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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PLANEJAMENTO URBANO E
REGIONAL

STEFÂNIA PEREIRA DA SILVA

As Pequenas Áfricas:
Temporalidades nas relações de trabalho e resistências negras na
zona portuária do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2019
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STEFÂNIA PEREIRA DA SILVA

Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-


Graduação em Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção
de grau de Mestre em Planejamento Urbano e
Regional.

Orientadora: Prof. Dra. Cecília Campello do


Amaral Mello

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dra. Cecília Campello do Amaral Mello
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

____________________________________________
Prof. Dr. Renato Emerson Nascimento dos Santos
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

____________________________________________
Pós. Dra. Clara Mariani Flaksman
Programa de Antropologia Social / Museu Nacional - UFRJ
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Introdução

1. Primeiro Capítulo: Uma narrativa, muitas histórias


1.1 Crônicas como Instrumento de Pesquisa
1.2 Lima Barreto e João do Rio, negros cronistas do Rio de Janeiro.

2. Segundo Capítulo: O Porto do Rio


2.1 O trabalho portuário: de escravizados a trabalhadores livres.
2.2 Organização social do trabalho: Sindicalização

3. Habitação, resistências e “espaços de memória”


3.1 Adensamento populacional: trabalho, tradição e saudade
3.2 Espaços de memória: breve discussão sobre espaço e tempo

4. Terceiro Capítulo: Pequena África Espacialidades e significados em disputa

4.1 Escalas espaciais e culturais: Grande e Pequena África, expressões urbanas da


colonialidade acadêmica
4.2 Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy: identidade, cultura e religiosidade
na luta por memória e rexistência

5. Conclusão Considerações finais

6. 6. Bibliografia bibliográficas
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Agradecimentos
“Tengo mucho que escribir y poco papel
Mi honestidad es color transparente
Me puedes ver por dentro con solo mirarme de frente
Puedes tratar de tirarme y hacer el intento
Aunque pa' seguir siendo honesto yo soy el mejor en esto”
(Calle Trece. Adentro. Compositor: Rene Perez.)

Agradeço os ombros amigos, as trocas de ideias infinitas do cotidiano e a vida


que me constrói e me cansa no dia a dia das lutas por uma pós-graduação diferente de
outros tempos, em muitos campos diferentes. Em especial Lygia Fernandes, Isabela
Carvalho, Ellen F. Gusa, Isaac Palma, Maiah Lunas, Ana Claudia Cruz da Silva,
Antônio Rafael, Oiara Bonilla, Joana Müller, Luciana Luz, Fernanda Souza dos Santos,
Carolina Santana, Joice Christina Reginaldo Braga Junior, Joaquim Lombardi e.
“Obrigado por continuarem gostando de mim, apesar de mim.”*
Agradecimento a estaer à banca – citar nominalmente - e em especial tão
especial para mim por diferentes motivos. A à Clara Flaksman por ter sido convidada no
último minuto e ser tão generosa nas contribuições durante apara a b Banca de
qQualificação e ter aceito participar. Ao Renato Emerson, pelo que ele representa para
todos os estudantes dentro do IPPUR e na UERJH, vigoroso e atento as dinâmicas sócio
raciais que nos afligem.
Aos muitos amigos do Coletivo de Estudantxs Negros da UFF Iolanda de
Oliveira, Coletivo Negro Marlene Cunha, Coletivo Pró-Ações Afirmativas Maria José
Justino IPPUR; por tudo e pelo TODO. Aos Laboratórios Cosmopolíticas da UFF,
Abaeté-NanSi do Museu Nacional, ETTERN/ NEPLAC do IPPUR pelas trocas
acadêmicas valiosas durante minha trajetória.
Para minha orientadora, Cecília Campello do Amaral Mello, sempre presente e
cuidadosa, mesmo quando nos faltou o próprio chão, de pé permaneceu entusiasmada e
esperançosa. Por sua confiança e a combatividade em batalhas contra a correntezas
opressoras dos velhos homens, em todos os tempos.
A todos estes acima mencionados, sou grata pelo carinho e a confiança na luta
de fazer uma universidade. Por nos tornarmos essa diferença.
A minha mãe, Alzira Célia Velasco Pereira, por nunca me negar um livro,
mesmo sem entender o porquê de tudo isso. Mesmo me escutando diariamente como
construía essa dissertação, não sabendo para onde meu barco velejava.
Nas horas em que faltei por estar empenhada nesta saga contra mil reinos em
mim, peço desculpas pela ausência em outras lutas. Falhei e faltei muito nestes últimos
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dois anos. Contudo, o resultado aqui não é meu, é nosso! Saibam que meu coração
ainda caminha com esperanças e sorrisos. Obrigado.
(*Abraçar e Agradecer. Compositores: Geronimo Duarte / Everaldo Calazans De Almeida
Filho. 2016)
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RESUMO

Essa dissertação trata do trabalho da na estiva, da associação de moradores dos


bairros da zona portuária e do Grupo Cultural Afoxé Filhos de Gandhy. Em todos os
aspectos houveram lutas e estratégias para lidarem com os problemas diários
envolvendo preconceito territorial, racismo e descaso, do governo e da academia, com
relação a ancestralidade presente neste território. Retomo desde o Brasil Colônia até os
dias de hoje como esse pedaço do Rio de Janeiro está em constante modificação pelos
órgãos públicos, em um fazer sempre incompleto. Numa tentativa sistêmica de
embranquecimento dos bairros e apagamento da história negra que perpassa a vida das
pessoas que compõe essa parte central da cidade. Nas crônicas jornalísticas obtive um
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acervo etnográfico que compõe o Rio de Janeiro da Primeira Republica e a entrada


embrionária de atividades capitalistas. Resgato o passado de lutas localizado no bairro
como a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata, além das lutas dos moradores por
suas casas e modos de vida. A estiva une-se aos Filhos de Gandhiy por meio dos seus
representantes, eles eram os foliões, demonstram simbolicamente através do culto de
matriz africana a relação entre o profano e o religioso. O Afoxé luta por
representatividade, ancestralidade e respeito aos homens e mulheres que compõe o
bloco e sua religiosidade em torno da patrimonialização e reconhecimento de seu papel
social na cidade.

Palavras-chave: Filhos de Gandhy do Rio de Janeiro. Resistência. Projeto Porto


Maravilha. Cemitério de Santa Rita. Cemitério dos Pretos Novos. Afoxé

RESUMO EM INGLÊS

This dissertation is focused on Stevedores' workload, the residents' Association


of Rio de Janeiro port and neighborhoods, and the Cultural Group Afoxé Sons of
Gandhy -- Afoxé Filhos de Gandhy. In all aspects, there have been struggles and
strategies in regards to dealing with the daily problems involving territorial prejudice,
racism and the disregard of the government and the academia, in relation to the ancestry
present in this territory. From the colony of Brazil to the present day, this part of Rio de
Janeiro is constantly being modified by public agencies and bodies. These modifications
reflect an always-incomplete make of a systemic attempt of whitening the
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neighborhoods and erase the black history that perpasses the life of the people and that
composed of this central part of the city. From journalistic chronicles, I've obtained an
ethnographic collection, in which composes Rio de Janeiro of the First Republic and the
embryonic entrance of capitalist activities. The work also presents the struggles being
held in these neighborhoods, such as the Vaccine Revolt and the Chibata Revolt. In
addition to these struggles, residents are fighting to keep their homes and their ways of
living. Stevedores join the Sons of Gandhy through their representatives. Revelers have
symbolically demonstrated through the African matrix religions and the relationship
between the profane and the sacred. Afoxé fights for the representation, ancestry, and
respect of the men and women who makes up the group and also for the religiosity
around the patrimonialization and recognition of its social role in the city.

Key-words: Filhos de Gandhy do Rio de Janeiro. Resistance. Projeto Porto Maravilha.


Santa Rita’s Cemitery. Cemitery of dos Pretos Novos. Afoxé
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Não haverá nunca uma porta


Estarás dentro e o alcácer abarca o Universo
E não tem anverso nem reverso. Nem externo muro ou secreto centro.
Não esperes que teu caminho que teimosamente se bifurca tenha fim.
É de ferro teu destino. Como teu juiz. (...)
Não existe, nada esperes, nem A fera, no negro entardecer.
Labirinto. Borges, J.L.; “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”, São Paulo:
Terracota, 2013.)
(Labirinto. Borges, J.L.; “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”, São Paulo: Terracota, 2013.)

“(...)Lo que puede el sentimiento


No lo ha podido el saber

Ni el mas claro proceder


Ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia el momento
Cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente
De rencores y violencias
Sólo el amor con su ciencia
Nos vuelve tan inocentes
(Música: “Volver a los diecisiete”. Compositora: Violeta Parra Sandoval)

*****

Não haverá nunca uma porta


Estarás dentro e o alcácer abarca o Universo
E não tem anverso nem reverso. Nem externo muro ou secreto centro.
Não esperes que teu caminho que teimosamente se bifurca tenha fim.
É de ferro teu destino. Como teu juiz. (...)
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Não existe, nada esperes, nem A fera, no negro entardecer.


(Labirinto. Borges, J.L.; “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”, São Paulo:
Terracota, 2013.)

Sumário:

Introdução

1. Primeiro Capítulo: Uma narrativa, muitas histórias


1.1 Crônicas como Instrumento de Pesquisa
1.2 Lima Barreto e João do Rio, negros cronistas do Rio de Janeiro.

2. Segundo Capítulo: O Porto do Rio


2.1 O trabalho portuário: de escravizados a trabalhadores livres.
2.2 Organização social do trabalho: Sindicalização

3. Habitação, resistências e “espaços de memória”


3.1 Adensamento populacional: trabalho, tradição e saudade
3.2 Espaços de memória: breve discussão sobre espaço e tempo

4. Terceiro Capítulo: Pequena África Espacialidades e significados em disputa

4.1 Escalas espaciais e culturais: Grande e Pequena África, expressões urbanas da


colonialidade acadêmica
4.2 Revoltas Populares: a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata na zona
Portuária
4.3 Operação Porto Maravilha
4.4 Afoxé Filhos de Gandhy na Bahia: Tradição, cultura e religiosidade na luta por
memória
4.5 Resistências Lutas e Glórias: Afoxé Filhos de Gandhy no Rio de Janeiro

5. Considerações finais
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6. Referências Bibliográficas

Introdução

“Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: -Filho, por você ser preto você
tem que ser duas vezes melhor. Ai passado alguns anos eu pensei, como fazer duas vezes
melhor se você ta pelo menos cem vezes atrasado? Pela escravidão, pela história, pelo
preconceito, pelos trauma, pelas psicose, por tudo que aconteceu. Duas vezes melhor como?
Ou melhora ou você é o melhor ou é o pior de uma vez. Sempre foi assim.”*

(nota: mMúsica “A Vida é Desafio”. Álbum: “Nada como um Dia após o Outro Dia”,
Racionais Mc’s. 2002. Gravadora Cosa Nostra. Compositor: Pedro Paulo Soares Pereira)

Minha inquietação durante o mestrado em Planejamento Urbano no IPPUR-


UFRJ esteve em grande parte associada aos processos de construção discursiva e
operacionalização da renovação do centro da cidade do Rio de Janeiro. Pude
acompanhar alguns processos junto ao Laboratório de Pesquisa ETTERN (Laboratório
Estado, Trabalho, Território e Natureza) que leva em conta um tipo de investigação que
leva em conta a relação entre academia e os movimentos sociais de várias vertentes, a
exemplo das experiências na Vila Autódromo, do Plano Popular de Vargens e de outros
trabalhos junto aos atingidos por transformações ambientais. Contudo, não encontrava
espaço até então, ou mesmo trabalhos que interagissem de forma conjunta com a
discussão da questão racial, que aparece geralmente associada, ou melhor, subordinada
ao problema das assimetrias entre classes sociais. Vi, contudo, nessas ausências,
observadas na academia, no Laboratório e nas ementas dos cursos, uma motivação para
delinear meu tema de dissertação.

Estou na primeira turma de alunos cotistas da instituição, ouvimos e vemos


muitos silêncios desde a implantação da política de ações afirmativas – muitas vezes
escutamos que “o problema era de classe”- até ementas que excluíam qualquer temática
racial, bem como professores deliberadamente avessos a essa temática em seus métodos
e abordagens em sala. Tristemente, nada disso é novo. Nada. Isto se dá/dava em quase
todos os espaços que estávamos.... das salas, corredores e no refeitório, com os
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professores e alunos da instituição. Contudo, formamos redes de fortalecimento para o


embate político interno, por uma maior representação política e epistemológica, isto é,
no processo mesmo de produção do conhecimento. Mesmo que com isso tenhamos
perdido algumas noites e parte da saúde metal, não havia momento de hesitação.
Sempre combativos, sempre juntos, era/é nossa forma de reexistir.

“A vida é desafio”*; assim, me desafiei a desdobrar o tema da Zona Portuária


utilizando fontes múltiplas - fora dos cânones - para pensar o Planejamento Urbano.
Essas outras fontes são o uso das crônicas de jornal de Lima Barreto e João do Rio
como metodologia para se acessar uma dimensão mais etnográfica da pesquisa, à
primeira vista impossível em função em função do tempo histórico que nos separa.
Busquei fontes históricas que colocam em questão a raça o trabalho na estiva antes e
depois da abolição da escravatura. Por fim, apresento um exemplo potente de
movimento cultural, religioso e musical de resistência Afoxé Filhos de GandhiFilhos de
Gandhy, potencializando as narrativas que emanam e constroem uma insurgência
permanente na região portuária negra desde 1905. “Porque tem que acreditar”*

“Porque tem que acreditar”*; Pareceu-me lógico analisar o Projeto Porto


Maravilha, destinado à transformação estética e social do novo Centro, “a
territorialização da Arquitetura de Grife” (Bienenstein; Sanchéz, 2007.), com
proposições europeizantes/americanizadas dos espaços ditos degradados e
abandonados, como era o caso das atribuições dadas à Praça XV e à Praça Mauá. Nesse
interim, pude acompanhar processos de resistência com o Afoxé Filhos de GandhiFilhos
de Gandhy, criado por trabalhadores da estiva e que até hoje movimentam religiosa e
culturalmente a região. A presente pesquisa permitiu-me ver, ao mesmo tempo, a face
racista do Estado, dentro de sala de aula e na prática cotidiana deste movimento, e como
a história urbana de matriz africana está em um constante processo de apagamento. “*
porque o sofrimento alimenta mais a sua coragem.”coragem. ” (Pedro Parulo Pereira,
2002)

Durante algum tempo algumas perguntas me indagavam insistentemente: como


fazer política, religião e cultura de matriz africana, elementos que foram sempre
negados pelo sistema operante do Estado, num ambiente acadêmico e social mais amplo
dominado pelo discurso de miscigenação e da cordialidade no Brasil? Como fazer uma
pesquisa com atores políticos que foram subalternizados pelo poder sem trabalhar tão
somente suas dores, mas suas potências? Essas perguntas me acompanharam durantes as
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aulas e durante o meu percurso cotidiano de Niterói à Ilha do Fundão. Espero que na
resposta ou nos desdobramentos engendrados por minhas inquietações trabalhadas
durante o texto tenha construído uma dissertação com elementos que possam
demonstrar a força histórica dos trabalhadores da estiva, dos cronistas negros da cidade
e dos Filhos de GandhiFilhos de Gandhy na cidade do Rio. “na cidade grande sempre
foi assim, você espero tempo bom e o que vem é só tempo ruim.” (A vida é desafio.
2002 Pedro Paulo Pereira)

Começo no Porto, pois pensar na história de territórios portuários é imaginar


simultaneamente trânsitos constantes, pessoas que vieram e vão, fluxos incessantes.
Objetos, informações e povos que têm nesse espaço múltiplas formas de uso, onde se
estabeleciam relações no modo “princípio, meio e princípio” na chegada ao Brasil ou
mesmo pensar em “confluências”; no que se ajunta mas não se mistura, nesse ambiente.
(Bispo, 2015). Em histórias silenciadas e por vezes apagadas da paisagem da cidade. O
Porto do Rio Janeiro é meu objeto empírico de estudo porque nele se congregam e
confluem espacialmente - e especialmente - trabalho, raça, revoltas e resistências, sejam
elas físicas, políticas e culturais, com as transformações urbanas dos séculos XIX ao
século XXI, em duas marcas específicas: a “revitalização” de Pereira Passos e a
“revitalização” de Eduardo Paes.

Nesse lugar à primeira vista restrito ao recebimento e envio de cargas, estanque


na funcionalidade e, simultaneamente, em movimento pela operação constante de
mercadorias, se desdobram muitas formas de existir; com seus passageiros, seus muitos
trabalhadores, de vontades e origens divergentes e nacionalidades diferentes. É
importante destacar nesse ambiente a marca das resistências urbanas, como a Revolta da
Vacina (1904), a Operação do Bota Abaixo (1902-1906) e a Revolta da Chibata (1910).

Na Zona Portuária antes e pós-abolição da escravatura ocorreram visíveis


mudanças nas formas de trabalho e organização desses estivadores. Aqueles que
possibilitavam o mesmo trânsito de produtos de diversas origens também foram os
responsáveis por fazerem circular informações de sociedades estrangeiras (Velasco,
2000). Havia ali uma multiplicidade social e religiosa que estabeleceu novas
territorialidades vividas pelo movimento escravista forçoso.

Nunca será suficiente relembrar que o Porto do Rio de Janeiro foi o lugar onde
mais se aportaram escravizados no mundo. E que o Brasil foi o último país a abolir a
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escravidão no mundo. “Durante os mais de três séculos de tráfico atlântico um total de


1.217.521 africanos desembarcou no porto da cidade do Rio de Janeiro. Deste total
estima-se que quase um milhão de africanos foi vendido no mercado do Valongo. ”.
(Honorato, 2008). Essa multidão político-cultural de pessoas do continente africano
viveu e conviveu com o território da Zona Portuária de forma variada, uma vez que ali
também era o local de habitação, trabalho e onde se realizavam os cultos religiosos de
matriz africana. Isso fica emblemático quando se descobrem os muitos cemitérios de
escravizados espalhados naquela zona da cidade. Tratados da mesma forma que as
mercadorias manufaturadas inanimadas vindas do estrangeiro que eles carregavam.

Minha pergunta, neste primeiro momento é: quem forão essas pessoas “que dão
vida” a essa localidade em eterna transformação urbana? Como se deram suas
resistências e existências nesse lugar que personaliza inúmeros debates sobre
“intervenção urbana” do passado e do presente. Para responder a essas indagações,
consideramos importante retomar as narrativas de ontem e de hoje sobre os
trabalhadores, os moradores e os projetos culturais de matriz africana que permanecem
neste local.

Observa-se atualmente um novo modelo de revitalização da região portuária do


Rio de Janeiro à base de um empresariamento urbano, o chamado “City-Marketing”
(Vainer, 2000), modelo adotado por muitas cidades europeias, a exemplo de Barcelona.
Segundo esse modelo, as cidades oportunamente buscam realizar parcerias público-
privadas, envolvendo empresas estrangeiras interessadas na estabilidade social e política
de suas localidades. A experiência do Rio de Janeiro na tentativa de se fazer um grande
“espaço vitrine” (Rolnik, 1988), que conjuga uma suposta democracia racial e as
belezas naturais, em uma visão freyriana de igualdade e miscigenação (Oliveira, 2014)
utilizou-se desse modo operativo para atrair investimentos diversos.

Por ter como análise temporal um largo espaço de tempo, considero importante
verificar desde o pré até o pós-abolição as atividades do Porto e como se davam as
relações de trabalho na região. E, nessa direção, como hoje e no passado, por que as
narrativas são “reincidentes”, isto é, reatualizando a todo tempo a ideia do porto
enquanto, um lugar a ser modificado e revitalizado? Nota-se que esse processo de
transformação se dá segundo uma lógica que acaba por apartar alguns sujeitos da
cidade, em sua maioria pobres e negros. Autores como Santos (2011), conceituaram
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essas transformações como orientadas por uma lógica cujos contornos políticos apontam
para um processo de embranquecimento discursivo e material.

No primeiro capítulo da dissertação buscarei demonstrar a metodologia de


pesquisa, que se estabelece a partir do uso das crônicas de jornal escritas por Lima
Barreto e João do Rio como fonte de dados etnográficos, para verificar como a impressa
e o governogoverno construíram os discursos dessa primeira revitalização portuária.
Trata-se de um exercício de uma etnografia urbana dos costumes e vivências
experimentados pelos autores. Através dessas fontes, temos acesso a visões, por vezes
diferentes, desse fenômeno urbano de europeização e/ou americanização do Rio de
Janeiro, que se constrói e se renova a todo momento, sempre de forma incompleta e
permanente. Uma colonialidade de pensamento que nunca nos abandonou (Grosfoguel,
2013), seja no Planejamento Urbano da cidade, seja no âmbito dos órgãos
governamentais a ele associados, ou mesmo dentro da episteme analítica das
universidades ao classificar, delinear e nomear os espaços urbanos sem quaisquer
referência às desigualdades associadas à cor ou à raça daqueles(as) que aí habitam,
como se esta fosse uma não-questão.

Visto que o que estudamos são em sua maioria autores europeus e brancos e
qualquer outra visão de mundo acaba por não ser incluída nas bibliografias dos
Programas de Graduação e Pós-Graduação por não representarem a visão hegemônica
europeia (Silva, Vainer, no prelo), vejo principalmente no Planejamento Urbano, ora
combativo ora próximo dos movimentos sociais, um distanciamento bibliográfico e
experiencial, pois não há uma busca ou possibilidade de caminhos diferentes dos
imperativos epistêmicos do Norte. Numa constante reprodução, permanecemos
enquanto colônia no pensamento, repetindo e vociferando conceitos e narrativas
importadas.

Há um componente analítico duplo de trabalho e raça, como mencionei acima,


importante de ser avaliado em um primeiro momento e que é construído no início desta
dissertação quando revejo os trabalhos sobre os estivadores. Nesse ponto o trabalho e a
raça apresentam muitas significações e formas de apresentação e recorrentemente sobre
carga de trabalho independente do sistema político vigente. A passagem da colônia, ao
império e à república não implicou modificações estruturais para as populações negras,
a desumanização desses homens se perpetuou nos sistemas políticos durantes os
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séculos, fazendo com que esses se mantivessem em empregos subalternizados, em sua


maioria, até hoje.

No pós-abolição, houve uma mudança formal do trabalho escravizado para o


trabalho livre. Esse representou um deslocamento organizacional dos homens da estiva
até a sindicalização e melhores condições de trabalho, o que até então era um fator novo
para o país (Velasco, 2000). A relação de trabalho em si na zona portuária, ou melhor, a
passagem do trabalho escravizado ao trabalho livre dentro da estrutura do Porto,
modificou as relações sociais estabelecidas até então na região. Nessa etapa, trabalho e
moradia se entrecruzavam, as revoltas populares possuíam um arranjo diferenciado
nessa região em especifico, a exemplo do Bota Abaixo de Pereira Passos projeto de
melhorias urbanas organizada na região central do Rio de Janeiro. Houveram
desapropriações em larga escala para abertura de avenidas amplas e construção de
edifícios que abrigassem uma nova cidade, como o Teatro Municipal e o Museu de
Belas Artes, assim como a reforma do Porto para recebimento e envio massivo de
cargas, por navios a vapor, realizado em toda a zona central da cidade. (Belchimol,
1992).

Apesar da visão de um Porto construído pela intensa mobilidade, no que


concerne ao próprio trabalho e circulação de bens, há também um Porto estanque,
enquanto espaço, como construção. O tempo, em seu exercício de passagem constante, é
um componente analítico proposto nesta dissertação. Como o tempo foi recebido nessas
comunidades portuárias e como ele se fez presente nas mudanças estruturais da cidade.
Contudo, ao analisarmos a região portuária há um “eterno fazer-se” estabelecido pelas
pessoas que nesse local trabalhavam e moravam. Ali se estabelecem as lutas por
alteração da jornada de trabalho, uma organização da mão-de-obra através da
sindicalização dos trabalhadores da estiva e carregadores de café, as lutas por moradias
e também por práticas religiosas de matriz africana. Por isso são muitos os “lugares de
memória” presentes ali, como este conceito que Pierre Nora (1993) bem delineia, onde
estão em disputa física e narrativa os espaços existentes na região do Porto, signos da
história negra e da cultura urbana.

A habitação o trabalho e raça são pontos ligados intimamente nesta região. No


capitulo três priorizo as narrativas e análises sobre a moradia na região durante o
período escravagista até a reestruturação urbana realizada por Pereira Passos, com a
operação Bora-Abaixo. Recentemente, a disputa habitacional não inclui apenas o
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governogoverno, nas suas diferentes instancias, mas a instituição religiosa católica


franciscana Venerável Ordem Terceira (Vot) proprietária de muitos imóveis na região.
Neste ponto o Quilombo da Pedra do Sal, reconhecido como quilombo urbano em 2005,
mas ainda sem a propriedade do edifício, é a maior demonstração dessa peleja por
moradia digna na região portuária da cidade.

O capítulo quatro se prioriza a luta atual por esses “lugares de memória” (Nora,
1993) no espaço do Porto do Rio de Janeiro e os bairros que compõem seu entorno. E
analisa como a implicação dos Grandes Eventos e suas obras têm por efeito a negação e
o apagamento dos sujeitos subalternizados que, historicamente e hoje, referenciam uma
cidade de memória e matriz negra, contra o projeto governamental proposto de uma
nova estrutura urbana empresarial e “embranquecida” (Santos, 2011). Desenvolvo esse
olhar de negação do governogoverno devido à seletividade cultural que ele implementa
enquanto política pública de revitalização e tombamento histórico. Esse pode ser
observado na contraposição dos elementos novos, como o Museu de Arte do Rio e
Museu do Amanhã, nas casas coloniais do Morro da Conceição, em contraposição às
ruínas onde sediam o grupo Afrocultural Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy e as
instalações simples e mantidas de forma quase autônoma do Instituto de Pretos Novos.

Todavia, há que se observar as resistências, a exemplo do próprio Afoxé Filhos


de GandhiFilhos de Gandhy, que consegue se fazer presentes e combativas nesse
espaço, como explicito por meio de uma pesquisa histórica e através de entrevistas
apresentadas, analisadas no último capítulo. Aqui é perceptível tanto a dificuldade de
diálogo com as entidades de governogoverno em diferentes esferas, municipal, estadual
e federal, quanto a possibilidade de uma estruturação interna enquanto grupo cultural e
religioso. A luta urbana é a única possibilidade do Afoxé se fazer não só nas atividades
ligadas ao carnaval, mas durante todo o ano, são essas dinâmicas sociais de batalha com
diferentes instâncias governamentais e religiosas que dão vida ao grupo.

Ao fim, é importante destacar que a pluralidade e densidade sociológicas da


Zona Portuária, sem dúvida, suporiam mais que uma dissertação. Essa pluralidade é, em
si, um assunto inesgotável, seja para as Ciências Sociais, a História, a Economia e o
Planejamento Urbano. Há no presente trabalho uma tentativa de demonstrar uma parte
destes múltiplos portos, de pessoas e espaços que nele existem, num agir eterno,
destrutivo e construtivo.
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“A vida não é problema é batalha, é desafio. Cada obstáculo é uma lição. Eu anuncio: -é isso aí
você não pode parar, esperar o tempo em vez de abraçar. Acreditar que sempre é preciso. É o
que mantem os irmãos vivos. ”*
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[1.] Primeiro Capítulo: Uma narrativa hegemônica, muitas histórias


minoritárias.

Toda história tem uma ou mais versões de si mesma. Seja por se escrita pelos
vencedores, ou mesmo porque há visões diferentes do mundo de quem faz e quem
escreve as narrativas oficiais. Com base no Porto descrita pelo governogoverno, me
lembrei de que há sempre problemas numa história única, e que portanto, há de se olhar
a fundo as muitas histórias que compõe um ambiente, que compõem as pessoas desse
ambiente, para que não se repliquem estereótipos, para que não se desonre a história de
pessoas.

“É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma
palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso
sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um
substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro”.
Como nossos mundos econômico e político, histórias também são
definidas pelo princípio do “nkali”. Como é contadas, quem as conta,
quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do
poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de outra
pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta
palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma
pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em
segundo lugar”. Comece uma história com as flechas dos nativos
americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma
história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do
estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você
tem uma história totalmente diferente. (Adiche, 2010. Tradução
Geledés. – grifos meus)

1.1 Crônicas como instrumento de Pesquisa teórico metodológico

“Em meio a fontes primárias de sobressai uma farta produção


cronista sobre a cidade, que varia de construir um veio ainda muito
cultivado, com pretensões (às vezes bem-sucedidas) à história e à
literatura. De modo geral, os cultores desse gênero buscavam explicar
a história do Rio de Janeiro pela sua fragmentação em minuciosas e
eruditas reconstituições de elementos materiais aparentes daquela
cidade que vivia seu metabolismo destruidor do passado. ”
(Benchimol, 1992, p. 18 – grifos meus)
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Busquei neste primeiro capítulo da dissertação os documentos oficiais, as


pesquisas de historiadores sobre economia e transição da escravização negra, escrita por
planejadores urbanos, fontes de jornais da época e principalmente o que as pessoas de
hoje falam sobre o passado e o futuro do espaço da zona portuária. Uma metodologia
complexificada porque a vida é feita de todos estes encontros.

Há um múltiplo acervo historiográfico e literário da região portuária do Rio de


Janeiro, que perpassa desde os modos de habitar o espaço, o trabalho, os planos
estruturais realizados pelos diferentes governogovernos de intervenção arquitetônica a
cultura local, entre outros temas. Contudo, neste capítulo demonstro a metodologia
adotada para analisar épocas distintas de maneira histórico-etnográfica com base em
crônicas de jornais. Debrucei-me especialmente sobre as crônicas e a literatura do final
do século XIX e início do século XX, pois elas informaram a passagem dessas
transformações de diferentes modos, pois como proposto nesta pesquisa há forma (s)
distintas de percepção do trabalho, revoltas populares e uma incompleta e constante
necessidade de europeização da região central da cidade.

Aqui o campo literário se apresenta também como uma interpretação do mundo


realizada pelos autores de maneira naturalista, ou mesmo, realista da cidade, Segundo
Zola (apud Franchetti, 2012 p. 23)

“Os romances naturalistas descrevem muito, não pelo prazer de


descrever, como são censurados, mas porque entre na sua fórmula
circunstanciar e completar o personagem pelo meio. O homem não é
mais que uma abstração intelectual, assim considerava o século XVI;
é um animal pensante, que faz parte de uma grande natureza e que está
submetido às múltiplas influências do solo em que cresce e em que
vive. É porque um clima, uma região, um horizonte, um quarto, têm
frequentemente uma importância decisiva. Portanto, o romancista não
separa mais a personagem da atmosfera em que ela se move; não
descreve por uma necessidade retórica, (...) nota, simplesmente, a cada
hora, as condições materiais nas quais agem os seres e se produzem os
fatos, com o fito de ser absolutamente completo (...)” (O Cortiço,
2012. Apresentação. p 23).

Utilizo dois autores, Lima Barreto e João do Rio para compor as cenas
etnográficas das reformas urbanas e do cotidiano no início do século XX e o romance
naturalista “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. Em paralelo a esse exercício busquei,
em autores especializados em crítica literária o tema Sociedade e Cidade, e como este
pode ser combinado com a literatura, a exemplo dos trabalhos desenvolvidos pelos
críticos Flora Süssekind (1984), Paulo Franchetti (2012) e Antônio Candido (2006).
23

Devido ao crescimento da impressa escrita no início do sec. XIV, a comunicação


da cidade se estabelecia formalmente na cidade se estabelecia através dos jornais. Por
este motivo, as crônicas e romances de folhetim são apresentados por alguns autores
como “mediadores” da escrita literária e do modo de viver dentro da cidade, de e para
a sociedade. (Facina, 2004)

“Outro fator importante para essa caracterização do campo literário foi


o crescimento da imprensa jornalística e da publicação de livros na
Europa no sec. XIX. Muitos desses escritores se tornaram
profissionais, ou seja, passaram a viver do trabalho de escrever para o
mercado literário que surgia e que consumia as suas obras,
principalmente na forma de folhetins que eram publicados nos jornais
diários. ”. (Facina, 2004. p. 8)

Entender, portanto, o uso de crônicas literário-jornalísticas como parte da


metodologia analítica da pesquisa acadêmica me coloca em modos operativos,
dúbioduplamente interessantespois eles são ricos em conteúdo, exemplificações,
diferentes espacialidades e (re) criam uma imaginação social, ao mesmo tempo que me
dão a dimensão do cronista em questão.

Entender, portanto a escrita literário-jornalísticas como metodologia analítica da


pesquisa acadêmica me coloca em modos operativos dúbios, pois eles são ricos em
conteúdo, exemplificações, diferentes espacialidades e (re) criam uma imaginação
social.

No conjunto literário desses dois autores trabalhei com duas obras de crônicas,
em específico, “Lima Barreto: Cronista do Rio” de organização de Beatriz Resende
(2017) e “De olho na Rua: A cidade de João do Rio” de Julia O’Donnell (2008),
exatamente porque o contorno dado pelas autoras é a cidade. Retomo a referência do
trabalho de Adriana Facina (2004) para demonstra como o processo criativo literário
pode se encaixar e funcionar na escrita acadêmica. Em suas palavras:

“Toda criação literária é um produto histórico produzido numa


sociedade especifica, por individuo inserido nela por meio de
múltiplos pertencimentos. É preciso assim dessacralizar a criação
literária, destacando sua dimensão histórico-sociológica e rejeitando a
perspectiva idealista que se vê a literatura, ou mesmo a arte como um
todo, como uma esfera da atividade humana completamente autônoma
em relação às condições materiais de produção. Não se trata de negar
a exigência do talento individual, ou do gênio criador, mas sim de
considerá-la parte da dinâmica social (...)”. (Facina, 2004. p 10)
Portanto, o trabalho de coleta e instrumentalização das crônicas dos autores que
trazemos neste capítulo, particularmente para o âmbito da academia, se faz necessário e
24

é apresentado enquanto um exercício de Antropologia Urbana. Há neste a utilização do


método etnográfico para descrever e inscrever as questões da cidade por estes autores;
“uma manifestação de práticas de observação complexa e heterogênea”. (O’Donnell.
2008).

Como referência da potência da escrita literária, nos diferentes campos de


conhecimento como “expressões da coletividade” (Candido, 2004.), apresento as
análises literárias a demonstração para tal fato;

“Seriam, no entanto, tais estudos de temperamento tão fora de


propósito, tão afastados da sociedade brasileira? Se o fossem como se
explica, então, o seu sucesso? Por que fizeram escola? (...) Seria
possível, ainda, considerarmos gratuita tal preferência, quando
associamos à voga cientificista e ao desenvolvimento de uma
medicina do comportamento no final do século? ” (apud Francheti,
Sussekind, 1984.)

A metodologia de utilização de livros com compilações particulares de crônicas


também foi uma escolha e o romance naturalista, pois quando referenciados, seu olhar
para a cidade traz há uma riqueza e variedades de análises necessárias para a
multiplicidade que compõe o Planejamento Urbano, ainda que por vezes, esse tipo de
construção seja desprezado pela academia hegemônica vigente.

Ao demarcar conceitualmente que existem diferentes percepções sociais sobre o


objetivo de pesquisa, não desejo exatamente validar tudo, seja o que já foi escrito e o
que ainda será, ou até mesmo refutar algo em um primeiro momento. Meu objetivo foi
dimensionar que existe uma tênue linha de percepção que coloca autores e suas crônicas
em lugares diferenciados e que se pode valorizar essa dimensão pelo método da
etnografia urbana. Os autores que serão utilizados tiveram um cuidado e uma
vontade de aproximação de espaços da urbe na tentativa de descrevê-los nas suas
muitas relações sociais na forma de “mediadores” de nossa sociedade no tempo
passado e presente. (Facina, 2004, p.10). Entendimento de “mediador” como
aquele que coneca sociedade a fatos e realidades complexas que estão nela mesma
em seus diversos segmentos de classe, raça e gênero, neste caso por meio do jornal
impresso.

“Já a terceira ênfase envolve uma percepção mais complexa, na qual a


análise dos elementos sociais em obras de arte engloba o estudo das
relações sociais. Assim, a ideia de reflexo é substituída pelo conceito
de mediação. (...) A mediação pode referir-se primordialmente aos
processos de composição necessários, em um determinado meio;
como tal, indica as relações práticas entre formas socais e artísticas....
25

Em seus usos mais comuns, porém, refere-se a um modo indireto de


relação entre experiência e sua composição. (Facina, 2004, p. 23.)
O esforço metodológico da presente pesquisa será o de lançar mão destas
crônicas enquanto “método etnográfico” com objetivo de descrições sócio-espaciais da
época repletas de conteúdo e significados a serem analisados. Esse é o pano de fundo, a
ferramenta principal onde se alocam as histórias que compreendem a Região Portuária
e, em específico, as cercanias da Pequena África.

1.2 Lima Barreto e João do Rio, negros cronistas do Rio de Janeiro.

Neste subcapítulo considerei que as intepretações da cidade, as crônicas em


particular, representam a etnografia das sociabilidades no espaço urbano. A cidade é o
local onde esses autores estão inseridos, há neles maneiras distintas de enunciação e
problematização de questões desde o habitar, as diferenças de classes e, principalmente,
como estes observam e experimentam o Rio de Janeiro que os cerca em suas constantes
mudanças arquitetônicas e sociais. Na sequência deste pensamento analítico de suas
obras, trago aqui uma pequena introdução aos autores por suas estudiosas.

Começo a apresentação dos autores por João do Rio;

“João do Rio” nome criado por Paulo Barreto cujas crônicas ficaram populares
pelo público por sua escrita naturalista das atividades diversas da cidade e narrar
trabalhos, religiosidades e a sociedade em mudança de monarquia a república. Alguns
comentários sobre a belle époque carioca e suas mudanças à moda francesa. Entusiasta
das alterações urbanas que colocavam a nova capital tanto no cenário do mundo
moderno. O cronista registrava o cotidiano múltiplo da cidade e suas alterações sociais e
urbanas. “Mulato, calvo, gordo e homossexual, a personagem de João do Rio descolou-
se de sua matriz biográfica (Paulo Barreto) e garantiu espaço no inventário de seu
tempo. Com seus fraques verdes, sua presença era indisfarçável e seu público jamais era
neutro. (...) o autor fez do urbano seu mote único e inesgotável, (...). Em sua obra, em
sua biografia o urbano extrapolava a condição de adjetivo, construindo a sua própria
visão de mundo do cronista e do habitat que registrava. ”. (O’Donnell, 2008. p 14 e 15)

E Lima Barreto;
26

“Lima Barreto”, sobrenome de Afonso Henriques de Lima Barreto, funcionário


público e cronista em diversos folhetins e jornais. Acompanhou os processos de
modificação da região central do Rio de Janeiro com extrema indignação. O então,
Distrito Federal se apresentava retrogrado aos olhos da elite e do governogoverno e
presenciou suas transformações urbanas que revelavam as desigualdades latentes da
cidade. “Lima detestava o centro da recente e autoritária República, cidade que fora
capital enquanto império quando o Brasil ainda era colônia e por isso se pensou sempre
tão cosmopolita.

Cidade, desde sempre, de desigualdades, onde prazer e sofrimento pareciam partilhar


tantas vezes do mesmo espaço. Cidade sedutora e injusta. Cidade de que é tão difícil se
afastar e onde se é tão difícil viver. ” (Resende, 2017. p. 17).

Ao longo da dissertação estarão presentes as crônicas destes autores e o romance


mencionado, que serão minhas ferramentas de construção do passado de forma
histórico-etnográfica.

Há uma diferença notável entre os dois autores relacionadas a classe que


ocupavam e a cor de pele que possuíam. Lima Barreto é inegavelmente negro. João do
Rio é descrito pela autora como “mulato” (O’Donell, 2008. p .14). Ambos eram não
brancos, contudo a passabilidade de João do Rio e sua figura teatralizada, além da
polêmica que causavam suas crônicas e sua aceitação na forma de escrita o colocavam
em lugar diferente dentro da sociedade.

A biografia de Lima Barreto escrita no livro “Triste Visionário” (2017) de Lilia


Moritz Schwarcz relata uma vida de dificuldades médicas, financeiras e profissionais.
Lima escrevia em revistas inovadoras e que por vezes não caiam no gosto popular. Há
no livro uma passagem que evidencia muito sua percepção quanto a cor que possuía
ainda como aluno da Escola Politécnica, hoje Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro;

“(...) conta o italiano Bastos Tigre, outro colega de turma de Lima, ao


saber do ensaio que fazia a Companhia Lírica Italiana, a qual estrearia
na capital carioca com a ópera Aida dália a poucos dias, convidou os
amigos a pularem com ele o muro do teatro. A ideia, assistir à função
como penetras, logo se converteu em ação, e em minutos os garotos
estavam todos nas galerias do Lírico. Ou melhor, quase todos, pois na
última hora faltou coragem ao filho do administrador das Colônias de
Alienados. Foi Ciancio quem de volta ao quarto, indagou-lhe a razão
da desistência. A resposta de Lima foi límpida: alegou que não queria
ser preso como “ladrão de galinhas”. Como o colega manifestasse
incompreensão, ele completou: Sim, preto que salta muros de noite só
27

pode ser ladrão de galinhas! Ciancio ainda contestou, dizendo que isso
valia para ele também. Mas o futuro escritor encerrou a questão: Ah!
Vocês, brancos eram ‘rapazes da Politécnica’ [...] estudantada. Mas
eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro logo pela polícia. Seria o
único a ser preso”. (Schwarcz, 2017. p. 122)

Retomo o assunto sobre a questão racial, há de se ter como referência que no


Brasil marcada pela cor na pele como estigma relacionado ao racismo de forma social.
Ao pensar em raça, o que se privilegia é quem é menos negro, assim, mais próximo do
branco. Segue analise da professora de Lia S. Vainer sobre o assunto sobre a branquitute
e suas aproximações quanto ao tom de pele:


“A branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que
ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz
respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados
inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm
e são preservados na contemporaneidade. Portanto, para se entender a
branquitude é importante entender de que forma se constroem as
estruturas de poder fundamentais, concretas e subjetivas em que as
desigualdades raciais se ancoram. ”(Vainer, 2014)

Mesmo sendo a dois autores nitidamente negros, em um Brasil em transição


monárquica ao inicioinício conturbado de republicanismo o fato de estarem em classes
diferentes significou posições diferentes entre os dois.

Não há como se fazer uma comparação de suas obras, e esse nunca foi o objetivo
desta dissertação. Mas informar ao autor que existiam diferenças de cor e classe entre
eles, e que foi o branco quem as criou. O que os colocava em pontos opostas aos
projetos de reurbanização da cidade do Rio de Janeiro.

Há sobre o assunto uma entrevista de Sueli Carneiro sobre o pardo ou moreno e


que também está presente em sua tese (2005) na parte de nota ao leitor; “essa categoria
foi o branco que criou; o pardo, eu só sei que com o tempo eles estão ficando cada vez
mais negros. ”
28

Capítulo 2. O Porto do Rio de Janeiro

“Quem me pariu foi o ventre de um navio. ”


(Roberto Mendes. Yáyá Massemba)

Há uma dinâmica própria dos Portos, que incluiu não somente o porto em si,
mas toda uma zona portuária de serviços aduaneiros, transporte de cargas e de
alfândega. A entrada e saída permanente de objetos e pessoas torna o lugar sempre um
espaço de passagem, ou melhor, de circulação - mas ele não é apenas isso. Pensar nas
dinâmicas operativas dos portos é adentrar um nicho historiográfico, sociológico e
urbanístico muito particulares. No campo disciplinar da História, há estudos
especificamente voltados às mudanças durante os séculos das operações econômicas e
sociais portuárias. Algumas cidades são referências nestes estudos por abrigarem nelas
essas transformações urbanas, como Barcelona, Contudo, alguns países debatem
corriqueiramente as mudanças e as novas estruturas de portos, a exemplo da
Universidade na Espanha (Colóquio Governanza de los Puertos), Argentina (Rede de
Los Puertos - REDP), Portugal (Transformação da Cidade do Porto), Holanda e no
29

Brasil (Projeto de Pesquisa CNPq Portos e Cidades do Mundo Atlântico) e também


junto a Organismos Internacionais OMA (Organização Mundial das Alfândegas).
Um porto nunca existe sozinho, ele é sempre o indício de uma relação com
outros portos. Cabe, portanto, relacionar o Porto do Rio de Janeiro com outras
espacialidades e temporalidades dentro e fora do Brasil. O porto do Rio de Janeiro foi
um campo de trabalho que traduziu as mudanças estruturais pelas quais passou o país.
No Brasil colônia, por aí exportava-se pau-brasil, minérios e cana-de-açúcar; no período
imperial e republicano, temos o porto como palco da presença de contínuos afazeres
braçais voltados à exportação do café, até a atualidade, em que novas tecnologias de
armazenamento em contêineres de alimentos e produtos variados erguidos por gruas de
mais de 30 metros automaticamente vinte e quatro horas por dia, todos os dias.
O Porto enquanto tema envolve diretamente economia de importação e
exportação, a sociologia do espaço interno de recebimento de cargas e externo de saída
dos contêineres (caminhões e estradas), o trânsito de turistas (passagem de
transatlânticos), a urbanização da cidade para o recebimento dessa diversidade
econômica exportadora e importadora e no fluxo turístico (hotéis, restaurantes,
ambulantes, sistema de transporte...), as habitações construídas as margens do recinto
alfandegado, a periculosidade de alguns produtos que chegam e vão, o tipo de navio que
pode aportar devido ao seu calado¹1, os práticos²2 autorizados a realizar a manobra para
entrada de navios no porto, a segurança realizada pela Polícia Alfandegária(responsável
pelos produtos), a Polícia de Fronteira(responsável pelas pessoas), os Despachantes
Aduaneiros³3 especializados em diferentes tipos de produtos, os inspetores de cargas que
integram o grupos técnicos do Ministérios da Agricultura, Exército, ANVISA... Assim,
um sem número de pessoas que mantêm esse fluxo contínuo dessa Zona Portuária.
Mesmo com todas as evoluções de recebimento e envio de cargas, a atividade
portuária é central em muitos países por ser através deles que se recebem as principais
mercadorias comódites4 (4) do sistema internacional (carvão, aço, soja, suco de

1
Calado: é a distância entre a superfície da água em que a embarcação flutua e a face inferior de sua
quilha
2
Prático: Termos da Marinha para o indivíduo conhecedor dos acidentes hidrográficos e
topográficos de áreas restritas marítimas, fluviais ou lacustres, e que nelas conduz embarcações em
segurança; piloto, timoneiro, patrão.
3
Despachante Aduaneiro: profissional que representa os importadores, exportadores,
transportadores, armazéns alfandegados, perante aos diversos órgãos intervenientes
governamentais e entidades comerciais, nos procedimentos aduaneiros, fiscais, tributários,
logísticos e comerciais, visando à liberação aduaneira de carga.
4
Comódites: termo da economia que representa tudo aquilo que, se apresentando em seu estado
bruto (mineral, vegetal etc), pode ser produzido em larga escala; geralmente se destina ao comércio
exterior e seu preço deve ser baseado na relação entre oferta e procura.
30

laranja...). O navio ainda é o principal veículo presente no comércio internacional,


mesmo após a integração do sistema aéreo de transportes de carga. Por meio de navios,
basicamente, é a modalidade de transporte de produtos em grandes quantidades, mesmo
que seu tempo chegada seja superior ao do avião. O valor também é um marco
5
diferenciador entre estes dois modais(5) de transporte, é mais barato trazer produtos
através do Porto que do Aeroporto, comparativamente.
Neste trabalho tento demonstrar esse sistema operativo do Porto do Rio de
Janeiro desde o sec. XIX ao sec. XX, onde ocorrem revoluções internas ao Brasil, ainda
permanecem relações escravocrata, em comparação as dinâmicas globais de
reestruturação da zona portuária.
Busco nesta análise histórica e econômica verificar como se desenvolvem as
relações de trabalho na estiva. Ao acentuar que houve uma modernização neste lugar
que colocou o Brasil no sistema econômico internacional, ao mesmo tempo reitero o
espaço e a importância do Porto onde se estabeleceram relações de trabalho e
empregaram a mão de obra negra e sua gradual substituição.
A estiva na monarquia e no início da república era um espaço e mão de obra
super-explorada, visto que não haviam maquina, todo o trabalho era feito por homens.
Esses “corpos máquina”, como relata João do Rio tinham cor e classe e toda a luta por
melhores relações trabalhistas era realizada no campo da luta urbana, contra o
governogoverno, contra os donos de armazéns e trapiches e contra os donos de navios.
A partir da Republica a modernização tornou essas pessoas obsoletas, em grande
parte, facilmente descartadas do sistema de capital.

2.1 O trabalho portuário: de escravizados a trabalhadores livres?

Iniciei o trabalho de pesquisa tendo como enfoque o trabalho portuário no


período pré e pós-abolição, numa tentativa de delinear um retrato histórico social do
Porto e de quem frequentava e fazia funcionar o espaço de mercadorias e todo seu
entorno habitacional e cultural. Este capítulo tem, portanto, uma busca etno-
historiográfica e econômica de perceber como foi, antes e depois da Lei Áurea, as
relações de trabalho na zona portuária, e como essas relações implicam uma certa
conformação espacial da região e da distribuição das populações negras.

5
Modais: termo referente a formas de transporte de carga.
31

A estiva era um local de masculinidades negras e mulatas e por vezes também


estrangeiras (portugueses pobres). Era um trabalho braçal que não demandava nenhum
grau de instrução, realizado por pessoas escravizadas, escravizados de ganho; negros
que partilhavam seus ganhos de trabalhos na rua com seu dono, (6) e por trabalhadores
livres; negros que compraram sua própria alforria, além de outros homens, brancos sem
escolaridade e estrangeiros pobres. Portanto, há pelo menos três formas distintas de
trabalho no Porto: o servil, o trabalho de ganho e o trabalho livre de negros e brancos
antes da abolição.

Na pesquisa de mestrado de Erika Bastos Arantes (2005), encontrei uma rica


base histórica para um primeiro entendimento sobre o espaço portuário e a questão
racial. Baseio-me no denso trabalho da autora diversa vezes e aciono também algumas
de suas fontes, para apresentar as multiplicidades sócio raciais do Porto. Deve-se
assinalar um ponto muito importante: “na primeira metade do século XIX, a população
de negros chegou mesmo a se igualar numericamente aos brancos”. (Bastos, 2005. p.
27), segundo referência do Recenciamento Geral da República dos Estados Unidos do
Brasil, ano 1890. (Rio de Janeiro, Typ. Leuzinger, 1985.) Ter a mesma população de
negros e brancos na cidade a princípio mostra o quão escravocrata o Brasil foi e também
aponta para aquilo que foi entendido na época como um problema para a segurança “da
nação” (isto é, dos brancos), que poderiam se tornar numericamente minoritários. O
exemplo doa Revolução do Haiti (1791) primeira revolução negra da história,
assombrava as elites e a comparação entre a composição de suas populações era
acionada para justificar uma série de medidas de disciplinamento e controle dos grupos
negros da região

Aqui é importante desenhar um quadro histórico-econômico interno ao cais, -por


ter trabalho livre, servil e escravizado convivendo no mesmo espaço, há diferentes
relações de poder nos trabalhos destes homens. Essas três configurações de trabalho
demonstram não só uma múltipla possibilidade de formas de remuneração e tratamento
do trabalhador, a exemplo de sua potência de transporte. Haviam trabalhadores que
carregavam duas ou três sacas de café por entrada no navio, algo em torno de
cento e vinte ou cento e oitenta quilos. E quando o peso era abaixo de 30 kg não
eram remunerados (Velasco, 2000).

Há paralelamente suas formas sociais de agrupamento e estabelecimento de


coletividade, seja por vizinhança, nacionalidade, casas de santo, apadrinhamentos. Há
nos trabalhos históricos econômica a formulação de um conceito que Honorato (2016)
32

denomina de Comunidade Portuária. Nesse enquadramento de comunidade o autor


coloca delimitada pelas paroquias onde estavam estabelecidos:

“(...)no sentido sociológico do termo, que congregaria os


trabalhadores que atuam diretamente na operação portuária, os
que trabalham nas atividades de suporte, apoio ou serviços vários,
os que chegam como imigrantes para um novos pais, a marujada,
as prostitutas etc. com as identidades, idiomas, religiões, hábitos e
todos os demais traços culturais que acabam se misturando. ”
(Honorato,2016)
Abaixo um mapa indicando as divisões em freguesias na capital. Em vermelho a
zona portuária. (2016).

(Fonte: Lobo, Eulália,


História do Rio de Janeiro: do
Capital Comercial ao Capital
Industrial e
Financeiro, Rio de Janeiro,
IBMEC, 1978.)

Para abrigar essa


massa de trabalhadores e suas
famílias existiam diferentes
formas de habitação como
cortiços, hospedarias e casas
de albergue –a serem tratadas
posteriormente. Havia na
região portuária um grande número de Delegacias e Casas de Detenção, cabe registrar
que também funcionava um Quartel e uma Delegacia Especial na freguesia da Gamboa
33

(Honorato, 2016). A Delegacia funcionava como primeiro ponto de registro, após este
momento era ou não gerado um processo criminal contra o sujeito, e apenas depois
desse trâmite jurídico os condenados eram enviados as Casas de Detenção. Um dos
pontos de destaque relatado em entrevista concedida pelo Prof. Dr. Cezar Honorato
(Honorato, comunicação pessoal, 20198) é “a indiscutível perseguição a negros, no Rio
de Janeiro como um todo, o que fez aumentar o número de registros policiais nas
delegacias principalmente nessa zona/freguesias, onde era fonte de trabalho e moradia
de uma grande quantidade de negros” (Honorato, 2019). Esta região estavam os
cidadãos a serem vigiados pelo poder público. Havia um medo real do GovernoGoverno
da época e dos que o sucederam da emergência de revoltas de cunho étnicas na cidade
do Rio de Janeiro. A referência que Arantes apresenta são os presos e condenados nas
imediações da Zona Portuária, em sua maioria por “vadiagem” -nesse momento
entendido como estarem na rua sem serviços, o que era visto como crime até então-, e
como se dividiam por cor no livro de registros da Casa de Detenção do Rio de Janeiro
(1901-1910). Estas são fontes primárias que demonstrem os números de pessoas presas
nas Casas de Detenção, nas quais se regista a ocupação e a cor do preso. Observa-se que
não se trata dos dados das delegacias, onde estão registradas as ocorrências e detenções
temporárias.

Tabela 2: Proporção de escravos do RJ na Região Portuária

Porcentagem com Porcentagem com


Freguesias/Região relação à relação à
Cidade em 1849 Cidade em 1872
Santa Rita 15.6% 12.7%
Santana 16.2% 13.7%
São Cristovão - 5.7%
Região Portuária 31.8% 32.1%
(Fonte: Censos de 1849 e 1872. Apud Honorato, 2016)

Conforme informações presentes na tabela das regiões que compunham o


Porto podemos perceber que a RRegião Pportuária tem o maior número de
escravizados. Ao mesmo tempo visualizar que todas as freguesias tiveram uma
diminuição nas taxas, mas que o porto se manteve em gradativo aumento.
(Honorato, 2016) Conjuntamente, pode-se verificar o número acentuado de preto
(escravizados , escravizados de ganho ou libertos), 92,5% de pretos e 91% de
pardos, na tabela abaixo (Arantes, 2005).

Tabela A: presença de pessoas presas e julgadas


34

Brasileiros Estrangeiros

Brancos 29,4% 70,6%

Pretos 92,5% 7,5%

Pardos 91% 9%

(Fonte: Livro de Matrículas da Casa de Detenção do Rio de Janeiro – APERJ, apud Arantes, 2005)

Entre os presos há uma composição nacional variada, mesmo com a presença de


muitos europeus na região, a população preta e parda é significativamente maior,
totalizando 431 presos, 49,6% da Casa de Detenção, como Bastos (2005) demonstra na
tabela seguinte;

Tabela B: Presença de pessoas acusadas e julgadas

Brancos Pretos Pardos Outros


Total

Brasileiros 112 174 221 53 560

Portugueses 170 * 12 182

Italianos 22 * * 22

Espanhóis 52 * * 52

Africanos * 5 6 13

Outros* 26 9 4 40

Total 382 188 243 53


869

(Fonte: Livro de Matrículas da Casa de Detenção do Rio de Janeiro – APERJ, apud Arantes, 2005)

Outro ponto destacado por Honorato em comunicação pessoal (20198) é a


existência de várias Casas de Detenção. Bastos (2005) opta por uma para avaliação dos
35

registros primários, um ponto metodológico de relevância analítica, pois talvez a


dimensão de detentos no período possa ser maior, resultado de uma subnotificação dos
dados levantados pelas Casas de Detenção em comparação aos das Delegacias locais.
(Honorato, comunicação pessoal 2019)

Antes da abolição, algumas outras leis foram promulgadas com intuito de


combate ao tráfico de negros e limitar a perpetuação do sistema de escravidão.
Destacamos aqui a Lei Euzébio de Queiroz (1850), que proibia a entrada de novos
africanos escravizados e a Lei Rio Branco, popularmente nomeada Lei do Ventre Livre
(1871), descritas paradoxalmente como pontos intermediários à libertação “completa”
dos escravizados. Após intenso movimento abolicionista e um movimento gradativo de
alforrias foi estabelecida a Lei Aurea (1888).

Aqui nomeio como um paradoxo histórico-moral pois ainda havia uma atividade
continuada de tráfico e escravização, antes e depois das leis intermediárias. Isso porque
é de conhecimento a entrada de escravizados após a promulgação dessas leis
intermediárias por portos clandestinos em todo o litoral do Rio de Janeiro. (Cf. Siqueira,
2019, no prelo) Devido ao fato do tráfico interno de escravizados no país ser muito
rentável, estabeleceu-se um intenso trânsito entre Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro
destinado à lavoura no interior destes estados. Acredito que seja necessário apresentar
esse momento de forma diferenciada, pois em cartas trocadas entre Euzébio de Queiroz
e o conhecido traficante de escravizados Antônio Breves desvela-se uma coligação entre
um dos idealizadores do abolicionismo gradativo e o então -grande- traficante do Vale
do Paraíba. (Cf. Siqueira, 2019, no prelo.) Por este motivo, o paradoxo histórico-moral:,
aparentemente com contornos humanistas, o processo gradativo de extinção do
escravismo não redundou em reparações ao povo negro e ainda o submeteu à
continuidade do trabalho forçado nas lavouras localizadas no interior do pais.

Concomitantemente à abolição gradativa da escravatura com a proibição do


tráfico de escravos no Brasil (1850) iniciou-se a política de incentivo à imigração
europeia para o Brasil. A entrada de imigrantes com a missão de branqueamento do
Brasil, a proibição do tráfico negreiro e uma deliberada não inserção dos negros libertos
nas novas dinâmicas sociais pós-abolição funcionaram simultaneamente. A substituição
de sua força de trabalho negro pelo trabalho de colonos estrangeiros tem como base a
Lei de Terras (Lei 601 de 18 de setembro de 1850), onde era concedida aos colonos
europeus terras para agricultura no interior do pais. Esta política de governogoverno
36

tinha por objetivo o embranquecimento da população brasileira e a substituição dos


negros no trabalho dentro e fora das cidades.

No trabalho de Honorato (2016) há dados sobre a imigração, também presente


em volume crescente na região portuária. Com a entrada no pais, principalmente de
portugueses, foi criada uma associação de ajuda para imigrantes até se estes
conseguissem na chegada abrigo e comida, para que depois pudessem almejar postos de
trabalho. A ideia era prosperar em terras brasileiras. A Beneficência Portuguesa que
vemos hoje é o resultado da associação de portugueses para o auxílio de novos
portugueses que chegavam ao brasil sem estrutura para viver (Honorato, comunicação
pessoal. 2018).

Estrangeiros na Região Portuária

200000

150000
Estrangeiros na
Região Portuária

Região Portuária
50000

1872 1890 1906 1920


(Fonte: BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria Geral De
Estatística. Censos de 1872, 1890, 1906, 1920. Apud Honorato, 2016)

O que está em jogo aqui são propostas econômicas imperialistas, dinâmicas


capitalistas que abarcavam a venda de café, açúcar e demais gêneros primários ao
37

exterior e um novo projeto de Nação, onde os negros não fariam parte de forma
autônoma e digna deste novo Estado, mas inseridos de forma subalternizada e , de
acordo com os antropólogos, gradualmente extintos,extintos, ou mesmo
embranquecidos, em um período de cem anos, vide tabela de João Batista de Lacerda e
Roquete Pinto, médicos brasileiros e antropólogos, um dos eexpoentes da teoria do
embraquecimento no Brasil, juntamente com Roquete Pinto, abaixo. A tabela abaixo foi
apresentada no Primeiro Congresso das Raças, realizado em Londres, no ano de 1911.

(Fonte: Apud Gomes, 2013)

Após a abolição formal da escravatura, permanecem os postos de trabalho na


zona portuária. Agora com um status de “trabalhadores livres”, isto é, trabalhadores
aparentemente nas mesmas condições de competição por postos de tarefas. Seria aqui
um ponto de mudança de pensamento intensamente relacionada à alteração dos
múltiplos status do trabalho, numa uniformização plena de trabalhadores livres?
Entendo que agora todos têm os mesmos diretos e possibilidades de trabalho. Contudo,
havia um problema para além da igualdade jurídica de trabalho: o racismo de Estado,
visto na necessidade de embranquecimento do país, conforme colocado acima, e com o
incentivo à vinda de trabalhadores europeus para as lavouras e, paralelamente, a
inviabilização e limitação formal à posse de terras por negros a partir de 1850.

Em um período de cem anos, os pesquisadores ratificavam que as “raças


inferiores” -negros e indígenas- seria extinta do cenário social brasileiro. As pesquisas
sobre eugenia, afirmavam a seletividade e a diferenciação entre as raças humanas de
38

forma biológica, dividindo entre inferiores e superiores. Este tipo de ciência estava em
voga em todo o mundo no início do século XX.

Segue abaixo a tabela apresentada no Primeiro Congresso das Raças, realizado


em Londres, no ano de 1911. Os representantes brasileiros foram João Batista de
Lacerda, juntamente com Roquette Pinto, ambos médicos e antropólogos, responsáveis
pela elaboração de um quadro sobre a política de gradual e constante embranquecimento
do país:

(inserir aqui um ou dois parágrafos sobre a política de embranquecimento da


população e o racismo de Estado).

A visão do governogoverno da zona portuária herdou do período monárquico um


estigma estabelecido da região como um lugar perigoso, de pessoas pobres, vagabundos
e uma zona a ser vigiada. Tal ação é confirmada com há uma grande concentração de
Delegacias e Casas de Detenção neste espaço. A Zona Portuária a que me refiro,
corresponde às freguesias de Santana, Santa Rita, São Cristóvão e Gamboa, estas eram
as áreas onde se concentrava habitacionalmente a maioria da população pobre -negros,
brancos e imigrantes- cujo oficio estava diretamente ligado à estiva, seja nos
carregamentos diretos ou nos transportes aos armazéns que se localizam nessas
freguesias próximas ao Porto. Havia constantemente rondas policiais e tinham altas
taxas de detenções e futuros encarceramentos, seja por embriaguez (art. 396 do Código
Penal de 1890), vadiagem, (art. 59 do mesmo Código) e prostituição, como apresentado
nas tabelas abaixo.
39

Tabela C: Portuários Presos na Casa de Detenção, segmentados por cor (1901 -1910)

Cor Números Percentagem

Brancos 373 42,8%

Pretos 190 21,8%

Pardos 245 28,2%

Morenos 50 5,7%

(Fonte: Livro de Matrículas da Casa de Detenção do Rio de Janeiro – APERJ apud Arantes, 2005)

Em termos dos números apresentados de uma especifica Casa de Detenção, a


condição de negro ou pardo totaliza 55,7% do total de portuários encarcerados. Há uma
relação entre o trabalho portuário, o encarceramento e o local de moradia destes
trabalhadores (Bastos, 2005).

Não é de se espantar que a organização do trabalho inicialmente permaneceu


como nos tempos escravocratas. Destaco, aqui, a cena de contratação narrada por Bastos
(2005): punham-se à parede os homens interessados no trabalho da estiva às seis horas
da manhã para que o encarregado do navio escolhesse alguns para o trabalho de
descarregar ou carregar dos navios e levar de/para os armazéns. Alguns, porém, ficavam
de fora do serviço estabelecido neste primeiro turno e ficavam permaneciam nas ruas
dos bairros do Porto aguardando nova possibilidade de trabalho, seja no porto ou
mesmo nos armazéns da região.

(...) “A “chamada livre uma verdadeira selva, num ponto de


“engajamento” na famosa parede, os trabalhadores (sem qualquer
relação fixa pré-estabelecida), se acumulavam ordinariamente nos
horários em que a maioria dos trabalhos está à disposição e lá, após o
anúncio do serviço e de quantos homens seram necessários, disputam,
literalmente no braço, a indicação para o trabalho. (...)” (Mantuano,
2016)
40

Contudo, a forma de pensar e as formas de agir destes homens livres, negros,


brancos e estrangeiros, se alterou no pós-abolição, pois a notícia de organizações de
trabalhadores em diversas partes do mundo, a exemplo no Brasil do Porto de Santos,
também chegou ao Rio de Janeiro. As reivindicações eram por melhores condições de
trabalho. O pleito se relacionava com a forma de escolha dos homens e as práticas de
violência durante o trabalho, pois esse deveria ser rápido e muitas vezes extrapolava a
capacidade dos homens de carregarem as sacas de produtos. Destaco esse movimento
nos próximos subcapítulos, como os trabalhadores da estiva se associaram para obterem
estas melhores condições de labor no Porto.

(Foto de carregamento portuário – acervo do historiador Waldir Rueda. Foto publicada na edição especial
da Revista da Semana/Jornal do Brasil de janeiro de 1902)

2.2 Organização social do trabalho portuário: Sindicalização Carioca

A sindicalização foi o primeiro ponto de organização daquela massa de homens


trabalhadores, negros e estrangeiros, para questionar o trabalho que se realizava naquele
espaço. A tentativa, ainda embrionária, era de negociação do tempo da jornada de
trabalho, o quanto cada carregador poderia suportar de peso, o valor pago pelo
arrendador aportado e como se daria a relação entre sindicatos e empresas exportadoras.

Arantes (2005) ressalta a importância e a existência dos sindicatos na região e


como os historiadores observam a prática sindical no Rio de Janeiro. A autora cita o
41

historiador Boris Fausto na problematização das diferenças étnicas de associação no Rio


de Janeiro. A autora cita o historiador Boris Fausto na problematização a partir das
diferenças étnicas de associação no Rio de Janeiro, cuja as diferenças estavam centradas
nas na cor dos portuários. A comparação estabelecida é entre o Porto do Rio e o Porto
Santos, classificando um como um porto carioca como reformista, especialmente por ter
mais trabalhadores negros na estiva, e outro revolucionário por possuir uma maioria de
trabalhadores estrangeiros, conhecedores das questões em torno das necessidades
trabalhistas. (Arantes, 2005. p. 81)

O destaque dado aos processos de sindicalização ficam a cargo de Rio Janeiro e


São Paulo, informação que verifiquei durante o levantamento bibliográfico sobre
sindicalização no Brasil. O material é vasto sobre o tema, porém sempre, ou quase
sempre há uma necessidade comparativa entre os estados. Concluo que haveria aí uma
visão étnica que diferia o Rio de Janeiro e São Paulo pela cor dos homens que
compunham a estiva nestes estados. O também historiador Sidney Chalhoub analisa
socialmente este conjunto de trabalhadores, mesmo que ainda coloque como enfoque a
situação de classe destes trabalhadores, se referindo aqui ao Rio de Janeiro. Autor
ressalta a classe como limitador, pois não haveria no Rio de Janeiro até então a
consciência de classe necessária para uma sindicalização combativa (Arantes, 25. p. 82)

Na abordagem dos historiadores utilizados nesta dissertação há uma diferença


neste ponto específico. No Porto de Santos os trabalhadores eram em sua maioria
estrangeiros, conheciam sua situação de classe, uma visão marxista dessa camada de
operários. Já no Porto do Rio de Janeiro a classificação era de ausência de
reconhecimento da situação de classe e uma proximidade a anarquia, neste tempo
entendida como falta de ordenamento centralizado. Nesta analise marcada pelos
trabalhos de Cezar Honorato e Erika Arantes, o quadro da estiva carioca é classificado
negativamente, por isso a dificaldade de operacionalizar os trabalhadores em tornos de
pautas sobre o modo de serviço prestado aos portos e armazéns da região.

Como forma de apreensão deste tipo de serviço e como este os tornavam


homens-máquinas. As condições de trabalho no porto são narradas no conto
Trabalhadores da Estiva, uma narrativa interessante sobre este quadro político e social,
arbitrário e bruto do trabalho. O conto do João do Rio nos traz a dimensão etnográfica
mencionada na metodologia presente no primeiro capítulo desta dissertação, de como
era o cotidiano destes trabalhadores:
42

“Às 5 da manhã ouvia-se um grito de máquina rasgando o ar. Já o cais, na claridade pálida da
madrugada, regurgitava num vai-e-vem de carregadores, catraieiros, homens de bote e
vagabundos maldormidos à beira dos quiosques. Abriam-se devagar os botequins ainda com os
bicos de gás acesos; no interior os caixeiros, preguiçosos, erguiam os braços com bocejos
largos. Das ruas que vazavam na calçada rebentada do cais, afluía gente, sem cessar, gente que
surgia do nevoeiro, com as mãos nos bolsos, tremendo, gente que se metia pelas bodegas e
parava à beira do quiosque numa grande azáfama. Para o cais da alfândega, ao lado, um grupo
de ociosos olhava através das frinchas de um tapume, rindo a perder; um carregador, encostado
aos umbrais de uma porta, lia, de óculos, o jornal, e todos gritavam, falavam, riam, agitavam-se
na frialdade daquele acordar, enquanto dos botes policrômicos, homens de camisa de meia
ofereciam, aos berros, um passeiozinho pela baía. Na curva do horizonte o sol de maio punha
manchas sangrentas e a luz da manhã abria, como desabrocha um lírio, no céu pálido.
Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquela confusão, via-os vir
chegando a balançar o corpo, com a comida debaixo do braço, muito modestos. Em pouco, a
beira do cais ficou coalhada. Durante a última gréve, um delegado de polícia dissera-me:
– São criaturas ferozes! Nem a tiro.
Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impressionavam de maneira
bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos – de um
pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo, e assim,
encolhidos, com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de
angústia.
Acerquei-me do primeiro, estendi-lhe a mão:
– Posso ir com vocês, para ver?
Ele estendeu também a mão, mão degenerada pelo trabalho, com as falanges recurvas e a palma
calosa e partida.
– Por que não? Vai ver apenas o trabalho, fez com amarga voz.
E quedou-se, outra vez, fumando.
– É agora a partida?
– É.
Entre os botes, dois saveiros enormes, rebocados por uma lancha, esperavam. Metade dos
trabalhadores, aos pulos, bruscamente, saltou para os fardos. Saltei também. Acostumados,
indiferentes à travessia, eles sentaram-se calados, a fumar. Um vento frio cortava a baía. Todo
um mundo de embarcações movia-se, coalhava o mar, riscava a superfície das ondas; lanchas
oficiais em disparada, com a bandeira ao vento; botes, chatas, saveiros, rebocadores. Passamos
perto de uma chata parada e inteiramente coberta de oleados. Um homem, no alto, estirou o
braço, saudando.
– Quem é aquele?
– É o José. É chateiro-vigia. Passou todo o dia ali para guardar a mercadoria dos patrões. Os
ladrões são muitos. Então, fica um responsável por tudo, toda a noite, sem dormir, e ganha seis
mil réis. Às vezes, os ladrões atacam os vigias acordados e o homem, só, tem que se defender a
revólver.
Civilizado, tive este comentário frio:
– Deve estar com sono, o José.
– Qual! Esse é dos que dobra dias e dias. Com mulher e oito filhos precisa trabalhar. Ah! meu
senhor, há homens, por este mar afora cujos filhos de seis meses ainda os não conhecem. Saem
de madrugada de casa. O José está à espera que a alfândega tire o termo da carga, que não é
estrangeira.
43

Outras chatas perdiam-se paradas na claridade do sol. Nós passávamos entre as lanchas. Ao
longe, bandos de gaivotas riscavam o azul do céu e o Cais dos Mineiros já se perdia distante da
névoa vaga. Mas nós avistávamos um outro cais com um armazém ao fundo. À beira desse cais,
saveiros enormes esperavam mercadorias; e, em cima, formando um círculo ininterrupto,
homens de braços nus saíam a correr de dentro da casa, atiravam o saco no saveiro, davam a
volta à disparada, tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos como a
correia de uma grande máquina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos. Não os podia
contar. A cara escorrendo suor. Os pobres surgiam do armazém como flechas, como flechas
voltavam. Um clamor subia aos céus apregoando o serviço:
– Um, dois, três, vinte e sete; cinco, vinte, dez, trinta!
E a ronda continuava diabólica.
– Aquela gente não cansa?
– Qual! trabalham assim horas a fio. Cada saco daqueles tem sessenta quilos e para transportá-lo
ao saveiro pagam 60 réis. Alguns pagam menos – dão só 30 réis, mas, assim mesmo, há quem
tire dezesseis mil réis por dia.
O trabalho da estiva é complexo, variado; há a estiva da aguardente, do bacalhau, dos cereais,
do algodão; cada uma tem os seus servidores, e homens há que só servem a certas e
determinadas estivas, sendo por isso apontados.
– É muito, fiz.
– Passam dias, porém, sem ter trabalho e imagine quantas corridas são necessárias para ganhar a
quantia fabulosa. (...)
Decerto pela minha face eles compreenderam que eu os deplorava. Vagamente, o primeiro
falou; outro disse-me qualquer coisa e eu ouvi as idéias daqueles corpos que o trabalho rebenta.
A principal preocupação desses entes são as firmas dos estivadores. Eles as têm de cor, citam de
seguida, sem errar uma: Carlos Wallace, Melo e François, Bernardino Correia Albino, Empresa
Estivadora, Picasso e C., Romão Conde e C., Wilson Sons, José Viegas Vaz, Lloyd Brasileiro,
Capton Jones. Em cada uma dessas casas o terno varia de número e até de vencimentos, como
por exemplo –o Lloyd, que paga sempre menos que qualquer outra empresa.
Os homens com quem falava têm uma força de vontade incrível. Fizeram com o próprio esforço
uma classe, impuseram-na. Há doze anos não havia malandro que, pegado na Gamboa, não se
desse logo como trabalhador de estiva. Nesse tempo não havia a associação, não havia o
sentimento de classe e os pobres estrangeiros pegados na Marítima trabalhavam por três mil réis
dez horas de sol a sol. Os operários reuniram-se. Depois da revolta, começou a se fazer
sentir o elemento brasileiro e, desde então, foi uma longa e pertinaz conquista. Um homem
preso, que se diga da estiva, é, horas depois, confrontado com um sócio da União, tem que
apresentar o seu recibo de mês. Hoje, estão todos ligados, exercendo uma mútua policia para
a moralização da classe. A União dos Operários Estivadores consegue, com uns estatutos
que a defendem habilmente, o seu nobre fim. Os defeitos da raça, as disputas, as rusgas são
consideradas penas; a extinção dos tais pequenos roubos, que antigamente eram comuns,
merece um cuidado extremado da União, e todos os sócios, tendo como diretores Bento José
Machado, Antônio da Cruz, Santos Valença, Mateus do Nascimento, Jerônimo Duval, Miguel
Rosso e Ricardo Silva, esforçam-se, estudam, sacrificam-se pelo bem geral.
Que querem eles? Apenas ser considerados homens dignificados pelo esforço e a diminuição
das horas de trabalho, para descansar e para viver. Um deles, magro, de barba inculta, partindo
um pão empapado de suor que lhe gotejava da fronte, falou-me, num grito de franqueza:
– O problema social não tem razão de ser aqui? Os senhores não sabem que este país é
rico, mas que se morre de fome? É mais fácil estourar um trabalhador que um larápio? O
capital está nas mãos de grupo restrito e há gente demais absolutamente sem trabalho. Não
acredite que nos baste o discurso de alguns senhores que querem ser deputados. Vemos claro e,
desde que se começa a ver claro, o problema surge complexo e terrível. A greve, o senhor acha
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que não fizemos bem na greve? Eram nove horas de trabalho. De toda a parte do mundo os
embarcadiços diziam que trabalho da estiva era só de sete!
Fizemos mal? Pois ainda não temos o que desejamos.
A máquina, no convés, recomeçara a trabalhar.”
(Publicado em 1904, na Gazeta de Notícias. Presente no livro, A Alma Encantadora das Ruas.
1910 – grifos meus).

Nesse ponto há nos trabalhos de Maria Cecília Velasco Cruz “Tradições Negras
na Origem de um Sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores do Trapiche e
Café 1905-1930.”(2000) e “Redes Atlânticas de Trabalho no Porto do Rio de Janeiro
Oitocentista”(2017) todo um trabalho de reconstrução histórica da formação sindical do
Porto do Rio. A autora apresenta em suas pesquisas a organização dos trabalhadores
inicialmente denominada União dos Trabalhadores de Café (1904), primeira associação,
mencionada no texto acima e posteriormente rebatizada de Sociedade de Resistência
dos Trabalhadores em Trapiche e Café (1905). Esta se diferencia por ser composta por
diferentes segmentos de trabalhadores do Porto, desde os carvoeiros, traineiros aos
carregadores – grande parte da linha de trabalhado portuário.

“(...) foi fundada a 15 de abril de 1905, também na sede dos


estivadores, uma outra associação mais abrangente, congregando desta
vez os trabalhadores de tropa empregados tanto nos armazéns de café
quanto nos trapiches. Chamava-se União dos Trabalhadores em Café e
Trapiches, mas em maio, durante a discussões dos estatutos, passou a
se denominar Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em
Trapiche e Café. Além dos fatos perceptíveis em anúncios sindicais de
que esta associação não morreu, continuou reunindo-se nos meses
seguintes, elegeu sua primeira diretoria em assembleia realizada a 22
de julho, e inaugurou o seu pavilhão social em solenidade ocorrida
uma semana depois, nada se sabia sobre suas atividades até que
explode a greve de agosto de 1906. ”. (Cruz, 2000, p. 245.)

A greve mencionada no texto de João do Rio acima citado e na também na


citação de Cruz foi a tentativa de que se houvesse representatividade política junto às
empresas donas dos navios e armazéns para uma negociação do tempo da jornada de
trabalho, da remuneração e do quanto de carga cada estivador poderia carregar. A pauta
da greve tinha relação direta com a brutalidade do trabalho e a desumanização objetiva
dos corpos desses trabalhadores. O trabalho deste homem negro era visto como máquina
pelas diferentes empresas e pelo governogoverno que observava indiferente a tudo e não
regulamentava como deveria ser o trabalho dos estivadores.
45

“Segundo o Jornal do Brasil, na madrugada do dia 20, alguém avisou


a policia de que na hora de começar o serviço de carga e descarga do
café os operários fariam greve nos trapiches da Saúde. De fato, pela
manhã, o inspetor constatou que os trabalhadores não responderam a
chamada nos trapiches Saúde, Docas Nacionais, Ordem, Frias, Rio de
Janeiro, Ypiranga, Maui, Costeira, Damião, Silvino, Marítima (seção
de café) e Novo Comércio, que não puderam principiar o serviço.
Mais tarde foram trazidos em lanchas e desembarcados nas pontes dos
trapiches explorados pela Comissão das Obras do Porto (Saúde, Docas
Nacionais, Ordem e Frias) sessenta e dois homens "inteiramente
alheios ao serviço", o que permitiu iniciar o trabalho com certa
dificuldade. Essa medida não evitou, todavia, que o movimento se
generalizasse. Por volta das onze horas, as comissões formadas pelos
grevistas conseguiram a adesão de todos os carregadores de café e,
assim, ao meio dia, tanto os trapiches quanto o comercio cafeeiro
estavam completamente paralisados. ”. (Cruz, 2000. p. 245)

A paralização total, ou quase total, do Porto chegou às páginas de jornais da


época devido a coordenação do movimento grevista do sindicato Resistência. Os
exportadores atônitos com tal movimentação dos estivadores e trapicheiros buscaram
junto à polícia e posteriormente ao Ministério de Justiça que o trabalho fosse retomado a
força. Os trabalhadores permaneceram parados. Depois de alguns dias alguns
comerciantes decidiram negociar e atender às demandas da Resistência. Foi assinado
um acordo que garantiam as condições impostas pelos grevistas, contudo, tal acordo não
foi cumprido e a greve retornou no dia seguinte junto aos trapiches que descumpriam o
que fora acordado. (Cruz, 2000, p.6)

“É claro que essa situação era insustentável. A 30 de agosto, o


Ministro da Indústria e dos Transportes decidiu que os trapiches
administrados pelo governogoverno deveriam acompanhar a decisão
do trapiche alfandegado Rio de Janeiro e, portanto, começar a pagar
os 15%. Dois dias depois o Correio da Manhã noticiava que naqueles
estabelecimentos o serviço recomeçara, "tendo sido admitidas as
tropas da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e
Café, chefiadas por seus respectivos capitães". No dia 9 de setembro
foi a vez dos trapiches Freitas, Mauá e Internacional. No dia 12
capitulava o Novo Carvalho. Com isso, a polícia foi se retirando da
área, os trapiches foram um a um aceitando ou não as condições da
Resistência, a imprensa foi desinteressando-se do assunto, e a greve
sumiu por completo dos jornais." Esse desfecho era previsível, mas
não o perfil sindical que emergiu deste movimento grevista de 1906.
(Cruz, 2000, p.8)

Entre agosto e setembro de 1906 a organização sindical dos trabalhadores


conquistou grandes vitorias trabalhistas junto ao Centro de Comércio de Café, onde se
reunião desde exportadores a donos de armazéns no Porto. Ficou estabelecido que em
46

cada posto de trabalho comercial havia um “representante do trabalho” nomeado pela


Resistência para verificar as condições estabelecidas no armazém, tirar dúvidas relativas
ao acordo por partes dos comerciantes e dos trabalhadores, além de verificar se os
operários trabalhavam de forma adequada, funcionando como ponte entre a Sociedade
de Resistência, trabalhadores e comerciantes de café. Esta foi entendida como uma
vitória expressiva para os trabalhadores. (Cruz, 2000.)

“Na maioria dos portos do mundo foi grande a dificuldade de


organização dos operários envolvidos com o transporte manual de
carga no cais e nos armazéns e a literatura acadêmica internacional em
geral indica como razões deste fato a pouca qualificação e a facilidade
de substituí-lo da força de trabalho. Por que teria sido diferente no Rio
de Janeiro? Para responder a essas indagações é preciso alargar o
escopo da análise. Retrocedendo ao século XIX a fim de investigar o
mercado de trabalho portuário, os atores e as relações de produção
predominantes nos trapiches e casas de café. Afinal, quem eram os
trabalhadores de tropa e os capitães? (Cruz, 2000, p. 250)

A pergunta de Cruz (2000) sobre a diferença do Rio de Janeiro frente a outros lugares
não é fácil de ser respondida. Talvez a solidariedade entre os operários, ou mesmo um
reconhecimento de seus esforços neste trabalho tão embrutecido. O que me impressiona
no trabalho de Cruz, em específico, sobre a sindicalização é que a autora traz uma
problematização da questão racial dentro do campo do trabalho. A autora coloca que,
por não haver um registro oficial do governogoverno sobre a quantidade, a cor e a
habitação desses estivadores, houve uma lacuna na identificação desses sujeitos e quem
eles seriam, a única classificação governamental da época para todos os tipos de
trabalho ligados a porto era de “transporte marítimos e fluviais” e mesmo nos sindicatos
a informação de cor ou moradia não aparece. Há uma série de postos de trabalho que
ampliariam a visão do trabalho no setor, pois como foi colocado haviam estivadores,
trapicheiros, carvoeiros, entregadores, transportadores, são trabalhos diferentes,
contudo, todos ligados de forma direta ou indireta à zona portuária. No começo da
pesquisa só se consegui observar estes homens e suas cores através dos registros das
Casas de Detenção, a princípio, o que justifica minhas análises anteriores dentro da
perspectiva de fontes primárias de Arantes.

Contudo, com a chegada massiva de imigrantes europeus, principalmente


portugueses, as questões étnicas não tardaram a aparecer formalmente nos sindicatos.
Iniciou-se aií uma auto identificação dos portuários nas fichas de filiação aos sindicatos.
47

“A Resistencia era um verdadeiro reduto negro, indicando nitidamente


que os escravizados s e os homens livres de cor seguraram com unhas
e dentes os seus postos de trabalho, apesar de terem sofrido por muitos
anos a concorrência dos imigrantes, sobretudo dos portugueses. (...),
apenas 23,5% dos trabalhadores de tropa sócios do sindicato eram
brancos, e destes pouco mais da metade era estrangeira. “. (Cruz,
2000. p. 270)

Como demonstra a citação acima, o trabalho portuário tem relação direta com a
construção étnico-racial negra deste espaço. Durante a organização sindical os
estivadores entraram em contato com advogados para mediar e tratar nos termos dos
comerciantes as melhorias ndo trabalho. Como revela na história econômica e também
no conto de João do Rio o trabalho da estiva era um trabalho hiper-explorado. O motivo
de greve de parte dos trabalhadores, se mostra historicamente negro frente à entrada do
capital internacional no Brasil. O sindicato Sociedade Resistência não era apenas no
nome,, resistência não apenas no nome, mas no modo de agir desses trabalhadores em
torno das suas condições de trabalho e nas reformas estruturais do cais que os atingia
diretamente. Seria o Brasil ou o Porto do Rio, na dimensão de baixos recursos
mecânico-industriais no Porto, com um modelo de trabalho baseado na dinâmica
escravocrata, principal fonte de escoamento de produtos do Vale do Paraíba fluminense
e paulista, ponto de entrada massiva de importados para os “sertões de dentro”, agora
um iniciante das práticas capitalistas internacionais. Vemos nas obras centrais realizadas
por Pereira Passos que grande parte do dinheiro utilizado nas reformas urbanas foi
direcionado a alteração do porto, para torna-lo moderno e ágil. (Belchimol, Honorato,
1992, 2016)

Portanto, seria justificável a renovação deste modelo portuário, ainda com


práticas escravistas e baseado intensamentointensamente no formato da antiga colônia.
A modificação no porto consistia em operações de instalação de malha ferroviária, de
equipamentos de comunicação, saneamento básico, planificação do terreno,
equipamento de guincho. Aparatos necessários há qualquer porto para minimamente se
importar ou exportar produtos em escalas maiores.

Pontuo, que não há uma unicidade sobre a paralização geral dos trabalhadores da
estiva, bem como, sobre a extensão da centralidade do Sindicato Resistência na
dinâmica de sindicalização dos trabalhadores. Honorato afirma há falta de fontes
primárias para tal afirmação (2019). No trabalho do historiador há uma marca a greve
como um ponto importante, porém os comerciantes substituíram os grevistas pelos
48

trabalhadores portugueses das redondezas (2019). O autor também detalha que haviam
outros sindicatos e que alguns deles não aderiram à greve devido a importância da
remuneração para as famílias desses estivadores devido a situação de pobreza na região.

Nos capítulos seguintes proponho uma análise sobre outras problemáticas


conjugadas a região, como a habitação e os espaços recreativos e culturais do Porto e,
por fim, a revitalização do espaço central realizada por Pereira Passos para dinamizar o
comércio portuário.

O porto visto como espaço brutalizado e que almeja por melhorias trabalhistas
nos da a primeira escala de lutas que será trabalhada nesta dissertação. É na zona
portuária que se desenrolam um serie de dinâmicas de batalhas contra o governogoverno
e o capital internacional, de forma embrionária, e que se adensa com as políticas
sanitaristas e habitacionais. A luta é parte da zona portuária, um reduto de
particularidade étnicas mistas, mas com maioria negra, se apresenta intensamente
durante todo primeiro período republicano como zona de resistência as modificações
urbanas, pois foi essa população negra e empobrecida a mais afetada por tais
transformações estruturais e sociais.

[3.] Habitação, resistências e “espaços de memória”

“Estudos da origem, composição, organização, padrão de vida e


relações dos estivadores e carregadores do Porto do Rio de Janeiro.
Entenda-se, aqui, o Porto do Rio com seus velhos empregadores
durante a República Velha, mais especificamente no período de 1904
e 1920, dentro da perspectiva mais ampla das mudanças econômicas e
sociais da produção, da sociedade e do Estado. “Costuma-se descrever
os bairros que circundam o porto como sendo perigosos e ate mesmo
imorais, restrito ao trabalho manual e à desordem... As pessoas
‘respeitáveis’ não penetravam no sitio portuário, exceto para levar a
‘caridade’ e a ‘assistência material’ e ‘espiritual’, num esforço para
torna aqueles homens ‘civilizados’ e ‘afáveis’. (Albuquerque, 1985. p.
87)
49

Nos trabalhos pesquisados para esta dissertação não encontrei algum que um
tratandosse da questão da moradia que não se utiliza do discurso modernizador e ou
higienista da região portuária para ratificar as expulsões do estado e as reformas
forçosas em algumas regiões. Encontrei que em 1908 houve por parte da Igreja
Americana Metodista um estudo sociológico da região; “Numa das ruas foram contados
vinte e sete cortiços. Habitavam nessas casas 89 famílias, um total de 457 pessoas. (...)”
(Albuquerque, 1985. p. 88) tal estudo voltava-se a incidência de tuberculose na região,
buscando algum tipo de controle as epidemias recorrentes no Rio de Janeiro.

3.1 Adensamento populacional: trabalho, tradição e saudade

“Esse momento histórico que constitui um verdadeiro divisor de águas


no processo histórico social da estruturação do espaço urbano da
cidade do Rio de Janeiro é o das grandes obras de “melhoramento,
saneamento e embelezamento” da capital da República, empreendidas
durante a presidência de Rodrigues Alves, conjuntamente pelo
governogoverno federal e municipal, a primeira grande renovação
urbana que sofreu a cidade do Rio de Janeiro. (...) Além das fontes
oficiais as grandes obras em curso na capital nessa época foram objeto
de violentas controvérsias e sobre elas se manifestaram todos os
fóruns da sociedade civil: os grandes jornais e a imprensa operária, as
instituições que pontificaram nos campos da engenharia, da
arquitetura e da medicina, os orgãos empresariais, as instituições
manipuladas pelos altos interesses do comércio etc.” (Benchimol,
1992, p. 18)

A questão habitacional não é um problema novo para as classes populares, isso


durante o período pré e pós-abolição da escravatura. A concentração populacional nas
freguesias de Santa Rita, Santana, São Cristóvão e Gamboa é expressa no quadro
habitacional formulado por Honorato (2016). Podemos observar ao longo dos anos um
adensamento nestas regiões pelo volume de trabalho e pelo grande número de cortiços,
chácaras ocupadas, casarões divididos para dormitório e estalagens.

Sobre a demografia nas freguesias que compunham a região portuária há no


trabalho de Honorato (2006) um aumento expressivo entre os anos de 1849 a 1920. Se
destacando neste as freguesias de Santa Rita que neste tempo passam de 31.812
habitantes para 46.161 (em 1890), Santana de 38.717 habitantes para 67.533(em 1890),
Santo Cristo 10.833, em 1872 para 59.332(em 1890) e Gamboa de 42.049 habitantes
para 50.699.
50

Demografia das Freguesias da Região Portuária


Ano Santa Rita Santana São Crist. Gamboa
1849 31812 38717
1872 30865 38446 10833
1890 46161 67533 22202
1906 45929 37266 45038 42049
1920 38163 40632 59332 50699
(Apud Honorato. Fonte: BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria
Geral De Estatística. Censos de 1849, 1872, 1890, 1906, 1920.)

A intervenção de Pereira Passos é descrita por Lilia M. Schwarcz na biografia de


Lima Barreto: Triste Visionário (2017) onde a autora descreve a entrada do Brasil no
tempo de belle époque e suas transformações através do poder coercitivo do Estado.
(2017. p. 133)

“Ícone desses tempos foi também a “nova


avenida Central” -atual avenida Rio Branco-,
emblema do novo projeto urbanístico da cidade
do Rio de Janeiro, com suas fachadas art
nouveau feitas de mármore e cristal, seus
modernos lampiões elétricos, suas lojas de
produtos importados e seus transeuntes vestidos
à francesa. A contrapartida da reforma urbana
consistiu na expulsão da população pobre que
habitava os casarões da região central. Era a
ditadura do “bota-abaixo” que demolia as
residências e disseminava as favelas, cortiços e
hotéis baratos; os “zunga”, onde famílias
inteiras viviam apertadas, dormiam juntas e no
chão. (Schwarcz, 2017)

Abaixo uma cena, ferramenta utilizada como metodologia etno-histórica, do


aparecimento e disseminação de construções voltadas a moradia coletiva;

“João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado
esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, divididas ao meio paralelamente a
rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para dormitório que se arranjou
com os cacarecos de Bertoleza. (...) João Romão não saia nunca à passeio, nem ia à missa aos
domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda segui a direto para a caixa econômica
e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta
pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem
perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e economia não revelou nessa construção! Servia de
pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de hora, junto
da amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraíam o material das casas em
obra que havia por ali perto. (...)
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de
partida do grande cortiço de São Romão.
51

Hoje quatro braçadas de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro
conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da bodega; e, à proporção que o
conquistava, reproduziam-se os quartos e o número dos moradores. ”. (Azevedo, p 66, 69, 70.
1857-1913)

O ambiente favorecia, havia trabalho e muitas formas hospedagens para as


famílias. Como mencionado anteriormente, existiam leis contra a chamada “vadiagem”
e como muitos dos estivadores que não encontravam domicílios a preços modestos, ou
mesmo que queriam chegar a estiva mais cedo na tentativa de serem escolhidos para o
trabalho, tentavam dormir nas ruas da zona portuária, eram estes sistematicamente
enquadrados neste crime.

“(...) Região povoada por negros robustos e


violentos, carregadores untados pelo suor e
possuídos pelo vício. Acrescenta-se ai ainda o
quadro, todo e qualquer tipo de desacato social
e a contravenção, com prostitutas penduradas
nas janelas dos “infectos” cortiços, situados ao
longo dos becos e das ladeiras sombrias. ”
(Albuquerque, 1985. p. 88)
O medo e a insalubridade devido a quantidade de cortiços e pessoas que ali
moravam reforçavam os estereótipos colocados pela elite as freguesias da região
portuária. A quantidade de cortiços e casas para pernoite a preços baixos eram bem
populares na região central do Rio, talvez por esta razão foram os primeiros lugares de
incidência e de busca por revitalização. Segue para uma maior densidade etnográfica da
lógica do habitar um trecho de “O Sono da Miséria”, posteriormente rebatizado de
“Sono Calmo” de João do Rio:

“Os delegados de polícia são de vez em quando uns homens amáveis. Esses cavalheiros chegam
mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do trágico
horror que a miséria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade. Um delegado, outro
dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve a amabilidade de dizer:
– Quer vir comigo visitar esses círculos infernais?
Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a miséria, ou se realmente,
como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos círculos de pavor, que fossem
outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de má
fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo acompanhado os
grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.
Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças francesas há dez anos já
aparece o jornalista que conduz a gente chique aos lugares macabros; em Paris os repórteres do
Journal andam acompanhados de um apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era
quase uma lei. Aceitei.
À hora da noite quando cheguei à delegacia, a autoridade ordenara uma caça aos pivettes,
pobres garotos sem teto, e preparava-se para a excursão com dois amigos, um bacharel e um
adido de legação, tagarela e ingênuo.
52

O bacharel estava comovido. O adido assegurava que a miséria só na Europa – porque a miséria
é proporcional à civilização. Ambos de casaca davam ao reles interior do posto um aspecto
estranho. O delegado sorria, preparando com o interesse de um maítre-hôtel o cardápio das
nossas sensações.
Afinal ergueu a bengala.
– Em marcha!
Descemos todos, acompanhados de um cabo de polícia e de dois agentes secretos – um dos
quais zanaga, com o rosto grosso de calabrês. É perigoso entrar só nos covis horrendos, nos
trágicos asilos da miséria. Íamos caminhando pela Rua da Misericórdia, hesitantes ainda
diante das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros
desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece
vazar a sua imundície, por aquela rede de becos, víamos outras lanternas em forma de foice,
alumiando portas equívocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas,
hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a
sombra dos balcões. Os nossos passos ressoavam num desencontro nos lajedos quebrados. A
rua, mal iluminada, tinha candeeiros quebrados, sem a capa Auer, de modo que a brancura de
uns focos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam
ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas, arrebentadas algumas. De repente
porta abria, tragando, num som cavo, algum retardatário.
Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobriam cafajestes de bombacha branca,
gingando, e constantemente o monótono apito do guarda noturno trilava, corria como um
arrepio na artéria do susto para logo outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar
o seu áspero trilo. No alto, o céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranquilidade
parecia escorrer do infinito.
– Há muitos desses covis espalhados pela cidade? indagou advogado, abotoando o mac-
farlane.
– Em todas as zonas, meu caro.
– Em cinco noites, visitando-os depressa, informou o agente, V. Sa não dá cabo deles. É
por aqui, pela Gamboa, nas ruas centrais, nos bairros pobres. Só na Cidade Nova, que
quantidade! Isso não contando as casas particulares, em que moram vinte e mais pessoas,
e não querendo falar das hospedarias só de gatunos, os "zungas".
– "Zungas"? fez o adido de legação, curioso.
– As hospedarias baratas têm esse nome... Dorme-se até por cem réis. Saiba V. Sa que a
vídinha dava para uma história. (...)”
(A Alma Encantadora das Ruas. 1910 – grifos meus).

O habitar da zona portuária se compunha por estreitas e pequenas ruas sem


saneamento, sem água encanada e com um contingente populacional pobre e em sua
maioria negra, como observa o texto. A relação dos cortiços, sua quantidade e suas
freguesias de concentração temos a região central como exemplo para a abordagem de
uma “cidade desordenada”. (Honorato, 2016)

No livro “O Cortiço”, romance realista, de Aluísio Azevedo podemos verificar


também muitas informações antropológicas sobre a moradia, de maneira etnográfica
observar o arranjo social e a forma como se apresentavam tais residências. Na
53

composição com o discurso do ordenamento da cidade podemos vislumbrar as questões


sociais que impulsionaram a Operação Urbana de Pereira Passos, popularmente
conhecida como o “Bota Abaixo”. “O discurso da desordem constrói a possibilidade de
ajuste espacial novo.” (Oliveira. 2014, p. 91). Foi com este discurso de ordenamento
urbano que se propunha o alargamento das ruas centrais da cidade e a revitalização do
complexo portuário que deram origem às avenidas largas hoje com o nome de
Presidente Vargas e Rio Branco e a mecanização do Porto.

As universidades vêm estudando mais afundo o período de transição da


Monarquia a Primeira República e suas modificações sociais e estruturais das
metrópoles e do pais. A princípio tive muita dificuldade em encontrar material
historiográfico ou econômico que tratasse especificamente desse tema, pois não foi uma
transição política, mas também uma inserção do Brasil no mercado internacional, nos
moldes capitalistas. (Honorato,2016). Aos poucos, conversando com historiadores
econômicos consigui obter caminhos para uma análise tanto racial, como econômica
marxista sobre este Brasil em transformação.

“Nestes últimos anos, das universidades e


instituições de pesquisa brotou uma rica safra
de estudos e monografias sobre a história social
do Rio de Janeiro, tendo em comum seu caráter
multidisciplinar e sua concentração num
período determinado, aquele que se estende a
grosso modo, de 1850 a 1930, e que
corresponde à transição do escravismo para o
capitalismo no Brasil” (Benchimol, 1992, p. 13)

O projeto de Pereira Passos vai muito além do conhecido “Bota-Abaixo”,


construir sobre os escombros do passado desordenado e apagar a memória que habitava
aquele espaço urbano era um projeto de governo. Havia a necessidade de melhorias em
todo o Rio de Janeiro para se tornar uma metrópole aos moldes europeus, mas não um
consenso sobre o que deveria e como deveria ser melhorada a região. Segue um trecho
de Honorato sobre o tema;
“A grande presença de cortiços, casa de
cômodos, estalagens, hospedarias, vilas
operárias e, finalmente, as favelas. (...). Soma-
se à este aspecto as próprias características
habitacionais da região, marcadamente de
habitações precárias, sem nenhum recurso (água
encanada, esgoto, luz elétrica, calçamento
regular, etc.), feitas de madeira ou de sobras de
material de construção. (Honorato, 2016). ”
54

Ampliando a visão para a realidade imperialista que adentrava a cidade Aquino


(1995) coloca o problema em termo de classe e sua continuidade no processo capitalista,
visto o grande adensamento populacional nas freguesias ligadas a zona portuária.

“o problema da habitação liga-se à questão da


reprodução da força de trabalho, através da
questão sanitária na medida em que o bem estar
e a saúde das classes trabalhadoras,
proporcionando o prolongamento da vida e o
desenvolvimento físico, representava uma
garantia a reprodução do trabalho e,
consequentemente, de ampliação e reprodução
de capitais. (Apud Honorato 2016. Aquino
Carvalho p. 139, 1995.)

Durante a monarquia havia uma série de características que a Primeira República


não queria mais em seu quadro econômico e social. Os negros, as religiosidades de
matriz africana foram perseguidas de forma expressiva neste tempo. A racionalidade e a
ciência eram as expressões desta época no mundo. (Honorato, 2018). Contudo as
possibilidades de trabalho ainda se concentravam na zona portuária e o que fez com que
a densidade demográfica das freguesias em seu entorno aumentasse exponencialmente.
Podemos observar na tabela abaixo esse crescimento.

Densidade Populacional por domicilio nas freguesias da região portuária

Freguesias 1872 1890 1906


Santa Rita 6,98 9,70 18,21
Santana 5,06 6,52 12,18
São Cristóvão 6,39 6,70 11,04

(Apud Honorato, 2016. Fonte Ministério da Agricultura, Industria e Comercio. Diretoria


Geral de Estatísticas. Censos de 1872, 1890, 1906 e 1920)
A intervenção de Pereira Passos é descrita por Lilia M. Schwarcz na
biografia de Lima Barreto: Triste Visionário (2017) onde a autora descreve a entrada do
Brasil no tempo de belle époque e suas transformações através do poder coercitivo do
Estado. (2017. p. 133)
55

“Ícone desses tempos foi também a “nova avenida Central” -atual


avenida Rio Branco-, emblema do novo projeto urbanístico da cidade
do Rio de Janeiro, com suas fachadas art nouveau feitas de mármore e
cristal, seus modernos lampiões elétricos, suas lojas de produtos
importados e seus transeuntes vestidos à francesa. A contrapartida da
reforma urbana consistiu na expulsão da população pobre que
habitava os casarões da região central. Era a ditadura do “bota-abaixo”
que demolia as residências e disseminava as favelas, cortiços e hotéis
baratos; os “zunga”, onde famílias inteiras viviam apertadas, dormiam
juntas e no chão. (Schwarcz, 2017)

Contudo, houve uma intensa contestação nessa região a operação de alteração


urbana pensada pelo GovernoGoverno. Associações de moradores, jornais, políticos,
artistas, muitos se colocavam contra a obra a ser realizada. Neste ponto cabe referenciar
que Lima Barreto era radicalmente contra a europeização da cidade, enquanto, João do
Rio se mostrava a favor das transformações urbanas na cidade.

Cito abaixo um trecho do romance “O Cortiço” de Aloisio de Azevedo (1890) ,


ferramenta utilizada como metodologia etno-histórica, do aparecimento e disseminação
de construções voltadas para a moradia coletiva, conhecido como “cortiços”;

“João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado
esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, divididas ao meio paralelamente a
rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para dormitório que se arranjou
com os cacarecos de Bertoleza. (...) João Romão não saia nunca à passeio, nem ia à missa aos
domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda segui a direto para a caixa econômica
e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta
pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem
perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e economia não revelou nessa construção! Servia de
pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de hora, junto
da amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraíam o material das casas em
obra que havia por ali perto. (...)
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de
partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje quatro braçadas de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro
conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da bodega; e, à proporção que o
conquistava, reproduziam-se os quartos e o número dos moradores. ”. (Azevedo, p 66, 69, 70.
1857-1913) Neste ponto cabe referenciar que Lima Barreto era radicalmente contra a
europeização da cidade, enquanto João do Rio se mostrava a favor das transformações
urbanas e sociais simbólicas da cidade. Segue abaixo a análise de O’Donell (2008) e de
João do Rio sobre as transformações sociais e estéticas;
“Assim, a cidade aparecia como um deleite à
visão, fazendo dessa cognitividade ótica a
rainha do mundo público, isso não se dava sem
prejuízos. Numa dialética tipicamente moderna,
o crescimento urbano levava à publicização das
vidas e, ao mesmo tempo, fazia com que o
56

indivíduo se voltasse para si. Individualidade e


exposição publica são, desta maneira, duas
faces de uma mesma moeda, numa dinâmica
que tinha na imitação e no controle social as
forças motrizes desse processo limite de
estabelecimento de padrões de civilidade.
(O’Donell, 2008 p. 149)

“Um jovem gentleman, como se chama agora.


A começar pelos pés: borzeguins em que o
couro aparece apenas na biqueira e no contra-
forte dos saltos; calça dobrada e larga no joelho
para cima; casaco cintado logo abaixo do peito
(o que lhe faz um pequeno ventre artificial de
canguru) com botões grandes nas portinholas de
todos os bolsos; camisa leve de riscas; gravata
petit-noeud no colarinho baixo e mole; um
chapéu-de-palha debaixo do braço; cara raspada
e passada em creme com pó pelo progresso
americano; cabeleira negra lustrosa, toda para
cima. O gentleman espera. Como sacode o
braço, verificamos também a pulseira. (apud,
O’Donell; João do Rio, p.130)

O ambiente favorecia, havia trabalho e muitas formas hospedagens para as


famílias. Como mencionado anteriormente, existiam leis contra a chamada “vadiagem”
e como muitos dos estivadores não encontravam domicílios a preços modestos, ou
desejavam chegar à estiva mais cedo na tentativa de serem escolhidos para o trabalho,
acabavam por dormir nas ruas da zona portuária, o que os levava a serem
sistematicamente enquadrados neste crime.

“(...) Região povoada por negros robustos e violentos, carregadores


untados pelo suor e possuídos pelo vício. Acrescenta-se ai ainda o
quadro, todo e qualquer tipo de desacato social e a contravenção, com
prostitutas penduradas nas janelas dos “infectos” cortiços, situados ao
longo dos becos e das ladeiras sombrias. ” (Albuquerque, 1985. p. 88)

O medo e a insalubridade devido a quantidade de cortiços e pessoas que ali


moravam reforçavam os estereótipos colocados pela elite as freguesias da região
portuária. A quantidade de cortiços e casas para pernoite a preços baixos eram bem
populares na região central do Rio, talvez por esta razão foram os primeiros lugares de
incidência e de busca por revitalização. Segue para uma maior densidade etnográfica da
lógica do habitar um trecho de “O Sono da Miséria”, posteriormente rebatizado de
“Sono Calmo” de João do Rio:
57

“Os delegados de polícia são de vez em quando uns homens amáveis. Esses cavalheiros chegam
mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do trágico
horror que a miséria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade. Um delegado, outro
dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve a amabilidade de dizer:
– Quer vir comigo visitar esses círculos infernais?
Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a miséria, ou se realmente,
como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos círculos de pavor, que fossem
outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de má
fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo acompanhado os
grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.
Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças francesas há dez anos já
aparece o jornalista que conduz a gente chique aos lugares macabros; em Paris os repórteres do
Journal andam acompanhados de um apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era
quase uma lei. Aceitei.
À hora da noite quando cheguei à delegacia, a autoridade ordenara uma caça aos pivettes,
pobres garotos sem teto, e preparava-se para a excursão com dois amigos, um bacharel e um
adido de legação, tagarela e ingênuo.
O bacharel estava comovido. O adido assegurava que a miséria só na Europa – porque a miséria
é proporcional à civilização. Ambos de casaca davam ao reles interior do posto um aspecto
estranho. O delegado sorria, preparando com o interesse de um maítre-hôtel o cardápio das
nossas sensações.
Afinal ergueu a bengala.
– Em marcha!
Descemos todos, acompanhados de um cabo de polícia e de dois agentes secretos – um dos
quais zanaga, com o rosto grosso de calabrês. É perigoso entrar só nos covis horrendos, nos
trágicos asilos da miséria. Íamos caminhando pela Rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante
das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros
desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece
vazar a sua imundície, por aquela rede de becos, víamos outras lanternas em forma de foice,
alumiando portas equívocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas,
hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a
sombra dos balcões. Os nossos passos ressoavam num desencontro nos lajedos quebrados. A
rua, mal iluminada, tinha candeeiros quebrados, sem a capa Auer, de modo que a brancura de
uns focos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam
ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas, arrebentadas algumas. De repente
porta abria, tragando, num som cavo, algum retardatário.
Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobriam cafajestes de bombacha branca,
gingando, e constantemente o monótono apito do guarda noturno trilava, corria como um
arrepio na artéria do susto para logo outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar
o seu áspero trilo. No alto, o céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranquilidade
parecia escorrer do infinito.
– Há muitos desses covis espalhados pela cidade? indagou advogado, abotoando o mac-
farlane.
– Em todas as zonas, meu caro.
– Em cinco noites, visitando-os depressa, informou o agente, V. Sa não dá cabo deles. É
por aqui, pela Gamboa, nas ruas centrais, nos bairros pobres. Só na Cidade Nova, que
quantidade! Isso não contando as casas particulares, em que moram vinte e mais pessoas,
e não querendo falar das hospedarias só de gatunos, os "zungas".
58

– "Zungas"? fez o adido de legação, curioso.


– As hospedarias baratas têm esse nome... Dorme-se até por cem réis. Saiba V. Sa que a
vídinha dava para uma história. (...)”
(João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. 1910 – grifos meus).

As obras provocaram um outro tipo de adensamento populacional, agora ligado


às favelas, e transformaram a vida laboral dos trabalhadores da região. Em
contraposição temos uma elite intimamente ligada aos modos de sociabilidade
europeizantes propostos pelo governogoverno. Porto Rocha em seu livro “A era das
demolições” (1995) conforme pesquisa analisa que houve triunfo em interesses ligados
as demolições e nas construções, ‘pontua a “especulação imobiliária” da época. (Apud
Honorato, 2016).

Na visão de Lima Barreto sobre a cidade, havia sempre uma crítica sobre os
moldes das transformações e o que deveria ser alterado na cidade. Segue uma crônica de
1915 sobre o Rio de Janeiro, após obras de Pereira Passos, sobre as enchentes da cidade
e sua contínua falta de estrutura, mesmo depois de parte das obras concluídas:

“As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro, inundações
desastrosas. Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das
comunicações entre vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais
lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis.
De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais
acidentes urbanos.
Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão
simples problema.
O Rio de Janeiro, da Avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar à mercê de
chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.
Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha! (...)
O Prefeito Pereira Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou
completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.
Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes
precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundações.
Infelizmente, porem, nos preocupamos muito com aspectos externos, com fachadas e não com
o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.”
(Barreto. As enchentes; Correio da Noite. 19/01/1915. – em Lima Barreto: cronista da cidade)

A vontade de embranquecer o país era apresentada de diferentes maneiras pelo


Estado, seja na sua política de trabalho, habitação e alterações urbanas durante todo o
59

século XIX e XX, baseadas aqui no racismo biológico e social. (Oliveira, 2014, ;
Santos, 2011). Associando dois discursos diferentes - o aquele de embranqucimento e
aquele de degradação das áreas de concentração habitacional da população da cidade
conseguimos verificar quem é o sujeito, sua cor e classe, excluído incluído de forma
subalternizada àa cidade.

Para reafirmar a positividade dos bairros portuários, nos termos do Planejamento


Urbano, tal projeto de governogoverno não alcançou todos seus interesses, conforme a
geografa geógrafa Nina Maria Rabha “consideramos considerados como área
deteriorada, desvalorizados e esquecidos, os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo
preservam, por sua paisagem construída, o passado da cidade. Um passado que implica
em resgatar a memória. (...)” (Rabha, p. 35, 1985).

A habitação, assim como a sua ligação direta a remuneração desses


trabalhadores, não está desassociada da paisagem urbana que eles ocupam.

“E quando a observação empírica não bastava para consolidar aquela


imagem as explicações eram buscadas nas teorias que trabalham a
organização interna das cidades – especialmente a Ecologia Humana,
extremamente brilhante para descrever e avaliar negativamente a zona
que rodeia o núcleo histórico, origem da cidade – no modelo
concêntrico de Burgess ou nas teorias que trabalham as determinações
econômicas para consolidação da forma urbana, excessivamente
eficazes para justificar as razoes da localização dos pobres no contexto
urbano.” (Rabha, p. 36, 1985)

A resistência, nos termos de Rabha, se relaciona com a manifestação da


aparência desses bairros, rotulados pelo governo como degradados, mas que “é na força
da permanência [estética] destes bairros, nas suas manifestações de aparência e
conteúdo, que aqui são caracterizadas como cristalização e resistência, categorias que
servem para evidenciar um possível contrapoder do espaço[frente ao capital], ditado
pelo tempo no embate social dinâmico que o empurra inexoravelmente para mudanças.
É com base na manutenção estética dessas moradias, fachadas com santos protetores,
conjuntos de pequenas vilas, pequenos armazéns, as cadeiras na calçada no final do dia,
que se está a resistência às mudanças operadas pelo Estado. “A forma e a aparência
neste conjunto de bairros estão entrelaçadas com a forma-conteúdo, uma mistura de
“tradição e saudade”. (Rabha, p. 36, 1985). Apesar das alterações contínuas ditadas por
um capital que busca progresso e evoluções os bairros portuários se mantem com o
mesmo público e com a mesma estética de anos atrás, não sendo representado pelo
atraso, mas pela tradição de seus espaços de moradia.
60

A resistência, nos termos de Rabha, se relaciona com a manifestação da


aparência desses bairros, rotulados pelo governo como degradados, mas que “é na força
da permanência destes bairros, nas suas manifestações de aparência e conteúdo, que
aqui são caracterizadas como cristalização e resistência, categorias que servem para
evidenciar um possível contrapoder do espaço, ditado pelo tempo no embate social
dinâmico que o empurra inexoravelmente para mudanças. ” É com base na manutenção
estética dessas moradias, fachadas com santos protetores, conjuntos de pequenas vilas,
pequenos armazéns, as cadeiras na calçada no final do dia, que se está a resistência às
mudanças operadas pelo Estado. “A forma e a aparência neste conjunto de bairros estão
entrelaçadas com a forma-conteúdo, uma mistura de “tradição e saudade”. (Rabha, p.
36, 1985).

3.2 Ocupação Pedra do Sal: luta por moradia

“Onde houver ofensa, que eu leve o perdão


“Onde houver discórdia, que eu leve a união”
(Oração de São Francisco)

Talvez, dentro das muitas possibilidades de se entender a resistência


habitacional, a leitura da luta por moradia na região portuária hoje se expressa por meio
do pleito por reconhecimento da Ocupação Quilombo Pedra do Sal, localizado a rua
Argemiro Bulcão, zona central da cidade do Rio de Janeiro. Janeiro e a Igreja Católica
localizado a rua Argemiro Bulcão, zona central da cidade do Rio de Janeiro e a Igreja
Católica.

“A distância física e simbólica que fazia com que os patrimônios afro-


brasileiros e franciscanos não se chocassem foi então desfeita,
produzindo a superposição da área de irradiação dos centros
simbólicos da Pedra do Sal e da Igreja de São Francisco da Prainha.
Ambos centros eram localizados na base do morro, delimitada pela
rua Sacadura Cabral, e separados pelo largo de São Francisco da
Prainha, (...)” (GuimaraesGuimarães, p. 120, 2014)
O conflito habitacional envolve atualmente (2019) os remanescentes
quilombolas, certificados em 2005, pela Fundação Cultural Palmares, e a Venerável
Ordem Terceira (Vot), ordem religiosa católica franciscana proprietária de diversas
casas e terrenos na região.

“Ao longo de dois anos, matérias, artigos e cartas movimentaram


noções de autenticidade que tanto legitimavam quanto questionavam a
validade cultural do pleito étnico e as motivações sociais da Vot,
61

justapondo aspectos jurídicos, políticos, indenitários identitários e


religiosos para definir o que seria cada um dos envolvidos: afro-
brasileiro e o franciscano. ” (GuimaraesGuimarães, p. 124, 2014)

O conflito ainda se perpetua, foram vinculadas muitas matérias jornalísticas


sobre este pleito desde o reconhecimento dos moradores como remanescentes de
escravizados da região em 2005, sejam a favor dos quilombolas ou dos franciscanos.
Selecionei três delas para demonstrar o que ocorre na região: .

1) História da Pedra do Sal (Diário do Rio)


“Berço da cultura africana no Rio de Janeiro, a pedra do sal completará no dia 20 de
novembro de 2015, trinta e um anos de reconhecimento oficial enquanto patrimônio
cultural do Estado do Rio de Janeiro. Seu tombamento foi uma ação pioneira no Brasil e
significou uma conquista para povo negro que ainda luta pelo reconhecimento histórico
dos seus territórios sagrados e pela preservação dos mesmos. ”
Em tempos de inaceitáveis manifestações racistas e de negação dos valores culturais
brasileiros, a Pedra do Sal é um símbolo de resistência, que segue firme e forte na luta por
um país mais justo e consciente.”
(Fonte: Lucena, Felipe. 2015 https://diariodorio.com/historia-da-pedra-do-sal/)

2) Notícias RJ - Pedra do Sal desmente acusações de fechamento de escolas na


região (KOINOMIA)
“Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal (ARQPEDRA) Rio de
Janeiro, 20/07/2007.
A Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal (ARQPEDRA) vem
prestar esclarecimentos acerca das acusações de que os quilombolas estão pleiteando a retirada
de escolas da região portuária que ocupam. Leia a carta a seguir.
-----------------------------------
Em Defesa da Escola, seja ela da Ordem, Pública ou Privada na Região Portuária. Nunca Fomos
Contra a Escola e Nunca Lutamos pelo seu Fim...
Queremos é Mais Escola. Não somos burros!
O Quilombo da Pedra do Sal é uma reivindicação histórica de revitalização de uma memória
negra (afrodescendente) /religiosa de matriz africana /portuária que sempre houve na região que
habitamos. Estudos históricos e antropológicos sérios discutem isso que citamos.
Não houve um só momento na articulação para iniciar a perspectiva de um quilombo na nossa
região que se cogitasse acabar ou tirar a escola da Ordem Terceira ou qualquer outra, fosse
pública ou privada. Escola para pobres como nós é artigo social essencial.
O Quilombo Pedra do Sal está encravado ao lado da Escola privada Creche Escola Paraíso
Infantil, e por nenhum momento essa escola próxima a principal área quilombola foi
questionada ou especulada a sair ou que fosse expulsa; nem seus moradores.
A Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitencia – VOT na figura de seu gestor Frei
Eckart está usando de artifício ardil contra os articuladores da proposta quilombola da Pedra do
Sal... [eles usam o argumento] que Usa que os quilombolas querem acabar com a sua escola e
62

assim cria-se um clima de comoção e medo da comunidade que tem seus filhos matriculados
nos colégios da VOT responsabilizando os quilombolas de tudo de ruim que nelas possa
acontecer.
Nós que articulamos essa proposta de representação de nossa identidade sabemos que o seu
entendimento para muitos de nossa gente é um pouco difícil de forma imediata; há uma base de
sustentação legal dessa proposta na Antropologia, na Ciência Política, na História e numa
aprofundada leitura do Direito Étnico hoje no Brasil na ação das Procuradorias Federais do
INCRA, Fundação Cultural Palmares e do Ministério Público Federal que está muito recente e
que vem pela Constituição Federal de 1988.
O senso comum, para muitos que não acompanham as discussões nos fóruns políticos e
acadêmicos, acredita que é absurdo pensar a Pedra do Sal por quilombo. Mas é um erro. Se não
fosse isso por que estaríamos incomodando tanto?
Nossa proposta incomoda os detentores do poder econômico imobiliário na região porque é
legitima. Tem fundamento legal e respaldo público e jurídico; senão não teria força alguma os
boatos que laçaram contra nós, articuladores do Quilombo Pedra do Sal.
É pura mentira o que disseram sobre a nossa causa quilombola. Nós não apostamos no fim e
nunca propomos o fim das escolas seja da Ordem Terceira, seja a privada (Paraíso Infantil) e
nem a pública Escola Municipal Vicente Licínio Cardoso. É vergonhosa mentira e desespero da
direção da VOT que como estratégia busca por a Comunidade escolar contra nós. Isso é leviano
e legitima o abuso do poder econômico e de coação dessa instituição religiosa que mantém dois
colégios na região.
O circo armado na reunião do último dia 10 de julho é desespero do Frei Eckart e sua equipe
que não consegue junto ao Ministério Público Federal e ao INCRA informar o que lhe é pedido
sobre muitos imóveis da região que pertencem à Ordem: na Sacadura Cabral, na Prainha, na
Pedra do Sal etc... Esse é nosso compromisso com muitos dos moradores que foram
injustamente despejados por ação da VOT.
Estamos informando publicamente que qualquer ato de violência a nossa integridade física e
psicológica e as nossas famílias, devido à onda de boatos lançados na última reunião do dia 10
de julho pelo Frei Eckart e sua equipe, entende desde já por ônus de responsabilidade desses que
alimentaram junto à comunidade uma revolta a contra nós quilombolas nos acusando de
querermos fechar as escolas da VOT em reunião publica sem nosso direito de defesa.
A toda Comunidade Portuária nossos alunos, pais e responsáveis dos alunos em momento
algum foi dito, elaborado ou construída qualquer ação para por fim a qualquer escola no
quilombo ou fora dele. Mente os que usam isso para por a comunidade contra nós que fazemos
parte dela. Temos histórias nela, (não somos pilantras como disse frei Eckart e nem ladrões
como o disse o televisivo historiador Milton Teixeira) e muitos de nós sempre foi visto com
muito respeito pela seriedade de nossos trabalhos e ações. Não somos levianos, nem
oportunistas. Somos esclarecidos.
Viva! E Viva Por muitos anos a Escola da Ordem Terceira da Penitência!
Viva a Escola Pública de qualidade que queremos!... É Para isso que temos que lutar! (também)
– Escola é obrigação do Estado
E porque não um dia uma escola pública Portuária e quilombola!... Uma Universidade... Sonhar
não custa nada. Isso é memória e História!”
(Fonte> KOINOMIA, 2007. http://www.koinonia.org.br/oq/noticias-detalhes.asp?cod=7322)
63

3) Moradores de antigas comunidades quilombolas ainda lutam por sua


preservação (O Globo)
RIO - Os primeiros africanos trazidos para serem escravos desembarcaram no Rio no início do
século XVII, e até hoje há locais onde seus descendentes mantêm as tradições culturais,
religiosas e de subsistência daquela época. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, a
primeira instituição pública voltada para promoção e preservação da arte e da cultura afro-
brasileira criada pelo governogoverno federal, há mais de 1.500 comunidades quilombolas no
país hoje, sendo apenas quatro na cidade do Rio de Janeiro. Dessas, duas estão no Parque
Estadual da Pedra Branca e foram reconhecidas apenas no ano passado pelo órgão, com
publicação no Diário Oficial da União: a Camorim— Maciço da Pedra Branca, no Camorim, e a
Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande. As outras estão na Pedra do Sal e na Sacopã.
— A cidade que está completando 450 anos em 2015 nasceu indígena, se batizou portuguesa,
mas foi consolidada pelo braço do africano. Este foi o povo que sustentou a coroa portuguesa
quando ela veio para cá. A preservação e discussão sobre os remanescentes de quilombos fazem
parte da tomada de consciência da importância da presença africana na cidade, da raiz e direitos
dessa cultura — diz Milton Guran, historiador e membro do Comitê Científico Internacional do
Projeto Rota do Escravo, da Unesco.
No Camorim, a Capela São Gonçalo do Amarante, construída em 1625 pelos escravos e onde
havia um cemitério em que foram encontradas ossadas de africanos, é apenas um dos indícios
que confirmam a presença dos cativos. Em um terreno próximo à igreja ficava o Engenho do
Camorim, com sua casa-grande e sua senzala. Segundo dados do IBGE de 2000, no local há
cerca de 872 famílias descendentes de quilombolas.
— Meu avô e meu pai foram capitães do mato e me contavam que muitos escravos fugidos
moravam na Pedra do Quilombo. Eles andavam a cavalo e com a pistola na cintura — conta
Moacir Francisco de Azevedo, de 94 anos.
Caminhos que foram feitos pelos escravos fugidos no Camorim ainda podem ser percorridos
hoje no Parque Estadual da Pedra Branca, mas não há placas informativas
A casa-grande e a senzala também foram descaracterizadas. No terreno, hoje, funciona uma
pousada. Em outra parte da área quilombola, onde há uma gruta em que os fugitivos chegaram a
se instalar, está sendo construído o complexo que abrigará jornalistas durante os Jogos de 2016.
— Dei entrada no Incra em 2004 para o reconhecimento dessas terras como quilombo, para que
elas pudessem ser tombada. O processo está rolando desde então, mas, em 2013, uma
construtora comprou a área e começou a trabalhar nela. Mais de mil árvores nativas e
centenárias foram arrancadas. Buscamos os órgãos públicos para tentar conter as construções,
mas não conseguimos — diz Adilson Batista de Almeida, presidente da Associação Cultural do
Camorim (Acuca).

O historiador Guran lamenta as intervenções:


— As comunidades quilombolas guardam uma parte importante da memória da nossa cultura.
Uma intervenção dessa natureza em uma área reconhecida pela Fundação Palmares é uma
atitude agressiva. É como colocar um elefante em uma loja de louça. Lamento que não tenha
sido precidida precedida por um laudo antropológico de impacto sobre aquele meio ambiente.

(...) SONHO DE CRIAR CENTRO CULTURAL


O presidente da Associação Cultural do Camorim afirma que a comunidade do quilombo
Camorim-Maciço Pedra Branca não tem informações a respeito de quaisquer medidas que
sirvam de contrapartida à construção da Vila da Mídia no terreno. Seu sonho é que a construtora
responsável, a Living, criasse em parte da área um centro cultural.
64

— Atualmente, a sede da associação é no terreno da minha casa. A comunidade é muito carente


de atividades sociais e de lazer e merece esse centro. As atividades que promovemos acontecem
ao lado da capela, onde não há espaço suficiente. Na feijoada de Zumbi dos Palmares, que
promovemos em novembro, ele fica lotado, com mais de 300 pessoas — conta Adilson Batista
de Almeida, que tem outros projetos. — Estamos capacitando jovens para receber os turistas nas
Olimpíadas e contar a nossa história, mas não temos onde receber os visitantes. Não podemos
impedir as construções; só queremos que o poder público olhe para a gente.
(Fonte: O Globo, 2015. https://oglobo.globo.com/rio/bairros/moradores-de-antigas-
comunidades-quilombolas-ainda-lutam-por-sua-preservacao-16028345)

A igreja católica franciscana, Venerável Ordem Terceira de São Francisco da


Penitência, reconhece os terrenos doados por moradores já falecidos à igreja como seus,
em paralelo, sempre houveram ex-descendentes de escravizados na região habitando
regularmente a região, pagando as contas de aluguel luz e água, por exemplo.,

Esta história começa muito antes, desde do aterro portuário realizado em 19832-
1835, que se estendeu do Largo da Prainha até onde hoje se observa as docas e o cais de
aporto de navios. Na época do aterro a posse de terras na região foi prometido
prometida pelo gGoverno, em troca de trabalho, a posse terras na região. E os
trabalhadores ficaram ali.

O conflito entre a igreja e os remanescentes quilombolas da região perpassa


instânacias governamentais. Em 2005, a Fundação Palmares reconheceu a comunidade
e passou a demanda de posse do prédio para aoo Incra, que ainda estuda o caso.

O que está em jogo ali é o reconhecimento do quilombo urbano da Pedra do Sal


(PROARQ) e um entendimento que perpassa a legitimidade da comunidade e os
processos não resolvidos sobre a reparação histórica ao povo negro pós abolição na
sociedade brasileira. São estes enclaves territoriais que potencializam políticas de
reconhecimento e respeito daàs experiências s potencias vividas do passado no presente.

3.3 Espaços de memória: breve discussão sobre espaço e tempo


65

Espaços físicos contêm neles muito mais do que aquilo que vemos com nossos
olhos. Como colocado por Rabha (1985) no subcapitulo anterior, há um tempo que
perpassa os espaços físicos, na verdade, muitos tempos se passaram naquele espaço.
Trata-se e trata da continuidade viva como a continuidade da perspectiva estética do
tempo, nomeados pela autora como tradição e saudade (1985). Há, assim, diversas
materialidades no espaço e, ao mesmo tempo, diversas espacialidades materiais, que são
definidas e condicionadas pelas relações sociais. Nas palavras de Santos (2006), “é
preciso atentar para uma espaciologia social e de poder”, que seriam as relações
estabelecidas na região, seja de posição financeira, postos de trabalho, status social,
entre outros.

Espaços físicos contêm neles muito mais do que vemos com nossos olhos. Como
colocado por Rabha (ano) no subcapitulo anterior há um tempo que perpassa os espaços
físicos, na verdade, muitos tempos se passaram naquele espaço. Há, assim, diversas
materialidades no espaço, e ao mesmo tempo diversas espacialidades materiais, que são
definidas e condicionadas nas relações sociais; conforme Santos (2006) uma
espaciologia social e de poder.

Ao acionarmos os dois elementos - lugar e memória - complexificamos


inserirmos a uma temporalidade e a um local, visto que a organização social do espaço
está entre e nesses dois pontos. Poderíamos aqui avançar na noção espaço-temporal tão
cara para a Geografia e a História, discutir a literatura inesgotável sobre o tema e
encontrar caminhos possíveis empírica e filosoficamente. Como afirma Santos (2006,
página): Contudo, não me considero completamente integrada para tratar das filosóficas
“espaço-temporais” acionadas deste de Kant e Heidegger e seus contemporâneos que
compõe os debates obre a noção de espaço e tempo nestas disciplinas.

“A compatibilização entre noções de que o espaço e tempo são


absolutas e relativas é uma racionalização em grande medida possível
graças a operações escalares- operações de identificação de escalas e
fenômenos e, evidentemente, de identificação das relações entre
escalas e fenômenos. A escala aparece, portanto, como um
instrumento crucial na elaboração e estruturação, tanto de raciocínios
centrados no espaço quanto raciocínios centrados no tempo: um
conceito basilar para todas as disciplinas, em particular para aquelas
que se ocupam de espaço e tempo como objetos e instrumentos
nucleares. ” (Santos, 2006. p. 110) (Santos, 2006)

O que considero relevante no debate é que há no Rio de Janeiro, especificamente


na zona portuária, existem múltiplas temporalidades e um espaço delimitado. Nele
houveram e existem escalas e dimensões que tornam possíveis algumas memórias e
66

outras não. “As escalas espaço-temporais – resultantes da compatibilização entre escala


geográfica (ou espacial) e escala histórica (ou temporal) – são formas de ordenamento
das experiências vivenciadas diferentemente pelos indivíduos, grupos, sujeitos e agentes
sociais”. (Santos, 2006, página). ” Tais experiências vivenciadas são o foco
demonstração política da existência, passada e presente da Pequena África.

Os processos de patrimonilização tem como base este debate espaço-tempo e


colocam em análise, em específico caso da Pequena África, a ancestralidade, a vivência
no presente e o pleito por representação étnico racial. A presença de um mercado de
escravos na região do Cais do Valongo (2017) e a Pedra do Sal (1986) assim como sua
patrimonialização são fenômenos recentes na história dos negros na cidade do Rio de
Janeiro. Em paralelo a esse reconhecimento do GovernoGoverno de memória
escravocrata, temos o Cemitério de Pretos Novos, “cemitério que teria funcionado entre
aproximadamente as décadas de 1770 e 1830, no período de importação forçada de
africanos escravizados atingiu o auge no Brasil. Estima-se que mais de 30.000/40.000
corpos tenham sido enterrados ali, em valas comuns. ” (Vassalo, 2016 – grifos meus)
ainda em trâmites governamentais ligados ao processo de escavação do Consórcio Porto
Maravilha para construção da linha três do VLT outros cemitérios, como o cemitério de
Santa Rita, estão sendo revelados. Em matéria divulgada em 24 de janeiro de 2019 na
plataforma Intercept, escrita por Caetano Manenti se coloca em discussão o tratamento
dado pelo Consórcio, pelo IPHAN e da Prefeitura com relação ao Cemitérios de Pretos
Novos da Igreja de Santa Rita, retirei partes da matéria para atualizar o debate entre a
ancestralidade e as ossadas, como objeto cientifico, hoje;

“Quando chovia forte no centro do Rio de Janeiro dos séculos 18 e 19


era comum que corpos mortos e apodrecidos de pessoas escravizadas
boiassem na enchente. Quando não era o corpo inteiro, muitas vezes
os passantes cruzavam com pernas e braços dilacerados, vagando
pelas esquinas. Insetos, bactérias, cães, gatos e urubus aproveitavam-
se. A repugnância diante dos corpos destroçados ficou bem registrada
em centenas de documentos da Câmara de Vereadores e nos relatos de
viajantes.(...) É sobre um desses cemitérios, o que funcionou em frente
à Igreja de Santa Rita, que a terceira linha do Veículo Leve Sobre
Trilhos, o VLT carioca, acaba de ser construída. Em vez de dar
visibilidade a sua história, a prefeitura preferiu esconder o cemitério
dos cariocas. (...) A frequente morte de quem descia sem saúde dos
navios negreiros virou problema público importante no Rio por volta
de 1710. A falta de dignidade dos enterros estava angustiando o clero
do Rio. Foram os religiosos que exigiram que o rei Dom João V
enviasse dinheiro para construir um cemitério especialmente dedicado
a esses africanos. A primeira ideia é que ele fosse construído aos pés
do Morro do Castelo, onde hoje está a Biblioteca Nacional, na região
da Cinelândia. Mas o local decidido foi outro, muito mais próximo ao
67

ponto de desembarque: em frente à Igreja de Santa Rita, na Freguesia


de Santa Rita, na atual rua Marechal Floriano, também no centro do
Rio. ” (Apud Manenti; Trecho retirado da introdução autor do livro “Á
flor da Terra” de Murilo de Carvalho e Julio Cesar Medeiros.)
Ainda em “empasse analítico” o VLT teve de tomar medidas após pleito público
das entidades voltadas a arqueologia e o movimento negro carioca, a matéria coloca;

“O VLT foi obrigado a contratar uma empresa de arqueologia para


realizar escavações. Foi formada então uma comissão, chamada de
Pequena África, nome de uma área do centro do Rio, para acompanhar
a execução das obras e, principalmente, para exigir que houvesse
respeito à memória do povo negro do Rio de Janeiro. O primeiro
pedido do movimento foi de que as obras da linha 3 fossem
paralisadas, especialmente no trecho da igreja. O VLT atendeu, e
começaram ali longos meses de debates sobre como o presente
respeita o passado. Ou como o passado grita para ser ouvido pelo
presente. (...) Muitos historiadores e arqueólogos, claro, queriam
escavações, principalmente para proteger os ossos que sempre estão
em risco em grandes obras de infraestrutura como essa. Era a chance
que se tinha de, finalmente, conhecer o passado do cemitério, como
defende Nara: “Se não temos muita documentação, é a arqueologia
que deve suprir essa deficiência. Muita gente tem medo de que os
remanescentes sejam tratados como fósseis. Artefatos arqueológicos
serão aquilo que nós dissermos que eles são. Se nós dissermos que é
um fóssil, ele será tratado cientificamente como tal. Se dissermos que
é uma ossada, isso terá uma perspectiva forense. Se nós dissermos que
são remanescentes humanos, isso implica que existe uma
solidariedade, existe uma preocupação e uma afeição por aquilo.”
(Manenti, 2019).
ainda em tramites governamentais ligados ao processo de escavação do
Consórcio Porto Maravilha e o IPHAN e sua classificação dupla, entre a ancestralidade
do povo negro e objetos da ciência.

Vassalo (2016) coloca a discussão sobre o tratamento desses artefatos e ou


corpos de negros escravizados e como classificáa-los em seu artigo “Entre ciência e
ancestralidade: o Cemitério dos Pretos Novos na encruzilhada das interpretações”
(2016). Há a compreensão de que a escravidão em si foi um crime contra a humanidade,
contudo, ainda se há o questionamento se a ciência, em prol do progresso da razão, o
pleito de objetificação de corpos, pois esta ela em uma encruzilhada, aqui a ciência ou a
ancestralidade. A bem da verdade, a encruzilhada mais que um lugar que pode levar a
dois caminhos, é também um lugar de escolha entre dois caminhos. Há embasamento
para a ciência, afinal sítios arqueológicos no meio da cidade. Na análise governamental
eles causam transtornos urbanos e por isso, seria “melhor” conservá-los em Museus.
Outro ponto é a brutalidade do tratamento da ancestralidade ainda hoje realizado pelo
poder público, pois não reconhecida não a sério comoenquanto locus epistêmico de
68

ligação dos negros do passado e do presente, e suanem tampouco enquanto sacralidade


enquantoque ligaria os povos negros de hoje a seus antepassados. nos dias de hoje.

Em palestra organizada pelo Museu Nacional em 26 de julho de 2018, a autora


apresenta a continuidade de sua pesquisa, ainda em elaboração, mas já com contornos
bem delimitados aos artefatos encontrados além das ossadas, em especial. Também foi
apontado o imaginário social da Pequena África transferido da Praça Onze para a Pedra
do Sal, baseado no resgate histórico da obra de Roberto Moura sobre Tia Ciata, como
local de cultura e religiosidade negras.

Nesta questão me coloco utilizando Primo Levi (ano) sobre os horrores do


extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial. Nunca imaginei uma ossada de um
homem judeu morto exibido em um Museu. Qualquer um que seja. A ciência, que se
propõe alguns antropólogos, de uma razão dilatada ultrapassa os limites de
racionalidade, burlando o luto e a luta de negros ancestrais de pessoas escravizadas. Não
se permite limites para esta especíifica ciência, que tratará do passado negro. Ela, neste
caso, necessita urgentemente, como de um medicamento valioso, uma dose forte de
austeridade radical.

Há pouco tempo se pensava em colocar as ossadas encontradas no caminho do


VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), como colocado na matéria de jornal acima, melhoria
incorporada na cidade durante modificações urbanas para os Mega Eventos, fosse parte
dana coleção do Museu Nacional. Durante a apresentação de tal proposta lembro de ter
olhado para os lados. Não havia nenhum representante da comunidade civil, apenas
estudantes e professores. Eram duas pessoas negras na sala. Naquele momento, entre o
inimaginável e a raiva, observei as pessoas, todas sentadas em e imbuídas de ciência no
olhar. Não houve qualquer colocação por nenhuma das pessoas. Nenhuma empatia ou
mesmo alteridade enquanto antropólogos que ali estavam.

A ossada é a representação do morto, homem suprimido de sua terra, trazido


forçosamente ao Brasil. N e não resistindo a à travessia encontrasse encontrava-se
morto e era colocado em cova rasa, as às vezes cortado em parte e, em sua maioria,
queimado. Até aquele momento, talvez parte de umaessa coleção infindável de ossos
foram foi tratados tratada única e exclusivamente como objetos. (Ali me vi objeto.)
Ninguém se colocou no lugar daqueles ossos, que um dia foram pessoas. Se
criamCriam-se e recriam ficções na academia – “o circuito dos sítios arqueológicos do
Cais do Valongo e da Igreja de Santa Rita” - para se entender o abominável.
69

As narrativas em torno da escravização têm como materialidade a Pedra do Sal e


o Cais do Valongo, que compõem um complexo amplo de venda de homens pessoas
negros negras na cidade do Rio de Janeiro. De alguma forma, esses pontos onde se
passavam a dor do trabalho e da venda de pessoas, também guardavam em
potencialidadeselementos culturais do povo negro.

Em termos espaciais, como coloquei anteriormente, há um complexo


escravagista que se inclui o Cemitério dos Pretos Novos e Cemitério de Santa Rita,
armazéns médicos e de engorda no bairro da Saúde e outros espalhados no centro da
cidade. Um circuito de venda de escravos bem definido e delimitado.

No material de divulgação do cemitério de pretos, lê-se as seguintes frases se


encontra na maioria dos folders;: “Faltou respeito na vida, faltou respeito na morte,
faltou respeito na história. ”. Aqui não ressalto apenas a cronologia deste tempo de
supressões de um passado doloroso, mas como a intensidade do fenômeno nos desperta
outros olhares para o mesmo fato. Tão depreciado, no presente e no passado e em plena
reverberação na atualidade. É o tempo de ontem se apresentando e cobrando no hoje um
melhor tratamento das questões envolvendo a historiahistória negra da cidade.

Volto a falar aqui sobre o tempo, mas de uma outra forma. Um tempo em
suspensão em que não há respeito ou legitimidade à ancestralidade das ossadas do
negros escravizados encontrados. No candomblé, o Tempo, também é orixá, cultuado
nas nações jejê-nagô, que traduzido do inquicequibundo significa “vento violento”
(Lopes, 2004). Ao soprar os minutos e as horas, atinge com a violência da passagem dos
anos a todos.
70

Capítulo 4. Pequena África – Espacialidades e significados em disputa


71

“Tambor está velho de gritar


Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero


Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra


Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens


eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Oh velho Deus dos homens


deixa-me ser tambor
só tambor!
(Craveirinha, José. Eu quero ser tambor em Karingana Ua Karingana (Era uma vez). Lourenço
Marques: Académica, - 1974.) [grifos meus]

4.1 Escalas espaciais e culturais: A Pequena África, expressões urbanas da


colonialidade acadêmica

A escala nome estabelecidoa de Pequena África não correspondia em termos


numéricos à população negra na cidade do Rio de Janeiro, conforme observado desde
do Brasil Colônia até o final da Primeira República, como já demonstrado (Honorato,
2016) e ainda nos dias de hoje. .

Os termos “Grande” e “Pequeno” aqui correspondem a um vocabulário de


grandeza ou escalas de tamanho, contudo, o mais importante e o que deve ser ressaltado
neste ponto é o fato de haver uma África no Brasil. De se ter um entendimento que
72

havia um continente majoritariamente negro no Rio de Janeiro. Este fato sem dúvida
ressalta o quantitativo de negros na cidade, e vai além, quando verificasse
especificamente a região portuária.

Seja antes ou mesmo após a abolição, a população carioca mostra-se, em sua


maioria, mais negra do mais que branca, como já fora foi mencionado aqui através do
recenciamento monárquico e pode ser observado na tabela seguinte:

População Negra no Rio de Janeiro 1849-1972

(Apud Honorato 2016. Fonte: Censos de 1849 e 1872)

População Negra no Rio de Janeiro 1849-1872

(Apud Honorato 2016. Fonte: Censos de 1849 e 1872)

Hoje, as denominações fenotípicas para o negro se estabelecem nadenomina-se


“população negra” a soma da população preta e da população parda, em segundo a
terminologia e metodologia de auto-declaração adotadas pelo IBGE. O que nos
problematiza a Apesar de chamada Pequena África, é que seu tamanho, em termos
quantitativos e qualitativos, em relação ao Brasil nunca foi pequeno no que diz respeito
àa concentração espacial étnico racial destes habitantes nesta região e por incluir os
bairros da Gamboa, Santo Cristo, Saúde, além do Morro do Pinto e Morro da
Providência. A partir deste ponto tentarei buscar como esta enunciação se fazia e se faz
73

presente até hoje através do olhar dos meus interlocutores que vivem de forma múltipla
aquele espaço e de acadêmicos estudiosos dessa região.

O território da Pequena África a que se refere o Governo concentrava-se nos


bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa. Contudo, os arredores também há outros
territórios que compõem esta região como o Caju, Morro do Pinto e Morro da
Providência.

Incluo neste trabalho as divisões espaciais que formam a cidade do Rio de


Janeiro, marcada pela desigualdade, por exemplo, quando verificamos a renda de
brancos na cidade que recebem acima de dez salários mínimos há um quantitativo de
260.854 pessoas, enquanto somando pardos e negros a quantidade é de 38.345 pessoas,
na mesma faixa de renda. (IBGE, 2010). Há abaixo uma série de mapas (colocar a
fonte) que demonstram a divisão étnico racial da cidade do Rio de Janeiro, relação de
pretos pardo e brancos, com base no Censo de 2010. Eu cortaria essa parte, porque os
mapas não estão suficientemente nítidos e não me parece necessário para o teu
argumento.
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O território da Pequena África a que se refere o Governo concentrava-se nos


bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa. Contudo, os arredores também há outros
territórios que compõem esta região como o Caju, Morro do Pinto e Morro da
Providência. Podemos analisar em elementos numéricos produzidos pelo IBGE,
conforme o mapa acima, uma comparação entre população racialmente dividida de
acordo com seus bairros atualmente.

Há um adensamento forte de negros autodeclarados na região portuária, vide o mapa


que delimita a região estudada abaixo:

A denominação Pequena África foi dada por moradores da região, pelo fluxo intenso de
negros, moradores e trabalhadores do cais. (SANTOS, 2017). Uma das referências
presente nas análises sobre a região também está em entrevistas de Heitor dos Prazeres,
sambista um dos fundadores da G.R.E.S. Portela, conhecido também por seu trabalho
como artista plástico e pelas pinturas relacionadas à cultura negra na região, presentes
no livro Tia Ciata e a Pequena África (1994).
79

A denominação Pequena África, contudo, não é estabelecida pela academia, mas


apelidada foi dada por moradores da região, pelo fluxo intenso de negros, moradores e
trabalhadores do cais. (SANTOS, 2017). Uma das referências presente nas análises
sobre a região também está em entrevistas de Heitor dos Prazeres, sambista um dos
fundadores da G.R.E.S. Portela, -famoso tambémconhecido também por suas seu
trabalho como artista plástico e pelas pinturas relacionadas à cultura negra na região,
presentes no livro Tia Ciata e a Pequena África (1994).

(Pintura Roda de Samba , 1958. Fonte: enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10428/heitor-dos-prazeres)

A Pequena África, portanto, não tem relação com tamanho em si, já que a
Grande África é o Continente Africano. “Uma Grande África, mãe de todos”, como me
diz disse meu primeiro interlocutor em campo, Thiago Laurindo, professor da Rede
Pública e ex-vice presidentevice-presidente do Bloco Afoxé Filhos de GandhiFilhos de
Gandhy. Conheci o Thiago através de amigos da Vila da Penha, local onde ele morou
até pouco tempo. Foi desta forma que adentrei o campo Thiago Felipe Laurindo era uma
liderança jovem na Igreja católica, muito presente no bairro e na vida dos jovens. Entre
seus amigos estudei Ciências Sociais com Fabiana Pereira, que foi quem nos
apresentou.

Foi desta forma que conheci o campo. Já adultos esses amigos permanecem se
encontrando, mas não estão mais ligados à Igreja Católica. Em conversa com Thiago
pudemos conversar sobre a Pequena África, e o fato de haver uma África ali na região
central do Rio de Janeiro. Uma África do passadopassado, porém que traz reverberações
para o presente,, resguardada no ocorrido repertório mítico de seus descendentes,
sonhada, e imaginada e recriada nas terras brasileiras. E, simultaneamente, uma África
física, palpável e real nas nossas peles negras, nas nossas religiosidades e no racismo
que nos captura diariamente. Uma África para a da qual poderíamos retornar e buscar
nossas raízes ancestrais distintas que foram perdidas na escravização. Sobre o processo
de africanização me utilizo do trabalho de Silva (2016) para tratar dos fluxos
relacionados a consciência negra que movimentaram a Bahia e o Rio de Janeiro em
torno deste tema.

“A ideia de movimento negro, ou melhor de movimentos negros


presente neste trabalho(...) é a de pessoas -–sujeitos - que se
organizam a partir do desejo de mover-se, de sair de uma
determinada situação em busca de outra, enfim, de
desterritorializar-se por uma linha de fuga sobre tudo, mas não
exclusivamente étnica. Sendo assim, ao falar de movimentos negros
não se está falando de algo estático, mas de alguma coisa que se
80

constitui pela e na movimentação – ou para usar a palavra cara


movimentos políticos de modo geral, na mobilização no seu sentido
pleno: fazer mover-se em função de um objetivo. Trata-se de
subjetividades que vão sendo afetadas por outras subjetividades,
que geram outros fluxos, que é palavra-movimento. Fluxos que
passam, que afetam que passam, que geram novas subjetividades,
que geram outros fluxos, que passam que afetam e assim por
diante.
A partir do argumento acima, pode-se dizer que o surgimento dos
novos movimentos negros em Salvador, se deu no encontro de
fluxos produzidos pelos mais diferentes movimentos, fossem em
Salvador no Brasil, fossem no Mundo. Eram fluxos gerados pelos
movimentos produzidos pelo candomblé, pelo samba, pelos antigos
afoxés e pelos blocos de índio ou plelas organizações de jovens
buscando formas alternativas de lazer na periferia. (...) Fluxos que
atravessavam o Atlântico, cuja origem está nas lutas por
independência dos países africanos, e que favoreceram um reforço
na divulgação do Pan-Africanismo naquele momento; ou que
passaram pelos movimentos dos direitos civis e de “poder negro”
(black power) que ocorriam nos Estados Unidos, na produção e
divulgação internacional do reggae jamaicano e seus ídolos, como
Bob Marley e, Jimmy Cliff, Peter Tosh, dentre outros. ” (Silva,
2016.)
A Pequena África do Rio de Janeiro, portanto, era uma grande comunidade de
negros que cercava a região portuária que teve seu auge no final do século XIX e início
do XX. O cenário de casebres, cortiços e estalagens compunha a região de trabalho,
religiosidade de matriz africana, com muitas casas de candomblé (Capone, no prelo) e
rede de laser cultura dessa população, como as rodas de capoeira, jongo, afoxés,
charangas, blocos carnavalescos, tambor de mina e frevo.

A Pequena África do Rio de Janiero Janeiro era uma grande comunidade de


negros que cercava a região portuária que teve seu auge no final do século XIX e início
do XX. O cenário de casebres, cortiços e estalagens compunham a região de trabalho,
religiosidade de matriz africana e cultura dessa população, rodas de capoeira, jongo,
afoxés, charangas/blocos carnavalescos, tambor de mina e frevo.

Como foi e será observado nesta dissertação e nos outros trabalhos aqui
mencionados, o território da Pequena África não era bem visto pela população carioca
de classes média e alta desde o Brasil Colônia e média. Nesta localidade habitavam
pessoas com comportamentos “fora do padrão idealizado” pelo Governogoverno e pela
elite da cidade, poisque viviam coletivamente, cultivavam modos de se relacionar com a
81

religiosidade de matriz africana e, em sua grande maioria, eram pessoas negras e pobres.
Aqui questiono a idealização brasileira recorrente baseada sempre numa noção
europeizante (ou, mais recentemente mesmo, americanizadação), seja no modo de se
vestir, o que ler e estudar e onde/como habitar. A partir desta chave, conseguimos
entender como o viver coletivo negro e a pobreza deste espaço não poderiam fazer parte
da cidade, seja na gestão do prefeito Pereira Passos - aos modos parisienses - ou mesmo
na gestão de Eduardo Paes, com sua “cidade empresa”. Uma visão estática de
transformação contínua, em um processo de colonização constante, seja dos habitantes
até a própria estética, do território em diversos tempos, com o nome de intervenção
urbana.

Interessante ver como se deu a apropriação do nome “Pequena África”


informado pela academia no sentido escalar e cultural, no sentido de grandeza, seja em
termos numéricos ou mesmo nos mais variados mapas do IBGE que ressaltam apenas
quantitativamente a região, e “cultural” nas representações de um habitat aos mesmo
tempo que incorpora aspectos de Santa Tereza, como o Morro da Conceição e o
meretrício das ruas que compõe a zona portuária,, além, do tradicionalismo
gastronômico do “Angu do Gomes” e musical do samba aos pés da Pedra do Sal.
Contudo, essas características mas que pouco informam diz o quantitativo populacional
da região oua mesmo da importância dos costumes de matriz africana desta região,
como as antigas casas de candomblé retiradas do morro, os espaços de diversão
comunitária como as feiras gastronômicas da Rua do Jogo da Bola ou mesmo a Festa de
Iemanjá promovida pelo Filhos de Gandhy.

Escalar e Cultural que informo tem relação de correspondência com autoraO


trabalho da pesquisadora Roberta Guimarães (2014), teve por objetivo verificar as
transformações na zona portuária do Rio de Janeiro no momento das modificações
estruturais e sociais para recebimento dos Mega Eventos na cidade. Há em seu livro
uma analise etnográfica sobre o Morro da Conceição e seus interlocutores, descendentes
de espanhóis e portugueses da região do alta do morro. Estes mantêm tradições antigas
como o Bloco da Conceição e a festividade a Nossa Senhora da Conceição com
procissão por todas as ruas e uma festa próxima a igreja.

RobertaGuimarães observa a interação destes moradores com o bairro e com os


moradores da parte baixa, composto de nordestinos e remanescentes quilombolas. Seu
foco principal foram os conflitos nesta área e como os projetos urbanísticos dos Mega
Eventos eram vistos por seus interlocutores. Há um conflito central entre moradores da
82

parte alta juntamente com a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência
(VOT) com o os remanescentes de dos negros que habitam um antigo prédio federal
situado no pé do morro e habitantes das propriedades, em sua maioria casas antigas, da
VOT.

Também foi parte do estudo da pesquisadora o movimento afrocultural da região


junto aos Afoxé Filhos de Gandhy. Esta participou de algumas reuniões e fez parte por
um tempo da casa de axé de Mãe Marlene de Oxum, uma das mulheres que integra o
bloco.

que A autora estabelece aponta nos moradores do Morro da Conceição e como


dotados de um modo de vida com traços europeus (espanhóis e portugueses) em
específico), e denomina como “Utopia”, num sentido cuja carga semântica está próxima
ao de “ilusão”, a ideia de que ali seria o território de uma da “Pequena África”.

Durante as primeiras entradas a no campo durantes nos ensaios de 2018 do


Afoxé Filhos de Gandhy no Espaço Gafieira Elite, conversei bastante com os
percursionistas. Fazia o esforço deCostumava chegar cedo, antes dos ensaios mesmo de
começarem, para poder conversar e conhecer meus interlocutores de maneira mais
próxima. Foi através deles que cheguei ao livro “A Utopia da Pequena África”:, um dos
rapazes, Alexandre Bravo, me chamou de canto e perguntou sobre a minha pesquisa,
expliquei superficialmente o que gostaria de realizar com eles e dos temas que cruzam o
Filhos de Ganghyi ao Porto do Rio de Janeiro: “Por favor, antes de começar a pesquisar
sobre o GandhiGandhy, leia o livro. Acho que ele vai te guiar em seu trabalho de
pesquisa, te fazer entender algumas coisas. Eu não gostei do livro, assim como muitos
aqui. Não imaginávamos que esse seria o resultado. Lê e fala comigo. ”

Objetivamente, eles me falaram: “Víamos Entendemos o livro como algo


negativo para a Pequena África, para o Quilombo e para os Filhos de GandhiFilhos de
Gandhy. Imaturidade na pesquisa. Ela foi bem recebida por nós, poderia ter conversado
conosco. E além disso, a vivência dela com a Mãe Marlene, lá na Ilha, foi a maior
viagem do mundo... E ela optou por um caminho que ficou superficial. Nos
superficializou. Nos colocou como preto tocador de atabaque, sem conteúdo, sem nada.
Piorou no final, nas falas dela de que não tem racismo no Brasil... foram coisas
desnecessárias. Muito desnecessárias.”desnecessárias. ”

Vieram outros ensaios outras possibilidades de conversar com percursionistas,


brincantes e membros da diretoria do Afoxé. Os mais jovens sempre se mostram mais
83

interessados em saber porque eu ia a todo ensaio, estava em toda festa ou evento que o
GandhiGandhy participava. No final de 2018, forma foram aproximadamente 54
apresentações, incluindo os ensaios, pois além de desfilar no centro da cidade no
domingo de carnaval junto com os demais Blocos Afro, em Copacabana com as Filhas
de Gandhy, em eventos culturais diversos junto com os demais Blocos Afro, todos
também iriam desfilar excepcionalmente em unuma das alas da Mocidade Independente
de Padre Miguel, cujo tema do carnaval era a Índia. Um dos trechos da música afirma;
“Desemboca o Ganges cá no Rio de Janeiro. Os filhos de GandhiFilhos de Gandhy hoje
são brasileiros!”(Compositores: Altay Veloso, Paulo César Feital, Zé Glória, J.
Giovanni, Denilson do Rozário, Carlinhos da Chácara, Léo Peres e Alex Saraiça). Segue
abaixo a arte da agremiação. Que conquistou Campeonato de Escolas de Samba do
grupo A, Mocidade Independente de Padre Miguel.

O enredo da G.R.E.S. Mocidade Independente de Padre Miguel apresentou na


avenida a Índia, seus valores religiosos e culturais no desfile na Marquês de Sapucaí.
Neste uma das alas era composta por membros do Filhos de Gandhy aqui do Rio de
Janeiro, símbolo no Brasil da influência de não-violência indiana.

Retomando os ensaios do Filhos de Gandhy de 2018, continuei Iinteressada na


recomendação que recebi logo na entrada ao campo e movida pela curiosidade, comecei
a ler o livro “ A Utopia da Pequena África”.na semana seguinte. Eu queria entender o
84

que e porquê eles não haviam gostado no livro, o que havia naquela pesquisa que os
deixou-os contrariados.

A princípio a leitura do texto é fluida, as descrições etnográficas nos colocam


dentro daquele espaço físico múltiplo da zona portuária. Contudo, oO trabalho foi
realizado no Morro da Conceição e apresenta com um esforço de separação de dois
mundos de habitantes e hábitos na zona portuária, transitando, por vezes, entre
momentos homogêneos e heterogêneos nas interações sociais dessa população do
asfalto e do morro. Neste livro o “morro”, o Morro da Conceição, é a potência cultural e
artística, - uma nova Santa Teresa, segundo a autora e seus interlocutores (?)-, em
detrimento do sopé do morro e do entorno, “o asfalto”, negativado pelo comércio
sexual, bares sujos e o tráfico de drogassujeitos perigosos, pelo grande quantitativo de
migrantes nordestinos e dos pela presença de moradores negros e pardos em casas
“irregulares”, entre eles os que reivindicam a titulação de Quilombo Urbano e turistas e
pessoas de fora do morro que iam as festas na Pedra do Sal..

Esses habitantes do asfalto, durante minha pesquisa de campo não quiseram


conversar sobre a situação de suas casas devido aos recorrentes conflitos envolvendo a
posse e o aluguel de casas nesta região. A Venerável Ordem Terceira de São Francisco
da Penitência é proprietária de alguns bens na região, como colocado anteriormente, e
realizou uma série de expulsões de antigos inquilinos por inadimplência ou mesmo
paracom o argumento de que naquelas casasaí realizaria oficinas de formação para
crianças e adolescentes carentes da região, uma “ação social”, como denomina afirma a
entidade.

Contudo, há remanescentes negros desta região que habitam exatamente a base


do Morro da Conceição e reivindicam a posse deste local pelo viés identitário, como
enquanto remasnescentes de pessoas escravizadas, conforme já exposto no subtema
habitação (vide capitulo 3, p. 39)(vide página xx) desta dissertação. O espaço
reivindicado como quilombo urbano é um antigo prédio federal, bem próximo ao local
da Pedra do Sal, muito conhecido por seu samba ao ar livre as segundas-feiras e o Baile
Black em eventuais sextas-feiras.

Voltando ao livro, O livro “A Utopia Pequena África” escrito por Roberta


Guimarães Sampaio (2014) ele retoma o Plano do Porto do Rio - Plano de Recuperação
e Revitalização da Região Portuária - com a retórica e a crítica dos espaços “vazios”,
“degradados” e “abandonados” para os planos portuários relacionados aos Mega
85

Eventos ocorridos entre 2007 a 2014. Em paralelo, esses são os mesmos adjetivos
historicamente verbalizados pelo governogoverno durante a Reforma Urbana de Pereira
Passos, presente no livro Pereira Passos: Haussmann brasileiro (1992), trato como um
dado, já que o ex-prefeito Eduardo Paes se autodenominou “o Nnovo Pereira Passos”. .

A autora perpassa a região Portuária, mas constitui residência no Morro da


Conceição, parte alta. Em alguns momentos esta sinalizao voltar que há à uma
dicotomia do morro e do asfalto, aqui invertido de toda aneste caso, invertendo a
perspectiva sociológica carioca, que entende o se dá classicamente como o “morro”
como espaço do negativo, da ausência do Estado e das políticas públicas e o “asfalto”
como o lugar onde há o governogoverno e a segurança, prevalece a dicotomia assumida
em separações declaradas pelos habitantes da parte alta do morro; :

“Como exemplo, Frigideira disse que Odílio, pai de Sérgio [dono de


um bar na parte média do morro] comandava o bar, não se podia jogar
nem “porrinha” (...) E, até poucos anos antes, os moradores da rua
não gostavam do samba nem frequentavam os ensaios do bloco
Escravos da Mauá. A rearticulação da Banda da Conceição era,
naquele momento, o principal projeto que Frigideira tentava realizar.
”. (SampaioGuimarães, 2014 p. 106) [grifos meus]

Há de se problematizar a “Utopia” que dá nome ao título do livro.


Primeiramente fui buscar no dicionário os vários significados de utopia: “substantivo
feminino; I) Local ou situação ideais onde tudo é perfeito, harmônico e feliz; II) Refere-
se especialmente a um tipo de sociedade com uma situação econômica e social ideal.
III) O que está no âmbito do irrealizável; IV) O que tende a não se realizar; quimera,
sonho; fantasia. ” (Fonte: Dicionário Aurélio Virtual)

Tendo como base a multiplicidade de utilizações para tal conceito, observei


como a autora utiliza a palavra em seu texto. A autoraEla se apropria de Foucault
utilizacom a noção de utopia a partir de uma leitura muito particular de , nos termos de
Michel Foucaulttende a fantasia, sonho, algo no plano do não é realizável, nas palavras
do autor irreais. explicitados nota de rodapé (Sampaio, 2014. p.11):;

““Para Foucault, “as utopias são os posicionamentos sem lugar


real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da
sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria
sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer
forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são
essencialmente irreais. ”. (apud SampaioGuimarães, 2014, p.22.
2006: p.414-415) [grifos meus]
86

Ao leitor perguntoMeus interlocutores do Filhos de Gandhy indagam: como a


Pequena África, tento ou a própria Pa Pedra do Sal, tombada como patrimônio material
em 1984 seria um lugar irreal? Ou mesmo, como descreve Roberto Moura (19833), a
História da Casa de Tia Ciata, o Cortiço Cabeça de Porco, os grupos de frevo da década
de 50, todos muito próximos a à Rua Camerino e ao Cais do Valongo, além mesmo das
capoeiras mais temidas do Rio de Janeiro, como o Prata Preta, na Praça do Coreto da
Saúde e a sede do Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy? Ou mesmo os antigos
terreiros, a exemplo de um dos terreiros mais antigos do país, o Ilê Axé Opó Afonjá que
habitavam aquela região famosa pelos seus frequentadores e filhos de santo -sambistas,
artistas, trabalhadores da estiva, governantes. São tantos lugares reais -e bem concretos
e materiais- que não consigoé difícil vislumbrar o que se entende observar o que há de
como “irreal” neste território.

, dai não entender a utilização da compreensão foucaultiana sobre o conceito de


“utopia” para explicar produção de espaço na região. Objetivamente, são múltiplas as
expressões e inúmeros marcos culturais bem reais, seja nas intervenções revolucionárias
como a resistência na Revolta da Vacina e Revolta da Chibata, e nas vivências negras
urbanas, com os blocos de rua mais antigos do Rio de Janeiro (Rancho das Fflores,
Rancho das Moças, Vizinha Faladeira, Fala meu Louro! Etc.), o IPN (Instituto de Pretos
Novos), os marcos traçados no Circuito da Herança Africana que delineiam toda a Zona
Portuária do Rio de Janeiro, com os pontos tradicionais, além de antigos galpões de
engorda de escravizados, hospitais e depósitos. Temos, nessa região, uma África
(pequena ou grande, pouco importa) bastante real, ou, posto de outra forma, uma África
que pode ser entendida como um plano virtual que nunca deixou de existir e que se
atualiza o tempo todo através das práticas dos grupos artísticos e religiosos de matriz
africana que aí tem lugar. A oposição real x irreal ou real x imaginário simplesmente
não opera aqui, já que estamos falando de uma imagem de pensamento que se afasta do
realismo. As práticas que se desenrolam nesse espaço, os acontecimentos que aí se
fazem, efetuam, a cada instante, uma África virtual. Nesse sentido, a atualizam e a
recriam ao mesmo tempo, não como um não-lugar, mas na concretude mesma, na
materialidade mesma dos lugares que aí se dispõem.

Neste ponto, buscando dar inteligibilidade para o fato de que alguns integrantes
do Filhos de Gandhy não se sentiram confortáveis com a tese de SampaioGuimarães,
entendo que há em sua argumentação vejo que há um mau uso pouco prolífico do termo
87

“utopia", que possui diversos significados outros. Falar em utopia como “não-lugar” ou
enquanto lugar irreal, pode ter por efeito político , além de um novo apagamento -–
agora referendado pela universidade - daà luta resistência histórica identitária dos
remanescentes e resistentes negros(as) naquela região, que lutam diariamente por
habitação regular e “reconhecimento do espaço cultural e religioso de matriz africana na
região”. (Capone, no prelo).

Por certo, há um debate que permeia este trabalho que se trata da autenticidade
em contraposição com inautenticidade das fontes de memória. Todavia, há uma
“geografia da autenticidade” (SampaioGuimarães. Prefácio. p.7) proposta pela autora,
que contrapõe a visão moderna de cidade, formada por uma individualização, alienação
do sujeito do espaço vivido, e a vida partilhada e a cultura observados no Morro da
Conceição. O individualismo neste ponto é visto como expressão do “inautêntico” as
em contraposição a “autenticidade” estrangeira e católica tradicionçalões do Morro e
um rótulo, ou classificação, daos moradores do asfalto, como um todo inautêntico.

Visto que que a Pedra do Sal foi tombada em 1986 e o Quilombo Urbano
(PROARQ) foi titulado pela Fundação Palmares em 2005 acredito que essa
contraposição entre autentico e inautêntico é irreal, posto que e com isso, o reclame
identitário destes moradores já foi reconhecido por entidades nacionais e internacionais..

Prova última e símbolo negro na região do que escrevo foi a patrimonilização


recente do Cais do Valongo em 2017 pela UNESCO, um reconhecimento internacional
de um lugar de memória negra. Além do estabelecimento de compromissos do governo
federal e municipal na construção do Museu da Liberdade até o ano de 2018, mas que
ainda se encontra em processo de tramitação. O que gostaria aqui de ressaltar é que
Hháá materialidade de matriz africana demais para denominar os espaços negros do
Porto como utópicos no sentido de irreais.

A autora Ana Maria Gonçalves também traz em seu romance “Defeito de Cor”
(2009) tem como cenário a região do cais como cenário d na venda de quitutes e da
possibilidade de pessoas negras da região se abrigarem por preços baixos próximas em
estalagens no Centro carioca para exemplificar o que digo. Junto com toda a variedade
de mercadorias aportadas ali, a região era Além de todo um grande centro de
informações de todo o Brasil e mundo além-mar que ali circulava. junto com toda a
variedade de mercadorias aportadas ali.Neste ponto, como no romance há de se ressaltar
que os trabalhadores da estiva eram os primeiros a receberem notícias de fora do Brasil,
88

pois elas aportavam junto om os marinheiros de outros lugares do mundo, juntamente


com o material descarregado. Era uma classe, portanto, conhecedora do que acontecia
politicamente no mundo. Possuíam um capital cultural vasto, mesmo com baixa
escolaridade em sua maioria.

A metodologia utilizada por Guimarães (2014) foi a comparação dos “hábitos e


culturas” da parte baixa e da parte alta do Morro da Conceição. Enquanto a parte alta é
habitada por “moradores antigos”, descendentes de portugueses e espanhóis em sua
grande maioria católica, de uma população negra e nordestina, “moradores recentes”,
habita o pé do morro, voltados especialmente para a venda de bebidas e alimentos na
região em barracas na rua que liga o Largo da Prainha a Pedra do Sal.à beira do asfalto.
Eventos como a Procissão da Nossa Senhora da Conceição e a retomada da Banda da
Conceição são vistas como positivas pela população do alto do morro (concepção
reverberada pela autora), ou seja, as influências ou tradições europeias na região são
valorizadas e recebem apoio da população antiga. Ao contrário, o Bloco Escravos da
Mauá, o Afoxé Filhos de Gandhy e o Samba da Pedra do Sal são extremamente mal
vistos pelos moradores da parte alta por trazerem pessoas de “fora” para o espaço do
morro. Seria aqui uma evidência de uma colonialidade de usos do espaço urbano e
fortalecimento da “tradição” de matriz europeia, em detrimento dos eventos culturais de
base negra e matriz africana, como o Afoxé Filhos de Gandhy, que nasce em 1951.
Estes são coletivos antigos, que sempre estiveram em consonância com uma tradição
brasileira referenciada na África. Ao assumir o ponto de vista dos moradores do “alto”
do morro, os movimentos culturais de matriz africana mencionados no livro são vistos
como que realizados por um “outro”, que é negro e/ou nordestino e visto como
estrangeiro naquele local e não um morador que vive e compartilha daquele espaço.

Observa-se aqui, citando a geógrafa Doreen Massey, “relações, experiências


sociais [que] se constroem numa escala muito maior do que costumávamos definir para
esse momento como lugar em si, seja a rua, uma região, um continente.”. (Apud
SANTOS, SILVA, SILVA, 2017, página 484). Relações constroem-se em escalas de
tempo e são acionadas por sujeitos múltiplos que reinventam cotidianamente o espaço.
Neste jogo de forças, a parte alta do morro sempre esteve em vantagem em relação à
parte baixa, seja por ser uma população majoritariamente branca, num contexto de
racismo sistêmico de nossa sociedade.

Tratar a Pequena África, como sinônimo de inautenticidade, um mito (no sentido


de inverdade ou erro), ou uma utopia no sentido de não-lugar, nos parece um problema
89

político e analítico, pois não leva em conta a pluralidade que abriga todo o entorno do
Porto, evidenciando a colonialidade latente que a academia preserva: seu poder de
classificar e rotular espaços.

O livro, por outro lado, traz informações etnográficas e conceituais densas sobre
a sociabilidade do Morro da Conceição e a relação com a zona portuária. De minha
parte, gostaria de utilizar outros conceitos para contrapor-me à visão explicitada e
criticada anteriormente. Utilizo como base o texto “Disputas de Lugar e a Pequena
África no Centro do Rio de Janeiro: Reação ou ação? Resistencia ou r-existência e
protagonismo ?” artigo do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações
Raciais e Movimentos Sociais da UERJ. O texto, publicado no Seminário Internacional
Urbanismo Biopolítico (2018), traz conceitos-chave para pensar a relação dos
movimentos sociais da região na construção de ações de retomada da memória espacial
negra e a emergência cultural de atores “subalternizados” latente da região do cais e
arredores do centro da cidade.

O Novo Projeto de Centro da Cidade, o Porto Maravilha, emerge com os Mega


Eventos - religioso e esportivos - trazidos para o Rio de Janeiro, cidade que ganha
visibilidade internacional e financiamentos, púbicos e privados, para melhoria urbana.
Há, novamente, um discurso higienizador da região que pretende “tirar” e “modificar” o
que era “antigo” e “degradado” e levar uma “nova estrutura urbana” ao espaço central
da cidade, e com isso novas funções e usos do espaço público destinados a um público
especifico. Nas palavras de Santos et al. (2007, p.467):

“(...) além da mudança dos usos o projeto previa também o incremento


populacional e a mudança da composição social: os números oficiais
falavam em passar de 28 para 100 mil habitantes na região, (...) com a
substituição das populações pobres por uma classe média.”.

Iniciativas como os museus - o MAR (Museu do Rio de Janeiro) e o Museu do


Amanhã - tiveram como foco a modificação estrutural da Praça Mauá. Até então, este
espaço era composto por um antigo ponto final de ônibus, o Terminal Rodoviário
Mariano Procópio, a 1ª Delegacia da Polícia Civil e o Terminal de Passageiros do Porto.
Este ambiente era rodeado de bares e prostíbulos, com uma estrutura de iluminação
precária sob a Perimetral, que conectava o centro ao início da Avenida Brasil.

Neste local foram modificadas de forma intensa as funções e os usos do espaço


público. Colocando em suspenso qualquer julgamento de valor sobre as obras em si,
90

neste caso contatamos que houveram alterações, tais como a construção do Museu de
Arte do Rio, o Museu do Amanhã e o Boulevard Olímpico. O público que era atraído
pelos serviços e atrações culturais da região foi modificado e os modos de se relacionar
com este espaço se alteraram também, principalmente após a inauguração dos dois
museus que hoje lá estão, atrações turísticas e do espaço de circulação frente à Baía de
Guanabara.

As obras na Praça Mauá evidenciaram a disputa por significações dentro do


território, não sem toques de moralidade e discriminações por parte do governo, como o
fechamento de bares, de prostíbulos conhecidos e proibição de apresentações sem
autorização no Largo de São da Praianha, como o evento a Roda das Rodas, evento que
faz parte do calendário tradicional de rodas de samba espalhadas pela cidade do Rio e
que também tinha lá como ponto de visibilidade cultural. A partir destes incentivos
voltados para especulação imobiliária da região a região se modificou, o número de
turistas na região aumentou a concentração de pessoas durante finais de semana sejam
cariocas ou pessoas de fora da cidade. Retomarei as menções às obras e modificações.
Contudo, gostaria de ressaltar como a operacionalização de um pensamento colonial,
seja numa análise como a presente no livro Utopia da Pequena África, seja no resultado
das obras de “melhorias urbanas” na região central esteve e está presente, com
diferentes nuances, é certo, na academia e no governo. Trata-se de uma história escrita
sobre muitas outras histórias, que tentasse apagar para construírem-se novas narrativas
hegemônicas sobre a região. Como descrito por Sueli Carneiro (2005) há sempre o “eu
hegemônico” personificado aqui na política e no governo e é nele que se concentra o
poder de ditar o real e validar a história autentica de uma região.

4.2 Revoltas Populares: a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata6

A Revolta da Vacina tão popular retoma o Bairro da Saúde como símbolo da


resistência a proposta higienista de Oswaldo Cruz que feria diretamente a privacidade e
a vivência comunitária dos moradores nesta região o direito de habitação e individual de
informação sobre a vacinação daqueles moradores.

6
Para mais informações sobre a Revolta da Chibata consultar ALMEIDA, Sílvia Capanema P.: Corpo,
saúde e alimentação na Marinha de Guerra brasileira pós abolição, 1890-1900, Manguinhos v.19, supl.,
2012. Além de NASCIMENTO, Álvaro Pereira do, Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros
de 1910. Rio de Janeiro, Maua X, 2008 e Do cativeiro ao mar: escravos da Marinha de Guerra. Estudos
Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro: Centro de estudos Afro-Asiáticos, n 38, dez. 2000.
91

Lá houveerame confrontos que geraram mortes e muitas prisões, e se mostrou


símbolo de resistência ao governogoverno que pela via da saúde coletiva expulsava
famílias dos cortiços e vacinava sem informar o que se estava fazendo em efetivo. Aqui
se insere um dos líderes desta revolta, Prata Preta e seus capoeiras resistiram à
vacinação compulsória e à remoção da região são lembrados no mesmo espaço de
disputa de significados com o governogoverno da capital da época e de hoje. O “Prata
Preta” forma atualmente um dos cordões mais famosos do carnaval carioca. Segue um
trecho retira do jornal “O Paiz” em 1904 (apud Giovanella, 2012), (inserir referência
completa. Vc consultou o jornal em biblioteca ou é APUD algum autor?) sobre a
Revolta da Vacina e da reação dos moradores desta localidade;

“(...) os combustores de iluminação partidos, com os postes vergados,


estavam imprestáveis; os vidros quebrados brilhavam na calçada;
paralelepípedos revolvidos, que serviam de projéteis para essas
depredações, coalhavam a via pública; em todos os pontos, destroços
de bondes incendiados, portas arrancadas, colchões, latas, montes de
pedras, mostravam os vestígios das barricadas feitas pelas multidões
agitadas."

Outro ponto de destaque e que marca a região portuária é a Revolta da Chibata


(1910) liderada por João Candido, protagonista da insurgência contra as duras punições
corporais da Marinha para com os negros marinheiros. Há no trabalho de Nascimento
(2016) uma análise sobre este momento histórico no qual a Revolta da Chibata se insere

“Os conflitos se sucederam – muitos deles sanguinolentos. A


historiografia vem demonstrando essas experiências nas últimas
décadas, destacando a agência dos negros em meio às relações sociais
e produtivas cotidianas ou nos marcantes eventos ocorridos nas
cidades e no universo rural. Em revoltas (Bartelt, 2009, p.69), greves
na estiva (Cruz, 2000) e no transporte (Souza, 2011, p.154-155), nos
jornais da imprensa negra (Santos, 2011; Pereira, 2013) e associações
diversas (Chalhoub, 2007; Mac Cord, 2012), os negros lutaram por
direitos, algumas vezes denunciando explicitamente o “preconceito de
cor” no país.(2016)

Entre os dias 22 a 26 de novembro de 1910 “os marinheiros negros João


Cândido Felisberto, André Avelino, Francisco Dias Martins e Manoel Gregório do
Nascimento e outros negros bombardearam e ameaçaram a capital brasileira.”
(Nacimento. 2016) A marujada, termo referido pelo autor aos marinheiros negros,
reivindicavam melhores condições de trabalho, o fim da chibata e da palmatória, direito
ao voto, que o trabalho dentro do navio fosse dividido de maneira mais igualitária, já
que os poucos negros que haviam tinham muito trabalho dentro dos navios enquanto os
92

brancos não tinham os mesmo ofícios. A partir do trabalho do historiador há uma


análise pertinente quanto ao tempo, vinte e dois anos após a abolição, eram marinheiros
que viram seus pais ou avós cativos e tinham como lema a “liberdade” e o “fim da
chibata” na Marinha. (Nascimento, 2016).

(...) Desde o século XIX, as Forças Armadas brasileiras resolviam os


problemas disciplinares castigando o corpo do infrator. No caso da
Marinha de Guerra, o tipo de castigo (golilha, chibata, palmatória,
prisão a ferros, solitária) e a quantidade aplicada (dias na solitária,
pancadas nas mãos e costas) eram definidos após decisão de um
Conselho de Disciplina formado pelo comandante e mais dois oficiais a
bordo. (2016)

Contudo, o pleito deveria ser resolvido não só internamente a Marinha, mas na


lei (Decreto-lei: n. 328, de 12 de abr. 1980), que respaldava que poderiam haver
castigos corporais quando se tratava de indisciplina do marujo. Outro ponto de pauta era
a “educação dos marinheiros que não tinham competência para vestirem a orgulhosa
farda”(Nascimento p.155), o que faria com que os marinheiros conseguissem trabalhar
em grupo sem problemas relacionados a racismo à bordo.

O governo recém empossado era Hermes da Fonseca recebeu carta direta dos
marinheiros revoltosos, onde “o conjunto de reinvindicações expressa a consciência de
grupo que os marinheiros, [informava que] em sua maioria alcançavam os oficias
brancos, hierarquicamente superiores, educados nas melhores instituições de ensino,
pertencentes a famílias abastadas e defensores do espirit corps. [E gozavam de
privilégios] (...) Essa imagem fora corrompida por aqueles marinheiros negros, pobres e
de parda instrução – 70% eram analfabetos” (Nascimento, 2016).
O autor demonstra que o racismo foi o estopim desta revolta, pois mesmo com a
abolição formal da escravatura, a discriminação criava barreiras para ascensão social
dos marinheiros negros dentro da instituição. Não sem motivo, o racismo biológico, já
comentado acima, veio ratificar a diferença entre brancos e negros. Porém, os ideais
republicanos e igualitários em que se baseava esse novo Brasil republicano que tinha
como referência as propostas da Revolução Francesa não se concretizavam pelos
“incômodos à maior parte dos brancos, que se sentiu ferida com a divisão dos seus
privilégios” (Nascimento p.152).
A proposta dos marinheiros era de emancipação, tinha como lema “Liberdade”
e “Fim da Chibata”. Importante frisar a liberdade como um dos pleitos. Estes
marinheiros negros não se sentiam plenamente livres. Muitos deles compunham a
primeira geração do Ventre Livre e entendiam bem a oposição de liberdade e cárcere.
93

Nascimento segue na descrição que na primeira noite um dos tiros de canhão


atingiu um casa, vitimando um família. Nos dias posteriores eles navegaram fora da
baía e começaram as negociações sendo que a primeira delas era a anistia aos
revoltosos e “discutir posteriormente no Senado”( Nascimento, 2016) as demais
reinvindicações. Tendo como resultado o fim das penas e a anistia os marinheiros se
renderam.
“Derrotado o movimento, a Marinha, a Polícia e o Exército
começaram a agir, prendendo, torturando, desterrando ou matando os
envolvidos. Dezesseis morreram asfixiados inalando cal utilizada para
higienizar os detritos dos presos, numa cela na ilha das Cobras, ao
tornar-se pó logo após a evaporação da água. As chaves estavam nos
bolsos dos comandantes da ilha(...)

Atualmente a briga retoma como marca também da região. hoje, para resgatar
esta memória, a estação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) que passa na região está
sendo submetida a análise e mudança de nome para Almirante João Candido. (Machado,
conversa pessoal 2019), pleito da Associação dos Moradores da Saúde.

Retomo, onde está a Utopia da Pequena África?

A metodologia utilizada por Sampaio (2014) foi a comparação dos “hábitos e


culturas” entre da parte baixa e da parte alta do Morro da Conceição. Enquanto a parte
alta é habitada por “moradores antigos”, descendentes de portugueses e espanhóis, uma
população negra e nordestina, “moradores recentes”, habita o pé do morro, a à beira do
asfalto. Eventos como a Procissão da Nossa Senhora da Conceição e a retomada da
Banda da Conceição são vistas como positivas, pela população do alto do morro
(concepção reverberadae da pela autora), ou seja, as influências ou tradições europeias
na região, e assim são valorizadas e recebem apoio da população antiga. Ao contrário, o
Bloco Escravos da Mauá, o Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy e o Samba da
Pedra do Sal são extremamente mal vistos pelos moradores da parte alta por trazerem os
pessoas de “fora” para o espaço do morro. Seria aqui uma evidência resquício de uma
colonialidade de usos do espaço do espaço urbano e fortalecimento da “tradição” de
matriz europeia, em detrimento dos eventos culturais de base negra e matriz africana, a
exemplo docomo o Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy, que nasce em 1951 ou
G.R.E.S. Fala Meu Louro, de 1938. ? Estes são cColetivos antigos, que sempre
estiveram em consonância com uma tradição brasileira referenciada na África. Quanto
Ao assumir o ponto de vista dos moradores do “alto” do morro, os estes movimentos
culturais de matriz africana são mencionados no livro são vistos como que realizados
94

por um “outro”, que é negro e/ou nordestino e visto como estrangeiro naquele local e
não um morador que vive e compartilha daquele espaço., por mais que ambos os grupos
sejam moradores.

HáObserva-se aqui, citando a geógrafa Doreen Massey, “relações, experiências


sociais [que] se constroem numa escala muito maior do que costumávamos definir para
esse momento como lugar em si, seja a rua, uma região, um continente.”. (Apud
SANTOS, SILVA, SILVA, 2017, página xx) Relações constroem-se em escalas de
tempo , com a importância social do território e são acionadas por sujeitos múltiplos que
reinventam cotidianamente o espaço. Neste jogo de forças, a parte alta do morro sempre
esteve em vantagem em relação àa parte baixa, seja pelos recursos financeiros de que
dispõe (inserir dados sobre renda), seja por ser uma população majoritariamente branca,
num contexto de e mesmo o racismo sistêmico de nossa sociedade.

Tratar a Pequena África, como sinônimo de inautenticidade, um mito (no sentido


de inverdade ou erro), ou uma utopia no sentido de não-lugar, foucaltiana nos parece
um problema político e analítico, pois não leva em conta a pluralidade que abriga todo o
entorno do Porto, explicitando evidenciando um resquícioa de colonialidade latente que
a academia preserva: seu poder de classificar e rotular espaços.

O livro, por outro lado, traz informações etnográficas e conceituais densas sobre
a sociabilidade do Morro da Conceição e a relação com a zona portuária. Creio que
além do texto há outros pontos em que poderei me debruçar sobre o debate sobre a
etnicidade, seja ela negra e portuguesa da região e relação governamental estabelecida
pela autora, com o Ministério Público, ONG’s, a Venerável Ordem Terceira de São
Francisco da Prainha e com o INCRA, por exemplo.

Em contrapartida ao livro de Sampaio gDe minha parte, gostaria de utilizar


outros conceitos outros para contrapor-me a à visão hegemônica e de Estado explicitada
e criticada anteriormente. Utilizo como base o texto “Disputas de Lugar e a Pequena
África no Centro do Rio de Janeiro: Reação ou ação? Resistencia ou r-existência e
protagonismo?” do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e
Movimentos Sociais da UERJ. O texto, publicado no Seminário Internacional
Urbanismo Biopolítico (2017), traz conceitos e- chaves para pensar a relação dos
movimentos sociais da região na construção de ações de retomada da memória espacial
95

negra e a emergência cultural de atores “subalternizados” latente da região do cais e


arredores do centro da cidade.

Se oO Novo Projeto de Centro da Cidade, o Porto Maravilha, emerge com os


Mega Eventos - religioso e esportivos - trazidos para o Rio de Janeiro, cidade que ganha
visibilidade internacional e financiamentos, púbicos e privados, para melhoria urbana.
Há, novamente, um discurso higienizador da região de que pretende “tirar” e
“modificar” o que era “antigo” e “degradado” e levar uma “nova estrutura urbana” ao
espaço central da cidade, e com isso novas funções e usos do espaço público destinados
sensivelmente a um público especifico; . Nas palavras de Santos et al. (2007, p.467):

“(...) além da mudança dos usos o projeto


previa também o incremento populacional e a
mudança da composição social: os números
oficiais falavam em passar de 28 para 100 mil
habitantes na região, (...) com a substituição das
populações pobres por uma classe média.”.
(SANTOS, SILVA, SILVA p. 467. 2017).

Iniciativas como os museus -; o MAR (Museu do Rio de Janeiro) e o Museu do


Amanhã - tiveram como foco a modificação estrutural da Praça Mauá. Até então, este
espaço era composto por um antigo ponto final de ônibus, o Terminal Rodoviário
Mariano Procópio, a 1ª Delegacia da Polícia Civil e o Terminal de Passageiros do Porto.
Ambiente eEste ambiente era rodeado de bares e prostíbulos conhecidos, com uma
estrutura de iluminação precária onde havia parte dasob a Perimetral, que conectava o
centro a ao início da Avenida BrasilZona Sul da Cidade.

Neste local foram modificadas de forma intensa as funções e os usos do espaço


público de forma intensa.. Colocando em suspenso qualquer julgamento de valor entre
bom e ruim dassobre as obras em si, neste caso contatamos que houveram alterações,
tais como xxxx. e oO público alvo que era atraído pelos serviços e atrações da região foi
modificado e os modos de se relacionar com deste espaço se alteraram, principalmente
com após a construção inauguração dos dois museus que hoje lá estão, atrações
turísticas e do espaço de circulação frente à Baía de Guanabara.

Na As obras na Praça Mauá, foi clara evidenciaram a disputa por significações


dentro do território, não sem toques de moralidade e discriminações por parte do
governo e com incentivos voltados para especulação imobiliária da região. Retomarei as
menções as às obras e modificações. Contudo, gostaria de ressaltar como a
operacionalização de um pensamento colonial, seja no livro anuma análise como aquela
96

presente no livro Utopia da Pequena África, como seja no resultado das obras de
“melhorias urbanas” na região central esteve e está presente, com diferentes nuances, é
certo, no governo e na academia e no governo. Trata-se de Uma uma história escrita
sobre muitas outras histórias, que tenta-se apaga-ser para construirconstruírem-se novas
narrativas hegemônicas sobre a região. Como descrito por Sueli Carneiro (2005) há
sempre o “eu hegemônico” personificado no detentor o homem branco. Citar Sueli
Carneiro. Essa citação de Marx que se segue, por incrível que seja, é muito usada e não
me parece necessária aqui. Valeria mais a pena trazer algo sobre racismo estrutural, até
porque Marx não foi um autor que valorizou as questões raciais. Se quiser manter o
Marx, precisará fazer as mediações necessárias para não ficar solto. ;

“Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea
vontade, pois não são eles quem escolhem às circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas
lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é
como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. ”. (Marx, Karl. 18 Brumário. p. 25)

Sub-item – sub-título 4.3 Operação Porto Maravilha

O Projeto Porto Maravilha tem traz muitas similaridades com as obras do Bota
Abaixo, tanto no plano discursivo, quanto no discurso e em sua implementação
urbanística. O Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de
Janeiro (2001) tinha como escopo objetivo o desenvolvimento turístico, a construção de
novas habitações, no padrão de estúdios e apartamentos voltados para solteiros que
trabalhavam na região central, e prédios comerciais, e , com isso, a promoção d o
crescimento econômico da região portuária.

“a Zona Portuária já passava por um rápido processo de ressignificação


perante a cidade: nos imaginários construídos pelas grandes mídias, na
não era mais associada apenas à prostituição, ao tráfico de drogas e às
habitações “favelizadas”, despontando narrativas que positivavam
alguns dos seus espaços, habitantes e patrimônios culturais. ”(...)
algumas . Os exemplos mencionados pela autora são a transformações
já haviam ocorrido em seu entorno: reurbanização da Rua Sacadura
Cabral foi reurbanizada,(...) foram construídas as arquitetonimente
monumentais a Vila Olímpica na Gamboa, ae Cidade do Samba, (...) e o
a reforma o terminal do Porto e “a divulgação do Morro da Conceição
foi divulgado como “ssitio histórico de origem portuguesa”, atraindo
maior poder aquisitivo. (GuimaraesGuimarães, 2014, p. 16 e 170)
97

Os exemplos mencionados pela autora são a reurbanização da Rua


Sacadura Cabral, a Vila Olímpica na Gamboa, a Cidade do Samba, a
reforma o terminal do Porto e “a divulgação do Morro da Conceição
como sitio histórico de origem portuguesa”. (Guimaraes, 2014, p. 10).

Tendo como base aTal como a perspectiva adotada pelo livro Utopia da Pequena
África, há umaos governogovernos responsáveis pela “revitalização” da região também
operaram produzindo uma comparação diferenciada entre as formas de habitar o Morro
e o entorno do Porto por seus diferentes púbicos, basicamente entre
“estrangeirosdescendentes de europeus” e os “outros”. Além disso produzindo “valor”
no bairro com a reforma e suas operações de melhorias infraestruturais. Isso ficou , o
que ficou mais exposto com evidente no debate com a população sobre as obras de
infraestrutura urbana e a gradual implementação da “revitalização” do Porto. :

“Essas classificações [referente às propostas de revitalização]


estavam produzindo, entre outros efeitos, o acirramento de
conflitos sobre os usos dos espaços do morro, a atração de projeto
de entidades assistenciais voltados para o controle e ordenamento
de uma população tida como “marginalizada” ou “criminosa” e a
movimentação de narrativas de tradição para demarcar
fronteiras identitárias e territoriais. ”. (GuimaraesGuimarães, 2014,
p. 12).

O A transformação das diferenças entre os moradores da região em


“identidades”, acionadas tanto por pesquisas acadêmicas como pelo governogoverno,
evidencia-se no caso de acionamento de identidades é demonstrado como um conflito
recente frente às modificações que se sucederam na região. Já existiam que já haviam
pleitos e mesmo levantamentos institucionais para se demarcar os chamados
“patrimônios materiais e imateriais”, realizados tanto do pelo consórcio Porto
Maravilha, que operacionaliza a região, como pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional). O acirramento se dá porque os excluídosAs disputas se
dão porque os moradores negros, da parte baixa do morro, não têmse veem duplamente
nesta chave, pois nem seus lugares de memória preservados, nem mesmo seus corpos
enquanto moradores sujeitos do direito à moradia digna durante a reivindicação de
Quilombo Urbano já concedida pela Fundação Palmares em 2005, como já foi dito
anteriormente, devidamente são respeitados, além dos exemplos mais evidentes do
Cemitério dos Pretos Novos e Cemitério de Santa Rita.
98

Com relação à atuação dos governogovernos, houve dois prefeitos que


elaboraram o projeto e posteriormente o implementaram, Cesesar Maia (2001 a 2009) e
Eduardo Paes (2009 a 2017), incluindo também a presença da instância de governança
estadual com o governogoverno Séergio Cabral (2007-2014). Todos, representantes de
uma política de direita neoliberal, tendo ambos transitadoram entre os Partido Social
Democrata Brasileiro (PSDB), Partido do Movimento Democrático Brasileiro e o DEM
(Democratas). Estão neste último partido, neste último estão hoje estes ex-
governantesprefeitos, sem cargos políticos na atualidade. Com objetivo de apresentar o
Projeto Porto Maravilha, há material de que ele foi planejado nestes últimos governos,
incluindo também a presença da instância de governança estadual com o governo Sergio
Cabral (2007-2014). A proposta de alteração estética e urbanística do Rio de Janeiro foi
algo pensado e costurado entre as diferentes esferas políticas - como podemos observar
que os Prefeitos, Governador, Senadores e a Presidência da República - , onde todos
pactuaram com a chamada “revitalização” associada à para recebimentos realização dos
Mega Eventos de alguma forma come d este “novo olhar” para o Rio de Janeiro
adaptado para recebê-los.
99

(Eduardo Paes e ator que representou Pereira Passos na inauguração do Jardim do Valongo. Foto: Marcos
Tristão. O Globo - Julho de 2012.)

Apesar dos mais de 100 anos que separam as duas administrações da cidade,
observamos uma relação de continuidade discursiva entre os projetos Há uma
regularidade discursiva entrede Pereira Passos e Eduardo Paes para a região central do
rio Rio de Janeiro. Explicar por quê há essa continuidade com exemplos. Considero este
um dado, já que o ultimoNão à toa, Eduardo Paes se auto denominou o “Novo Pereira
Passos”.

Acho oportuna a consideração de Marx abaixo; “(...) Hegel comenta que todos os
grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por
assim dizer duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a
segunda como farsa. ”. (Marx, Karl. 18 Brumário. p. 25).

4.4

Afoxé Filhos de Gandhy na Bahia: Tradição, cultura e religiosidade na luta por


memória
4.2 Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy: identidade, cultura e
religiosidade na luta por memória e existência

Exú Lonan, Exú Lonan


100

Modilê Lodê e Legbara


Legbara Mirê Exu Tala Kewa Ô.

(Tradução simples: Exú do caminho, eu brinco do alto da montanha para o senhor dar força.
Exú eu estou feliz Exú. Exú do caminho nós o cumprimentamos.).

O Afoxé Filhos de Gandhy foi fundado em 1949 em Salvador, (Risério,1981.).


Há algumas características que ligam os pontos tratados nos capítulos anteriores. A
composição histórica do Afoxé em Salvador e no Rio de Janeiro é de homens negros,
em sua maioria trabalhadores da estiva, vinculados a casas religiosas de candomblé. Há
um intercâmbio entre estes trabalhadores estabelecido nas duas cidades o que deu
origem aos Filhos de Gandhy nas duas cidades. O que nos coloca a questão da grande
comunicação presente desde àquela época entre os trabalhadores desta ocupação. Sem
dúvida, de forma diferente com outros estados, visto que a presença baiana no Rio era
grande, também houve um intercambio direto com Salvador no viés étnico, , religioso e
trabalhista, por serem homens negros, filhos de casas de candomblé de várias nações e
trabalhadores da estiva.. Tanto em Salvador, quanto no Rio de Janeiro, espacialmente
distantes, o Afoxé Filhos de Gandhy se firmou nas bases culturais, étnicas e religiosas
de maneira muito semelhante. A figura de Vavá Madeira, apelido de Durval Marques da
Silva, é homenageada nas duas cidades como principal articulador dos dois afoxés,
quem deu nome e os princípios do bloco.

Assim começa o desfile do Afoxé Filhos de Gandhy do Rio de Janeiro: com a. A


saudação à EsúExú. Contudo, Antes de entrar no Afoxé Filhos de Gandhi do Rio de
Janeiro é importante retomar aA partir das pesquisas de Roberto Moura, no livro sobre
Tia Ciata e a Pequena África (199283) e do filme Filhos de GandhiFilhos de Gandhy,
de Lula Buarque de Holanda (1999), é digno de nota a importância do intercambio
intercâmbio de pessoas e informações entre Rio e Salvador. A partir desde dado, penso
na pesquisa de Honorato (ano2016) sobre os negros moradores da zona portuária.
Conforme trabalho de pesquisa deste historiador havia um número considerável de
baianos e mineiros no Rio de Janeiro. Este fluxo migratório para capital se estabelece
estatisticamente pelo autor nas tabelas relativas aos sensos censos de 1842 e 1872.
101

Gráfico 2: Imigrantes Brasileiros na Região Portuária

Gráfico 1: Imigrantes Brasileiros

Fonte: Censo de 1849 Fonte: Censo de 1872 (Apud Honorato,


2016)

Gráfico 2: Imigrantes Brasileiros na Região Portuária


102

Fonte: Censo de 1872

“Convém informar que foram excluídos os oriundos da Província do


Rio de Janeiro no conjunto de migrantes brasileiros, com destaque
para àqueles oriundos da Bahia e Minas Gerais que habitavam a
Região Portuária em 1872. Mais ainda, 42% dos baianos moradores
da Corte, pelo censo de 1872, residiam na Região Portuária. De
acordo com o censo de 1890, a população total da Região Portuária
era de 133.074 habitantes (...) (Honorato, 2016 – grifos meus)

O volume migratório da migração de pessoas da Bahia para o Rio de Janeiro,


com trabalho e sua habitação concentrada concentrados na região central, demonstrar
indicam a presença de fortes os laços étnico-raciaiss, identitários e religiosos latentes
entre o território baiano e na zona portuária.

Foi possível entender melhor a conexão entre Bahia e Rio de Janeiro, aPor
intermédio de minha orientadora pude conversartravés de entrevista realizada com
Emilio Domingos, Assistente assistente de Direçãodireção, Coordenador coordenador
de Pesquisa pesquisa e Fotografia fotografia Still still do filme Filhos de GandhiFilhos
de Gandhy (1999), sobre o aniversário de cinquenta anos do Afoxé Filhos de Gandhy
baiano, dirigido porde direção de Lula Buarque de Holanda, sobre o aniversário de
cinquenta anos do Afoxé Filhos de Gandhi baiano.

A partir desse material audiovisual pode-se ter acessar a história, a dimensão de


sacralidade, os conflitos e a magia do Filhos de GandhiFilhos de Gandhy de Salvador.
Ali, tal como as fontesobservei junto aos meus interlocutores dos Filhos de
GandhiFilhos de Gandhy do Rio, se demonstra afirma a o respeito e a importância de e
Durval Marques da Silva, o Vavá Madeira, na criação do Afoxé. nas duas cidades
(Conversa pessoalentrevista(entrevista com, Emílio Domingos, 20189). Como pontos
103

comuns, os dois afoxés, na Bahia e no Rio de Janeiro têm aNa união de diversas casas
de santo, na suaa variedade de nações e procedimentos religiosos, em prol de um
mesmo afoxé, os princípios de Mahatma GandhiGandhy ligados a à paznão-violência (o
que não quer dizer não-resistência, ), estando sua figura presente nos adornos de cintura,
camisas e turbantes, a presença apenas de homens, nos tambores e no cortejo e a
importância do orixá regente, Oxalá.

Tendo o mesmo pai, os blocos têm as mesmas filosofias de um afoxé masculino,


a figura central de Mahatma Gandhi que está presente nos adornos de cintura, camisas e
turbantes.

Acredito que antes de me debruçar sobre as práticas e a agêencia do Afoxé


Filhos de GandhiFilhos de Gandhy, devesse deve-se contar um pouco da história que
une os afoxés do Rio de Janeiro e de Salvador e do Rio de Janeiro.

No cinquentenário do Afoxé nas ruas de Salvador, o bloco contava com doze mil
homens associados aos Filhos de GandhiFilhos de Gandhy, mas à rua saíram quase
dezessete mil. Os associados são cadastrados através de CPF, Identidade identidade e
Certidão de Bons Antecedentes. Cada folião ganha: lençol é roupa, toalha para cabeça
com pequena ponta no pescoço, fitas com nome do bloco, faixa que segue amarrada a
cintura (como um cintofaixa, flamula flâmula), flâmula, um pequeno adorno azul ligado
a toalha de cabeça feito em paetê, e alfazema e colares de contas transpassados ao peito
feito de contas azul e branca. Todos esses elementos possuem em si um significado são
adornos que reproduzem uma roupa hindu, sendo a alfazema, que ao mesmo tempo
serve para limpeza no candomblé, como uma erva ligada ao amor. Os colares por vezes
são trocados por beijos na avenida. (explicar o significado de cada um desses
elementos).
104

(Fonte:www.cenbrasil.org.br/afoxe-filhos-de-gandhy-tera-ala-de-inclusao-social-no-carnaval-2018/)

Contudo, tTudo começou em 1948 com trinta e três homens debaixo da arvore
árvore da Igreja de Santa Luzia, na Cidade Baixa em Salvador. Vavá Madeira havia
tinha visto o filme “Gunga Din”, filme de Rudyard KiplingGeorge Stevens (18921939),
com Cary Grant no elenco, uma espécie de filme Western que conta a aventura, em
síntese de alguns soldados ingleses são enviados colônia daà Índia, então colônia, e
atacados por rebeldes uma seita indianaos de uma seita de adoradores da deusa Kali,
considerada extintaexterminada. Gunga Din é o indiano carregador de água amigo e
colaborador dos ingleses, que sonha em servir ao exercido da Rainha. O argumento do
filme é inspirado no poema de mesmo nome de Kipling, hoje considerado um exemplo
de poesia racista e repleta de estereótipos. Gunga Din é um empregado servil do
exército inglês que acaba por perder a vida ao salvar um soldado do Império. Enquanto
Gunga Din agoniza, o soldado que teve sua vida salva, afirma “you’re a better man than
I am, Gunga Din” (“você é um homem melhor do que eu, Gunga Din”), expressão que
se tornou de uso comum, como um cumprimento ao interlocutor, tamanha a influência
do filme junto ao público de língua inglesa.

Apesar do filme e do poema sejam hoje considerados explicitamente racistas, a


representação do homem indiano, não-branco, como uma espécie de “bom selvagem”,
capaz de lealdade e generosidade, foram entendidas, à época, como uma representação
positiva dos não-brancos. Ao mesmo tempo, as ideias e práticas de não-violência
propugnadas por Mahatma GandhiGandhy se espalhavam pelo mundo. Além de
influenciarem fortemente o movimento negro estadunidense, em particular, a linha de
Martin Luther King (que foi à IndiaÍndia e lá fez uma formação em ação direta não-
105

violenta) as ideias de GandhiGandhy também chegaram à Bahia. Esta triangulação de


diferentes espacialidades se deu de maneira particular na Índia, nos Estado Unidos e no
Brasil, contudo, a prática em si da “não violência” obteve êxito e atingiu centenas de
adeptos pelo mundo.

Há uma parte do filme de Lula Buarque, mais histórica, em queque reúne cinco
homens que se destacam pela beleza e pela idade:, eram os fundadores do bloco,
homens da estiva com cinquenta anos de Filhos de GandhiGandhy. Apresento aqui a
transcrição de , os fundadores: separei algumas falas para compor esse encontro e as
conversar sobre o afoxé em meio aos muitos temas tratadosque me parecem
particularmente interessantes:

A princípio eles conversam sobre a formação do Afoxé, que hoje se apresenta de


forma diferente de quando foi criado por Vavá Madeira e outros amigos de estiva;

Guarda Sol: “- Eu classifico Vavá Madeira como o primeiro idealizador, que foi ele que
foi ver no Jandaia ver o filme GUNGA DIN, foi ele quem trouxe com Dodo Miliano e
confabularam trouxeram para nós a ideia do bloco, (...)”.

O cinema Jandaia situado a rua do Alvo, n° 293, bairro da Saúde em Salvador


era um dos cinemas mais famosos da Bahia. Na época fervilhavam temáticas de luta,
como o kung fu, westerns americanos e filmes eróticos. O trabalho do urbanista João
Soares Pena é direcionado para o cinema na cidade de Salvador “Até meados do século
os cinemas de rua exerciam uma influência relevante sobre a cidade, influenciando
fortemente em sua dinâmica. ”(2015, p.1). Segue abaixo foto do trabalho de Pena que
ilustra o argumento.
106

(Fonte:www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2015/07/comunica%C3%A7%C3%A3ojo
%C3%A3opena_texto-completo.pdf)

Também é colocado pelo autor; “(...) na segunda metade do século a cidade


passa por uma série de transformações urbanas, período quando os cinemas de rua
sofreram uma retração e fecharam pouco a pouco” (Pena, p. 5). Segue uma foto do Cine
Jandaia nos dias de hoje, desativado e em ruínas.

Sede do Grupo Filhos de Gandhy, à rua xxx , Rio de JaneiroCinema Jandaia (Acervo Fotógrafo Paul
Burley)

O cinema como colocado por Pena atingia a população soteropolitana de forma


direta, na foto se destacam três elementos a dupla de sessões de kung fu e a sessão
107

eróticas e q grande quantidade de homens negros. O laser da população estava ligado


aos filmes internacionais e como comentado por um dos fundadores, foi numa destas
sessões que Vavá Madeira viu com amigos o filme “Gugan Din”.

Mica: “O que mais tarde inspirou também foi que Mahatma Gandhy estava
desenvolvendo um movimento contra a pobreza, pelos menos protegidos. Vem daí
também nossa mensagem. ”

Ser estivador no Rio de Janeiro e na Bahia significava estar associado a um


trabalho de exaustão, como a característica colocada por João do Rio como “homem
máquina”, pois que requer acima de tudo força. Simultaneamente este trabalho tinha
como característica a organização sindical, fato relativamente novo nas dinâmicas de
trabalho no Brasil. O salário digno da função, status na sociedade e a forma diferenciada
de trabalho, assim esses homens mudaram como a sua realidade social. (Velasco, 2000).
O fato de serem os estivadores também elo entre o exterior os tornou símbolo de saber
internacional, um ponto de ligação do Brasil com o mundo. Podemos verificar isso nas
palavras do Sr. Domi abaixo;

Domi: “-Ser estivador significava estar num patamar mais alto que os demais
trabalhadores da cidade em geral, uma elite de operária. A gente trabalhava como bicho,
mas se vestia muito bem. Chapéu panamá. Linho do bom. E pensamos vamos fundar
uma brincadeira.? ”

Lobisomem: “-Tínhamos facilidade de ter bons lençóis de linho. O mais fácil é fazer o
que não se gasta nada! É um lençol, uma toalha, diferente de agora, e uma fita azul.”
(...) Gunda Din, eles bolaram assim o, nome Tiraram o “Gu” e ficou o “Gan Din.”

Mica: “-O que mais tarde inspirou também foi que Mahatma Gandhi estava
desenvolvendo um movimento contra sobre a pobreza, dos pelos menos protegidos.
Vem daí também nossa mensagem. ”

Contudo, em meio ao pleito para saírem como bloco de carnaval junto a à


polícia, o delegado mandou chamar Neto (também fundador, com cinquenta anos de
Filhos de GandhiGandhy) que o antedeu e não foi se mostroumuito receptivo ao em
relação ao nome escolhido para o bloco indoafricano. Em 1949, segundo o relato de
Neto, um dos fundadores,(quem?) mesmo sabendo quem era Mahatma GandhiGandhy e
sua filosofia de “não- violência” colocar nomes estrangeiros não era bem visto pelo
governogoverno. Foi explicado ao delegado que de aquele não era um ato político, mas
108

uma brincadeira dos rapazes por causa do filme, sem qualquer motivador externo
governamental. Após a conversa, a permissão de desfile foi autorizada. Contudo, surgiu
outro problema: relacionado a esse, como um bloco afro que veste de indiano e canta e
dança ijexá vai sair na avenida? Onde está a África nisso tudo?

Conforme colocado no filme, foi necessário explicar para todos que a figura de
GandhiGandhy era de a representação da “não violência” - o, o líder do movimento
indiano havia falecido a pouco tempo, mas seu legado se perpetuou - e o afoxé abraçou
a ideia de uma saída do bloco com referência ao indiano e também a Oxalá, sendo este o
orixá responsável pela paz e o entendimento entre os homens. Para os fundadores, são
duas coisas que se combinaram, e assim isso se tornou virou a uma filosofia do bloco,
tanto GandhiGandhy como Oxalá representavam objetivamente o que eles queriam
levar para a avenida, a Paz.

Alguns preceitos religiosos foram colocados para a saída dos homens nos
desfiles. Afinal, a brincadeira era profana e religiosa, o que de forma direta desconstrói
a dualidade opositiva presente na Sociologia da Religião Clássica, principalmente
quando retomamos a leitura de Durkheim sobre o assunto. O afoxé, diferentemente
apresenta que sagrado e também pode estar em um evento profano, uma lógica contra
intuitiva., a priori. Segue a fala de um dos fundadores sobre o tema;

Dino: -“No início todo mundo era ogã, pai de santo, então não podia sair no carnaval de
qualquer jeito, se não fosse em um afoxé. (...) brincamos, saímos no domingo e o
número triplicou na terça feira. ” (Ri bastante Dino disso tudo).

É interessante pontuar que eles não estavam representando uma casa de


candomblé, especificamente, ou uma nação, mas várias casas simultaneamente. E isso
não era um problema para os integrantes. Era um bloco afro-hindu com características
hindus formados por homens de variadas nações de candomblé.

Dino: -Vavá Madeira morreu odiando o GandhiGandhy. Porque o Gandhi Gandhy


tornou-se um clube comercial. E ele não queria. Ele queria o que o Gandhi Gandhy
fosse o que foi na época dele.

O Afoxé Filhos de Gandhi foi fundado em 1949 em Salvador, (Risério,1981.).


Há algumas características que ligam os pontos tratados nos capítulos anteriores. A
composição histórica do Afoxé em Salvador e no Rio de Janeiro é de homens negros,
em sua maioria trabalhadores da estiva, vinculados a casas religiosas de candomblé. Há
109

um intercâmbio entre estes trabalhadores estabelecido nas duas cidades o que deu
origem aos Filhos de Gandhi nas duas cidades. O que nos coloca a questão da
comunicalibilidade entre os trabalhadores desta ocupação. Sem dúvida, de forma
diferente com outros estados, visto que a presença bahiana no Rio era grande, também
houve um intercambio direto com Salvador no viés étnico, religioso e trabalhista. Tanto
lá em Salvador, quanto aqui no Rio de Janeiro, espacialmente distantes, o Afoxé Filhos
de Gandhi se firmou nas bases culturais, étnicas e religiosas de maneira muito
semelhante. A figura de Vavá Madeira, Durval Marques da Silva, é homenageada nas
duas cidades como principal articulador dos dois afoxés, quem deu nome e os princípios
do bloco.

Ambos os blocos passaram - e ainda passam- por alguns problemas estruturais e


financeiros- de maneira diferente, mas se mantêm em meio às disputas entrea tradições
tradição e novas correntes de pensamentos dentro do próprio afoxé. A À exemplo da
inclusão de mulheres em Salvador, ainda está se conversando sobre o assunto e uma das
palavras mais colocadas no caso é a tradição do bloco.

No Rio, já há uma ala específica para mulheres foliãs, ao fundo, depois da


charamga charanga (bateria de mão composta de atabaques, xequerês e agogôs). Além
disso, houve o apoio na à fundação das As Filhas de GandhiGandhy, grupo
independente formado exclusivamente por mulheres, mas que tem como parceiras nas
apresentações do Afoxé Filhos de GandhiGandhy.

Há uma questão de gênero nas duas cidades: os fundadores colocam entendem


como parte daparte como condição religiosa, afinal só os homens tocam os atabaques no
candomblé, portanto, só homens podem participar. De Além disso, de forma muito
reservada, com sorrisos nos olhos, confessam que eles eram muito namoradores e não
havia como levar apenas uma delas ao bloco. Ia dar confusão. “Então, não leva
nenhuma, mãe, esposa, filhada... nada! E se levar tem que ficar do lado da corda.”
(Guarda Chuva, 1999). Outro fator colocado é o da bebida que causava bastante
problema entre eles. Então, para evitar brigas proibiu-se álcool e mulheres no afoxé de
Salvador, segundo eles, “os dois maiores problemas quando se reúnem muitos homens
juntos”.

Descolando um pouco a história doO Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy


de Salvador que teve algum apoio de governantes interessados no alavancamento do
turismo na década de 80, mas fundamental foi o retorno do exílio de Gilberto Gil e sua
110

participação na presidência do Bloco, há relatos do mesmo sobre seu amor ao afoxé.


Segundo Gil: “Quando cheguei do exílio em 1973 encontrei o GandhiGandhy na rua da
Sé, não entrava na avenida porque não tinha massa pra poder entrar. Ali na esquina da
rua Chile eu te encontrei e perguntei o que nós íamos fazer. (...) Me lembrei, eu era
menino do Santo Antônio, eu morava na Cruz do Pasqual. Quando eu voltei do exílio,
eu vi o GandhiGandhy parado, sem gente para entrar na avenida, deu vontade de fazer
alguma coisa (...). No ano seguinte eu fui de novo, às 11h da manhã em 1974 me deram
a roupa, eu ia sair no GandhiGandhy! A gente desceu. V viemos para Santa Luzia,
Caixa d’Água, Lapinha, Taboão, Pelourinho (...) Fazenda Grande! (risos) A gente saiu
meio dia do Tejo e recolheu uma hora da manhã!”

(Ainda Gil?): “O Filhos de GandhiFilhos de Gandhy é religioso. É Oxalá orando para


Exú faça seus trabalhos, aqui é um espaço sagrado dentro do espaço profano no
carnaval, e vice-versa. É uma coisa muito linda e uma coisa que não pode acabar. É por
isso que estou. (...). Quando eu estou no GandhiGandhy eu gosto do canto e da dança do
Ijexá, e me sinto parte integrante, molécula, partícula de uma coisa grande, que é o
canto e a dança da Bahia, o canto e a dança do candomblé. É se diluir.... Os que vieram
da África, a tradição do candomblé... O mais interessante é que isso é muito grande,
tanto para o passado, que se dilui, que se estica no passado e se estica no futuro. E que a
gente é uma partícula quântica na passagem do momento em que a gente canta e dança.
Insubstituível o momento. Tem muitas coisas boas na vida, mas tocar seu agogô ali na
avenida é...é...., não dá nem para falar. (Choro contido).”). ”

Um ponto diferenciador do carnaval é que, na Bahia,a a concentração está nos


desfiles de trio elétrico, enquanto, no Rio, há o carnaval de rua e os desfiles das escolas
de samba como principais pontos do carnaval. No Filhos de GandhiFilhos de Gandhy de
Salvador empresas patrocinadoras se interessaram em apoiá-los, com financiadores.
Eram empresas ligadas a sabão em pó, por exemplo. Afinal o Gandhy é um bloco com
uma predominância do branco, de algo limpo, extremamente branco. e toda uma Hoje
sua história intensa de lutas fez dotornou o Filhos de GandhiFilhos de Gandhy na Bahia
uma das maiores associações carnavalescas da cidade. cidade. Conforme apresentado
no vídeo em 1999, ano de seu aniversário de cinquenta anos de fundação, onde foram
mais de 16 mil homens desfilando na cidade.

Contudo, na Bahia o problema é quantidade de foliões, “Gandhyns”, reforça o


discurso a administração do Afoxé. São muitos homens e a restrição da bebida não é
respeitada por todos. Neste momento há o relato de Neto, pois o conselho
111

administrativo do Gandhy foi convocado pela Secretaria de Segurança de Salvador em


1999 para conversar sobre o tamanho do Afoxé, pois extrapolava o limite das ruas e da
própria possibilidade de segurança dos foliões, dentro e fora da corda.

Neto: “O que é lindo de se ver, um mar branco, calmo, sereno, pleno, mas que na
prática é muito complicado de se organizar.organizar. ” Um dos fundadoresEle mesmo
questiona no meio do filme; “Ccomo se controlar dezesseis mil homens durante o
carnaval ? ”

A O representante da administração do Filhos de GandhiFilhos de Gandhy da


Bahia falaressalta no filme; “-Nós temos cadastradas 12.438 pessoas, mas nem todas
saem na sociedade, muitos viajam, outro tem problemas. O pessoal acha que o Filhos
GandhiGandhy tem que ser uma entidade pobre, mas nós temos de acompanhar a
evolução dos tempos.... Foi sugerido pela polícia, e particularmente pela Secretária de
Segurança, e nós estamos atendendo até a reinvindicação dela. É quando o grande ficou
muito grande. [O ideal ] é que o bloco tenha seis mil associados, hoje nós temos doze
mil associados. Então para que nós possamos fazer uma redução, nós estamos fazendo
uma reciclagem, através do comportamento dos foliões, verificando a facha faixa etária
de idade e pessoas que respeitem nossa filosofia de “não à- violência”.

Há nestas falas a busca por uma razoabilidade entre o tamanho do bloco e o


funcionamento da entidade com recursos provenientes da venda das fantasias aos
associados e turistas. Um retorno a uma perspectiva a tradição também é colocado. Há
um moneto em que um folião vestido com as roupas do Afoxé, Antônio, com seu filho
no colo cede uma breve entrevista ao filme: “To com muito medo da tradição do nome
do Gandhy ser quebrada. Evidentemente que nós não podemos pensar em só satisfazer
os outros porque querem sair. Nós temos que ter uma seleção. Tudo que é bom tem que
ter uma seleção, né?.”.(Antônio, 1999). Além disto, é colocado que as ruas de Salvador
são estreitas e que o contingente destacado pela polícia sempre será insuficiente com a
quantidades de Gandhyns, que só faz crescer a cada ano.

O Afoxé Filhos de GandhiFilhos de Gandhy no Rio de Janeiro sobrevive de


espetáculos independentes e convites para apresentações durante o ano, tendo duas datas
de festejo importantes: a Festa de Iemanjá, no dois de fevereiro, e o aniversário do
Afoxé em 12 de agosto. Sua sede, situada a à rua Camerino, bem em frente a à Praça do
Estivadores é uma das muitas disputas de significados territoriais, culturais e religiosos
na região. O prédio pertence ao governogoverno federal, já há um projeto dos Filhos de
112

GandhiFilhos de Gandhy para sua restauração interna, mas o pleito de reconhecimento e


escritura do prédio ainda tramitam dentro do governogoverno, sem perspectiva de se
concretizar num futuro próximo.

Insersir sub-título

4.5 Resistências, Lutas e Glórias: Os Filhos de Gandhy no Rio de Janeiro

(Sede do Afoxé Filhos de Gandhi. Foto do meu acervo)

Vi esses dizeres; “Resistência, Lutas e Glórias” no meu segundo encontro com


Antônio Carlos Machado, na Festa de Iemanjá de 2018. Era parte de sua indumentária,
funcionando com um cinto em tecido azul e escrito em branco. Aos poucos fui
familiarizada como pesquisadora e foliã do bloco.

Participei de reuniões na casa de Antônio Carlos Machado, presidente do


Ganghy pror 20 anos, na companhia de Thiago Laurindo, vice-presidente,
tambémambos hoje afastados por problemas de saúde. Meus encontros com Machado
aconteceram, na sua maioria, em um banco verde na praça da Harmonia, sempre com
sombra e vento. Ele sabia quem havia plantado a árvore que nos fazia sombra. Há dois
113

bares nas imediações, azulejos brancos, arruda, um São Jorge e diversos adesivos, como
“Aqui tem pescador, caçador e muito mentiroso também. ”também. ” .

A praça da Harmonia não tem grades, diferente das maioria de praças situadas
no centro da cidade. Foi uma das primeiras coisas que pensei quando cheguei lá e é
muito arborizada, contei quase vinte árvores dessas de troncos largos e copas grandes.
Tinha até um pinheiro sofrendo com o calor carioca, em frente ao bar, ainda adornado
com bolinhas de Natal. Haviam crianças na tradicional corrida atrás de pombos. Um vai
e vem de pessoas da região, algumas paravam para cumprimentar Machado.

O então presidente Antônio Carlos Machado, mMorador do bairro da Saúde,


Machado esteve no cargo de presidente por vinte anos consecutivos a à frente do
Afoxé. Ele me diz que dispunha de tempo, é aposentado da Marinha e trabalha como
autônomo, quando e onde quer, o. O que lhe concedia permitia bastante liberdade para
atuar junto ao grupo nos pleitos administrativos e na organização das saídas do bloco a à
rua e tambem também da junto à AssosciaçãoAssociação de moradores do Bairro da
Saúde. Machado é branco e iniciado no candomblé Gegê há mais de quinze anos. “Eu
queria saber, antes de assumir o GandhiGandhy, se o santo queria isso... Não é só a
minha vontade que vale. Eu já estava no Vizinha Faladeira, tínhamos uma chapa que
tinha força para ganhar. Até que o Guerra me chamou. Falou comigo. E pediu para ser
seu vice. Eu sabia que ele já estava doente. Sai da chapa do Vizinha e entrei no
GandhiGandhy. Eu não conhecia nada de Afoxé. Fiquei um tempo na roça
[recolhimento ritual do candomblé], e só peguei quando eu cumpri todas as minhas
obrigações. Era o meu tempo e o tempo do orixá. ” (Conversa pessoal Machado, 2019.
Conversa pessoal)

Ao final do ano de 2018, ele passa passou adiante seu posto na presidência por
problemas de saúde derivados de um a diabetes. Como gandhista, oO antigo presidente
me relata que ainda quer o bem do GandhiGandhy, mesmo que afastado de sua
presidência e afirma , ele acreditar ser importante a participação da cidade junto ao
Afoxé. Ele continua frequentando suas reuniões exatamente para se manter dentro dos
assuntos relacionados ao bloco. A luta pelo por um espaço físico para o bloco é
atualmente a mais importante ali dentro; , precisa-se de uma reforma urgente na Sede do
Afoxé, mas para isso, segundo ele, tem de seé preciso “saber por onde caminhar dentro
da política”. Esse ponto é visto como extremamente necessário para estruturação e
autonomia do bloco fora da época de carnaval.
114

Notadamente política e cultura aqui não são separáveis. Os Filhos de Gandhy


tenta aos poucos uma aproximação deste meio para ser reconhecido como patrimônio da
cidade, pois com tal status seria possível a reinvindicação de uma sede própria e a sua
possível recuperação através de uma reforma.

(Fonte: https://www.facebook.com/Filhosdegandirjoficial/)

Alguns temas sempre vinham em nossas conversas, como ser um bloco de


carnaval e ainda sim ser fiel as às tradições do candomblé? Como viver as demandas do
Afoxé sem incentivos políticos ou comerciais? O que falta para a patrimonilização do
GandhiGandhy? Você foi/é feliz no GandhiGandhy?

Ele, sempre muito sereno nas palavras, com um tom de voz bem baixo, me
explica que ali “é o sagrado e o profano”, que o GandhiGandhy segue alguns preceitos
do terreiro, mas que “ali não é terreiro”. Retomasse a quebra da dicotomia colocada pela
Sociologia. Que a parte carnavalesca deveria ser valorizada para trazer mais pessoas ao
bloco e assim apresentar que o sagrado pode fazer parte de um momento feliz, e sem
violência, que é o carnaval. Para cGostaria de ter mais meios para conseguir fazer as
fantasias para das crianças que saiamsaírem. Para marcar que ali é religioso e também é
carnavalesco e que . Que há espaço para os dois dentro do Afoxé. Em outras palavras, a
distinção sagrado x profano, cara para a teoria social, não faz sentido segundo a
perspectiva do Filhos de Gandhy: segundo eles, o bloco dissolve, na prática, essa
distinção ou, antes, impede, através de suas práticas, que ela aconteça.
115

Participei de reuniões na casa de Machado, na companhia de Thiago


Laurindo, vice-presidente, também hoje afastado por problemas de saúde. Meus
encontros com Machado aconteceram na sua maioria em um banco verde na praça da
Harmonia, sempre com sombra e vento. Ele sabia quem havia plantado a árvore que nos
fazia sombra. Há dois bares nas imediações, azulejos brancos, arruda, um São Jorge e
diversos adesivos, como “Aqui tem pescador, caçador e muito mentiroso também. ”.

A praça da Harmonia não tem grades. Foi uma das primeiras coisas que pensei
quando cheguei lá e é muito arborizada, contei quase vinte árvores dessas de tronco
largo e copa grande. Tinha até um pinheiro sofrendo com o calor carioca, em frente ao
bar, ainda adornado com bolinhas de Natal. Haviam crianças na tradicional corrida atrás
de pombos. Um vai e vem de pessoas da região, algumas paravam para cumprimentar
Machado;

Conversa com Seu Antonio Carlos Machado:Em nossas conversas sempre ressaltamos o
bairro da Saúde, onde ele mora a mais de trinta anos. Os bairros que compõe a Zona
Portuaria, segundo ele, foram divididos a sem qualquer consulta previa aos moradores.
Tanto que a Igreja de Nossa Senhora da Saúde de 1750 está no Bairro da Gamboa, me
exemplifica ele indignado. Aos poucos nossas conversas são exemplificados pelos
pedestres que ali estavam;

*Começamos falando sobre o bairro da Saúde, Gamboa e Santo Cristo

“Sabe aquela senhora ali, essa pequenininha. Ela já foi chacrete, mesmo com esse
tamanho. Na televisão ela parecia enorme. ”(...) Ali, naquela porta verde, ta vendo? Ali
foi assinada a criação do Vasco da Gama. Ali mesmo. E ninguém sabe disso. Eles
querem que essas histórias morram.”

Entendo que eles são representados pelo poder público, em suas diferentes
esferas, e pela nova e velha população que exige mudanças estruturais para se adequar
as novidades trazidas pelo Consórcio Porto Maravilha e agregar valor aos seus imóveis.

“Aqui em cima, esse prédio ali eu chamo de pombal, casa de pombo, ali é uma área de
bem entorno de bem tombado Federal. Nós queríamos uma área de laserlazer. Aquilo ali
é da esposa dos Cotarianos, ela não tinha o que fazer com aquele terreno e nós
praticamente tínhamos a doação do terreno e, mas o governogoverno não nos permitiu.
Ai Aí quando entrou o Cézar César Maia, o Augusto Ivan – não me lembro que cargo
ele ocupava - estava numa posição muito privilegiada. Ele conseguiu com o ISPHAN,
116

agora IPHAN, a possibilidade de construir. E hoje nós temos estamos a 20 metros do


bem mais precioso da região, que é a Igreja de Nossa Senhora da Saúde, cuja construção
começou em 1742 e terminou em 17456 e foi o que deu nome ao bairro. No e o entorno
de qualquer bem tombado pelo governo não se pode construir nada em um raio de 500
metros, não pode se erigir edificações. É Construíram um conjunto com dez ou doze
prédios, muito antes de se pensar na revitalização atual, um empreendimento particular
de apartamentos. Eu tenho tanta raiva daquilo que eu nem nunca me interessei em ir
naquele negócio. Isso não foi do governogoverno não, foi particular, teve o apoio de
alguns sindicatos... mas eu nunca busquei saber muito porque eu tenho raiva daquilo
lá.”

Ele fala do conjunto habitacional, Condomínio Moradas da Saúde, que fica na


parte alta do bairro da Gamboa, um condomínio amarelo composto de 12 prédios cada
um com quatro apartamentos por andar. E que irregularmente, segundo Machado e a lei
de Patrimonialização, não poderiam ser construídos ali, pois estão muito próximos a
Igreja de Nossa Senhora da Saúde, principal elemento do bairro, datado do sec. XVII.

“O Augusto Ivan que foi o grande mentor, digamos assim, idealizador da preservação
do Rio de Janeiro, começou com a preservação do centro da cidade. Esqueci o nome
que tinha no centro da cidade ,foi o que nos espelhou para fazer o e projeto SAGAS,
projeto de uma área de preservação ambiental e tombamento nos bairros Saúde,
Gamboa, Santo Cristo e parte do centro da cidade. foi baseado no centro da cidade. E
nós nos espelhamos nesse projeto. E vem exatamente ele... e constrói esse pombal! Não
pode! A Igreja é tombada, nada pode ser construído em seu entorno.”

Ele fala da política carioca com propriedade, conheceu todos os grandes


idealizadores de obras na região como por exemplo a geografa Nina Rabha, Augusto
Ivan e Brizola. Lembra de datas e situações que envolveram o bairro com linearidade.

“O galpão da Ação da Cidadania também era tombado pelo IPHAN e preservado pelo
Projeto SAGAS, não sei se agora ainda é, tá um tal de destombamento ai... E neste caso,
a justiça já bateu o martelo e deram trinta dias para a Ação da Cidadania sair e deram
um prazo para a o governogoverno federal utilizar a verba que estava no orçamento do
ano passado para fazer o mMuseu da Escravidão e o município também está com prazo
para cumprir a sua parte. Porque existe compromisso do Brasil com a ONU com relação
ao que deve ser feito por conta do Cais do Valongo, patrimonializado em .2018. ”
117

Durante algum tempo ele participou como integrante da comissão técnica do


bairro, trabalhando diretamente para a prefeitura durante quase dez anos. Após a
chegada de Nina Rabha ele foi exonerado do cargo, pois “ela não se dirigiria a um
funcionário que não fosse técnico”, nas palavras dele.

Ele me conta triste de um processo de “despreservação” de imóveis nos bairros que


compõe a zona portuária. “Nesse caso houve o “destombamento” de muitos prédios e
imóveis preservados, de 1884 [prédios e casas], e até onde eu sei, hoje nós não devemos
ter nem 1100 imóveis preservados. Houve uma permissivicidade muito grande com
relação ao projeto SAGAS., do Augusto Ivan. Logo ele.”

Com muita batalha no meio politico a área de proteção patrimonial e ambiental


foi aprovada como lei. Assim o zoneamento da região se alterou. “Aqui é zoneamento é
de área doisdomiciliar, não é permitido ter indústria, mas há. Industria Indústrias não
são permitidas no centro da cidade. Aqui é zona residencial dois, onde só é permitido
comeércio de coisas voltadoas para os moradores. Aqui haviam antigamente muitas
gráficas aqui que tiveram que acabaram, essa indústria aqui atrás de nós produz
equipamentos de medição elétrica... não são voltados aos trabalhadores... moradores...
ele sabem que estão errados. E a Prefeitura não faz nada...”

“Só nesse pedacinho [no quarteirão em frente a Guarda Militar tinham havia], na Praça
da Harmonia, havia dez a quinze gráficas, agora tem no máximo três e estão fechando
aos poucos, as pessoas não percebiam o barulho durante o dia, mas durante a noite que
você percebia o barulho do moinho fluminense e das gráficas juntos... eE não dava. Mas
pior que o barulho, para o imóvel, era a trepidação. Muitos imoveis imóveis vieram
abaixo por causa disso ou, pegaram fogo. Porque esses imoveis imóveis antigos por
dentro é sapê (mandeira entrelaçada com barro), então a facilidade de incêndio é muito
grande. O barro é alto transmissor de calorias e no esquentar da madeira pegava fogo...
Pega.... Pega fogo com muito mais facilidade que outros materiais.materiais. ”

Retomando a política há uma grande crtica aos governos que sucederam ao


Brizola.

“E ele [Augusto Ivan] se aliou ao Cezar César Maia, que era contra a preservação, e saiu
permitindo tudo. O Eduardo Paes também era contra a preservação, mas isso caiu como
uma luva no projeto do Pporto Maravilha. O projeto aqui era de “arrasa-quarteirão”.
Fomos nós na Associação de Moradores da Saúde que não deixamos. ”
118

O projeto aqui era de “arrasa- quarteirão”. Fomos nos nós na associação que não
deixamos.

Entre todas as histórias relatadas a divisão dos bairros da zona portuária é a mais
discrepante de todas as que já ouvi quanto ao poder público e sua atuação no
zoneamento. “Em 1976, o governogoverno que fez a divisão dos bairros: Saúde,
Gamboa e Santo Cristo. Colocou a Igreja de Nossa Senhora da Saúde na Gamboa, o
morro da Gamboa no Santo Cristo e por ai aí a fora......, Masmas nesse governogoverno
ele quase demoliram o José Bonifácio (hoje Centro Cultural) para construção de um
Hotel, ela é uma das cinco primeiras escolas do Brasil.! De pé só tem ela e a Mário
Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado.Machado. ”

Durante o tempo que trablhoou na prefeitura delegaram a ele a função de fazer a


administração do Centro Cultural José Bonifácio. “Ali é um espaço de memória [Centro
Cultural José Bonifácio], é lá que está alocado provisoriamente o Mmuseu da
Eescravidão. Na realidade, é um espaço mais democrático para se discutir a negritude,
ali a negritude pode conversar sobre os seus problemas sem constrangimento, é o espaço
próprio pra isso. Mas que perdeu mais suas características iniciais.iniciais. ”

Com relação a memória da Zona portuária praticamente todo prédio tem uma
história. Machado me apontava que em cada lugar havia um evento marcante em
alguma época, como a história da assinatura de criação do Clube de Regatas Vasco da
Gama, em 1898 na Saúde.

Grande parte de seu passado ali, conta ele, a população era bem diversa e
predominantemente de migrantes nordestinos, estivadores negros e antigos português e
seus descendentes. Quando ele propôs a ideia de preservação arquitetônica e ambiental
houveram resistência por parte de todas as camadas com quem conversou. Apenas um
argumento foi utilizado ao fim; “Vocês todos vão perder suas casas! Assim lotei 2
ônibus” Ele relata; “A Associação Comercial tinha um plano, era o Centro Comercial
Internacional de Comércio, construir aqui um retro porto onde os exportadores e
importadores teriam aqui um centro de comercial. Eles já tinham uma maquete, que os
moradores não tinham conhecimento, eles colocaram em exposição num prédio lá na
Rio Branco e eu me passei por estudante de arquitetura, fotografei e trouxe. Apresentei
num seminário aqui, na estiva”. Neste momento havia uma forte desmobilização de
todos os sindicatos ligados ao porto, o que para ele fazia parte de todo esse plano de
119

destruir o bairro. “Os comerciantes internacionais teriam ali naquela região uma área
grade de comércio de produtos já trazidos do exterior ou que seriam vendidos para fora
do Brasil.”

Quando eu cheguei aqui o bairro era composto de estivadores; negros,


nordestinos e portugueses. Tanto que a grande dificuldade de se implantar a
preservação, a memória, a consciência de preservação, foi muito grande porque a
maioria dos moradores não era daqui, estavam de passagem para outros lugares. E os
mais antigos viam o bairro como decadente, que deveria ser posto abaixo. Não tinha
apoio dos antigos e nem dos novos... Aquilo que eu te falei eu passei na casa de cada
proprietário e falei que eles iriam perder suas casas, pois já havia um projeto de
remodelação do bairro. Eu lotei dois ônibus para aprovar a lei. A Associação Comercial
tinha um plano, era o Centro Comercial Internacional de Comércio, construir aqui um
retro- porto onde os exportadores e importadores teriam aqui um centro de comercial.
Eles já tinham uma maquete, que os moradores não tinham conhecimento, eles
colocaram em exposição num prédio lá na Rio Branco e eu me passei por estudante de
arquitetura, e fotografei e trouxe. Apresentei num seminário aqui, num seminário na
estiva. A desmobilização de todos os sindicatos do porto fazia parte de todo esse
movimento.

Depois que nósFoi desta forma que engajei os moradores, em torno da posse de suas
casas. Eles conseguiram aprovar a lei de conservação do bairro. Não se pode cortar uma
árvore sem que tenha autorização, assim como alocar fábricas que não seja em benefício
dos moradores, não podem haver mais industrias na região da Gamboa, Saúde e Santo
Cristo conseguimos a preservação, esse projeto foi por agua água a baixo. Ele resume
“Mas sSe não fosse o projeto SAGAS¹ nós não estaríamos aqui mais
conversando.conversando.” O que eu falei para os moradores era que eles fossem lá
defender suas casas no centro da cidade. Lotei dois ônibus.

Com o NEPLAC (Núcleo de Estudos em Planejamento Conflitual) verificamos


que há muito imóveis à venda e alguns poucos para aluguel, durante a pesquisa
organizada por Thiago Pinto verificamos comoO aluguel o aluguel nessa região era
caro. O que foi ratificado por Machado; “Aqui nunca foi barato, sempre foi muito caro
morar na Saúde. Quando eu cheguei aqui no Rrio, um quarto valia um salário mínimo.
Hoje já está um pouco menos, mas ainda é caro. Eu vinha e voltava da Marinha fardado,
hoje você já pode alugar um armário lá, mas meuio salariosalário era muito baixo, hoje
você só pode entrar a à paisana. Eu saía daqui todo de branco.”
120

Começamos E com aquele negocio de inflação galopante, tinha que pegar antes
do cara remarcar o que você estava pegando porque se não já ficava mais caro.

o assunto do Filhos de Gandhy quando perguntei se ele estava indo as reuniões


para a saída do bloco deste ano. Ele diz que sim, mas não estava diretamente
comprometido com obrigações desta vez. Felizmente Machado se recorda com
felicidade os momentos que este à frente do Filhos de Gandhy, mesmo com todos os
problemas. Ele conta um pouco de como ele chegou ao bairro para me demonstrar que a
credibilidade é construída aos poucos, através das atitudes que se tem frente as
necessidades do bairro, por meio da Associação de Moradores, e dos blocos, Vizinha
Faladeira e Filhos de Gandhy.

Sobre o Filhos de GandhiFilhos de Gandhy:

“-Do GandhiGandhy eu so só tenho memorias boas. Eu tTomei conhecimento do


GandhiGandhy em 1982-1983, por ai, quando o então presidente ArruínesÍndio, me
procurou ainda não tinha Associação de Moradores no bairro, ela - só foi fundada em
1983 ele me procurou, alguém indicou pra falar comigo sobre um imóvel que estivesse
desocupado pra ficar o GandhiGandhy, onde hoje é o Instituto da Mulher, ali na
Camerino, esqueci a sigla. E depois onde hoje é a sede do GandhiGandhy. Estava tudo
em ruinas, o imóvel primeiro, o Arruínes Índio conseguiu fazer metade da obra depois
não sei, acho que acabou o dinheiro, o governogoverno reformou ali e fez o CEDIN. Aí
ele optou por um ser menorespaço menor, por onde nós estamos hoje e os custos de
reforma seriam mais baixos. A partir daí ele chamou para participar dos ensaios do
GandhiGandhy, ali onde hoje é a Escola do Tia Ciata, perto do Balança, Mas Não Cai,
fui la fui lá umas cinco ou seis vezes. E voltei a ter contato com o GandhiGandhy
quando o Guerra reassumiu a presidência do Índio e o Guerra conseguiu um espaço no
José Bonifácio. Quando eu cheguei para tomar posse não tinha uma sala desocupada. O
Filhos de GandhiFilhos de Gandhy foi parar na cozinha. Comecei a conversa com o
Prestinho, que era o organizador até então do espaço no Centro Cultural José Bonifácio,
que precisava fazer a secretaria do cCentro cCultural José Bonifácio, aí comecei a
empurrar o pessoal e fui liberando espaço. E eles temtodos têm a maior consideração
por vocêmim, porque você conseguiueu consegui expulsar a gentequase todo mundo
sem a gente ficar com raiva de vocêsem ninguém ficar com raiva de mim. (Muitos risos
e passa o carro do ovo). E foi indo até que eu liberei 80% para o Centro Cultural. E dei
uma sala para o GandhiGandhy. E um conhecido meu, que era também conhecido do
Guerra, presidente do Gandhy na década de 90, e era do GandhiGandhy falou com o
121

Guerra para conversar comigo. O Guerra não queria. E ele convenceu o Guerra a
conversar comigo. Ele e o Rubin. Nisso que eu consegui a sala para o GandhiGandhy
ele ficou muito feliz e me convidou para participar da diretoria dos Filhos de
GandhiFilhos de Gandhy. Expliquei que eu não sou nem da religião, não tinha como
para mim eu estava no Vizinha [Faladeira.]. ”

Passou um tempo, o Guerra estava ficando cada vez mais doente e Machado
conta que Nno ano seguinte o vice- presidente saiu e ele me colocou no lugar dele, meio
que na força. “Eu não entendia nada de Aafoxé! AiAí passou os tempos, uns quatro
anos, e o Guerra meio doente falou: “-Se prepara pra ser presidente.presidente. ” Quero
não, disse eu logo.logo. ” Não adiantou não querer E nessa brincadeira se passaram
mais uns dois anos. E e nisso eu pegueiele ficou de vice no Vizinha o vice do Vizinha
Faladeira, e se preparava para as novas eleições. “nNossa chapa era forte e íamos tentar
de novo, fiquei afastado do GandhiGandhy esse tempo. Ai Um dia me deu vontade de
ir no GandhiGandhy para ver e Guerra disse diretamente para mim; “Vvocê vai ter que
assumir o Filhos de GandhiFilhos de Gandhy., Isso foi em 1998. E me lembro de ter
falado com ele que Nnão dá eu porque eu não sou conhecido pelas outras pessoas do
Afoxé, o pessoal não vai me aceitar... E ele foi direto, “-Se você não assumir o Filhos de
GandhiFilhos de Gandhy eu tranco, fecho a chave e jogo fora! Não tem ninguém aqui
no nosso meio que eu confie. ”confie. ”

Machado me relata que ele não poderia ver uma entidade como aquela fechar.
Eram quarenta e oito anos de história. Ele pediu um tempo para se desvencilhar da vice-
presidência do Bloco Vizinha Faladeira e da nova chapa que havia montado. E houve
outro ponto, Machado nunca foi de casa de axé, seja candomblé ou umbanda. Em
acordo com o presidente e ele pediu permissão para verificar na religião se era isso
mesmo o que ele deveria fazer; “Você vai me dar um tempinho porque eu vou me
confirmar na religião, porque eu não vou assumir sem isso. Eu sei que quando terminou
o carnaval eu fui suspenso e o Guerra ficou muito doente, deixei na mão de um amigo
dele, o Cacau, enquanto ia fazer o santo. E nesse momento eu assumi em 2000. Eu tinha
me confirmado ogã as pessoas passaram a me olhavam de outra forma, isso facilitou
bastante no diálogo com todos, mesmo eu sendo branco. Eu era da religião.” (Cara,
fechar uma entidade de 48 anos, pensei). Então vamos fazer o seguinte, vou avisar lá no
Vizinha para me tirarem da chapa e ele achar outra pessoa. E você vai me dar um
tempinho porque eu vou me confirmar na religião, porque eu não vou assumir sem isso.
Eu sei que quando terminou o carnaval eu fui suspenso e o Guerra ficou muito doente,
122

deixei na mão de um amigo dele, o Cacau, enquanto ia fazer o santo. E nesse momento
eu assumi em 2000. Como eu tinha me confirmado ogã as pessoas me olhavam de outra
forma, isso facilitou bastante. Eu era da religião.

O candomblé é uma religião muito poderosa. Ela deixa as pessoas poderosas,


mexe muito com a potência das pessoas. Seja para fazer o bem ou mesmo para fazer o
mal. Em seu relato que conta que muitas mandingas foram mandadas para ele. “Era um
posto de importância e responsabilidade ser presidente do Gandhy, e muitos outros
queriam. A inveja é isso, mas ninguém me derrubou. Consegui entender o candomblé e
traçar um rumo.rumo. ”Como as pessoas são do candomblé e o candomblé pode tudo,
acham que podem fazer, acontecer e falar... depois faco faço uma mandinga, porque eu
sou mais forte e tal. O fato deu ser confirmado me facilitou. Começam a mandar
trabalho pra cima de você e eu consegui me defender daqui e dali, mas ninguém me
derrubou. Consegui entender o candomblé e traçar um rumo.

Contudo, como toda associação de pessoas a união é o principal no Infelizmente


a união é muito fragilizada, porque com união se dá para fazer as coisas, nós seriamos
uma potência... grupo es este tipo agrupamento não se consegue avançar dentro e fora
do carnaval; “Nnão formam um fecho de lenha, sabe, e trabalham contra você. Você
constrói e vem outro destrói. Foram quase vinte anos de Gandhy. Isso me deu uma
vivência, eu ganhei não só em termos de organização social, mas de experiência
pessoal. E acho que dentro do Gandhy, exerci uma função bastante importante para que
permanecesse, para que o Gandhy estivesse vivo até hoje. ”

Foram vinte anos de GandhiGandhy. Isso me deu uma vivência, eu ganhei não
só em termos de organização social, mas de experiência pessoal. E acho que dentro do
GandhiGandhy, eu exerci uma função bastante importante para que permanecesse, para
que o GandhiGandhy estivesse vivo até hoje.

Como já dito Afoxé é a união do sagrado com o profano em um mesmo


momento. É o candomblé que pode ser levado as ruas, para que todos brinquem no
carnaval e conheçam a religião entendam a filosofia que é a dos Filhos de Gandhy.
“Acho que houve uma mudança, da identificação do afoxé como entidade carnavalesca
e não só como entidade religiosa. Durante a minha gestão a identificação foi uma
entidade carnavalesca voltada a à religiosidade, como o novo presidente quer voltar a
trazer o terreiro para dentro do Afoxé. Então eu não admito que o afoxé seja uma casa
de terreiro, casa de terreiro é sua a casa, a casa de cada um. Tem preceitos que você não
123

pode deixar de fazer, mas é carnavalesco. Aqui é onde as pessoas das casas de terreiro
vem vêm se divertir.divertir. ”

Por exemplo, ele me explica, o presente de Iemanjá é um preceito religioso, mas


que neste momento dentro do Afoxé é também voltado para a população, para os
turistas, para os candomblecistas sem casa.Nós conversamos ontem, com uma amiga de
um bloco, sobre o presente de Iemanjá é um preceito religioso, mas é voltado para o
turismo. Obviamente há rituais e segredos dentro da feitura do presente, mas a
brincadeira de rua durante o meio dia, quando as pessoas podem sair de seus trabalhos
para almoçarem, quando o nosso pessoal que vem da Baixada Fluminense consegue sair
e vir para a sede, quando tem turistas visitando o Boulevard Olímpico e os Museus tem
de existir. “É a interlocução com o a comunidade, com as pessoas. Claro que tem um
segredo que é nosso, mas não é o mesmo que uma casa de candomblé. E me disseram
que não poderia pegar o sol de meio dia, mas no terreiro se pega o sol de meio dia... É
exatamente no sol de meio dia porque da dá para as pessoas fugirem no almoço para
acompanhar, porque o pessoal que vem da baixada pode vir para acompanhar e a partir
de meio dia que você pode fazer um almoço Ddepois da saída e colocação do balaio ao
mar há com uma festa que vai começar duas ou três horas da tarde e vai acabar as às
oito da noite, com palco, venda de bebidas e comidas.” A festa de Iemanjá do ano
passado teve duas ou três mil, segundo a imprensa, a festa foi linda antes e depois, me
lembro de ter voltado par casa muto feliz com o que tinha visto, mesmo extremamente
cansada.

Ele relembra; “Eu Quando ele começou no Afoxé tentou-se durante um tempo
fazer como nos terreiros, vigília e entrega do balaio pela manhã. Não deu certo.tentei
um tempo, bem no início, fazer a vigília e quebrei a cara. Naquela época eu pensava
que o Gandhy era uma extensão da casa de candomblé, e cheguei a uma conclusão de
que não era! Tem todo um embasamento que saia ao meio dia. Naquela época eu
pensava que o GandhiGandhy era uma extensão da casa de candomblé, e cheguei a uma
conclusão de que não era! E levei o GandhiGandhy para o profano, porque é a forma
que desenvolvemos.

Foram muitas conquistas desde a fundação do Afoxé, eles Cconseguimosram


manter aquela sede pedida pelo Índio em 83[na rua Camerino], conquistada pelo Guerra
em 1995[invadida duas vezes depois de expulsão da polícia], onde eles estão hoje.
Machado relata mas que eu assumiu estava em precaríssimas condições a presidência e
a sede., Hhoje, podemos dizer que está só está apenas precário; “. Eu tirei nove
124

caminhões de entulho de nove metros, isso da 81m² de entulho. nNós tiramos dali!.
Consegui que aquilo ali pudesse ser usável.usável. ”

E conclui; “Finalmente se conseguiu Conseguimos colocar o Filhos de GandhiFilhos de


Gandhy em evidencia evidência para a cidade e para estado. Com a ajuda do Thiago
Laurindo, que coordena toda a parte política e acadêmica do ganhamos Afoxé
recebemos a Medalha Pedro Ernesto, e futuramente recebermos estamos marcando a
data para a Medalha Tiradentes, agendada para março... Há o pleito junto a bancada do
PSOL para nos tornarmos Patrimônio Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro...
Conseguimos uma infinidade de coisas, emAo longo de 2017 foram 82 54 atividades
durante o ano, das mais diversas, escolas, rua, museus, solenidades... O GandhiGandhy
ganhou visibilidade! Passamos a ser reconhecidos, como éramos no passado, voltamos a
ganhar essa característica de um bloco serio sério que se impõe pelo respeito. Isso eu
acho que é um legado que eu deixei”.

A festa de iemanjá do ano passado teve duas ou três mil pessoas na saída do
balaio, cobertura da mídia, pessoas importantes, uma festa linda depois.

Teve uma época que ficaram buscando sede, que o Gandhy ficou aqui, perto daquela
casa amarela ali. Quando o maior presidente do Gandhy faleceu, o Assunção, o Gandhy
ainda ensaiava lá no Clube Brasil, na rua do Cajueiros. E veio para cá. Depois foram
para quadra da Estácio. E de lá saíram para Praça XI na esquina da Escola Tia Ciata e
depois José Bonifácio e finalizou lá na Camerino onde estão há trinta e cinco anos. E
ainda não temos a titularidade do imóvel...

Tenho que lembra de algo muito importante no relato de Machado. Por vezes
ele comentava sobre sua esposa falecida a Até trezes anos. “-Durante aquele tem atrás,
quando minha esposa era viva, nós arrastávamos trinta crianças daqui... todas. Fazíamos
as fantasias para todos de graça. Ela costurava. E talvez esse ano nem tenha fantasia...”
(Machado, conversa pessoal. 2019)

Assim como as conversas com Antônio Carlos Machado acreditei importante


conversar com Thiago Laurindo, sobre suas experiências políticas, religiosas e festivas
junto ao Afoxé.

Entrevista com Thiago Felipe Laurindo:


125

Ele começa me explicando basicamente como chegou ao Afoxé, pois como falei,
Thiago era da Igreja Católica com cargo junto a juventude do bairro da Vila da Penha e
se desvencilhou da igreja a pouco tempo, algo entre seis ou sete anos. “Eu cheguei no
GandhiGandhy por conta de um histórico que eu tenho de família, tem familiares meus
que participam do carnaval. Tem um primo meu que disputa samba, em várias escolas;
àas vezes até rola uma parceira do GandhiGandhy com ele, às vezes. E eu trabalho em
escola como professor de Biologia, uma amiga também professora na escola que já
dançava no GandhiGandhy. E ela falava no GandhiGandhy sempre. Os ensaios, quando
chovia, eram na quadra da FEBARJ, nós saímos de uma passeata na Rio Branco e
fizemos o caminho da ALERJ até a Lapa, ai aí me senti em umo espaço foi bem
acolhedor. eE gostei”. estava até passar mal.

Eu pretendo voltar, não sei se eles vão aceitar, mas é uma vontade, nem de continuar
minha militância. Acho que sem o Machado eu não tenho esse espaço todo...

Diferente da perspectiva de Machado com relação a religiosidade e a vontade de


conhecer o candomblé, ThiagoEu nunca fuifoi de terreiro, eu era da igreja e não buscou
mesmo quando convidado para integrar a direção do Afoxé. Minha mãe é da igreja
católica. Eu por muito tempo participei da igreja na Vila da Penha.

Thiago gosta muito de falar. Muito mesmo. Contou-me algumas histórias


sobreAqui no Rio de Janeiro, o presidente Encarnação, que promoveu algumas
mudanças durante sua breve presidência como a ala, compõe um grupo de dança, as
baianas, as tocadoras de agogô. O que deu força posteriormenteE deu folego para o
nascimento adas Filhas de GandhiGandhy. crescem aqui, que tem oO presidente das
filhas de Gandhy, o Cotoquinho, também é um dos puxadores do Afoxé dos Filhos: “-
Elas estão ótimas, já tem todo o aparato delas, são completamente independente. Hoje
nós fazemos algumas parcerias durante eventos e no carnaval, afirma Thiago.

. E no carnaval eles saem juntos um dia só. Durante todo o carnaval há uma parceria
com as mulheres que elas não só ajudam no dia de saída do bloco, elas têm uma ala só
delas, elas confeccionam as roupas, tem a ala de dança que é independente e algumas
que tocam.

Eu tenho muita dificuldade por responder tudo que é feito agora. Eu to me recuperando
ainda. Como eu tive esse problema e isso também e esse problema também foi fruto
desse desentendimento dentro do Gandhy por conta dessa nova administração e até hoje
nunca me aceitaram. Porque eles acreditavam que era minha atuação que impedia a
126

atuação deles. E eles não tem apoiadores dentro do Gandhy. O Gandhy tem esse
movimento de dar um boom no dois de fevereiro e no carnaval, depois vai ficar em
baixa, como sempre. Porque quem movimentavam as outras datas éramos nós. Eu nem
sei dizer o que eles vão fazer.

Segundo o vice-presidente ele entende quePra para se ter um bloco de carnaval,


tem que ter no carnaval e fora do carnaval também. Ainda mais da forma que está a
cultura, sempre deixada de lado, precarizada, e afirma o que repetia para os integrantes
do Afoxé que: “ qQuem não é visto não é lembrado!”. Eu tinha imprimido isso neles,
mas...

Pergunto a ele que se recupera de um problema sério de saúde se ele se recorda


de momento felizes no afoxé? “ Durante o dois de fevereiro tinha um estandarte, Edi Jô
Auari, e uma dançarina principal, a Iza. Ela tem um papel de destaque no
GandhiGandhy e ela também está meio afastada. E tem a índia, de azul e branco,
especificamente foi um achado do Machado na Beija Flor, porque antigamente o
GandhiGandhy tinha uma ala de índios e uma a mais antiga se vestia, quando ainda não
podiam se ter mulheres de índio. Ele se transvestia como índio e sai disfarçada, até que
demorou um tempo a ver que era ela e não ele. Aí incorporaram ela ao bloco. Depois
ficou um bom tempo sem ter a ala de índios, mas com o aparecimento dessa índia foi
incorporada nesse processo.

Os puxadores da charanga são cotoquinho e o Marcelo Reis, diretor da escola Martins


pena no campo de Santana, ele ta sempre nesses eventos como locutor. Ele sempre ta
nesse processo, porque ele conhece muito e já faz isso bastante tempo nesses eventos,
no Orumilá, por exemplo.

Meus momentos mais felizes no GandhiGandhy são vários, as apresentações no


carnaval, no Circo Voador, os encontros com o Machado onde me sentia acolhido, me
sentia em família. Quando fui chamado para ser diretor... nem queria aceitar, fui
resistente. Eu achava que não merecia, tinha um movimento de mulheres que estavam a
frente, eu fui arrebatado por elas, e achava que elas deveriam estar nessa posição. Só
que como eu não tinha poder de falar que deveria estar ou não, e tinha a Joana e eu
tomei a decisão de entrar.”

Sobre inovações a apropriações da zona portuária ele me conta que tentou levar
ao Gandhy uma linguagem mais nova, pagode, contação de história, feira gastronômica
e artesanato, ocupar o espaço da Praça dos Esttivadores e também a praça que compõe o
127

cais do Valongo. E acabou que deu certo, o pessoal do Gandhy gostou e o público
também. As fotos estão todas estão lá no site de Gandhy, é uma história de luta muito
rica. Foram suor, lágrimas e sangue, como colocado na faixa de Machado.

Aleatoriamente convergimos em um assunto “-Eu só encontro com o Manchado


com blusa de Gandhy, impressionante. Eu nunca o vi com uma blusa diferente. Ele tem
a beça, camisa à beça. Foram muitas histórias, muitos desfiles e muitas camisas. ”

CConverso em outro dia com Thiago Laurindo. Ele demonstra que assim que
estiver melhor voltará ao Gandhy para retomar de onde parou as atividades políticas e
acadêmicas, mas não me convence. O novo presidente Carlinhos quer uma retomada do
Gandhy as suas raízes de matriz africana religiosas e realizar menos festas, como me
relata em uma das nossas últimas conversas após a saída de Machado. Seria o retorno ao
“Velho Gandhy”, com obrigações religiosas, atividades burocráticas de pleito do prédio
e financiamento para a manutenção deste espaço. Eventos como a Festa de Iemanjá,
tiveram outra forma de gestão do ritual até a oferenda ao mar. As fantasias para o
desfile no carnaval não são as prioridades desta administração nesse ano, será a mesma
utilizada no ano passado.

A memória de Thiago e Machado me levam a outras memórias de um passado


que se faz presente hoje. O discurso do governogoverno e das entidades ligadas ao
movimento negro sobre as ossadas encontradas na casa de dona Mercês, proprietária do
Instituto dos Pretos Novos e o Cemitério de Santa Rita. A academia ainda se põe na
“encruzilhada” da ciência, pois são fósseis e as mães de santo (Caponne, no prelo) e o
movimento negro ressaltam a ancestralidade daqueles lugares, daqueles grupos culturais
e religiosos.

Tentasse a toda forma reenterrar as características de matriz africana, seja com o


Afoxé ou mesmo com as ossadas, por vezes negadas pela prefeitura.

O conceito de alteridade perpassou toda minha analise nas entrevistas, no


trabalho de campo realizado com o Afoxé e na trajetória dos cronistas da época, creio
que esta é a principal característica para um bom trabalho de pesquisa, em um agir
constante na preservação e respeito ao outro.

No caso das ossadas, esses outros poderiam ser meus antepassados, meus
bisavósmeus bisavôs que eu não sei quem foram, por exemplo. Não me sinto e não me
128

coloco na encruzilhada levantada por Vassalo (2016), ali é um lugar de respeito, de


reverêencia e de reflexão ao que o Brasil enquanto estado não fez no passado e não faz
no presente, que significa valorizar a herança africana da cidade e combater o racismo
de forma veemente. As ossadas fazem parte de mim, como a África que colore a minha
pele.

Ao retomar aos Filhos de Gandhy, observo o mesmo descaso que se tem com as
ossadas encontradas.

[5.] Considerações finais

Nesta dissertação foram expressadas de diferentes formas as lutas cotidianas do


Bairro da Saúde, dos trabalhadores e do Filhos de Gandhi. Sejam nas mais
emblemáticas como a Revolta da Vacina e Revolta da Chibata, como nas operações
Bota-Abaixo de Pereira Passos.

A época de fevereiro de 2017, iniciei minha pesquisa de campo, dois pontos


eram muitos importantes, a reconstrução/reestruturação da Sede localizada a Rua
Camerino, ao lado do já restaurado Jardins Suspensos do Valongo e em frente a nova
Praça dos Estivadores. O Afoxé lembra as ruinas, em meio à novas fachadas dos prédios
e estátuas gregas novas e um reservatório de lixo moderno no subsolo. Nada foi feito
pela sede.

AA casa que abriga o Afoxé possui um pequeno espaço interno, um palco, onde
acima estão prateleiras para se guardar os atabaques utilizados nas cerimônias, dois
banheiros e uma pequena cozinha verde cheia de panelas de vários tamanhos. Não há
teto no edifício na parte direita, assim como não há água encanada regular ou luz
própria na sede, o que impede reuniões em dias de chuva, festas grandes em seu interior
ou mesmo reuniões noturnas, que neste caso passam a ser realizadas na praça do
Estivadores.

Além da precariedade do antigo prédio do Estado, cujo pleito de ocupação ainda


tramita em esferas internas e eternas do GovernoGoverno, paralelamente há o pleito de
129

patrimonialização do Bloco junto a Secretaria de Cultura do Município, e que este


estava em estado avançado, segundo Machado. Conseguimos importante destaque em
2018 com a medalha Pedro Hernesto e uma homenagem na ALERJ a sua contribuição
cultural na cidade expressa através da medalha Tiradentes futuramente entregue. Além
da busca junto ao Instituto de Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN) ainda sem muita
respostasmuitas respostas. De todas as instituições envolvidaos o Consórcio Porto
Maravilha, é o que mais causa desconfiança e alguns atritos nos eventos realizados no
cais do Valongo, pois não se sabe o que eles querem para aquela região ou para quem
deve ser aquela região.

Hoje há um roteiro de visita guiadas que rememoram o passado negro da região


central denominado Circuito da Herança Africana, que perpassa a parte baixa do centro
nas localidades da Saúde, Santo Cristo, Gamboa, Morro do Pinto e parte da Providência.
Assim como o Rolê dos Favelados, tentativas de se apresentar um Rio de Janeiro fora
dos padrões estabelecidos pela Zona Sul de mar e belas montanhas, estes
guiadosguiamentos são feitos por jovens da comunidade da Providência e buscam
ressaltar a memória histórica negra invisibilizada na região do centro do Rio de Janeiro,
da colônia até nossos dias.

Outro ponto de destaque é a alocação, ainda provisória, do Museu da Escravidão


e Liberdade no Centro de Cultura José Bonifácio. A questão do Museu ainda é
transitória, há um estudo da Prefeitura junto a Universidade Federal Fluminense e uma
série de assembleias populares para a alocação definitiva do Museu, ainda sem sede ou
orçamento definido pela atual gestão municipal, mas que é da vontade de muitos
integrantes do Afoxé, assim como de Machado que ele ocupe o Galpão da Ação da
Cidadania. Há uma pressão internacional para que esse museu seja construído o quanto
antes por parte da UNESCO.

No início dos ensaios e saídas a rua “-Ajayô!”- grita Mestre Caboclinho ao


microfone ao início de todo ensaio. Uma saudação para Oxalá, não sem motivo, todo o
bloco é branco. As referências nas letras e danças a religiões de matriz africana são
inúmeras. Oxalá é o orixá do Afoxé Filhos de Gandhy. Símbolo de calma e paz. No
início de todas as cerimonias, são saudados todos os orixás, tanto nos ensaios quanto
nos desfiles de rua. É um ritual de candomblé a céu aberto, onde há limites
estabelecidos e uma interação com os brincantes do carnaval.
130

Primeiramente, nas atividades de festa externas, há um padê para Exú, entidade


das ruas, que abre os caminhos para a passagem pacífica da charanga. Há para os
participantes a recomendação de não beber durante a passagem do bloco. Estamos num
período de tempo de religioso, mesmo que expressão se dê fora de um barracão, há de
se ter respeito a louvação das entidades e aos mais velhos ali presentes.

Neste momento tentarei ser direta ao ponto que coloca como existência e
narrativas do Afoxé na zona central da cidade, onde houveram muitas alterações
urbanísticas e reformas várias das em diferentes tempos. Existência frente ao capital
especulativo, a demora da concessão da sede para realização da reforma nos corredores
da burocracia estatal, o não incentivo da Prefeitura durante o carnaval, a uma política
eterna da cidade que tenta apagar a memória de um passado escravocrata (Santos,
2011). O Afoxé Filhos de Gandhy resiste e existe naquele espaço, significando as
práticas religiosas do candomblé, tornando possível unir religiosidade e carnaval,
sagrado e profano, desmistificando a logica durkeimiana e proporcionando que no dia
dois de fevereiro haja o cortejo a Iemanjá, dona de todas as cabeças, até do antigo cais
de embarque do Porto, ao lado do recente Museu do Amanhã.

Por fim, ao conversar com Thiago Laurentino, Mestre Caboclinho e Machado


mesmo com as dificuldades de saúde, financeiras e de tempo foi não só uma história do
territorial e das sociabilidades realizadas por um bloco afro-cultura, mas uma imersão
em passados próximos, futuros prósperos e muita festa; “-Sempre haverá o “Gandhy.”

Finalizamos o dois de fevereiro entregando flores e perfumes ao mar, mesmo


com as restrições impostas ao culto pela prefeitura. Foram utilizados materiais de fácil
decomposição e muitas, muitas flores. Retomamos em silêncio para a sede. Uma
reflexão necessária visto as dificuldades e a potência do grupo que faz tudo sem um
incentivo governamental.

No final da comemoração, já cansados, queimados de sol, Thiago pega o


microfone e pede aos Gandhystas, brincantes ou da casa, resistentes daquele longo dia
de fevereiro; “-Toca a zabumba que a terra é Nossa! Ajayô!”.
131

(Fonte: foto do acervo digital do Filhos de Gandhy no Facebook. Fotógrafo Mazé Mixo)

(Fonte: https://odia.ig.com.br/_conteudo/2018/02/rio-de-janeiro/5510564-dia-de-iemanja-e-comemorado-
com-cortejo-e-entrega-de-balaios-na-praca-maua.html#foto=1
Fotógrafo: Estefan Radovicz)

Há neste trabalho fatores que se agregam em tempos diferentes, mas num


mesmo território etnicidade e resistência. Uma região marcada por um dos maiores atos
contra a humanidade. O que é feito destes lugares é de responsabilidade de todos,
antigos, novo e os que virão. A história negra da região central do Rio de Janeiro não é
apenas um ponto dentro as diversas histórias já contadas pela cidade, mas A História da
Cidade. Não haveria Rio de Janeiro sem os escravizados aportados aqui.
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O trabalho destes homens foi enredo de crônicas, enredo de escolas de samba,


musicas, expressões na pintura e na dança. A expressão etnográfica do passado que se
expressa de maneira recente em nossos pensamentos que vemos as intervenções para
uma cidade bussiness (Vainer,2000), preparada para os Mega-Eventos.

Resistência sempre foi adjetivo para se trabalhar na estiva, habitar os bairros


portuários, lutar contra o discurso higienista, brigar por condições melhores de trabalho
e cultuar seus orixás e antepassados. Existência para além das condições básicas, querer
o impossível, querer sempre mais do que o oferecido por governos ou pela academia
que se sucedem invisibilizando a cultura negra.

Há racismo por todos os lados, mas somos nós na academia que devemos nos
rever constantemente para não reproduzirmos a colonização imposta, nos tornando
escravizados e escravizadores de uma Europa arquitetônica e epistêmica. Somos mais e
podemos ir além. O Afoxé Filhos de Gandhy me mostra com sua luta isso todos os dias.

5. Considerações finais

Nesta dissertação foram expressadasapresentadas de diferentes formas as lutas


cotidianas do Bairro da Saúde, dos trabalhadores da estiva e do Filhos de Gandhy.
Sejam nas mais emblemáticas, como a Revolta da Vacina e Revolta da Chibata, como
nas operações Bota-Abaixo de Pereira Passos, que apontam para . Oq que ressalta seu
rico passado de lutas.

A época deEm fevereiro de 2017, quando iniciei minha pesquisa de campo, dois
pontos eram muitos importantes, a reconstrução/reestruturação da Sede do grupo,
localizada aà rRua Camerino, ao lado do já restaurado Jardins Suspensos do Valongo e
em frente aà nova Praça dos Estivadores. O Afoxé lembra as ruinas de um outro país,
em meio à novas fachadas dos prédios e estátuas gregas e um reservatório de lixo
moderno no subsolo da praça dos estivadores. Nada foi feito pela sede por parte dos
poderes públicos.

Grandes vitórias aconteceram como a presença massiva da população na festa de


Iemanjá de 2018. Houve cobertura da televisão e , entrevistas com as representações
133

politicas e religiosas do Rio de Janeiro. Foi o momento do Gandhyi no ano. A grande


festa transcorreu tranquilamente e só terminou às 20 horas da noite. As homenagensA
recém-recebida como a medalha Pedro Ernesto em homenagem ao Afoxé (por iniciativa
do vereadores e deputados ligados as PSOL do...) trouxeram muita alegria e a visão de
que, aos poucos, o Gandhyi enquanto ponto de cultura teria maior visibilidade e
representatividade na cidade. O grupo irá receber a , assim como a ciência da medalha
Tiradentes agendada para recebimento em março deste ano e poderá receber o título de
patrimônio imaterial da cidade, outorgado pela Assembleia Legislativa.gado por...
(IPHAN?)Além da possível patrimonilização ainda esse ano.

A percepção de que o sindicato Resisteência teve grande atuação frente aos direitos
trabalhistas dos portuários também representouam o início de uma luta muito maior para
que houvesse regulamentações trabalhistas mais amplas.

Pontos centrais deste trabalhado foram a historicização dos bairros da zona portuária
como bairros de predominância maioria negra do Brasil colonial até meados da primeira
República, quando as operações de Pereira Passos fizeram migrar essa população para
favelas ou para a zona norte da cidade. O homem- máaquina que passa de escravo a
sujeito de direitos e os reivindica de forma inovadora para o pais.

Há neste trabalho fatores que se agregam em tempos diferentes, mas num mesmo
território de racialidade, etnicidade e resistência: . Uuma região marcada por um dos
maiores atos contra a humanidade. O que é feito destes lugares é de responsabilidade de
todos, antigos, novo e os que virão. A história negra da região central do Rio de Janeiro
não é apenas um ponto dentro as diversas histórias já contadas pela cidade, mas um
capítulo central d’A História da Cidade. Não haveria Rio de Janeiro sem os
escravizados aportados aqui, que literalmente construíram a cidade e alimentaram seus
portos com a força e energia dos seus corpos.

O trabalho destes homens foi enredo de crônicas, enredo de escolas de samba,


muúsicas e , expressões na pintura e na dança. A expressão etnográfica do passado que
se expressa de maneira recente em nossos pensamentos quequando vemos o resultado
das intervenções para uma cidade-empresa bussiness (Vainer, 2000), preparada para os
Mega-Eventos.

Resistência sempre foi adjetivo para se trabalhar na estiva, habitar os bairros


portuários, lutar contra o discurso higienista, brigar por condições melhores de trabalho
e cultuar seus orixás e antepassados. Em busca de uma eExistência para além das
134

condições básicas, querer o impossível, querer sempre mais do que o oferecido por
governos ou pela academia, que se sucedem invisibilizando a cultura e a presença negra.

Há racismo por todos os lados, mas somos nós na academia que devemos nos rever
constantemente para não reproduzirmos a colonização imposta, nos tornando
escravizados e escravizadores de uma Europa arquitetônica e epistêmica. Somos mais e
podemos ir além. O Afoxé Filhos de Gandhy menos mostra isso através de com sua
luta, isso todos os dias.

O conceito de alteridade perpassou toda minha analise nas entrevistas, no


trabalho de campo realizado com o Afoxé e na trajetória dos cronistas da época, creio
que esta é a principal característica para um bom trabalho de pesquisa, em um agir
constante na preservação e respeito ao outro.

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*Páginas utilizadas:

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Filme: O Morro da Conceição (2016) https://www.youtube.com/watch?v=LbGoGICpmuE

Filme: Filhos de GandhiGandhy (1999) https://www.youtube.com/watch?v=9Y-


xBSDotpc

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