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NATAL/RN
2019
JOSÉ RICARDO ROBERTO DA SILVA
NATAL/RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede
BANCA EXAMINADORA
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(Orientador - DEART/UFRN)
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(Professor convidado)
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NATAL
2019
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior
(Belchior, 1973)
Dedico este trabalho aos meus pais: Antônia Roberta e José Ribamar (In memoriam), por
todo o amor e dedicação que tiveram comigo ao longo da minha vida. Criar nove filhos sem
condições financeiras não é fácil. Porém, faltava comida e não faltava amor. Obrigado pela
proteção que sempre tiveram comigo e com os meus irmãos. Gostaria de dizer que cresci e
que os terreiros que corria quando era pequeno mudaram. Hoje corro para o grande terreiro
do teatro.
Aos meus oito irmãos: Celismar (Celinho), Enock (Boy), Roberto, Esterson (Zé Braguena),
Damiana, Lidiane, Rosicleia (Rosa) e Zildimilca (Nega). Obrigado pela inspiração de querer
tornar-me um pouco de vocês. Não entendia muito bem quando era mais jovem, mas queria
muito ter a inteligência de Esterson e Boy, a dedicação e superação de Roberto e Damiana, a
coragem e ousadia de Celinho e Zildmilica e a humildade e sabedoria de Rosa e Lidiane.
Vocês são como partes insubstituíveis e indivisíveis do meu ser.
Á minha cidade querida e tanto falada por mim ao longo do curso. Janduís é o berço que me
criou e me ensinou a ser, e sendo, sou artista. Terra de resistência e coragem. ―Torrão‖ dos
povos Jandúi. Foi lá que dei os meus primeiros passos no teatro, no chão de barro batido da
rua e entendi a importância do ―para o povo‖, tanto estudado na academia.
Aos meus colegas da turma 2016.1 desta graduação em Teatro. Jamais me esquecerei de
vocês. Apesar das diferenças, nos tornamos uma turma engajada e unida. Levarei para a vida
todas as experiências com vocês, das sutis às mais complexas.
Aos meus colegas de quarto durante minha passagem na residência universitária: Hairtom
Gomes, Rafael Ricardo e Pablo Costa. Vocês foram fundamentais no meu crescimento
individual. Tive sorte de dividir momentos, lembranças e afetos com cada um de vocês.
Saudades de você Rafa, meu grande amigo.
Ao meu mestre e orientador, Robson Haderchpek. Obrigado por acolher aquele menino
apressado que te pedia ajuda no fim de uma aula de Jogo e Cena I. Nos tornamos bons
amigos e essa é a parte que mais importa. Sabe o tamanho da gratidão que tenho por você.
Aos meus professores e mestres que tanto contribuíram com minha trajetória acadêmica. Em
especial a Ana Caldas Lewinsohn, Mayra Montenegro, Makarios Maia, Sebastião Silva e
Adriano Moraes de Oliveira.
Ao professor Luiz Davi Vieira pela gentileza de aceitar o convite para participar desta banca.
Seu trabalho reverbera em mim.
Ao grupo Arkhétypos de Teatro que tanto me ensinou e me fez encontrar e ser encontrado.
Deixo um agradecimento especial a Deborah Custódio, Valeria Chaves, Paul Moraes,
Stephane Vasconcelos e Thais Schmidt pela experiência da descoberta no processo Ânima.
Ao meu amigo Leonardo Medeiros pelas conversas sempre acolhedoras nos corredores do
Deart.
Ao meu amigo Juciê Borges. Obrigado pela troca de experiências na vida e na arte.
Ao projeto Trilhas Potiguares que tanto contribuiu para a minha formação ao longo desses
quatro anos de graduação.
Ao Ex-presidente Lula, preso político no Brasil. Foi graças às suas políticas de acesso a
universidade que milhares de jovens, como eu, tiveram a oportunidade de cursar o ensino
superior gratuito e de qualidade. "Podem matar uma, duas, três rosas, mas não conseguirão
deter a chegada da primavera".
E deixo um agradecimento especial a minha Bisavó Eulínia (In memoriam) e a minha avó
Raimunda (In memoriam) que sensivelmente estiveram comigo ao longo dessa pesquisa.
Faço parte de vocês. Obrigado.
The Scientific Initiation research titled "Performance and Ritual: For a Practice of
Decolonization of the Imaginary" began in August 2018 and was funded by PIBIC-CNPQ.
The research was guided by Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek and provided the researcher
with a research space on the concepts of "Ritualistic Performance" and "Ancestry", based on
the creation process of the "JÉ" performance of the Arkhétypos Theater Group of UFRN.
Such research also proposed to reflect on the processes of decolonization in the field of the
performing arts. For this, the researcher sought to create a performance whose content and
aesthetic organization runs through his "Ancestral Memories" (SANTOS, 2015), making it a
possibility of decolonization of the imaginary.
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................10
MÉTODOS DE TRABALHO...............................................................................................15
RESULTADOS.....................................................................................................................18
REFERÊNCIAS......................................................................................................................26
10
Introdução.
Essas primeiras informações são importantes para situar o leitor sobre o ponto de
partida da pesquisa ―Performance e Ritual: Por uma Prática de Descolonização do
Imaginário‖ financiada pelo PIBIC-CNPq e de que trata o presente artigo. Tal pesquisa teve
início em agosto de 2018 e foi finalizada em julho de 2019, também sob orientação do Prof.
Dr. Robson Carlos Haderchpek. Ousarei ao longo deste artigo formular algumas hipóteses
sobre o que pode ser um trabalho decolonial nas artes cênicas. Porém, entendo que é
importante iniciar essa introdução apontando aspectos dos meus regimes de entendimento
sobre a noção de performance e de ritual ao longo da pesquisa.
A princípio os dois termos parecem ambivalentes e justapostos, mas a partir da
segunda metade do século XX, o campo denominado estudos da performance começa a
aproximar os dois conceitos, graças às publicações de autores como Richard Schechner
(2011) e Victor Turner (1974). Ambos iniciam de maneira sistemática a ponte das ciências
1
―Ânima‖ foi a primeira denominação, no ano de 2016, do processo que resultou no espetáculo ―Cuna‖.
2
O Grupo Arkhétypos foi formado em 2010 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte pelo Prof. Dr.
Robson Haderchpek e por um grupo de alunos que decidiram se dedicar à pesquisa artística dentro da
Universidade. O Grupo trabalha numa perspectiva laboratorial e desenvolve seus espetáculos a partir de um
mergulho no universo simbólico de cada ator, sempre associando a prática artística com a busca pelo
autoconhecimento.
11
sociais com as artes cênicas. Ultimamente no campo das artes da presença 3, principalmente
depois do Congresso da ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em
Artes Cênicas) em Uberlândia/MG, no ano de 2016, ocorreu na pesquisa em artes certo
deslocamento epistêmico do debate sobre as formas artísticas e suas implicações políticas.
Aliás, o título daquele congresso era bastante sugestivo: ―Poéticas e estéticas descoloniais -
artes cênicas em campo expandido‖.
Cada vez mais a noção de performance ou do carácter performativo dos rituais vem à
tona no debate contemporâneo. O que me faz crer que é necessário deslocar também o
sentido da palavra performance de sua demarcação ocidental. O leitor pode estar se
perguntando: ―Você também não é um sujeito ocidental? Como então deslocá-lo?‖ Porém, a
questão aqui, é não utilizá-lo de forma eurocêntrica. O problema de utilizar o ―outro teatro‖ 4
e normatizá-lo como ―performance‖ soa de certa maneira como uma imposição normativa.
As formas estéticas (nos seus contextos ritualísticos) não possuem estruturas de definição
baseadas nessa racionalidade cartesiana ocidental, tais como: narratividade/texto,
imanência/transcendência, espaço/corpo, público/plateia, dança/teatro. Pois cada ato
expressivo é um fenômeno integrativo e rizomático, fundado na integração do cosmos com o
corpo em estado de presença, de ação simbólica.
Por uma opção epistêmica, ligada à própria perspectiva ameríndia, respeitando claro
seu lugar de discussão, pretendo nesse texto — quando me referir à performance, não usar o
termo hibridez. Prefiro mistura. Pode parecer de certa maneira análogo, mas não é. É uma
escolha política de deslocamento epistêmico, fundada nessa investigação permanente sobre
performance e ritual. Sabemos que a feijoada na culinária brasileira é uma mistura de
ingredientes que podem ou não dar liga e sabor. O híbrido não é misturado. É uma figura de
interpretação que unificou várias coisas. A mistura não, ela é uma feijoada que reúne diversos
ingredientes se respeitando e produzindo sabor. Na verdade, essa opção por um ―teatro de
misturas‖ propõe certo amálgama de forma e conteúdo, do trabalho artístico com as
memórias do intérprete, do meu lugar de pertencimento com uma concepção artística que
pretendo revelar nas próximas páginas.
3
Entendo as artes cênicas, como a dança, o teatro, a performance e o circo como artes do corpo e da presença,
pois, cada uma delas parte do pressuposto do corpo em situação de presença cênica, realizando uma ação para
ser observada.
4
―Outro teatro‖ é a definição aplicada às performances artísticas e culturais que envolvem narrativas, danças,
cantos e elementos cenográficos, utilizadas principalmente pelas tradições africanas, asiáticas e ameríndias que
se tornaram conhecidas como importantes para o mundo das artes cênicas através de diretores de vanguarda da
Europa no século XX (LIGIÉRO, 2012, p. 15).
12
5
Refletindo sobre os sujeitos e a tradição cultural, o trabalho desenvolvido pela pesquisadora da Dança Inaicyra
Falcão dos Santos (2015) intitulado ―Corpo e Ancestralidade‖ é de extrema importância no processo de
construção epistemológica da pesquisa, pois ele nos permite pensar a prática artística em diálogo com a história
individual dos atores e as matrizes que solidificam suas heranças culturais, algo que a pesquisadora chama de
―matrizes ancestrais‖ ou ―memórias ancestrais‖, tais memórias são evidenciadas no ato do movimento criativo.
6
O Grupo Arkhétypos de Teatro trabalha metodologicamente com a poética dos elementos, concepção de
trabalho inspirado nos estudos de Gaston Bachelard (2013). Neste trabalho é comum a escolha de um dos
elementos da natureza como mote criativo. Cada elemento da natureza - terra, fogo, água, ar e éter - originou
um espetáculo do grupo, e é a energia de cada elemento que experimentamos nos nossos corpos durante os
laboratórios de criação.
13
obra artística. O corpo nesta perspectiva assume no trabalho a dimensão imaginária através
do movimento criativo.
A performance ―JÉ‖ deve ser entendida nesta proposta como uma performance
ritualística, pois permite por meio da sensorialidade e da integração do corpo do performer
com o público, o mergulho no universo das culturas ameríndias. Distingue-se do teatro pelo
motivo de não obedecer à estrutura do texto, da narratividade clássica e das formas de
recepção. O trabalho não pretende contar uma história, como acontece na compreensão quase
canônica teatral, a performance visa experimentar uma experiência sensível. Partilhar uma
circulação de memórias ancestrais com um público diverso, modificar e transformar. O
trabalho tem por junção de inúmeros fatores obedecer a uma certa ideia de rito liminar
(TURNER, 1974).
Esse processo de não adequação às regras impostas pela vida social foi muito
estudado na obra do antropólogo Victor Turner: ―Na liminaridade ritual, através da
simbolização, o tempo ganha a intensidade e a qualidade transformadora e reflexiva,
produzindo a experiência pelos sujeitos da fusão entre ação e consciência‖ (TURNER, 1982,
p. 198). Essa compreensão de tempo expandido acompanhou todo o meu trabalho desde as
fases de criação até à mostra final. Nos processos liminares os sujeitos envolvidos assumem
uma dupla negação: de ser o não eu e o não-não eu, negação paradoxal e conflituosa. Nos
estudos antropológicos esses processos liminares são fundamentais nas dinâmicas de
sociabilidade.
Entretanto, na minha pesquisa, liminaridade assume função chave: pois permite que
eu vivencie integralmente a ação e instaure um processo de transformação. Como fala
Schechner: "Esta entrega ao Fluxo da ação é o processo do ritual" (2011, p. 161).
Proporcionando o fenômeno da iniciação e da transformação. Em ―JÉ‖, encontro pela via
artística uma espécie de retorno quase metafísico à minha herança ancestral, formulando uma
reminiscência identitária e artística, tornando-me outros.
Mas o leitor pode estar se perguntando nesse momento sobre o porquê dessa pesquisa
se caracterizar como um processo de descolonização do imaginário. O que esse trabalho tem
de decolonial e como ele é influenciado por tais teorias? A teoria de base dessa pesquisa
recorre aos estudos do sociólogo Boaventura de Souza Santos (2009), para dar conta da
noção de ―conhecimentos do sul‖. Epistemologias historicamente marginalizadas pelas
14
ciências ocidentais e por seu fundo colonialista.7 Para o autor toda episteme deriva de um
contexto que é culturalmente construído pelo pensamento hegemônico. Esse pensamento
colonial é um pensamento abissal8, fruto do apagamento de formas e cosmovisões de outras
populações do planeta, que foram marginalizadas e exploradas. Contra essa forma de
colonização epistêmicida o autor propõe a ideia de uma ecologia de saberes, que segundo ele,
promoveria a justiça cognitiva:
O leitor ainda pode estar pensando: ―Mas como a ecologia de saberes influenciou na
materialidade desta pesquisa?‖. A primeira resposta a essa pergunta tem um aspecto mais
axiológico, primeiramente porque diz respeito à minha trajetória como ator/brincante,
influenciado pelas manifestações das danças tradicionais brasileiras, segundo pela implicação
ontológica que escolhi trabalhar na performance ―JÉ‖: a ideia das misturas e da passagem de
uma figura para outra durante a apresentação artística. E terceiramente por uma ideia mais
experimentalista de entender como funciona a linguagem da performance, área com um certo
caráter marginal na cena artística brasileira. Por isso, nos laboratórios de criação, partir do
entendimento da cena como universo da não racionalidade, me permitiu explorar aquilo que o
instante presente oferecia.
7
O outro lado da modernidade como afirma Mignolo (2017).
8
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e
invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de
linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: ‗o universo deste lado da linha‘ e o
universo ‗do outro lado da linha‘. A divisão é tal que o ‗outro lado da linha‘ desaparece enquanto realidade,
torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente (SANTOS, 2009, p. 23).
15
Creio que o trabalho tenta encontrar o seu solo na ideia de experimentação corporal de
figuras9, na fluidez das águas dos rios em seu estado transitório. A performance insurge
estética e poeticamente como experiência da não racionalidade. É uma obra de risco e de
contato, uma experiência artaudiana nos seus escritos mais subversivos. Cabe também
ressaltar o próprio mote criativo do trabalho como uma forma de ruptura com o paradigma
texto/cena. O texto no trabalho foi criado pela via do meu improviso em cena, e não pela
abordagem clássica da dramaturgia. No meu trabalho prevalece à dramaturgia das ações pela
fonte da poética dos elementos, neste sentido, a poética dos elementos surge como
possibilidade de descolonização de um imaginário construído:
Métodos de Trabalho.
9
Ousei neste trabalho substituir a ideia de personagem por figuras, muito influenciado pelos brincantes do
Cavalo Marinho, manifestação tradicional da Zona da Mata de Pernambuco. No cavalo marinho existe o
figureiro que ―bota a figura‖ e entra na brincadeira. Existe mais de 70 figuras no brinquedo, como o Ambrósio,
o Soldado da Guarita, o Valentão e a Véia do Bambu. As figuras são divididas em três grupos: os animais, as
figuras fantásticas e as humanas.
10
Conceito desenvolvido por Juremir Machado da Silva na obra ―Tecnologias do Imaginário‖ publicado pela
editora Sulina (2006).
16
11
Dramaturgia aqui assume muito mais a noção de sequência de ações organizadas no espaço, do que de drama,
no seu sentido clássico ou moderno do termo.
17
Consta também no programa da pesquisa uma parte de estudo de campo, que seria
desenvolvido junto aos indígenas yanomami da aldeia de Maturacá no estado do Amazonas.
Algo que não ocorreu, principalmente em função de situações financeiras e políticas.
Entretanto, foi possível acessar a tese de doutoramento do tutor que me receberia na aldeia: o
professor da Universidade do Estado do Amazonas Luiz Davi Vieira Gonçalves. Sua tese é
intitulada de: ―O(s) Corpo(s) Kõkamõu: A performatividade do pajé-hekura Yanomami da
região de Maturacá‖ (2019). Através dela consegui compreender a performatividade
imanente ao pajé-hekura no ritual hekuramou dos povos Yanomami da região. Tal
performatividade pode ser compreendida em uma passagem bem interessante de sua tese, que
diz o seguinte:
o corpo ―se mostra‖ em ação e não vira refém de uma certa ideia eurocêntrica de personagem
ou de dramaturgia.
Durante a performance, as figuras transitam pelo apagar e acender das velas. O roteiro
das ações é volátil, variável e mutável, podendo ser modificado de acordo com a
receptividade do público e o pulsar interior do meu corpo. As figuras surgem, realizam uma
ação e inserem o público no universo simbólico proposto. Tais ações são sincrônicas e
polifônicas, às vezes sobrepostas e em outras justapostas. Acredito muito no caráter
metafisico da performance e no lugar do corpo como dramaturgia, uma dramaturgia ampliada
e em fluxo. Talvez uma contra-dramaturgia de ações, não aristotélica, não submissa às regras
canônicas e as unidades paradigmáticas. ―JÉ‖ opera com os borrados do corpo, com as
misturas, com os desequilíbrios e as possibilidades que só o instante presente da performance
pode ter.
Resultados
―Assim meus pensamentos quando estou só, nunca são calmos. Busco no
fundo de mim as palavras desse tempo distante em que os meus vieram a
existir. Pergunto-me como seria a floresta quando era ainda jovem e como
viviam nossos ancestrais antes da chegada das fumaças de epidemia‖.
(KOPENAWA, 2015. p. 75)
Lembro que a parte inicial da pesquisa foi extremamente árdua e complexa. Tinha
deixado um processo de quase dois anos para desenvolver um feto embrionário sozinho, em
uma sala silenciosa e sem a presença de um condutor guiando o processo. Quem se tornaria o
guia da minha jornada? Como fazer para entender tais caminhos? Sobre tais perguntas,
surgiram respostas que aparentemente podem parecer óbvias. Nos processos laboratoriais que
desenvolvemos no Arkhétypos Grupo de Teatro, trabalhamos a partir de um mergulho no
universo mítico dos atores, tanto no sentido de uma ‗mitologia pessoal‘, como no ‗imaginário
19
Luiz Davi Vieira Gonçalves (2019) analisando o ritual hekuramou comenta sobre os
cantos no ritual como forma de materialização dos hekura-espíritos, principalmente pela
forma como a voz e o corpo (unívocos) são utilizados pelo pajé no ritual. Para ele: ―A
complexa dimensão performativa do hekuramou é ativada pela musicalidade que corresponde
à sonoridade do canto, de gritos, gemidos, assovio e suspiros, que representam para o pajé-
hekura acontecimentos longínquos no tempo, os quais apenas ele consegue entender em
diálogo junto aos seus hekura-espíritos‖ (2019, p. 142). Essa citação é sintomática porque ela
reflete na minha pesquisa o carácter não intelectivo de certas ações que ocorriam na
20
construção da minha performance ―JÉ‖, ações que eu não conseguia entender o real
significado naquele momento. Obviamente não é meu objetivo aqui exemplificar meu
trabalho como algo análogo a um ritual indígena, ou dizer que ele tem influência das
cosmogonias yanomami, apenas estou tentando colocar em diálogo, de forma relacional,
perspectivas cosmo-estéticas que evidenciam o corpo como eixo central, algo presente em
quase todos os rituais dos povos originários do Brasil.
A pele do meu trabalho na sua camada mais profunda corresponde à variação das três
figuras: o xamã que conduz o processo, a figura caótica que representa o meio, a encruzilhada
e o desvio: Exu, e o índio guerreiro que assume a máscara e dança para celebrar a tradição.
As três aparecem de forma polifônica e multiforme em vários momentos da performance,
variando sempre a corporeidade e mostrando uma ação específica.
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Comentarei agora sobre cada uma das figuras de forma isolada, evidenciando as ações
físicas e a função poética e ancestral que cada uma delas representa ao longo da performance.
Tentando encontrar também, os possíveis diálogos com as mitologias ameríndias, formulando
questionamentos acerca dos estereótipos concebidos no seio da nossa sociedade.
O Xamã: Segundo Eliade (1993, p.20): ―O xamã é o grande especialista da alma humana; só
ele a vê, pois conhece sua ―forma‖ e seu destino‖. Matriz de criação desenvolvida desde 2017
no Arkhétypos Grupo de Teatro, o Xamã é a figura inicial da performance. Nela meu corpo
fica curvo e a voz distorcida, de maneira que o som sai agudo e destoante. Não há uma fala
articulada e as ações são mais simbólicas e menos concretas. Quando estou imerso nessa
figura penso na minha avó Raimunda, nos seus traços físicos: cabelo preto, pele com bastante
marcas de velhice e no leve caimento de sua boca. Lembro-me dela para encontrar algum
traço da minha bisavó Eulínia, indígena que pertencia aos antigos povos Tarairiús que
habitavam a região do vale do Assú no Rio Grande do Norte.
Na organização do trabalho para a apresentação do dia 27, optei por trabalhar com a
metáfora das seringas como uma forma de denúncia aos retrocessos que os povos indígenas
vêm sofrendo nos últimos tempos, tendo em vista o avanço de políticas reacionárias e do
forte apoio do governo atual ao aumento do desmatamento na Amazônia. Esta ideia das
seringas surgiu no diálogo com outros artistas indígenas do RN, fazendo referência às
múltiplas outras formas de violências produzidas na colonização e no neocolonialismo. Faz
parte da minha formação como artista, conceber produtos artísticos que contenham maior
engajamento em questões políticas da sociedade. Não conseguiria ao longo da pesquisa isolar
o produto artístico dos problemas que afligem a população indígena. A crítica decolonial é
uma crítica radical aos processos de dominação hegemônica e sua necropolítica (MBEMBE,
13
Essa citação refere-se somente a apresentação de Junho que finalizou o plano de trabalho da pesquisa de
iniciação científica. Porém, haverá outra apresentação na defesa do presente trabalho de conclusão de curso.
14
Sinopse: A performance ritualística ―JÉ‖ surge a partir dos estudos do performer José Ricardo sobre corpo e
ancestralidade indígena. Por meio do aparecer e desaparecer de figuras o trabalho busca tensionar a linha que
separa o rito e a arte. Tal compreensão surge pela dupla experiência limiar de assumir o corpo performer e o
corpo indígena atualizado pelas questões do presente.
24
2018), tal crítica escancara a atitude colonialista fundada na ideia de ‗razão pura‘, do saber
científico absoluto, que envolve as epistemologias ocidentais e seus pressupostos.
Depois da apresentação, falei com algumas pessoas do público para que elas
escrevessem sobre a experiência e me mandassem via e-mail. O depoimento da atriz e aluna
do curso de Teatro da UFRN, Valéria Chaves, nos permite entender, agora sob a ótica do
espectador, como a pesquisa trabalhou de maneira prática os conteúdos teóricos estudados:
15
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q. Acessado em 24 de setembro de 2019.
25
O depoimento da espectadora lança luz sobre como uma obra artística pode permitir o
entendimento sobre as contradições que envolvem as múltiplas formas de descobrir, e se
redescobrir através da alteridade.
Por fim, entendo que o trabalho evidencia os processos de atualização das tradições e
as múltiplas formas de seu entendimento. O percurso dessa pesquisa me permitiu
compreender o salto qualitativo de uma proposta decolonial, onde o corpo e as memórias
ancestrais fundam uma visão cosmo-estética. A função da crítica decolonial nas artes cênicas
é a de promover o deslocamento epistêmico das noções estéticas canônicas, tensionando os
produtos que surgem a partir da ideia de representação ou de pessoa. Neste sentido, trabalhos
26
que fundamentam seu campo de atuação no horizonte das misturas, do desvio e do corpo,
proporcionam um sentido ampliado e não ocidental nas artes cênicas. Portanto, ―JÉ‖ e o
Arkhétypos Grupo de Teatro, me permitiram experimentar novas formas de saber pela via
sensível. No grupo tudo nasce partindo da própria história individual dos sujeitos, e
principalmente das mitologias que os compõem.
Referências
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zarar, 1978.
GROTOWSKI, Jerzy. Por um teatro pobre. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Editora
Dulcina, 2011.
HADERCHPEK, Robson Carlos. VARGAS, Rocio del Carmen Tisnado. “O Sul Corpóreo e
a Poética dos Elementos: Práticas para a Descolonização do Imaginário”. In Revista
ILINX: Revista do Lume. Campinas: Unicamp, 2017. ISSN: 2316-8366. p.77-87.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
MBEMBE, Achile. (2018). Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições, 2018.
MARIZ, Adriana Dantas de. A Ostra e a Pérola: Uma visão antropológica do Corpo no
teatro de Pesquisa. São Paulo: Perspectiva S.A, 2008.
29
OLIVEIRA, João Pacheco. Uma Etnologia dos “Índios Misturados”? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana Estudos de Antropologia Social – Rio de
Janeiro 1998.
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Ed. Annablume;
Fapesp, 2004.
SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2006.
VARGAS, Rocio Del Carmen Tisnado. O sul corpóreo: práticas teatrais interculturais
para a descolonização do imaginário. Dissertação de Mestrado. Natal, UFRN: 2016