar
A palavra grega para corpo é “soma”, o que deveria resistências. Afinal, o desencantamento do mundo
levar esse olhar ao mundo grego por parte dos mo- foi um processo lento, difícil e que implicava na re-
dernos mais proximamente a uma “educação so- construção de olhares, algo dificilmente executável
mática”. Physis, de onde veio a conotação moderna no espaço temporal de poucas gerações. Isso é parti-
de “educação física”, como nos ensina Silva (2001, cularmente verdadeiro no que diz respeito ao modo
p. 28), para os gregos significava uma “identida- como as pessoas percebiam seus corpos e as ativida-
de, uma irmandade entre todos seres” para quem des que com ele faziam.
a vida em comunidade era fundamental. Para ci- A ambição civilizatória que vai sendo fortaleci-
mentar essa afinidade comunitária, política e ética da com a expansão desse olhar científico em relação
à physis, o “treinamento feito com o corpo nu” era ao corpo é instrumentalizá-lo, conhecendo-o cada
fundamental: vez mais, eliminando qualquer prática ou qualquer
representação que impedisse a maximização de suas
É com tal perspectiva que é necessário perceber forças. Soares (2002) define de um modo bastante
o incentivo à ginástica, pois a prática corporal
claro o perfil do mundo que estava se descortinando
nunca é realizada apenas com a finalidade de
fortalecer o corpo e não aparece em separado na modernidade:
da música, assim como da filosofia e da política
(SILVA, 2001, p. 30). Para o ideário burguês que se desejou universal,
tudo teria utilidade, nada podia ou devia ser
desinteressado e a finalidade suprema das ações
Muito diferente é a situação do mundo moderno e se concentrava no lucro. Até nas exercitações
da sua educação física. Silva (2001, p. 30) pondera: físicas descobriu-se um valor que se relaciona-
“É necessário diferenciar esta concepção ontológica va com a produção, quer na indústria, quer na
clássica daquele dualismo que se verá explicitar em quantidade de filhos para servir ao capital e à
pátria (SOARES, 2002, p. 58).
Descartes” e que caracteriza o olhar científico que vê

100
EDUCAÇÃO FÍSICA

Enquadrar os ritmos existências na forma de vida res pensante e res extensa. Foi a ginástica a prática
urbana e industrial encontrou resistência. Do pon- que inaugura no mundo moderno a possibilidade
to de vista corporal, fizeram frente à disciplina de uma educação do físico, distante da educação
necessária para a instauração desse novo mundo somática que existiu na Grécia e foi superada pela
hábitos e práticas que iam de encontro à serieda- expansão da ciência. Foi esta, com suas medidas a
de e ao cálculo, os quais eram submetidos ao coti- determinar intensidades, ritmos e amplitudes, que
diano dos séculos XVII e XVIII. Soares (2002), ao sustentou a expansão das diferentes escolas ginásti-
pensar no desenvolvimento da nova ética corporal cas que surgem.
baseada na ciência, verifica que qualquer prática
marcada pelo lúdico, pela inutilidade, pela alegria Ciência e técnica, como formas específicas de
saber, determinarão os ângulos corretos de
e pelo excesso contrariava o olhar burguês que se
cada alavanca que possui o corpo visto como
lançava sobre o corpo. O que estava em jogo era a máquina; indicarão o quanto de força é pre-
possibilidade de adequar as práticas corporais ao ciso imprimir para um impulso e um salto;
ideal utilitário que se fortalecia. A desqualificação quais as partes do corpo (totalmente esqua-
de práticas circenses e acrobáticas operou-se na drinhado) são mais resistentes. As atividades
corporais então, paulatinamente, são classi-
consideração dessas práticas, expurgando-as, por
ficadas, analisadas e, meticulosamente, rede-
meio da ciência, de tudo o que pudesse compro- senhadas pelas mãos dos homens de ciência
meter a civilização que se colocava: (SOARES, 2002, p. 59).

Ora, aquela agilidade demonstrada pelos acro- Langlade e Langlade (1970) nos ajudam a en-
batas e funâmbulos haveria de ser útil. Era
xergar o modo como esse esquadrinhamento do
preciso pensá-la fora daquele universo, que ao
olhar burguês se mostrava desregrado, ocioso e corpo, que está na gênese e no desenvolvimento
“quase” imoral, em que nascera. Os acrobatas e da ginástica, manifestou-se em diferentes escolas
funâmbulos eram a má consciência, o irracio- de ginástica. Elas passaram a ganhar notoriedade
nal dos círculos científicos que elegiam a “gi- a partir do final do século XVIII, dando existên-
nástica científica” como prática corporal capaz
cia ao movimento ginástico europeu. Eles falam
de contribuir na formação do corpo civilizado
(SOARES, 2002, p. 59). em escola alemã, escola sueca e escola francesa
como as mais representativas, aquelas que aglu-
A importância da ginástica justifica-se pela possibi- tinaram professores e participantes em torno de
lidade de ser tomada como prática corporal guiada uma prática corporal que foi, certamente, uma das
pela racionalidade da ciência. Foi a ginástica que, responsáveis por muito do que hoje vemos sobre a
durante os séculos XVIII e XIX, concretizou a con- atenção que se dá ao corpo em diferentes aspectos
sideração científica sustentada na dicotomia entre da vida social.

101
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

OS JOGOS
Do mesmo modo como ocorreu com as outras prá- damos o jogo, devemos especificar aquilo de que
ticas corporais estudadas neste livro, ao se apresen- precisamente se trata ou, alternativamente, devemos
tar uma abordagem histórica dos jogos, serão busca- reconhecer a variedade de coisas que podem ser
dos modos variados de conceber ou entender o que abordadas pelo tal termo. Tanto um caminho, como
eram os jogos e a importância que eles tinham em o outro, apresenta possibilidades e dificuldades.
outros períodos da história. Não seria possível neste No campo da educação física escolar, uma das
livro estudarmos a história dos diferentes objetos e obras que mais impactaram a consideração dos jo-
das muitas práticas caracterizadas como lúdicas. gos como importantes a esse componente curricular
Diferentemente do que acontece com termos foi o livro “Educação de Corpo Inteiro”, publicado
tais como esporte, lutas ou ginástica, quando estu- por João Batista Freire em 1994. Ele inicia o item

102
EDUCAÇÃO FÍSICA

quatro da obra afirmando: “Existe muita confusão a mesmo termo para diferentes práticas (ou o empre-
respeito dos termos brinquedo, brincadeira, jogo e go de um termo a muitas práticas), há a questão de
esporte. As definições dessas palavras em nossa lín- saber a quem ou a qual faixa etária identificamos a
gua pouco as diferenciam” (FREIRE, 1994, p. 116). existência do jogo. Voltando, ainda mais uma vez,
Com efeito, você se lembra de que uma das imagens à imagem dos acadêmicos de educação física que
por mim usadas pela introduzir o conteúdo deste li- “jogam”, é fundamental não esquecermos que essa
vro foi a narração de acadêmicos “jogando”. Naquela tradicional imagem publicitária associada aos cur-
acepção, “jogo” confunde-se com a situação com- sos de educação física, em alguns momentos, causa
petitiva gerada pela disputa em uma modalidade algum incômodo: essas imagens deixam transpare-
desportiva. Todavia, como nos esclarece Kishimoto cer que no curso não se estuda, não se trabalha, não
(2015), para pensarmos na importância do jogo na se faz coisas sérias, apenas “brincamos”, “passamos o
história da infância e da educação é necessário sa- tempo”. Nesse olhar, esses acadêmicos seriam menos
bermos que há diferenças entre brinquedo, jogo e qualificados que os acadêmicos dos outros cursos,
brincadeira. pois, aqui ainda estaríamos a fazer coisas que fazía-
Em primeiro lugar, devemos manter à nossa mos quando éramos crianças, em uma imagem que
frente a pluralidade de fatos que podem ser deno- atribui uma caráter pueril, ou seja, fácil, descompro-
minados de jogos ou estarem ao termo relacionados. missado, light, aos cursos de educação física.
Nesse ponto, algumas reflexões de característica
Denominam-se jogos, situações como dis- histórica podem nos ajudar a pensar nessa situação
putar uma partida de xadrez, um gato que
de uma forma mais complexa. Em primeiro lugar,
empurra uma bola de lã, um tabuleiro com
piões e uma criança que brinca com boneca. essa desconsideração em relação ao lúdico é deve-
Na partida de xadrez, há regras externas que dora de uma tradição social que se construiu base-
orientam as ações de cada jogador, tais ações ada na valorização do pragmático e do cálculo, em
dependem, também, da estratégia do adver- que homens e mulheres são vistos como caracteri-
sário. Entretanto, nunca se tem a certeza do
zados pela razão, pelo trabalho e pelo pensamento
lance que será dado em cada passo do jogo.
Esse tipo de jogo serve para entreter amigos abstrato. De algum modo, você já acompanhou o
em momentos de lazer, situação na qual pre- processo de construção dessa sociedade quando
domina o prazer, a vontade de cada um parti- foi abordado o desenvolvimento da ciência e o im-
cipar livremente da partida. Em disputa entre
pacto que ela teve nas formas como a sociedade
profissionais, dois parceiros não jogam pelo
prazer ou pela vontade de fazer, mas são obri- passou a pensar em si mesma e também na natu-
gados por circunstâncias como o trabalho ou reza. Por outro lado, o século XX, em seus desdo-
a competição esportiva. Nesse caso, pode-se bramentos históricos (nazismos, bombas atômicas,
chama-lo de jogo? (KISHIMOTO, 2015, p. 1).
problemas ecológicos, terrorismo) evidencia que a
avaliação racionalizante das capacidades humanas
Para deixar a situação ainda mais complexa e passí- não encontra respaldo na realidade, passível de ser
vel de uma reflexão cuidadosa é que, aos confusos observada na história daquilo que Eric Hobsbawn
limites entre atividades, levando ao emprego de um (1998) chamou de “longo século XX”.

103
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Em segundo lugar, há todo um conjunto de mais dramáticos da história humana, que desem-
análises culturais, históricas e filosóficas que bus- bocou na morte de milhões de pessoas. Huizinga
cam evidenciar o lugar da dimensão lúdica, do (2010) enxerga no jogo, na dimensão lúdica das re-
jogo, na construção dos laços sociais que, em últi- lações, o traço mais marcante da humanidade: mais
ma instância, dão existência à vida em sociedade. que pensar (lembremos da ciência e da filosofia),
Nesse sentido, bastante eloquente é o livro de Johan mais que fazer (lembremos do trabalho, da grande
Huizinga (1872-1945), Homo ludens (HUIZIN- indústria e economia que se internacionalizava), é
GA, 2010), publicado em 1936. Já no início do seu pelo jogo que “a civilização surge e se desenvolve”
prefácio, podemos ler: (HUIZINGA, 2010, p. 1). Como podemos caracteri-
zar esse elemento tão importante? Kishimoto (2015),
Em época mais otimista que a atual, nossa es- ao estudar o pensamento de Huizinga (2010), define
pécie recebeu a designação de homo sapiens.
o jogo da seguinte maneira:
Com o passar do tempo, acabamos por com-
preender que afinal de contas não somos tão
racionais quanto a ingenuidade e o culto da [...] o prazer demonstrado pelo jogador, o ca-
razão do século XVIII nos fizeram supor, e ráter “não-sério” da ação, a liberdade do jogo
passou a ser de moda designar nossa espécie e sua separação dos fenômenos do cotidiano, a
como homo faber. Embora faber não seja uma existência de regras, o caráter fictício ou repre-
definição do ser humano tão adequada como sentativo e a limitação do jogo no tempo e no
sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropria- espaço (KISHIMOTO, 2015, p. 4).
da que esta, visto poder servir para designar
grande número de animais. Mas existe uma Essas considerações nos ajudam a pensar a impor-
terceira função, que é verificada tanto na vida
tância do jogo, enquanto um artefato educacional.
humana como na animal, e é tão importante
como o raciocínio e o fabrico de objetos: o Embora não se deva perder de vista que “o brin-
jogo. Creio que, depois de homo faber e talvez quedo tem sempre como referência a criança e não
ao mesmo nível do homo sapiens, a expressão se confunde com a miríade de significado que o
homo ludens merece um lugar em nossa no-
termo jogo assume” (KISHIMOTO, 2015, p. 8), é
menclatura (HUIZINGA, 2010, p. 1).
possível verificar que a crescente importância do
jogo no meio educacional se deu pelo surgimento
Peço que você dê mais um pouco de atenção a esse da noção de infância e pela valorização das práti-
ponto: o livro do qual a passagem foi retirada foi es- cas corporais como elementos educacionais. Nes-
crito no final da década de 1930, um dos momentos se particular, não é irrelevante o fato de em mui-

104
EDUCAÇÃO FÍSICA

tas línguas (inglesa, francesa e alemã...talvez haja Elogios à liberdade de brincar, aos “folguedos in-
outras) o verbo para brincar e jogar ser o mesmo fantis”, marcaram muitos pensadores que tentaram
(play, jouer, spielen). dar à educação uma característica mais moderna,
Se voltarmos os olhos para o nascimento da so- tentativa essa que culminou na obra “Emílio ou da
ciedade moderna, nos séculos XV, XVI e XVII, no- Educação” de Jean-Jacques Rousseau (1992), pu-
tamos que o prazer do jogador passou a ser algo a blicada em 1758.
ser gerado pelos professores no momento de realizar Lembre-se que é no século XVIII que a ginás-
seus ensinamentos. Para termos um exemplo ilus- tica ganhou espaço pela racionalização da movi-
trativo desse elogio do prazer no momento em que mentação corporal. Apesar de toda importância
se ensina-aprende, voltemos os olhos para Coménio que essa racionalização angariou no século XIX,
(1592-1670), considerado o “pai da didática”, que a ela foram feitas muitas críticas, principalmente
em 1638 escreveu o seguinte: quando aplicada às crianças. Nos livros de história
são comuns fotos de crianças enfileiradas, fazendo
O processo seguro e excelente de instituir, em movimento sincronizados, com expressões sérias,
todas as comunidades de qualquer reino cris-
compenetradas. Mesmo com todas as tentativas de
tão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a
juventude de um e de outro sexo, sem excetu- divulgar os ambientes educacionais como organi-
ar ninguém em arte alguma, possa ser forma- zados, essas fotos evidenciam todo um trabalho
da nos estudos, educadas nos bons costumes, pedagógico de docilização das crianças. Postura
impregnada de piedade, e, desta maneira, possa avaliada como educativa por parte de alguns peda-
ser, nos anos da puberdade, instruída em tudo o
gogos. Mas na virada do século XX, muitas críticas
que diz respeito à vida presente e à futura, com
economia de tempo e de fadiga, com agrado e à ginástica e ao seu caráter demasiadamente siste-
com solidez (COMÉNIO, 1985, p. 43). mático foram se avolumando, até o momento em
que estudiosos passaram a endossar o valor de re-
Compreende-se, desse modo, que a ideia de ensi- conhecer nos espaços educacionais as brincadeiras
nar com agrado esteve relacionada ao fato de se infantis, do mesmo modo que o esporte, tanto um
defender que os professores guiados por uma di- quanto o outro, carregados de ludicidade já vista
dática deveriam ensinar o que desejassem, captan- como extremamente valiosa na realização de proje-
do uma determinada natureza infantil que passava tos educacionais. São essas algumas das razões que
a ser avaliada fundamental à educação e inextri- nos fazem verificar a posição ocupada pelos jogos
cavelmente ligada ao prazer, ao jogo e ao corpo. no campo da educação física.

105
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O ESPORTE
Abordar historicamente o esporte é uma oportuni- ses eventos manifesta-se no empenho dos países
dade interessante para verificarmos a maneira como em participarem ou sediarem essas competições.
a validade da história no incremento de nossa capa- Ao lado da corrupção gerada nas votações em que
cidade de pensar, o que nos interessa hoje, reside na se escolhem as cidades-sede, os autores sublinham
possibilidade de ela nos fazer estranhar algo com o uma espécie de mercado internacional de atletas
qual estamos inegavelmente acostumados. de alto nível, em que atletas são naturalizados em
A presença do esporte em nossa sociedade nos outra nacionalidade para viabializar a participação
dias de hoje é algo facilmente perceptível. Pensemos desses países nos jogos. Os autores citam o exemplo
na importância que possuem os eventos desportivos. de jogadores de vôlei de praia brasileiros que “se
Essa importância tem várias faces que nos fazem en- tornaram” cidadãos da Geórgia para disputarem os
xergar no esporte um elemento incontornável para jogos por lá, mesmo sem nunca terem ido ao país
entendermos o mundo contemporâneo. Vigarello que “representavam” (SOARES; VAZ, 2009, p. 482).
(2002) diz que o esporte “incarna, caricaturalmen- Tenistas chineses, corredores quenianos e jogado-
te, a imagem do tempo atual Por esse motivo, “mais res de futebol brasileiros são outros exemplos que
que qualquer outra prática, o esporte revela nossas nos permitem perceber a maneira como a partici-
sociedades” (VIGARELLO, 2002, p. 10). pação desses eventos é importantes. O curioso nes-
O fascínio gerado por eventos como a Copa do se processo é o caráter globalizado desse mercado,
Mundo de Futebol ou os Jogos Olímpicos eviden- servindo para fortalecer o sentimento nacional dos
ciam que essa prática corporal consegue mobilizar países que buscam esses novos cidadãos. Soares e
pessoas do mundo inteiro, tocando países possui- Vaz (2009) mostram que as instâncias organiza-
dores de variadas estruturas sociais e culturais. So- cionais desses eventos têm alguma consciência da
ares e Vaz (2009) advertem que a importância des- importância do esporte no fomento de sentimen-

106
EDUCAÇÃO FÍSICA

tos nacionalistas, sendo esses sentimentos um dos hoje são utilizados pela transmissão de imagens de jo-
estímulos à globalização do esporte, por sua vez. gos e competições, criando um cânone estético que,
Com efeito, quando assistimos às disputas, é muito indubitavelmente, foi fundamental para que o esporte
difícil dissociarmos a paixão que se sente do país se tornasse o que é. Por conta de tudo isso, um dos
que é representado pelo atleta em ação. momentos mais importantes dos megaeventos é o di-
Se a importância do esporte enquanto um ele- reito de imagem, o direito de transmitir as contendas
mento forjador de pertencimentos nacionais não é e analisá-las nos programas esportivos por meio de re-
menosprezado, a importância econômica dessa prá- petições em diferentes velocidades dos lances e joga-
tica transcende os contratos estabelecidos entre pa- das mais importantes para o resultado que se obteve.
íses e atletas que são escolhidos para participarem Soares e Vaz (2009) sintetizam o processo que analisei
do jogos. Refiro-me ao mundo econômico que se anteriormente em um questionamento que evidencia
desenvolve em torno das competições. o lugar do esporte na sociedade contemporânea:
Esse universo econômico pode ser vislumbrado fa-
cilmente no fato de a produção e comercialização de A estrutura tecnológica (satélite, internet, trans-
portes aéreos, etc.) possibilitou novas compres-
roupas, equipamentos, alimentos e uma quase infinida-
sões de tempo e espaço, formando novas estru-
de de bens consumidos terem como apelo um certo esti- turas de relações virtuais e desterritorializadas
lo esportivo. É fácil notar a visibilidade que possuem as que, por sua vez, configuram novas subjetivida-
diferentes marcas de produtos esportivos que disputam des em nosso tempo. Nessa direção, o esporte
entre si o gigantesco mercado que se constrói em torno moderno ou qualquer outro bem simbólico não
poderia deixar de ser afetado por esse processo.
da performance dos atletas. Esses transformam-se em
Partindo desse princípio, perguntamos: como o
agentes publicitários de camisetas, calçados, agasalhos, esporte moderno, que foi instituído estrutural-
vitaminas, aparelhos eletrônicos, produtos de beleza, mente a partir da configuração dos Estados-na-
gerando uma riqueza que não era existente até o fim ção e auxiliou a fixar formas de subjetivação em
torno das identidades nacionais, está se adap-
do século XIX. O século XX testemunhou o surgimen-
tando aos processos de globalização em curso?
to de um grande mercado proporcionado pela atração (SOARES; VAZ, 2009, p. 489).
que o esporte fomentou em escala planetária.
Outro modo de enxergamos o quão valioso é o Outro meio de averiguarmos a imponência com a
esporte é a relação que se estabelece entre os eventos qual o esporte toca a vida das sociedades contem-
desportivos e sua transmissão. Em primeiro lugar, porâneas é por meio de seus impactos nos proces-
devemos perceber o papel que os avanços tecnológi- sos de construção de subjetividades. Levar a vida na
cos tiveram na popularização do esporte, que, em sua esportiva tornou-se, há algum tempo, um sinal de
configuração moderna, já nasceu em um momento sabedoria, colocando o esporte como uma prática
capaz de capturar imagens e veiculá-las. Um exemplo formativa em vários sentidos. O mais óbvio é a ma-
muito ilustrativo desse fato é a importância de “Olym- neira como os atletas se tornaram modelos a serem
pia”, filme dirigido por Leni Riefensthal em 1936 e en- alcançados pelas crianças e jovens. Comumente,
comendado por Hitler. Ao assistirmos ao filme, ficam são divulgadas iniciativas educacionais que têm no
evidenciados muitos dos enquadramentos que ainda esporte seu ponto de apoio, vendo nele a condição

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

para o desenvolvimento de muitas capacidades in- A análise de Mascarenhas (2009) nos ajuda a deline-
telectuais, morais e sociais. São frequentes, por isso, ar características do tal mundo esportivo, marcado,
narrativas em que a vida de atleta, marcada por de- então, pela mobilização de muitas pessoas em tor-
monstrações de superação, coragem e respeito às no não apenas do consumo esportivo propriamente
regras e aos companheiros ou concorrentes, que dito, mas, também, em torno da sua realização prá-
embalam as expectativas não apenas das crianças e tica. Isso engloba desde o atleta e seu treinador, pas-
jovens, mas de pais, educadores e políticos. sando pelos responsáveis técnicos em transmiti-los,
Não há como separarmos a importância políti- comentá-los e ensiná-los, chegando até empresários
co-econômica do esporte de sua relevância forma- que lucram fortunas no seu patrocínio e na divulga-
tiva de subjetividades no mundo atual. Todavia, se ção de seus produtos atrelados à imagem da vitória.
quisermos entender o processo histórico que levou o Desse modo, pensar historicamente o espor-
esporte a se tornar um dos elementos característicos te significa responder a uma questão colocada por
de nossa sociedade, a separação é necessária. Ao fa- Pierre Bourdieu (2002, p. 173), em 1978: “Como
zermos essa separação, constataremos que o esporte podemos ser esportivos?”. Ao buscar respondê-la,
deve muito de sua força às expectativas educacio- ele pondera ser necessário “primeiramente questio-
nais que aglutinou no século XIX e início do XX. nar as condições históricas e sociais de possibilidade
Nesse sentido, Mascarenhas (2009) deixa claro que desse fenômeno social que nós aceitamos bem facil-
para entendermos a história dos esportes, a princi- mente como se ele fosse óbvio, o ‘esporte moderno’”
pal questão não é a sucessão e ou criação de diferen- (BOURDIEU, 2002, p. 174).
tes práticas desportivas, mas é a investigação do que Um movimento analítico muito importante e
passou a fazer essas práticas serem desportivas, di- igualmente difícil aos pesquisadores do campo da
ferenciando-as, assim, das práticas então existentes. história é buscar delimitar no processo de cons-
Essa diferenciação, entre outras coisas, é marcada trução de qualquer fenômeno pontos de ruptura e
por características que definem o que Mascarenhas de continuidade na relação entre algo que existia e
(2009) chama de “campo desportivo”, que pode ser, algo que passou a existir. No caso do esporte, Melo
resumidamente, assim descrito: (2010) nos explica que a palavra sport já era usada
na Inglaterra desde o século XV, mas com sentidos
a) Organiza-se em forma de clubes, federações, diferentes aos do esporte moderno. Inicialmente, no
confederações e outras entidades locais, nacio-
idioma francês, o vocábulo se relacionava à diver-
nais e internacionais; b) Possui um calendário
próprio, já não mais sendo praticado estrita- são , sendo que apenas no século XVI sport passou
mente de acordo com outros tempos sociais. c) a ser correlato de “jogo que envolve atividade física”
Envolve um corpo técnico especializado cada (MELO, 2010, p. 84), associando-se a uma prerroga-
vez maior (treinadores físicos, dirigentes, gesto- tiva aristocrática apenas no século XVIII.
res, psicólogos, médicos, entre muitos outros).
Mas é no século XIX que o sport conhece um mo-
d) Gera um enorme mercado ao seu redor, que
extrapola até mesmo o que a princípio poderia mento de grande importância para sua expansão. E
ser considerado específico da prática esportiva isso se dá pela vinculação da ideia de diversão com
(MASCARENHAS, 2009, p. 513). movimento corporal com a percepção de que ele seria

108
EDUCAÇÃO FÍSICA

uma “prática de grande utilidade para educar e for- “popularização do esporte e sua extensão às massas
mar os jovens das elites que ocupariam os espaços de puseram em relevo as preocupações com a mocida-
liderança no Império Inglês” (MELO, 2010, p. 91). Ou de e a infância”.
seja, o esporte moderno se diferenciou das práticas e Quais práticas encarnavam esse conjunto de
jogos populares pela explícita vinculação da movi- valores? Melo (2010) nos mostra que foram Ru-
mentação corporal com projetos formativos sociocul- gby, Boxe, Remo, passando pelo desenvolvimento
turais e políticos. Essa afirmação também é devedora dos esportes coletivos e culminando no fato de se
das análises de Bourdieu (2002). Ele afirma que : ter inventado o país do futebol (HELAL; SOARES;
LOVISOLO, 2001) que deram início ao que pode-
Parece indiscutível que a passagem do jogo ao ríamos chamar de esportivização da sociedade. De
esporte propriamente dito tenha se efetivado nas
qualquer modo, no momento em que ser esportivo
grandes escolas reservadas às ‘elites’ da socieda-
de burguesa, nas public schools inglesas onde os dava seus primeiros passos, o discurso educacional
filhos da aristocracia ou da grande burguesia preponderava sobre o espetáculo. Não é a isso que
apropriaram-se de um bom número de jogos assistimos atualmente, não é?
populares, ou seja vulgares, e os submeteram a
uma mudança, transformando-os em exercícios
corporais (BOURDIEU, 2002, p. 177). SAIBA MAIS

Com isso, essas práticas tornam-se sport, agora


“concebido como uma escola de coragem e de viri- Se de um lado o nascimento da sociedade e
a importância que ela deu à análise científica
lidade” (BOURDIEU, 2002, p. 179). A importância do corpo foram fatos importantíssimos para
desse processo é imensa para o assunto que estamos o surgimento de discursos e ideias favoráveis
discutindo. Afinal, podemos enxergá-lo em mui- à adesão de práticas corporais, é na vira-
da do século XX que essas práticas passam
tas realidades, inclusive no Brasil. Em que pese as a ocupar um lugar de inegável destaque.
necessárias advertências contra a consideração que Competições esportivas tornaram-se mais
avalia o nascimento do esporte como um fenômeno frequentes, estudos sobre a importância
de variadas formas de ginástica buscavam
globalizado (SOARES; VAZ, 2009), não há como ne- convencer as pessoas a abraçarem uma vida
gar que esse processo de esportivização da sociedade com mais movimento. Fundamental nessa
tocou muitas realidades diferentes entre si em ques- revolução somática (JENSEN, 2013) foi a cons-
trução de um olhar mais atento ao que se
tões culturais e religiosas, mas que viram no esporte chamou de natureza: aproximar o homem
uma prática importante em muitos aspectos. Destes da natureza e distanciá-lo das artificialidades
aspectos, a análise aqui feita endossa uma predomi- do mundo urbano fez com que exposições
ao sol, banhos de mar, roupas mais curtas e
nância das preocupações educacionais. suar a camisa passassem a compor o pano-
O mesmo ocorre no Brasil. A expansão dos es- rama comportamental moderno das grandes
portes ocorreu de um modo intenso, sobretudo no cidades no mundo e no Brasil nas primeiras
décadas do século XX.
fim do século XIX e primeiras décadas do século
XX. Linhales (2009, p. 341), ao estudar a história Fonte: o autor, baseado em Soares (2016).

esportiva no início do século XX, constata que a

109
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

AS LUTAS E AS
ARTES MARCIAIS
No campo da educação física, há alguns anos, tem conquistado bastante visibilidade, mas pela pu-
sido feita a tentativa para melhor captar a impor- jança econômica construída em torno das dispu-
tância cultural, esportiva e pedagógica das artes tas de Artes Marciais Mistas (MMA), associadas
marciais. Os desafios para o sucesso no alcance à marca Ultimate Fighting Championship (UFC),
desse objetivo são grandes, considerando a imen- massivamente consumidas em escala mundial.
sa quantidade de práticas e estilos dentro de uma Awi (2012) mostra que a UFC se tornou uma
mesma modalidade. marca que agrega mais valor que outras marcas
Além dessa dificuldade, nem um pouco ne- esportivas extremamente relevantes, como a Liga
gligenciável, há o fato de muitas dessas práticas de Futebol Americano (NFL) e a Liga America-
serem também esportes e terem uma organização na de Basquete (NBA). Os números são impres-
burocrática abrangente e participante em eventos sionantes: “Seus eventos chegam pela televisão a
esportivos em escala mundial. Mas não é apenas seiscentos milhões de lares em 145 países e em 22
pela presença em jogos olímpicos que as lutas têm idiomas” (AWI, 2012, p. 20).

110
EDUCAÇÃO FÍSICA

O maior trunfo do MMA está concentrado no Foi visto no tópico anterior que percebemos
que ele tem de mais simples. É o esporte que como o desenvolvimento histórico do esporte es-
mais se aproxima de uma briga real. Dois caras
teve ligado à promoção da movimentação corporal
dentro de uma jaula sem armas, com o mínimo
de equipamentos. Está acima de barreiras cul- com finalidades formativas. Foi nesse processo que
turais e linguísticas (AWI, 2012, p. 21). a palavra sport deixou de se associar a diversão, pas-
sando a ter uma conotação ligada ao fomento de ca-
Outro meio que nos fez ter bastante contato com o racterísticas morais a serem desenvolvidas por meio
mundo das lutas e das artes marciais foi o cinema. de diferentes práticas. Vimos, também, que com o
Sobretudo, com a popularização de filmes de kun- desenvolvimento do esporte em todo o século XX e
g-fu e de figuras emblemáticas, como Bruce Lee. sua transformação em um espetáculo altamente ren-
Desde a década de 1970, as narrativas envolvendo tável e mobilizador de subjetividades, esse caráter
alunos, professores, lutadores e atletas de artes mar- ainda permanece um tanto quanto presente, mas de
ciais tornaram-se uma dos produtos da cultura pop forma bem menos característica e marcante como
mais característicos do mundo contemporâneo. Di- a que ocorrera no início, nas primeiras décadas do
ferentemente do que ocorre nos dias de hoje, o vín- século XX. Hoje, é razoável um garoto ou uma garo-
culo dessa narrativa não se dava apenas pelo esporte, ta iniciar a prática em determinada modalidade am-
embora competições de artes marciais e lutas sejam bicionando se tornar tão famoso(a) quanto algum
o palco para o desfile do guerreiro e suas qualidades de seus ídolos, embora muitos deles tenham muita
técnicas e, sobretudo, morais. Além disso, mesmo fama e um longo histórico de problemas pessoais e
que o tal guerreiro, em muitos filmes, materialize até criminais.
esse espírito em lutas de boxe, outro traço inegável Esse processo também passa a acontecer na atua-
dessas produções era a veiculação de uma certa liga- lidade das lutas e artes marciais, se pensarmos na po-
ção entre artes marciais e o mundo oriental. Nessa pularidade dos eventos de MMA. Ainda assim, mes-
vinculação, história, religião e a cultura de diferen- mo com essa popularidade e essa identificação de
tes povos do oriente foram instrumentais na ligação pessoas que procuram academias para construírem
dessas práticas corporais com a construção da obe- a condição de se espelharem em seus ídolos midiá-
diência, da disciplina, da concentração e da precisão. ticos (frequentemente possuidores de inquestionável
Minha intenção é que você perceba que, ao abor- competência técnica ladeada por questionável índo-
darmos a história das lutas e das artes marciais, li- le), a associação das artes marciais e das lutas com o
damos com um conjunto imenso de práticas que, cultivo do equilíbrio, da disciplina, do respeito e da
assim como o esporte, beneficiou-se da expansão tranquilidade é algo notório. Essa notoriedade é facil-
técnica dos meios de comunicação. Além disso, são mente constatável quando pais, alunos e professores
práticas que também tiveram sua amplitude aumen- falam sobre a prática que abraçaram, remetendo-a a
tada pela expansão do esporte, confundindo-se com uma tradição filosófica antiga longínqua, dando uma
ele em muitos momentos. Por outro lado, há que se aura de respeito e profundidade que não consegui-
reparar em alguns traços que particularizam as lutas mos encontrar quando se fala do futebol, do voleibol,
e as artes marciais em relação ao esporte. da natação ou de qualquer outra modalidade.

111
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

E é sobre isso que eu gostaria de chamar sua aten- expressa vontade de ver o sangue correr, pela satis-
ção: como podemos entender esse vínculo mais es- fação de quem promovia o ferimento ou a morte de
treito entre as lutas e as artes marciais com aspectos seu inimigo. E isso levanta mais outra questão: como
educativos? Se esse vínculo entre lutas, artes marciais podem, práticas associadas à guerra (mesmo que as
e fomento de variadas virtudes é importante, por justas, inspiradas por Marte), terem conotação edu-
quais razões essas práticas estão distantes da escola, cacional e formativa?
se comparadas ao futebol, voleibol, basquetebol e ou- O relacionamento entre guerra e educação é
tros esportes que dão às aulas de educação seus prin- algo que tem ocupado a reflexão feita em diferentes
cipais (ou, pelo menos, mais recorrentes) conteúdos? sociedades. O nosso hábito de pensar nos países do
Neste momento há muitas pesquisas aconte- oriente quando ouvimos falar em artes marciais di-
cendo para determinar as razões que explicariam ficulta visualizar que no ocidente a “marcialidade”
o fato de práticas corporais tão aproximadas de tem sido uma questão. Afirmando-a em sua neces-
aspectos formativos terem dificuldade de serem sidade ou a negando como algo prejudicial e estú-
também práticas escolares. E isso sem nos esque- pido, é importante lembrar que a Ilíada de Homero,
cermos da forte presença cultural que essas práticas obra primicial na história da literatura ocidental, é
possuem em muitas sociedades desde 1970 em um uma narrativa guerreira em que a bravura e justiça
processo que hoje alcança um patamar de reconhe- dos personagens realizam-se na guerra. Igualmente
cimento que, possivelmente, nunca tenha sido ima- relevante que apenas alguns decênios à frente do pe-
ginado como possível. ríodo no qual se acredita que Homero tenha com-
Para pensarmos historicamente esse conjunto de posto seus poemas, outra obra muito importante,
problemática que cerca a expansão da relevância das “O trabalho e os dias de Hesíodo”, tenha refutado a
lutas e das artes marciais, vamos retomar o pensa- guerra em nome do trabalho. A questão que subjaz
mento de Felipe Awi (2012, p. 21), citado anterior- esse debate é saber o papel a ser desempenhado pela
mente. Ele explica que o sucesso do MMA justifica- guerra e pelo guerreiro, no difícil relacionamento
-se por ele se aproximar da briga real, desenrolada entre o trabalho e o trabalhador que produz a rique-
entre homens “dentro de uma jaula sem armas”. Ou za a ser conquistada ou reconquistada pelo braço
seja, se em todos os esportes a ideia de “embate”, de forte do guerreiro.
“luta” é metafórica, ao abordarmos as artes marciais Ehrenreich (2000), depois de estudar as expli-
a “luta”, a “briga”, a “contenda” torna-se real. cações normalmente dadas ao fato dos homens lu-
Nesse sentido é interessante observarmos o tarem entre si e estudar o século XX, um dos mais
nome dado a esse conjunto de modalidades em que sangrentos da história, constata: “No século XX, a
a luta corporal é momento maior de sua importân- guerra - e a disposição para a guerra, tão integrada ao
cia - o nome do deus da guerra na mitologia romana. sentimento nacionalista - tinha se tornado a forma
Aliás, Marte diferentemente de Ares - deus da guer- unificadora de Estados, oferecendo aos homens um
ra na mitologia grega -, era admirado pela nobreza sentimento transcendental” (EHRENREICH, 2000,
e justiça das guerras que fazia acontecer. Já Ares está p. 25). Para nos fazer enxergar a presença da guerra
mais ligado à guerra bestial, que aconteceria pela em nossa história e no nosso cotidiano, Ehrenreich

112
EDUCAÇÃO FÍSICA

(2000, p. 25) diz: “Hoje, até em tempo de paz o as- Essa defesa da moral da guerra vem de um filósofo
pecto religioso da guerra se manifesta em toda parte”. que via nela um anacronismo cravado no mundo já
A relevância da guerra em nossa história não industrializado e urbano do início do século XX.
deixou intocadas as questões formativas. Afinal, Não é possível dizer que essa importância da
em diferentes períodos existiram elites guerreiras guerra e dos exércitos não tenha causado discor-
(EHRENREICH, 2000) que forneceram modelos dâncias e oposições, mas formar o guerreiro se
pedagógicos a serem alcançados, sobretudo pelos tornou um motivo catalisador de muitos discursos
meninos, levando-os a suportarem ritos de pas- educacionais. Muitos deles aproximados à educa-
sagem que os fizessem sentir capazes de enfren- ção física. Muitos deles fundamentais para o de-
tar os perigos. Enxergando-se como uma estir- senvolvimento das artes marciais modernas e sua
pe, guerreiros e esforços formativos para formar expansão mundo.
guerreiros encontraram práticas e justificativas Quando falamos em artes marciais modernas
que ajudaram a sacralizar a guerra: o menino tor- pensamos na transformação operada sobre um con-
nado guerreiro e seus professores “consideraram junto de práticas com finalidades concretas em situ-
a guerra como uma empreitada heroica e até reli- ações de combate. Essa transformação aproximou o
giosa” (EHRENREICH, 2000, p. 157). cultivo de diferentes técnicas ao cultivo de diferen-
Embora os problemas e os sofrimentos gerados tes caminhos, praticamente, pelo fato de o culto a
pelos combates; embora o incremento tecnológico a guerra ser portador de virtudes marciais visíveis e
dispensar, de modo crescente, a necessidade de for- relevante não nos campos de batalha, mas no dia a
mação específica para soldados; embora a potência dia de uma sociedade moderna.
dos armamentos tornasse a guerra cada vez mais Para ilustrar esse processo, o exemplo japonês é
mortífera; a guerra torna-se, na virada do século um caso esclarecedor. Na última metade do século
XX, um grande artefato pedagógico. O raciocínio é XIX, a sociedade japonesa passou por mudanças
relativamente simples: em um mundo que dispensa culturais, econômicas e políticas que construíram
o esforço físico para a sobrevivência, seja no traba- uma nação aproximada e conectada ao processo de
lho, seja na guerra, é por essa última que as virtu- expansão militarista e imperialista das potenciais ca-
des serão transmitidas à juventude. William James pitalistas europeias e americanas.
(2012), em 1910, ao buscar um equivalente moral da Isso fez com que aquela sociedade impusesse
guerra, disse o seguinte: seus valores e suas prática corporais a um inten-
so processo de revisão. Afinal, muitas delas não
Nós devemos fazer com que novas energias e eram mais condizentes com o novo mundo que se
coragem deem continuidade à virilidade a qual
descortinava à medida que o país se abria às pres-
a guerra tão fervorosamente se apega. As vir-
tudes marciais devem ser um permanente ci- sões econômica, políticas e militares do ocidente.
mento; intrepidez, aversão à moleza, abnegação A modernização do exército, que além de tornar
do interesse privado, obediência ao comando, irrelevante a presença dos antigos samurais, aliada
devem continuar a ser a rocha sobre a qual as à modernização do sistema político e econômico,
nações se constróem (JAMES, 2012, s.p.).
fez com que muitas novas práticas educacionais

113
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

fossem vistas como necessárias. A expansão da es- mática, metodizada. Ora, estudaremos na próxi-
colarização obrigatória, ao lado de práticas educa- ma unidade que discursos como esse também es-
tivas preocupadas com a higiene do corpo, influen- tavam presentes em muitos educadores europeus
ciaram, fortemente, o surgimento do “budo”, ou e americanos que defendiam a importância de
seja, o desenvolvimento de um conjunto de valores determinadas práticas corporais na escola. Des-
que viam na guerra uma inspiração para formar o se ponto de vista, verifique que o nosso hábito de
“novo homem japonês”. De meras técnicas (jutsu), vermos exclusividade oriental o fomento das artes
surgiram caminhos (dô), em que práticas corporais marciais pode ser problematizado: oriente e oci-
foram ressignificadas com visões altamente peda- dente parecem preocupar-se com questões socio-
gogizantes. A importância de Jigoro Kano nessa políticas semelhantes, todas elas dando às práticas
ressignificação é indiscutível, abrindo caminho não corporais grande valor.
apenas para o ingresso do Judô nas escolas japone-
sas, mas para sua expansão por todo o mundo já no
início do século XX. REFLITA
A importância de Kano para essa expansão das
artes marciais reside no fato de ele ter submetido
As práticas corporais sempre fazem parte do
antigas técnicas guerreiras a um processamen- patrimônio cultural de um povo, [...] sendo
to pedagógico e científico, tornando-as passíveis importantes ferramentas na construção de
de serem adjetivadas de educacionais, científicas, identidades: de classe, de gênero, de etnia,
ligadas à construção da ideia de “nação”.
provedoras de um desenvolvimento harmônico de
suas práticas. Tudo isso somado aos frutos morais (Mary Del Priore e Victor Andrade de Melo)

a serem colhidos por meio de uma prática siste-

114
considerações finais

Prezado(a) aluno(a), a grande quantidade de práticas corporais hoje existente,


bem como aquelas que existiram em diferentes períodos da história, é um grande
desafio analítico quando se pretende conhecer o seu passado.
Nesta unidade você verificou que, ao lado dessa dificuldade nem um pouco
negligenciável, possibilidades de estudo bem interessantes se abrem, e a movi-
mentação corporal típica de cada uma dessas atividades agregam-se modos de
ver, perceber e avaliar cada uma dessas práticas. Poderíamos dizer que são esses
modos que explicam o fato de determinadas práticas serem abordadas por deter-
minados profissionais e não por outros.
Nas reflexões desenvolvidas nesta unidade a ideia de que o campo da educa-
ção física lida com o que ficou conhecido como cultura corporal foi importante.
A relevância desse conceito reside, justamente, na possibilidade que ele abre para
estudarmos os esportes, as lutas, as ginásticas, os jogos e a dança como práticas
apenas existentes se conectadas aos contextos históricos em que passaram a exis-
tir e que, sobretudo, foram praticadas e percebidas por diferentes classes sociais
e tempos também variados. Um traço importante na sucessão dessas percepções
é o fato de que a essas práticas, frequentemente, atrelaram-se discursos que atri-
buíram a elas valores formativos a serem colhidos por quem as pratica. Interessa
para nós a dificuldade de verificar, nos momentos em que se pensa essas práticas,
reflexões que defendam ou tenham defendido a adesão a elas, simplesmente, pelo
prazer que elas proporcionam. É recorrente os praticantes tornarem pública sua
adesão a uma modalidade pelas transformações intelectuais e morais que elas
proporcionam em quem as abraça. Essa característica impactou, fortemente, um
conjunto imenso de discussões sobre a possibilidade dessas práticas acontecerem
no contexto escolar. A história do componente curricular de educação física é
devedora desse traço. É essa história que estudaremos na próxima unidade.

115
atividades de estudo

1. Pondere os conceitos que nos ajudam a pensar o campo de ação profissio-


nal em torno das ações que fazemos corporalmente.

2. Qual a característica histórica que estimulou a expansão do esporte na


virada do século XX?

3. Analise a principal característica das diferentes escolas ginásticas que as


fizeram ter grande destaque durante o século XIX e início do XX.

4. Qual é o problema da comum oposição entre oriente x ocidente quando


pensamos o desenvolvimento e a expansão das artes marciais?

5. O que faz do jogo um elemento valioso para pensarmos a cultura?

116
LEITURA
COMPLEMENTAR

Se no início do século XIX a sistematização e especialização de certos discursos e práti-


cas sobre a educação dos corpos foi um assunto menor e relativamente insignificante,
no final desse século o panorama mudou dramaticamente. Nenhum ator social ousou
rechaçar a necessidade [...] do exercício físico para os meninos, meninas, jovens, adul-
tos e anciões. [...] A criação do “homo gymnasticus” foi caracterizado, delineado escul-
pido como um corpo esforçado, eficiente, dócil, obediente, aplicado, ativo, seguro, de-
cidido, forte, vigoroso, voluntarioso, energético, aseado, útil, racional, simétrico, destro,
patriota e são. Todas essas características não apenas se converteram em qualidades
e normas de acção a se alcançar, produzindo um fenômeno (´homo gymnasticus’) [...].
O meio predileto para sua concretização foi o exercício físico, que impunha aos corpos
tarefas repetitivas, diferenciadas e graduadas, com o fim de maximizar a economia do
movimento, seu ritmo e suas intensidades. [...] Para além de algumas resistências o
“homo gymnasticus” dominou a cena corporal e se ergueu como um dos efeitos mo-
dernos melhor pensado de uma forma cada vez mais complexa de administrar os cor-
pos. Essa invenção moderna, exalou fortes doses de modernidade criando, a partir da
autoafirmação de sua suposta “normalidade”, a existência de uma alteridade repre-
sentada por corpos indesejáveis e “imperfeitos”, tanto em sua forma e aparência como
em seus desejos e comportamentos. Dessa maneira, os corpo indolentes, preguiçosos,
ineficientes, desobedientes, indecisos, débeis, doentes, frágeis, passivos, apáticos, te-
merosos, covardes, inúteis, improdutivos, pusilânimes, afeminados (para os meninos),
mais ou menos masculinizados (para as meninas), irracionais, assimétricos, deformes
(corpos mais ou menos altos, mais ou menos baixos, mais ou menos gordos, mais ou
menos fracos), antipatriotas, sujos e enfermos foram considerados o limite simbólico e
material daquilo que não se podia franquear. Aqueles corpos, que resistiram ao ideal
ficcional representado pelo “homo gymnasticus”, tiveram que conviver com o padeci-
mento e foram automaticamente convertidos em corpos estigmatizados, rechaçados
e considerados como anormais e perigosos. De fato, foram classificados como corpos
enfermos, e inclusive, muitas vezes patologizados.

Fonte: Scharagrodsky (2011, p. 17-18).

117
material complementar

História do Esporte no Brasil


Autor: Mary Del Priore e Victor Andrade de Melo
Editora: Editora da Unesp
Ano: 2009
Sinopse: trata-se de uma coletânea que apresenta 17 capítulos
que focalizam o desenvolvimento do esporte no Brasil, abor-
dando-o a partir do século XIX até a atualidade.

Olympia
Ano: 1938
Sinopse: documentário dirigido por Leni Riefenstahl (1902-
2003) sobre os Jogos Olímpicos de 1936, sediados em Berlim.
O filme se notabilizou por ser o primeiro feito sobre os jogos,
criando modos de percepção da transmissão desportiva, hoje
comuns. Além disso, fica explícita a ligação do que se assiste ao
momento político da Alemanha, já sob a égide de Adolph Hitler.

A página do Museu do Futebol é muito valiosa pela variedade de


informações, imagens, vídeos e exposições virtuais que lá são
organizadas. Conforme lemos na reflexão de Del Priore e Melo
(2009), o futebol é a história brasileira, da mesma forma que a
história brasileira é o futebol. Acesse e confira!
Link: <http://www.museudofutebol.org.br>.

118
referências

AWI, F. Filho teu não foge à luta: como os lutadores brasileiros transformaram o
MMA em um fenômeno mundial. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.
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1992.
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educação física. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2006. p. 97-106.
BOURDIEU, P. Comment peut-on être sportif? In: Questions de sociologie. Pa-
ris: Les Éditions de Minuit, 2002. p.173-195.
COMÉNIO, J. A. Didactica magna. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1985.
DEL PRIORE, M.; MELO, V. A. de. (Orgs.). História do Esporte no Brasil. São
Paulo: Editora da Unesp, 2009.
EHRENREICH, B. Ritos de Sangue: um estudo sobre as origens da guerra. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
FREIRE, J. B. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. 4.
ed. São Paulo: Scipione, 1994.
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mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
HOBSBAWM, E. J. Sobre história: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
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JAMES, W. The moral equivalent of war. Charles Rivers Editors, 2012. (Versão
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KISHIMOTO, T. M. O jogo e a educação infantil. São Paulo: Cengage Learning,
2015.
LANGLADE, A.; LANGLADE, N. R. de. Teoria general de la gimansia. Buenos
Aires: Editorial Stadium, 1970.
LINHALES, M. A. Esporte e escola: astúcias na “energização do caráter” dos bra-
sileiros. In: DEL PRIORE, M.; MELO, V. A. de. (Orgs.). História do Esporte no

119
referências

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soa: Editora Universitária UFPB, 2006. p. 107-134.
NOBREGA, T. P. Epistemologia, saberes e práticas da educação física. João Pes-
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mentos históricos sobre a educación en los cuerpos en movimiento en Occidente.
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investigativo em Educação Física. Florianópolis: Nauemblu Ciência e Arte, 2005.
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SOARES, A. J.; VAZ, A. F. Esporte, globalização e negócios: o Brasil dos dias de
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SOARES, C. L. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez,
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______. Imagens da educação no corpo. 2. ed. revista. Campinas-SP: Autores
Associados, 2002.
SOARES, C. L. (org.). Uma educação para a natureza: a vida ao ar livre, o corpo
e a ordem urbana. Campinas-SP: Autores Associados, 2016.
VIGARELLO, G. Du jeu ancien au show sportif: la naissance d´un mythe. Paris:
Éditions du Seuil, 2002.

120
gabarito

1. Prática corporal é um desses conceitos, na medida em que se delimita o


vasto leque de ações humanas, que envolvem a dimensão corpórea, redu-
zindo-a aos jogos, esporte, lutas, ginástica e dança. O fato de essas práti-
cas não se reduzirem ao elemento gestual, mas englobarem valores e in-
tencionalidades, leva-nos a enxergá-las como cultura corporal, o segundo
conceito fundamental para entendermos a educação física historicamente.

2. Importante na expansão do esporte foi relacioná-lo com perspectivas e


projetos educacionais. Desse modo o sport deixou de ser apenas “diverti-
mento”, significado original do termo.

3. A ginástica realizou em suas práticas o olhar cientificizante de dividir,


quantificar e parcializar a movimentação corporal. Com isso, a ginástica se
tornou uma prática corporal representativa da ideia de que se pode con-
trolar a natureza corpórea do mesmo modo que a ciência poderia controle
a natureza de uma forma geral.

4. Mesmo que não desconsideremos peculiaridades entre a cultura marcial


existente em cada região do mundo, a oposição oriente x ocidente secun-
dariza que ginástica, esporte e artes marciais, em suas conotações moder-
nas, têm origens, motivos e desenvolvimentos semelhantes.

5. Trata-se de sua característica desinteressada, livre e não sistematizada, a


cruzar culturas, e fundamental na construção de relações sociais que dão
origens a sociedades muito diferentes entre si. Ou seja, nessa ótica o jogo
seria uma elemento presente em vários tempos e lugares, ao mesmo tem-
po moldado pelas particularidades dos diferentes arranjos sociais existen-
tes em outras épocas.

121
EDUCAR É EDUCAR O CORPO:
A ESCOLA E A EDUCAÇÃO FÍSICA

Professor Dr. Carlos Herold Junior

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta
unidade:
• Educação corporal e educação física escolar
• Educar o corpo na escola, para quê?
• A educação física escolar tornar-se... escolar
• As ciências da educação, o corpo e a educação física: o
longo século XX
• O corpo tem lugar na escola?

Objetivos de Aprendizagem
• Diferenciar educação corporal e o componente curricular
educação física.
• Verificar o modo como a educação tem o corpo como o
principal meio e fim.
• Estudar as transformações históricas que levaram à
escolarização das práticas corporais.
• Analisar a importância que o corpo passou a ter na ciência
educacional durante o século XX.
• Ponderar a ausência/presença do corpo nas estruturas
educacionais contemporâneas.
unidade

IV
INTRODUÇÃO

C
aro(a) aluno(a), chegamos à unidade IV de nosso passeio
pela história da educação física. Ela abordará as problemá-
ticos que discutimos nas unidades anteriores, estudando-as
em sua dimensão explicitamente pedagógica. Digo que tra-
taremos as dimensões explicitamente pedagógicas, afinal observe que,
em todas as unidades anteriores, mesmo que não tenhamos falado dire-
tamente da escola ou da educação, alguma pedagogia esteve presente: na
unidade, quando vimos as justificativas para o estudo da história, não é
fácil percebermos nos teóricos uma postura que busca nos convencer so-
bre a importância desse estudo? Na unidade II, ao abordamos a história
sobre as diferentes visões sobre o corpo, não foi corrente a oscilação entre
visões que buscam ensinar as virtudes e os defeitos dessa dimensão hu-
mana, guiando-nos na forma de agir com os outros e conosco mesmos?
Na abordagem de apenas algumas práticas corporais no meio da imensa
variedade das que existem, feita na unidade III, não ficou claro que boa
parte dessas práticas ganhou importância social e cultural devido aos
apelos formativos que a elas foram atribuídos?
Essa ligação do universo da cultura corporal com inquietações educa-
cionais tem um momento bastante rico no fomento de reflexões quando
estudamos os processos que levaram toda essa importância formativa do
corpo e das práticas corporais para o interior da escola. Por isso, o objetivo
central dessa unidade é refletir sobre esses processos, relacionando as trans-
formações históricas ligadas ao corpo e às práticas corporais com transfor-
mações que aconteciam nas estruturas educacionais formais. Não é mera
coincidência que um momento privilegiado para essa reflexão compreenda
o século XVIII, XIX e as primeiras décadas do século XX. Nesses duzentos/
trezentos anos, a escola assumiu um importância que não possuía nos sécu-
los anteriores. Mostraremos que, na construção dessa importância, a esco-
larização das práticas corporais desempenhou papéis não negligenciáveis.
Vamos à escola!! Bons estudos!
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

EDUCAÇÃO CORPORAL E
EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Olhando para a realidade da qual participamos Tal naturalidade com esses dois momentos, to-
na atualidade, percebemos, sem dificuldades, a davia, não nos deve fazer esquecer que problemas
presença de várias ações formativas sobre o cor- relacionados a eles também existem. Há críticos que
po. Isso acontece tanto fora da escola quanto no enxergam na atenção dada ao corpo um exagero, um
interior dessa instituição. Fora dela, a profusão de sinal de decadência moral e política da atualidade.
discursos e práticas sobre a saúde, sobre a forma Nessa ótica, o individualismo e a irresponsabilidade
como nosso bem-estar relaciona-se à forma como ética poderiam ser explicados pelo culto ao corpo
vemos os outros, colocou a dimensão corporal que, em casos extremos, leva à problemas psicológi-
em um lugar bastante valorizado, comparando-se cos bastante visíveis na atualidade.
com outros tempos. A situação no mundo escolar também não é
Da mesma maneira, assumimos com natura- isenta de problemas. Embora a naturalidade ante-
lidade o fato da paisagem escolar ser formada não riormente observada aconteça, as críticas à educação
apenas por livros, salas de aula e os materiais que física que existe no mundo escolar são igualmente
a formam (cadeiras, quadros, computadores, etc.), abundantes: critica-se a educação física escolar por
mas por quadras, espaços abertos, materiais esporti- ela ser apenas um passa tempo, algo sem importân-
vos e crianças se movimentando. cia; por outro lado ela também é negativamente ob-

126
EDUCAÇÃO FÍSICA

servada por não realizar possibilidades formativas, social colocado nos processos que levam as crianças
por não abranger outras práticas que não sejam as a se tornarem meninos ou meninas. Desde a esco-
modalidades esportivas coletivas. Muitos professores lha das roupas, do jeito com que conversamos com
de educação física são vistos como não professores, essas crianças, dos brinquedos com os quais as pre-
afinal não ensinariam nada, apenas como rolar bola. senteamos, das expectativas que nelas depositamos.
Esse rápido panorama do mundo atual tem sua Muitas vezes, essa educação não ocorre de forma
história. Ou seja, ao mesmo tempo em que ele é uma irrefletida: afinal, já não ouvimos falar de muito so-
continuidade de ideias e procedimentos criados em frimento quando se obriga ou se agride meninos e
outras épocas, é marcado por características que o meninas que agem, que se vestem ou falam de um
particularizam. Muitas coisas acontecem nesses dois modo que foge ao rumo dito normal das coisas?
âmbitos - o da educação corporal e o da educação Outro exemplo a evidenciar o cotidiano trabalho
física escolar -, por vivermos neste mundo, aqui e de educação corporal que acontece com todos nós,
agora. Por isso, voltamos a um ponto bastante subli- ao mesmo tempo em que nós impetramos a quem
nhado neste livro: tanto para entendermos o que nos se relaciona conosco, diz respeito ao modo como
liga ao passado quanto aquilo que nos separa dele é usamos o volume da nossa voz e a maneira como
fundamental. A análise histórica é fundamental. nos locomovemos em lugares com muitas pessoas,
Para tanto, atente ao fato de que consideramos para citar apenas duas situações. Como aprendemos
“educação corporal” e “educação física escolar” o modo e a intensidade com a qual conversamos
como coisas diferentes, mesmo que estejam muito com os outros? Quando fazemos isso, nosso olhar
relacionadas tanto na atualidade quanto na história. não deve ser de determinadas maneiras, para evitar-
A educação corporal é toda e qualquer atitude mos ou a sensação de sermos desatentos (se olha-
que tomamos em relação ao corpo, visando adequá- mos para outros lugares durante a conversa), ou a
-lo, moldá-lo, deixando-o apto para realizar deter- percepção de termos segundas intenções se olhamos
minadas ações ou atender a variadas expectativas. fixamente nos olhos de nosso interlocutor?
Nem sempre essa educação realiza-se com procedi- Tudo isso acontece em nossa vida cotidiana e,
mentos pedagógicos explícitos e intencionais, acon- obviamente, adentra a escola. Nessa perspectiva, a
tecendo no bojo de nossas relações sociais, ora de educação corporal sempre esteve presente nas dife-
modo imperceptível, ora de modo mais agressivo e rentes estruturas educacionais formais que existiram
traumático. Exemplos que ilustram essa dimensão na história. Todavia, ao lado dessa prática formativa
educacional são numerosos: pensemos no empenho necessariamente corporal, existiram outras práticas

127
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

que, sistemática e detidamente, se ocuparam com os É preciso salientar também que todo o sistema
corpos das crianças e dos jovens em instituições es- educacional de Atenas exigia gastos conside-
pecificamente criadas para realizar a educação das ráveis. Por esse motivo, apenas as classes mais
abastadas tinham condições de arcar com a for-
novas gerações. Entender esse ponto é incontorná- mação completa dos jovens (ANDRÓNIKOS,
vel, mas, para isso, alguns cuidados são necessários. 2004, p. 66).
São cuidados importantes, pois ao lado de diferentes
reconhecimentos que as épocas atribuíram ao cor- Menos pela característica de ser voltada a uma re-
po, unem-se expectativas educacionais, instituições duzida parcela dos helenos, e mais pelas rotinas e
a serem criadas para realizar essas expectativas e, so- lugares em que acontecia, essa educação corporal
bretudo, o fato de essas instituições serem pensadas sistemática que vemos na Grécia Antiga distancia-
e realizadas para determinadas classes sociais em -se muito da educação física escolar que hoje vemos.
detrimento de outras. Para entender historicamen- Além disso, a derivação de nossa instituição escolar
te esse processo, vamos estudar três momentos da da skholé grega não deve fazer com que esqueçamos
educação corporal da vida cotidiana nos quais fo- que, institucionalmente, a educação grega era muito
ram pensadas práticas e instituições formais para se diferente da que passou a existir nos séculos XIX e
educar o corpo infantil e juvenil. XX de nossa era.
O primeiro desses momentos é a já mencionada Antes de abordar o que aconteceu nos sécu-
atenção dada ao corpo na Antiguidade Grega. A pa- lo XIX e XX, vamos nos deter um pouco em outro
lavra Escola deriva-se de skholé, que em grego rela- momento histórico pleno em desdobramentos para
ciona-se com o tempo livre do trabalho, necessário a história da educação corporal institucionalizada:
para o cultivo das habilidades necessárias ao cida- vamos estudar pensamentos, práticas e instituições.
dão. Fundamentais nessa formação foram ginásios e Já estudamos um pouco desse momento nas unida-
as palestras, locais específicos nos quais a juventude des anteriores. É nesse momento que a ciência mo-
grega se educava e se exercitava. Andrónikos (2004, derna se desenvolve, dando ao corpo uma grande
p. 42) observa que desde os períodos mais recuados consideração, pautada no que chamamos de olhar
da história grega antiga, chegando até Esparta e Ate- anatômico. Nas páginas anteriores, também foi dito
nas: “Para o heleno antigo, o corpo humano tinha ter sido nesse momento que as crianças passaram a
uma importância extraordinária e, para atingir o ser vistas de uma maneira diferenciada, em um pro-
seu desenvolvimento máximo, harmonia e funcio- cesso que impactou enormemente a educação. Não
namento efetivo, ele o treinava obstinada e sistema- é à toa que, a partir dos séculos XVI e XVII, mui-
ticamente desde a mais tenra infância”. tos livros sobre educação passaram a ser escritos e
O autor fala em “heleno antigo”, mas deve ser ob- publicados, endossando a ideia de que a sociedade
servado que nessa categoria enquadrava-se apenas que então nascia era assumida como fruto de uma
parcela reduzida daquelas sociedades. Afinal: educação racional.

128
EDUCAÇÃO FÍSICA

Nesse momento da história, as instituições Essa tendência de valorizar a educação corporal


educacionais com características mais aproximada sistemática para uma determinada classe social vai
disso que entendemos por escola passaram a exis- se alterar apenas no século XIX e no início do sécu-
tir. A expansão dos colégios na Europa é um fato lo XX. É um momento de muitas mudanças sociais,
marcante. Dentre eles, os Colégios Jesuítas mere- oriundas, principalmente, do processo de crise e ex-
cem destaque. Embora esses colégios representem pansão planetária das relações socioeconômicas ca-
de algum modo uma modernidade que nascia, não pitalistas. Do ponto de vista da história educacional,
é neles que a educação corporal sistemática tem dois fenômenos nos são muito valiosos: em primeiro
seu lugar mais visível. É no âmbito familiar, extra- lugar, o imenso conjunto de debates que acontece-
escolar, que muitas práticas e atividades corporais ram em vários países do mundo, sobre a necessidade
passaram a ser defendidas como fundamentais à de uma educação pública, laica, universal e obriga-
educação da juventude. Tomemos como exemplo tória. Ou seja, pela primeira vez na história educa-
dessa situação o também já mencionado livro “Al- cional, não sem problemas, retrocessos e resultados
guns pensamentos sobre a educação”, escrito por diferentes que podemos observar em muitos países,
John Locke (1632-1704) em 1693 ([2012]). O livro as estruturas educacionais, sobretudo a escola, tor-
se inicia com um capítulo sobre a saúde, em que nam-se passíveis de serem frequentadas também
são descritos cuidados que vão desde a alimenta- pelos filhos daqueles que não possuíam a skholé,
ção, passando pelo uso das roupas e chegando à o tempo livre necessário para serem alvos de uma
necessidade de exercícios, natação e procedimen- educação sistemática. O segundo fenômeno, muito
tos relativos à higiene. Sem eles, avaliava o filósofo, dependente do primeiro, é o que Faria Filho (2003)
o “jovem cavalheiro” não conseguiria ser formado chama de escolarização do social, que podemos en-
para um lugar de excelência no mundo. Esse lugar, tender da seguinte maneira: “O processo e a paula-
para Locke (1693 [2012]), relacionava-se muito tina produção de referências sociais tendo a escola
fortemente com a manutenção e ampliação das ri- ou a forma escolar de socialização e transmissão do
quezas que o jovem receberia de sua família. Por conhecimento, como eixo articulador de seus sen-
isso, essa forma educacional não era pensada para tidos e significados” (FARIA FILHO, 2003, p. 78).
aqueles que não teriam a skholé (tempo livre) ne- Dito de outro modo, estamos vendo nesse período
cessária para tanto. Ou seja, educar sistematica- da história educacional a produção da centralidade
mente o corpo era, também nesse momento, uma que passou a ter o mundo escolar na educação das
prerrogativa de classe. Afinal, aos filhos dos traba- crianças. Centralidade essa sustentada na ideia de
lhadores a educação aconteceria no trabalho pro- obrigatoriedade educacional, legalmente instituída e
dutivo junto com os pais. No momento em que o voltada a todas as crianças da sociedade.
capitalismo nascia, podemos ver nesse traço a rea- Esse processo, que aqui descrevo em suas ge-
lização clara da condição proletária: ser possuidor, neralidades, aconteceu com diferentes ritmos e re-
apenas, de sua prole. sultados em variados países do mundo em todos os

129
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

continentes. Ao lado do processo que fez com que a terior, é fácil compreendermos no interior desses
escola se tornasse potencialmente acessível a muitas dois processos (a expansão da escola e a expansão
pessoas que antes a ela não tinha acesso, é importan- da cultura physica) que muitos esforços acontece-
te verificar que, para a realização dessa imensa tarefa ram para inserir na escola práticas avaliadas como
de ampliação, a escola se transformou pedagogica- importantes na realização de ambições educacio-
mente, arquitetonicamente, na composição de seus nais. Grosso modo, é isso que nos permite dizer
profissionais, assumindo uma feição bastante pare- que, no mesmo momento em que as sociedades se
cida com a que testemunhamos hoje. escolarizam, a escola também começa a adotar prá-
Se você se lembrar que boa parte das práticas ticas pedagógicas que, com o passar dos anos, aglu-
corporais estavam assistindo a uma expansão no tinaram-se na formação do que hoje conhecemos
mesmo período, conforme vimos na unidade an- como educação física escolar.

SAIBA MAIS

No conjunto de mudanças pedagógicas experimentadas no momento de expansão da escola para todos


e da inclusão de práticas corporais como educação física em seu interior, uma mudança na composição
do aluno impactou não apenas o funcionamento da escola, mas muita coisa que acontecia fora dela:
conforme a escola pública, laica, gratuita e obrigatória ganhava espaço nas sociedades, o dia a dia escolar
passou a acontecer com meninos e meninas dividindo o mesmo espaço. Além da novidade daquilo que
o século XIX chama de “educação promíscua” (palavra que possuía conotação diferente da conotação
atual), há que ser sublinhado que a relevância da educação feminina também conheceu grande impulso.
Nessa educação feminina que passava a ser alvo de grande inquietação, o papel das práticas corporais
como elemento educativo também foi uma problemática abordada. Não dá para negar que muitas
justificativas para essas práticas educacionais ancoravam-se no fortalecimento dos tradicionais papéis
sociais que atrelavam a mulher ao âmbito do lar e da maternidade. Todavia, não se duvida que, naquele
momento, essa democratização da educação exerceu muitos impactos nos avanços que hoje temos
em relação à igualdade efetiva entre homens e mulheres.

Fonte: o autor, baseado em Antonovicz e Herold Junior (2012).

130
EDUCAÇÃO FÍSICA

EDUCAR O CORPO NA ESCOLA,


PARA QUÊ?
As transformações históricas e pedagógicas que Junior (2006) aborda essa mesma problemática,
aconteceram e que levaram a escola a ser um direi- afirmando o seguinte:
to de todos foram profundas e intensas. Igualmente
importantes foram essas transformações para pos- [...] de pensada inicialmente para a educação
privada dos filhos das famílias abastadas, a
sibilitarem que, no interior dessa nova instituição,
educação do corpo foi amplamente divul-
práticas corporais tivessem espaço, tempo e pessoas gada e efetivada na escola pública do século
habilitadas para conduzi-las. Dito de outra manei- XIX. Mas essa mudança de uma educação
ra, existiram bons motivos que podem nos ajudar física doméstica para uma efetivada em um
a entender a energia despendida por vários países espaço público não se deu de forma evoluti-
va. Foi preciso a existência de condições his-
em empreender essas mudanças, dando à educação
tóricas determinadas para que se instaurasse
corporal sistemática dentro da escola para a toda um longo e acirrado debate sobre a extensão
sociedade o seu impulso inicial. Impulso esse que, das práticas corporais de uma forma universal
vale a pena repetir, redundou nas aulas de educa- (HEROLD JUNIOR, 2006, p. 44).
ção física que hoje temos em nossas escolas. Herold

131
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Deve ficar bastante claro a você, caro(a) aluno(a), educável nas estruturas institucionais que se expan-
que estamos lidando com um momento muito im- diam. Considerar o corpo como objeto de uma edu-
portante da história educacional. Conforme vimos cação sistemática pode ser entendido se olharmos
nos parágrafos anteriores, nem a educação formal, o panorama cultural do século XIX e compreen-
nem as práticas formativas sistemáticas atinen- dermos alguns desdobramentos que explicam esse
tes ao corpo, eram pensadas e voltadas a todos olhar pedagógico para o corpo.
os membros da sociedade. Com o nascimento da Em primeiro lugar, vale observar que a situ-
sociedade moderna nos séculos XV e XVI, sob a ação social gerada pelo desenvolvimento do ca-
égide do capitalismo, ao mesmo tempo em que o pitalismo industrial criou bastante preocupação.
fosso econômico entre classes sociais se ampliou, De um lado as revoluções industriais que acon-
do ponto de vista político, operaram-se transfor- teceram no fim do século XVIII e início do sé-
mações que levaram a várias lutas pela construção culo XIX, ao mesmo tempo em que ampliaram a
de Estados representativos, baseados na igualdade produção de riqueza, levaram a uma degradação
política entre cidadãos. A Revolução Francesa de corporal da classe trabalhadora. Para uma socie-
1789 é o evento-chave desse processo. dade que se construiu ao redor da dignidade do
Para a concretização desse Estado, a educação a trabalho, a situação de miséria e de aviltamento
ser ministrada para todos os cidadãos tornou-se um dos trabalhadores tornou-se uma problemática.
ponto bastante discutido. Foi assumido que a igual- Soma-se a essa questão o processo de urbaniza-
dade política em um mundo de desigualdade econô- ção experimentado nos países centrais do capita-
mica não seria possível sem uma educação política lismo, gerando aglomerações que tornaram essas
que possibilitasse as condições intelectuais e morais constatações ainda mais gritantes. Sobretudo, se
necessárias para a coesão desse novo estado de coi- for levado em conta que, em vários países, pres-
sas, difícil de ser mantido pelas tensões sociais que sões pelo voto universal estavam sendo vencedo-
se ampliavam. ras, gerando muita insegurança nas classes domi-
Interessante verificarmos que, nessa luta por nantes. Como educar, integralmente, esse novo
construir as justificativas e as estruturas educacio- cidadão, considerado cheio de vícios, doenças e
nais capazes de absorver, também, os filhos das clas- sentimentos que poderiam levar à destruição so-
ses trabalhadoras, o corpo tornou-se um assunto cial? Repare que políticos, burguesia e demais es-
importante e, assim, visto como necessariamente tratos sociais participantes das estruturas de po-

132
EDUCAÇÃO FÍSICA

der daquele tempo possuíam uma visão bastante obras educacionais escritas nesse momento foi
negativa de trabalhadores, camponeses e de todos composta por Herbert Spencer (1820-1903), um
aqueles que ficavam à margem das promessas de dos responsáveis pela divulgação do “darwinismo
fartura do mundo industrial. social”. A obra em questão é “Da educação intellec-
Ao lado dessas importantes variáveis históri- tual, moral e physica”, de 1863. Depois de criticar
cas sociopolíticas, devem ser mencionadas ques- que ainda no seu tempo muitos ocupavam-se mais
tões que tocaram a criação de novas visões sobre da saúde de seus animais do que da própria (ele
o corpo que vinham de desdobramento de desco- se referia aos nobres e endinheirados, possuidores
bertas científicas que aconteceram no século XIX. de belos animais), o autor afirma que “a primei-
Mesmo que não tenha sido a intenção de Darwin, ra condição da prosperidade nacional é que a na-
sua teoria sobre a origem e a evolução das espé- ção seja constituída de bons animais” (SPENCER,
cies impactou posições simpáticas à ideia de edu- 1886, p. 205). O trocadilho é interessante, pois ele
car corpos sistematicamente. Afinal, se os fracos queria lembrar ao seus contemporâneos que é pela
ficam no meio do caminho, tratava-se de cultivar, educação physica que desenvolveríamos as forças
fortalecer, aperfeiçoar, criar condições de sobre- depositadas em nossa natureza corpórea, em nossa
vivência que tornassem um povo mais capaz que animalidade. Por isso entendemos seu pensamento
outro. Esse ideário, conhecido como “darwinismo quando afirma, de um modo que se tornou corren-
social”, fundamenta explicações que buscavam ofe- te aos defensores da educação corporal praticada
recer entendimentos sobre as diferenças entre clas- dentro da escola, o seguinte:
ses sociais, entre países, entre culturas, dando ao
corpo uma centralidade inegável na hora de justifi- Torna-se pois de uma importancia particular o
educar as crianças de modo que não só estejam
car privilégios socioeconômicos e políticos, assim
aptas para sustentar a luta intelectual que as
como as vias legítimas para ascender à possibilida- espera mas que possam também suportar fisi-
de de gozá-los. A partir do corpo e por meio dele, camente a excessiva fadiga a que serão subme-
chegar-se-ia a uma sociedade mais pacífica no que tidas (SPENCER, 1886, p. 206).
tange aos conflitos internos e a um país mais pu-
jante e capaz de conquistar inimigos, incapazes de Para Spencer (1886, p. 206), educar fisicamente era
fazer frente a um corpo social robusto e educado. colocar a “escola de acordo com as verdades da ci-
Interessante verificarmos que uma das principais ência moderna”. Nas partes finais de seu livro, lemos

133
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

outra ponderação que nos faz captar um pouco da tes a de Spencer caracterizaram o período que esta-
atmosfera pedagógica e cultural que estava pavi- mos analisando: século XIX e início do XX.
mentando o caminho que levou algumas práticas Quando estudamos história, é importante perce-
corporais para dentro da escola: ber que cada realidade apresenta nuances e particulari-
dades que são fundamentais para a construção de um
Os que, na preocupação exclusiva de desen- panorama explicativo acurado. Todavia, tão importan-
volver o espírito, descuram os interesses do
te quanto essa consideração, é fundamental você não
corpo, não se lembram de que o bom êxito
neste mundo depende mais da energia do perder a visão de totalidade de um processo que acon-
que dos conhecimentos adquiridos, e de que teceu em vários países de um modo interessantemente
arruinar a constituição com o excesso de similar. Scharagdrosky (2011), na apresentação de sua
trabalho intelectual é ir procurar a própria obra, verifica que os capítulos que formam a coletânea
derrota. A vontade forte, a infatigável ativi-
por ele organizada abordam em 15 países as:
dade, devidas ao vigor físico, compensam em
grande latitude até as importantes lacunas da
educação; e, quando se reúnem a esta cultura [...] práticas, saberes e discursos que possibili-
suficiente que é possível obter sem sacrificar taram a emergência da educação física escolar
a saúde, asseguram a quem as possui uma vi- e das demais formas de educação corporal li-
tória fácil sobre os concorrentes enfraqueci- gadas a ela (ginásticas, exercícios físico ativos,
dos por um excesso de estudo, muito embora jogos, esportes, colônias escolares, excursões,
eles fossem prodígios de ciência (SPENCER, etc. (SCHARAGDROSKY, 2011, p. 15).
1886, p. 263).
Dito de outra maneira, você deve se esforçar para
Mesmo que o autor apresente suas ideias de um perceber que está estudando um período em que
modo a nos fazer perceber que havia uma luta con- muitas realidades culturais e econômicas diferentes
tra posicionamentos contrários, ou seja, havia aque- entre si estavam muito empenhadas em levar à esco-
les que pensassem serem as práticas corporais algo la rotinas educacionais que tivessem o corpo como
inútil, é necessário destacar que posturas semelhan- foco principal.

134
EDUCAÇÃO FÍSICA

A EDUCAÇÃO FÍSICA TORNA-SE…


ESCOLAR
Caro(a) aluno(a), já vimos nas páginas anteriores foram tomados como não abordáveis pela ciência
que a expressão “educação física” foi uma novidade -, o corpo passou a ser alvo, assim, de uma edu-
se considerarmos a presença das práticas corporais cação específica - a educação física. Um registro
na cultura grega antiga. Se concepções da antiguida- importante da utilização dessa expressão encon-
de tivessem permanecido intocadas no decorrer dos tramos no também já mencionado livro de John
séculos, “educação somática” seria algo bem mais Locke sobre a educação.
aproximada do athleta grego. Esses esclarecimentos são importantes, pois es-
“Educação física” é uma expressão em que o tamos estudando nesta unidade os processos que le-
termo “física” adjetiva ou qualifica a educação. varam essa educação (a educação física) para dentro
No mundo moderno que passou a existir depois da escola. Ou seja, é necessário você saber que, em-
dos séculos XV, XVI e XVII, vimos que o corpo bora esteja reconstruindo a trajetória que nos traz
passou a ser identificado como a natureza circun- até as aulas do componente curricular da educação
dante, tornando-se objeto, passível de ser medido, básica chamado educação física, no século XIX e até
mensurado, então, cognoscível por meio da quan- as primeiras décadas do século XX essa educação
tificação da realidade (CROSBY, 1999). Diferente se fazia presente e conhecida pelo denominação da
do intelecto e da moral - dimensões humanas que prática que concretizava essa educação. No caso que

135
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

estamos focalizando, a ginástica foi a prática que, em do Estado viu-se na necessidade de criar escolas e
diferentes lugares, passou a povoar os currículos da organizá-las para que as crianças a partir de uma
nascente escola de massas. determinada idade passassem a frequentá-las. O au-
O ingresso da ginástica ao mundo escolar acon- mento na quantidade de alunos e de escolas colocou
teceu por uma série de motivos que devem ser pon- a problemática relativa ao número de professores
derados para se verificar que isso não aconteceu de capazes de suprir a demanda por educação que pas-
forma óbvia, sem discussão e sem desentendimen- sou a existir no período. Se a necessidade de formar
tos. Afinal, se no século XIX já havia um grande professores estimularam a ampliação das escolas
número de práticas e maneiras de se relacionar com normais, outros processos colaboraram para abor-
ela, para efetivar a existência da dita educação física dar esse problema. Um exemplo muito interessante
na escola, o esforço foi pedagogizar, ou seja, analisar e capaz de nos fazer perceber um traço muito visível
as práticas disponíveis e verificar quais delas seriam das escolas na atualidade é o que se conhece como
passíveis de aproveitamento no mundo escolar que feminização do corpo docente, por meio da qual
se transformava e se expandia. um número cada vez maior de mulheres passou a se
Nesse ponto, vou pedir para que abramos um ocupar da atividade docente das escolas.
parêntese. Voltarei a falar sobre essa pedagogização Outra mudança que penso ser interessante abor-
das práticas corporais depois de pensar com você dar nesse parêntese que abri anteriormente é o de-
as transformações pedagógicas que aconteciam no senvolvimento da seriação escolar. Até os séculos
mundo escolar, mundo esse que recebeu em seu in- XVIII e XIX, as escolas funcionavam sem a conhe-
terior a educação física. cida divisão de seus alunos por faixas etárias seme-
Se havia escolas antes dos séculos XIX e XX, é lhantes, por séries. A adoção desse procedimento
somente a partir desses séculos que a escola assu- casa-se ao contexto de ampliação da demanda por
me características que lembram, bastante, a escola educação escolar, estipulando uma incontornável
que todos nós conhecemos. Em primeiro lugar, com necessidade de organizar da forma mais racional
a educação tendo sido alçada à condição de direito possível o aluno para se promover a necessária efici-
e obrigação de todos, a quantidade e a organização ência a uma instituição custeada pelos cofres públi-
das escolas mudaram, imensamente. cos e tornada mais complexa pelo afluxo de crianças
No que diz respeito à quantidade, é fácil perce- oriundas de espaços familiares muito distantes do
ber que os poucos colégios existentes até então para mundo letrado.
os filhos daqueles que tinham condição de pagar A seriação, de fato, possibilitou uma maior orga-
por uma educação formal, eram insuficientes para nização do cotidiano escolar. Ela leva ao surgimento
receber, também, os filhos da classe trabalhadora. da ideia de classe, que vai galgando, paulatinamente,
Iniciou-se em vários países nos anos oitocentos e níveis mais aprofundados de conhecimento. Mas a
novecentos a construção dos sistemas nacionais de seriação e a criação desse ambiente social chamado
ensino. Cada país que tinha colocado a educação classe também trouxeram novos problemas. Proble-
como direito de seus cidadãos e como obrigação mas metodológicos, pois a reunião de crianças de

136
EDUCAÇÃO FÍSICA

mesma idade possibilitou um ensino simultâneo, Em cima dessa cultura de práticas corporais se
em que o professor ensina o mesmo conteúdo a to- deu a discussão sobre as maneiras com as quais de-
das as crianças ao mesmo tempo. Ora, sabemos que veria acontecer a educação corporal no interior da
nem todos aprendem nos mesmos ritmos e com a escola de massas. O principal problema para realizar
mesma intensidade. Além disso, a reunião de crian- essa intenção era verificar quais dessas práticas eram
ças da mesma idade gerou o desafio de o professor educativas e quais existiam apenas para o deleite
ser mais interessante do que o colega ao lado. Esse imediato de seus praticantes - por exemplo, aque-
conjunto de mudanças levou à necessidade de uma las que chamavam a atenção por suas acrobacias e
profissionalização docente, se entendermos nessa performances. Bruhns (1999) mostra que no século
expressão (muito em voga na atualidade) o fato de XIX as demonstrações de características circenses
os professores passarem a necessitar de um conjunto tornaram-se muito criticadas. A crítica justificava-se
de conhecimentos para viabilizar o ensino, ao lado pelo olhar pedagógico, que via nesses usos do corpo
do conhecimento do assunto a ser ensinado. Aten- feitos pelos acrobatas um desvirtuamento, uma es-
ção: vamos fechar o parêntese neste ponto e voltar a pécie de aberração exibicionista que nada agregava à
falar sobre o fato de a educação corporal sistemática formação física, moral e intelectual de seus pratican-
tornar-se escolar. tes. Fundamental nessa análise é o fato de esses exi-
A escola transformou-se para atender à necessi- bicionistas sustentarem-se, economicamente, dessas
dade de escolarizar a todos. No interior dessas trans- demonstrações, ou seja, eram trabalhadores.
formações, o ingresso das práticas corporais com fi- Outro alvo de crítica por parte daqueles que pen-
nalidade educacional é um traço marcante. Repare savam na inclusão das práticas corporais no interior
uma coisa importante: a prática de uma educação da escola era o chamado atletismo. Essa denomina-
física nasce no mesmo momento da escola pensada ção pejorativa era dada a toda prática de assumir um
como uma instituição educacional a ser frequentada caráter meramente competitivo, levando pessoas e
pelos filhos oriundos de todas as classes sociais. grupos a reunirem-se para assistirem aos embates
Do mesmo modo que a escola teve que se trans- para seu mero entretenimento. Note que no século
formar para tornar essa ideia concreta, a educação a XIX e início do século XIX a imagem do atleta como
ser obtida por meio de práticas corporais no interior portador de virtudes ainda não existia. O que esta-
da escola foi alvo de muitas reflexões pedagógicas. va sendo buscado era uma abordagem educativa às
A necessidade dessas reflexões dava-se, pois, ao práticas corporais, abordagem essa que deveria ser
longo da história de muitas épocas diferentes. Ve- descolada de qualquer utilidade prática imediata.
mos que no cotidiano de muitas classes sociais havia Ou seja, não era uma técnica a ser ensinada pelo ob-
práticas corporais que existiam com os mais varia- jetivo de se fazer algo mais rápido, ou executar um
dos objetivos. Lazer e divertimentos eram os princi- movimento mais difícil ou bonito. A questão a ser
pais, o que podia ser visto tanto nas classes econo- respondida era: determinada prática corporal é ca-
micamente abastadas quanto nas classes que viviam paz de colaborar na educação dos cidadãos? Estudar
de seu trabalho. essa questão me levou a concluir o seguinte:

137
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

A dimensão corporal da educação deveria ser adotados não o sejam pelo crivo “educativo”.
adjetivada como educação física, diferente das Longe de uma mera preocupação com o “de-
práticas corporais arraigadas que, afeitas a um senvolvimento da aptidão física” e com aspec-
individualismo e sensualismo desagregadores, tos higiênicos e eugênicos, as atividades físicas
eram concebidas como instrução física (HE- foram pensadas em sua importância educa-
ROLD JUNIOR, 2005, p. 244). cional. A atividade pela atividade, ou somente
para aumento da força e flexibilidade, era, ao
contrário, aquilo que deveria ser rechaçado. As
Estava em jogo a oposição entre “instrução física” práticas corporais foram consideradas e colo-
x “educação física” sendo essa a preferida por parte cadas no interior da nascente escola pública
pelo reconhecimento cabal da sua relevância
de teóricos e pedagogos que pensavam a educação
na formação do cidadão, do indivíduo respon-
que deveria acontecer dentro das escolas. É muito sável também em seus comportamentos e pen-
interessante verificarmos o modo como as práticas samentos. Havia, por parte dos proponentes da
corporais passaram a ser alvo da discussão educa- Educação Física, um projeto social, tendo em
vista os fatos e suas consequências. O corpo e
cional. Se verificarmos que no mesmo período, con-
sua educação escolar foram componentes de
forme estudamos na unidade anterior, a ginástica e o extrema relevância desse projeto sócio-históri-
esporte estavam se desenvolvendo com conotações co (HEROLD JUNIOR, 2004, p. 174).
aproximadas à ciência e à educação, constata-se um
processo em que muitas das práticas corporais e da Como resultado dessas considerações de caracte-
adesão a elas que hoje assistimos em nosso cotidia- rística pedagógica feitas pelos envolvidos nos de-
no foram se costurando como um grande projeto bates que então ocorriam, verifica-se que a práti-
educacional que visava a instauração de um projeto ca corporal que mais se aproximou dessa ambição
de coesão social que via a possibilidade de a escola de educar fisicamente foi a ginástica. Discutiu-se
educar o corpo infantil e educar por meio do corpo bastante quais das variadas escolas ginásticas pro-
infantil. Nesse prisma, o corpo, explicitamente, dei- porcionavam a educação mais próxima do que se
xa de ser uma preocupação individual para se tornar ambicionava, mas a possibilidade de dividir, con-
alvo de inquietação pública, política. Para subsidiar trolar e medir os movimentos foi fundamental para
esse pensamento, peço-lhe que leia uma das conclu- dar a essa prática o adjetivo de racional, educativa,
sões às quais chego em outro estudo: sendo por meio dela que, inicialmente, a educação
física existiu nas escolas. E essa existência materia-
A crença na educação formativa do cidadão lizou-se inclusive na denominação: gymnastica era
como panacéia social está expressa na impor-
o modo com que se reconhecia que, em determi-
tância educativa atribuída por esses educado-
res às atividades corporais, tanto na formação nada instituição, existia uma educação física racio-
desse homem, se aplicada corretamente, ou nalmente colocada para proporcionar a formação
na destruição social, caso os preceitos a serem integral do cidadão.

138
EDUCAÇÃO FÍSICA

AS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO,
O CORPO E A EDUCAÇÃO FÍSICA:
O LONGO SÉCULO XX
Para aqueles que se interessam em conhecer desdo- Em primeiro lugar, vale observar que, na vira-
bramentos históricos do mundo contemporâneo, da do século XX, o processo de escolarização social
o historiador inglês Eric Hobsbawm é fundamen- (FARIA FILHO et al., 2004) se ampliou e, em esca-
tal. Em sua numerosa e importante obra, há o livro la planetária, fez com que o acesso à escola se uni-
chamado “Era dos Extremos” (HOBSBAWN, 1994). versalizasse. Obviamente, nesse ponto é importante
Nela, o historiador avalia o século XX, por ele cha- não esquecermos que ainda há países ou localidades
mado de longo. Longo pela intensidade e profundi- para quem os benefícios do mundo escolar estão
dade das mudanças, pelo drama de suas guerras e, muito distantes. Ainda assim, é fácil encontrarmos
sobretudo, por muitos de nossos problemas e mo- dados mostrando que realizar a ideia de educação
dos de enxergar as realidades sociopolítica e cultural como um direito de todos e um dever do Estado é
gestadas nesse momento. algo concreto. Uma realidade que sinaliza a centra-
Para você que está aprendendo a pensar no cam- lidade que a escola passou a ter para os processos
po pedagógico e profissional da educação física, o formativos do mundo contemporâneo. E não se es-
século XX também possui uma quantidade imensa queça: essa centralidade não se deu sem embates,
de variáveis que devem ser conhecidas nos impactos discordâncias e resistências. Para termos uma ideia
que elas possuem para muitas situações e contextos dessas dificuldades, é valioso considerar que nas
profissionais comuns no campo da educação física. primeiras décadas nas quais enviar as crianças para

139
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

a escola se tornou uma obrigação para pais, muitos ras, incompetentes na tarefa de bem ensinar e educar.
recusavam-se a enviar seus filhos para elas. Muitos Seus professores foram questionados sobre a correção
acreditavam que a educação era prerrogativa priva- e seus procedimentos, e os assuntos ensinados toma-
da, muitos defendiam que uma escola laica era algo dos como irrelevantes do ponto de vista educacional.
abominável para as concepções cristãs e havia aque- Os móveis, os materiais, as instalações nas quais fun-
les que pensavam que a educação escolar não deve- cionava a escola… parece não ter havido dimensão do
ria ser oferecida aos trabalhadores. E isso não era mundo escolar que tenha ficado sem receber o olhar
uma consideração apenas das classes dominantes, reprovador. Esse olhar se fazia fortalecer pela recor-
mas uma posição corrente em muitos lares nos quais rência com que dados foram produzidos, demons-
os pais empregavam seus filhos no trabalho produti- trando dificuldades estruturais experimentadas por
vo. Dito de outra maneira, o aprendizado necessário muitos países que buscaram universalizar a educação.
para tornar a ida à escola um hábito e uma possi- Estudos em psicologia da educação, filosofia da
bilidade concreta foi longo, penoso, com direito a educação, sociologia da educação, história da edu-
retrocessos e críticas. Mesmo assim, ele aconteceu. cação, didática e biologia educacional, surgiram e
Paralelamente a essas dificuldades de caracte- ganharam espaços em universidades e em centros
rísticas mais políticas e ideológicas, fundamental de pesquisa, indicando que a questão educacional se
para tal situação foi o enfrentamento das dificulda- tornara algo muito relevante para o enfrentamento e
des pedagógicas geradas pela frequência massiva de entendimento dos problemas sociais que então exis-
crianças. Do ponto de vista pedagógico, vimos que a tiam ou passaram existir.
escola se transforma para tornar o novo dia a dia es- O público escolar passou a ser alvo de investiga-
colar possível. Nessa transformação, vale sublinhar a ções cada mais vez mais detalhadas. O que se busca-
formação e a ampliação de uma reflexão sistemática, va era entender melhor os alunos para fornecer-lhes
de pesquisa científica sobre os problemas e as possi- uma educação que, em seus procedimentos, fosse
bilidades da escola popular. menos empírica e cientificamente embasada. Exem-
Os desafios gerados pela nova realidade educa- plificando o resultado desse empenho, temos os estu-
cional no mundo construído nos século XIX e XX dos de Stanley Hall (1846-1926), explicando o com-
levou ao florescimento das Ciências da Educação. portamento adolescente. Jean Piaget (1896-1980) na
Tratam-se de especialidades científicas que passaram década de 1930 já iniciava a sua importantíssima obra
a se ocupar dos problemas e da inovação do contexto ao explicar como se desenvolvem, intelectualmente,
escolar com vistas a realizar uma ambição didática as crianças em seus diferentes estágios. Pierre Bovet
que remonta ao século XVII de Comênio: ensinar (1878-1965) produzia elementos muitos importantes
mais, melhor, mais rapidamente e com prazer. para constatar que as crianças tinham na competi-
A necessidade dessa reflexão se fez sentir, pois ção e nas disputas e lutas entre si não um elementos
passadas as primeiras décadas de escolarização obri- de indisciplina ou um traço a ser educado, mas uma
gatória, o painel pintado por aqueles que avaliavam característica incontornável da natureza infantil a ser
o mundo escolar não era animador. As escolas pas- aproveitada pela escola para melhor ensiná-las e edu-
saram a ser vistas como enfadonhas, amedrontado- cá-las de um modo a vencer os complexos desafios

140
EDUCAÇÃO FÍSICA

formativos que se impunham no mundo escolar e só pelo escolanovismo, ganhou uma característica mais
por meio dele poderiam ser encarados. prática, com as crianças fazendo objetos, manipu-
Esse conjunto de estudos científicos produzidos lando-os, colorindo-os, conversando sobre eles. A
direta ou indiretamente ligados ao campo educa- ambição pedagógica era afastar a escola das rotinas
cional levaram à formação de críticas e proposições tradicionais em que um professor fazia sua palestra
que visaram dar à escola uma nova característica. para crianças imobilizadas em suas cadeiras.
A força desse empenho foi tanta que estudiosos o No campo específico da educação física que acon-
denominam de “movimento renovador”, de “esco- tecia nas escolas, essa nova consideração pedagógica
lanovismo”, de “escola nova”. Note que todas essas levou a uma crítica ao predomínio da ginástica como
denominações, claramente laudatórias ou elogiosas, prática formativa. O caráter medido, ritmado, con-
foram produzidas no calor das críticas às estruturas trolado externamente por um professor que apenas
escolares existentes, adjetivadas de “escola tradicio- impunha formas de movimentação, paulatinamente,
nal”, aquela que ensinava uma prática destituída de recebeu outra avaliação. De exemplo maior do cará-
qualquer embasamento científico mais profundo. ter educativo que poderia ter a movimentação cor-
Embora essa visão possa ser problematizada pelo poral, passou-se a crítica à distância entre essa prá-
fato de se sustentar em embates pedagógicos mar- tica e os anseios dos jovens e das crianças. Em seu
cados pela polarização de visões diferentes do que lugar, os jogos e esporte. No que diz respeito aos
deveria ser a instituição escolar, foi ela que ganhou jogos, lembre-se que, quando falamos sobre eles na
notoriedade e impactou modos de entender a edu- unidade anterior, fiz menção a Johan Huizinga e ao
cação vista como necessária à nova escola. livro “Homo Ludens”. Ou seja, essa valorização do
Fechando o foco na questão específica da edu- jogo não vinha apenas do campo pedagógico e es-
cação corporal sistemática existente na escola, esse colar. No que diz respeito ao esporte, é interessante
conjunto de reflexões políticas, pedagógicas e cien- o fato de uma prática ganhar espaço social de forma
tíficas impactou enormemente a educação física. tão acelerada, passando de uma forma cultural local
Com o desenvolvimento de análises psicológicas re- e socialmente específica de uma classe, ganhando ares
lativas à natureza infantil e aos modos corretos de se de possibilidade educacional. Essa possibilidade, no
relacionar a ela, assiste-se a uma grande valorização caso da educação física, marcou-a de modo profun-
de práticas até então pejorativamente adjetivadas de do, se considerarmos a maneira como ela se tornou
infantis. O jogo e a brincadeira, antes vistos apenas quase que sinônimo de aulas de educação física. Aqui
como meros passatempos, ausentes de qualquer in- tem um ponto muito interessante para verificarmos
tencionalidade pedagógica, passaram a ocupar uma a importância de estudarmos a história da educação
inegável centralidade pedagógica não apenas na física: note que está se construindo um traço pedagó-
educação física, mas na pedagogia de forma geral. gico das aulas de educação física que na atualidade se
Na pedagogia de forma geral, pois o ensino passou configura em um dos grandes desafios desse compo-
a ser considerado como mais efetivo se abarcasse o nente curricular. Você aprenderá durante o curso que
lúdico, a experiência infantil autêntica. A educação, o esporte não é e não deve ser o único conteúdo das
pelo menos nos livros dos estudiosos influenciados aulas que vier a ministrar nas escolas.

141
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O CORPO TEM LUGAR NA


ESCOLA?
Conforme os problemas pedagógicos da educação se considerarmos que ela deixa entrever que a escola
física escolar na atualidade venham a ser estudados não reconhece, plenamente, as práticas corporais na
por você, será fácil perceber que muitas dificuldades escola, não dando-lhes o espaço que, defendemos,
encontradas pelos professores de educação física no elas deveriam ter. Um exemplo bastante elucidativo
desenvolvimento de seu trabalho são explicadas pela desse posicionamento podemos ler em um livro que
posição secundária do corpo e de sua educação, se exerceu (e ainda exerce, em minha avaliação) grande
comparadas à preocupação que temos para ensinar o influência no campo da educação física escolar. Tra-
conteúdo da maioria dos outros componentes, con- ta-se do já mencionado “Educação de corpo inteiro”,
ceituais por excelência. É uma explicação intrigante, de João Batista Freire. No início do livro, ele diz:

142
EDUCAÇÃO FÍSICA

Às vezes falta visão ao sistema escolar, às vezes considerarmos as palavras de Freire (1994). Antes
faltam escrúpulos. É difícil explicar a imobili- disso, temos a percepção de que é o ensino tradicio-
dade a que são submetidas as crianças quando nal que prevalece se considerarmos as ácidas críticas
entram na escola. Mesmo se fosse possível pro-
do excerto lido.
var (e não é) que uma pessoa aprende melhor
quando está imóvel e em silêncio, isso não po- Embora a citação anterior deixe entrever uma
deria ser imposto, desde o primeiro dia de aula, resposta negativa à questão com a qual finalizo esta
de forma subida e violente. Dá para imaginar unidade, ou seja, o corpo não tem lugar na escola,
o que representa para uma criança, que passou
avalio como interessante pensá-la sob uma perspec-
sete anos se movimentando, ser subitamente
“amarrada” e “amordaçada” para, como se diz, tiva histórica. Esse procedimento relativiza a contun-
“aprender” o que é, para ela, uma linguagem, dência da negatividade apontada com a eloquência
às vezes, totalmente estranha? A linguagem da do exemplo anterior. Por outro lado, uma resposta
imobilidade e do silêncio? Seria o mesmo que
positiva será mostrada como um opção duvidosa.
pegar um professor idoso, que há muito deixou
de praticar atividades físicas, a não ser as mais Com efeito, mesmo com a necessidade de tomarmos
triviais, e obrigá-lo a correr por alguns quilô- decisões e oferecermos respostas aos problemas que
metros em ritmo acelerado. A violência seria nos afligem, o zelo de quem pensa nas coisas com
idêntica. O interessante é que nós, professores, muito cuidado obriga o analista a esperar, um pouco
não suportamos a mobilidade da criança, mas
mais, para pronunciar seus vereditos!
queremos que ela suporte nossa imobilidade
(FREIRE, 1994, p. 12). Como você pôde perceber nos itens anteriores, a
intensidade dos debates sobre a inclusão das práticas
É explícita e contundente a crítica feita por Freire corporais na escola nos faz entender que é apenas
(1994) não apenas à escola enquanto uma institui- a partir do século XIX que a educação física ganha
ção que não conhece aqueles que são o seu principal um espaço importante nas estruturas escolares. Ex-
alvo, mas críticas aos professores e a sua ignorância, plorando ainda um pouco mais o que foi dito, sobre-
que imporiam a violência da imobilidade às crian- tudo no item anterior, sublinho que as defesas sobre
ças. Nessa ótica, crianças, corpo e movimento são a pedagogização das práticas corporais não foram
colocados como sinônimos, reverberando ideias pe- vozes unânimes no cenário educacional. Havia, de
dagógicas que você já verificou serem características fato, uma grande desconfiança não apenas sobre a
da nova escola e defendidas por todo o século XX, valia da escola a ser oferecida para todos os mem-
posicionando-se contra a escola tradicional. Fica bros da sociedade, mas duvidava-se sobre a neces-
fácil perceber, também, que ainda nos dias de hoje sidade de trazer para seu interior o cuidado com a
essa nova escola parece não ter se concretizado se natureza corporal.

143
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Sabemos que, na época clássica da antiguidade na escola apenas por meio disso que hoje chamamos
grega, skholé era o tempo livre considerado como de componente curricular. Por essa razão a minha
valioso para um aprimoramento do cidadão que se insistência em construir um entendimento no qual
sustentava não apenas na relevante capacidade argu- você, querido(a) aluno(a) saiba diferenciar educa-
mentativa, mas também na dimensão estética e atlé- ção corporal de educação física.
tica do corpo treinado. Importante nessa reflexão é o Se a educação física, entendida como lugar e
fato de a escola, tomada como um lugar específico de espaço de práticas voltadas, sistematicamente, ao
formação da infância e da juventude, a partir da ida- esporte, passou a ser pensada para todos e todas
de média ter se transformado em um lugar em que apenas no século XIX, a educação corporal exis-
a dimensão intelectual ganhou proeminência. Essa tiu na educação de todas as outras épocas e socie-
ênfase na educação intelectual continuou a marcar dades. Essa afirmação vale, inclusive, para aqueles
as escolas que existiam na época moderna, apesar que defendiam a irrelevância do corpo, o seu cará-
da existência de muitos filósofos que advogassem a ter pecaminoso/libidinal, ou mesmo para aqueles
importância da educação física. Lembremos aqui a que, ao constatarem que a força e a resistência cor-
já citada ênfase de John Locke na questão. Todavia, poral não eram mais necessárias à sobrevivência
a ênfase dada pelo filósofo inglês à educação física do homem, cuidavam apenas do desenvolvimento
era voltada à educação que acontecia no seio fami- da inteligência. Isso podemos ver claramente não
liar, e não a que tinha lugar nos colégios nos séculos em discursos educacionais, mas em estratégias dis-
XVII. Por essa razão, é muito marcante e relevante ciplinadoras que caracterizam a rotina não apenas
para nós o que aconteceu no século XIX e XX, tanto da escola atual, mas das escolas em outras épocas e
em termos pedagógicos que dizem respeito não ape- da educação que também ocorre fora delas. Desse
nas às transformações ocorridas na escola, quanto ponto de vista, a educação corporal é algo sempre
no que diz respeito às transformações que levaram presente e muito eficaz para o alcance de muitos
à institucionalização da educação física por meio da resultados educativos.
presença da ginástica na escola. Essas reflexões são importantes para esboçarmos
A relevância das transformações que levaram respostas à questão que intitula esta parte da unida-
à presença da educação física como prática escolar de. Afinal, elas nos sinalizam que o corpo sempre es-
não deve nos levar a pensar que o corpo é abordado teve presente, ou sempre teve espaço e tempos a ele

144
EDUCAÇÃO FÍSICA

dedicados. Mas o estudo do que estava acontecendo em relação à presença massiva de novas tecnologias
na escola e a presença que o corpo passou a ter nela que subvertem modos rotineiros de se lidar com o
a partir do século XIX colocou um elemento históri- conhecimento a ser transmitido. Do mesmo modo,
co novo e revolucionário: ele inaugura um momento as práticas corporais, o lazer, a saúde e o bem-es-
em que educação corporal e educação física escolar tar individual e social das pessoas têm se costurado
ladeiam-se, em um tempo em que tanto a escola como elementos muito dependentes entre si. Enten-
quanto as práticas corporais ganharam muita aten- der como esses elementos que colocam o corpo no
ção e esforços sociopolíticos envidados por muitos centro da atenção do mundo contemporâneo rela-
setores sociais e educacionais para efetivarem sua cionam-se com o futuro e o passado da instituição
importância. Efetivação essa que se mostrou plena escolar é uma reflexão da qual não podem fugir os
em dificuldades durante a história do longo século professores de educação física. Nunca é demais re-
XX. São elas que explicam desconfianças em relação petir: a coragem para pensá-la tem no estudo da his-
ao poder da escola, quando as práticas corporais das tória uma de suas principais fontes.
crianças e dos jovens são pensadas pedagogicamen-
te. Mesmo que a luta encampada por Freire (1994)
deva ser posta em perspectiva história para se com-
preender que ela nasce junto com a própria escola
popular e foi por ela suas características possibilita-
das, devemos reconhecer que a história nos mostra
que essa luta por definirmos o espaço das práticas
corporais na escola e na educação de forma geral é
de inegável valor para que a escola e os demais espa- REFLITA
ços educacionais sejam valorizadas, sobretudo pelos
alunos que a frequentam.
Essa escola, que nasceu e se expandiu nos
Deve ser observado que à escola, em nível mun- séculos XVIII e XIX, construiu em seu interior as
dial, tem se dirigido muitas críticas que, frequente- bases pedagógicas do que hoje conhecemos
mente, dão conta de sua defasagem em relação ao como educação física escolar.

mundo que se descortinou no início do século XXI,

145
considerações finais

P
rezado(a) aluno(a), chegamos ao final da penúltima unidade deste li-
vro, percebendo que corpo, práticas corporais, objetivos educacionais
e instituições educacionais possuem uma relação passível de ser in-
vestigada e entendida historicamente. Consoante ao ímpeto que me
leva a escrevê-lo e você a procurar um curso superior de educação física que lhe
possibilitou lê-lo, mais uma vez nossos olhares se voltam para o que a história das
práticas corporais, da educação corporal e da educação física escolar realizaram
de um modo que tem caracterizado nossas reflexões.
Partimos de problemas pedagógicos e culturais enfrentados por nós nos dias
de hoje, indo a um determinado tempo distante do nosso, cronologicamente, e
percebemos, na tensão entre diferenças e semelhanças entre outros contextos e
o nosso, que muitos assuntos aparentemente simples e não enigmáticos mudam
de feição. Afinal, se a importância da escola é algo que muitos não questionam e
outros afirmam, simplesmente, não existir, as análises evidenciam que devemos
verificar que essa importância nem sempre existiu, e, do mesmo modo, afirmar
sua inutilidade no tempo é abrir mão de pensá-la atentamente, como fizeram
aqueles que a criaram nos séculos XVIII, XIX e início do século XX.
O mesmo pode ser dito em respeito à presença das práticas corporais na roti-
na escolar: se de um lado, hoje, muitos duvidam do valor e do potencial pedagó-
gico das aulas de educação física, vimos que essas dúvidas também existiram no
momento em que foram construídas as bases que formam o conjunto de proce-
dimentos didáticos, os assuntos e os professores que dão vida a esse componente
curricular na escola.
A relevância dessa discussão pode ser atestada pelo fato de ela ter existido,
praticamente, em todos os países do mundo que encontravam-se em condição
sócio-histórica de escolarizar seus cidadãos. Abordada a generalidade desse pro-
cesso, caminhamos para o encerramento de nosso passeio histórico pela educa-
ção física, focalizando, de um modo mais detalhado, como a construção da edu-
cação física escolar foi discutida e quais os desafios que ela enfrentou no contexto
brasileiro.

146
atividades de estudo

1. Diferencie educação corporal de educação física escolar.

2. De que maneira as práticas corporais passaram a ser avaliadas no século


XIX?

3. Especifique as características que fazem a escola que surgiu nos século


XVIII, XIX e XX ser diferente das configurações escolares precedentes.

4. A escolarização da sociedade que ocorreu na virada do século XX teve qual


impacto para a história da educação física?

5. Ao falarmos do período em que estudamos, qual o cuidado que devemos


ter ao falar de educação física na escola?

147
LEITURA
COMPLEMENTAR

Parece-nos haver uma dimensão ainda pouco explora- retórica da necessidade de disciplinar comportamentos
da nos estudos históricos relativos ao processo de es- infantis e ao desenvolvimento de diferentes rotinas e
colarização primária ou elementar. Trata-se daquilo que rituais. Por certo, todos esses elementos deram ênfase
chamamos de educação do corpo, uma das marcas mais e visibilidade às dimensões de um projeto de formação
tangíveis da difusão mundial da educação primária entre moral, intelectual, e não só corporal. Nos propósitos
as décadas finais do século XIX e as primeiras décadas do deste trabalho, abordamos prioritariamente o lento en-
século XX. Para sua realização, contribuíram discursos, gendramento de algumas disciplinas escolares e outras
dispositivos, práticas e saberes distintos em seu conte- práticas educativas realizadas na escola e em seu entor-
údo e origem. Em trabalhos recentes, diferentes autores no, algumas com impressionante permanência. Tendo
têm procurado lançar luzes sobre essa temática, e têm a educação do corpo como escopo básico, essas disci-
mostrado como os estudos sobre a história da educação plinas e práticas delinearam um verdadeiro projeto de
do corpo se encontram entrelaçados a outras temáticas intervenção cultural.
ou problemas de pesquisa, tais como: a educação dos Se esse projeto cultural comporta permanências, com-
sentidos e das sensibilidades, os rituais disciplinares, as porta também deslocamentos. Se ocorreram variações
prescrições científicas, etc. - desdobramentos que fazem no trato pedagógico com os corpos infantis - tanto nos
do corpo o lugar que abriga, rejeita, recebe, devolve, si- discursos quanto nas práticas -, houve também a consoli-
lencia ou anuncia a abundância de encontros com a na- dação de uma ideia de civilidade que se fortalecia: a insti-
tureza e com a cultura realizados pelos sujeitos. tuição de um ordenamento cultural capaz de afirmar que
Para dimensionar o olhar sobre tais peculiaridades, bas- é possível e necessário educar as crianças e seus corpos.
ta nos remetermos às preocupações com a definição de Temos aqui regras básicas que continuam a influenciar.
espaços e tempos apropriados ao projeto de escolariza- Trata-se de algo que funda, baliza e expressa sentidos da
ção, ao conjunto de formulações que refletiram sobre a história da educação na medida em que se repete e se
higiene, a saúde, o cansaço ou o divertimento dos escola- modifica. São regras que se manifestarão nas proposi-
res, à disposição dos chamados utensis - materiais e equi- ções pedagógicas que, no Brasil, ganharam relevo no fim
pamentos básicos, necessários para o fazer cotidiano do século XIX e na primeira metade do século XX.
nas escolas -, aos debates sobre os efeitos formativos da Fonte: Taborda de Oliveira e Linhales (2011, p. 389).
aplicação de castigos corporais ou sua impropriedade, à

148
material complementar

A educação física e a criação dos sistemas nacionais


de ensino
Carlos Herold Junior e Zélia Leonel
Editora: EDUEM
Ano: 2010
Sinopse: trata-se de uma versão de dissertação de mestrado.
Muitas das reflexões desenvolvidas nesta unidade são estuda-
das no livro de forma mais detalhada.

Tarja Branca
Ano: 2014
Sinopse: trata-se de um documentário que explora a importân-
cia do lúdico na vida de crianças e adultos.
Comentário: não fala, diretamente, da escola e da educação
física, mas nos ajuda a pensar parte relevante de discursos e
práticas que foram divulgados durante todo o século sobre a
importância da educação em reconhecer características inatas
à infância e à juventude. Nessa natureza, o jogo e o brinquedo,
são vistos como essencialmente corporais.

Na página do Centro de Referência Mário Covas há muitas infor-


mações, vídeos e revistas sobre a educação de um modo geral e,
também, sobre a história da educação. Acesse e confira!

Link: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/>

149
referências

ANDRÓNIKOS, M. O papel do atletismo na edu- HEROLD JUNIOR, C. A educação física no pensa-


cação dos jovens. In: YALOURIS, N. Os jogos mento educacional moderno no contexto francês do
olímpicos na Grécia Antiga: Olímpia Antiga e os século XVIII. Analecta (UNICENTRO), Guarapua-
Jogos Olímpicos. São Paulo: Odysseus, 2004. p. va-PR, v. 7, p. 43-55, 2006.
39-68.
______. Da instrução à educação do corpo: o caráter
ANTONOVICZ, S.; HEROLD JUNIOR, C. O cor- público da educação física e a luta pela moderniza-
po da docência: a mulher e a constituição do ensino ção do Brasil no século XIX (1880-1925). Educar em
normal em Guarapuava (1930-1960). 1. ed. Curitiba: Revista, Curitiba, n. 25, p. 237-255, 2005.
Edunicentro - Fundação Araucária, 2012.
______. A educação física na crise do capitalismo no
BRUHNS, H. T. O corpo parceiro e o corpo adver- século XIX. Teoria e Prática da Educação, Maringá-
sário. Campinas-SP: Papirus, 1999. -PR, v. 7 n. 2, p. 163-172, 2004.
CROSBY, A. W. A mensuração da realidade. São HOBSBAWM, E. A era dos extremos. São Paulo:
Paulo: Editora da Unesp, 1999. Companhia das Letras, 1994.
FARIA FILHO, L. M. de; et al. A cultura escolar LOCK, J. Alguns pensamentos sobre a educação.
como categoria de análise e como campo de investi- Coimbra - Portugal: Almedina, 2012.
gação na história da educação brasileira. Educação e
SCHARAGRODSKY, P. (Org.) La invención del
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77 - 97. A. Pensar a educação do corpo na e para a escola: in-
dícios no debate educacional brasileiro (1882-1927).
FREIRE, J. B. Educação de corpo de inteiro: teoria e
Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.16,
prática da educação física. São Paulo: Scipione, 1994.
n. 47, p. 389-408, maio/ago. 2011.

150
gabarito

1. Educação corporal refere-se a processos que acontecem em toda a vida


cotidiana e que impactam a nossa maneira de pensar, perceber e usar
nosso corpo. Já a educação física escolar denomina práticas pedagógicas
específicas executadas na escola a serem feitas sobre e por meio do corpo.

2. As práticas corporais foram pensadas a partir de seu potencial pedagógico


a ser aproveitado na escola.

3. A escola que passou a existir nesse momento foi pensada como instituição
a ser frequentada por todos os filhos das diferentes classes sociais então
existentes. Para isso acontecer, a instituição escolar se reorganizou, pas-
sando a funcionar em espaços específicos, seriando seus alunos e deman-
dando novas abordagens metodológicas por parte de seus professores.

4. Foi no processo de escolarização da sociedade que as práticas corporais


passaram a ter lugar no interior das escolas. Essa presença foi fundamen-
tal para o processo de expansão das práticas corporais em geral, voltadas
ao lazer, à saúde e à competição esportiva.

5. No período compreendido pelos séculos XVIII, XIX e início do século XX, a


presença das práticas corporais na escola não se dava pela denominação
educação física e sim, mais comumente, pela denominação de ginástica.
Nesse período, o termo educação física referia-se apenas à necessidade de
educar o corpo e por meio do corpo.

151
A EDUCAÇÃO FÍSICA NA HISTÓRIA
DA ESCOLA BRASILEIRA

Professor Dr. Carlos Herold Junior

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
• Escola e educação física na passagem ao século XX: muitos
pensamentos e uma realidade
• Discutindo a presença das práticas corporais na escola brasileira:
pluralidade de modelos
• Formando professores de educação física: o que fica dessa história?
• Os caminhos até nós: como a educação física escolar se tornou o
que é?
• Educação física e escola: pensando futuros ao pensarmos passados

Objetivos de Aprendizagem
• Discutir a importância educacional das práticas corporais na
educação brasileira no século XIX e início do século XX.
• Verificar as configurações pedagógicas que deram vida à educação
física à luz da escolarização ocorrida no Brasil.
• Avaliar a história das práticas e instituições voltadas à formação de
professores de educação física para atuarem na educação básica.
• Estudar as alterações legais e pedagógicas que existiram na
educação física brasileira durante o século XX.
• Ponderar desafios contemporâneos a serem enfrentados pela
educação física escolar brasileira.
unidade

V
INTRODUÇÃO

C
aro(a) aluno(a), daremos o último dos passos de nossa caminha-
da pela história da educação física. A essa altura do trajeto, acre-
dito que você já tenha percebido muitos detalhes na paisagem,
antes desconhecidos. Afinal, até este momento discutimos a im-
portância do conhecimento história e sua riqueza na formação de professo-
res de educação. Na unidade II vimos que o nosso corpo é alvo de diferentes
olhares, valorizando-o ou diminuindo-o conforme a época que estudamos e
a classe social cujas ideias e representações estudamos. O mesmo ocorre com
as práticas corporais, para as quais um olhar histórico possibilita a verifica-
ção de que sobre elas muitas coisas importantes, em termos sociopolíticos,
têm sido pensadas. Foi estudado, igualmente, que tamanho valor fez com que
boa parte das instituições educacionais e práticas pedagógicas fossem deve-
doras dos modos como a corporeidade infantil e juvenil fora avaliada, ora
como condição ora como problema para o alcance de objetivos educacionais.
Por tudo isso, este último passo, certamente, será influenciado pelo
conhecimento construído na trajetória até aqui caminhada. Apesar da
sensação de um esforço despendido deixar o passeio mais pesado na me-
dida que se avança, a experiência obtida pelo que passou e a curiosidade
por ver o fim deste primeiro caminho percorrido no campo da história
da educação física dará energias extras para abordarmos, nesta unidade
V, a escolarização das práticas corporais na história educacional brasi-
leira. Como o processo que estudamos na unidade IV, analiticamente
pautado na generalidade de pensamentos, fatos e instituições passíveis
de serem encontradas em boa parte do mundo nos século XIX e XX,
materializou-se no Brasil? De que maneira particularidades históricas de
nosso país influenciaram ou foram influenciadas pelas discussões educa-
cionais que aqui ocorreram no período que estamos analisando?
Ajeite, confortavelmente, a bagagem acumulada até aqui, respire fun-
do e aperte o passo para conhecermos a importância da educação física
escolar na história educacional do Brasil.
Bons estudos!
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

ESCOLA E EDUCAÇÃO FÍSICA


NA PASSAGEM AO SÉCULO XX:
MUITOS PENSAMENTOS E
UMA REALIDADE

156
EDUCAÇÃO FÍSICA

Para construir um entendimento sobre os papéis e rados, escolas mal equipadas, políticas educacionais
os diferentes níveis de importância que teve a educa- pouco exitosas, etc.
ção física na escola brasileira, sugiro que você reflita Ao olharmos a história da educacional brasi-
comigo um pouco da história educacional de nosso leira, deparamo-nos com questões bastante impor-
país. Penso ser válido esse pequeno desvio, pois, ao tante sendo debatidas, divergências agudas sobre os
voltarmos à nossa rota, teremos condições de per- rumos a serem tomados pela escola; lutas intensas
corrê-la de um modo mais certo, compreendendo sobre a ampliação do direito educacional e de seu
boa parte de suas curvas sinuosas, dos trechos mais apoio por parte do Estado; do mesmo modo que é
acidentados e do destino ao qual ela nos leva. possível encontrar aqueles que, sem negar a impor-
Para isso, uma postura muito importante a ser tância da educação, vão defendê-la como uma prer-
cultivada é a ponderação sobre o valor que possuiu rogativa privada das famílias, vendo como prejudi-
a educação na história brasileira. É muito comum, cial a interferência política no seu interior.
quando se quer explicar os problemas que hoje exis- Não deve ser esquecida na ponderação sobre a
tem, atribuir aos políticos, aos pedagogos e demais história educacional no Brasil a marcante presença
autoridades ligadas ao mundo educacional do pas- da Igreja Católica como agente educacional, inicia-
sado a culpa por aquilo contra o que nós, sabiamen- da com a atuação da Companhia de Jesus e, depois
te, lutamos com pleno conhecimento de causa. O da expulsão dessa ordem em 1759, com a ação de
tom um tanto quanto irônico dessa afirmação não outras congregações e irmandades. Mas foi com
duvida das nossas dificuldades educacionais hoje a expulsão da companhia que uma determinada
existentes, muito menos do denodo com que muitas ação do Estado pôde ser vista na realidade brasi-
pessoas tentam superá-las nos seus respectivos cam- leira. Inicialmente, ela foi marcada pela criação das
pos de atuação. O tom irônico dirige-se a uma visão Aulas Régias por parte do Marquês de Pombal. To-
simplificada da história educacional. Visão essa que, davia, foi com a proclamação da Independência do
comumente, afirma que a educação não teria rece- Brasil em 1822 que temos um marco importante
bido a importância que deveria, o que, nessa ótica, para pensarmos na expansão da educação na socie-
teria levado ao fato de termos professores desprepa- dade brasileira.

157
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Avolumam-se ali, efetivamente, um conjunto de No Brasil, por volta da segunda década do sé-
discussões e decisões sobre o papel da educação na culo XIX, já em momento posterior à conquis-
ta de sua independência, é desencadeado um
construção de um país que clamava pela liberdade ao
vigoroso projeto de eugenização da população
romper o pacto colonial, mas que continuou a con- brasileira. Este projeto se coloca como pos-
viver com o trabalho escravo até 1888. De qualquer sibilidade de alteração de um quadro onde a
modo, estava aberta a problemática de construir uma metade da população do Brasil era constituída
nação, de dar azo a um sentimento nacional que, ape- de escravos negros, índice que permanece até
por volta de 1850, quando para uma popula-
sar de forte o suficiente para estimular a ruptura com
ção de 5.520.000 pessoas livres, encontram-se
Portugal, ainda não possuía a pujança necessária para 2.500.000 negros (SOARES, 1994, p. 89).
fazer frente aos desafios impostos pelo que era neces-
sário ao país para se integrar à economia e à política Soares (1994) fala de uma pedagogia higiênica exis-
internacional de um modo independente. tente no Brasil durante o século, enfatizando que
Em termos educacionais, essa preocupação ma- essa inquietação, nos anos que se seguiram à Pro-
nifestou-se, em 1827, na criação da primeira regu- clamação da Independência, reduziram a “família
lamentação brasileira especificamente educacional, de elite agrária, num primeiro momento, e a família
que estipulou ser a educação um direito dos cida- burguesa citadina, num segundo” (SOARES, 1994,
dãos. Vale observar que essa cidadania não era uma p. 91). Essa situação vai se alterar apenas com os
prerrogativa de boa parte daqueles que aqui habita- desdobramentos da história cultural, política e eco-
vam no século XIX. Não apenas pelo fato de parce- nômica brasileira que levaram a sociedade a ques-
la relevante desses brasileiros serem escravos, mas tionar a viabilidade do trabalho escravo e a estrutu-
também pelo fato de haver critérios econômicos ra política imperial, levando ao fato de “o discurso
que possibilitassem a condição política de cidadão. normativo e disciplinador da higiene” se estender “à
Atente-se à complexidade dessa situação! toda população, ou seja, quando o trabalho assala-
Mesmo que essa condição tenha diminuído, em riado se torna preponderante” (SOARES, 1994, p.
muito, o alcance de qualquer discussão educacional 91). Podemos pensar na necessidade de ampliação
por limitar o número de possuidores dos tais direi- desse discurso disciplinador analisando-o e tendo
tos educacionais, as limitações materiais para a ex- como anteparo as discussões levadas à cabo sobre a
pansão da escola impediam que mesmo os cidadãos abolição da escravatura. A partir da década de 1860,
tivessem escolas em número suficiente para atender a problemática ficou cada vez mais evidente, impac-
às suas necessidades culturais e econômicas. tando a questão educacional de um modo mais dire-
Esses limites materiais da educação brasileira to. Ao ser avaliada a situação econômica e educacio-
iam sendo constatados na igual medida de preocu- nal do país, passou-se a atribuir à educação a “tarefa
pações sobre o que eram e sobre o que deveriam ser de formar o novo tipo de trabalhador para assegurar
os brasileiros. Paralelamente ao esforço educacio- que a passagem se desse de forma gradual e segura,
nal de abordar essa dúvida, a preocupação higiêni- evitando-se eventuais prejuízos aos proprietários de
ca foi importante. É isso que nos diz Soares (1994), terras e de escravos que dominavam a economia do
quando afirma: país” (SAVIANI, 2007, p. 159).

158
EDUCAÇÃO FÍSICA

Fonte: Família e Escravos no Brasil (CHAMBERLAIN, 1822, on-line)2.

Explorando ainda um pouco mais o desenho do Esse conjunto de debates e problemáticas erigido
contexto educacional brasileiro, ao lado dessas ques- no desenvolvimento da história brasileira durante
tões culturais e econômicas que estimulavam uma o século XIX deu à questão da educação física uma
atenção à ampliação da oferta educacional, temos importância palpável. Tanto para a questão produ-
também a conjuntura política. O questionamento tiva relacionada ao trabalho, passando pela obser-
à ordem imperial, a passagem a uma ordem repu- vância higiênica das famílias, chegando à formação
blicana, a formação de cidadãos brasileiros a partir da incipiente nacionalidade republicana, é possível
de ex-escravos e também de imigrantes, sobretudo perceber que, ao lado da reivindicação de mais es-
europeus, fizeram com que as questões educacio- colas que realizassem a possibilidade de todos terem
nais tivessem sua relevância aumentada, aglutinan- nela lugar, havia a reivindicação de se educar fisi-
do ideias, propostas e, também, os desafios a serem camente a população. Ao lermos os artigos, livros,
superados por contexto econômico dependente dos documentos e imagens produzidas nesse contexto, a
países capitalistas centrais: percepção de o corpo individual ganhar uma impor-
tância sociopolítica no Brasil é algo que nos faz ver
Nesse sentido, o papel atribuído à educação es- o esforço da sociedade brasileira em se escolarizar.
colar era criar uma unidade nacional em torno
da qual cada indivíduo, que havia abandonado
E ao fazê-lo, a educação corporal e sua escolariza-
sua antiga relação de dependência, seja com a ção foram partes inerentes no processo. Nesse ponto
natureza pródiga, ou com o seu senhor, fosse é importante voltarmos à discussão que aborda, de
mobilizado a trabalhar mais em nome do pro- um lado, a presença da educação corporal na so-
gresso da nação. [...] acreditava-se na escola
ciedade e na escola, diferenciando-a dos processos
para formar essa alma nacional que levaria ao
grau de modernização alcançado pelos países específicos que chamaríamos de educação física. Fa-
centrais (SCHELBAUER, 1998, p. 137). lando em primeiro lugar dos processos mais amplos

159
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

e retomando advertências feitas na unidade anterior, um vasto leque de informações sobre o que esta-
Taborda de Oliveira et al. (2003) fazem uma explica- va sendo discutido em várias parte do mundo, em
ção que é importante você considerar para entender termos pedagógicos. Em uma de suas passagens
de um modo mais aprofundado a crescente presença mais conhecidas, escrita em 1882, ao falar sobre a
do corpo nas estruturas escolares que, não sem difi- educação física, pondera: “Não pretendemos for-
culdades, ampliava-se: mar acrobatas nem Hércules, mas desenvolver na
criança o quantum necessário ao equilíbrio da vida
[...] em práticas corporais escolares estamos humana, a felicidade da alma, a preservação da pá-
nos referindo a um conjunto de manifesta-
tria e a dignidade da espécie” (BARBOSA apud
ções intraescolares que indicam ou podem
indicar as formas como foi concebida ao lon- HEROLD JUNIOR, 2005, p. 245).
go do tempo a escolarização e o seu papel na
formação humana. Essas práticas podem bem
estar assentadas na organização do tempo e do
espaço escolares [...] (por exemplo, na dispo-
sição das cadeiras, no mobiliário, na definição
de espaços de acordo com funções específi-
cas), como na própria manifestação corporal
dos agentes escolares (punições, gestualidade
etc.) e chegando às manifestações corporais –
autônomas ou tuteladas – dos alunos (brinca-
deiras, formas de comportamento, atividades,
etc.). Portanto, as práticas corporais escolares
incluem e superam aquelas práticas ou ativi-
dades afeitas apenas à Educação Física (TA-
BORDA DE OLIVEIRA et al., 2003, p. 7).

Taborda de Oliveira et. al. (2003), ao fazerem essa


identificação, oferecem elementos para que pen-
semos na relevância do corpo e dos diferentes
procedimentos educacionais a ele voltados para
o contexto brasileiro de então. Por conta disso, o
corpo, sua educação e sua escolarização ocuparam
intelectuais e políticos atuantes naquele momen-
to. As defesas em relação à educação corporal e
sua presença sistemática escolar era apresentada
como uma espécie de verdade inquestionável (HE-
ROLD JUNIOR, 2005). Rui Barbosa foi um dos
intelectuais e políticos com grande envolvimento
na questão educacional da juventude e que possuía Fonte: Rui Barbosa (DIAZ, [1923], on-line)3.

160
EDUCAÇÃO FÍSICA

Outro modo de enxergarmos a maneira como a acontecer de um modo mais visível apenas a par-
questão da educação física foi ganhando espaço tir de 1930. Até os anos 30, prevaleceram diferen-
nas últimas décadas do século XIX é analisar os tes procedimentos sobre a educação física escolar,
anais do Congresso de Instrução, que aconteceria procedimentos esses criados, individualmente, em
no Rio de Janeiro, em 1883. A reunião acabou por cada Estado, imprimindo a essa dimensão educa-
não acontecer, muito embora as teses que seriam cional uma variedade de práticas e rotinas, muito
apresentadas tenham sido publicadas. Nele, profes- longe, portanto da ambicionada unidade em tor-
sores, políticos e outros grupos ligados ao mundo no de uma verdade inquestionável. Fernando de
educacional reuniriam-se para verificarem o modo Azevedo (s.d.), em uma reedição de uma obra ini-
como a educação estava sendo encarada e quais as cialmente publicada em 1915, teceu um panorama
mudanças avaliadas como importantes. Um dos que nos faz pensar nos problemas enfrentados pela
congressistas, ao escrever sobre a educação física, é educação física escolar:
claro na apresentação de justificativas que a toma-
vam como um elemento incontornável do período, Um dos mais salutares temas de meditação, que
se antolham aos poderes públicos e educadores
em termos pedagógicos:
preocupados com os problemas, a cuja solução
se ligam os efeitos, benéficos ou prejudiciais,
A tendência que esta (a criança) tem para dum sistema educativo, é o estado da cultura
opor-se à quietação, é uma força latente que física em nossas escolas, em geral, e o modo
a natureza faz atuar em seu organismo com como no Brasil é administrada a educação fí-
o fim de auxiliar o desentorpecimento, o de- sica. Realmente é difícil encontrar um país, em
sembaraço, o crescimento harmônico e simul- que esteja menos vulgarizada a noção do ver-
tâneo de todas as suas faculdades physicas e dadeiro papel que compete à educação física
não physicas, e a natureza não consente que (AZEVEDO, 1971, p. 149).
se infrinjam impunemente suas leis. Se qui-
sermos sopear aquela força, condenando a
puerícia à imobilidade, a natureza vinga-se, É importante verificar nessa citação o problema da
vinga-se também a meninada (CONGRESSO cultura física, não a cultura física em si, mas a pe-
DE INSTRUCÇÃO apud HEROLD JUNIOR, dagogização de sua prática na instituição escolar.
2005, p. 251).
Para ajudar você a entender essa problemática é
importante levar em conta que a questão não re-
Ao lermos apenas algumas das numerosas manifes- sidia, apenas, no estado da cultura física, mas na
tações em defesa da educação física na escola a ser forma como a educação pública, obrigatória, lai-
frequentada por todos os cidadãos, tem-se a im- ca e gratuita vinha se construindo no Brasil. No
pressão de que estamos lidando com um fato am- próximo item vamos analisar, mais detidamente,
plamente aceito por parte de toda a sociedade e que alguns detalhes dessa construção, atentando-nos
teria sido implantado, imediatamente, naquele mo- para o modo como o desenvolvimento histórico-
mento. Porém, não é esse o cenário: mesmo com as -educacional brasileiro delimitou algumas caracte-
defesas da escola e da educação física em seu inte- rísticas e possibilidades da expansão da educação
rior, a concretização plena desse ideário passou a física escolar.

161
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Fonte: Escola Municipal Ada Sant’ Anna da Silveira (WIKIMEDIA COMMONS, 1927, on-line)4.

DISCUTINDO A PRESENÇA DAS PRÁTICAS


CORPORAIS NA ESCOLA BRASILEIRA:
PLURALIDADE DE MODELOS
Caro(a) aluno(a), quando estudamos os fenôme- No caso da história da educação física essa re-
nos que nos interessam sob um ponto de vista flexão tem seu valor, pois, um dos grandes objeti-
histórico, um dos desafios é realizar uma ponde- vos de estudá-la é verificar que o corpo, as práticas
ração precisa sobre a presença das deliberações corporais e a educação que delas surge são passíveis
individuais no âmbito da coletividade em que elas de serem entendidas por terem acontecido em um
existem, do mesmo modo que se quer saber como determinado momento possuidor de valores socio-
uma determinada coletividade ou conjunto de va- culturais, políticos e econômicos diferentes da épo-
lores sociais compartilhados levam os indivíduos ca em que vivemos. Todavia, para acessá-los e co-
a pensarem e a agirem de determinadas maneiras, nhecê-los, obtendo, assim, condições para entender
e não de outras . melhor o assunto que estudamos, é fundamental nos

162
EDUCAÇÃO FÍSICA

atermos ao pensamento de alguns personagens que do de Azevedo fundou uma tradição explicativa que
desempenharam papel fundamental na história que atribui ao referido ato o fato de o Estado brasileiro
nos interessa. Esse é o caso de Fernando de Azevedo. ter dificuldades (que ainda existem) em assumir a
Ao lado da grande relevância desse educador educação como direito de todos e de providenciar
paulista para a história educacional brasileira como as condições materiais e pedagógicas para realizá-lo.
um todo, para a educação física e sua inserção na Para ele, o referido ato “foi uma das maiores aber-
escola seu pensamento e sua análise do contexto rações na evolução política imperial” (AZEVEDO,
brasileiro foram fundamentais. A obra que citamos 1971 p. 574). A assim chamada aberração levou à
anteriormente foi resultado de um concurso por ele seguinte situação:
prestado para uma vaga de professor de educação
física em Belo Horizonte. Mesmo não tendo sido O Ensino público estava condenado a não ter
organização, quebradas como foram as suas
aprovado, a obra ficou como a primeira e uma das
articulações e paralisado o centro diretor na-
mais contundentes análises empreendidas sobre o cional, donde se devia propagar às instituições
assunto no momento em que foi escrita, assim como escolares dos vários graus uma política de
continua a ser há cem anos, considerando que o educação, e a que competir coordenar, num
concurso mencionado aconteceu em 1915. sistema, as forças e instituições civilizadoras,
esparsas pelo território nacional (AZEVEDO,
No item anterior você percebeu que, apesar das
1971, p. 574).
defesas em relação à importância da educação físi-
ca escolar ser apresentada como uma verdade cien- A força dessas ideias e a penetração retórica de
tífica inquestionável na ordem dos assuntos sociais Fernando de Azevedo na abertura de um caminho
e políticos do Brasil no fim do século XIX e início explicativo para os limites educacionais brasileiros,
do século XX, os analistas da questão, entre eles porém, devem ser consideradas com atenção. Afi-
Rui Barbosa e Fernando de Azevedo, avaliavam que nal, como diz Saviani (2008, p. 129), “não se pode
aquelas defesas não teriam produzido os resultados atribuir ao Ato Adicional a responsabilidade pela
esperados. É importante não perder de vista que, não realização das aspirações educacionais no sécu-
aos problemas relativos a essa questão específica da lo XX”. Essa “tendência frequente na historiografia
educação física, somavam-se problemas estruturais educacional” (SAVIANI, 2008, p. 129) deveria le-
da educação brasileira. Ao explicar esse conjunto var em conta as particularidades sociais, políticas e
de desafios e problemas educacionais, um fator foi econômicas do momento em que o ato foi institu-
posto em destaque: uma determinação do ato adi- ído, particularidades essas que deixaram de existir
cional à constituição de 1823, ato esse publicado nos anos finais do século XIX e início do XX. De
em 1834 em que “o governo central desobrigou- qualquer modo, ficou a cargo das Assembleias Pro-
-se de cuidar das escolas primárias e secundárias vinciais (no Império) e das Assembleias Legislativas
transferindo essa incumbência para os governos (nas primeiras décadas da República) lidar com a
provinciais” (SAVIANI, 2008, p. 129). crescente constatação dos problemas e das possibili-
Ao avaliar a história educacional brasileira e dades educacionais, pensadas como uma necessida-
seus problemas nos anos de 1920 e 1930, Fernan- de de um país independente, economicamente inte-

163
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

grado ao capitalismo internacional e com aspirações a seu modo, reconhecia a importância formativa a
políticas liberais. Foram essas transformações que ser atribuída à pedagogização das práticas corporais.
possibilitaram a sociedade do período a ver na ques- Para ilustrar esse processo variado de escolari-
tão educacional um ponto de reflexão necessário, o zação das práticas corporais, sugiro conhecermos
que podemos observar, mais uma vez, pelo tom da alguns desdobramentos desse assunto em alguns Es-
crítica de Fernando de Azevedo: tados brasileiros.
Tarcísio Mauro Vago (2010) estudou a história
A educação teria de arrastar-se, através de todo o da educação e educação física mineira. Ao fazê-lo,
século XIX, inorganizada, anárquica, incessan-
ele nota que a decadência do ciclo econômico base-
temente desagregada. Entre o ensino primário e
o secundário não há pontes ou articulações: são ado na exploração do ouro demandou uma mudan-
dois mundos que se orientam, cada um na sua ça do eixo econômico e cultural, que se deslocou da
direção. As escolas de primeiras letras, como as cidade de Ouro Preto para a capital mineira, Belo
instituições de ensino médio, em geral ancora- Horizonte. Essa mudança provocou muitas outras
das na rotina (AZEVEDO, 1971, p. 576).
no cotidiano de um “pacato arraial” que se tornou
uma “vitrina para a República” (VAGO, 2010, p. 16).
Com esse pensamento, é necessário provocar ou- A vida social, política e econômica que acontecia no
tro: em que isso nos ajuda a entender a história da novo regime fez com que muitos setores sociais pen-
educação física na escola que existiu no final do sé- sassem a respeito das mudanças necessárias para a
culo XIX e início do XX? Resposta: mesmo com a realização da, assim vista, incontornável “ambição
constante lamentação de que a educação física não civilizatória” a ser assumida pela escola. Nessa ótica,
recebia a importância que deveria, ao estudarmos a ela deveria “receber as crianças pobres e fazer delas
história da educação das diferentes províncias/Es- cidadãos” (VAGO, 2010, p. 19).
tados brasileiros, notamos esforços que evidenciam
um processo crescente de escolarização das práticas
corporais. Mesmo sem a unidade nacional pretendi-
da por Azevedo e sem a força que essa escolarização
poderia ter caso tivesse sido uniformizada por uma
ação que minimizasse impossibilidades regionais
para sua concretização (suposições essas que devem
ser questionadas à medida que estudamos um perí-
odo histórico, buscando nele suas necessidades, sem
projetarmos para outras épocas as nossas próprias
necessidades), a problemática da educação física
escolar foi sendo abordada de forma cada vez mais
regular, produzindo, com isso, uma variedade de
modelos e justificativas pedagógicas que acabavam
por se unir em um ponto fundamental: cada Estado, Fonte: Modestino Gonçalves (WIKIMEDIA COMMONS, [1906], on-line)5.

164
EDUCAÇÃO FÍSICA

No conjunto dessas transformações, em 1906 foi empregados em outras propriedades, porque


decretada uma reforma do ensino primário que desse trabalho dependia certo equilíbrio em
suas despesas. No caso das meninas, era difí-
colocou os Grupos Escolares como instituições
cil não tê-las como ajudantes nas tarefas do-
escolares centrais de um novo contexto que deu à mésticas (VAGO, 2010, p. 26).
educação a ser oferecida pela escola o eixo central
dos variados processos formativos, até então prer- Perceba que nessa afirmação temos elementos his-
rogativa das famílias. Mas os problemas logo se tóricos bastante significativos para refletirmos sobre
fizeram sentir: apesar das justificativas para as mu- as dificuldades enfrentadas pela expansão do mun-
danças focarem as classes populares como princi- do educacional formal, elementos que vão além da
pais beneficiárias, não foram as crianças pobres as falta de vontade política comumente atribuída aos
principais frequentadoras dessas instituições mo- que viveram em um determinado passado para re-
delares. Perceba que se trata de um problema bas- alizar aquilo que nós queríamos que eles fizessem!
tante sério, considerando que o discurso político De qualquer maneira, em que pese essas dificulda-
que justificou a passagem ao modelo republicano des, a sociedade mineira se escolarizou nesse perí-
pautava-se na ideia de ampliação da cidadania e de odo, fazendo com que a escola se tornasse a grande
igualdade. Ou seja, apesar de a nova cultura esco- detentora de uma necessária prioridade: mudar há-
lar ser vista como construtora dessa igualdade de bitos arraigados, esparramar a ciência para susten-
oportunidades, justamente ela evidenciava em seu tar a moralidade, algo a ser feito em um cotidiano
dia a dia as contradições de uma igualdade política escolar em que “o corpo dos alunos foi colocado
cimentada em um mundo de grandes disparidades no centro das práticas escolares” com o objetivo de
sociais e econômicas. “constituí-lo, ou reconstituí-lo, racionalmente [...]”
Outro problema observado por Vago (2010) ao (VAGO, 2010, p. 28).
lado dessa característica excludente da forma escolar Com o desenrolar dessas mudanças que deram
que se impunha, era o fato de ela não ser aceita com à escola centralidade, peço-lhe que se atente à im-
tranquilidade por pais, alunos e os próprios profes- portância que teve o corpo na expansão do mun-
sores. Vago (2010) explica, com bastante clareza, os do escolar. Vago (2010) retoma a necessidade de
problemas gerados pela obrigatoriedade escolar no diferenciarmos a educação corporal materializada
contexto mineiro no início do século XX: da necessária educação physica que era vista como
importante à escola e que não deveria se restringir
Ora, se muitos pais não estavam enviando a um único momento específico das práticas pe-
seus filhos à escola, é porque não estavam
dagógicas, tal como uma disciplina escolar. Toda-
convencidos da necessidade dela ou, mais
especificamente, da necessidade de conheci- via, o pesquisador mineiro nos adverte que foi na
mento que ela veiculava para os afazeres mais escolarização da sociedade mineira que pudemos
imediatos das famílias. As famílias tinham enxergar o “nascimento de uma disciplina escolar”
dificuldade de liberar os meninos que atua- (VAGO, 2010, p. 30), o que é analisado por ele da
vam como mão de obra na lavoura, seja em
seguinte maneira:
pequenas propriedades da família, seja como

165
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O aparecimento dessa nova forma escolar foi, A partir das reformas efetuadas na instrução
de fato, determinante para a constituição pau- pública primária paranaense localizamos um
latina da Ginástica como disciplina do progra- processo de afirmação da gymnastica, princi-
ma de ensino [...]. A Gymnastica foi produzida palmente em decorrência da implantação do
como um dispositivo central para a pretendida ensino seriado. Além do tempo, espaço, con-
educação physica das crianças. Sua inserção nas teúdos, métodos e objetivos que foram con-
práticas de escolas primárias de Belo Horizon- siderados ao longo das reformas anteriores,
te fundamentou-se, dentre outras razões, na com a implementação do ensino seriado e
crença em suas possibilidades de transformar como advento dos grupos escolares esta pas-
os corpos das crianças, representados como sou a contar com um instrutor exclusivo. A
raquíticos, débeis, fracos, em desejados corpos possibilidade de reunir os alunos de diferen-
sadios, belos robustos e fortes. Esperava-se dela tes séries para que juntos pudessem realizar
uma participação decisiva no processo de cons- os exercícios gymnasticos só foi possível com
tituição de corpos infantis (VAGO, 2010, p. 31). este tipo de organização do ensino primário
(PUTCHA, 2007, p. 103).
Se focalizarmos a escolarização da ginástica como
momento fundante de uma disciplina escolar, temos Dos dois exemplos estudados acima (Paraná e
no estado do Paraná um cenário parecido, apesar de Minas Gerais), evidenciam-se o fato de, em dife-
suas particularidades. O contexto paranaense enfren- rentes estados brasileiros, a forma escolar pautada
tou, assim como o mineiro, a necessidade de adap- nos Grupos Escolares caracterizarem a necessida-
tar-se aos novos rumos políticos e à urgência de inte- de de as sociedades se escolarizarem. Além disso,
grar sua economia à modernização. Nesses embates, notamos que em todas elas o corpo individual dos
a educação foi uma problemática recorrente, fazendo alunos tornou-se uma preocupação pública, esti-
com que o Paraná também envidasse esforços para mulando não apenas práticas de educação corpo-
escolarizar sua sociedade. Como em muitos outros ral que abordaram a corporalidade infantil de for-
estados, fez isso lutando contra limites materiais com- ma indireta (construção de espaços mais amplos,
preensíveis a um contexto marcado por constantes móveis escolares, uso de uniformes, etc.), mas,
pressões oriundas da ampliação da demanda escolar. principalmente, a criação de um momento espe-
Putcha (2007), ao estudar a escolarização da gi- cífico de educar o corpo dos alunos: a educação
nástica no contexto paranaense do início do século physica passava, lentamente e dependente de par-
XX, observa que de 1882 a 1921, em documentos ticularidades de cada região em que era debatida
legais tocantes ao ensino (regulamentos de instru- e criada, a ser entendida, vista e praticada como
ção pública, portarias, códigos de ensino e progra- disciplina escolar.
mas de ensino), apenas 1 de 11 documentos não Como tornar a educação e a educação física
mencionam a ginástica como elemento a ser pra- questões passíveis de serem pensadas sistemicamen-
ticado nas escolas do Paraná (PUTCHA, 2007, p. te, gerando uniformidade de planejamento e execu-
52). Ao concluir seu estudo, oferece mais uma base ção em todo o país? Qual o papel do estado na de-
para percebermos a maneira como o nascimento terminação dos direitos e dos deveres educacionais
da escola moderna e as bases da educação física es- gerais, assim como os atinentes à educação física?
colar foram importantes, uma para a outra:

166
EDUCAÇÃO FÍSICA

Durante a década de 1920 e 1930 isso foi bastante


discutido, paralelamente à expansão da escola or-
ganizada no âmbito da realidade de cada um dos
estados. Isso mudará e gerará impactos impor-
tantes para a educação física escolar. Mas antes de
abordar a criação de um sistema nacional de ensi-
no que, também, organizaria a educação corporal
sistemática a ser realizada pela escola brasileira,
vamos abordar outra questão diretamente impac-
tada pelo fato de as práticas corporais e sua escola-
rização, no período que estamos estudando, darem
seus passos Brasil a fora: vamos nos deter na for-
ma como a maior exigência de professores levou à
construção das primeiras estruturas e instituições
formativas desses profissionais.

167
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

FORMANDO PROFESSORES
DE EDUCAÇÃO FÍSICA:
O QUE FICA DESSA
HISTÓRIA?
à profissão escolhida, mas dimensões éticas, sociais
e históricas de um determinado grupo profissional.
Aliás, é o que estamos fazendo neste momento, des-
de o início deste livro. No caso da educação física
como campo de atuação, o raciocínio básico que
justifica a necessidade de uma formação profissio-
nal sistematizada e publicamente reconhecida por
meio do recebimento de um diploma, é o fato de se
assumir que o trabalho pedagógico, recreativo, es-
portivo, assim como o trabalho ligado à busca por
mais qualidade de vida por meio das práticas cor-
porais, demanda cuidados e procedimentos que não
se aprendem apenas repetindo aquilo que é feito por
outros atuantes da áreas.
Além disso, ao ingressar no ensino superior em
educação física, você verá, caso ainda não tenha
Fonte: Minerva UFRJ (WIKIMEDIA COMMON, 2010, on-line)6. percebido, que os professores possuem diferentes
especialidades, construídas em uma sequência de
Para todos nós, na atualidade, não são necessárias estudos realizada após sua graduação, em nível de
muitas reflexões sobre a importância de buscarmos especialização, mestrado e doutorado. Para tanto,
uma formação acadêmica para atuarmos em pro- além de aprofundarem seu próprio conhecimento
fissões ligadas à educação e à saúde. Quando é to- absorvendo a bagagem intelectual produzida sobre
mada a decisão sobre o trabalho em qualquer um aquilo que lhes interessa, esses professores, ao obje-
desses campos, automaticamente iniciamos a busca tivarem formar novos profissionais, também produ-
por um curso em nível superior. Durante os estudos, ziram novos conhecimentos ao concluírem os dife-
são ensinadas não apenas questões técnicas relativas rentes níveis de sua formação pós-graduada. Esses

168
EDUCAÇÃO FÍSICA

conhecimentos foram e são avaliados, discutidos e, realidades culturais diferenciadas entre si, mas que,
igualmente, são utilizados por outros cientistas em ao pensarem nas ginásticas, nos jogos, nas lutas e
seus próprios trabalhos de pesquisa. Dizendo tudo nos esportes, atribuíram significados socioculturais
isso de um modo mais direto: a educação física, e educacionais para endossar e justificar, publica-
hoje, é um campo profissional e um campo acadê- mente, aquilo que faziam, corporalmente. Defesas
mico bastante regulamentado, com suas tradições e sobre a importância do aprimoramento da higiene,
exigências. Elas devem ser atendidas por aqueles que sobre o aperfeiçoamento de uma raça, sobre o for-
ambicionam trabalhar ou pesquisar assuntos atinen- talecimento da virilidade e a redefinição da femi-
tes a ela. Mesmo que existam problemas e debates nilidade, foram alguns dos elementos que fizeram
intensos sobre a solidez das bases dessa formação muitas pessoas estudarem e pesquisarem as formas
profissional e da produção de conhecimento elabo- corretas de se praticar aqueles elementos, bem como
rado pelo conjunto desses professores/pesquisado- descrever os resultados a serem obtidos por uma
res, deve ser notado o avanço que isso significou, prática racional. Essa racionalidade encontrou na
tomando como parâmetro o empenho e o caminho ciência seu grande suporte, enfatizando que os re-
percorrido para se construir essa grande e comple- sultados benéficos que se esperava alcançar apenas
xa estrutura profissional e científica da qual você se seriam alcançados se praticantes e aqueles que ini-
aproximou desde que iniciou seu curso de gradua- ciavam/ensinavam/coordenavam as seções em que
ção em educação física. isso ocorria tivessem sólida formação.
Esses esclarecimentos servem para enfatizar a
importância do que faremos nas próximas páginas:
desenvolveremos uma reflexão sobre a trajetória que
trouxe essa condição até nós. Vamos estudar alguns
pontos desse caminho, para que sejam percebidos
alguns momentos da construção desse edifício pro-
fissional e acadêmico que é a área de educação física.
Inicialmente, para pensarmos em alguns ele-
mentos da história da formação profissional em edu-
cação física, deve ser considerado que a necessidade
dessa formação se deu em um momento em que se
cruzaram três ordens de problemáticas formativas.
Em primeiro lugar, já vimos que no século XIX
e nas primeiras décadas do século XX houve uma
grande expansão de práticas corporais. Vimos, tam-
bém, que essas práticas foram absorvidas por muitas Fonte: Brasil - Copa América 1919 (WIKIMEDIA COMMON, 1919, on-line)7.

169
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Consequentemente, surgiram estudos cien- Ao lado do florescimento da importância da


tíficos sobre o movimento humano, que eram cultura physica em boa parte do Brasil nos anos
elaborados e publicados em forma de livros. A 1920, importante para o desenvolvimento de prá-
demanda para o consumo desse tipo de estudo ticas e instituições formativas relacionadas à edu-
só aumentava no início do século XX. No Bra- cação física foi a expansão do mundo escolar. Foi
sil, Sevcenko (2012) observa no Rio de Janeiro estudado no tópico anterior que isso acontecia
uma ética do corpo e da ação em que as pessoas em muitos estados brasileiros, da mesma maneira
assumiam a ginástica e, cada vez mais, o espor- que foi visto que no interior dessa escola a ginás-
te como práticas importantes em seu dia a dia. É tica foi vista como necessária para a realização
compreensível que, em tal contexto, com pesso- do novo ideário educativo a ser concretizado não
as ensinando as modalidades que passavam a ser apenas para as famílias da elite, mas, principal-
cada vez mais buscadas, levantou-se a questão de mente, para os filhos das classes trabalhadoras.
saber quem eram essas pessoas que ensinavam Essa realidade fez com que os estados brasileiros
essa nova ética baseada na exercitação corporal. que expandiam sua rede escolar (o que faziam,
Além disso, inquietante também foi a dúvida so- na maioria dos casos, com grandes dificuldades
bre o que elas deveriam saber para lidar com os e com um ritmo menor do que o desejado) dis-
desafios que seriam tão importantes de serem cutissem soluções para suprirem as escolas que
vencidos, a julgar pelo impacto que eles teriam na surgiam com um professorado capaz de resolver,
formação de uma nação forte. a contento, os novos desafios que se impunham.
Saviani (2008) endossa essa reflexão, afirmando:

A partir [...] do século XIX, a necessidade de


universalizar a instrução elementar condu-
ziu à organização dos sistemas nacionais de
ensino. Estes, concebidos como um conjun-
to amplo constituído por grande número de
escolas organizadas segundo um mesmo pa-
drão, viram-se diante do problema de formar
professores, também em grande de escala,
para atuar nas referidas escolas (SAVIANI,
2008, p. 08).

No século XIX e nas primeiras décadas do sécu-


lo XX, os primeiros passos dados no sentido de
Fonte: Pavilhão (WIKIMEDIA COMMONS, 1907, on-line)8. uma formação de professores eram dados, prio-

170
EDUCAÇÃO FÍSICA

ritariamente, nas escolas normais, de nível secun- gicos da escola; e os defensores de uma formação
dário. Conforme os problemas educacionais se meramente profissionalizante do professorado,
ampliaram, infelizmente, em um ritmo maior que fazendo Saviani (2008) constatar que, neste úl-
a ampliação das escolas existentes, ainda assim, timo caso, “separa-se o profissional do cientista”
a formação de professores foi se tornando uma (SAVIANI, 2008, p. 39). Para verificarmos as di-
problemática cada vez mais discutida. A partir da ficuldades existentes na história educacional bra-
década de 1930, a formação em nível secundário sileira, foi essa última opção a que foi prevalente
foi considerada como insuficiente para as novas nos embates político-pedagógicos que existiram
exigências pedagógicas, levando a um amplo pro- na Era Vargas, lançando, com isso, as primeiras
cesso de discussão e medidas que criaram o “es- bases da formação superior para professores da
paço acadêmico dos estudos educacionais” (SA- educação básica, ajudando-nos a entender alguns
VIANI, 2008, p. 18), colocando a formação dos dos desafios que ainda hoje existem.
professores que atuariam na educação básica para Vistas as três ordens de problemáticas apre-
o interior das universidades. sentadas para que você compreenda a trajetória
A terceira ordem de problemática formativa da formação profissional em educação física, pas-
diz respeito, justamente, às universidades. Dife- semos, então, a estudá-la em alguns pontos.
rentemente do que ocorreram com os países de Com a expansão das práticas corporais e o
colonização espanhola, no Brasil o desenvolvi- conjunto de discursos a justificar a adesão a essa
mento do ensino superior aconteceu e se acele- prática, mesmo em um contexto em que não ha-
rou tardiamente. Apenas na década de 1930 que via um profissional disponível, algumas pessoas
a base da estrutura universitária se instaura e, em se incumbiram dessa nova tarefa que surgia. Es-
seu interior, a formação de professores, tanto os sas pessoas encontravam nas instituições então
professores em geral quanto os professores de disponíveis seu estímulo e os modelos a serem
educação física. No caso dos professores de outras seguidos para tornarem real a importância da
disciplinas escolares, Saviani (2008) demonstra a educação physica. No fim do século XIX e início
existência de muitos debates sobre o lugar da edu- do século XX, essas instituições que tinham na
cação no ensino superior. As incertezas sobre essa educação physica um ponto de grande interesse
localização dava-se pelas tensões entre defensores eram o exército e as faculdades de medicina. Melo
de uma formação do professorado mais aproxi- (1996, p. 25) afirma que ao lado da ênfase prática
mada às especificidades educacionais, integrando dada à formação dos militares, as faculdades de
formação teórica e formação profissional voltadas medicina oferecia o “aporte teórico” da “cultura
às exigências pedagógicas, em que a produção do physica” através das teses que eram defendidas no
conhecimento acontecesse paralelamente e imbri- interior sobre a saúde a importância dos exercí-
cadamente com os desafios didáticos e metodoló- cios corporais em seu fomento.

171
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Se a produção de discursos sobre a importância receberam formação em educação física, concre-


das práticas corporais para a saúde e para a mo- tizando a “presença marcante dos militares na for-
ralidade da população era fundamental, por sua mação dos primeiros professores civis de Educação
vez, ela não era algo feito apenas pelos médicos. Física, em nosso meio…” (CASTELLANI FILHO,
Era feita pelos médicos a sustentação científica dos 1988, p. 34). Importante nessa narrativa é você con-
impactos fisiológicos das práticas, porém, a ques- siderar que foi desse Centro que se originou a Es-
tão educacional e formativa a ser influenciada pela cola de Educação Física do Exército, em 1933, cuja
educação physica ocorria por meio da escrita e fala regulamentação permitia a frequência de civis. Ou
de políticos e pedagogos. De um modo muito visí- seja, formar professores de educação física e ser pro-
vel, a importância higiênica e eugênica das práticas fessor de educação física remetia a um perfil atitudi-
corporais reverberava em toda sociedade e provi- nal muito próximo da autoridade de um sargento a
nha de várias origens. comandar seus soldados.
Todavia, a condução prática dessas atividades, Entretanto, os problemas ainda continuavam
sua organização e propagação cotidiana foi assu- pela falta de professores qualificados para atender à
mida, indiscutivelmente, pelos militares. Castella- demanda por educação física que vinha tanto de clu-
ni Filho (1988) lembra-nos que a Academia Real bes quanto das escolas que, lembre-se, expandiam-
Militar passou a existir no Brasil já em 1810. Em -se em número. Em 1938 foi oferecido um curso de
1860 o método alemão de ginástica foi introduzi- emergência para diminuir essa carência, consoli-
do no país. Melo (1996) observa que, em 1881, é dando uma atmosfera favorável da Escola Nacional
nomeado como primeiro professor de ginástica da de Educação Física e Desportos, na Universidade do
Escola Normal do Rio de Janeiro o Capitão Ata- Brasil (que em 1965 tornou-se a Universidade Fede-
liba Fernandes. Embora desde 1905 se falasse da ral do Rio de Janeiro).
necessidade de se criar escolas civis de educação Feita essa exposição, vamos tentar costurar uma
física, foram as escolas militares que se instalavam. unidade em todo esse conjunto de fatos e institui-
Em 1909 foi fundada a Escola de Educação Física ções, para que tenhamos o cerne da problemática
da Força Policial; na década de 1920, no Rio de Ja- com a qual inicia-se a formação de professores de
neiro, o Centro Militar de Educação Física (CAS- educação na história educacional brasileira.
TELLANI FILHO, 1988). Para tanto, sublinho algo que já foi menciona-
Castellani Filho (1988) mostra que o Centro Mi- do nas páginas e unidades anteriores: as primeiras
litar de Educação Física foi importante. Afinal, ele décadas do século XX caracterizam-se pela colo-
tinha como objetivo adotar novos métodos de edu- cação da educação obrigatória e da educação física
cação física. Foi por intermédio desse centro que, em um lugar de destaque, se considerados períodos
em 1929, em um curso provisório, os primeiros civis históricos anteriores. Além disso, passou a exis-

172
EDUCAÇÃO FÍSICA

tir maior demanda tanto de professores em geral ela era mais incômoda quando consideramos a edu-
quanto de técnicos, especialistas e professores de cação física brasileira. O fato de os professores de
educação física. educação física serem formados em escolas do exér-
O fato de a escola e da educação física serem con- cito - além da presença dos militares nas primeiras
sideradas como desafios importantes para a história escolas civis de formação em educação física -, con-
educacional brasileira não deve nos fazer esquecer tribuiu, entre outras coisas, para que a formação do
que, no relacionamento entre esses dois campos de professorado em geral trilhasse caminhos diferentes
ação, embora relacionados em muitos aspectos, ha- da formação dos professores de educação física.
via alguns elementos que os afastavam. Também pesava na construção dessa diferença
Ficou explícita a relação entre a expansão da entre a formação de professores e a formação de pro-
educação física e o exército. Essa relação, todavia, fessores de educação física e influência médica na
era alvo de alguma desconfiança dos meios educa- divulgação dos conhecimentos relativos aos avanços
cionais que participavam, ativamente, dos debates e da fisiologia e biomecânica a serem aplicados aos
das instituições que gerenciam a expansão da edu- futuros professores. A prevalência dos conhecimen-
cação pública no Brasil. Cito como exemplo o po- tos de característica biomédica nos currículos dos
sicionamento da Associação Brasileira de Educação primeiros cursos apoiava-se em uma consideração
(ABE), fundada em 1922, e com grande papel nos científica que dava ao corpo a conotação de má-
debates educacionais de então. Na virada da déca- quina, a ser medida e desmontada, retomando in-
da de 30, a ABE posicionou-se contra a presença do fluências sentidas desde o processo de nascimento
Exército na determinação de um método de educa- e consolidação da ciência anatômica. Com isso, os
ção física, afirmando ser esse um “problema educa- professores de educação física, ao serem formados,
tivo” (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 75) que não recebiam grande carga de conhecimentos dessa ma-
seria da alçada dos militares. O fato de a ABE ver na triz científica, sendo que a formação em questões
problemática da educação algo importante pode ser pedagógicas era bem mais reduzida, contando com
percebido em sua iniciativa de organizar um de seus pequenos número de disciplinas e uma carga horá-
concorridos Congressos Brasileiros de Educação, o ria amplamente inferior se comparada com a que era
de 1935, tendo como tema a educação física. despendida com biologia, bioquímica e fisiologia.
Com efeito, é importante ponderar que havia não Essas considerações têm sua importância, pois
apenas no Brasil, mas em muitos lugares do mundo, elas nos ajudam a pensar, historicamente, uma
uma tentativa de separar a escola da caserna. Essa constante percepção que existe na escola sobre os
presença militar nos meios educacionais foi alvo professores de educação física. Enquanto os outros
de muitas críticas. Se a presença dos militares era, professores seriam, de fato, professores, por terem
historicamente, importante no mundo educacional, algo a ensinar, um conhecimento a transmitir, os

173
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

professores de educação física não seriam profes- escolar foi menos como professores e mais como
sores plenos, nesse tradicional sentido da docência. uma mistura de sargento-médico a dar ordens e
Os professores de educação física são tomados como a fazer prescrições de movimento. Ou seja, ao se
conhecedores do corpo humano, responsáveis por relacionar com os alunos, essa consideração da
colocarem as crianças para se mexerem, mas, não, educação física escolar como atividade do corpo
aprenderem. demandava o conhecimento anátomo-fisiológico
Do ponto de vista histórico, o processo de for- do movimento em questão e… autoridade que se
mação de professores em geral e dos professores manifestava no comando e na contagem do ritmo.
de educação física em particular teve alguns dis- Ora, mesmo com os problemas observados por
tanciamentos. Sobre isso, Melo (1996, p. 31) nos Saviani (2008) na formação dos professores em
lembra um fato interessante: na década de 1930, a geral, conhecimentos pedagógicos então existen-
educação física era a única disciplina que possuía tes eram bem mais complexos que esses transmiti-
uma seção especial no Ministério da Educação e dos aos professores das demais disciplinas.
Saúde. O que é algo interessante pelo reconheci- Para concluir este tópico, ao responder a pergun-
mento que dava a esse nascente campo é o endos- ta título dele, (o que fica dessa formação?) sublinho
so de uma visão mecanicista de corpo e de saúde, que essa ida aos primeiros processos de formação
que afastava os professores de educação do traba- profissional em educação física evidencia um dos
lho diretamente pedagógico no também nascente desafios que hoje enfrentamos: formar professores
mundo escolar. Afinal, por outro lado, quando foi de educação física integrados aos saberes, aos proce-
criada a Faculdade Nacional de Filosofia, apenas dimentos e aos objetivos da educação básica brasilei-
a área de educação ficou de fora de seu campo de ra. E, para tanto, pedagogia, psicologia da educação,
abrangência, que compreendia todas as outras li- didática, políticas públicas educacionais, filosofia da
cenciaturas. Dito de outra maneira: em seus pri- educação e...história da educação (e educação física)
meiros momentos, a formação de professores de são tão importantes quanto os também necessários
educação física passou ao largo dos conhecimen- conhecimentos a serem obtidos com os estudos a se-
tos pedagógicos necessários à ação pedagógica. rem feitos nas disciplinas da área de saúde
Desse ponto de vista, nosso ingresso no mundo

174
EDUCAÇÃO FÍSICA

Fonte: Revolução de 1930 (JANSSON, 1930, on-line)9.

OS CAMINHOS ATÉ NÓS:


COMO A EDUCAÇÃO FÍSICA
ESCOLAR SE TORNOU
O QUE É?
Nos itens anteriores foram estudados dois elemen- escolar, o componente curricular para utilizarmos
tos que avalio fundamentais para conhecermos a uma linguagem da atualidade. Além desse ponto,
história da educação física no Brasil: 1) as ideias foi focalizada a 2) base das discussões e das pri-
e as ações que levaram as práticas corporais para meiras instituições que se ocuparam de pensar e
o interior da escola, tanto a educação do corpo formar os primeiros profissionais para atuarem
presente no dia a dia escolar quanto a disciplina com a educação física.

175
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O que busco agora é levar você a refletir sobre al- fendida como parte necessária do “sistema escolar”
gumas consequências disso que foi abordado. Sugiro (BELTRAMI, 2006, p. 45).
que pensemos nos caminhos que se abriram nas dé- Em 1937 temos o Estado Novo, instaurado por
cadas seguintes e que chegaram à realidade na qual Vargas. No mesmo dia em que ocorre o golpe de
vivemos hoje. Estado, 10 de novembro de 1937, uma nova cons-
Os dois pontos estudados anteriormente, a es- tituição é outorgada. Na constituição de 1937, em
colarização da educação física e o início de uma for- seu artigo 131, define-se a educação física como
mação profissional sistemática em educação física obrigatória “em todas as escolas primárias, normais
foram impactados pelo mesmo processo: nas déca- e secundárias” (BELTRAMI, 2006, p. 81), o que
das que se seguiram à de 1930, no interior do pro- foi regulamentado pelo Decreto-Lei 2072 de 1940.
cesso de complexificação econômica baseada na in- No artigo 4. o decreto à educação física é colocado
tegração (ou dependência) econômica brasileira ao como um elemento fundamental no fortalecimen-
capital internacional, a educação e a educação física to da saúde, a ser conseguido por meio de ginástica
deixaram de ser assuntos regionalizados, tornando- e esportes adequados às “condições de cada sexo”
-se alvo de regulamentações nacionais, válidas em (BELTRAMI, 2006, p. 91).
todo o país. Chamo sua atenção para essa mudança: Com o fim do Estado Novo em 1945, iniciou-
mesmo que ela tenha acontecido no âmbito políti- -se a discussão para uma nova constituição. Com a
co, gerando a sensação de que, concretamente, nada promulgação da Constituição de 1946, abriu-se o
mudou, essa passagem da reflexão educacional dos processo de discussão das Leis de Diretrizes e Bases,
estados para a União é fundamental. Ela impacta a aprovada em 1961. Nela, a educação física é men-
possibilidade de direitos serem debatidos e efetiva- cionada no artigo 22, que foi regulamentado pelo
dos nos diferentes instrumentos legais que regem a Decreto 58.130 de 1966. Essa regulamentação deve
educação, sendo crucial, sobretudo, para os filhos ser sublinhada, pois é a primeira regulamentação
daqueles que não podem pagar escolas particulares. com alcance nacional para determinar os objetivos
Vamos visualizar esse processo ligado à educa- e como deveriam funcionar as aulas de educação fí-
ção física, verificando como ela foi tratada em um sica. No artigo 1 do referido documento, vemos o
conjunto importante de dispositivos constitucionais alcance do decreto:
e de regulamentações específicas que a abordaram
Art.1. A educação física, prática educati-
depois de 1930.
va tornada obrigatória pelo art. 22 da Lei de
Castellani Filho (1988) lembra-nos que na Diretrizes e Bases, para os alunos dos cursos
Constituição de 1934 não houve uma menção ex- primário e médio, até a idade de 18 anos, tem
plícita à educação física. Entretanto, a “necessidade por objetivo aproveitar e dirigir as forças do
de estimular a educação higiênica” (CASTELLANI indivíduo - físicas, morais, intelectuais e so-
ciais - de maneira a utilizá-las na sua totali-
FILHO, 1988, p. 81) foi citada. Todavia, nas discus-
dade, e neutralizar, na medida do possível, as
sões sobre o Plano Nacional de Educação, previsto condições do educando e do meio (BRASIL
pela Constituição de 1934, a educação física é de- apud BELTRAMI, 2006, p. 65).

176
EDUCAÇÃO FÍSICA

Não deve ser perdido de vista que tal regulamenta- No âmbito da formação de professores, em
ção tem importância em um cenário histórico em 1969 o Conselho Federal de Educação publica
que o estado teve grandes dificuldades de assumir a resolução n.º 69, que instituiu o currículo mí-
responsabilidades educacionais. Todavia, colocar a nimo dos cursos de educação física. Por currí-
educação física escolar como obrigatória, de modo culo mínimo deve ser compreendida uma lista
uniforme, a todo o país teve pouca ressonância de disciplinas e suas respectivas cargas horárias
prática, levando Beltrami (2006) a fazer a seguinte que deveriam estar presentes em todos os cursos.
análise, depois de mostrar os esforços havidos na Rangel-Betti e Betti (1996) chamam o currículo
década de 1960 para se instaurar, legalmente, a obri- que passou a prevalecer nesse momento de tra-
gatoriedade da educação física: dicional-esportivo, por eles descrito da seguinte
maneira:
Ainda permaneciam os problemas quanto às
condições materiais e quanto aos recursos hu- Há separação entre teoria e prática. Teoria é o
manos qualificados. De qualquer forma, de
conteúdo apresentado na sala de aula (qual-
acordo com os defensores da educação física
quer que seja ele), prática é a atividade na
no sistema escolar, esse quando ainda não era
piscina, quadra, pista, etc. A ênfase teórica se
satisfatório, porque não havia critério para fis-
calização e não havia um organismo com po- dá nas disciplinas da área biológica/psicoló-
deres para tal. Os mentores e profissionais da gica: fisiologia, biologia, psicologia, etc. Este
educação física buscavam um espaço de poder modelo iniciou-se ao final da década de 60 e
e este só poderia acontecer a partir de uma or- consolidou-se na década de 70, acompanhan-
ganismo forte, respaldado por um Estado Forte do a expansão dos cursos superiores em Edu-
(BELTRAMI, 2006, p. 66). cação Física no Brasil e a “esportivização” da
Educação Física (RANGEL-BETTI; BETTI,
1996, p. 10).
No momento em que essas regulamentações sobre a
educação física eram criadas, a sociedade brasileira
já vivia no regime de ditadura militar. Em 1969, o Mesmo com as mudanças provocadas pela reso-
Ato Institucional n.º 5 tirou direitos políticos e liber- lução do Conselho Federal de Educação n.º 03 de
dades civis, caracterizando a linha dura do regime 1987, que criou a formação em educação física
que existiu até o início da década de 1980. Foi na em bacharelado e extinguiu o currículo mínimo,
vigência desse ato que foi publicado o Decreto-Lei vale reconhecer que é de 2004 uma resolução do
n.º 705 de 1969, colocando a educação física como Conselho Nacional de Educação, Resolução n.º 7,
obrigatória em todos os níveis da educação brasi- importante para pensarmos tanto na história da
leira, inclusive no ensino superior. Esse decreto foi educação física quanto em sua configuração na
regulamento pelo Decreto n.º 69.450 de 1971. De atualidade. Esse documento já foi citado na pri-
acordo com Beltrami, com esse decreto se “encerra meira unidade deste livro. Ele sinaliza uma rup-
uma etapa significativa da implantação da Educação tura com a tradição por nós estudada quando, por
Física no sistema escolar” (BELTRAMI, 2006, p. 83). exemplo, lemos alguns de seus artigos:

177
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Art. 4º O curso de graduação em Educação Fí- Ao ler esses artigos e se lembrar da constante menção
sica deverá assegurar uma formação generalis-
feita à prevalência da matriz esportiva e biologizante
ta, humanista e crítica, qualificadora da inter-
venção acadêmico-profissional, fundamentada na educação física, sugiro que pense na ruptura por
no rigor científico, na reflexão filosófica e na mim sinalizada há algumas linhas. Essa ruptura che-
conduta ética. § 1º O graduado em Educação ga por meio dos caminhos percorridos pelo conjun-
Física deverá estar qualificado para analisar cri- to de discussões sobre a presença da educação física
ticamente a realidade social, para nela intervir
acadêmica e profissionalmente por meio das
na escola e a formação de professores para realiza-
diferentes manifestações e expressões do movi- rem essa tarefa.
mento humano, visando a formação, a amplia- Para pensar a forma como isso nos impacta
ção e o enriquecimento cultural das pessoas, na atualidade, vamos para a última parte do livro,
para aumentar as possibilidades de adoção de
ponderando, então, os horizontes que se abrem e as
um estilo de vida fisicamente ativo e saudável.
§ 2º O Professor da Educação Básica, licencia- barreiras que se interpõem entre nós e aquilo que
tura plena em Educação Física, deverá estar queremos alcançar.
qualificado para a docência deste componente
curricular na educação básica, tendo como re-
ferência a legislação própria do Conselho Na-
cional de Educação, bem como as orientações
específicas para esta formação tratadas nesta
Resolução (BRASIL, 2004, p. 1).

178
EDUCAÇÃO FÍSICA

EDUCAÇÃO FÍSICA E ESCOLA:


PENSANDO FUTUROS AO
PENSARMOS PASSADOS
A história da educação física escolar confunde- Uma das maiores dificuldades na expansão
-se com a história da escola como a conhecemos. tanto da escola quanto da educação física em seu
Vimos que a escolarização se deu ao lado da es- interior, foi o longo caminho percorrido lenta-
colarização das práticas corporais. Por isso, ao mente até termos essas duas instituições coloca-
estudar esse processo no contexto brasileiro foi das como obrigatórias para todos os brasileiros e
necessário relacionar a história das perspectivas e brasileiras. Interessante verificar que isso se deu
dos desafios enfrentados pela expansão da escola mesmo com uma grande quantidade de políticos,
em nosso país. pensadores e intelectuais colocando como inques-

179
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

tionáveis tanto a escola quanto a importância dela campo profissional, sintetiza um dos horizontes que
educar fisicamente. passaram a ser buscados:
Ao lado desse longo processo concretização ins-
titucional mais geral, a escolarização da educação Os professores não operam a diferenciação dos
papéis de treinador e professor, em parte, por-
física enfrentou outros desafios: como uma prática
que a própria Educação Física, não tendo auto-
defendida pelo seu potencial moralizante, educativo, nomia ou identidade pedagógica, não fornece
higienizador; como uma disciplina escolar avaliada um referencial, um conjunto fundamentado e
como fundamental para a realização de qualquer institucionalizado de expectativas de compor-
ambição educativa, sempre tem enfrentado a resis- tamento. Isto é, a própria definição do papel do
professor de Educação Física inexiste (BRA-
tência de várias ordens para ser encarada como uma
CHT, 1992, p. 23).
disciplina escolar igual às outras?
Essa dúvida foi sendo construída como impor- Lembre-se que uma das consequências de todo esse
tante para muitas gerações de professores de edu- debate foi a incursão de pesquisadores no campo
cação física. Durante as décadas de 1980 e 1990, da educação, das ciências humanas, da filosofia e da
essa problemática atingiu um nível de inquietude história. O livro que você está lendo é uma resultan-
agudo, gerando um processo de questionamentos te daquelas inquietações de professores que, ao pen-
e proposições pedagógicas que acabou nominado sarem o papel da educação física na escola, amplia-
de “crise da educação física”. Tentando sintetizar ram o leque de áreas de conhecimento a subsidiar
a intensidade desse período histórico para a edu- encaminhamentos para a intervenção em diferentes
cação física, poderíamos entendê-lo como uma espaços, sobretudo, na escola.
tentativa de se encontrar justificativas pedagogi- Certamente, a crise da educação física influen-
camente viáveis para explicar a importância dos ciou o modo como a educação física foi disposta na
professores de educação física na escola. Se for Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394 de 1996. No
lembrado o caminho histórico que percorremos, Artigo 26, que versa sobre os currículos da educa-
esse esforço não existiu em outros períodos: o que ção básica, há o Inciso 3, no qual lemos: “A educação
houve foram afirmações que sempre consideravam física, integrada à proposta pedagógica da escola,
a educação física possuidora de uma importância é componente curricular obrigatório da educação
inquestionável. básica [...]” (BRASIL, 1996, s.p). Atente-se para a
Um dos pontos centrais da problemática a partir importância dessa determinação legal, à luz dos es-
de 1980 era tornar o professor de educação física, de tudos históricos que fizemos: pela primeira vez na
fato, professor, deixando-o de relacioná-lo com ou- história da educação física escolar, ela é considera-
tros perfis profissionais que lhe foram sendo atribuí- da como um componente curricular, assim como os
dos no decorrer da história por nós estudada. Valter outros componentes trabalhados na educação bási-
Bracht (1992), em um dos textos mais importantes ca. A educação física, com isso, deixa de ser assumi-
dessa reflexão levada a cabo por toda nossa área ou da, pela maior regulamentação educacional do país,

180
EDUCAÇÃO FÍSICA

como uma atividade, como uma recreação, ou um Temos nos deparado, com frequência cada
meio para desenvolver valências físicas ou psicomo- vez maior, com depoimentos e/ ou indagações
toras. Pela LDB 9.394/96, a educação física trata-se sobre como realizar e organizar o trabalho
docente em educação física na escola. Ex-alu-
de um conjunto de estudos que aborda um determi-
nos da licenciatura apontam dificuldades em
nado conhecimento para a formação cidadã e pro- relação ao trabalho que desenvolvem. Recen-
dutiva dos alunos. temente, para citar um exemplo, uma profes-
Paralelamente ao desenvolvimento desse avan- sora (ex-aluna do curso de educação física
oferecido por nossa instituição) comentava
ço legal obtido para a educação física escolar, fo-
sobre a prova de um concurso público para
ram elaboradas propostas para a organização do seleção de professores de educação física, di-
trabalho pedagógico dos professores de educação zendo que havia ido muito bem e que estava
física nas escolas, visando realizar essa nova con- feliz por tal, mas que, ao mesmo tempo, es-
dição. Essas propostas, desde o final da década tava preocupada com a materialização da sua
prática pedagógica. Em seus dizeres: “Eu sei
de 1980 e durante a década de 1990, ficaram co- tudo o que caiu no concurso, em relação às
nhecidas como tendências da educação física ou abordagens, mas não sei como concretizar
abordagens pedagógicas da educação física. Não isso na minha prática pedagógica na escola”
estudaremos essas tendências individualmente (CAPARROZ; BRACHT, 2007, p. 22).
neste momento, pois elas serão alvo de reflexão em
outras disciplinas do curso. Como explicar essa situação? Não bastaria aos pro-
Todavia, sobre essas abordagens, neste mo- fessores conhecerem as abordagens e terem o respal-
mento, creio que possa ser considerado o seguinte: do de uma lei que equaliza a educação física aos de-
apesar da relevância desse conjunto de debates, de mais componentes curriculares para que ministrem
investigações, propostas e avanços legais; apesar boas aulas? Será que a crise da educação física ainda
do empenho com que se tem lutado para efetivar não passou, apesar de quase 40 anos de debates so-
uma educação física escolar que se afaste da tra- bre o seu papel na escola?
dição médica, militar e desportiva que marcou as Para deixar a busca por respostas a essas ques-
práticas desse componente curricular na história, tões ainda mais intrigante, aponta-se que uma das
os problemas persistem. Ao avaliarem a realidade maiores fontes de dificuldades para concretizar as
pedagógica das aulas de educação física a partir de propostas existentes vem não apenas de muitos
meados dos anos 2000, alguns estudos têm veri- professores de educação física, mas dos próprios
ficado que esse grande edifício intelectual e legal alunos e dirigentes educacionais que, imersos em
da educação física que surgiu depois de sua notó- uma tradição sobre o que é a educação física na
ria crise ainda não teria impactado o cotidiano de escola, repudiam qualquer intencionalidade peda-
alunos e professores. Caparroz e Bracht (2007), ao gógica que não seja relacionada ao esporte (prin-
fazerem essa constatação, iniciam um artigo nar- cipalmente, às modalidades coletivas comumente
rando a seguinte situação: praticadas).

181
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

supera, em muito, a “ética da ação” diagnosticada


SAIBA MAIS
por Sevcenko (2012) nas primeiras décadas do sé-
culo XX. Ou seja, na atualidade a tal ética se tornou
Uma consequência positiva da crise da educa- um imperativo, uma obrigação.
ção física foi a ampliação do leque de assuntos
a serem trabalhados nas aulas de educação Ao lado dessa constatação, verificamos que a
física. É corriqueira a nossa memória sobre escola não conta com a mesma adesão. Se a escola
as aulas de educação física na escola limi- se expande na sociedade brasileira carregando mui-
tarem-se ao ensino (ou, mais precisamen-
te, à prática) de futebol, handebol, voleibol tas promessas políticas, econômicas e civilizatórias
e basquetebol. Na década de 1990 ganhou nela depositadas, essas esperanças perderam força.
força a expressão “cultura corporal”, que foi Tornaram-se comuns as críticas ao descompasso da
assumida como conceito a definir o conjunto
de assuntos a serem abordados, pedagogi- escola em relação ao mundo contemporâneo, sua
camente, pelo professor de educação físi- incapacidade de formar a juventude que nasceu di-
ca. Diferentemente do que vimos em nossa gital, levando, também, grande descrença sobre a
abordagem história, buscou-se construir um
trabalho pedagógico que não se prendesse importância e a autoridade dos professores na cons-
a um grupo de práticas, como ocorrera com trução de uma sociedade do conhecimento.
a ginástica no início do século XX e com o Durante as reflexões que fizemos, insisti na ne-
esporte depois da década de 1960. Ao lado
do esporte e da ginástica, as lutas, a dança, os cessidade de entrelaçar a escola e a educação física
jogos foram outros elementos que entraram escolar para explicá-las, mutuamente, no processo
no horizonte pedagógico dos professores no de desenvolvimento histórico de suas práticas e das
momento de preparar e efetivar suas aulas.
lutas que as levaram a se tornarem direito de todos
Fonte: o autor, baseado em Soares (1992). os cidadãos e cidadãs. Por quais razões esses direi-
tos, hoje, têm dificuldades de serem vistos como
tais? Por que são eles tomados como obrigações que
Deve, ainda, ser considerado que, em nosso con- pararam no tempo e não oferecem razões para justi-
texto, essas novas dificuldades da educação física ficar sua imposição? O que explica o fato de a educa-
acontecem em um momento que apresenta algu- ção física escolar ter dificuldade de transformar suas
mas rupturas com os períodos por nós estudados. práticas, apesar de o corpo e seus cuidados serem
Em primeiro lugar, hoje temos ampliado de uma assuntos cotidianamente debatidos por pessoas de
forma inigualável a importância cultural, econô- diferentes idades e classes sociais? Se eu tivesse essas
mica, recreativa e social do esporte e das práticas respostas, eu não hesitaria em escrever mais alguns
corporais. Embora os dados relativos ao sedenta- parágrafos para oferecê-las a você, caro(a) aluno(a).
rismo mundial ainda preocupem, os cuidados com Não as tenho. Que elas estimulem você a continuar
o corpo e a presença do corpo na definição daquilo seus estudos. A mim, elas me dão força para pesqui-
que as pessoas pensam delas mesmas e dos outros sar e ensinar história da educação física.

182
EDUCAÇÃO FÍSICA

REFLITA

[...] muitas vezes, a cultura escolar restringe o


entendimento da educação do corpo à realiza-
ção de movimentos mecânicos e repetitivos,
reduzindo as aulas de Educação Física à ativi-
dade catártica ou meramente complementar
a outras disciplinas.

(Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, Luciane Paiva


Alves de Oliveira e Alexandre Fernandez Vaz)

183
considerações finais

P
rezado(a) aluno(a), nesta unidade voltamos as lentes da abordagem
histórica para as diferentes problemáticas que envolveram a constru-
ção de muitos elementos que possibilitaram aquilo que é a nossa prin-
cipal preocupação em um curso de licenciatura em educação física:
professores, alunos, conteúdos, espaços e tempos dedicados às aulas de educação
física dentro do sistema nacional de ensino no Brasil.
Um dos pontos bastante enfatizados foi o processo que possibilitou o fato de
essa estrutura ser coordenada nacionalmente, gerando, assim, um“sistema válido
para todos os estados. Importante verificar nessa análise que impulsos impor-
tantes à educação física aconteceram em momentos ditatoriais de nossa histó-
ria política, notadamente durante o Estado Novo de Vargas e a Ditadura Militar
deflagrada em 1964. Mas não apenas isso: você também teve a oportunidade de
notar que, como resultado da Constituição da 1988, a LDB 9.394 de 1996, pela
primeira vez na história educacional brasileira, fez com que a presença da educa-
ção física na escola se justificasse pelo fato de ela ser educacionalmente relevante,
e não por formar o homem forte, a mulher saudável, o futuro soldado ou trans-
formar o país em potência olímpica. Tratam-se de perfis recorrentemente colo-
cados como objetivos à educação física e que a afastaram do trabalho pedagógico
realizado pelos outros componentes curriculares.
Por fim, depois de analisada essa trajetória, você pôde perceber que os desa-
fios ainda existem. Embora, se considerarmos a formação dos futuros professores
e a inserção legal da educação física no âmbito da educação brasileira, muitos
avanços foram conquistados, problemas didáticos e pedagógicos persistem: como
fazer com que no cotidiano escolar uma educação física se integre na proposta
pedagógica da escola efetivamente e não apenas legalmente? Mais uma vez, como
fizemos frequentemente neste livro, encerramos um conjunto de reflexões histó-
ricas com condições de fazer perguntas importantes. Esta questão, em particular,
acompanhará você durante toda sua jornada formativa neste curso.

184
atividades de estudo

1. Do ponto de vista político, caracterize a maneira como aconteceram as


primeiras ações para escolarizar a educação física no Brasil.

2. As primeiras escolas destinadas a formarem professores de educação de-


senvolveram-se em um processo paralelo a quais outras duas instituições
educacionais?

3. Pondere a importância do exército e a das faculdades de medicina na ex-


pansão da educação física brasileira.

4. O que significou para a história da educação física no Brasil a LDB 9.394


de 1996?

5. Considerando a história que foi estudada, bem como desdobramentos


político-pedagógicos do presente, comente os desafios a serem vencidos
pela educação física escolar.

185
LEITURA
COMPLEMENTAR

A Educação Física (EF) como disciplina escolar passa por to alongar essa descrição, podemos apontar que, entre
um processo de transformação do qual todos somos, se- outras iniciativas, o movimento renovador entendeu que
não protagonistas, espectadores. Alguns há mais tempo, uma das ações necessárias para transformar a EF seria
outros menos, convivemos com um processo de trans- “elevá-la” à condição de disciplina escolar, tirando-a da
formação que consideramos sem precedentes na histó- categoria de mera atividade.
ria desta atividade pedagógica. Processo ao qual, enten- Em outras palavras, é da mão do movimento renovador
demos, não se tem prestado a suficiente atenção. Parece que se coloca, talvez, pela primeira vez, um conjunto de
possível afirmar que, em linhas gerais, o século XX pre- questões que não faziam parte das preocupações da tra-
senciou, nas sociedades ocidentais, a consolidação da EF dição desta área, e que balizam as teorias pedagógicas
na escola sustentada no conhecimento médico-biológico quando buscam legitimar um componente curricular
e orientada pela ideia de que sua função principal era num projeto educacional. Questões como:
a promoção da saúde, articulada discursivamente como • Por que esta disciplina deve compor o currículo
uma ideia genérica de educação integral do homem no da escola?
sentido do desenvolvimento de todas as suas potencia- • Quais são seus objetivos?
lidades [...]. Nesse caminho, e de forma mais intensa a • Quais são seus conteúdos?
partir da metade do século passado, a EF estabeleceu • Como são sistematizados os conteúdos ao longo
uma relação simbiótica com o esporte, por meio da qual dos diferentes níveis de ensino?
esse fenômeno, em sua forma institucionalizada, aca- • Como esses conteúdos devem ser ensinados?
bou sendo praticamente hegemônico nas aulas de EF. • Como avaliar seu ensino?
A tal ponto de, no senso comum, ser plenamente possí-
Nesse contexto, parece lógico perguntar o que significou
vel confundir EF escolar com prática esportiva, [...]. Esse
a incorporação desses questionamentos teórico-peda-
processo, que ficou conhecido como a esportivização da
gógicos para o campo das preocupações e do fazer da
EF escolar e que foi hegemônico durante várias décadas,
EF. Segundo nossa percepção, a inclusão dessas preocu-
passou a ser questionado no transcurso dos anos de
pações na área imprimiu uma mudança de tal magnitu-
1980 a partir daquilo que ficou conhecido como movi-
de que é possível comparar esse fenômeno a um ponto
mento renovador da EF brasileira. Movimento este que
de inflexão na qual a trajetória da EF faz uma quebra de-
impulsionou mudanças em diversas dimensões de nossa
finitiva com sua tradição legitimadora. É dizer que aquilo
área.
que nos sustentava como área no plano da legitimidade
Particularmente no que respeita ao campo educacional,
autoatribuída ruiu, e não temos como voltar atrás, como
questionou-se o paradigma de aptidão física e esportiva
esquecer essa inflexão.
que sustentava de forma extensiva as práticas pedagó-
gicas da EF nos pátios escolares. Sem poder neste tex- Fonte: González e Fensterseifer (2009, p.10-11).

186
material complementar

Metodologia do Ensino da Educação Física


Carmen Lúcia Soares et al.
Editora: Cortez
Ano: 1992
Sinopse: publicado em 1992, o livro aproxima o ensino da edu-
cação física da abordagem histórico-crítica. Nas reflexões, o con-
ceito de cultura corporal torna-se estruturante para o que os
autores entendem ser o objetivo da educação física escolar. Isso
é feito a partir de uma consideração do que ela foi na história
educacional brasileira.
Comentário: muitas das reflexões desenvolvidas por mim
apoiam-se nas ideias contidas no livro sugerido. Mais conhecido
como “Coletivo de Autores”, a obra impactou não apenas cursos
de licenciatura em todo o país, mas muitas das regulamenta-
ções legais que foram elaboradas, sobretudo diretrizes curricu-
lares nacionais e estaduais.

Educação Proibida
Ano: 2012
Sinopse: relata experiências inovadoras, tendo como pano de
fundo críticas à estrutura escolar, tal como existe hoje e que
passou a existir a partir do século XIX.
Comentário: o documentário não fala, especificamente, sobre a
educação física, muito menos foca o contexto brasileiro. Mas ele
é interessante por permitir visualizar a maneira como a escola
é hoje criticada. Se a educação física brasileira tem lutado para
estar dentro da escola de uma forma pedagogicamente legíti-
ma, a que se atentar que essa escola para a qual tentamos ter
a tal legitimidade tem sido, ela também, considerada como não
legítima para o tempo no qual vivemos.

187
material complementar

O endereço a seguir levará você ao Centro de Memória do Es-


porte da Escola de Educação Física (CEME) da UFRGS. Nele, há
grande quantidade de informações sobre a história do esporte,
da educação física e do lazer. Além disso, há livros publicados
pelo CEME, com acesso gratuito. Confira!
Link: <http://www.ufrgs.br/ceme/site/>.

188
referências

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Acesso em: 17 out 2016.

190
gabarito

1. As primeiras iniciativas de escolarização da educação física foram feitas no


âmbito dos estados brasileiros.

2. Paralelamente à expansão da escola e à criação das primeiras universida-


des, as primeiras escolas de educação física foram criadas para atenderem
à crescente demanda de professores qualificados.

3. Das faculdades de medicina vieram as justificativas teóricas sobre a impor-


tância da educação física para a saúde da população. Do exército vieram
os procedimentos e primeiros responsáveis por realizarem o valor dos di-
ferentes métodos de ginástica para seus praticantes.

4. Significou a passagem da educação física escolar, antes entendida como


mera atividade corporal, à condição de componente curricular da educa-
ção básica em situação de igualdade pedagógica com os demais compo-
nentes.

5. Apesar dos avanços legais e pedagógicos que assistimos nas últimas déca-
das na história da educação física escolar, constata-se que a situação do
componente no cotidiano escolar ainda se mantém, relativamente, inalte-
rado. Ou seja, as aulas continuam a se basear no predomínio esportivo e
na falta de intencionalidade pedagógica de muitos professores, muitos dos
quais não conseguem efetivar as diferentes proposições pedagógicas que
aprenderam em sua formação inicial.

191
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

conclusão geral

Caro(a) aluno(a), ao chegar ao final deste livro lem- Ao encerrarmos algumas das unidades, muitas
bro-lhe que minha expectativa é ter colaborado para dúvidas ficavam, resultantes das reflexões que foram
mostrar uma pequena parte do valor que o estudo feitas. E essa é uma grande contribuição do estudo
da história da educação física pode ter. Um valor que da história da educação física a você. Na continuida-
não se justifica, apenas, na utilidade que ela possui de de seu curso, na sucessão de disciplinas e discus-
em iluminar problemas da atualidade, muitas vezes, sões das quais participar, lembre-se que, ao produzir
nem identificados como tais, mas, igualmente im- conhecimento histórico e ao estudar a história de
portante, por nos possibilitar conhecer a história de qualquer dimensão da vida social, lidamos com um
nossa sociedade e de outras verificando e estudando conhecimento ao mesmo tempo exigente, cativan-
a educação e as práticas corporais em outras épocas. te e tateante. Ele demanda cuidado ao se buscar e
Para isso demos cinco passos, em cada uma das apresentar conclusões, mesmo depois de uma aten-
unidades deste livro: 1) conhecemos as particula- ção meticulosa que damos, por um bom período de
ridades do conhecimento histórico; 2) pensamos o tempo, apenas àquilo de que gostamos muito. Mas,
corpo humano como historicamente percebido, cui- também, é um conhecimento que gera um delicioso
dado e educado; 3) vimos que às diferentes práticas ímpeto para saber mais sobre o que nos interessa,
corporais ligam-se valores formativos de diferentes criando, com isso, novos interesses.
ordens; 4) por essa razão, a escolarização das socie- Que a leitura deste livro tenha feito você experi-
dades contemporâneas se caracterizou pela presença mentar, um pouco, dessa atenção e desse ímpeto. De
da educação física no interior da escola; 5) o mes- minha parte, redigi-lo acalentando essa possibilida-
mo ocorrendo no Brasil, em um processo que se deu de foi um grande prazer!
durante o século XX, culminando no fato de a edu-
cação física se tornar um componente curricular da
educação básica.

192

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