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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE TECNOLOGIA
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA
CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO

Colorido tropical, cenários pitorescos:


A cidade brasileira oitocentista na obra de William John Burchell
(1825-1830).

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no
semestre de 2014.2, como requisito para a obtenção do grau de Arquiteta
e Urbanista.

Graduanda: Barbara Gondim Lambert Moreira


Orientador: Prof. Dr. George Alexandre Ferreira Dantas

NATAL/RN
2014.2
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte / Biblioteca Setorial de Arquitetura.

Moreira, Barbara Gondim Lambert.


Colorido tropical, cenários pitorescos: a cidade oitocentista brasileira
na obra de William John Burchell (1825-1830)/ Barbara Gondim Lambert
Moreira. – Natal, RN, 2014.
206f. : il.

Orientador: George Alexandre Ferreira Dantas.

Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura.

1. Arquitetura – Monografia. 2. Representações – Paisagem urbana –


Monografia. 3. Cidade Colonial – Monografia. 4. Viajantes –
Monografia. 5. Iconografia – Monografia. I. Dantas, George Alexandre
Ferreira. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BSE15 CDU 72
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BARBARA GONDIM LAMBERT MOREIRA

Colorido tropical, cenários pitorescos: A cidade brasileira oitocentista na obra


de William John Burchell (1825-1830).

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso


de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, no semestre de
2014.2, como requisito para a obtenção do grau de
Arquiteta e Urbanista.

Aprovado em: ____ de novembro de 2014


BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________
Professor Dr. George Alexandre Ferreira Dantas – UFRN(Orientador)

____________________________________________________
Professor(a): Dra. Angela Lúcia de Araújo Ferreira – UFRN
(Examinador interno)

____________________________________________________
Dr. Pedro Antonio de Lima Santos
(Examinador externo)

Natal / RN
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A painho e mainha, pelo incentivo quando o desânimo se fez presente;


A Leleca, Debinha, Ferbie e Bia, por quando precisaram e eu não estava;
A Leo, pelos sorrisos que fez brotar em meio a tudo isso.
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―Ninguém passeia impunemente sob as palmeiras.‖


Johann Wolfgang von Goethe, As afinidades eletivas.
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Agradecimentos

Essa jornada de noites em claro - e de grande aprendizado - teve a companhia de inúmeras


pessoas, algumas indispensáveis pelo o que sou hoje e outras responsáveis pelas melhores partes
dessa pesquisa. Em primeiro lugar, agradeço a Deus, por me mostrar Sua presença em tudo e todos
que me rodeiam. A Ele só posso agradecer por ter me mostrado que ―tudo tem seu tempo. Há um
momento oportuno para cada coisa debaixo do céu. (Eclesiastes 3:1)‖
Aos meus pais, Iracema e Octávio, construtores de um porto seguro. As minhas conquistas
não seriam possíveis sem o amor, o desprendimento e o carinho de vocês. Obrigada por jamais
duvidarem de minhas escolhas, por sempre segurarem as pontas, pelo incentivo, por entenderem
meus deslizes, ausências e dramas. À mainha, pelo exemplo de força e amor incondicional, pela
sempre terna presença, por se preocupar com coisas que minha cabeça avoada nem sonha, pela paz
que só encontro debaixo de suas asinhas, culpada por me ensinar que dentro de uma pintura há mil
histórias a contar (e as suas ainda são as minhas favoritas). A painho, obrigada pelas orientações
sobre a vida e, mesmo com poucas palavras - sempre tintas com muito amor- conseguir dizer tanto, o
senhor será sempre o meu maior herói, por me fazer ver desde pequena a beleza da paisagem natural
nas nossas andanças e torcer para que ainda existam rincões em que o Progresso não chegue. O que
mais desejamos na vida é fazê-los felizes.
E se falo em nós, é porque fomos divididas em cinco. Eu dedico esse trabalho às melhores
amigas com que Deus me presenteou, minhas queridas irmãs: Bheatriz, Letícia, Déborah e Fernanda,
sempre ao meu lado. Por levarem partes de mim com elas; são as nossas conversas, essas que viram
noites, que completam viagens, que enchem de som nosso lar, que me fazem feliz. Aqui em casa não
cabe individualismo: Tudo foi sempre dividido: brinquedos, roupas, alegrias, tristezas... E as angústias
dessa pesquisa foram também, obrigada pela constante torcida, companhia e conselhos, muitos deles
e saibam que das poucas coisas que eu sei nessa vida, o amor que sinto por vocês é uma das mais
verdadeiras. Perdoem minhas ausências, os livros espalhados, as xícaras de café pela casa, agora
teremos tempo para nos divertir, para conversar, prometo a vocês.
Ao meu namorado, Zoroleo, pela presença tranquilizadora nas horas mais difíceis dessa
pesquisa (e principalmente, da minha vida). Pelas constantes leituras e correções, por não me deixar
desistir de nada disso, pelas palavras de amor e abraços apertados onde cabe o universo. Por me
entender, por me amar do jeito que sou ―I don't have much in my life/ But take it - it's yours‖, como diz
aquela canção. Obrigada por ir tirando as pedrinhas do meu caminho e nem me deixando nota-las. E
que bom que não vou só, que vou com você para sempre, de mãos dadas, até sermos bem velhinhos.
Nesses sete anos de namoro muita coisa mudou em minha vida, mas você é a melhor das constantes
e sempre será.
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Obrigada por ser uma amiga maravilhosa e uma irmã que o destino me deu, Rebeca Grilo!
Por me fazer um pouco menos cínica e por fazer repensar muitas atitudes (sobre amizade, inclusive).
Suas correções (os seus ganchos lindos e charmosos, kkk), seu carinho, seu ombro amigo, lágrimas
compartilhadas e conselhos foram muito mais que decisivos. Você sabe muito bem de tudo!
Ao meu orientador, prof. George Dantas, obrigada por ter me guiado durante esse longo
trajeto na Iniciação Científica e agora no TFG. Seu comprometimento e entusiasmo com a pesquisa e
com seu ofício são inspiradores. Pelas correções, incentivos, conselhos e puxões de orelha serei
sempre grata, eles foram essenciais. Obrigada por aturar meus rompantes Orinoco Flow, com toda a sua
paciência, agora que estou virando adulta (GRILO, 2013), prometo e-mails mais lineares. Ou não.
À professora Angela Ferreira, norteadora da minha vida acadêmica, obrigada pelos
ensinamentos diários, apontamentos precisos, palavras de incentivo e conselhos. São em mulheres
como a senhora que devemos nos espelhar. Jamais vou conseguir expressar a intensidade da sua
influência na minha formação, mas saiba que é enorme.
Ao meu ―irmão acadêmico‖ Ítalo Maia, pelas conversas, pela força, pelo carinho, pelas
mensagens de incentivo mútuo.
Aos professores do Departamento de Arquitetura, pelos ensinamentos e, por me deixarem
aprender com os erros. Em especial a Clewton Nascimento, Marizo Victor, Aldomar Pedrini, Paulo
Heider, Verônica Lima, Misslene Pereira, Ruth Ataíde e Françoise Valery. Deixo aqui minhas
desculpas por não ter sido uma melhor aluna, mas tenham a certeza que deixaram muito de seus
ensinamentos em mim. Ao professor Pedro Lima, que me encantou com a possibilidade de ver a
história do mundo pelas pátinas da cidade (e pelas explicações para as bobas perguntas de caloura).
Eugênio Fonseca, (Eugs querido), obrigada por ter enxugado tantas lágrimas (literalmente), pelos
inúmeros e sábios conselhos; definitivamente eu não teria terminado esse curso sem suas aulas sobre
o mundo, sua amizade maravilhosa, seus livros, filmes, abraços e lanches. Agradeço à professora
Giovanna Paiva, pelo exemplo de integridade, compromisso com os alunos e pela alegria com que
sempre me tratou e à Paulo Nobre por toda a ajuda e carinho. Ainda falando em mestres, agradeço à
Professora Emilia Carvalho, pela leitura de sua inspiradora tese e por sua amizade além-mar.
Aos meus amigos de curso, em especial a todos os Arquitetônicos. Por tudo o que passamos
juntos ao longo desses cinco anos. Nossa amizade não entende o que é distância (ouviu, Dilma?).
Marília, Fernando, Mariana, Maísa, Cleyton, Lenilson, Maria, Iran, Nikeilany, Viviane, Érica, Ismara,
Ana Cristina, Maxwell, Kelben, Michel: Com vocês aprendi coisas inestimáveis, que nenhuma sala de
aula pôde me ensinar. Um obrigada especial a quem também me acolheu: Jessica, Gilnadson, Íris,
Larissa e Theo. ―Algum‖ arquiteto por aí disse que a amizade era fundamental. Estava certíssimo.
Aos pesquisadores do HCUrb, em especial à Désio, Adriano, Thamms, Luiza e Sthepanie:
obrigada pelo apoio e incentivo. Obrigada à Ana Raquel pela magnífica ajuda com a bibliografia e a
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Gabriel pelos constantes conselhos. Agradeço a um dos melhores professores que já tive: Yuri
Simonini (aka Coronel Starker) e minha companheira de pesquisa Debora (Tia Debbie), amiga
querida que com seus abraços, recadinhos, conselhos – e que conselhos!- e risadas compartilhadas
deixam meu dia mais bonito. E por falar em dias mais bonitos, um agradecimento especial à Seu
Mário, Dona Márcia, Dona Elza e à Neide: São vocês que fazem a Universidade funcionar e ficar
mais acolhedora.
A pesquisa não é uma atividade tão solitária assim; há sempre pessoas maravilhosas que nos
ajudam a encontrar as pistas e a atravessar as veredas com mais tranquilidade. Agradeço à presteza e a
dedicação da Professora Maria Cristina Wolff de Carvalho; À Lynn Parker, curadora-assistente da
seção de Artes e Ilustrações do Royal Botanic Gardens (Kew) e à Kiri Ross-Jones, arquivista da
mesma instituição; Ao Instituto Moreira Salles, em especial nas pessoas de Jovita Santos e Julia
Kovensky (especialmente pelas ilustrações cedidas tão gentilmente a respeito de Burchell e pela
presteza com que sempre me trataram); À Kate Santry, chefe dos Arquivos de coleções do Museu de
História Natural de Oxford; À Maya Donelan, secretária da Fullham Society de Londres; Ao Roger
Stewart, pesquisador de Cape Town, pela gentileza ao me indicar bibliografia; e à Elaine Charwat,
bibliotecária do Linnean Society of London. Obrigada pela gentileza e desculpas de antemão pela
imaturidade acadêmica em tratar deste material riquíssimo.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ser um espaço de tanto aprendizado,
que me proporcionou um ambiente acolhedor para meu crescimento acadêmico e pessoal, espero
retribuir todo o investimento em minha formação. Agradeço à PROPESQ por me proporcionar
meios para a realização de minha pesquisa ao longo destes anos como I.C.
“Last but not least”, agradeço a dois personagens que me tiraram o sono ao longo desse ano: O
meu gato Félix, por sempre me lembrar que já eram 03:00 am e ao protagonista deste trabalho, pela
sua coragem e talento: William John Burchell.

Natal-RN, primavera de 2014.


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RESUMO

O Brasil do início do século XIX mostrar-se-ia um rico panorama de novas formas, cores e
costumes à um público estrangeiro cada vez maior, principalmente após a Abertura dos Portos
em 1808. A figura do naturalista inglês William John Burchell destaca-se dentre esse grupo,
sobretudo pela sua obra, onde converge a poética das descrições do período romântico e o rigor
da representação das ciências naturais. A pesquisa apresentada busca compreender o papel da
obra de Burchell na construção das representações sobre a paisagem urbana oitocentista,
contribuindo ao debate sobre a formação das representações sobre a cidade colonial. A análise
fundamentou-se na revisão bibliográfica, com enfoque na problematização do material
iconográfico produzido por Burchell como fonte historiográfica sobre o assunto e na análise da
iconografia elencada por meio de sua leitura formal e interpretativa. Os primeiros resultados
apontam dissonâncias entre a obra de Burchell e o corpus iconográfico dos demais viajantes:
Burchell apercebe-se da unidade arquitetônica colonial; porém, acura o olhar e distingue outras
influências em nossa arquitetura, (como a herança indígena) e avança acima da homogeneização
tão recorrente na historiografia do tema. Os arraiais e vilas do Brasil são por vezes apresentados
em intenso movimento, um contraponto aos discursos dos viajantes que os percorreram,
demonstrando que o olhar de Burchell vai se adequando e apreendendo sobre o Brasil à medida
que segue viagem.

Palavras-Chave
Representações- viajantes – iconografia.
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ABSTRACT

The Brazil of the early nineteenth century would show a rich panorama of new shapes, colors
and costumes to a growing foreign public, especially after the opening of the Ports in 1808. The
figure of the English naturalist William John Burchell stands out among this group, especially for
his work, which converges poetic descriptions of the Romantic period and the accuracy of the
representation of the natural sciences. The research presented here seeks to understand the role
of work in constructing the Burchell's representations of nineteenth century urban landscape,
contributing to the debate on the formation of representations of the colonial city. The analysis
were based on literature review, focusing on the problematic of iconographic material produced
by Burchell as historiographical sources on the subject and analysis of iconography listed through
its formal and interpretive readings. The first results indicate dissonance between Burchell's work
and the iconographic corpus of other travelers: Burchell realizes the colonial architectural unit.
However, improves the look and distinguishes other influences in our architecture (such as
indigenous heritage) and moves above the homogenization so recurrent in the historiography of
this subject. The camps and villages of Brazil are sometimes presented in intense movement, a
counterpoint to the discourses of travelers who visited them, demonstrating that Burchell's
perception will be suiting and seizing on Brazil as it continues its journey.

Keywords:
Representations - travellers- iconography.
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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Caio Prado Jr. Aspecto do arraial de Rio do Peixe- MG. Fotografia. Fundação Caio
Prado Júnior. ............................................................................................................................................... 34
Figura 2 Caio Prado Jr. Ruínas de igreja em Rio do Peixe-MG. Fotografia. Fundação Caio Prado
Júnior. .......................................................................................................................................................... 34
Figura 3 Leonardo Da Vinci, A última Ceia. Afresco, 460 cm x 880 cm. (1495–1498). ................. 44
Figura 4 Pietro Fabris, Descobrimento do Templo de Isis em Pompéia (ca. 1740) ........................ 48
Figura 5 Thomas Ender, Cercanias de Botafogo, 1817/1818. ............................................................ 49
Figura 6 Thomas Ender, Porto Estrela, 1818. ....................................................................................... 49
Figura 7 Philippe de Loutherbourge, ―Avalanche nos Alpes‖, 1803. Nota-se as características do
estilo sublime nas cores e teatralidade da cena. ..................................................................................... 51
Figura 8 Camille Corot, Souvenir de Mortefontaine, exemplo de pitoresco nas artes, notar as
cores esmaecidas e o sfumatto empregado. ........................................................................................... 51
Figura 9 Maria Graham, "Vista do Corcovado". Notar a utilização de cores (que não condizem
com os reais matizes) para acentuar a idéia de diversidade vegetal. ................................................... 52
Figura 10 Nicolas-Antoine Taunay, O exterior de um hospital militar, Italia................................... 54
Figura 11 Nicolas-Antoine Taunay, Rio de Janeiro. óleo sobre tela. ................................................. 54
Figura 12 São Sebastião do Rio de Janeiro na obra "Reys-boeck van het rijcke brasilien" (ca.
1624) ............................................................................................................................................................ 56
Figura 13 Frans Post, Vista de Olinda, 1662. ........................................................................................ 57
Figura 14 Frans Post, Paisagem com plantação (O Engenho), (1668). ............................................. 58
Figura 15 Félix Émile Taunay, Baía de Guanabara vista da Ilha das Cobras, c.1828. óleo sobre
tela. ............................................................................................................................................................... 59
Figura 16 Nicola Facchinetti, Lagoa Rodrigo de Freitas, óleo sobre tela. ......................................... 59
Figura 17 Vista do Largo da Matriz (Praça do Coreto), Vila Boa de Goiás em 1751. Desenho de
Tosi Colombina .......................................................................................................................................... 60
Figura 18 Detalhe da prancha n° 189 – ―Goyaz‖, lápis aquarelado de Burchell - Matriz de Goyaz
–12-05-1828. ............................................................................................................................................... 60
Figura 19 Maria Graham, aspecto de Laranjeiras, fora dos limites do Rio de Janeiro, 1821.
Desenho integrante do Journal of a Voyage to Brazil ................................................................................ 61
Figura 20 Maria Graham, São Cristovão (ao fundo, o Paço), 1823. Aguatinta. ............................... 62
Figura 21 Thomas Ender, Paço de São Cristovão.1817. Aquarela. À esquerda, detalhe da
construção. .................................................................................................................................................. 64
Figura 22 De la Michellerie, Paço de São Cristovão. Circa 1830-1834. Desenho retocado à
aquarela sobre papel. ................................................................................................................................. 65
Figura 23 Maria Graham, Gameleira....................................................................................................... 65
Figura 24 Jean Baptiste Debret, Entrudo. 1823. ................................................................................... 67
Figura 25 Thomas Ender: Vista da Enseada de Botafogo, 1817.Oléo sobre tela. Acervo particular
(coleção Geyer)........................................................................................................................................... 69
Figura 26 Eduard Hildebrandt. Rua Direita, Rio de Janeiro. óleo sobre tela................................... 70
Figura 27 Eduard Hildebrandt. A Glória, Rio de Janeiro, 1846. Óleo sobre tela. .......................... 71
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Figura 28 Felix Émile Taunay, Rua Direita, Rio de Janeiro, 1823. Aquarela sobre papel, coleção
particular ...................................................................................................................................................... 72
Figura 29 Johann Moritz Rugendas, Rua Direita. Litogravura. ........................................................... 72
Figura 30 Emil Bauch, Vista da Rua Direita, segunda metade do século XIX. ................................ 73
Figura 31 Thomas Ender: Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro, 1817-1818. Pena e sépia
sobre papel, 27,2 x 43,3 cm. À direita, um detalhe do desenho. ......................................................... 74
Figura 32 Thomas Ender, ―Arredores do Rio de Janeiro‖1817 óleo sobre tela 104 x 188 cm ...... 74
Figura 33 William Gore Ouseley. Ruínas da Capela de São Gonçalo, Bahia. Bahia, 1852. ............ 76
Figura 34 Thomas Ender, Nos arredores do mangal de S. Diogo. Nanquim e aquarela sobre
papel. ............................................................................................................................................................ 76
Figura 35 Armand Julien Pallière, Vila Rica por Armand Julien Pallière, 1820. Litogravura .......... 78
Figura 36 Piero della Francesca, View of an Ideal City. ....................................................................... 86
Figura 37 Claude Lorrain, the Embarkation of Saint Paula for Jerusalem, 1639. Óleo sobre tela,
100.9 x 135.2 cm. ....................................................................................................................................... 86
Figura 38 Claude Lorrain, Landscape With A Sacrifice To Apollo, 1639-40. Oleo sobre tela ...... 86
Figura 39 Robert Barker, panorama da cidade de Edinburgh, Escócia. Óleo sobre tela, 1783 ..... 88
Figura 40 Imagens da rotunda de Leicester, projetada por Mitchell. ................................................. 89
Figura 41 Charles Landseer, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, 1825. 91
Figura 42 Friedrich Salathé, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, água-
tinta, 65 x 123,7cm, 1826 .......................................................................................................................... 92
Figura 43 Benjamin Mulock, Panorama de Salvador. Fotografia. ...................................................... 93
Figura 44 Benjamim Mary, Panorama do Rio de Janeiro, 1835. Grafite, nanquim e aquarela sobre
papel, 30,3 X 312,4 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo.............................................................. 95
Figura 45 Johann Jacob Steinman, Rio de Janeiro visto a partir do morro de Santa Teresa, 1834.
...................................................................................................................................................................... 96
Figura 46 Jean-Julien Deltil (baseado em desenhos de Johann Moritz Rugendas), Vistas do Brasil,
Primeira metade do século XIX. Acervo Instituto Moreira Salles. Aquarela sobre papel, 451 x
1541 mm...................................................................................................................................................... 97
Figura 47 Papel de parede atualmente impresso pela Casa Zuber, nota-se que os desenhos
continuam idênticos ao original. .............................................................................................................. 98
Figura 48 Sala de jantar da Embaixada brasileira em Moscou, Rússia. Notar o emprego do
referido panorama. ..................................................................................................................................... 98
Figura 49 Johann Moritz Rugendas, "Brasilien", imagens que tentam resumir as paisagens
brasileiras. .................................................................................................................................................... 99
Figura 50 Felix-Émile Taunay, Panorama do Rio de Janeiro, 1824. ................................................ 100
Figura 51 Jacob Steinmann, possível base para ampliação do panorama do Rio de Janeiro, 1824.
.................................................................................................................................................................... 101
Figura 52 William Burchell, Panorama do Rio de Janeiro. Lápis, 1826. .......................................... 103
Figura 53 William Burchell, uma das 8 folhas do panorama em 360 graus da cidade do Rio de
Janeiro, olhando em direção Nordeste, mai/jun 1826. ...................................................................... 104
Figura 54 William Havell, Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre tela, 1827. .................. 109
Figura 55 William Havell, Garden Scene on the Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre
tela, 1827.................................................................................................................................................... 109
Figura 56 Alfred Martinet, O Passeio Público. Gravura, 1847. ........................................................ 110
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Figura 57 W. Loeillot, Entrada do Passeio Público no Rio de Janeiro. Gravura, 1835. ................ 111
Figura 58 África do Sul, vista da Cidade do Cabo, Baía da Mesa, e Tygerberg (Robbin Island),
1810. ........................................................................................................................................................... 111
Figura 59 Detalhe da imagem acima, o homem embaixo do guarda-sol é o próprio Burchell que
se autorretratou. ....................................................................................................................................... 112
Figura 60 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis ......... 112
Figura 61 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
.................................................................................................................................................................... 114
Figura 62 William Burchell, Casario colonial e o morro do Castelo ao fundo, 1825..................... 116
Figura 63 William Burchel, The English Burial Grounds (Gamboa. [Cemitério dos Ingleses, na
Gamboa]. Grafite e aquarela sobre papel. c. 1825-1826. ................................................................... 117
Figura 64 Maria Graham, Cemitério dos Ingleses. Litogravura. ....................................................... 118
Figura 65 Alfred Martinet, Cemitério dos Ingleses. Gravura ............................................................ 118
Figura 66 William Burchell, Casario da Praia Formosa, 1826. Lápis e aquarela. Acervo particular
.................................................................................................................................................................... 119
Figura 67 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto
Moreira Salles............................................................................................................................................ 120
Figura 68 William Burchell, Os arcos da Carioca vistos da rua Mata-Cavalos, atual Riachuelo,
1825. Lápis. ............................................................................................................................................... 122
Figura 69 William Gore Ouseley, Views of South America…1852. Litogravura. Biblioteca Nacional
.................................................................................................................................................................... 123
Figura 70 William Alexander, The Aqueduct in Rio de Janeiro, Litogravura. 1812. ...................... 123
Figura 71 William Burchll, Ponte coberta nas proximidades de Teresópolis, c.1825-1826. ......... 124
Figura 72 William Burchell, Vista a partir da estrada para o Rio, c. 1825-1826. Aquarela. Acervo
Instituto Moreira Salles ........................................................................................................................... 125
Figura 73 William Burchell, Vila de São Bernardo entre Cubatão e São Paulo, 1826. Aguada.
Acervo Instituto Moreira Salles. ............................................................................................................ 126
Figura 74 William John Burchell, São Paulo a partir da estrada para Santos, c 1825-1826.
Aquarela. Acervo Instituto Moreira Salles............................................................................................ 126
Figura 75 William Burchell ―Rua direita at Santos‖, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira
Salles........................................................................................................................................................... 127
Figura 76 William Burchell, a marinha do porto de Santos, 1826. Aguada. ................................... 128
Figura 77 William Burchell, Panorama de São Paulo, vista do Braz e caminho para o Rio de
Janeiro, 1827. Grafite e aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles ............................. 129
Figura 78 William Burchell, Ladeiras do Memória e dos Piques, 1827. Lapís aquarelado, 340 x
500 mm. ..................................................................................................................................................... 130
Figura 79 William Burchell, Convento e igreja do Carmo. 1827. ..................................................... 131
Figura 80 Jean Baptiste Debret, Igreja do Carmo, 1827. ................................................................... 131
Figura 81 William Burchell, Meiaponte, 1827. Lápis, 260 x 480 mm............................................... 132
Figura 82 William Burchell, Goiás Velho. Lápis. ................................................................................ 133
Figura 83 William Burchell, Ponte de Goiás Velho, s/d. 340 x 500 mm. Lápis............................. 134
Figura 84 William Burchell, Natividade, 1828. Lápis, 340 x 500m. .................................................. 135
Figura 85 William Burchell, Aspecto geral de Porto Real, 1829. Lápis............................................ 136
Figura 86 William Burchell, vista de Belém do Para, 1829. Lápis..................................................... 138
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Figura 87 Johann Moritz Rugendas, "Costumes do Rio", 1825. Gravura. ...................................... 146
Figura 88 Johann Moritz Rugendas, "Costumes da Bahia", 1825. Gravura. ................................... 146
Figura 89 Thierry Frères (gravação) Jean Baptiste Debret (original), Quinta da Boa Vista, desde o
ano 1808 à 1831. Gravura. ...................................................................................................................... 149
Figura 90 Jean Baptiste Debret, Rio de Janeiro. .................................................................................. 150
Figura 91 Jean Baptiste Debret, Café Torrado, 1826. Aquarela sobre papel, 15,4 x 19,6 cm.
Museus Castro Maya - IPHAN/MinC. Editado pela autora. ............................................................ 151
Figura 92 RUGENDAS, Johann Moritz. VENTA A REZIFFÉ (Venda em Recife). Domínio
Público. ...................................................................................................................................................... 153
Figura 93 Detalhe da figura "VENTA A REZIFFÉ (Venda em Recife)." ..................................... 153
Figura 94 Johann Moritz Rugendas - Carregadores de água, 1822-1825. Litografia e aquarela
sobre papel, 32,8 X 42,8cm .................................................................................................................... 154
Figura 95 Johann Moritz Rugendas - Vista do Rio de Janeiro nas proximidades da Igreja da
Glória, 1827-1835 Litografia e aquarela sobre papel, 32,8 X 42,8 cm ............................................. 154
Figura 96 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel,
413 x 541 mm. .......................................................................................................................................... 157
Figura 97 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto
Moreira Salles............................................................................................................................................ 158
Figura 98 William Burchell, Rua Direita em Santos, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira
Salles........................................................................................................................................................... 159
Figura 99 Johann Moritz Rugendas, Índios em uma fazenda de Minas Gerais, 1824. Litogravura
.................................................................................................................................................................... 161
Figura 100 Johann Moritz Rugendas, Lundu, c.1822-1825. Litogravura ......................................... 161
Figura 101 Johann Moritz Rugendas, [Casa de taipa no interior do Brasil], c.1822-1825. Grafite e
aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles ....................................................................... 161
Figura 102 Johann Moritz Rugendas, [Interior de um povoado com cavaleiros, Minas Gerais],
c.1822-1825. Grafite e aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles ............................... 162
Figura 103 Thomas Ender. Fábrica de pólvora. .................................................................................. 163
Figura 104 Thomas Ender, Fazenda Mandioca, 1825. Aquarela. ..................................................... 164
Figura 105 William Burchell[Belo exemplar de casa rural da baixada fluminense], 1825. ............ 166
Figura 106 William Burchell, Matriz e casas de Paraíba do Sul. ........................................................ 167
Figura 107 Detalhe da figura "Matriz e casas de Paraíba do Sul." Em que se vislumbra os
enquadramentos ....................................................................................................................................... 168
Figura 108 Enquadramento utilizado na edificação ............................................................................ 168
Figura 109 William Burchell, Church [na Ilha do Governador]. 140 x 210 mm. Aguada............. 169
Figura 110 William Burchell, Mosteiro de São Bento, em Santos. Aquarela. ................................. 170
Figura 111 Rua São Bento, com o mosteiro e a fonte ao fundo, em foto de Militão Augusto de
Azevedo. (albúmen com 10,5 x 17,2 cm. ) Acervo IMS. ................................................................... 170
Figura 112 Detalhe da figura ao lado, vista do Mosteiro de São Bento e a torre sineira da capela
de Nossa Senhora do Desterro. Acervo IMS. ..................................................................................... 170
Figura 113 William Burchell, Monastério Beneditino em Santos e casa e jardim onde W. J. B.
viveu, c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel, 215 x 448 mm. ................................................ 171
Figura 114 William Burchell, Capela de Santa Catarina, em Santos. c. 1826-1826. Acervo Instituto
Moreira Salles............................................................................................................................................ 172
| 16

Figura 115 William Burchell, Rua em São Carlos (Campinas), 1827. 300 x 480mm. .................... 174
Figura 116 Detalhe da figura ―Rua em São Carlos (Campinas)‖. ..................................................... 174
Figura 117 Sistema construtivo da taipa de pilão. ............................................................................... 174
Figura 118 William Burchell, Rua do Quartel, 1827. Lápis aquarelado. 300 x 480 mm. ............... 175
Figura 119 William Burchell, Aspecto de Vila Franca (atual Franca), 1827. ................................... 176
Figura 120 Detalhe da figura "Aspecto de Vila Franca‖ .................................................................... 177
Figura 121 Esquema de beiral com galbo no contrafeito, típi co da arquitetura colono=ial. ...... 177
Figura 122 William Burchell, Cemitério dos ingleses. Observar a casa à direita ............................ 177
Figura 123 Detalhe da figura "Cemitério dos ingleses". ..................................................................... 177
Figura 124 William Burchell Ponte sobre o rio Tietê, 1827. 235 x 485 mm. Lápis ....................... 178
Figura 125 Detalhe da figura Ponte do rio Tietê: sistema de pau a pique ....................................... 178
Figura 126 Detalhe da figura Ponte do Rio Tietê: Palafita. ............................................................... 178
Figura 127 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis. ...... 179
Figura 128 Detalhe da figura "uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828 " :esteios 180
Figura 129 Ligação em meia madeira de encontro ............................................................................. 180
Figura 130 William Burchell, Interior de casa em Goiás Velho, 1827. Lápis.................................. 180
Figura 131 Dobradiça de cachimbo ou leme, comum nas edificações oitocentistas. Desenho de
Vasconcellos. ............................................................................................................................................ 181
Figura 132 Lêuncio Nobre, Janela superior do Aljube- Olinda, 2001. ............................................ 181
Figura 133 Thomas Ender, Interior de uma casa paulista, 1817. Aquarela. ................................... 181
Figura 134 William Burchell, presídio de São João das Duas Barras, no Araguaia. Sem data, grafite
sobre papel. ............................................................................................................................................... 182
Figura 135 Johann Moritz Rugendas, Acampamento de índios, 1824. Lápis e nanquim sobre
papel, 115 x 117 mm. .............................................................................................................................. 184
Figura 136 Johann Moritz Rugendas, Habitações de negros, c.1822-1825. .................................... 184
Figura 137 William Burchell, Igreja das Mercês, Pará. Grafite sobre papel, c.1829. ...................... 186
Figura 138 Detalhe do desenho anterior, relativo à Igreja das Mercês. ........................................... 186
Figura 139 Três retratos sucessivos de Burchell.................................................................................. 208
Figura 140 Churchfield House, residência da família Burchell, demolida em 1898. ...................... 208
Figura 141 William Burchell, País de Gales, vista do moinho próximo à queda d'água em
Aberdyllis, Neath, Glamorganahire. Lápis aquarelável, 23 agosto,1804 ......................................... 210
Figura 142 William Burchell, País de Gales, vista de Swansea. Lápis aquarelável, 31 agosto 1804.
.................................................................................................................................................................... 210
Figura 143 Uma vista próxima à Santa Helena................................................................................... 212
Figura 144 Mande's Battery. Lápis e aquarela, sem data. ................................................................... 212
Figura 145 Salsa de Praia (também comum no litoral brasileiro)representada pelo naturalista
William Burchell. Ipomea biloba, lápis e aquarela, sem data. ............................................................ 213
Figura 146 William Burchell, ―Interior of my African Wagon". Óleo sobre tela, 1822. ............... 214
Figura 147 William Burchell, Part of the caravan going across the Karoo. Gravura, 1822. ......... 215
Figura 148 William Burchell, Desenho de Burchell representando o Rio Gariepe. ....................... 216
Figura 149 Residência em Tulbagh. ..................................................................................................... 216
Figura 150 A mesma residência em Tulbagh atualmente. .................................................................. 217
| 17

SUMÁRIO

PREPARATIVOS PARA A VIAGEM: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................ 18

AS PÁTINAS QUE COMPÕEM A IMAGEM: OS VIAJANTES ADENTRAM OS


TRÓPICOS ............................................................................................................................................... 31

1.1 A PINTURA É UMA FEITICEIRA: FERRAMENTAS PARA A LEITURA DA OBRA


DE ARTE. .................................................................................................................................................. 38

1.2 AS FATURAS DO NEOCLASSICISMO E DO NATURALISMO NAS IMAGENS DO


BRASIL NO OITOCENTOS. ............................................................................................................... 46

1.3 O BRASIL É UMA PAISAGEM – AS VISÕES ESTRANGEIRAS OITOCENTISTAS ... 52

2. EXUBERANTES PANORAMAS: A URBE EM PANORAMAS E VEDUTAS ............ 80

2.1 A PAISAGEM NUM PISCAR DE OLHOS: O PANORAMA................................................. 85

2.2 DAS JANELAS QUE DESLINDAM OS TRÓPICOS: A VEDUTA. .................................. 107

O ENQUADRAMENTO DA PAISAGEM: OS DETALHES DA URBE BRASILEIRA


NA OBRA DO VIAJANTE ............................................................................................................... 139

3.1 QUEM VIU UMA VIU QUASE TODAS? AS REPRESENTAÇÕES DA


ARQUITETURA DOMÉSTICA NO OITOCENTOS. ................................................................. 141

3.2 À SOMBRA DO ALPENDRE: DETALHES ARQUITETÔNICOS. .................................. 173

ÚLTIMOS VERNIZES- CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 188

REFERÊNCIAS ................................................................................................................................... 194

APÊNDICES ......................................................................................................................................... 207

ANEXOS ................................................................................................................................................. 227


| 18

Preparativos para a
Viagem:
Considerações iniciais

PREPARATIVOS PARA A VIAGEM: Considerações iniciais


| 19

―Toda estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo leve demais para
se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos
sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na
mentira do encantamento a verdade se casa à estória.‖

Mia Couto, Estórias abensonhadas.

Os ventos alísios do hemisfério norte e as correntes das Canárias levariam um número


cada vez maior de embarcações aos portos brasileiros a partir do início do século XIX. Entre a
saída de Lisboa e a chegada em portos brasileiros, as viagens poderiam durar até 40 dias, muitos
deles passados sem ao menos um vislumbre de faixa de terra em meio à vastidão do Atlântico.
Eram agora viagens mais curtas e seguras em relação ao tempo que se desprendia entre a Europa
e a América séculos antes, graças ao advento de novas tecnologias de navegação; deste intenso
fluxo de navios carregados de produtos e de viajantes, outra natureza de mercadoria seriam
também levadas de nossos portos, estas à base de tintas e crayon: paisagens brasileiras. A
proximidade da costa brasileira trazia muitas vezes como primeiro contato com a paisagem
tropical a vista da baía de Guanabara, principal porto de entrada da maioria dos europeus que
chegavam ao Brasil. Embora alguns diários de viagens ao Brasil fossem publicados na Europa1,
a região permaneceria durante muito tempo desconhecida pela população do Velho Mundo. Em
1605, no governo do então rei de Portugal Felipe II, foi determinado o fechamento total dos
portos brasileiros, aumentando o encerro anterior proposto pelo rei Felipe I, em que se permitia
autorização de concessões, mediante o estudo de cada caso2.
Registros de homens ilustrados se mesclavam aos diários de viagens de marinheiros e
corsários na tentativa de cobrir a visão européia sobre as terras e costumes do Brasil no século

1 A circulação das publicações relativas ao Brasil na Europa será tratada adiante, no capítulo 2.

2 GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Diplomacia Brasileira e Política Externa: Documentos Históricos (1493 – 2008). Rio de
Janeiro: Contraponto, 2008.
| 20

XVI. Este período de grandes navegações, que correspondia à segunda fase do Renascimento,
seria carregado fortemente pelo gosto do fantástico e misterioso na literatura de viagem, forte
herança do imaginário medieval europeu3.
O cenário relativo às descrições sobre o Brasil sofreria mudança significativa no início do
século XIX. Com a Abertura dos Portos e a transferência da Corte Real Portuguesa, em 1808, o
contingente de europeus em terras brasileiras aumentaria consideravelmente. O Oitocentos
mostrar-se-ia um período de intensas transformações em algumas cidades brasileiras, ao passo
que em tantas outras o período de transformações ocorreria de forma mais dilatada, chegando,
em muitos casos, à quase estagnação de seu crescimento urbano. As transformações não
ocorreram com mesma intensidade e em sincronia; a ação mostrar-se-ia muito mais complexa e
descontínua.
Os motivos para que essas mudanças se revelassem distintas em cada lugar foram, muitas
vezes, de ordem econômica, politica e geográfica4. Recife, por exemplo, já era, no inicio do
século XIX, uma cidade de papel importante nos processos econômicos do país; sua paisagem
urbana fora bastante alterada nos séculos anteriores, no contexto da tomada pelos holandeses da
região, especialmente durante o período do governo do conde João Maurício de Nassau-Siegen
(1637-1644) 5. Os esguios sobrados, herança neerlandesa, assistiriam a abertura de novas vias e a
arborização das ruas no século XIX. São Paulo, à época ainda uma pequena cidade, só assistiria
mudanças significativas a partir da segunda metade dos Oitocentos, mais precisamente na década
de 1870, crescimento impulsionado pela produção cafeeira. Outra transformação iminente
ocorreria nas cidades do norte do Brasil, com a produção da borracha, à época da abertura dos
portos brasileiros, as cidades ainda seriam pequenas.
Se algumas cidades estariam na expectativa de crescimento, outras estariam em declínio
das suas atividades econômicas mais lucrativas, como no caso das cidades mineiras, que viram o
resplendor aurífero dos Setecentos perderem seu brilho já no século XIX, o que ―cristalizou‖ a
urbe mineira durante este tempo. Por outro lado, Salvador teria papel importante nos processos
econômicos da colônia desde o início de sua colonização, visto sua condição de antiga capital da
colônia e também passaria por mudanças em sua estrutura urbana à época. A cidade do Rio de
Janeiro, alçada à condição de sede do império português em 1763, seria protagonista dessa

3 LE GOFF. Jacques. O maravilhoso no Ocidente Medieval. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa.
Edições 70. 1983, p. 263-270.
4 ARAGÃO, Solange Moura Lima de . A cidade brasileira na pintura dos viajantes e na fotografia do século XIX. In: V

Encontro de História da Arte - 20 anos de História da Arte na UNICAMP - 2009, 2009, Campinas. V Encontro de
História da Arte - 20 anos de História da Arte na UNICAMP - 2009, 2009. p. 137-143.

5GESTEIRA, H. M. . O Recife Holandes: historia natural e colonização neerlandesa (1624/1654).Revista da Sociedade


Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 2, n.1, p. 6-21, 2004. p.6
| 21

alteração com a chegada da Corte, suas reformas prosseguiriam pelas décadas seguintes. Como
ponto de partida, como área de permanecia prolongada ou até mesmo como última parada antes
da volta à Europa, diversos viajantes estrangeiros aportaram na Guanabara, providos de lápis,
carvão, aquarelas e cadernos de anotações, prontos e na expectativa de representar a exótico
cenário que se descortinava aos olhos já enfastiados do constante azul oceânico. Uma bagagem
muito menos visível também seria transportada lado a lado a seus pertences, como veremos a
seguir.
Se a chegada à cidade do Rio de Janeiro ocorresse no período da manhã, as impressões
seriam conduzidas pelas vivas cores da paisagem, imersa em um ―perpétuo verão‖6, e adornada
com ―a coroa de granito mais maravilhosa (sic) que a natureza tenha preparado à capital de um
império‖7 , ―transmitindo um tom violáceo‖8 ao envolver as serras e suas sombras que ―parecem
riscadas de rosa e púrpura‖9. Os matizes da floresta resplendem no ―verde vivo da esmeralda e o
amarelo, brilhante do ouro polido‖10.
Caso o desembarque ocorresse à noite, a cidade apresentar-se-ia numa escuridão
pontilhada pelas poucas luzes dos lampiões à base de óleo existentes, quase um reflexo da
abóbada celeste. Se o viajante tivesse a oportunidade de adentrar a baía em noites festivas, teria a
oportunidade de vislumbrar a chamada alvorada, momento no qual, sob edital da Câmara
Municipal, toda a população era convidada a iluminar a frente das suas casas nas noites de

6KIDDER, Daniel P.; FLETCHER, James C. O Brasil e os brasileiros. 2 vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1941. P.02. Disponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/o-brasil-e-os-brasileiros. Acesso em: 11 set.2014.
7 LEITÃO, Candido de Melo. O Brasil visto pelos ingleses. Viajantes ingleses. Companhia Editora Nacional, 1937.
Disponível em: < http://www.brasiliana.com.br/obras/o-brasil-visto-pelos-ingleses-viajantes-
ingleses/pagina/104/texto> Acesso em: 11 de setembro de 2014. P.104.
8 BIARD, François Auguste. Dois anos no Brasil. Companhia Editora Nacional, 1941. Disponível em
<http://www.brasiliana.com.br/obras/dois-anos-no-brasil/pagina/144/texto > P. 141

9 BURTON, Richard Francis . Viagens aos planaltos do Brasil - Tomo I: Do Rio de Janeiro a Morro Velho. Companhia
Editora Nacional, 1941. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/123/viagens-aos-
planaltos-do-brasil-tomo-i-do-rio-de-janeiro-a-morro-velho> . Acesso em: 11 de set. de 2014. p.57.

10Ibidem. p.58. Ressalta-se que a visão de uma baia de Guanabara edênica não seria unânime. Embora fora de nosso
período de estudo, o relato de Levi-Strauss em Tristes Trópicos (1995) ao apelidar a baía de Guanabara de ―boca
banguela‖, (visto sua grande dimensão em relação aos poucos lugares importantes espaçados ao longo de sua
extensão), demonstra que a beleza da baía não seria unânime na visão dos viajantes.
10BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Festas cívicas na corte regencial. Varia hist., Belo Horizonte , v. 22, n.
36, Dec. 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104
8775200600200014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 Set. 2014.
| 22

procissões ou de cortejos imperiais11. A cidade então ganharia ainda mais ares teatrais e
sublimes12, como o relato do viajante letão Ernst Ebel, quando em passagem pelo Brasil em 1824,
nos revela:

A noite estava linda e o calor aliviado pela benfazeja brisa marítima que
naquele momento encrespava o mar, prateado pelo clarão do plenilúnio. [...]
Num semicírculo anfiteatral, a cidade aparece distante, à beira-mar. Seu casario,
iluminado por focos sem conta, produzia aprazível efeito. De quando em vez,
subiam foguetes à retaguarda, cujas explosões, iluminando magicamente o
cenário um instante, não menos rapidamente se extinguiam. Festivamente,
repicavam os sinos até nós — as Ave-Marias — para logo se calarem. Também
iam-se apagando as luzes. Um silêncio, cada vez mais profundo, baixou sobre a
terra e, como a lua se escondesse atrás das montanhas, recolhi-me [...]13.

Seria este o cenário descoberto pelas missões europeias, de finalidades distintas, que
aportariam no Brasil a partir de 1808. No entanto, o trecho acima apresentado revela-nos mais do
próprio viajante do que nos revela o que foi observado, como se notará ao longo do trabalho,
este será um argumento constante. Para se entender a motivação do olhar estrangeiro em
percorrer a urbe brasileira do século XIX de rica herança colonial, é necessário alcançar suas
intenções e o contexto em que estes relatos se inserem. Os viajantes do Oitocentos diferem dos
corsários e marinheiros dos séculos anteriores pelo caráter científico de seus relatos. Ao
preencher seus cadernos de desenhos com reproduções de tipos humanos, espécies vegetais,
animais e aspectos do cotidiano, suas anotações serviam muito mais que ao propósito de
identificar e informar os europeus sobre ―as coisas e as gentes‖ brasileiras; buscavam informações
e pontes para seus interesses econômicos, políticos e científicos. As expedições científicas
europeias empreendidas nos diferentes continentes foram utilizadas como peças importantes no
contexto da expansão europeia. Tendo em mente o lema baconiano de que ―conhecimento é
poder‖ o saber adquirido nestas explorações científicas, patrocinada pela riqueza dos grandes
centros europeus, azeitava as engrenagens econômicas do Velho Continente, como aponta Mary
Louise Pratt, em Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação (1999):

Na segunda metade do século XVIII, a expedição científica internacional


tornar-se-ia um catalisador das energias e recursos de intrincadas alianças das

11BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Festas cívicas na corte regencial. Varia hist., Belo Horizonte , v. 22, n.
36, Dec. 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104
8775200600200014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 Set. 2014.
12 O conceito de sublime será mais bem tratado no capítulo 1 deste trabalho.

13EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. Companhia Editora Nacional, 1972. Disponível em: <
www.brasiliana.com.br/obras/o-rio-de-janeiro-e-seus-arredores-em-1824 > Acesso em 12 de set. de 2014. p.11.
| 23

elites comerciais e intelectuais por toda a Europa. Igualmente relevante é que a


exploração científica haveria de se tornar um foco de intenso interesse público,
e fonte de alguns dos mais poderosos aparatos ideológicos e de idealização, por
meio dos quais os cidadãos europeus se relacionaram com outras partes do
mundo.14

A representação de um Brasil pitoresco e tropical foi um importante aporte aos discursos


de caracterização das cidades brasileiras oitocentistas. Dentre os vários documentos que foram
produzidos sobre as cidades brasileiras, os relatos dos viajantes, sobremodo os estrangeiros,
possuíram maior poder de reverberação, utilizados para iluminar passagens de nossa história
obscurecida pela escassez de documentos descritivos realizados quer seja pela Coroa, quer seja
pelos próprios residentes da Colônia. As permanências urbanas e arquitetônicas da cidade
colonial na conformação do novo Império observadas por estes artistas seriam utilizadas na
composição de uma matriz imagética na qual ressaltariam as nuances de descaso e indolência e
que seria reverberada nas descrições posteriores, mostrar-se-iam, inclusive, importantes ao
propósito de legitimação e de justificativa de diversos discursos de modernização pelo qual as
cidades passariam a partir do final do século XIX.
Assim como as edificações e estruturas urbanas remanescentes da cidade colonial, as suas
representações pictóricas também seriam chamadas a atuarem na função de representação e
referência desta cidade. Portanto, dada à escassez de registros de autores nacionais ao longo de
praticamente todo o século XIX, a produção pictórica relativa à urbe oitocentista realizada por
estrangeiros como Jean-Baptiste Debret ou Nicolas-Antoine Taunay, dotadas de intenções ou
não, mostrar-se-iam importantes ferramentas que fundamentariam o imaginário sobre o Brasil,
tanto na Europa como, consequentemente, rebatidos em nossa própria historiografia do tema.
Contudo, em meio à produção de autores mais célebre e divulgada, há um corpus iconográfico que
por motivos diversos permaneceu oculto e pouco analisado.
A obra do botânico inglês William John Burchell ressaltar-se-ia, entre toda a iconografia
dos viajantes oitocentistas, pela peculiaridade de seus registros, nos quais convergem a poética
das descrições típicas do período romântico e o rigor da representação das ciências naturais 15.
Burchell não era um viajante inexperiente quando chegou ao Brasil em 1825, tendo percorrido a
África do Sul durante cinco anos e pelo mesmo período de tempo havia viajado pela Ilha de

14PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução Jézio Hernani Bonfim Gutierre.
Bauru, SP: EDUSC, 1999, pp.52-53.

15 CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. The Landscape Art of William John Burchell (1781 – 1863). Report,
Washington DC, n. 32, CASVA – NGA, 2012, p. 164-167. Disponível em: http://www.nga.gov/casva/pdf/center-
32.pdf. Acesso em 25 jun. 2013.
| 24

Santa Helena16.
A figura de Burchell, salvo algumas menções17, torna-se pública aos brasileiros a partir da
década de 1960, por ocasião da descoberta de seu acervo composto por 250 desenhos de
temática brasileira. Com a publicação da série de oito pranchas de O Mais Belo Panorama do Rio de
Janeiro, em 196618, e, já na década de 1980 da obra O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico
Willian John Burchell, 1825-182919, o historiador Gilberto Ferrez lança luz ao trabalho de Burchell e
abre a vereda para estudos posteriores.
Vislumbres de sua obra já seriam postas à luz décadas antes; porém, foram creditadas
erroneamente ao viajante Charles Landseer. Em 1924, o historiador brasileiro Alberto Rangel
encontrou no castelo de Highcliffe, antiga residência de Charles Stuart20, cerca de 340 obras sobre
a passagem de Landseer pelo Brasil. Às obras de Landsser somaram-se alguns trabalhos de Henry
21
Chamberlain, Debret e Burchell. Sabe-se que a permuta de desenhos entre viajantes não era
rara, o que pode explicar o motivo de sua presença junto às de Charles Landseer. Porém, em
1926, o Highcliffe Album seria adquirido pelo colecionador carioca Guilherme Guinle e guardado
22
em acervo particular. Em 1999 o Instituto Moreira Salles o obtém, através da compra pelo
leilão da Christie‘s.
Desta terra tropical, Burchell pouco deveria saber, valendo-se de uma quantidade mínima
de informações colhidas entre sua correspondência com outro viajante e amigo, William

16Stewart, Roger; Warner, Brian. William John Burchell: the multi-skilled polymath. S. Afr. j. sci., 2012, vol.108, no.11-12,
p.52-61. ISSN 0038-2353. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.4102/sajs.v108i11/12.1207> Acesso em: 04 nov.
2014.
17 George Gardner, viajante que aportou no Brasil em 1836, cita-o em Em sua obra Viagem ao Interior do Brasil,
classificando-o como cita-o como ―intrépido‖ e comenta a respeito do ―viajante africano‖ que permaneceu durante
seis semanas na fazenda Santa Ana do Paquequer, pertencente a um inglês, George March, localizada na Serra dos
Órgãos, no Rio de Janeiro.
18 FERREZ, Gilberto. O mais belo panorama do Rio de Janeiro: (1825) / William John Burchell ; texto de Gilberto
Ferrez. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , 1966. A obra é composta por oito paginas de
texto em formato 32 x 23 cm além de oito pranchas de desenho que formam o panorama medindo 23 x 250 cm. O
estudo e descrição do panorama é de autoria de Ferrez.
19FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico Willian John Burchell, 1825-1829, Fundação Moreira
Salles, 1981.

20 Ibdem, ibid.
21Cf. < http://ims.uol.com.br/hs/charleslandseer/highcliffealbum.html > . Acesso em: 03 out. 2014.

22Pode-se ver menções das aquarelas de Burchell (creditadas como de Landseer), em: Revista do IPHAN, n. 6,
1942, acessada pelo link: http://ims.uol.com.br/hs/charleslandseer/highcliffealbum.html
| 25

Swainson23 e dos meses em que passou em Lisboa, no intuito de aprender o português. Para além
destas cartas, o universo de dados disponíveis ao seu alcance era restrito, visto a escassez de um
corpus documental relativo ao Brasil no mercado literário europeu. Burchell pode ter tido contato
com a publicação, em 1823, do primeiro tomo de uma série de três sobre a expedição ao Brasil
empreendida pelos viajantes alemães Karl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von
Spix, Viagem pelo Brasil: 1817-1820. As obras iconográficas de maior vulto relativas à paisagem
urbana seriam publicadas após sua ida ao Brasil, como a série de três fascículos da obra ―Viagem
Pitoresca e Histórica ao Brasil”, relativas aos 15 anos do viajante Jean Baptiste Debret24 sob o sol
brasileiro, lançada entre os anos de 1834 e 1839; também em 1834 Johann Moritz Rugendas25
publicaria o livro Voyage Pittoresque dans le Brésil26, Kosmos, a extensa obra do maior naturalista do
século XIX, o explorador Alexander von Humboldt27, seria publicada apenas em 1845. Neste
campo de representações do Brasil pouco trabalhado, em especial o campo pictórico, ainda muito
preso aos materiais cartográficos e às telas holandesas do XVIII, os viajantes viram a
possibilidade de pioneirismo e méritos, justificativas para empreender viagem. Em relação ao
desconhecimento de mais detalhes sobre as terras brasileiras, Lorelay Kury (2004) sugere: ―Para
os viajantes-naturalistas europeus que aqui estiveram nas primeiras décadas do século XIX, não
foi difícil coroar suas carreiras com a descrição de dezenas ou centenas de espécies novas‖.
E, como o viajante diria em uma de suas missivas, era ―muito mais fácil marcar uma linha
interessante de roteiros num mapa do que traçá-la no próprio país‖, seu trabalho relativo à
paisagem brasileira não seria publicado, como parecia ser seu primeiro intento, seguiria viagem ao

23 William Swainson foi um naturalista britânico, participante da comitiva de Henry Koster ao Brasil. Aportou na
província de Pernambuco em 1816. Após viajar pela Bahia, parte rumo ao Rio de Janeiro e em agosto de 1818
retorna à Inglaterra (MARTINS 2001, p.118). Os trópicos brasileiros parecem que criaram uma boa impressão em
Swainson (e essa admiração pode ter sido passada à Burchell entre suas conversas). Em carta datada de março de
1830, Swainson admite que "I am sick of the world and of mankind, and but for my family would end my days in the
primeval forests of my beloved Brazil‖ in The Auk, Volume 22. Disponível em: https://archive.org/details/jstor-
4070157. Acesso em: 08 Set. 2014.

24Logo após a queda de Napoleão, Portugal e estreitaram novamente seus laços. Acatando um pedido do próprio
Dom João VI, em 1816, chegou ao Brasil, vinda da França, uma missão artística comandada por Joachim Lebreton,
com inúmeros artistas, dentre eles o pintor de cenas históricas Jean-Baptiste Debret, que vivem no Brasil por 15
anos.

25 Johann Moritz Rugendas, pintor alemão do século XIX, chegou ao Brasil em 1821, como desenhista da missão
científica do barão de Langsdorff, retornando à Europa em 1826.

27 A pesquisadora Mary Louise Pratt destaca a influência de Humboldt sobre os viajantes e naturalistas do século
XIX em Imperial eyes: travel writing and transculturation (1992). Pratt atribui à Humboldt a posição de responsável pela
matriz ideológica da ―reinvenção‖ da América do Sul no início do século XIX. Se a primeira A ―invenção‖ das
américas teria por responsabilidade Colombo e os viajantes contemporâneos ao explorador descreveriam as novas
terras como edênicas, os contemporâneos à Humboldt o fariam da mesma forma, proclamando-a como ―um mundo
primitivo da natureza, um espaço perdido no tempo e não reclamado, ocupado por plantas e criaturas (algumas delas
humanas), mas não organizado por sociedades e economias‖ v (PRATT, 1992, p.126).
| 26

longo dos milhares de quilômetros que separariam a costa do Brasil da sua residência na
Inglaterra e, posteriormente, em posse de um de seus descendentes, aportaria em Johanesburgo,
África do Sul, onde descansaria em anonimato durante mais de um século.
Sabendo que as narrativas de viajantes configuram-se como importante fonte sobre a
representação da configuração urbana dos núcleos antigos, construindo imagens sobre as cidades
coloniais que influenciaram posteriores descrições, questiona-se: Como a paisagem urbana
brasileira do século XIX foi representada na obra de William John Burchell?
Ao adentrar no campo de estudo sobre os viajantes e seus relatos, o pesquisador
invariavelmente enfrentará a problemática do pretenso caráter testemunhal e ocular de tais
representações, afirmada pela historiografia relativa ao tema. A importância dos relatos dos
viajantes como documento histórico não está na ―legitimidade‖ de suas descrições; adquirem
sentido histórico pois se revelam como produto cultural de uma época, deixam entrever gostos,
temores e preconceitos –individuais e coletivos– traduzidos em composições. Ademais, a
relevância de seu estudo indica a importância de individualizar cada uma das produções
integrantes desse conjunto imagético, lendo-as em separado e conscientes de que são portadoras
de intenções e contextos distintos. Se os desenhos de Burchell supostamente perdem em
repercussão, ganham na nova atitude perante a paisagem brasileira. Botânico por formação e
viajante experiente das paisagens tropicais, Burchell faria poucas pranchas sobre esta temática.
Embora sua coleta de espécies da flora brasileira tenha sido vultosa, em seus desenhos a
vegetação foi representada em grandes e esboçados maciços, sem as distinções encontradas em
quadros como os do também botânico Albert Eckhout. Se seriam posteriormente detalhadas em
um futuro processo litográfico28ou em telas à óleo em seu retorno à Europa, esta discussão pouco
influi no contexto deste trabalho, o que nos é imperativo na análise é a escolha do viajante em
trabalhar os pormenores da cidade construída e não de seus arredores vegetais.
Por que então debruçar-se no estudo de um viajante que não possui influência ativa na
construção da imagem recorrente das cidades brasileiras? Ao desviarmos o olhar para a produção
burchelliana nos permitimos vislumbrar um novo participante deste jogo de espelhos da

28 Litogravura: ―Inventada na Alemanha no final do século XVIII por Alois Senefelder, essa técnica de impressão
utiliza a pedra como matriz e é baseada no princípio de repulsão entre gordura e água. O desenho é feito sobre uma
pedra de composição calcária com tinta ou lápis litográficos, ambos gordurosos. Utiliza-se, então, uma solução de
goma arábica acidulada para cobrir toda a superfície. As partes protegidas pela gordura ficam lisas, enquanto as
partes expostas são atacadas pelo ácido e adquirem uma textura porosa. A matriz é limpa e levada à prensa
litográfica, onde é umedecida e, com a ajuda de um rolo, é aplicada uma tinta gordurosa. As áreas porosas, que
absorveram a água, repelem a tinta, que fica retida apenas sobre as áreas lisas da pedra, que definem a imagem a ser
impressa‖. Cf : < http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo/noticias/glossario-de-tecnicas-e-processos-graficos-
e-fotograficos-do-seculo-xix > Acesso em: 20/10/2014.
| 27

construção icônica das cidades brasileiras, sua obra é um exemplo do conjunto de imagens
relativas à iconografia dos viajantes que permaneceu menos conhecida; por outro lado, o alcance
de seu repertório não permeou e influenciou nosso imaginário de paisagem colonial ao longo da
história, como fariam as aquarelas de Debret ou as pinturas à óleo de Taunay, que
fundamentariam o imaginário sobre o Brasil, tanto na Europa como, consequentemente,
rebatidos em nossa própria historiografia do tema. Por que então debruçar-se no estudo de um
viajante que não possui influência ativa na construção da imagem recorrente das cidades
brasileiras?
Portanto, o objeto de estudo deste trabalho consiste na arquitetura da cidade brasileira do
século XIX e o olhar de fora na formação pictórica do cenário urbano.
Dentre os fatores que justificam esta pesquisa, lista-se primeiramente o vínculo da aluna
como bolsista de Iniciação Científica no Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e
do Urbanismo (HCurb) desde 2010, tendo sua bolsa atrelada ao plano de trabalho Fontes primárias
para analisar a matriz urbanística das representações sobre a cidade colonial no Brasil, plano delineado a
partir das discussões suscitadas pela tese defendida pelo orientador da pesquisa Prof. Dr. George
Alexandre Dantas A formação das representações sobre a cidade colonial no Brasil (2009). Ao longo da
trajetória como bolsista, a discente teve a oportunidade de trabalhar com relatos de viajantes de
natureza textuais e posteriormente iconográficos.
O principal objetivo da pesquisa, por sua vez, é discutir a contribuição da produção
iconográfica de William Burchell referente ao Brasil, contribuindo assim para a construção de
uma visão mais complexa das paisagens urbanas brasileiras do Oitocentos. Nesse contexto,
desdobram-se pelo menos três objetivos específicos: Analisar o uso de modelos de representação
(esquema) sistematizando que elementos da realidade foram percebidos e fixados, auxiliadores na
construção da imagem final da urbe brasileira na obra do artista; (ii) Discutir as influências de
seus estudos e do espírito da época (Zeitgeist) na obra realizada pelo viajante; e, por fim, (iii)
Identificar oposições e singularidades da produção iconográfica compulsada em relação ao seu
próprio trabalho e ao corpus iconográfico conhecido de outros artistas, que permitam expandir a
função referencial dessas imagens. A delimitação espacial da pesquisa compreende as cidades
retratadas no percurso do viajante pelas províncias do Brasil. Iniciada no Rio de Janeiro, sua
viagem percorreu as províncias de Minas, São Paulo Goiás e Grão-Pará. O recorte temporal
compreende a estadia de Burchell em solo brasileiro, os anos entre 1825 e 183029.
As hipóteses da pesquisa sugerem algumas diferenças entre as representações da cidade

29 No apêndice B encontra-se o mapa referente ao trajeto de Burchell no Brasil.


| 28

colonial das obras de Burchell em relação às realizadas por outros viajantes. Como pintor
experiente de paisagens tropicais era esperado que Burchell conseguisse ―ler‖ de forma mais
acurada a topografia, as cores da vegetação e a conformidade dos núcleos urbanos visitados, de
certa forma tal expectativa é alcançada, entretanto o ―ineditismo‖ da paisagem brasileira não
atendia aos valores estéticos da arte europeia a qual o botânico vinculava-se, apesar da crítica
recair apenas na paisagem urbana. A sua apreensão das técnicas construtivas e seu apreço pelos
detalhes das edificações e de seus mecanismos (a abertura do gelosia, a construção em pau-a-
pique, os entalhes das cachorras) não implicam, necessariamente em uma representação livre de
críticas. Se as cidades são repletas de detalhes (que significariam um apreço estético, embora
exótico), a pátina da indolência e dos atrasos da sociedade os mancharia com os tons da lama, do
lodo e da má conservação. A paisagem é comumente enaltecida, embora o elogio se encerre na
natureza que enquadra o local.
À medida que o viajante adentra a cidade e ultrapassa o primeiro vislumbre da
composição entre o casario caiado em branco e a vegetação dos mais escuros matizes de verde, a
ilusão edênica desvanece-se. A representação da cidade colonial em desalinho ―insalubre‖ e
―decadente‖ ocupou papel central nos discursos que caracterizariam os núcleos urbanos do Brasil
ao longo de sua história cultural, gradativamente alimentado desde as primeiras descrições sobre a
paisagem urbana brasileira ainda no século XVI até as primeiras reformas urbanas, em final do
Oitocentos30. Dentre os vários documentos que foram produzidos sobre as cidades brasileiras, os
relatos dos viajantes, de sobremodo os estrangeiros, foram os que tiveram maior poder de
reverberação, utilizados para iluminar passagens de nossa história obscurecida pela escassez de
documentos descritivos realizados quer seja pela Coroa, quer seja pelos residentes da Colônia.
Para além do caráter testemunhal, essas vozes estrangeiras serviram ao propósito de legitimação
de diversos discursos atrelados à leitura da urbe colonial sob o prisma do aparente ―desleixo‖
com que foram ―semeadas‖ ao longo do território brasileiro.
Os capítulos se mostram tal como a cidade se deixa entrever ao viajante que, ao observa-
la, busca enquadrar e esquadrinhar cada nível dessa aproximação. O primeiro capítulo
corresponde à expectativa do início do percurso e sobre as notícias e relatos que chegam aos
ouvidos e olhos antes de empreender viagem. Entretanto, tal como os viajantes, era necessário
saber, de antemão, as ferramentas necessárias para a viagem.
Desta forma, na tentativa de apresentar um breve panorama da representação dos núcleos
urbanos brasileiros no Oitocentos, o primeiro capítulo se volta e lança olhares às representações

30DANTAS, George A. F. A formação das representações sobre a cidade colonial no Brasil. 2009. 237p. Tese - Escola de
Engenharia de São Carlos (EESC). São Carlos: Junho de 2009.
| 29

dos séculos anteriores e as relacionam aos relatos do século estudado: existe uma matriz de signos
relativos à paisagem brasileira repetidos ao longo dos séculos? Quais aspectos morfológicos da
urbe seriam amplificados em suas descrições? Neste ponto da pesquisa as leituras e análises dos
trabalhos de George Dantas (2009)Ana Maria Belluzzo (1994) e Pratt (1992) foram os
fundamentos desta leitura. O uso da obra de arte como documento e repositório de
representações sobre a cidade é uma opção enquanto metodologia de pesquisa histórica. Ao
investigar de forma crítica e à luz da história cultural urbana o que as pátinas de tinta escondem,
levando em consideração não apenas as impressões que estão mais nítidas, mas também o
contexto no qual foi criada e lida, novas camadas de significação, ainda desconhecidas pelos
pesquisadores que abordam o tema podem ser reveladas. O emprego de fontes alternativas ao
documento textual foi tratado por vários autores, dentre os quais destacamos Carlo Ginzburg
(1991)31 e Roger Chartier ( 1991)32. Estas leituras também serão válidas em relação à leitura das
imagens, onde são levantadas questões e conceitos apresentados pelos autores supracitados, além
de conceitos de Ernst Gombrich (2007)33.
O segundo capítulo, apresenta a cidade vista de longe e por muitos olhares, participando
do enquadramento como ornamento da paisagem, com peso representativo tal como as
palmeiras34, a topografia recortada ou os rios. Assim como o artista nas proximidades da área
urbana, esquadrinhando seus modos de ocupação, sua relação entre cheios e vazios, o capítulo
nos apresenta a visão de alguns viajantes, sobremodo Burchell, sobre a cidade como elemento
único. As leituras das obras de Gilberto Ferrez (1966, 1981)35, Anna Maria Belluzzo (1994)36,
George Dantas (2009)37 e Valeria Salgueiro Souza (1995)38 foram fundamentais para o seu

31GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti; São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
32 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 245p.

33 GOMBRICH, E.H. Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

34Neste trabalho, todas as representações de espécies da família Arecaceae serão tratadas pelo nome genérico de
―palmeira‖ ou ―coqueiro‖.
35FERREZ, Gilberto. O mais belo panorama do Rio de Janeiro: (1825) / William John Burchell ; texto de Gilberto Ferrez.
Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1966; ________ O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico
Willian John Burchell, 1825-1829, Fundação Moreira Salles, 1981.
36 BELLUZZO, Ana. Maria. De Morais. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Metal Livros/ Rio de Janeiro:Objetiva, 1999.

37 DANTAS, 2009, op., cit.


| 30

embasamento. Para uma melhor compreensão deste universo de representações da paisagem,


utilizou-se a divisão proposta por Souza (1995) em sua tese: Gosto, sensibilidade e objetividade na
representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de
Janeiro e México (1820-1852), no qual se divide em duas classificações: panoramas e vedutas.
O enquadramento a partir da rua ou do próprio viajante no interior da casa, se não
participando ativamente das manifestações sociais citadinas, pelo menos observando-a é o tema
do terceiro capítulo, no qual apresenta-se as representações das construções brasileiras
oitocentistas e de seus detalhes, com enfoque na arquitetura doméstica.
Por fim, as considerações finais desta monografia destacam as discussões sobre a cidade
brasileira do século XIX ainda de fortes traços coloniais na visão de William Burchell e os seus
desdobramentos.

38 SOUZA, Valéria Salgueiro de. Gosto, sensibilidade e objetividade na representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados
pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 1995. 392 f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
| 31

1
As pátinas que compõem CAPÍTULO

a imagem
Os viajantes adentram os

trópicAnexosos.
AS PÁTINAS QUE COMPÕEM A IMAGEM: OS VIAJANTES ADENTRAM OS
TRÓPICOS
| 32

Há duas fases bem distintas num pôr de sol. No inicio, o astro é arquiteto.
Somente em seguida (quando os seus raios chegam refletidos e não mais
diretos) ele se transforma em pintor. Desde que desaparece atrás do horizonte,
a luz enfraquece e faz aparecer planos cada vez mais complexos. A luz intensa é
inimiga da perspectiva, mas, entre o dia e a noite, há lugar para uma arquitetura
tão fantástica quanto temporária.

Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos.

O interesse pela construção de imagens relativas ao Brasil por parte de relatos


estrangeiros não é recente. Após a revolução de 1930 e com a criação do Ministério da Educação,
a coleção Brasiliana39 foi idealizada e publicada pela Editora Nacional no intuito de catalogar e
publicar uma série de obras nacionais e estrangeiras que se debruçaram sobre o Brasil, nos
diversos campos de estudo, desde a História às Ciências Naturais, passando por áreas como
Geografia, Sociologia e Ciência Política. A quinta obra publicada, no ano de 1932, seria as
reminiscências de viagem de Auguste de Saint-Hilaire, Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas
Gerais e a São Paulo, o que já apontaria a importância dada aos relatos viajantes na construção da
história do Brasil.40 Muitas vezes únicas testemunhas de vários aspectos relativos à sociedade
brasileira, os viajantes seriam utilizados largamente na tentativa de cobrir desvãos de nossa
história. Portanto, o papel da narrativa de viajantes estrangeiros seria fundamental nas primeiras

39Qualquer coleção de de obras (fotos, filmes, gravuras, livros, estudos, ensaios, documentos ou artigos) cujos temas
sejam relativos ao Brasil pode receber o nome de brasiliana

40 Esse desejo em se publicar sobre o Brasil não seria privilégio da Companhia Editora Nacional, Documentos
Brasileiros, lançada em 1936 pela Editora José Olympio e a Biblioteca Histórica Brasileira, produzida a partir de 1940 pela
Livraria Martins Editora, seriam outros exemplos desse esforço. A respeito desse boom de publicações sobre o Brasil,
Cristina Carneiro Rodrigues (2012) explica que elas seriam lançadas―[...]Com o objetivo de desvendar, mapear,
estudar e diagnosticar a realidade brasileira, em sintonia com o quadro de interesse pelo Brasil gerado pelo governo,
que envolveria a criação de um movimento de unificação cultural e a noção de ―civilizar‖ o país[...]‖In:
RODRIGUES, Cristina Carneiro . Brasiliana e Reconquista do Brasil: projetos editoriais de traduções. Revista de
Letras (Curitiba. 1996), v. 85, p. 219-230, 2012.
| 33

obras que tratariam sobre o Brasil e sua conformação física e social do século XX.
Um dos maiores historiadores brasileiros, Gilberto Freyre, em sua célebre obra
Casa Grande & Senzala (1933), já testemunhava a favor da seguridade das informações contidas
nos relatos dos cronistas estrangeiros:

Para o conhecimento da história social do Brasil não há talvez fonte de


informação mais segura que os livros de viagem de estrangeiros - impondo-se,
entretanto, muita discriminação entre os autores superficiais ou viciados por
preconceitos não os Thévet, os Expilly, os Debadie- os bons e honestos da
marca de Léry, Hans Staden, Koster, Saint-Hilaire, Rendu, Spix, Martius,
Burton, Tolenare, Gardner, Mawe, Maria Graham, Kidder, Fletcher41.

A Abertura dos Portos, em 1808 e a vinda desta legião de artistas e naturalistas


estrangeiros seria consagrada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda como um ―novo
descobrimento do Brasil‖:

A não ser no Quinhentos e, até certo ponto, no Seiscentos, nunca o nosso país
parecera tão atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos economistas, aos
simples viajantes, como naqueles anos que imediatamente se seguem à
instalação da Corte portuguesa no Rio e à abertura dos portos ao comércio
internacional. O fato acha em si mesmo sua explicação. A contar de 1808 ficam
enfim suspensas as barreiras que, ainda pouco antes, motivaram o célebre
episódio daquela ordem régia mandando atalhar a entrada em terras da Coroa
de Portugal de ‗certo Barão de Humboldt, natural de Berlim‘, por parecer
suspeita a sua expedição e sumamente prejudicial aos interesses políticos do
Reino. De modo que a curiosidade tão longamente sofreada pode agora
expandir-se sem estorvo, e não poucas vezes, com o solícito amparo das
autoridades‖. (Holanda, 1975, p. 12).

Até mesmo os relatos de viagens às terras mineiras em Caio Prado Jr.42 e a escolha pela
multiplicidade de temáticas que buscava se debruçar, das manifestações religiosas às
características topográficas da região, bem como suas descrições das cidades e de aspectos
econômicos, travariam diálogos com as produções dos viajantes naturalistas como Saint-Hilaire
ou George Gardner. O seu método de investigação da sociedade brasileira também incluiria o
documento pictórico; à maneira dos artistas estrangeiros, Prado Jr. enquadrará em suas
fotografias o pitoresco e a decadência destas cidades. Na Figura 1 a fotografia tem como
observação escrita a punho pelo próprio Prado Jr: ―observar a guarnição exterior das casas, de

41Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia.
patriarcal, 51. ed. revista, S„o Paulo, Global, 2006, p. 47.

42 IUMATTI, Paulo Teixeira . Um viajante e suas leituras. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 43, p. 108-129, 2007.
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tábuas, utilizada em quase todas as construções do povoado‖43, a Figura 2, por outro lado, traz
uma igreja em ruínas enquadrada.

Figura 1 Caio Prado Jr. Aspecto do arraial de Rio do Figura 2 Caio Prado Jr. Ruínas de igreja em Rio do
Peixe- MG. Fotografia. Fundação Caio Prado Júnior. Peixe-MG. Fotografia. Fundação Caio Prado Júnior.

Fonte: TEIXEIRA, 2007. Fonte: TEIXEIRA, 2007.

O historiador Luis da Camara Cascudo, ao se debruçar na temática da história da


culinária brasileira, utilizar-se-á de inúmeros relatos de viajantes como fontes documental para sua
obra História da Alimentação no Brasil.. Inclusive, sua divisão etnográfica de cada parte do primeiro
tomo (cardápio Indígena, Dieta Africana e Ementa portuguesa) lembrará muito de todo o seu
pensamento, mas remeterá também à divisões como as de Johann Moritz Rugendas, quando
apresenta as tipologias edilícias e os tipos humanos 44
A década de 1990 trouxe consigo uma nova abordagem ao assunto sobre os viajantes do
século XIX. Não mais vistos como retratistas fieis das transformações da urbe no século XIX, os
esforços das pesquisas delineavam novas viagens em torno desse acervo iconográfico.
Não há como discorrer sobre o tema dos viajantes europeus sem citar a pesquisadora Ana
Maria Morais Belluzzo e seu livro O Brasil dos Viajantes (1994), que traça um panorama dos relatos
sobre a paisagem brasileira e como a mesma ocupou o imaginário europeu, desde o século XVI
até o século XIX, desta vez delineando sua análise com um material até então pouco explorado: o
documento pictórico. Seu estudo vinha de momento anterior, quando coordenava a pesquisa
"Artistas Viajantes e Visões da Natureza", que tinha por objetivo identificar e cadastrar as
imagens produzidas por mais de 300 autores entre os séculos XVI e XX45. Sua importância

43 IUMATTI, op. cit, p.109.

44CASCUDO, Luís da Câmara: História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 1983.

45 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/8/15/ilustrada/13.html
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também está atrelada ao ineditismo em ao apresentar– por meio da publicação quanto pela
mostra a qual se originou – uma importante coleção de imagens até então desconhecidas pelo
grande público.
Ainda em relação ao real e imagem, neste caso a fotografia, mas com algumas
considerações que cabem ao universo pictórico como um todo, o ensaio de Vânia C. de Carvalho
e Solange F. de Lima (1995)46, também lançaria um olhar sobre a representação iconográfica
acerca do Brasil. Em outro esforço de apresentar a produção destes viajantes, com foco na
tentativa de resgate da história urbana na primeira metade do século XIX de três cidades (Rio de
Janeiro, Cidade do México e Buenos Aires) Valéria Salgueiro de Souza (1995)47, em sua tese de
doutorado também trataria de suas produções, circulação e apropriações.
Sobre o Brasil representado em telas e papéis, o crítico de arte Rodrigo Naves lançou mão
do exemplo de Debret, já no inicio de sua obra A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira (1996),
para exemplificar como o Brasil foi visto e reproduzido pelos viajantes europeus. A discussão
empreendida em A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira já nos trazia a questão do inadequado
uso da iconografia viajante como fonte histórica sem aprofundar sua visão para além desta
primeira impressão de testemunho ocular:

Mas como esses artistas [...] com raríssimas exceções, foram sempre apreciados
como documentaristas, análise do aspecto propriamente estético de suas obras
e objetos representados colocou-os num pé de igualdade pouco esclarecedor.
Serviram de material para etnólogos, historiadores e antropólogos, sem que
seus próprios trabalhos merecessem uma análise adequada.48

Luciana de Lima Martins (2001) também nos traz importantes contribuições ao tema da
cidade retratada pelos viajantes. Em O Rio de Janeiro dos Viajantes: o olhar britânico (1800-1850)49
analisa a obra dos viajantes ingleses diante das especificidades do cenário brasileiro oitocentista,
apresentando-nos as singularidades de suas visões sob a ótica naturalista. Seriam essas leituras da

46CARVALHO, Vânia Carneiro de e LIMA, Solange Ferraz de. ―Fotografia e História: Ensaio Bibliográfico‖, in
Anais do Museu Paulista. São Paulo, NS 2, 1994, pp. 253-300.

47 SOUZA, Valéria Salgueiro de. Gosto, sensibilidade e objetividade na representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados
pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 1995. 392 f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
48 NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Compainha das Letras. 1996.

49MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes, o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001.
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paisagem, nas palavras de Martins, que construiriam, ―um vocabulário iconográfico para o
brasileiro falar de si mesmo‖50, base para os discursos sobre a construção da identidade brasileira
proferidos pela elite imperial, republicana e até mesmo pela classe intelectual modernista51.
Outra contribuição pertinente ao emprego das imagens viajantes em nossa historiografia
encontra-se na tese do pesquisador George Dantas, A formação das representações sobre a cidade colonial
no Brasil (2009), a qual aborda a leitura realizada pelos viajantes estrangeiros no início do século
XIX sobre a cidade brasileira e como estas visões negativas foram problematizadas e
instrumentalizadas para servir a inúmeros propósitos, sobremodo como endossaram as
justificativas para as reformas e melhoramentos por que passaram muitas cidades na virada para o
século XX.
A cidade, quer seja como cenário, quer seja como protagonista, sempre foi alvo de
representações visuais ao longo da história; porém, a partir do Renascimento passa a ser objeto
de um gênero pictórico, e, graças à cartografia ―descritivo-ornamental‖ do trecento italiano,
desvincula-se do texto, encerrando a mensagem que porta nela própria, não mais como aporte
para os textos52.
O meio construído e as interações sociais formam este sistema complexo a qual
denominamos ―cidade‖ e o pesquisador que decide trilhar os estudos sob a perspectiva da
história urbana deve entender que não se deve categoriza-la como um elemento estável e
genérico, que vai, ao longo do tempo, sofrendo variações unidirecionais; como Ulpiano de
Meneses (1996) aponta, ―faz-se necessário historicizar a cidade como ser social. Historicizá-la é
defini-la e explorá-la levando em conta sua prática e representações pela própria sociedade que a
institui e a transforma continuamente53.
O prisma de leituras que abordam a cidade possuem muitas faces e, aos que trilham o
caminho da história da cidade por meio das artes, impreterivelmente também esbarrarão em
alguns obstáculos, como as linguagens especificas de cada manifestação artística. No entanto, a
historiadora Sandra Jatahy Pesavento(2002) nos alerta para que, ao se escolher a arte como objeto

50 MARTINS, 2001, op., cit.

51 MARTINS (2001) apud LENZI, Maria Isabel Ribeiro. “Para aprendermos história sem nos fatigar”, a tradição do
antiquariado e a historiografia de Gilberto Ferrez. 2013. 267 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2013.p.221.

52 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de . Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da
iconografia urbana. Revista USP, São Paulo, n.30, p. 144-153, 1996, p.145.

53 Ibidem, ibid, p. 146.


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de estudo, não há a necessidade de dominar, por parte do pesquisador, os elementos mais


complexos que a constituem; é necessário conhecer seus elementos básicos e respeitar suas
especificidades54. Pasavento retoma Haskell ao iluminar uma de suas passagens relativas ao papel
de fonte para o passado que a arte exerce, atentando, à necessidade de saber lê-las:

―[...] Ou seja, buscar a imagem que o passado deixou de si mesmo. Como


afirma Haskell ( 1995: 23), "o historiador interpreta melhor aquilo que nós
escolhemos nomear de 'arte' se ele o estuda em ligação com os outros
testemunhos utilizáveis, mas a arte possui uma ' linguagem' própria que só
podem compreender aqueles que procuram penetrar, em sua diversidade, seus
objetivos, convenções, estilos e técnicas"55.

A cidade, retomando o conceito de Meneses (1996)56, deve ser compreendida de acordo


com três dimensões interligadas e dependentes entre si: A cidade é artefato, é campo de forças e é
imagem. A cidade é artefato uma vez que é um produto complexo de interações sociais e
históricas; constitui-se também como um vetor de um campo de forças que incidem em
intensidades variadas ao longo do tempo: forças econômicas, territoriais, sociais, políticas,
culturais, especulativas, políticas, etc.
A cidade também é uma representação; práticas sociais que produzem substância material
não ocorrem instintivamente. Se há um resultado físico, há de se ter representações sociais
envolvidas no processo, que segundo o autor, abarcaria a imagem propriamente dita (imaginário,
imaginação) e incorporaria outros elementos, como os esquemas de inteligibilidade, memória,
classificações, etc. Ao trabalho ora proposto, interessa-nos a discussão sobre o caráter ativo das
imagens na construção do real, o que nos remeteria no emprego desta imagem final construída a
partir dos vários relatos estrangeiros e de como foram manuseadas ao propósito de legitimar
posteriores intervenções na dimensão arquitetônica e urbana da cidade.
Perceberemos que diferentes gerações, sob diferentes estímulos e influências, leram e
releram as heranças, acumuladas ao longo da história relativas à nossa cultura. Tão diversos
quanto o campo das produções culturais possa abarcar, alguns destes elementos dizem respeito à
quem estuda a morfologia e história dos núcleos urbanos, como Meneses (1996) aponta:

54PESAVENTO, Sandra Jatahy. Esse mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história. CPCOC/FGV,
Estudos Históricos, Arte e História, nº30, 2002/2.

55 Ibidem, p. 4.
56MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Morfologia das cidades brasileiras: Introdução ao estudo histórico da iconografia
urbana, op.cit. p.08.
| 38

Por certo, há elementos morfológicos que parecem dotados de tal densidade


que os habilita a, sozinhos, remeterem a todo um conjunto de significações e,
mesmo, à cidade inteira. Assim, por metonímia, tomando a parte pelo todo, as
muralhas já foram convocadas como referência plena a certas cidades antigas;
ou, em nossa cidade colonial, a Casa de Câmara e Cadeia, o pelourinho, o
traçado das ruas e o desenho de praças e largos, além de chafarizes e outros
equipamentos urbanos e assim por diante57.

A leitura das obras de arte proposta pelo trabalho deve fazer iluminar, dentre este vasto
universo de elementos que compõem a tela e os desenhos, pontos a serem considerados relativos
às cidades e suas tipologias representadas. O ―ler‖ a obra deve apontar os matizes com os quais a
cidade é pintada: o fascínio, a indolência, a homogeneidade, o pictórico, etc. O tópico a seguir
busca subsidiar, por meio do referencial teórico-metodológico, as ferramentas necessárias ao
leitor para que a leitura desta iconografia escolhida seja realizada sempre em consideração à
perspectiva da história cultural urbana.

1.1 A pintura é uma feiticeira: Ferramentas para a leitura da obra de arte.

―A pintura é a mais assombrosa das feiticeiras. Consegue persuadir-nos, através


das mais transparentes falsidades, de que é a pura verdade‖.

Jean Etienne Liotard. Tratado dos princípios e das regras da pintura.

O historiador francês Jacques Le Goff em seu livro História e memória (1994)58, nos
apresenta seu conceito de História; nas palavras do autor, a história seria a forma científica da
memória coletiva, resultado de uma construção galgada em dois elementos, o documento e o
monumento59. Jacques Le Goff (1994) afirma que o que sobrevive à passagem do tempo não é
mero conjunto do que existiu nos tempos passados, são escolhas, quer seja pelos que ―operam no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade‖, quer seja ―pelos que se dedicam à
ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores‖60. Estes materiais da memória podem

57 MENESES, 1996. p.07. op.cit.


58 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 1994.
59 Ibidem, p.536.

60 Ibidem.
| 39

apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos,


escolha do historiador e considerados prova escrita da história61.
Sua análise do que pode ser considerado como documento (portanto, prova conclusiva e
detentora das verdades a respeito do passado), refuta a noção da escola positivista de que, para se
enquadrar nesta condição, o objeto deveria ser de natureza unicamente textual, discutindo sobre a
necessidade de rompimento desta visão limitadora. Sobre essa visão, a Escola dos Annales,
movimento historiográfico ao qual Le Goff auxiliou na criação, abriu o campo da História para
os estudos multidisciplinares, ao desatar as amarras das divisões das Ciências Sociais (História,
Urbanismo, Economia, Geografia e assim por diante)62, ampliando o conceito de documento: a
arquitetura, os dados econômicos, as esculturas, as pinturas, enfim, as várias maneiras – inclusive
a textual- de uma sociedade se manifestar podem e devem ser utilizadas no auxilio da narrativa de
seus processos históricos.
O uso da obra de arte como documento é uma realidade na historiografia a respeito das
representações como ferramenta de leitura de uma sociedade. Ao investigar de forma crítica o
que as pátinas de tinta escondem, levando em consideração não apenas as impressões que estão
mais nítidas, mas também o contexto no qual foi criada e lida, novas camadas de significação,
ainda desconhecidas pelos pesquisadores que abordam o tema podem ser reveladas. 63 A
historiadora Sandra Pesavento, a respeito do emprego da arte como fonte para o historiador
afirma que ela diz-nos ―não as verdades do acontecido, e sim as verdades do simbólico, expressas
no imaginário de uma época‖64. Importante contribuição ao emprego das fontes alternativas nos
estudos históricos tem como origem um dos fundadores da Escola dos Annales, o historiador
Lucien Febvre:

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem.
Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não
existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para
fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos.
Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os
eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras
feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa

61 Ibidem, p.535

62BARROS, José D'Assunção A Escola dos Annales e a crítica ao Historicismo e ao Positivismo. Revista Territórios &
Fronteiras, vol.3, jan/jun 2010 Cuiabá: UFMT, 2010.

63ANTUNES, A. P.; WILKE, V. C. L. . Imagens da Ciência Brasileira: a produção iconográfica do artista viajante
Oitocentista. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 5, p. 194-209, 2012.

64PESAVENTO, Sandra J. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história, In: Estudos Históricos, n. 30,
2002, p. 57
| 40

palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o


homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as
maneiras de ser do homem65.

Outro conceito que permeará este trabalho é o de Representação; largamente utilizado


nos discursos atrelados ao campo da História Cultural, e, especialmente no Brasil, seu uso
auxiliou na renovação da historiografia brasileira a partir da década de 1980, de acordo com Maria
Helena Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra66.
O historiador francês Roger Chartier é um dos maiores expoentes no estudo das
representações. Em sua obra História Cultural: entre práticas e representações (1990), Chartier nos
apresenta seu conceito de História Cultural, cujo objetivo principal seria ―identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler‖ 67. Sua obra traz duas importantes contribuições à discussão, sobremodo relativas às
representações.
A representação propriamente dita possuiria, segundo o autor, duas possibilidades de
significação. A primeira trataria do objeto ausente, substituído por uma imagem que pudesse
reconstruí-lo na memória do espectador. O segundo abordaria a necessidade de uma presença de
algum objeto ou indivíduo e de um público68.
A segunda noção tratar-se-ia do termo ―apropriações‖. Chartier refere-se à maneira como
uma imagem, texto ou pensamento se revela ao receptor, de como se é dada a ler por outras
realidades e contextos da que foi produzida. O autor, por fim, aponta o universo de
interposições, apropriações e interpretações possíveis a partir deste novo olhar voltado a estas
formas de leitura.69 O que nos interessa, portanto, é perceber que a imagem em Chartier se coloca
como um artefato cultural capaz de ser produzida e circular entre grupos distintos, transportando
e suscitando diferentes significados ao longo do tempo e portando-se muito mais do que mero
recurso narrativo de aporte para o documento escrito. Texto e imagem, mesmo que lado a lado,
podem conter e contar ―histórias‖ dissonantes.
65 FEBVRE, 1949, p.428 apud: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1990. p. 530.
66 PELEGRINI, Sandra C. A.. Representações: Contribuições a um debate transdisciplinar. Rev. bras. Hist., São Paulo ,
v. 22, n. 43, 2002 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201882002000100015&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 17 Out. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882002000100015.

67CHARTIER, Roger; GALHARDO, Manuela (trad.). Historia Cultural: entre praticas e representacoes. Lisboa:
DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 17.

68 CHARTIER, 1990, op., cit., p. 20.


69 SANTOS, 2011, op.cit. p. 29.
| 41

No esforço de auxiliar na compreensão da formação da imagem e dos seus usos


posteriores, faz-se necessário atrelar à discussão acerca das representações os conceitos de lugar-
comum e fundo-comum, elucidados por Myriam R. D‘Allones em Le dépéressiment de la politique :

[o lugar-comum é] constituído por palavras, crenças, opiniões ou mesmo


preconceitos que têm significado para uma ―comunidade política efetiva‖ e que,
mesmo confusas, erráticas e sem precisão, deitam raízes na vida e na experiência
das pessoas; o fundo-comum é o repositório das idéias, noções, etc., que subsidiam
análises, interpretações. Isto é, o lugar-comum é a ―imagem resultante, [e o]
fundo-comum o material com o qual é elaborada e cuja genealogia necessita ser
interrogada‖.70

Ainda na discussão sobre os dois conceitos, Maria Stella Bresciani, apoiada na explanação
de D‘Allones, conceitua lugar-comum como uma palavra cujo significado é prontamente
compreendido e seu significado é considerado coletivo; o lugar-comum participaria de um fundo-
comum, receptáculo de informações, imaginários e preconceitos sobre determinado tema. O
rebatimento das discussões em volta do uso deste diálogo entre lugar-comum, fundo-comum e
representações prestar-se-iam, nas palavras de Dantas (2009) como apoio para ―compreender
diacronicamente a construção e ou uso de imagens recorrentes que formam, conformam ou
sustentam‖71 a imagem final das cidades oitocentistas.
A produção iconográfica criada pelos viajantes promoveu a concepção de um repertório 72
imagético no intuito de traduzir os trópicos aos leitores e consumidores de arte europeus, por
meio de signos73 já conhecidos na literatura de viagem em meio aos cânones das escolas
estilísticas ao quais estes viajantes inserem-se. As escolhas de enquadramento, de composições,
do revelar e esconder aspectos da urbe, não são eleições ingênuas. Segundo Gombrich: "[...] é
claro que toda imagem será de algum modo sintomática de seu criador, mas pensá-la como uma
fotografia de uma realidade preexistente é compreender mal todo o processo de feitura de
imagens‖.74

70 D‘ALONNES, Myrian R. apud DANTAS, 2009, p. 36-37 – nota 38.


71 DANTAS, Op., cit.,. p.38.

72―conjunto de signos que devem ser dispostos por um processo de eleição (seleção)‖. BENSE, MAX & WALTER,
Elizabeth, dir. La semiótica; guía alfabética. Barcelona, Anagrama, 1975. p. 132. Apud: NEIVA Jr. Eduardo. A imagem.
O repertório é uma unidade mais abrangente do que o signo.
73 De acordo com Eduardo Neiva Jr, signo é tudo aquilo que representa algo sob algum aspecto, desde que
preencham a função de representação.

74 GOMBRICH, E. Meditações sobre um cavalinho de pau ou as raízes da forma artística. In: Meditações sobre um cavalinho de pau
e outros ensaios sobre teoria da arte. São Paulo: Edusp, 1999, p.04.
| 42

Portanto, a imagem seria um registro físico de uma experiência visual e sensorial


momentânea e não uma imitação ipsis litteris da realidade. Se a imagem porta em si diferentes
representações, construídas a partir dos preceitos de determinados movimentos artísticos, em sua
superfície também paira os discursos de quem a produz e de quem a aprecia. O documento não
é neutro, como já explicitou Le Goff. Ele, na verdade, ―resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si
próprias75‖. Portanto, atribuir à imagem a alcunha de registro imaculado da realidade demonstra
ser vereda incoerente, pois, nas palavras de Meneses (1996), a imagem é: ―uma construção
discursiva, que depende de formas históricas de percepção e leitura, das linguagens e técnicas
disponíveis, dos conceitos vigentes‖76.
Ernst Gombrich, em Arte e Ilusão (2004), nos apresenta o conceito de Schema (ou
schemata). Segundo Gombrich, "toda representação se funda em convenções‖ daí surge o conceito
que o autor denominará ―schema‖. De acordo com seu conceito, a impressão visual inicia-se com a
ideia do que será representado por meio de categorias universais, i.e, a casa, a porta, a árvore. As
características que distinguiria um grupo de portas, por exemplo, ―são acrescentados a posteriori,
como se o artista preenchesse os espaços em branco de um formulário”.77

Por esse motivo:


ao ser copiada e recopiada, a imagem fica assimilada na schemata dos seus
próprios artesões (..) A ‗vontade de formar‘ é mais uma ‗vontade de conformar‘,
ou seja, a assimilação de qualquer forma nova pela schemata e pelos modelos que
o artista aprendeu a manipular78.

A schemata, portanto, funciona como ponto de partida para o artista desenvolver suas
experiências, um vocabulário indiciário de motivos por ele conhecidos e que o auxiliarão na
representação da paisagem, como Gombrich discorre:

Ao esquadrinhar a paisagem, as vistas que podem ser ajustadas com êxito à


schemata que ele aprendeu a manejar saltam aos olhos como centros de atenção.
O estilo, como veículo, cria uma atitude mental que leva o artista a procurar na
paisagem que o cerca elementos que seja capaz de reproduzir. A pintura é uma

75 Ibidem, p.547.

76MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao estudo histórico da iconografia
urbana. Revista USP, São Paulo, n.30, p.144-155. 1996, p.152.

77 GOMBRICH, 1986, op., cit., p. 63.


78 Ibidem, p.67.
| 43

atividade, e o artista tende, consequentemente, a ver o que pinta ao invés de


pintar o que vê79.

Para além dos cânones de determinado movimento artístico, o registro visual traz a tona
discursos específicos, construídos com base na bagagem de quem produz e de quem ―consome‖
a obra. Afinal, não existe um olhar ―puro‖ que capta a realidade, mas como afirma Ernest
Gombrich, um modo de apreensão conformado numa determinada tradição, que percebe, na sua
projeção do real, aquilo que, segundo o observador, merece ser fixado80. Sob esta perspectiva,
novas realidades vivenciadas pelo artista deveriam acrescentar novos elementos a schemata
conhecidas pelo artista e, ao serem copiadas e recopiadas ao longo do tempo, esta imagem
―estrangeira‖ passaria também a compor à schemata dos artistas no geral.81
Erwin Panofsky, célebre historiador da arte alemão, tornou-se importante figura no
campo da História da Arte graças aos seus estudos de iconologia. A partir de seu método
iconológico, densamente influenciado por sua relação com as ideias de seu mentor, Aby
Warburg82, concebeu importantes contribuições para as bases interpretativas de obras de arte em
seu artigo Iconografia e iconologia uma introdução ao estudo da arte da Renascença escrito em 193983.
Partindo do pressuposto de que a arte sempre traz consigo um significado, Panofsky elaborou
três níveis de análise, pautado na descrição, na identificação e na compreensão da obra de arte. O
autor inicia a análise temática através da descrição visual do objeto artístico, esta categoria
consiste na percepção da obra em sua forma pura. O arquétipo utilizado foi o de um quadro de
Da Vinci, A Última Ceia, neste nível, a mensagem passada pela pintura nada mais é do que a
representação de 13 homens sentados à uma mesa, não sendo necessário maiores conhecimentos
culturais para a apreensão dessa mensagem.

79 GOMBRICH, 1986. p.74.


80 GOMBRICH, 2002. p.77-78

81 GOMBRICH, 1986, p.67.


82 Aby Warburg, refutando a ordem geral da leitura puramente estilística em especial, de seu ambicioso Atlas
Mnemosine, construído a partir de uma coleção de imagens com pouco ou nenhum texto, apontando-nos e agrupando
as influências da Antigüidade Clássica sobre todos os aspectos da civilização européia.

83PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento. In: ____. Significado nas
Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.
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Figura 3 Leonardo Da Vinci, A última Ceia. Afresco, 460 cm x 880 cm. (1495–1498).

Fonte: < http://noticias.universia.com.br/br/images/docentes/u/ul/ult/ultima-ceia-da-vinci-noticias.jpg> Acesso


em: 24 out. 2014.

A segunda camada de análise demanda certo conhecimento iconográfico84, em um nível


básico de interpretação da mensagem e seu significado. Exige também certa ciência da cultura ao
qual a obra de arte está imersa; ainda mencionando A Última Ceia, Panofsky aponta que qualquer
indivíduo que tenha sido educado no Ocidente poderia pressupor que o quadro retrata uma cena
entre Cristo e seus apóstolos.
O último nível de observação indica a leitura da obra de arte como documento de um
ambiente histórico. A análise da terceira camada é conhecida como iconologia85, leitura realizada
através do condicionamento de princípios da arte à época e a sociedade ―qualificados por uma
personalidade e condensados numa obra‖. Através da leitura da imagem por meio dos três níveis
propostos por Panofsky, nota-se claramente a influência do contexto histórico sob o trabalho do
artista.
Embasando suas colocações nas teorias de Cassirer , Panofsky sugere que há mais na obra
de arte do que o que o artista conscientemente imprimiu:

Ao concebermos assim as formas puras, os motivos, imagens, estórias e


alegorias, como manifestação de princípios básicos e gerais, interpretamos

84 Erwin Panofsky define o conceito a partir de seu sufixo grafia, que provém do grego grafhein e significa escrever.
Para o autor, iconografia "é a descrição e classificação das imagens", correspondendo a um "ramo da história da arte
que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma" e é ―de auxílio incalculável para o
estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer
interpretações ulteriore (PANOFSKY, 1991, p.53). Embora forneça informações importantes para a análise da obra
de arte, por si só não realiza as interpretações.

85 A iconologia seria, portanto, a responsável pelas interpretações, ―Pois, se o sufixo ―grafia‖ denota algo descritivo,
assim também o sufixo ―logia‖ – derivado de ―logos‖, que quer dizer pensamento, razão –denota algo interpretativo.
[...] Assim, concebo a iconologia como uma iconografia que se torna interpretativa‖ (Ibid., p. 54)
| 45

todos esses elementos como sendo o que Ernst Cassirer chamou de valores
―simbólicos‖. [...] A descoberta e interpretação desses valores „simbólicos‟ (que
muitas vezes são desconhecidos pelo próprio artista e podem, até, diferir
enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar) é o objeto do que
se poderia designar por ―iconologia‟ em oposição a ―‘iconografia‖.

De acordo com o historiador da arquitetura Giulio Argan em sua célebre obra História da
arte como História da Cidade: ―o grande mérito de Erwin Panofsky consiste em ter entendido
que, apesar da aparência confusa, o mundo das imagens é um mundo ordenado e que é possível
fazer a história da arte como história das imagens‖86.
Ainda a respeito de Argan e sua obra História da arte Como Historia da Cidade, ressalta-se a
importância de seu estudo da relação entre obra de arte e a cidade. Sua discussão é balizada em
três importantes conceitos: cidade, objeto e arte. Segundo Argan, a obra de arte determina um
espaço urbano, uma vez que é a necessidade de representar de quem vive no espaço uma forma,
seja verdadeira ou distorcida, desta realidade espacial em que opera. A obra de arte, nos conceitos
de Argan, seria uma impressão das informações sobre hábitos e atitudes de um período histórico,
e dela se desprende, inclusive, suas aspirações e suas projeções a respeito da realidade87.
O que não deve ser perdido do horizonte de análises é ―colocar a imagem fora do real, de
que ela faz parte integrante. Práticas e representações [...] são indissociáveis‖88 . Para Meneses
(1996) no uso de fontes iconográficas para a produção do conhecimento histórico deve-se ter
em mente que as imagens são uma representação em si e mobilizam outras representações. Não é
possível pensar nas imagens apenas como um registro do real externo e objetivo, buscando
avaliar seu grau de fidelidade, pois a imagem é: ―uma construção discursiva, que depende de
formas históricas de percepção e leitura, das linguagens e técnicas disponíveis, dos conceitos
vigentes‖89.
Se se mostra ingênua a polaridade entre realidade e imaginação, Meneses avança na
discussão e levanta a questão a respeito do suposto caráter probatório da imagem urbana. A ideia
da imagem ter seu valor documental balizado pela representação mais ou menos coincidente com
a paisagem real mostrar-se-ia redutora.

ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte. In: ______. História da Arte como História da Cidade. São Paulo:
86

Martins Fontes, 1992, p. 51.

87 ARGAN, Op., cit.

88 MENESES, 1996, op., cit.


89 Ibidem, p. 152.
| 46

A diferença importante entre um desenho a lápis realizado por um corsário holandês do


século XVII e a aquarela de um viajante como Thomas Ender não reside na ―infidelidade
histórica‖ por causa de uma suposta inferioridade em relação às habilidades artísticas; na verdade,
importa-nos as diferentes visões que uma mesma paisagem pode suscitar em indivíduos de
formações e valores distintos e de como, mesmo divergentes, guardarão similaridades entre si. O
seu valor documental estaria expresso, portanto, como fomento das representações sobre a
paisagem brasileiras.
Para realizar as análises das aquarelas e desenhos sobre a cidade em transformação
realizados por Burchell, foram utilizados, como fonte, as oito pranchas apresentadas na obra de
Gilberto Ferrez, O Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro 1825, por William John Burchell, publicado
pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as imagens contidas na obra O Brasil do Primeiro
Reinado visto pelo botânico William John Burchell: 1825/1829, do mesmo autor. Destaca-se que a
reprodução dos desenhos em Ferrez (1981) foram feitas em tons de cinza, o que em alguns
momentos (especialmente quando tratamos das aquarelas) poderia dificultar a análise. Neste
sentido, um conjunto de seis reproduções das aquarelas contidas no Highcliffe Album relativas à
urbe brasileira foi gentilmente cedido pelo Instituto Moreira Salles e, para que o leitor pudesse
também ter a oportunidade de visualizar os pormenores, as reproduções se encontram no anexo
desta monografia.

1.2 As faturas do neoclassicismo e do naturalismo nas imagens do Brasil no


Oitocentos.
―Nature is a language - can't you read?‖

Morrissey e Johnny Marr, Ask.

Para entender a bagagem trazida pelos viajantes europeus do Oitocentos e de como essas
várias faturas90 se uniram na tentativa de traçar uma imagem final da cidade brasileira, é
necessário discorrer a respeito das escolas estilísticas e cientificas em voga no final do século
XVIII e início do século XIX. Dentre elas, destaca-se a escola do Neoclassicismo e o movimento
científico do Naturalismo.

90 O emprego do termo ―fatura‖ neste capítulo está relacionado a duas significações. A primeira corresponde à idéia
de fatura como prova da transmissão de determinados ―valores‖ das escolas neoclássica e do naturalismo. Em Artes,
o termo ―fatura‖ corresponde ao uso peculiar de instrumentos e de materiais que caracterizam e individualiza o
trabalho de um artista.
| 47

A origem do Neoclassicismo está intrinsecamente ligada às profundas mudanças políticas


ocorridas na Europa na segunda metade do século XVIII: na França, o império de Bonaparte, na
Inglaterra, foi seguido pela Regência e na Alemanha, pelo Biedermeier91. Em comum, os
movimentos buscavam na antiguidade greco-romana parâmetros que legitimassem essas reformas
como renovadoras do antigo processo republicano e igualitário. A figura dos pintores de cenas
históricas ganhou destaque92, compondo obras dentro dos cânones da academia, ―[...]procurando
condensar, numa única imagem, o ponto mais importante de um evento, como uma cena de
batalha ou um acontecimento na corte‖93.
A inspiração no modelo clássico não foi ineditismo do Neoclassicismo, o Renascimento
já havia explorado o retorno ao passado greco-romano em sua arte; entretanto, os artistas
neoclássicos trarão outro conteúdo revestido da estética antiga: As mudanças econômicas,
religiosas e politicas usariam a arte como propagadora de suas novas ideias. A ―nobre
94
simplicidade e a tranquila grandeza‖ dos preceitos greco-romanos- linhas simples e elegantes,
desenhos claros e concisos- também serviriam como um descanso à opulência desmedida do
barroco, tão representativa dos regimes monarquistas95. Porém, ressalta-se que a intensidade do
Barroco diferiria entre as nações.
O Barroco foi profusamente empregado na arquitetura das igrejas católicas romanas pela
França e Itália, mas a Inglaterra protestante teria seus templos construídos na sobriedade e
moderação de influência renascentista96. Gombrich, em A História da Arte, revela-nos que ―o
temperamento geral do país [Inglaterra] opunha-se aos voos de fantasia dos projetos barrocos e a

91 O período Biedermeier estende-se de 1815 (por ocasião do Congresso de Viena) a 1848 e foi caracterizado pela
restauração e desenvolvimento dos estados alemães após a era napoleônica. Nas artes, o Biedermeier traria forte
cunho conservador. Ao não tratar dos temas sociais e políticos, as obras teriam como tema a família e a fuga para o
idílio.

92 DIENER, 2008, op., cit., p.71.

93COELHO, Mário César. Artistas viajantes e acadêmicos. Revista Esboços, Santa Catarina, v. 1, n. 12, p.165-171, maio
2004. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:vyjyGUcEXEwJ:https://periodicos.ufsc.br/index.php/
esbocos/article/download+&cd=1&hl=pt-BR >. Acesso em: 25 ago. 2014, p.166.

94 JANSON, H. W. História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

95 ALBUQUERQUE, André Luis de Castro et al. A Pintura em Foco: o neoclassicismo em uma abordagem
historiográfica. Revista Homem, Espaço e Tempo. Vale do Acaraú. v. , n. , p.1-12, mar. 2008. Anual. Disponível em:
<http://www.uvanet.br/rhet/artigos_marco_2008/pintura_em_foco.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2014.

96 GOMBRICH, Ernst. A História da Arte, Rio de Janeiro: LTC, 1999 p.77.


| 48

uma arte que visava ao desencadear irreprimível de emoções‖. 97 O mesmo comedimento seria
encontrado inclusive nas famosas pinturas de paisagem inglesa.
As escavações que posteriormente fariam ressurgir as cidades de Herculano e Pompeia,
no segundo quartel do século XVIII, influenciariam decisivamente o fortalecimento do gosto
pelo ―estilo grego‖. Os locais das escavações seriam visitados nos Grand Tour98 e virariam alvo de
estudo de inúmeros artistas e auxiliariam na sedimentação dos preceitos clássicos na parcela
―ilustrada‖ da população.

Figura 4 Pietro Fabris, Descobrimento do Templo de Isis em Pompéia (ca. 1740)

Fonte:< http://classicgrandtour.com/2014/01/26/mozart-en-pompeya/ >Acesso em: 13 out. 2014.

As grandes descobertas da Antiguidade Clássica giram em torno de obras tridimensionais,


as esculturas; desta forma, a herança da perspectiva apreendida pelos gregos e ecoada nas pinturas
do renascimento e maneirismo seriam uma das maiores influências pictóricas na obra
neoclássica99.
Para os viajantes tornava-se atividade espinhosa a tentativa de encaixe dos parâmetros
neoclássicos de igualdade na representação de uma sociedade- cujos alicerces econômicos eram o
trabalho escravo- sem cair no falseamento e artificialidade100. Daí entende-se uma série de
escolhas feitas por alguns pintores, como Ender e Taunay, ora miniaturizando os escravos, ora
retratando-os quase miméticos à paisagem, tamanha sua dificuldade em representá-los.

97 Ibdem p. 460. O autor ainda retoma, como que para ratificar o emprego da parcimônia e sobriedade na arte
inglesa, a herança puritana e do protestantismo, que se opunham contra imagens e luxo nas artes.

98 Grand Tour era uma viagem realizada, em sua maioria, por jovens das classes mais abastadas pelo continente
europeu, que seguia um itinerário que os expusessem à herança cultural da Antiguidade Clássica e do Renascimento.
Cf em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/grtr/hd_grtr.htm Acesso em 13 de out. de 2014.

99 ALBUQUERQUE et al. (2008), p.03.


100 DIENER, 2008, p.71
| 49

Figura 5 Thomas Ender, Cercanias de Botafogo, Figura 6 Thomas Ender, Porto Estrela, 1818.
1817/1818.

Fonte:<http://www.casaruibarbosa.gov.br/oprazer Fonte:<http://mirindibaipcca.blogspot.com.br/200
dopercurso/natureza.htm >Acesso em 03 nov. 2014. 8/07/relato-do-naturarista-auguste-de-
saint.html>Acesso em 03 nov. 2014.

Os artistas estrangeiros oitocentistas encontraram um Brasil em que a arte dominante era


de inspiração barroca, a qual sublimava o clero e a corte em plena ―Época das Luzes‖. Pouco
antes de sua chegada ao Brasil, a Missão Francesa teve, por incumbência, a tentativa de atualizar a
arte brasileira de acordo com seus princípios. Evidentemente, que seu raio de influência
estendeu-se pouco além da capital. O estilo de representação neoclássico dos artistas europeus
em contraponto ao barroco e ao rococó da arquitetura e arte majoritariamente vernacular,
deixaria se contaminar pela paisagem tropical e por suas cores vivas, como também a alteraria,
imprimiria seus esquemas – se não em sua totalidade, pelo menos parcialmente- na sua
representação. Os esquemas utilizados pelos europeus ao retratar a paisagem brasileira teriam
como ponto de partida o conceito de pitoresco ligado à representação da natureza.
A presença da natureza nas artes é percebida desde as primeiras incursões do ser humano
na tentativa de imprimir sua visão da realidade, entretanto, seria no surgimento da sociedade
burguesa e industrial, no final do século XVIII, que o entorno natural ganharia importância. A
crescente urbanização e consequente esvaziamento das zonas rurais europeias foram o plano de
fundo para o surgimento da corrente artística e literária do Romantismo. Dentre inúmeras
discussões inseridas no Romantismo, pode-se iluminar a tentativa do reencontro com a natureza,
permeada pela nostalgia aos tempos passados. A idéia de paisagem como um excerto do
ambiente natural dotado de características inerentes ao indivíduo é contemporânea aos avanços
das ciências naturais101.

101 FAVERO, Franciele. O Romantismo e a Estetização da Natureza, disponível em:


http://www.ceart.udesc.br/dapesquisa/files/9/02VISUAIS_Franciele_Favero.pdf.
| 50

Foi necessária a distância entre o ser humano e a natureza que o circundava para que ele
pudesse então observar a paisagem natural de forma estetizada, com valor artístico e não apenas
mero plano de fundo para suas expressões artísticas:

―o sentimento da natureza não data do romantismo: ele existe há muito tempo


em nossas sociedades, e as religiões de épocas antigas são testemunhas deste fato.
Porém, o gosto pela paisagem, este produto especial, veio tardiamente, por que
sua criação, justamente, exigiu a separação desse sentimento unitário da grande
natureza‖.102

John Ruskin, em meados do século XIX, valia-se do conceito de pitoresco para qualificar
uma edificação e agregar valor cultural e histórico. As ―pátinas do tempo‖ confeririam ao objeto
arquitetônico estilo característico e uma idéia de singularidade103. O termo pitoresco surge no
final do século XVIII, como maneira de nomear uma nova categoria estética em relação à
paisagem natural e representada, antagônica ao conceito do sublime. O
sublime busca reações estéticas na qual a sensibilidade se volta para aspectos extraordinários e
grandiosos da natureza, considerada um ambiente hostil e misterioso, muitas vezes insinuando
sentimentos como o medo e a solidão nas obras. Não é raro a massa arbórea representada
mostrar-se escura, densa e intransponível. Em oposição ao sublime, o conceito de pitoresco
busca acender as assimetrias e variações nas cenas, valorizando as imperfeições do ambiente,
sempre vistas como agradáveis, buscando representar uma natureza acolhedora e convidativa. O
pitoresco designa tanto o objeto natural quanto a sua representação. Pode-se observar, como
expressão artística exemplar do pitoresco, a paisagem dos jardins ingleses, em que a natureza é
―educada‖ e guiada pelas mãos dos homens, entretanto, sem perder sua espontaneidade. As
figuras 7 e 8 são exemplos dos estilos do sublime e do pitoresco, respectivamente:

102TIBERGHIEN, Gilles A. Nature, Art, Paysage. École nationale supérieure du paysage, Centre du Paysage, 2001
apud FAVERO, Franciele. O Romantismo e a Estetização da Natureza, disponível em:
http://www.ceart.udesc.br/dapesquisa/files/9/02VISUAIS_Franciele_Favero.pdf.
103OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de. O pensamento de John Ruskin. Resenhas Online, São Paulo, 07.074, Vitruvius,
fev 2008.
| 51

Figura 7 Philippe de Loutherbourge, ―Avalanche nos Alpes‖, Figura 8 Camille Corot, Souvenir de Mortefontaine, exemplo
1803. Nota-se as características do estilo sublime nas cores e de pitoresco nas artes, notar as cores esmaecidas e o sfumatto
teatralidade da cena. empregado.

Fonte:http://arthistory327.files.wordpress.com/2012/0 Fonte: <http://museumviews.com/2011/12/hedy-


9/avalanchealps_180311.jpg?w=406&h=277 acesso em. habras-ekphrastic-mothers-amber-daum/jean-baptiste-
camille-corot-souvenir-de-mortefontaine-1864-
09 maio 2013.
collection-the-louvre/> acesso em. 09 maio 2013

O emprego do conceito do pitoresco nas pinturas e desenhos relativos ao Brasil foi de


grande intensidade, uma vez que as novas formas da vegetação e núcleos urbanos tropicais
causavam estranhamento e encanto na mesma medida:

A arquitetura exótica correspondia à teoria do pitoresco na questão de


compatibilidade. Arquitetura pitoresca era arquitetura compatível com seu
entorno, arquitetura, em outras palavras, que se harmonizava com seu ambiente
paisagístico.[...]A convicção de que certos tipos de construção eram compatíveis
com certo tipos de cenários promoveu a reflexão sobre as qualidades que
caracterizaram, ou eram típicas, de uma determinada paisagem104.

A Figura 9 de autoria da viajante inglesa Maria Graham, mostra-nos o emprego do pitoresco


inclusive nas gradações de cores empregadas. Os matizes fantasiosos utilizados na pintura da
vegetação do Corcovado pouco lembram os originais, no entanto, passam a quem observa a obra,
a mensagem de diversidade e estranheza que Graham queria passar.

104 Bernard Smith, European Vision and the South Pacific. apud MARTINS, 2001.
| 52

Figura 9 Maria Graham, "Vista do Corcovado". Notar a utilização de cores (que não condizem com os reais
matizes) para acentuar a idéia de diversidade vegetal.

Fonte: < http://www.casaruibarbosa.gov.br/oprazerdopercurso/natureza.ht > acesso em. 09 maio 2013.

1.3 O Brasil é uma paisagem – As visões estrangeiras oitocentistas

―Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria,
não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o
negam até como valor plástico‖.

Nelson Rodrigues, O Ex-Covarde.

O Brasil, a partir da abertura dos portos, mostrou-se não apenas um novo mercado para a
economia européia, foi também um laboratório para a as ciências e as artes de uma Europa cada
vez mais industrializada. Como descrever uma paisagem tão alheia da encontrada no Velho
Mundo? Como alimentar o crescente interesse pelo exótico? O que reproduzir? O que é digno de
nota? São questões que permeavam a consciência de Burchell e de outros europeus que aqui
| 53

chegavam nos Oitocentos. A natureza indomável dos trópicos brasileiros sempre intimidara o
colono português, que preferia permanecer pelas regiões costeiras conhecidas:

É do verde que emergem índios hostis, animas selvagens, insetos e doenças. É


o verde que previne o olho de encontrar riquezas fáceis de saquear. É o verde
que esconde e protege as populações cujo destino é servir. O alívio vem na
forma do sinal vermelho: fogo nas florestas, para abrir um horizonte tão
distante quanto a visão pode alcançar e, mais uma vez alcançado, fogo
novamente105.

―Incrustadas‖ nos densos matizes verdes, encontravam-se as cidades coloniais brasileiras,


que pouco mudaram desde a independência. Seu casario e o traçado dos assentamentos urbanos
despertavam fortes críticas dos viajantes.
A compleição dos nativos tampouco auxiliava na utilização dos cânones clássicos, bem
como a presença de pessoas escravizadas em plena época das Luzes pareceria deslocada em meio
à paisagem que se queria ―europeizar‖. As tipologias encontradas na urbe brasileira e todos os
processos que por nela se desdobravam – o comércio, a balbúrdia das vias, as manifestações
religiosas - não possuíam correspondentes no cenário greco-romano idealizado106. As tentativas
de restringir a paisagem colonial aos padrões restritivos do neoclassicismo - já trabalhados
proficuamente nos panoramas europeus e ali surgidos – incorreram, na maioria das vezes, em
representações nas quais as cidades são representadas desertas e diminutas – como a esconder
suas formas estranhas-, de estilo arquitetônico assemelhado às construções italianas antigas e de
cores esmaecidas. A escolha pela imagética italiana não seria, como veremos a seguir,
infundamentada.
Na França, embora o grande responsável pela consagração do gênero de paisagem tenha
sido Nicolas Poussin, seria ao nome do pintor francês Claude Lorrain que a pintura de paisagem
seria mais associada; ao retomar os valores da Antiguidade, a pintura de paisagem evocaria a
atmosfera grega e portanto, italiana. A respeito das cores empregadas por Nicolas-Antoine
Taunay em suas pinturas do Brasil, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz (2008) discorre: ―só
quem não conhece as telas italianas de Taunay pode considerar suas paisagens brasileiras cópias
perfeitas da natureza tropical‖107. Na verdade, mais que o retrato fiel, o que se percebe é a
idealização de uma paisagem, a bricolagem de elementos que auxiliem nessa transfiguração da
realidade brasileira para o cenário idealizado com fortes traços clássicos.
105 SEVCENKO apud MARTINS, 2001, op., cit. p. 14.

106 DIENER, op., cit., p.71


107 SCHWARCZ, 2008, op. Cit.
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Figura 10 Nicolas-Antoine Taunay, O exterior de Figura 11 Nicolas-Antoine Taunay, Rio de Janeiro.


um hospital militar, Italia. óleo sobre tela.

Fonte: < Fonte: Schwarcz, Lilia Moritz. ―O Sol do Brasil‖,


http://www.insecula.com/PhotosNew/00/00/02/9
3/ME0000029322_3.JPG > Acesso em: 03 nov. 2008.
2014.

Por outro lado, a tessitura do tema tropical abarcava várias realidades que ora sobravam,
ora faltavam nos restritivos modelos iconográficos de tradição na história da arte europeia.
Taunay, nas palavras de Schwarcz (2008), buscou adaptar sua técnica às formas novas dos
trópicos, trabalhando com os princípios da escola estilística neoclássica108, inserindo na paisagem
pintada elementos que lhe eram familiares, permitindo-o entrar na representação desta paisagem
estranha com mais propriedade, daí a profusão de vacas, cachorros e outros animais, tão
presentes na pintura de paisagem inglesa. Os schemas também fariam com que suas árvores,
embora tropicais, possuíssem copas de formato tipicamente temperado e suas cidades
parecessem quase com villas romanas.
Mais do que uma crítica ao espaço urbano e rural colonial, a imagem final também seria
restringida pelas limitações de representação impostas pela corrente artística em voga. O Brasil
mostrar-se-ia uma paisagem difícil de ser pintada, como veremos a seguir.

E sobre as imagens relativas às cidades brasileiras? Para entendermos como se construiu a


paisagem construída nestas obras, é necessário entender o papel que os viajantes vão ocupar na
historiografia relativa à cidade oitocentista.

108Embora à época a escola romântica já estivesse em voga na Europa e influenciasse nas obras de temática de
paisagem, vale salientar que em artistas como Nicolas-Antoine Taunay e William Burchell, sua influência é limitada,
uma vez que foram doutrinados na escola Neoclássica e já eram pintores maduros ao chegarem no Brasil.
| 55

Os estudos a respeito da conformação urbana no Oitocentos na historiografia acerca dos


cronistas estrangeiros tendeu abarcar os viajantes em um mesmo grupo, na tentativa de lê-los sob
uma mesma lente homogeneizadora. Entretanto, esta categoria é constituída por indivíduos que
traziam consigo diferentes bagagens. Como esses viajantes de profissões, anseios e nacionalidades
diversas auxiliaram na criação de uma iconografia específica do Brasil na Europa?
Alguns relatos são resultado de anos percorrendo as terras brasileiras – como Auguste de
Saint-Hilaire, Jean Baptiste Debret e Richard Burton, e outras correspondem a impressões de
poucas semanas ou dias, como nos escritos de Philibert Commerson e La Pérouse, que
permaneceu em Santa Catarina por menos de 15 dias. Ainda, há o espírito da época, a maior ou
menor permanência em solo brasileiro ou ―acuidade‖, seus discursos não os impede de serem
analisados, uma vez que todos são frutos de experiências e impressões do ―outro‖ Em nosso
território. Embora heterogêneos em sua essência, podemos traçar aproximações desses vários
relatos.
Antes do amadurecimento do rigor científico e das noções de perspectiva, os viajantes já
produziam material iconográfico na tentativa de transmitir as novas paisagens do desconhecido
território conquistado. Assim como o primeiro choque entre a vegetação conhecida versus
vegetação tropical, houve o espanto do encontro com outra civilização.
As primeiras iconografias a respeito do espaço brasileiro, produzidas no século XVI, não
apresentariam os ―tímidos‖ povoamentos portugueses; os motivos recorrentes seriam a profusa
vegetação e os hábitos dos nativos, num embate entre a idealização sobre a terra desconhecida e
repleta de fábulas e a observação – mais ou menos – precisa que resultaria em uma série de cartas
náuticas, descrições cartográficas e correções de coordenadas existentes.
Diferentes visões do Brasil seriam também consequência de domínios diversos pelos
quais partes do território foram submetidas ao longo dos séculos. No segundo quartel do século
XVII, o panorama de relatos sobre o Novo Mundo sofrerá importantes adições; pela primeira
vez a América será retratada com rigor, tanto artístico quanto científico. Em 1637 a costa
nordestina receberá exploradores a serviço da Companhia das Indias Ocidentais sob o comando
de Conde Johan Maurits van Nassau-Siegen; imerso no séquito destacavam-se os pintores Albert
Eckhout e Frans Janszoon Post109. Dos primeiros atlas relativos ao Brasil– em especial os
holandeses- surgiriam as representações dos casarios dos núcleos urbanos, inicialmente de modo
esquemático. Percebe-se que há uma maior preocupação em detalhar as construções militares,

109OLIVEIRA, C. M. S. O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: documento ou invenção
do Novo Mundo?. Portuguese Studies Review, v. 14, n.1, p. 115-138, 2007.
| 56

religiosas e a topografia, uma vez que os compêndios tinham principalmente objetivos


geográficos e de conquista das terras portuguesas além-mar.
Como paradigma desta iconografia colonial brasileira do seiscentos, tomemos a cidade do
Rio de Janeiro na carta do holandês Reys-Boeck (Figura 12), datada de 1624, a qual apresentava
minúcias a respeito da primeira expansão da cidade do Rio de Janeiro, entre os morros do
Castelo, São Bento, Santo Antonio e Conceição. Embora a composição das quadras seja mais
simbólica que exata, tem-se a idéia do adensamento das cinco quadras da cidade baixa. 110
Assinalada pela letra ―G‖, encontra-se a igreja da Candelária. A ―mais airosa e amena baía111‖
brasileira seria ainda objeto de inúmeros outros mapas e desenhos, frutos de observações in loco
ou das leituras dos relatos de quem no Brasil esteve.

Figura 12 São Sebastião do Rio de Janeiro na obra "Reys-boeck van het rijcke brasilien" (ca. 1624)

Fonte: http://www.sudoestesp.com.br/doc/arquivos/684/img_1/img_12_m2.jpg Acesso em 18 out. 2014.

O ―Brasil holandês‖ também seria retratado na obra de Post, que residiu no Recife de
1637 a 1644. Com os fortes traços da escola barroca e da representação da paisagem da tradição

111 ANCHIETA, Padre 1585 apud MANSUR, Kátia Leite et al . O gnaisse facoidal: a mais carioca das rochas. Anu.
Inst. Geocienc., Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, dez. 2008 . Disponível em
<http://ppegeo.igc.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010197592008000200001&lng=pt&nrm=iso>.
acesso em 04 nov. 2014.
| 57

flamenga, o Brasil nas obras do pintor holandês mostrava-se oprimido por uma grande porção do
céu enquadrado na cena112; a escala diminuta com que tantas vezes as edificações foram tratadas
não nos impede, entretanto, de divisar certos aspectos construtivos, como suas coberturas em
duas ou quatro águas, as esquadrias e seus postigos, as arcadas estruturantes dos engenhos e as
paredes caiadas em branco das construções. Dispersas pela imagem, a massa edificada seria
emoldurada pela profusa mata tropical e por seus elementos mais característicos: bichos-preguiça,
abacaxis, mamoeiros, coqueiros e uma infinidade de palmeiras emergem por entre a vegetação,
no intuito de ―condensar‖ a maior quantidade de elementos tropicais na cena e agradar aos
compradores das obras de Post, ávidos pelos elementos exóticos e pitorescos tropicais.

Figura 13 Frans Post, Vista de Olinda, 1662.

1 2

Fonte: <http://www.coletiva.org/site/index.php?option=com_k2&view=item&id=87:o-
%E2%80%9Cmattam%E2%80%9D-do-brasil-e-as-paisagens-de-frans-post&tmpl=component&print=1 >Acesso
em: 04 nov. 2014. Editado pela autora.

112ARAGÃO, Solange de. A Cidade Brasileira na pintura dos Viajantes e na Fotografia do século XIX. In: V Encontro de
História da Arte – IFCH / UNICAMP, 2009, Campinas. Anais... . Campinas: Unicamp, 2009. p. 137 - 143.
| 58

Nas telas de Post as ―tímidas‖ cidades e vilas concorreriam com os engenhos nas escolhas
compositivas das obras, fazendo o papel de elemento construído. Embora a paisagem mude –
rural ou urbana- a composição da cena mantem-se igual.

Figura 14 Frans Post, Paisagem com plantação (O Engenho), (1668).

1
1

Fonte: http://imagohistoria.blogspot.com.br/2009/11/brasil-colonia-caracteristicas-do.html Acesso em: 12 de nov.


2014.

As imagens são semelhantes pois Post segue a risca as tradições pictóricas e descritivas da
escola neerlandesa, que tanto consagrariam suas obras com tema de paisagem perante a História
da Arte. O Brasil que avistamos em Post é na verdade uma Holanda tropical e decerto era
realmente esta a mensagem que o pintor buscava passar, o que recai em questionamentos sempre
pertinentes a quem almeja ler uma obra de arte: para quem o artista produz a obra de arte?
Certamente, por ser tratar de uma expedição colonizadora, os principais alvos seriam a Corte
holandesa, portanto, o Brasil deveria apresentar-se sim como uma Arcádia selvagem, mas
―colonizável‖.
Ao reconstruir a realidade nordestina em suas telas, o pintor lançou mão de certos
cânones que serão replicados em seu trabalho: O céu extremamente luminoso contrasta com os
matizes escuros do repoussoir113 da diversificada vegetação em bordadura (apercebe-se sempre um
elemento verticalizado em uma das extremidades do primeiro plano, como a criar as curvas e

113Elemento utilizado no primeiro plano de uma pintura, gravura ou desenho, de matizes mais profundos e escuros,
no intuito de destacar o centro do quadro (ou outro elemento da composição) e produzir um efeito de profundidade.
| 59

contra-curvas barrocas).114 Porém, se há estas volutas em schemas diluídos na têmpera usada por
Post, há também curvas que levam outras indagações sobre o Brasil do século XVIII: No detalhe
1, percebemos uma ascendente ordem de importância das construções, que também refletiria a
ordem política da época: No cume da elevação, encontrar-se-ia a igreja, símbolo das ordens
religiosas que aportam no Brasil colônia, imediatamente abaixo, a casa-grande e, por último, o
engenho.
Os cânones empregados por Post seriam, na verdade, schemas típicos da pintura de
paisagem holandesa que seriam replicados por toda a Europa, e seriam inclusive empregados nas
paisagens brasileiras, as imagens 15 e 16 trazem os cânones empregados por dois artistas do
Oitocentos:

Figura 15 Félix Émile Taunay, Baía de Guanabara vista Figura 16 Nicola Facchinetti, Lagoa Rodrigo de
da Ilha das Cobras, c.1828. óleo sobre tela. Freitas, óleo sobre tela.

Fonte:<http://www.tecnoartenews.com/tag/ismael- Fonte:<http://deniseludwig.blogspot.com.br/20
nery/> Acesso em: 20/09/2014. 14/02/pinturas-tropicais -com.html > Acesso
em: 20/09/2014.

O cartógrafo genovês a serviço da Coroa Portuguesa, Francesco Tosi Colombina,


contribuiu ao escopo da iconografia colonial ao representar uma vista do Largo da Matriz, em
Goiás Velho, desta vez, de um ponto interno da cidade. Ao fundo, nota-se a Igreja Matriz de
Santana, construída em 1743 e retratada por Colombina em 1751. Quase oitenta anos mais tarde,
em 1828, o inglês William John Burchell retrataria a mesma igreja, agora em primeiro plano da
prancha, sem a cobertura de quatro águas das torres que Colombina indicava.

114 OLIVEIRA, C. M. S, 2007, p.14. op.cit.


| 60

Figura 17 Vista do Largo da Matriz (Praça do Coreto), Vila Boa de Goiás em 1751. Desenho de Tosi Colombina

1
Fonte: LUZ, 2012.

Figura 18 Detalhe da prancha n° 189 – ―Goyaz‖, lápis aquarelado de Burchell - Matriz de Goyaz –12-05-1828.

Fonte: FERREZ,1981

A visão do viajante observador e raramente participante ativo nas atividades da urbe –ou
a sensação de ―não estar de todo‖115, como Sussekind (1990) conceituara- seria recorrente na
representação da colônia a partir do século XIX. O viajante observa, toma nota, mas raramente
adentra a cidade em suas cenas, preferindo os panoramas e voos de pássaro para desenhá-la; o
olhar para o edificado é visivelmente viciado em questões de composição destas cenas tropicais
harmoniosas.

115 SUSSEKIND, 1990, p.20-21.


| 61

As ―toleravelmente belas‖ casas urbanas cariocas seriam descritas à bico de pena pela inglesa
Maria Graham, em visita ao Brasil em três ocasiões, entre 1823 e 1826. Das páginas de seu Diário
de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823 emergiam
descrições das casas de campo ―nem grandes nem luxuosas‖; mas, quando no sopé do
Corcovado e imersas na exuberante vegetação, foram consideradas ―deliciosas casas de
campo116‖. Sobre a tipologia das casas do subúrbio carioca, Graham disserta:

As casas são construídas em grande parte como as do sul da Europa. Há


geralmente um pátio, de um lado do qual fica a casa de residência. Os outros
lados são formados pelos serviços e pelo jardim. Algumas vezes o jardim fica
logo junto à casa. É o que se dá geralmente nos subúrbios. Na cidade muito
poucas casas ostentam sequer o luxo de um jardim117.

Para ―ilustrar‖ suas impressões sobre as casas do subúrbio carioca, Graham produz o
desenho abaixo, no qual a mensagem é consoante com o conteúdo do seu texto. Nota-se o
agrupamento de várias plantas tropicais, dentre elas bananeiras e coqueiros, lembrando-nos de
que, embora lembre motivos pastorais, a cena se desenrola no Brasil. O caminho sinuoso, o
homem e seu cachorro remete-nos a uma cena bucólica que poderia facilmente ser confundida
com uma paisagem inglesa, entretanto, o relevo dramático seria outro lembrete utilizado pela
artista para remeter à paisagem brasileira.

Figura 19 Maria Graham, aspecto de Laranjeiras, fora dos limites do Rio de Janeiro, 1821. Desenho integrante do
Journal of a Voyage to Brazil

Fonte:< http://www.gutenberg.org/files/21201/21201-h/21201-h.htm > Acesso em: 04 nov. de 2014

116GRAHAM, Maria Dundas. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos 1821, 1822,
1823. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p.55.
117 Ibidem, p.233.
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O centro da Figura 20, por sua vez, é preenchido pela Quinta da Boa Vista, chácara
pertencente a Elias Antonio Lopes, um rico comerciante, e cedida à D. João VI em 1808,
tornando-se o Palácio Real (e posteriormente, Palácio Imperial), residência oficial da família real.
Erguida em 1803, a edificação passaria por constantes reformas e adições, até adquirir as linhas
neoclássicas que perduram até os dias atuais. No desenho de Graham, observamos a presença de
um torreão em estilo neogótico, projetado pelo arquiteto John Johnston, em ocasião de sua
estadia no Rio de Janeiro incubido da reforma do palácio118. Graham também discorre
textualmente sobre o prédio ―[O palácio] é situado em terreno elevado, e construído um tanto em
estilo mourisco, pintado de amarelo com molduras brancas119.‖

Figura 20 Maria Graham, São Cristovão (ao fundo, o Paço), 1823. Aguatinta.

Fonte: Biblioteca Nacional, 2014.

A importância do relato estrangeiro ultrapassa a discussão a respeito da legitimidade ou a


neutralidade de seu conteúdo, “paradigma de civilização que representava‖120. Muito mais que
apresentar um Brasil fidedigno ao leitor brasileiro, as comunicações que se desdobravam desses
relatos buscavam repassar aos leitores e fruidores europeus desta arte uma representação de
lugares, etnias, plantas e animais os quais os originais eles pouco teriam chance de visualizar. A
iconografia deste repertório cultural, portanto, busca nos símbolos a comunicação da grande
diversidade do cenário brasileiro121.

118SCHWARCZ, Lília Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012. p.335.

119GRAHAM, Maria. Op.cit, p.277. A cor amarela atribuída por Graham era proveniente da cal misturada ao
açafrão.
120 PARDIM, op cit. p.61

121 PARDIM, op. cit. p.63


| 63

Ao encerrar a discussão na legitimidade inconteste destes relatos, perde-se a chance de se


vislumbrar o repertório cultural impresso em cada pincelada e de se deslindar a riqueza de
significados destas representações122. Desta forma, os panoramas urbanos e as pranchas com
detalhes arquitetônicos concorreriam e seriam lidos e apreciados de igual maneira aos desenhos
entomológicos, geográficos ou antropológicos. Ao final, todos eles falariam de tropicalidade e
exotismo; falariam também de atrasos e de uma imberbe terra não tocada pela ciência.
O lado inverso da exaltação pelos estrangeiros da natureza tropical brasileira traria
também uma velada crítica ao incauto país, como Nancy Leys Stepan (2001) discorre:

O termo ―tropical‖ veio a constituir mais do que um conceito geográfico; ele


significou um lugar de alteridade radical para o mundo temperado com o qual
contrastava e que ajudou a construir. Descrições e pinturas dos trópicos
contribuíram, dessa maneira, para a formação da identidade européia como
distinta daquela presente na zona tropical, onde acreditava-se que a
superabundância da natureza oprimiria o esforço humano e reduziria o espaço à
própria natureza123.

A crítica à cidade antiga, então, passaria por cima de qualquer diferenciação, criando uma
representação própria de cidades coloniais. Este mesmo fundo-comum seria reclamado em
outros relatórios e documentos oficiais.
As ruas estreitas, tortuosas e mal calçadas das cidades antigas não comportariam as
necessidades do moderno. Usados para vencer o atraso e irregularidade, os lugares-comuns
surgidos do olhar europeu vão permear o imaginário sobre o traçado colonial, que iriam se firmar
na historiografia do século XX. Os relatos de viajantes europeus, portanto, tiveram seus discursos
ressoados em vários escritos técnicos e nos discursos de modernização, que ajudariam a embasar
a discussão sobre as intervenções propostas para os núcleos urbanos.
Se, por vezes, foram as únicas vozes conhecidas a relatar as várias evoluções e involuções
dos núcleos urbanos, foram compostas por várias camadas de pré-conceitos, schemas e
antecipações, pois, como Belluzzo (1999) trata:

O legado iconográfico e a literatura de viagem dos cronistas europeus trazem


sempre a possibilidade de novas aproximações com a história do Brasil. No
entanto, essas obras só podem dar a ver um Brasil pensado por outros. O olhar
dos viajantes espelha, também a condição de nos vermos pelos olhos deles124.

122 PARDIM, Op. Cit, p.64.


123 STEPAN, Nancy Leys. Picturing tropical nature. London: Reaktion Books Ltd, 2001.

124 BELLUZZO, Ana Maria. A Propósito d’O Brasil dos Viajantes. In Revista da USP nº30
(http://www.usp.br/revistausp/n30/fbelluzzo.html )
| 64

A Quinta da Boa Vista é um exemplo desta afirmação. Ao longo do século XIX fora
retratada por vários viajantes e nota-se, diluído no tema do pitoresco, as diversas adições ao
prédio original125: mm um momento anterior ao retratado por Graham, a Figura 21, aquarela de
Thomas Ender, apresenta-nos o casario com suas feições iniciais. Como Lilia Moritz Schwarcz
(1999) relata: [...] viajantes desse período descreveram o prédio como um quadrado fechado, com pátio
interno e varanda de três faces, e uma série de janelas envidraçadas que defendiam os moradores do clima
abrasador126.

Figura 21 Thomas Ender, Paço de São Cristovão.1817. Aquarela. À esquerda, detalhe da construção.

Fonte: < http://historia.jbrj.gov.br/original/foto0012original.jpg> Acesso em: 13 de nov. 2014.

A Figura 22 traz a adição de um segundo torreão, erguido em estilo neoclássico e


projetado pelo arquiteto francês Pedro José Pezera127. A aquarela de Eugène De la Michellerie128
também nos traz um aspecto importante: em primeiro plano, nota-se um conjunto de casas
dispostas em linha; para acentuar a idéia de homogeneização da tipologia, todas aparecem com a
mesma coloração e coberturas de meia água. Estão representadas de tal maneira que seus
telhados formam uma suave parábola, destacando o palácio ao fundo, que se encontra
centralizado na cena. Nota-se, uma vez mais, a presença de palmeiras, uma expressão da
tropicalidade na cena.

126 SCHWARCZ, Lília Moritz. Op.cit, 1999. p.335.

127Ibidem, p.337.
128 Eugène Dela Michellerie (Nantes, França, 1802 - idem,1875) foi um pintor, engenheiro militar e desenhista
francês. Residiu entre 1826 a 1832 no Brasil. De acordo com o pesquisador Mario Carelli Dela Michellerie pode ser
descrito como "o exemplo típico do marinheiro de Nantes com um bom manejo do lápis" CARELLI, Mario. Os
pintores viajantes, a travessia da diferença. In: Missão artística francesa e pintores viajantes: França-Brasil no século XIX.
Rio de Janeiro: Instituto Cultural Brasil-França: Fundação Casa França-Brasil, 1990. p. 89. Apud Enciclopédia Itau de
Artes Visuais, Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas /index.cfm?
fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=1689&cd_idioma=28555&cd_item=1. > Acesso em 30 de setembro de
2014.
| 65

Figura 22 De la Michellerie, Paço de São Cristovão. Circa 1830-1834. Desenho retocado à aquarela sobre
papel.

Fonte: http://www.museunacional.ufrj.br/guiaMN/Guia/paginas/1/palacio.htm. Acesso em 29 de


setembro de 2014.

A ilustração abaixo, de autoria de Maria Graham, transmite o apreço pelos elementos


pitorescos na paisagem tropical. Percebe-se que a gameleira representada abaixo assemelha-se
mais a árvores do deserto africano do que com a vegetação brasileira, denotando uma visão
―homogênea‖ dos trópicos, não fazendo grandes distinções sobre a diversidade de cada região.

Figura 23 Maria Graham, Gameleira.

Fonte: < http://www.gutenberg.org/files/21201/21201-h/21201-h.htm > Acesso em: 04 nov. 2014.

Seria, pois, a gameleira uma epítome do pitoresco no discurso de Graham, ora


preocupada com os aspectos botânicos e tomando notas das suas observações científicas, ora
maravilhada com a tortuosidade dos galhos da árvore, conferindo-a uma aparência dramática:
| 66

Às vezes entrávamos pela floresta selvagem e densa, através dos vãos cheios de
arbustos, em seguida surgíamos em claros campos, com coqueiros esparsos,
entre os quais se viam casas de campo, granjas e plantações. De cada elevação
via-se a baía, o mar ou o lago, completando o panorama. Aqui e ali, a imensa
gameleira surgia como uma torre, adornada, além de suas própria folhas, com
inúmeras parasitas, desde o rijo cactus até a tilândsia; a presença constante de
uma torre de igreja ou de mosteiro suaviza e enobrece as feições da terra."129

Esta ambiguidade de motivações faria surgir não um embate entre a técnica naturalista
versus impressões intimistas, mas a confluência destes dois aspectos no modo de representar a
cidade e seus arredores. A gameleira em Graham seria o trabalho escravo em Debret ou o vazio
da paisagem de Ender: tentativas de descrever um cenário desconhecido e dele iluminar aspectos
representativos deste ambiente.
As imagens relativas à cidade brasileira sofreriam leituras diversas de acordo com os
diferentes viajantes que aqui aportaram. Debret pintaria a cidade como pano de fundo para seu
tema mais caro, a dinâmica da interação social de um recém criado império. Dos umbrais dos
sobrados, dos beirais dos casarios, da praça e do leito carroçável é que desenrolariam as
atividades retratadas em suas aquarelas no primeiro plano: o trabalho dos escravos, o movimento
do comércio, as procissões; o cenário pouco interfere no objeto de estudo: as ações humanas130.
Nas cenas urbanas nas obras de Debret, as linhas arquitetônicas da colônia são sobrepujadas
pelas cenas do cotidiano que marcam o ―atraso‖ das cidades brasileiras perante a Europa, como a
persistência de hábitos rurais e a presença do escravo.

GRAHAM, Maria. Journal of a Voyage to Brazil, and Residence There During part of the Years 1821, 1822, 1823. London:
129

Longman & C. & J. Murray, 1824, p.167.

130 NAVES, op., cit., p.86.


| 67

Figura 24 Jean Baptiste Debret, Entrudo. 1823.

Fonte: <http://www.historiadigital.org/questoes/questao-enem-2008-arte-de-debret/ > Acesso em: 03 de


setembro de 2014.

O material iconográfico também sofreria diferenças em relação à finalidade a qual o


mesmo deveria responder. Como pintor oficial da Corte Portuguesa e formado na tradição
neoclássica francesa131, o trabalho de Debret era retratar a família imperial e seu séquito. Na
tentativa de incutir em suas pinturas temas como nacionalismo e legitimidade de poder, nada
mais esperado que fazer uso dos instrumentos e técnicas da Academia; para tanto, Debret
empregou a pintura a óleo e os esquemas neoclássicos nas obras desta temática. Mesmo sendo
uma pintura de costumes, é possível observar detalhes construtivos, como o alpendre, cunhais,
esquadrias e beirais; entretanto, as linhas arquitetônicas da colônia são sobrepujadas pelas cenas
do cotidiano que marcam o ―atraso‖ das cidades brasileiras perante a Europa, como a persistência
de hábitos rurais e a presença do escravo.
Em relação às imagens urbanas, a aquarela132 toma o espaço da pintura convencional. Os
desenhos de Debret também nos proporcionam vislumbrar outra ação recorrente entre os
pintores viajantes: a aquarela como uma primeira aproximação entre o observador e o objeto a

131 Seu parente e mentor foi Jacques-Louis David (1748-1825), importante pintor neoclássico.

132 Técnica de pintura sobre papel que utiliza pigmentos puros e aglutinantes, diluídos em água, proporcionando uma
tinta translúcida. A aplicação é feita em camadas transparentes, que, sobrepostas, intensificam a cor. O suporte mais
utilizado é o papel, em geral de gramatura elevada. Por ser de rápida secagem, foi muito utilizada para pinturas ao ar
livre, como no caso dos artistas viajantes‖. Cf. < http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo/noticias/glossario-
de-tecnicas-e-processos-graficos-e-fotograficos-do-seculo-xix > Acesso em: 21/10/2014
| 68

ser retratado, uma técnica preparatória e transitória para a tela final, em óleo133. A aquarela era
bastante usada na Inglaterra, embora fosse considerada um meio artístico inferior à pintura a óleo
em toda a Europa. Por outro lado, a pintura em aquarela exigia domínio da técnica, pois seria
impossível realizar retoques posteriores, como pode ocorrer com a tinta à óleo134. A dificuldade
em encontrar as tintas nas terras tropicais – sobretudo nas regiões mais afastadas das capitais das
províncias- também era um fator que desestimulava o uso de tintas à óleo, além da constante falta
de determinadas cores no mercado local. Sobre a aquarela – suas qualidades e riscos- Lima (2003)
esclarece:
[...]é uma técnica de efeitos inesperados. A aquarela não está jamais acabada
nem enquanto técnica (pois as cores e contrastes se alteram com o tempo), nem
enquanto composição (as imagens e cenas não são definidas com precisão,
deixando espaço para a imaginação, pontos inexatos).135

Se a ―brasilidade‖ em Debret seria expressa por meio das atividades sociais da colônia, na
obra do austríaco Thomas Ender seria a predileção pela paisagem ampla e vazia136 e a
luminosidade dos trópicos que ressaltariam o pitoresco das cenas expostas137. Ender, artista
que acompanhou a missão científica de Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von
Martius ao Brasil, entre os anos 1817 e 1818, produziu, nesse período, mais de 700 registros das
cenas do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao observar a Figura 25 e Figura 26, vê-se o emprego de
nuances douradas na cena tropical, na tentativa de representar a forte iluminação zenital; o sol do
Brasil quase ofusca a visão do observador, tamanha sua intensidade.
O céu é representado em cores bastante claras, com largo emprego do branco,
fortalecendo a sensação de ofuscamento. Percebe-se que a falta da bordadura de vegetação no
primeiro plano, tão recorrente nas pinturas de tema de paisagem, é parcialmente sanada pela
escolha de cores mais escuros na extremidade inferior direita do quadro.

SIQUEIRA, Vera Beatriz. Redescobrir o Rio de Janeiro. 19&20. Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em:
133

<http://www.dezenovevinte.net/artistas/Redescobrir_RiodeJaneiro.htm>.
134 SOUZA, Valéria S. de. Gosto, sensibilidade e objetividade na representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados pelos
viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 2 vols. Tese 1995 (Doutorado em História)- São
Paulo, FFLCH-USP, 1995, p.234.
135LIMA, Valéria Alves Esteves. A Viagem Pitoresca e Histórica de Debret: por uma nova leitura. Tese de Doutorado
apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas. Campinas: [s.n.], 2003, p.136.

136LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>.

137 ARAGAO, Solange de & SANDEVILLE Jr., Euler. Expressões de tropicalidade na pintura dos viajantes, na fotografia de
paisagens e na literatura brasileira do século XIX - contrapondo olhares. In: ENCONTRO DE HISTORIA DA ARTE, 7,
Campinas, 2010. Anais... Campinas: UNICAMP, 2010a, p.434-444..
| 69

Figura 25 Thomas Ender: Vista da Enseada de Botafogo, 1817.Oléo sobre tela. Acervo particular (coleção Geyer).

Fonte:<http://s2.glbimg.com/7Fath6wLuBRSwiM4R18n4=/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2014/05/19/832_vi
sta_da_enseada_de_botafogo.jpg > Acesso em 21 nov. 2014.

A procura pelo ―ofuscamento‖ produzido pela luminosidade remete-nos à posição


geográfica dos trópicos, área de maior incidência solar próximas da linha do Equador. Somado à
incidência da luz dourada, os artistas lançam mão de sfumattos para reproduzirem a bruma
oceânica, aumentando desta forma o teor edênico da representação da paisagem natural dos
arredores da cidade. Os raios do sol nascente na Glória, retratada por Hildebrandt 138 na figura 27
traz a cidade carioca em tons amarelados, transmitindo a sensação de calidez e tranquilidade.
Porém, os elogios à serena paisagem se encerram quando a tomada de cena engloba
muito mais a paisagem natural do que a construída. Hildebrandt, ao pintar a Rua Direita, o faz
sem quaisquer camadas de elogio. A rua, ‗agasalhadora da miséria139‘, como João do Rio
escreveria décadas mais tarde, estaria repleta de escravos e libertos em condições habitacionais
precárias (detalhe 2), convivendo lado a lado com moradas em melhores condições (detalhe 1) .

138 Eduard Hildebrandt (1817- 1868) foi um pintor alemão.


139 Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000039.pdf> Acesso em 04 out. 2014.
| 70

Figura 26 Eduard Hildebrandt. Rua Direita, Rio de Janeiro. óleo sobre tela.

1
2

Fonte:< http://azulejosantigosrj.blogspot.com.br/2012/12 > Acesso em: 04 nov. 2014.

A posição da Figura 26, em modo de paisagem, seria característica de uma maneira de se


retratar a paisagem urbana por inteiro e seus arredores, denominada panorama, como será
abordado mais à frente e a figura 27, correspondente à Rua Direita, encontraria na posição
vertical o favorecimento esperado da perspectiva das construções, assemelhando-se à visão de
que teríamos caso estivéssemos na rua, uma vez que a escala proposta convida o espectador a
―entrar‖ no quadro; a este tipo de imagem, que imita a visão do transeunte ou de quem observa a
paisagem ao nível do solo, denomina-se veduta.
| 71

Figura 27 Eduard Hildebrandt. A Glória, Rio de Janeiro, 1846. Óleo sobre tela.

Fonte: < http://www.christies.com/lotfinder/drawings-watercolors/eduard-hildebrandt-a-gloacuteria-rio-de-


janeirobr-3045684-details.aspx?intObjectID=3045684 > Acesso em: 20 de out. 2014.

A vinda da família real e a adaptação do Rio de Janeiro como sede do Império nos
trópicos foram o pano de fundo para as inúmeras mudanças que ocorreram na estrutura social e
urbana à época.140 Para garantir o teor de ―civilidade‖ esperado de uma capital de império, órgãos
de manutenção da ordem foram importados de Portugal, como a Intendência Geral da Polícia,
uma das repartições importadas de Portugal responsável pelas obras públicas, iluminação,
segurança e pelo abastecimento de água, iluminação e segurança, bem como pela manutenção da
ordem e disciplina na vida dos moradores.141
Os espaços públicos no Rio de Janeiro do século XIX funcionavam como pontos de
convergência, suas praças e ruas transformavam-se em pontos de interação social, principalmente
entre escravos. Tais espaços constituíam-se como a base da estrutura social das cidades
oitocentistas, contribuindo para o acontecimento de inúmeras formas de interação social. A Rua
Direita, no Rio de Janeiro, era a epítome deste ambiente de trocas sociais. No início do século
XIX constituía-se como uma das principais vias da principal cidade do país, caminho direto entre
o morro do Castelo e o de São Bento, margeando o Largo do Paço (atualmente Praça XV) e

SILVA, L. Memórias do urbanismo na cidade do Rio de Janeiro 1778/1878: Estado, administração e práticas de
140

poder. Rio de Janeiro, 2012.

141DOS SANTOS CARVALHO, Amanda Lima. O Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte Portuguesa: Planos,
intenções e intervenções no século XIX. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, n. 13, p. 55-63, 2014.
| 72

próxima ao Paço Imperial. Pela sua importância e por apresentar tantas convergências em torno
de sua extensão, foi profusamente retratada por inúmeros viajantes no Oitocentos, ressaltando
ora seus aspectos mais pitorescos, ora seus elementos mais críticos.

Figura 28 Felix Émile Taunay, Rua Direita, Rio de Figura 29 Johann Moritz Rugendas, Rua Direita.
Janeiro, 1823. Aquarela sobre papel, coleção particular Litogravura.

Fonte:<http://www2.uol.com.br/historiaviva/bibliot
ecario_de_d__joao_vi_imprimir.html >Acesso em 12 Fonte:<http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog
out. 2014. .com.br/17926/RUGENDAS-RUA-DIREITA-
RIO-DE-JANEIRO/ > Acesso em 12 out. 2014.

Muito mais ―ordenada‖ seria a Rua Direita retratada no quadro do litógrafo e pintor
alemão Emil Bauch (Figura 30). Qual seria a explicação deste Rio de Janeiro mais racional? A
indagação ―a quem se dirige a obra de arte?‖ faz-se pertinente. Bauch, residindo no Brasil desde
1849, seria condecorado em 1859 com a medalha de prata na Exposição Geral da Academia
Imperial de Belas Artes e viu-se inserido no coração da Corte, trabalhando, inclusive, na
decoração do Palácio de Nova Friburgo. 142 Com sua clientela nacional, nada mais natural que
retratar a capital do Império com ares elegantes e ―limpos‖ do atraso colonial.

142PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Um retrato (quase) íntimo da nobreza brasileira: Emil Bauch e a Marquesa do
Paraná. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 3, jul. 2008. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/artistas/ebauch_rapj.htm>.
| 73

Figura 30 Emil Bauch, Vista da Rua Direita, segunda metade do século XIX.

Fonte: <http://oridesmjr.blogspot.com.br/2013/09/costumes- cariocas-do-seculo.html> Acesso em 12 out. 2014.


Editado pela autora.

Embora houvesse o ―desejo‖ em colecionar espécies ou atividades referentes ao local, a


idéia do ―empilhamento‖ de elementos nitidamente tropicais recai no conceito de schemas
gombrichiano. Para dar veracidade à cena, fazia-se necessário ressaltar ou adicionar elementos
característicos do local, daí a profusão de plantas e animais endêmicos das florestas tropicais, os
escravos negros, o indígena, as ruas em desalinho, os gelosias nas esquadrias, dentre outros
elementos. Ao sairmos da perspectiva das ruas e retrocedermos aos arrabaldes da cidade, os
enquadramentos mostrar-se-ão diferentes.
A aquarela (Figura 31) apresenta-nos a Igreja da Nossa Senhora da Glória do Outeiro a
partir de uma clareira no continente; em primeiro plano, encontra-se a vegetação esquemática,
delineando a idéia de densa e diversificada vegetação, reforçada pelo jogo de sombras ao pé da
elevação e no canto inferior da direita. Ao longe, avista-se palmeiras a delinear a silhueta do
pequeno morro. Em um plano além, a igreja ergue-se ao centro da aquarela e distingue-se uma
massa edificada em último plano.
| 74

Figura 31 Thomas Ender: Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro, 1817-1818. Pena e sépia143 sobre papel,
27,2 x 43,3 cm. À direita, um detalhe do desenho.

Fonte: http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm Acesso em: 20/08/2014 .

Muito mais tímida é a posição da Igreja quando na sua transposição para a tela a óleo
(Figura 32). Esmaecida e distante da vegetação do primeiro plano, a igreja perde-se em meio à
névoa e ao ofuscamento da iluminação solar. Ao utilizar a aquarela como esboço para a tela
realizada em seu atelier em Viena144, Ender opta por diminuir a presença do elemento construído;
a igreja esmaecida e a cidade além da baía são apenas a mata e a presença humana que se
desenrola em primeiro plano tornam-se protagonistas da cena, realçando-as.

Figura 32 Thomas Ender, ―Arredores do Rio de Janeiro‖1817 óleo sobre tela 104 x 188 cm

Fonte: http://profciriosimon.blogspot.com.br/2012/04/arte-brasilidade-e-germanidade-006.html Acesso em 19


agosto de 2014.

143 Sépia: ―Bastante popular no século XIX, esse pigmento era extraído da tinta natural da siba – um molusco similar
à lula – e possuía uma coloração semitransparente de cor marrom-escura. Quando diluído em água, adquiria um tom
castanho avermelhado. Foi amplamente utilizado na composição de tintas para diversos usos, seja para a pintura,
com maior ou menor diluição em aguadas, ou para gravura‖. Cf: <
http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo/noticias/glossario-de-tecnicas-e-processos-graficos-e-fotograficos-do-
seculo-xix> Acesso em: 21/10/2014.

144 LIMA, Valéria Alves Esteves. Op. cit, 2003.


| 75

A distância temporal não é a única presente no universo desta tela. Ender parece se
distanciar da cidade brasileira até mesmo em sua representação, preferindo iluminar os aspectos
mais pitorescos da paisagem brasileira, que corresponderiam melhor aos gostos dos
consumidores de pinturas com a temática tropical, relegando à urbe a um papel secundário de
composição. É aqui, na tela à óleo, a técnica ―final‖ por excelência, que Ender se deixa influenciar
pelos cânones da pintura de paisagem: A vegetação verticalizada a emoldurar os limites laterais do
quadro, entremeada por uma diversidade vegetal e pela presença dos ―tipos humanos‖
caracterizadores dos trópicos. Resgatando os conceitos de linear e pictórico apresentados por
Wölfflin (1984), a aquarela se mostra muito mais linear –e, portanto, buscando-se mais a
―catalogação‖ e apreensão da paisagem pelos preceitos naturalistas - do que pictórica; a tela a
óleo, mostrar-se-ia muito mais idealizada e homogeneizadora em termos de mensagem145.
Entretanto, como indica Lima (2008): [...]Isso não significa que a referência não seja mais a
realidade observada pelo artista, mas o resultado de seu trabalho não se subordina ao olhar que
tudo classifica e define no interior de contornos muito marcados146.
Ao se afastar das áreas urbanas, outros aspectos da paisagem construída saltariam aos
olhos dos viajantes. Assim como os cânones neoclássicos pregavam, a presença de ruínas nas
composições dos quadros eram um elemento primordial para a transmissão do tema do
pitoresco. As ruinas coloniais de antigas localidades abandonadas fariam às vezes de ruínas
clássicas greco-romanas, uma vez demonstrando o uso dos schemas clássicos aprendidos na
representação tropical.147 A Figura 33 corresponde a uma litografia do desenho original de
William Ouseley, representando uma ruína de igreja na Bahia. Ouseley encarrega-se de dar
importância ao edifício arruinado e diz que encontrou ―vestígios de detalhamentos arquitetônicos
em pedra e mármores bem cortados, atestando o cuidado com o qual o local fora antes
ornamentado, e a que custo fora construído‖148

145LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>
146LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>

147 BELLUZZO, Ana Maria. O viajante e a paisagem brasileira. Porto Arte, v. 15, n. 25.
148OUSELEY, William Gore. Views of South America: from original drawings made in Brazil, The River Plate, The Parana.
With Notes. London: Thomas McLean, 1852, p.18. apud: HERMANN, C. G. . Buscar Vitruvius nos trópicos -
percepções de viajantes ingleses da primeira metade do século XIX sobre o Aqueduto da Carioca. Concinnitas
(Online) (Rio de Janeiro), v. 2, p. 11, 2014.
| 76

Figura 33 William Gore Ouseley. Ruínas da Figura 34 Thomas Ender, Nos arredores do mangal de S. Diogo.
Capela de São Gonçalo, Bahia. Bahia, 1852. Nanquim e aquarela sobre papel.

Fonte: Biblioteca Nacional, 2014. Fonte: Biblioteca Nacional, 2014.

A Figura 34, de autoria de Thomas Ender, traria a coexistência desses dois processos: a
ruína está lado a lado com a casa-grande em pleno funcionamento.

Aprisionar o trópico: Os métodos de reprodução do material viajante

Há, entre o olhar de quem produz a obra e de quem a observa – instantes, anos ou
séculos depois – uma lacuna onde se misturam linhas, esquemas, cores e interpretações da
realidade retratada. Ademais, a interpretação de uma obra não seria uma via de mão única; como
veremos a seguir. O observador final muitas vezes tem influência direta na composição - para
quem o artista trabalha?- ou até mesmo na interpretação da obra: diferentes períodos ou
diferentes sociedades darão ao objeto artístico leituras diversas. Portanto, antes de carregar
qualquer peso de veracidade, os panoramas e paisagens retratados falam muito de como fomos,
em diferentes épocas, observados e quais lentes, lapidadas por intenções e interesses diversos
auxiliaram nesta visualização e posterior representação .
A obra de arte, especialmente a imagem, não é o reflexo de um real recortado antes de
qualquer intervenção do espírito humano em objetos conforme as nossas
nomenclaturas. (...) Ela não é jamais analógica, mas sempre constelada por numerosos
elementos que associam lugares e tempos não homogêneos. (...) A Arte nos informa,
em suma, mais sobre os modos de pensamento de um grupo social que sobre os
acontecimentos e sobre o quadro material da vida de um artista e seu ambiente. A obra
está no imaginário. (FRANCASTEL, 1993, p.17).

Ressalta-se a crítica de Francastel sobre a visão distorcida de que o emprego dos


149
mecanismos da língua (o texto) e da imagem não reduz sua importância entre si . A

149 FRANCASTEL, op., cit.


| 77

―conexidade‖ (Zusammengehörigkeit)- e não sua dependência- entre o texto e a imagem já havia sido
abordada por Warburg. Para ambos não há meios de se separar o estudo do conteúdo das
imagens de sua estrutura; a forma e a função são intrinsecamente ligadas; uma possível
abordagem em que se ilumine uma e sublime a outra se mostraria incompleta. Os esboços muitas
vezes chegavam à Europa com informações à bico de pena em suas margens, com explicações a
respeito da cor, dos materiais empregados, etc. Na Europa, passariam por inúmeras mãos e
técnicas diferentes, manejados por pessoas que geralmente não conheciam a paisagem a qual
estavam manuseando, rearranjando elementos e os modificando.
A adoção do ponto de vista do naturalista parece levar a paisagem-instantânea a um
processo interno de multiplicação e variação de tal ordem que indica por vezes sua implosão
antes mesmo de acabada. Daí a quantidade de esboços, desenhos inconclusos, aquarelados
apenas em parte. O que se explica pela pressa dos viajantes, mas também por esse desejo de ao
mesmo tempo representar e colecionar a paisagem. Como se, não bastando o simples registro de
uma vista, fosse necessário delinear com nitidez ainda alguma árvore, espécie vegetal de pequeno
porte, algum homem em atividade característica ou apenas passando. Como se uma prancha
devesse cumprir papel de várias. Como se numa estampa se devesse dar conta de uma
multiplicidade de espécies existentes ou atividades possíveis naquele exato local. Ou singularizar
simultaneamente diversos elementos que, a rigor, poderiam estar dispersos, imersos numa vista
geral, num grande plano150.
O esboço, portanto, era tratado muito mais como um documento do que como uma
experiência artistica, uma vez que era entregue ao chefe das expedições e aos governos da mesma
forma que os relatos, cartas geográficas, espécies botânicas, etc.
As facilidades de entrada e locomoção por terras brasileiras desde a Abertura dos Portos
alentou a realização de viagens de exploração; para além dos fatores já citados, soma-se o
aumento da popularidade de publicações que retratassem as novas colônias como elemento
catalisador do número de viajantes em terras brasileiras dispostos a descrevê-la, no intuito de
posteriormente ver suas anotações publicadas. Se antes a circulação das imagens e relatos de
terras longínquas se restringia a um seleto grupo de leitores e apreciadores, a popularização da
imprensa e os avanços nas técnicas de reprodução de imagens baratearam e tornaram acessíveis
publicações fartamente ilustradas, dando aos desenhos e pinturas novos usos, novos raios de
influência, pois:

150SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.
118-119.
| 78

[...] pode-se afirmar que a gravura se torna um fenômeno de massa a partir


de sua efetiva reprodução. A multiplicidade da gravura permite sua aquisição
e fruição por várias pessoas ao mesmo tempo, o que a torna uma arte
―democrática,‖ em contraposição a outras formas de arte que satisfazem
apenas a uma elite diminuta, devido à unicidade, a exemplo da pintura e
escultura151.

Até o século XVIII, a impressão de uma imagem ou escrito em larga escala era uma tarefa
que demandava muito tempo e um considerável número de pessoas envolvidas. A técnica de
xilogravura, surgida na China, consistia no entalhe de uma imagem em uma peça em madeira,
deixando em relevo os elementos que se pretendia reproduzir. Em seguida, aplicava-se a tinta na
superfície da madeira e prensava-a com algum objeto que auxilia-se na revelação da imagem no
papel ou outra superfície. Posteriormente, a técnica aperfeiçoou-se em uma nova matriz,
usualmente cobre ou alumínio, que lentamente foi sendo preferida na produção das publicações,
especialmente após o domínio da técnica de laminagem, o que auxiliou na diminuição nas
espessuras das lâminas trabalhadas.

Figura 35 Armand Julien Pallière, Vila Rica por Armand Julien Pallière, 1820. Litogravura

Fonte:< http://rafaelflaneur.files.wordpress.com/2010/03/ouro-preto_palliere1.jpg >Acesso em 12 nov. 2014.

A ideia comumente sugerida, que a distancia entre local retratado e local de gravação
também aumentaria a distancia entre a realidade e o produto final, pode-se usar a figura do

151GOYA, Edna de Jesus. Gravura comercial ou aplicada em Goiás: documental, publicitária e de ilustração. In:
ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 20., 2011, Rio
de Janeiro. Anais... . Rio de Janeiro: Anpap, 2011. p. 432- 445. Disponível em:
<http://www.anpap.org.br/anais/2011/>. Acesso em: 26 ago. 2014.
| 79

litógrafo e aquarelista francês Arnaud Julien Pallière, pioneiro da litogravura no Brasil para
apontar que, ao contrário do que se pode deduzir, os schemas da arte já eram tão arraigados no
subconsciente do artista que mesmo imerso durante anos nos trópicos brasileiros, sua
representação pouco diferenciar-se-ia das imagens produzidas na Europa.
| 80

CAPÍTULO 2
Exuberantes panoramas:
A urbe em panoramas e vedutas.

2. EXUBERANTES PANORAMAS: A URBE EM PANORAMAS E


VEDUTAS
| 81

―No Brasil tudo depende do sol‖

M. le Baron Roussin, Navigation aux cõtes du Brésil.

A ―paisagem ideal‖ constitui-se como um importante conjunto de cânones para as


pinturas realizadas pelos artistas viajantes europeus. A noção de paisagem no Ocidente, no que
tange a discussão nas Artes, teve seu surgimento associado ao desenvolvimento da pintura como
arte, cuja origem do termo é atribuída ao artista flamengo Jean Molinet, em 1493, empregado
com o sentido de um "quadro representando uma região"152. O próprio uso da palavra landscape,
em inglês, data do final do Setecentos, período marcado pelo encorajamento e redefinição, sob
influência dos pintores paisagistas holandeses, da paisagem para se referir à temática rural e
depois aos panoramas urbanos, tanto em sentido mais amplo, que abarcasse toda a estrutura
urbana, os panoramas, quanto em um detalhe da cena, as vedutas. A generalização do termo
paisagem ocorre durante o século XVIII, por meio do cisma com a visão religiosa medieval153,
como discorre Keneth Clark (1999): "Só no século 17 os grandes pintores começaram a pintar
paisagens para seu uso próprio, tentando esquematizar suas regras. Só no século 19 se tornou arte
dominante, originando o conceito de paisagem154."
O inicio do século XIX na pintura paisagística seria marcado pela publicação, em 1808, da
obra Quadros da Natureza (Ansichten der Nature/ Tableaux de la Nature), de autoria do viajante e
naturalista alemão Alexander von Humboldt, no qual narrava sua viagem pelo Novo Mundo.

152 SALGUEIRO, 1995, Op. cit.

153SALGUEIRO, Teresa Barata – Paisagem e Geografia. Revista Finisterra, ano XXXVI, vol. 72, p. 37-53. Lisboa,
2001.

CLARK, Keneth Paisagem na Arte: Editora Ulisséia, Lisboa, 1961apud Parques Nacionais - Brasil/ Guias Philips:
154

Publifolha - Empresa das Artes, São Paulo 1999


| 82

Humboldt inicia a tradição da análise e apreensão das cenas naturais por meio do olhar científico
e estético, simultaneamente e com mesma importância, influenciou posteriores viajantes.

―Para os homens formados desse período, não somente a razão e o


conhecimento eram representados como atributos especiais do homem
civilizado, mas também a sensibilidade. Uma sensibilidade construída e
cultivada diante do conjunto de valores denominados civilizados, parte de uma
civilização que, como conceito, ―expressa a consciência que o ocidente tem de
si mesmo‖, ainda que não guarde exatamente o mesmo significado entre as
nações que circulam pelo mundo no século XIX em busca do conhecimento da
natureza, que, por um lado, procura a descoberta e o conhecimento dos seus
segredos pela ciência, objetiva e classificadora e, por outro, vivencia-a através
de uma sensibilidade aguçada pela emoção, do corpo e da alma155.

Esta sensibilidade romântica faria a ligação e a aproximação entre a os saberes científicos


e a estética na representação da natureza, sempre em busca de uma abordagem orgânica e
totalizante. Ana Maria de Moraes Belluzzo (1994) discorre sobre a influência humboldtiana na
construção da paisagem das cidades oitocentistas brasileiras:

―O aparecimento de uma paisagem do Brasil é devido sobretudo a percepção


estético-científica advinda em última análise do modelo humboldtiano. O atlas
pitoresco da viagem de Humboldt e Bonpland que aparece entre 1814 e 1819, e
o Atlas da Viagem ao Brasil de Spix e Martius, situam parâmetros dessa
visualidade embebida em saber científico‖156.

No entanto, não nos interessa apenas a discussão a respeito da paisagem157 na obra de


arte, pois, por tratarmos da cidade, mesmo que de suas representações, importa-nos conceituar
este termo de uma forma mais ampla, no intuito de desvencilharmos dos caminhos das
generalizações, no entanto, indicam-se caminhos que podem ser trilhados, uma vez que a
complexidade da discussão deste conceito não compete ao tema deste trabalho. O que deve ser
apreendido é que a paisagem, como produto humano, se constitui lentamente, tecida de maneira

NAXARA, M. Natureza e civilização: sensibilidades rimanticas em reoresentalçies do Brasil no século XIX. In: BRESCIA I,
155

M. S. & NARXARA, M. (Orgs.) Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma quesão sensível. Campinas:
Editora da Unicamp, 2001.

156 BELLUZZO, Introdução, 1994, op. Cit.


157Para maior aprofundamento na discussão sobre paisagem, cf: MYANAKI, Jacqueline. A paisagem no ensino de
Geografia: uma estratégia didática a partir da arte. 2003. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
| 83

complexa de acordo com dinâmicas que relacionam aspectos sociais, culturais e naturais158. A
paisagem, portanto, não é meramente constituída pelos acidentes topográficos, o conceito de
paisagem, segundo Rivera e Bujalance (2010), apoiados em escritos de Delgado Y Ojeda (2007)159
apontam que a paisagem deve ser compreendida como o produto final de um processo em que
determinado espaço geográfico transforma-se em um território ou um país a partir de um longo
processo de apropriações, normatizações e organizações e termina sendo codificado em
160
paisagem, por representações e percepções culturais. A dualidade de sentidos para a palavra
(por representar e remeter tanto as paisagens materiais quanto as paisagens mentais) é trabalhada
pelos pesquisadores Graciela Silvestri e Fernando Aliata no livro El paisaje como cifra de armonía
(1999)161. Silvestri, em outro escrito, nos dá pistas importantes para a abordagem do estudo deste
conceito:
Por ciento, el tema del paisaje puede ser abordado, como cualquier otro,
haciendo pie em uma sola de sus múltiples sugerencias. Lo que es imposible
cancelar es el horizonte complejo sobre el cual cada uma de ellas se recorta y
halla em gran medida su sentido. La Gioconda es um retrato; pero sabemos que
em su fondo está também la clave de sua ambígua seducción. Em el tema de
paisaje, la permanente alusión a algo existente que no se disuelve em la
representación es um dato constitutivo del concepto; enfrentarse com esto es
tan timportante como para la Gioconda su inquietante fondo162.

A leitura e a apreensão da cidade pode ocorrer sob distintas lentes, muitas dessas apoiadas
em diversos teóricos neste campo; embora não encerrem as discussões, podem ser utilizadas para
completar uma as outras ou apresentar como a cidade se é dada a olhar sob um aspecto
peculiar163. Se em Mumford (1961) a ―cidade é um fato da natureza, tal como uma gruta ou um

158MARTÍNEZ DE PISÓN, E. El paisaje patrimonio cultural. Revista de Occidente, 1997, nº 189, p. 36-49 apud
RIVERA, Juan Francisco Ojeda; BUJALANCE, Buenaventura Delgado. Representaciones de paisajes agrarios
andaluces. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, v. 14, n. pp. 310-347, 2010.

159DELGADO BUJALANCE, B. y OJEDA RIVERA, J. F. Metáforas contemporáneas de paisajes andaluces. In


PAÜL i CARRIL, V. y TORT i DONADA, J. (Eds.). Territorios, paisajes y lugares. Madrid: AGE y Galerada, 2007, p.
433-449.

160 RIVERA; BUJALANCE, op., cit.

161Silvestri, Graciela; ALIATA, Fernando. El paisaje como cifra de armonía. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visíon,
2001.
162 SILVESTRI, Graciela. Paisaje y representación. Prismas, Revista de historia intelectual, nº3, pp. 231-245, 1999.

163 GOITIA, Fernando C. Breve História do Urbanismo. Lisboa: Ed. Presença, 1989 apud Aristóteles Siqueira Campos
Cantalice. Uma breve reflexão sobre a forma urbana. Architecton - Revista de Arquitetura e Urbanismo, Recife, v. 02, n.
01, p.35-45, fev. 2012. Disponível em:
<http://www.faculdadedamas.edu.br/revistas/index.php/arquitetura/article/viewFile/223/217>. Acesso em: 02
out. 2014.
| 84

formigueiro‖ ela também é ―uma obra de arte, consciente‖164; configurando-se também como um
mosaico de outras formas de arte mais simples e pessoais e, por inserirem-se no universo de
elementos produzidos por uma sociedade, é testemunho físico da História; ainda apoiando-se na
analogia com a obra de arte, é possível admirá-la sob vários ângulos, enquadrando-a por inteiro –
e dessa forma tendo uma leitura do todo sem atentar às especificidades - ou escolhendo trechos e
deles ressaltando detalhes importantes na construção dessa estrutura geral.
Para a discussão que se segue, importa-nos essas diversas visões, a cidade como obra de
arte, como repositório de temporalidades e como um fato da natureza, tudo isto à luz da
discussão da representação da paisagem relativa às cidades brasileiras do oitocentos. Seja de perto
ou de longe, os volumes e a silhueta da cidade sempre interessaram aos artistas.
No entanto, antes de aprofundarmos a discussão das representações das vistas urbanas e
naturais, não podemos desvincula-la do conceito de paisagem ideal, uma matriz figurativa surgida
na Itália no início do século XVIII que aborda a concepção de natureza e detém cânones tão
definidos e fortes que se tornou não somente um paradigma para a arte da paisagem europeia
como também influenciou e ―treinou‖ o próprio olhar do viajante e sua maneira de percepção,
composição e rearranjo dos elementos da paisagem a ser retratada165. Salgueiro(1995) traz a
definição de paisagem ideal pelo Lexikon der Kunst166 com as seguintes palavras:
Por ela entende-se uma clara e harmoniosa paisagem plena de sol e luz.[...] Na
paisagem ideal são eleitas seções de paisagens reais que, segundo rigorosos
princípios, são reunidas em uma única e determinada composição, composta
mediante a construção de coulisses no primeiro plano e de recessão (visão
profunda para dentro do espaço). [...] Os principais representantes dessa
abordagem foram os artistas franceses atuantes em Roma, Nicolas Poussin e
Claude Lorrain167.

O artista não buscava a representação tal como a realidade se apresentava, mas como ela
deveria ser, ora produzindo imagens de árvores, pessoas e edificações que não existiam na
realidade ora retocando as que haviam de fato, sempre no intuito de compor e fazer ressaltar
determinado aspecto que ele almeja passar com sua tela ou desenho (a natureza selvagem? A
calmaria idílica dos trópicos? A decadência das cidades?).
Como o artista compunha a sua obra? Partia-se de uma estrutura já discutida
anteriormente: dividida em três planos (primeiro plano, plano intermediário e plano de fundo),

164 MUMFORD, Lewis. A Cultura das Cidades. Belo Horizonte: Ed.Itatiaia, 1961.
165 SALGUEIRO, 1995, p.104. op. Cit.

166 Importante obra sobre História da Arte, nos moldes de uma "Enciclopédia da Arte".
167 Cf. Lexikon der Kunst, vol. 4, Leipzig, 1975, apud SOUZA (1995), p.104
| 85

árvores ou construções (muitas vezes em ruinas) a delinear e emoldurar a paisagem em primeiro


plano (coulisses), fechando a tela e levando o olhar do observador ao centro e o atraia a pousar sua
visão na distância.
A importância desta discussão para este trabalho está na apreensão de que à representação
da cidade brasileira será adicionada esta pátina, e que o seu emprego imprimirá nas obras deste
tema outros cânones e outros significados a cada elemento representado; em algumas obras o
conceito de paisagem ideal será mais evidente, e no caso mais específico de Burchell,
perceberemos, adiante, que ele se enquadra em uma categoria mais livre das amarras dessa matriz
estilística, mas também se deixará influenciar.

2.1 A paisagem num piscar de olhos: O panorama

O panorama, na função de apresentação de uma cena, tornou-se comum no século XIX,


configurando-se como um dos mais tradicionais formatos de representação de cidades quando,
artistas, provenientes de diversas tradições artísticas, utilizaram deste artífice como uma
alternativa de abarcar a visão geral de um sítio e seus arredores. Intrinsecamente ligados ao ato de
navegar, os panoramas se prestavam a atuarem como perfis topográficos, principalmente quando
os núcleos urbanos não possuíam mapas exatos, já empreendidos pelos holandeses desde o
século XVI, no intuito de retratar pontos geográficos, baías e cidades, auxiliando, inclusive, em
desembarques na costa.
O que vem a ser um panorama, no século XIX , a não ser uma tentativa de
abarcar um lugar por inteiro, ou antes [...] a tentativa de se ver rodeado pela
representação de um lugar , de modo a entrar , por assim dizer,num mundo
idealizado?... O conjunto de uma cidade, de uma região e, a fortiori, de um país,
sempre foge à vista. Perdoem-nos este truísmo: O todo nunca é perceptível168.

Na tentativa de vencer uma das maiores dificuldades na representação em formato


panorâmico, a inclusão de todo o espaço e todas as informações em um espaço estabelecido, o
artista normalmente usava um ponto de vista elevado, o que conferiria à cena uma perspectiva de
voo de pássaro. A escolha de uma vista área dificultava a representação fidedigna da paisagem,
portanto, o emprego de instrumentos óticos auxiliara e facilitou o trabalho do artista ao alterar a
perspectiva.

168AGUILLAR, Nelson (org.). Mostra do descobrimento: o olhar distante - the distant view. Fundação bienal de
São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 anos artes visuais, 2000, p.39.
| 86

Entretanto, mesmo com o uso destas ferramentas, o artista deveria ser hábil na
representação de múltiplos pontos de fuga e na representação miniaturizada;169 o que, a um
primeiro momento, não parece que foi um grave problema, uma vez que grande número de vistas
panorâmicas no Oitocentos também revela-nos que a maioria dos artistas da época possuíam
afinidade com a visão do espaço amplo170. Outra inovação que pode ser observada é a
representação que o panorama oferece ao artista oitocentista, ao transgredir os cânones da
pintura de paisagem renascentista, na qual os métodos de perspectiva linear limitava o ângulo de
visão em 45°, uma vez que a ―cabeça‖ do expectador deveria estar fixa e a imagem representada
seria limitada à área varrida pelo seu olhar nesta posição.

Figura 36 Piero della Francesca, View of an Ideal City.

Fonte: <http://www.nytimes.com/2012/05/09/arts/09iht-conway09.html?pagewanted=all&_r=0>
Acesso em: 01out.14.

Figura 37 Claude Lorrain, the Embarkation of Saint Paula Figura 38 Claude Lorrain, Landscape With A Sacrifice
for Jerusalem, 1639. Óleo sobre tela, 100.9 x 135.2 cm. To Apollo, 1639-40. Oleo sobre tela

169 BELLUZZO, Ana Maria. op. cit. p. 53-59.


170 Belluzo, Ana Maria. op.cit. p.52
| 87

Fonte: < http://www.claudelorrain.org/Acesso em: 01 Fonte: < http://www.claudelorrain.org/Acesso em:


out.14. 01out. 14.

O panorama também iria de encontro à paisagem convencionada pelos cânones italianos


do século 17, no qual a vegetação alta e elementos arquitetônicos fariam às vezes de coulisses171,
rearranjados na vista para cumprir a função de verdadeiros elementos de fechamento da cena.
Embora sem os elementos de composição típicos, o panorama ainda guardaria os
rearranjos de cena: utilizaram-se amplamente do recurso de povoar seus enquadramentos com
elementos que pudessem tipificar a região e a adoção da organização espacial composta por três
níveis, comum na pintura de paisagem, sobremodo a inglesa,172 auxiliaria na fixação dos três
elementos-chave das representações sobre a cidade brasileira: Em primeiro plano, o elemento
natural (a vegetação, o mar), no plano intermediário a paisagem construída e no plano de fundo
os acidentes topográficos que indicassem o ―afundamento‖ da cidade nos vales.

O panorama circular

O panorama circular consiste em um desenho ou pintura que retrata a paisagem vista no


ângulo de 360° de diferentes pontos de vista, mas a partir de uma mesma localização, como alto
de um morro, o pátio de uma igreja ou o centro de uma baía. A imagem é desenhada, na verdade,
em uma série de pranchas que, alinhadas uma a outra em superfície curva simularia o contorno
real; as escalas seriam cuidadosamente alteradas para criar uma perspectiva falsa, o que garantiria
o reforço da ilusão e do realismo. Os panoramas surgiram nas grandes cidades europeias como
entretenimento e ―educação visual das massas‖173.

171CORDEIRO, C. H. G. M. ; Cláudia Maria França da Silva . Paisagens Desenhadas: Reflexões Sobre a Construção de uma
Geografia Subjetiva - V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual - UFG, Goiânia: ISSN: 2316-6479.
In: V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual, 2012, Goiânia. Anais do V Seminário Nacional de
Pesquisa em Arte e Cultura Visual, 2012. p.13.

172 SALGUEIRO, 1995, p.92. Op. Cit.

PERROTA, Isabella. Desenhando um paraíso tropical. A construção do Rio de Janeiro como um destino turístico. 2011. 109 f.
173

Tese (Doutorado) - Curso de História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (cpdoc), Rio de Janeiro, 2011. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8997>. Acesso em: 30 set. 2014, P.91.
| 88

Os panoramas variavam de escala, desde aqueles que deveriam ser observados de cima
(panoramas de salão, como a Figura 39) ou aqueles em que era necessário que o espectador
entrasse em uma estrutura própria e observasse o desenho (menor em tamanho que os de salão),
dando a sensação de estar no local retratado, concebidos como entretenimento comercial174. Os
salões para panoramas foram criados a partir da exposição da tela do pintor inglês Robert Barker,
cuja pintura da cidade de Edinburgh, na Escócia, foi exposta na rotunda projetada pelo arquiteto
Mitchell, em Leicester, em 1799175.
Figura 39 Robert Barker, panorama da cidade de Edinburgh, Escócia. Óleo sobre tela, 1783

Fonte: < http://facweb.cs.depaul.edu/sgrais/panorama.html > - acesso em 30/07/14

A partir desta primeira exposição, outras imagens seriam realizadas no intuito de serem
expostas nas rotundas construídas nas grandes cidades europeias176; muitos destes panoramas
foram pintados a partir de esboços ou pinturas de paisagens distantes realizadas por viajantes
europeus. As imagens tropicais não seriam unanimidades, artistas como o britânico Frederick
Catherwood retratariam Tebas e Jerusalém, imagens que fariam tanto sucesso quanto as vistas

174 PERROTA, Isabella. op.cit, p.40.

175 Ibidem, p.92.


176A cidade do Rio de Janeiro também teria uma rotunda, construída na Praça XV de Novembro especialmente para
a exposição do Panorama do Rio de Janeiro de Victor Meirelles, com proximamente 115m de comprimento,
construídaem 1891. Cf. SOUZA, L. T. ; SEGRE, R. ; BARKI, J. A reconstrução de um olhar: modelagem tridimensional das
antigas rotundas dos Panoramas do Rio de Janeiro. In: XIV SIGraDi - Sociedade Ibero-americana de Gráfica Digital, 2010,
Bogotá. Disrupção, Modelação e Construção: Diálogos Semelhantes. Bogotá: Universidad de Los Andes, 2010. v. 1.
Disponível em: < http://cumincades.scix.net/data/works/att/sigradi2010_343.content.pdf > Acesso: 20/09/2014.
| 89

americanas177. Os temas de paisagem tropicais concorreriam também em popularidade com as


cenas de batalhas nas rotundas, o que faria com que os pintores de vistas urbanas tomassem
escolhas cada vez mais dramáticas, no que toca a perspectiva e ao pitoresco.

Figura 40 Imagens da rotunda de Leicester, projetada por Mitchell.

Fonte: http://www.studioargento.com/immersiva/medium/foto-immersiva.html. Acesso em:


20/09/2014.

O surgimento dessa nova maneira de se admirar a cidade fez surgir o padrão de leitura da
―categoria cidade‖ disciplinando o olhar dos espectadores para este objeto específico178. Inclusive
seria o crescimento da cidade industrial europeia quem daria impulso ao estabelecimento das
cenas urbanas (as atividades características da cidade) como uma das grandes temáticas da
pintura. De acordo com Meneses (1996), com o advento da industrialização ―a cidade se torna
cada vez mais complexa, ao mesmo tempo em que se acentua seu caráter de um sistema de
representações‖179.
O autor prossegue apresentando-nos os modelos mentais e visuais pelos quais, ao longo
da história, o ambiente urbano foi pensado, propostos por Christine Boyer (1994): A cidade
como obra de arte, característico da cidade tradicional; a cidade como panorama, característico da
cidade moderna; e a cidade como espetáculo, característico da cidade contemporânea. Meneses,
apoiado em Boyer, afirma que fora destes parâmetros propostos, o trabalho com imagens de
cidade com o foco na história fica comprometido.

177 Altick (1978), p.138, apud SOUZA, p.83. op. cit.


178 MENESES, 1996, p.142.

179 Ibidem, ibid..


| 90

[...]As cenas urbanas tiveram também grande impacto, sobretudo por


permitirem um ângulo de aproximação capaz de compensar a perda gradual de
domínio da cidade como um todo, pelo habitante comum, num momento em
que a transformação e o crescimento das grandes capitais já se vinham
manifestando de forma sensível. Assim, em 1804, um escritor austríaco, Joseph
Richter, citado por Bordini (1984, p. 231), dizia que, com a instalação de um
panorama explorando a imagem de Viena, os austríacos, que só iam ao Prater
(Jardim do Prado) ou ao teatro, finalmente poderiam conhecer sua cidade180!

Escolheram-se, para estudo comparativo com o panorama do Rio de Janeiro de autoria


de Burchell, cinco panoramas produzidos por viajantes distintos. Em relação direta, em questões
geográficas, tem-se o panorama de Taunay relativo ao Rio de Janeiro; em relação à antiga capital
da colônia, Salvador, foram escolhidos dois outros panoramas, desenhados por Charles Landseer,
em 1826 e por Friedrich Salathé, c.1822.

Salvador em panorama

A cidade de Salvador foi fundada segundo o princípio de escolha de sítios elevados,


protegidos por encostas íngremes e próximos a pontos acessíveis por mar ou por cusos de rio,
adotado desde a Antiguidade. Adotava-se o paradigma da cidade alta/cidade baixa replicado por
várias cidades antigas europeias (principalmente gregas e ibéricas) e transportados à urbe
brasileira181. Salvador, capital do Brasil até 1763, cresceria a partir destas primeiras indicações, e
mesmo quando não portava mais a alcunha de capital da colônia, seria uma das maiores cidades
da América Latina, proficuamente visitada por comerciantes e viajantes estrangeiros, suscitando
diversas descrições, textuais e pictóricas. Em 1832, a bordo do Beagle, Charles Darwin aportou
no porto de Salvador e, maravilhado com a paisagem, escreveu a respeito da paisagem em seu
diário:

"A vista da cidade é magnífica. Ninguém seria capaz de imaginar nada tão belo
quanto a antiga Cidade da Bahia. Ela fica docemente aconchegada num bosque
exuberante de lindas árvores e, situando-se sobre uma colina íngreme,
descortina as águas calmas da grande Baía de Todos-os-Santos. As casas são
brancas e altivas. Os conventos, os pórticos e os prédios públicos quebram a

180 Ibidem, p. 150.


181JUNIOR, José Geraldo Simões; CAMPOS, Candido Malta. Permanências do urbanismo de colina como tradição
luso-brasileira: os casos de Salvador e de São Paulo. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 5, n. 1, p. 47-
69, 2013.
| 91

uniformidade das casas; a baía é repleta de grandes navios. Em suma, e o que


mais se pode dizer? Ela é uma das paisagens mais lindas dos Brasis182".

A descrição textual idílica e pitoresca de Darwin encontraria correspondência iconográfica


em inúmeros relatos de viajantes. Salvador, pelo status de capital da colônia, recebeu várias
ordens católicas que fundaram suas igrejas e pontilharam a paisagem das margens da Baía de
Todos-os-Santos com suas torres sineiras e sua arquitetura barroca, elemento representativo da
paisagem e que seria utilizado proficuamente pelos viajantes na representação da cidade em suas
obras, como observar-se-á a seguir:

Figura 41 Charles Landseer, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, 1825.

Fonte: < http://www.cidade-salvador.com/seculo19/landseer.html > Acesso em: 23 de out. 2014.

Este desenho de Landseer representa (Figura 41) a baía de Todos os Santos vista de um
ponto da Cidade Alta, em Salvador. Observa-se no detalhe 1 o emprego de espécies vegetais
típicas (mamoeiro e bananeira) a ressaltar a imagem tropical de uma das maiores cidades
brasileiras à época. Percebe-se a representação dos sobrados mais altos que o ―usual‖ no que
tange a representação da arquitetura colonial, indícios da importância econômica da cidade.
Observar-se a construção das edificações ao longo da encosta, criando um jogo de alturas,
salientando a ―informalidade‖ do traçado, em primeiro plano, o muro da ladeira acentua o

182DARWIN, C. Correspondence, 10 vols. Ed. de F. Burkhardt & S. Smith. Cambridge, Cambridge University Press,
1985-1997 (Correspondence) apud HORTA, Marcio Rodrigues. O impacto do manuscrito de Wallace de 1858. Sci.
stud., São Paulo , v. 1, n. 2, June 2003 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662003000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 13 Nov. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662003000200007.
| 92

desnível. Observa-se a escolha da visual no intuito de fazer sobressair a massa construída do


centro na cena.

No sopé da montanha que liga a cidade baixa e alta, observamos apenas as duas torres em
estilo barroco da Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia183 (A), pontuando a cena com
motivos religiosos e pitorescos. Ao longe, vislumbra-se os contornos do que seria o complexo da
Igreja e Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Serrat (B)184. A Igreja do Corpo Santo (na imagem
aparece com uma torre, embora atualmente não a possua mais)185

Figura 42 Friedrich Salathé, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, água-tinta, 65 x 123,7cm,
1826

Catedral Basílica

Fonte:< http://www.cidade-salvador.com/seculo19/salathe.html. > Acesso em: 14 nov. 2014.

A relação entre cheios e vazios do panorama de Salathé é proporcional ao encontrado na


realidade, como podemos observar na fotografia do inglês Benjamin Mulock, que trabalhou na

183 À época Matriz de Nossa Senhora da Conceição da Praia.


184 Cf. Livro do Tombo relativo às Belas Artes, Iphan, Disponível em:
http://www.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_belas.gif&Cod=1135, Acesso em: 22 set. 2014.
185O tombamento inclui todo o seu acervo, de acordo com a Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de
13/08/1985, referente ao Proesso Administrativo nº 13/85/SPHAN. Em relação à torre, o que sabe-se é que pelo
menos até o ano de ela ainda estava erguida em 1862, de acordo com a fotografia do espanhol Rafael Castro y
Ordoñez. Cf. http://www.cidade-salvador.com/seculo19/castro-ordonez.htm
| 93

Bahia de 1859 a 1862186, tiradas a partir do Forte São Marcelo. As arcadas do térreo, no entanto,
chegam a possuir a altura equivalente a dois pavimentos, lembrando muito mais as construções
romanas ou italianas que a arquitetura colonial. Ademais, cena como um todo parece muito mais
com a vista de uma cidade italiana que uma cidade brasileira, principalmente pelo emprego da
embarcação de traços italianos. A faixa de céu e de mar oprime a cidade, diminuta e estirada,
embora com prédios de quatro andares, prova material da importância econômica e política da
cidade, Salvador aparece horizontalizada. O mais interessante nesta imagem é de que não consta
na bibliografia pertinente ao tema a sua vinda ao Brasil; Salathé seria um exemplo, dentre muitos,
que leriam a paisagem brasileira através dos olhos de outro –ou de vários outros- viajante.

Tal como na comparação entre a litogravura realizada por Landseer em solo brasileiro e a
produzida na Europa, nota-se os schemas tão bem amarrados na obra dos artistas que
representaram o Brasil in loco, é quase imperceptível a diferença daqueles que não visitaram o país;
interessante notar as estratégias que Salathé usa para transmitir veracidade ao seu desenho, como
as embarcações em primeiro plano, denotando que o artista estava dentro de uma outra no
momento em que divisava a cidade e tomava nota a partir de tintas e lápis.

Figura 43 Benjamin Mulock, Panorama de Salvador. Fotografia.

Fonte: <http://www.cidade-salvador.com/seculo19/salathe.html >Acesso em 13 de novembro de 2014.

E aqui é um risco que se toma ao confrontar fotografia e desenho, espera-se que o leitor
não tome uma mais verossímil que a outra, por que não se deve perder de vista que no corupus

186 BACELAR, Jonildo. Panorama de Mulock - 1860. Disponível em: <http://www.cidade


salvador.com/seculo19/mulock/panorama.htm>. Acesso em: 30 set. 2014.
| 94

de elementos que podem traduzir a realidade, a fotografia é uma alternativa a mais de leitura de
mundo.

No conjunto de imagens que traduzem o mundo, a fotografia pode servir como


uma alternativa a mais de leitura da realidade. Enquanto produto cultural, é uma
construção feita por um sujeito mediador, o fotógrafo, que seleciona pessoas e
elementos e os enquadra na bidimensionalidade de um espaço a ser recortado.
Entre este sujeito e o retratado está a tecnologia, que permite a fixação da cena
escolhida. Visto a fotografia ser um produto cultural, a sua construção faz parte
de um determinado contexto histórico, que influencia na construção do olhar
do fotógrafo, nas representações sociais impressas e no equipamento
tecnológico empregado para a tomada da imagem187.

O Rio de Janeiro em panoramas

A cidade do Rio de Janeiro foi amplamente retratada pelos viajantes ao longo do século
XIX como capital do Império e principal porto de entrada da maioria dos europeus que
chegavam ao Brasil, sua baia. São suas descrições, somados aos inúmeros outros relatos viajantes
que auxiliariam na fundamentação do imaginário sobre o Brasil.
O panorama de Benjamin Mary mostra-nos que até mesmo o panorama, que em tese,
deveria informar com acuidade ao observador a respeito dos pontos marcantes e característicos
de uma cidade, variaria em intensidade de schemas empregados, sem no entanto perder de vista
que todos, mais realísticos ou não, serviriam ao proposito de informar e fazer circular os vários
fundos-comuns imagéticos a respeito de nossa paisagem.
As duas vistas panorâmicas apresentadas possuem elementos em comum para além da
cidade retratada. Ambas foram desenhadas a partir do topo do Monte do Castelo, cuja altura era
de aproximadamente 63 metros e tinha por limites as atuais Avenida Rio Branco (antiga Avenida
Central) Santa Luzia, São José e Misericórdia188.
O Morro do Castelo, mirante utilizado por ambos os artistas, foi um importante marco
para a história urbana carioca, uma vez que Mem de Sá escolheu o Morro do Castelo como local
dos assentamentos definitivos da cidade, em 1567189. A escolha deste sítio para a tomada de cena

187CANABARRO, I. S. . Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre,
v. XXXI, p. 23-39, 2005, p.24.

188

189BARROS, Paulo Cezar de. Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro ? ( um pouco da história do Morro do
Castelo. Revista Geo-paisagem: Niterói, v. 01, n. 02, jul/dez 2002. Semestral. ISSN Nº 1677 – 650 X. Disponível em:
<http://www.feth.ggf.br/origem do rio de janeiro.htm#_ftn1>. Acesso em: 30 set. 2014.
| 95

não foi por acaso. Além da sua altura, o topo do morro seria importante por causa de seu ponto
de longitude, como SMITH & SMITH (1967) indicariam, apoiados nas poucas palavras que
Burchell deixaria registradas: [...] The Castello Hill in the town of Rio de Janeiro (S 22° 54’, W 43° 11’,
the first settlement on Rio and the zero point of longitude on old Brazilian maps, later removed for fill o extend the
city into the bay)190. Sem dúvidas não imaginariam qual o destino que o morro teria décadas depois;
no esforço de abarcar a modernidade pungente, o morro do Castelo seria arrasado.

Figura 44 Benjamim Mary, Panorama do Rio de Janeiro, 1835. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel, 30,3 X
312,4 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

1 2

Fonte: Coleção Brasiliana/ Fundação Estudar da Pinacoteca do estado de São Paulo.

Neste panorama, realizado por Benjamin Mary, a cidade toma lugar secundário, como um
pano de fundo, pois interessa muito mais ao artista retratar a miríade tropicalidade da vegetação,
com suas cores, texturas e formatos do que nos informar a respeito da paisagem construída,
como se retrocedesse alguns passos para o interior da mata e vislumbrasse a cidade a partir daí,
com uma cortina de coqueiros, cipós e mamoeiros à frente.

190SMITH, Lyman B.; SMITH, Ruth C. Itinerary of William John Burchell in Brazil, 1825-1830, Phytologia, vol.14, n.8,
1967, p.492-506.
| 96

O ponto de vista escolhido foi o bairro de Santa Teresa, situado sobre um morro junto ao
centro191, o que nos coloca em outra perspectiva.

Figura 45 Johann Jacob Steinman, Rio de Janeiro visto a partir do morro de Santa Teresa, 1834.

Fonte: <http://historiasemonumentos.blogspot.com.br/2014/04/passeio-publico-do-rio-de-janeiro1779.html>.
Acesso em: 10/10/2014.

A luminosidade arcádica, inspirada nas pinturas italianas de Lorrain, se faz presente nesta
obra de Steinman. O casario da Lapa, o Passeio Público e o Morro do Castelo estão aqui
representados com traços neoclássicos, retos e limpos. A vegetação dos quintais e do entorno
natural assemelham-se muito mais aos pomares e ciprestes europeus do que às espécies
tropicais192. Todos esses elementos auxiliariam na transmissão de uma imperturbável calmaria,
reforçada pela bruma que recobre a baía e o plano de fundo esmaecido da cadeia de morros ao
longe, nesta aquarela, como em tantas outras, a urbe colonial seria retratada com um forte peso
pitoresco, realística de certo modo, de traços estrangeiros até certa medida, mas não o suficiente
para imprimir estranhamento nos fruidores dessa arte na Europa.
A síntese encontrada no panorama, o desejo de abarcar a porção máxima de uma cidade,
arraial ou vila, seria, pois, extrapolada pelos anseios de artefato decorativo e lucro pela companhia
Zuber de papéis de parede. Aqui, mais do que informar o Velho Mundo sobre as terras

191OLHAR viajante na Casa Fiat de Cultura: Coleção Brasiliana / Fundação Estudar da Pinacoteca do Estado de São
Paulo. Minas Gerais: Casa Fiat de Cultura, 2008. Exposição realizada em Minas Gerais, Casa Fiat de Cultura, 22/10-
18/12/2008, p.31.
192 RAMINNELLI, op. cit. p.26.
| 97

longínquas do Brasil, ela servirá de ornamento das residências das classes médias e da burguesia
europeias, servindo ao gosto do momento por imagens utópicas e exóticas193.

Figura 46 Jean-Julien Deltil (baseado em desenhos de Johann Moritz Rugendas), Vistas do Brasil, Primeira metade
do século XIX. Acervo Instituto Moreira Salles. Aquarela sobre papel, 451 x 1541 mm.

1 2

Fonte: <http://ims.com.br/ims/acervo/obra/3492 >. Acesso em 28 nov. 2014.

O painel de Jean-Julien Deltil, Panorama du Brésil (1829) é composto por trinta telas
inspiradas em litografias de Rugendas quando no Brasil, ilustrações do livro Voyage pittoresque dans
le Brésil, publicado em fascículos entre 1827 e 1835194. No painel encontram-se as várias tipologias
vislumbradas pelos viajantes: a casa-grande (aqui, remodelada com traços mouros), a igreja
(assentada em uma elevação, remetendo à realidade de sua posição de acrópole na cidade, ornada
com uma profusão de palmeira), as tipologias indígenas e senzalas. As cores sólidas e vivas e as
constrições operadas por Deltil na paisagem escondem, no entanto, os investimentos técnicos
necessários ao seu fabrico em série, inerentes à produção de gravuras à época, como aponta
Celeste Zenha (2002):

As trinta faixas de 54 centímetros de largura por 173 de altura que compõem as


Vistas do Brasil foram elaboradas de maneira muito complexa e quase artesanal.
Na primeira impressão desse trabalho foram utilizadas 1.693 pranchas gravadas
em madeira e empregadas trinta tonalidades de cores: quatro azuis, quatro
violetas, quatro vermelhos, seis cinzas, quatro amarelos, seis tons de pele, um
marrom e um preto. Nesse processo cabia primero ao desenhista apresentar os
quadros que eram gravados em matrizes de madeira após a separação das cores
a serem utilizadas em cada uma. Antes de ser impresso com as imagens, o papel

193 ZENHA, 2002, p.146. Op. cit.

194ZENHA, Celeste. O Brasil de Rugendas nas ediçoes populares ilustradas. Topoi - Revista de Historia PPGHIS, Rio de
Janeiro, v. 5, p. 134-160, 2002. P. 146.
| 98

recebeu um fundo colorido. O efeito da luz do sol no céu azul foi obtido
através do emprego da técnica do irisé que sobrepôs duas cores produzindo um
dégradé que vai do azul da parte superior da imagem ao bege da altura do
horizonte para baixo. [...]quando as vendas reunidas de todos os tipos de
panoramas totalizaram 598195.

Figura 47 Papel de parede atualmente impresso pela Casa Zuber, nota-se que os desenhos continuam idênticos ao
original.

Fonte: <http://www.zuber.fr/html/produits/decors_panoramiques_planche/vues_du_bresil1.html. >acesso em: 28. Nov. 2014.

Figura 48 Sala de jantar da Embaixada brasileira em Moscou, Rússia. Notar o emprego do referido panorama.

Fonte: < http://moscou.itamaraty.gov.br/pt-br/sede_da_embaixada.xml > Acesso em: 12/10/2014.

Deltil utiliza-se de um intenso poder da síntese da paisagem brasileira por ―bricolagens‖


imagéticas, artifício que também seria utilizado pelo próprio Rugendas, ao montar, numa única
prancha, várias imagens de aspectos brasileiros, o que não deixa de ser um panorama, mesmo que
não de uma pretensa paisagem única e circular, mas de vários estímulos visuais apreendidos
durante sua viagem. Ao nomear ―Vistas do Brasil‖ e ―Brasilien‖, Deltil e Rugendas,
respectivamente, compreendem que o Brasil é, na verdade, uma tessitura de vários outros Brasis
que se divergem em paisagens, tipos humanos, flora e fauna. Entretanto, apresenta-os em uma

195 Ibidem, p. 147.


| 99

imagem única ou agrupados numa forma que remotamente lembram métodos como os de
Warburg.

Figura 49 Johann Moritz Rugendas, "Brasilien", imagens que tentam resumir as paisagens brasileiras.

Fonte: < http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P269.html > Acesso em: 14


nov. 2014.

Felix- Émilie Taunay veio ao Rio de Janeiro em 1816, acompanhando seu pai, integrante
da Missão Artística Francesa, o pintor Nicolas Antoine Taunay, de papel decisivo em sua
formação artística. Em 1821 realizou uma série de desenhos e aquarelas que constituem o
primeiro Panorama do Rio de Janeiro até hoje conhecido, e posteriormente pintado em tela, em
1824, por Fréderic Guillaume Ronmy e exposto em Paris, na rotunda do Boulevard des Capucines196.
Controversa autoria, uma vez que estudiosos de arte como Mário Barata e Margareth
Pereira levantam hipóteses sobre o real autor das oito pranchas; algumas correntes afirmam ser
de Nicolas-Antoine Taunay, como foi publicado por M. David Roy (1990), mas até o presente
momento as provas não se mostraram consistentes o suficiente para que a autoria fosse
reclamada e retirada de Taunay.

196DIAS, Elaine. Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp,
2009.
| 100

Félix Taunay possuía uma ligação estreita com a dimensão urbana do Rio de Janeiro, pelo
menos do ponto de vista estético, uma vez que colaborou com o arquiteto Grandjean de
Montigny no programa de embelezamento das ruas da cidade do Rio de Janeiro. Ademais, sua
técnica de pintura de paisagem lhe valeu, como substituto do pai, a cadeira de Paisagem da
Academia e Escola Real de Belas Artes, mais tarde Academia Imperial de Belas Artes, onde
lecionou entre 1820 e 1851197.

Figura 50 Felix-Émile Taunay, Panorama do Rio de Janeiro, 1824.

1 2

2
Fonte: SOUZA, 2009.

Observa-se nitidamente que a aquarela serviria a um propósito final de outra natureza: a


de ser exibida, após aperfeiçoamentos, mudanças de escala e técnica artística, em panoramas nas
cidades europeias. Era sabido que Nicolas-Antoine Taunay mantinha contatos profissionais com
Jéan Prévost, um dos principais panoramistas de Paris198.
Felix Taunay explora com habilidade os efeitos da luminosidade e da sombra em seu
panorama, e funde, harmoniosamente, a paisagem construída (tanto no nível arquitetônico
quanto no nível urbano), a vegetação exuberante e os acidentes geográficos. Observa-se a cidade
muito uniformizada, seja em cores (o branco das construções e os tons terrosos de suas
coberturas), seja em proporção (a cidade mostra-se majoritariamente horizontalizada). Uma vez
mais se observam as três camadas na perspectiva: Em primeiro plano o conjunto arquitetônico

197 DIAS, Elaine, op. Cit, p.53.


198 Ibid, p.55.
| 101

pertencente ao Morro do Castelo, em segundo plano, a cidade e a primeira cadeia de morros e na


última camada, a baía e os morros mais distantes, em desvanecidos tons violáceos.
As cores dos primeiros planos, por outro lado, são de tons fortes, seus matizes de verde
escuro insinuam a mata fechada e intransponível, uma influência do conceito do sublime da
paisagem, que se utilizava de tons escuros na paisagem. Muito mais bucólico seria uma de suas
inúmeras cópias, realizadas pelo viajante suíço Johann Steinmann199 no qual o matiz escuro da
vegetação seria trocado pelo verde-inglês típico das pinturas de paisagem europeias.

Figura 51 Jacob Steinmann, possível base para ampliação do panorama do Rio de Janeiro, 1824.

Fonte: SOUZA, 2009.

O céu na versão de Steinmann aparece em maior proporção que em Taunay, mas


acredita-se que seja pela ciência, por parte de Steinmann de que este subterfúgio é necessário em
uma obra que se pretende ampliar para uso em panoramas, inclusive, seria uma espécie de marca
registrada o grande pano de céu nos panoramas dos ateliês de Barker e Prévost, os maiores da
época200. Inconteste seria o êxito da exibição no panorama em Paris, fato noticiado em jornais
brasileiros:

A admiração que lhes causa a beleza, e a variedade dos diversos pontos do


quadro reproduzido pelo desenho, com tanta verdade, que muitas pessoas
atualmente residentes em Paris, e que viveram por muito tempo no Rio de
Janeiro, se julgam transportados ao Cume do Monte do Castello, onde a Corte

199Johann Jacob Steinmann (1804 - 1844), Johann Jacob Steimann chegou ao Brasil em 1825, contratado para instalar
uma oficina litográfica no Arquivo Militar.

200LEITÃO, Thiago. O panorama digital: da representação pictórico-espacial às experiências digitais. Dissertação de Mestrado,
213p. Rio de Janeiro: PROURB, 2009, p. 31. Com isto, a nossa omissão em atribuirmos à cidade brasileira maior ou
menos destaque em determinados panoramas, uma vez que a grande porção de céu era necessária para a reprodução
em panoramas circulares.
| 102

Imperial se ofereceu aos olhos, e ao grande pincel do autor, e onde ele copiou
as diversas paisagens desta cidade.201

O panorama também foi assunto em periódicos franceses, em especial críticas a respeito


da pintura e de sua beleza. Dentre elas, destaca-se o comentário publicado no Le Courrier Français:

Seria ridículo descrevera cidade do Rio janeiro às pessoas que podem vê-la ou
que a viram. Seria ridículo e impossível descrever o país que a rodeia.
Combinar-se-iam em cem maneiras as palavras beleza, grandeza, majestade,
magnificência sem lhe fazer ver, sem lhe fazer sentir, sem lhe fazer
compreender. [...]é preciso ir ver um dos mais belos panoramas que já foram
oferecidos aos nossos olhos202.

No entanto, outro panorama teria por título ―O Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro‖ e
seria de autoria de Burchell, que deixou-nos uma inestimável obra acerca de seu olhar sobre a
cidade; tomando notas e esboços d’après nature, o viajante procurava esboçar elementos e tipos
que mais tarde poderiam ser elaborados em pinturas mais complexas; entretanto, nunca as
chegou a fazer. O que afinal chamaria a atenção do experiente viajante? Se os trabalhos de
Rugendas seriam denominados de ―obras de juventude‖ por Diener (1996)203, o mesmo não
poderia ser dito de um artista-viajante que passou uma década percorrendo outras terras tropicais.
Visualizar a paisagem era, sobretudo, tentar catalogá-la. Embora houvesse o ―desejo‖ em
colecionar espécies ou atividades referentes ao local, a idéia do ―empilhamento‖ de elementos
nitidamente tropicais recai no conceito de schemas gombrichiano.
Para dar veracidade à cena, fazia-se necessário ressaltar ou adicionar elementos característicos
do local, daí a profusão de plantas e animais endêmicos das florestas tropicais, os escravos
negros, o indígena, as ruas em desalinho, as gelosias nas esquadrias, dentre outros elementos. Se
o trabalho de Burchell, à primeira vista, nos parece ―livre‖, o que pode ter influenciado
afirmações como as de seu primeiro estudioso, Ferrez (1981), ao observamos minuciosamente
observaremos que os cânones estão ali, apenas encobertos e mais discretos.
Antes de se iniciar a análise do panorama realizado por Burchell, faz-se necessário indicar que
o botânico não produziu apenas um em sua estadia no Brasil, outro panorama foi desenhado para

201 Spectador Brasileiro, 23/08/1824, Biblioteca Nacional, apud, DIAS, Elaine, 2010), op. Cit., p.213.

202Le Courrier Français, 28/05/1824, Bibliothèque de l‗Institut de France, Paris apud, DIAS, Elaine (2010), op. cit.
P.214.

203 DIENER, op., cit.


| 103

a cidade de Belém, na província do Grão-Pará, em 1829, quando na sua estadia de nove meses à
espera de embarcação para a Europa. No entanto, este panorama encontra-se, até o momento,
perdido, restando apenas seu índice, o que nos dá uma breve idéia do quão preciso deveria ser.
O Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro é um conjunto de oito pranchas sequenciais,
realizadas em 1825, executado no interior da fortaleza de São Sebastião, no morro do Castelo.
Aquareladas e desenhadas a bico de pena, no formato 53 x 37 cm cada uma, o que dá ao
conjunto o tamanho de 4,24 x 37 cm. O índice remissivo do panorama foi perdido, contudo,
Gilberto Ferrez em sua publicação sobre o “O Mais Belo Panorama...” recompõe a parte relativa às
ruas, elevações e prédios, sendo a referência base para as considerações a seguir204:

Figura 52 William Burchell, Panorama do Rio de Janeiro. Lápis, 1826. 205

Fonte: FERREZ, 1966.

O ―Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro‖ (1825) mostra-nos uma cidade em destaque, como
poucas vezes foi representada pelos artistas viajantes dos oitocentos. Do ponto de vista
expressional, temos duas curvas ascendentes no qual seu ponto mais alto corresponde ao centro
do desenho, o que caracteriza a imagem como um panorama circular. Fontes indicam que o
panorama de Burchell foi adquirido pelo panoramista Buford, sucessor de Robert Barker no
comando da rotunda dupla de Leicester Square, ampliado no atelier de Buford e exposto na
rotunda em 1828 206.

204A figura do panorama inserido no corpo do texto tem finalidade ilustrativa, uma cópia do Panorama pode ser
encontrada no Anexo desta pesquisa.
205 Ver Pranchas no ANEXO A.

206 SOUZA, 2009.


| 104

Longe do acanhamento com que costumeiramente foi descrita, a urbe carioca espraia-se
pelo terreno – e pelo papel- com profusão de elementos e toma importância ao longo das oito
pranchas que correspondem ao desenho. Percebe-se que, diferente de outras vistas panorâmicas,
o ambiente construído e seu entorno ocupam maior espaço do que o céu ou o oceano, porém,
deve-se notar que os panoramas circulares tinham grande parte de seus cenários ocupados pela
abóbada celeste no intuito de. Nota-se a vegetação207 em riscos rápidos e esquemáticos enquanto
a arquitetura é desenhada em pormenores e traços precisos. Ao fundo, a cadeia de morros que
circundam a urbe é apenas delineada.

A miríade de construções é pontilhada pelas inúmeras mansardas nos telhados do casario


e por tipologias distintas; detalhes construtivos são identificáveis bem como a intensa
movimentação de embarcações e de pequenos pontos que insinuam aglomerações humanas
próximas ao largo do Paço emprestam à aguada uma intensa dinâmica urbana, um contraponto
ao clássico abandono e vazio com que as ruas e espaços públicos coloniais são retratados, até
mesmo por Burchell.

Figura 53 William Burchell, uma das 8 folhas do panorama em 360 graus da cidade do Rio de Janeiro, olhando
em direção Nordeste, mai/jun 1826.

Fonte:< http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 > Acesso em: 12 nov. 2014.

Em carta a Hooker, afirmou que a natureza do Brasil ―era quase exuberante demais‖ para
ser retratada. Um excerto de suas missivas demonstra que, a despeito do discurso de outros

207 Essa vegetação pouco detalhada deveria ser composta por espécies nativas e algumas aclimatadas nos muitos
quintais, como o cajueiro que ―[...] entre os séculos 16 e 18, tornou-se árvore freqüente nos quintais de regiões
quentes da colônia‖ e também romanzeiras, coqueiros,mamoeiros, mangabeiras, araçazeiros, etc. In DOURADO,
Guilherme Mazza . Vegetação e quintais da casa brasileira. Paisagem e Ambiente, v. 19, p. 83-101, 2004.
| 105

viajantes que generalizaram as representações dos vários tipos de vegetação brasileiras,


condensando-as em uma espécie de densa floresta, a ―exuberância tropical‖ que Burchell
presenciou e tomou nota possuía várias facetas:

Você ouviu, de toda parte, as mais animadas descrições sobre a exuberância e a


riqueza da vegetação do Brasil e com elas eu concordo calorosamente. Mais isso
tornou-se praticamente uma moda e na Europa parece ser de opinião geral que
todo o país é coberto com as florestas mais magníficas, e de crescimento
gigantesco. Essa idéia, embora correta nas regiões marítimas, curso de rios e à
maior parte do país sistuada sob a linha equinocial, não é, entretanto, aplicável a
vastas regiões nas províncias de São Paulo e Goiás. Lá eu atravessei planícies
ilimitadas ou regiões abertas, algumas delas cobertas de fina pastagem. Essas
regiões áridas lembraram-me, algumas vezes, as regiões de matas de acácias tão
predominantes no interior da África –Entretanto, raramente pode-se comparar
a botânica brasileira à africana; seu caráter em alguns aspectos difere tão
amplamente. Quando, no entanto, descemos às baixas latitudes do Brasil a
magnificência gloriosa das florestas é verdadeiramente assombrosa e ninguém, a
não ser aqueles que nasceram no meio delas, pode contemplar tão imponentes
produções da natureza sem um sentimento de temor ou respeito. Ela se
sobrecarrega, e um objeto oprime e oculta outro na luta universal pela
exuberância208. (carta de W. Burchell a William Hooker, 11 dez.1825 apud
Martins, 2001).

O discurso sobre a decadência da colônia perdura em sua obra, quer seja pela constante
presença do escravo, quer seja pelas cidades retratadas vazias de movimento urbano. Como
Amílcar Torrão Filho aborda:

Descortina-se para o viajante uma paisagem vazia e deserta, sem substância


apesar da aparência urbana de suas cidades, que não deixam de ser vistas, com
um olhar de Adão, como só natureza, pressupondo que as paisagens e gentes
deste novo mundo209 ―estariam como que vazias de sentido, à espera de quem
as definisse210

Contudo, há algo de diferente em sua representação. Burchell não chega a se debruçar


em alguns aspectos da vida cotidiana brasileira à época, como fariam outros viajantes em suas
aquarelas: Os acontecimentos históricos, festividades e política não faziam parte da temática
trivial, suas cidades se mostrariam quase despovoadas; contudo, essa urbe deserta é retratada de
forma minuciosa e acurada, com um preciosismo que muitos pesquisadores consideram
―fotográfico‖. O viajante apercebe-se da unidade arquitetônica colonial com forte herança

208 Carta de W. Burchell a William Hooker, 11 dez.1825 apud Martins, 2001, op., cit.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Arquitetura da alteridade: imagens conceituais da cidade luso-brasileira na literatura
209

de viagem francesa e britânica. Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações,


Convergências. São Paulo: USP 13 a 17 de julho de 2008.
210SÜSSEKIND, 1990, op. cit, p.269
| 106

portuguesa, mas apura o olhar e distingue as inúmeras tipologias das regiões do país e das
influências de outras culturas em nossa arquitetura e avança acima da homogeneização tão
recorrente na historiografia do tema. A seguir, elenca-se os elementos urbanos mais
representativos de cada prancha, baseado em Ferrez (1981):

Prancha I
Em primeiro plano encontra-se a vegetação do morro do Castelo, desenhada com traços
esquemáticos, da esquerda para a direta encontram-se desenhadas as casas da Rua Treze de Maio,
a igreja de Santo Antonio e todo o seu conjunto. Percebe-se a igreja de São Francisco de Paula, o
palacete da Aclamação e, no centro e ao fundo, a Tijuca211.

Prancha II
A presente prancha nos apresenta a o trecho do Rio compreendido entre a rua da
Quitanda (ao centro), morro da Conceição, rua da Vala e São José. Observa-se o maciço do
casario aixo pontilhado pelas igrejas da região, como a de São Pedro, Boa Morte e Rosário212.

Prancha III
Aqui, retrata-se a parte central da capital, compreendendo as ruas do Carmo, São Bento,
Candelária, largo do Paço e o mar. Pode-se observar o Mosteiro de São Bento, as igrejas da
Candelária, a antiga Câmara e Cadeia, o Convento do Carmo e a Catedral no segundo plano; ao
fundo, observa-se a ilha das Cobras e a Serra do Mar.

Prancha IV
Interessante a presença do balão do observatório Astronômico do Rio de Janeiro, em
primeiro plano. O mecanismo de acerte da hora na capital carioca no século XIX consistia

No alçamento de um balão vermelho que inflava e subia por um mastro para


atingir o topo do mesmo quando dava meio-dia no relógio do Observatório.
Assim quando o balão atingia o topo do mastro, era meio-dia na cidade. Desta
forma as pessoas e os navios que observavam o balão subir, podiam ajustar
seus relógios quando ele chegasse ao topo213.

Ao fundo, veem-se as ilhas das Cobras, Niterói e Fiscal, além do ancoradouro e seus
barcos. A presença humana é apenas sugerida, à esquerda do balão.

211 FERREZ, 1966, Op. cit.


212 Ibidem.
213 Ibidem.
| 107

Prancha V
Observa-se o portão de uma antiga residência e exemplares de vegetação local, como as
bananeiras. À direita, encontra-se o cruzeiro da nova igreja do Colégio dos Jesuítas.

Prancha VI
Em primeiro plano observamos parte da muralha do antigo forte do Castelo, bem como
algumas chácaras e casas. Deve-se atentar para o jogo de alturas e ritmo que os telhados coloniais
imprimem ao horizonte, presente em todas as pranchas. Ao fundo, encontram-se a Sé Velha, e,
na extrema esquerda, o Forte da Vera Cruz.

Prancha VII
Encontramos a prancha com os casarios mais espraiados, em um polígono que
compreende a Ajuda, Lapa, Catete, Glória Urca e o Pão de Açúcar. Ferrez ainda aponta a igreja
da Lapa e o Passeio Público. Nota-se grande área de terras pertencentes pela Sé Velha ladeadas
por um muro.

Prancha VIII
Ao final do panorama, temos a esquina das ruas Evaristo da Veja e Treze de Maio,
inclusive, vê-se o casario que faz esquina com a rua em questão e o Largo da Carioca. Pode-se
observar, ao longe, os arcos e o morro de Santo Antônio. Em relação aos arcos, Ferrez afirma
que é o melhor desenho que foi encontrado sobre o pequeno aqueduto acima deles, da pena
d‘água que servia o convento de Santa Teresa. Aqui, mais uma vez, percebemos a profusa
vegetação e a cidade incrustada por entre os morros.

2.2 Das janelas que deslindam os trópicos: A veduta.

As vistas tomadas de um ponto de vista elevado, as paisagens panorâmicas, não seriam as


únicas maneiras de se retratar um núcleo urbano. Ao adentrar a cidade, o artista tem a chance de
se deparar com outra maneira de observar e apreender a urbe, que servirá também ao propósito
de representar a cidade, mas trariam menos aspectos descritivos em detrimento ao enfoque de
um detalhe característico do lugar.
| 108

Vistas a partir de um ponto mais baixo, como se o observador estivesse no nível de uma
rua ou de uma praça, consequentemente terá como elementos de ênfase em suas elaborações a
arquitetura e as dinâmicas sociais. A este tipo de representação denomina-se veduta, termo
proveniente do italiano e que significa ―o que é visto‖. Ao fragmentar a vista da cidade, o artista
pode acurar seu olhar para detalhes e aspectos singulares, aproximando-o do trecho retratado,
porém no caso dos viajantes no Brasil, no entanto, sem dele fazer parte, ressaltando dele o que é
de seu interesse. A veduta, ao constituir-se numa vista de uma seção em particular, sob o ponto
de vista de um ―transeunte‖ ou ―admirador‖ no nível da rua, dá ao viajante que percorre as
cidades, um outro elemento para representa-las, e que, por enfocar os detalhes da urbe, podem
fazer resplandecer outras notas de pitoresco, para além das já empregadas no panorama (casario
baixo, topografia acidentada, verde das matas, e.g):

A arte de veduta, por exemplo, mantém uma relação estreita com viagens,
ocupando um lugar importante na produção cultural que acompanhou as
viagens do século 18 europeu. Dentro da arte de paisagem, a veduta significou
um desenvolvimento relacionado a certas necessidades de representação
colocadas pelos viajantes europeus à Itália, os quais desde o final do século 17
estavam à procura de uma experiência de representação do país. Os viajantes
não desejavam apenas belas imagens, mas também vistas que fossem
lembranças visuais de fato do real, isto é, que funcionassem também como
registros topográficos214.

Apoiada em Frank-Dietrich Jacob (1982), Salgueiro(1995) distingue a ―veduta real‖ e a


―veduta ideal‖ na produção de vistas ao longo dos séculos. Na veduta real, a arquitetura está
representada tal como ela é na realidade; por outro lado, a ―veduta ideal‖ rearranjaria as
edificações em uma representação idealizada. As vedutas relativas à paisagem brasileira ganhariam
fôlego a partir do último quartel do século XVIII, quando as vistas deixam de tentar representar a
cidade em toda extensão. O crescimento das cidades mais comumente retratadas e o gosto pelas
paisagens sublimes e pitorescas influenciaram a produção de imagens de trechos das cidades215. O
pintor William Havell seria um exemplo deste tipo de viajante-pintor em busca das cenas
sublimes e pitorescas, como as figuras abaixo (Figura 54 e Figura 55) apontam:

214 SALGUEIRO, Valéria. Revista Bras de Historia v. 22 n 44, p.304.


215 RAMINNELLI, op. cit.
| 109

Figura 54 William Havell, Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre tela, 1827.

Fonte: Martins, 2001.

Figura 55 William Havell, Garden Scene on the Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre tela, 1827.

Fonte: Martins, 2001.

Embora os viajantes agora se detenham em mapear e representar edificações, recantos e a


interação entre a cidade construída e a paisagem natural, ainda assim as críticas perdurariam. O
Passeio Público, no Rio de Janeiro, sofrera uma profunda reforma a partir de 1816, quando D.
João VI ordenou melhorias no projeto de Mestre Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813),
construído entre 1779 e 1783, após o aterramento do Boqueirão e arrasamento do morro das
Mangueiras216.

216PEREIRA, Sonia Gomes . A representação do poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro colonial. In: II Congresso
Internacional do Barroco, 2003, Portugal. Barroco - Actas II Congresso Internacional. Porto: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2001. v. 1. p. 663-678.
| 110

Palco de sociabilidade no Império, foi retratado por inúmeros viajantes, como na gravura
de Alfred Martinet217, em publicação de seu O Brasil pittoresco, historico e monumental em 1847. Sua
visão da paisagem ofertada pelo Passeio nada mais era que a da incauta floresta guarnecida de
poucos elementos de manufatura humana, como toscas cercas de madeira e poucos elementos
arquitetônicos sem o devido destaque, uma vez que se perdem em meio às espécies vegetais
plantadas a esmo para os padrões da época, mesmo que os jardins ingleses pregassem a
naturalidade da paisagem, apenas contornada por discretas intervenções, o jardim do Passeio se
apresenta meramente selvagem.

Figura 56 Alfred Martinet, O Passeio Público. Gravura, 1847.

Fonte:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon211917/icon211917_17.jpg>. Acesso
em: 10 out. 2014.
Enquanto W. Loeillot retrata a arquitetura elegante da entrada do Passeio e a alameda
formada pelas copas das árvores plantadas de forma racional e clássica, em primeiro plano o
atraso do império é deslindado pelos tipos humanos que o povoam: escravos levando pelo
ombro uma ―cadeira de arruar‖, ocupada por algum membro da elite e soldados em posição
indolente.

217―Joseph Alfred Martinet (1821, França - 1875)- Paisagista, retratista e litógrafo francês. Gilberto Ferrez registra
sua chegada ao Brasil a 18 de janeiro de 1841, vindo do Havre pelo navio Le Béranger‖ In:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/oprazerdopercurso/bio_martinet.htm. Acesso em: 10/10/2014.
| 111

Figura 57 W. Loeillot, Entrada do Passeio Público no Rio de Janeiro. Gravura, 1835.

Fonte:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393016/icon393016_03.jpg>. Acesso em: 10


out. 2014.

As vedutas também dariam ao viajante a aportunidade de se autorretratarem,


corroborando a idéia de testemunhas oculares de desdobramentos do cotidiano, políticos ou que
estiveram nas profundas florestas brasileiras.

Burchell, no entanto, não empregou este artifício quando no Brasil, mas estava a par desta
insígnia, uma vez que se utilizou deste elemento revelador de presença em tela ainda na África do
Sul. Burchell relacionava-se com os temas que registrava, colocando-se como narrador diante da
realidade dos fatos. A sua presença in loco passa sempre um atestado de veracidade aos seus
desenhos, bem como suas várias anotações astronômicas e geológicas. Suas anotações em linhas
de chamada, ao apontar os materiais utilizados nas construções (sapê, barro etc) ou pequenas
observações sobre o local ou objetos na cena, vão reafirmar esse ―atestado‖ e vão ser a sua forma
de mostrar sua presença em seu trabalho:

Figura 58 África do Sul, vista da Cidade do Cabo, Baía da Mesa, e Tygerberg (Robbin Island), 1810.

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 > acesso em. 04


maio 2013.
| 112

Figura 59 Detalhe da figura 58, o homem embaixo do guarda-sol é o próprio Burchell que se autorretratou.

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 > acesso em. 04 maio 2013.

A pesquisadora Maria Cristina Wolff de Carvalho em sua pesquisa aponta, na figura 60, a
presença dos instrumentos de desenho utilizados por Burchell: A câmera, o cilindro e o prumo. A
presença de Burchell não é visível como na última gravura apresentada, porém está lá, em seus
instrumentos218.

Figura 60 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 > acesso em. 09


maio 2013.

218CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. A visão da paisagem na obra de William John Burchell (1781–1863).
Arquiteturismo, São Paulo, n. 73, p.01-10, mar. 2013. Mensal. Disponível em:
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700>. Acesso em: 13 nov. 2014.
| 113

Não se pode negar uma preocupação documental relevante por parte de Burchell. Poucos
foram os aspectos da cidade colonial que fugiram à sua observação, sempre tintos por sua aguda
sensibilidade, cujo espectro temático abrangeu a paisagem natural e a paisagem edificada de um
país se fazendo nação. Entretanto, o registro hábil e rápido, ―acurado‖ como Ferrez (1981) e
Martins (2001) apontam, também seria carregado de esquemas de sua visão europeia
etnocêntrica.
O botânico, desde o início dos estudos artísticos, descobriu no lápis e nanquim a rapidez
e precisão de traços e na aquarela a celeridade na transmissão das cores da paisagem. A aquarela
era bastante usada na Inglaterra, embora fosse considerada um meio artístico menor e inferior à
pintura a óleo. Por outro lado, a pintura em aquarela exigia domínio da técnica, pois seria
impossível realizar retoques posteriores, como pode ocorrer com a tinta à óleo.219 A dificuldade
em encontrar as tintas nas terras tropicais – sobretudo nas regiões mais afastadas das cidades
maiores- também era um fator que desestimulava o uso de tintas à óleo, além da constante falta
de determinadas cores no mercado local.220 Sobre a aquarela – suas qualidades e riscos- o excerto
a seguir esclarece:
Os aspectos técnicos e práticos da aquarela foram, geralmente, fatores
fundamentais para a sua aceitação e sucesso. Os materiais empregados, práticos
e acessíveis se comparados à pintura à óleo, permitem liberdade de ação ao
artista, permitindo-lhe uma maior aproximação do que poderia ser seu projeto.
Ao mesmo tempo é uma técnica de efeitos inesperados. A aquarela não está
jamais acabada nem enquanto técnica (pois as cores e contrastes se alteram com
o tempo), nem enquanto composição (as imagens e cenas não são definidas
com precisão, deixando espaço para a imaginação, pontos inexatos).221

A arte neoclássica de Burchell deveria dialogar com os trópicos, onde tudo causava
conflitos: o sol impiedoso, o verde chamativo da vegetação, as cores, a mestiçagem da população
e a presença dos escravos, que nada se pareciam ao porte e compleição física européia. Burchell
retrataria os assentamentos de forma minuciosa, mas iluminaria aspectos como a decadência da
urbe (ver figura relativa à Rua Direta, em Santos) e a presença constante da escravidão (a maioria
das pessoas por ele retratada seriam escravos); em suma, a cidade colonial na obra de Burchell é
rica em detalhes e digna de nota tanto quanto a natureza tropical, mas seus tipos humanos e sua
apresentação denotam indolência, decadência e atraso.

219 LIMA, 2003. Op cit.


220 SCHWARCZ, op. cit.

221 LIMA, 2003 p.136


| 114

O acentuado grau de detalhamento e precisão de suas notas e desenhos não implica,


necessariamente, uma menor impressão de pré-conceitos em seus desenhos. Embora carregada
de uma visão etnocêntrica, a obra do botânico apresenta-nos um olhar apurado para a arquitetura
colonial, dotado de sensibilidade para perceber as mudanças da conformação urbana, das
tipologias e dos materiais construtivos ao longo do trajeto.

Figura 61 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.222

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

Observa-se, já no primeiro plano, um importante detalhe da cidade que Burchell


representou em sua aquarela: o lampião a óleo. A rua limpa denota um fenômeno que Freyre
(2006) já apontara:

A partir dos princípios do século XIX, a rua foi deixando de ser o escoradouro
das águas servidas dos sobrados, [...] para ganhar em dignidade e em
importância social. De noite, foi deixando de ser o corredor escuro que os
particulares atravessaram com um escravo na frente, de lanterna na mão, para ir
se iluminando a lampião de azeite de peixe223 suspenso por correntes de postes
altos. Os princípios de iluminação pública. Os primeiros brilhos de dignidade
da rua outrora tão subalterna que era preciso que a luz das casas particulares e
dos nichos dos santos a iluminasse pela mão dos negros escravos ou pela
piedade dos devotos (FREYRE, 2006, p.32).

222
A aquarela encontra-se em melhor resolução no anexo A deste trabalho.

223 O que Freyre chama de ―azeite de peixe‖ é, na verdade, óleo retirado das baleias.
| 115

Limpa, porém vazia. Embora importante logradouro comercial do Rio, a Rua do Cano
(hoje Rua Sete de Setembro) é representada desprovida da presença humana, paradigma desta
urbe silenciosa retratada por Burchell, na qual as poucas pessoas a transitar por ela seriam os
escravos e o baixo-clero e, até mesmo eles o fazem em pequeno número, servindo muito mais
aos propósitos de escala humana do que retratar o fluxo de transeuntes. A opção pelo
enquadramento da cidade sem o movimento de quem dela participa, não seria uma escolha
apenas de Burchell, nem tampouco seria uma abordagem apenas Oitocentista, pois, como
Ramminelli (2002) discorre: ―No período colonial, enfim, os artistas retrataram as fachadas, as
fortalezas, o porto e o relevo em torno da cidade. Não se preocuparam em retratar seus
habitantes, tornando a urbe desabitada e vazia‖224. A assertiva concinde com as palavras do
historiador Almícar Torrão Filho (2008) em sua tese de doutorado, A arquitetura da alteridade: a
cidade luso-brasileira na Literatura de viagem (1783-1845):

Descortina-se para o viajante uma paisagem vazia e deserta, sem substância


apesar da aparência urbana de suas cidades, que não deixam de ser vistas, com
um olhar de Adão, como só natureza, pressupondo que as paisagens e gentes
deste novo mundo ―estariam como que vazias de sentido, à espera de quem as
definisse‖. Miragem, fantasmagoria, a paisagem do Rio de Janeiro serve
de representação perfeita desta cidade luso-brasileira, sedutora, atraente,
mas cuja substância é a da desordem, do caos e do mundo às avessa.225

Burchell também desviaria o seu olhar para a paisagem circundante da cidade carioca.
Esta escolha de enquadramento não seria inédita, mas a maneira com que o viajante inglês
representa, sim. No interior da cidade do Rio de Janeiro, Burchell faria uma de suas mais
emblemáticas aquarelas:

224 RAMINELLI, Ronald, 2002, op. Cit., p. 40.


225TORRÃO FILHO, Amílcar. A arquitetura da alteridade: a cidade luso-brasileira na Literatura de viagem (1783-
1845). Tese de doutorado. Campinas, SP: [s.n.], 2008, p.204. O excerto ―estariam como que vazias de sentido, à
espera de quem as definisse‖ refere-se à SÜSSEKIND, op. Cit., p.269.
| 116

Figura 62 William Burchell, Casario colonial e o morro do Castelo ao fundo, 1825.

Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell, 1981.

A escolha do enquadramento da Figura 62 é peculiar para a arte da época, regida pelos


preceitos do Neoclassicismo. Burchell nos apresenta nessa aquarela singular os telhados do
casario colonial que imprimem ritmo ao horizonte, denotando a organicidade com que as casas
foram construídas no terreno e a ―sinuosidade‖ da urbe antiga. Observa-se que o viajante tratou
as coberturas quase que exclusivamente de caimento em quatro águas, acrescidas aqui e ali por
águas-furtadas - inclusive, a perspectiva nos sugere que o artista estivesse observando o casario
por meio de uma destas - o que não difere da paisagem corrente à época, mas aponta uma
acuidade maior do que outros viajantes, que homogeneizavam as coberturas na tipologia de duas
águas.

A visual admirada, em que se deslinda a vegetação nativa em diálogo com a paisagem


edificada deve ter sido similar a visualizada pelo viajante Ernst Ebel, ao encontrar hospedagem
nos andares superiores de um sobrado carioca e se deparar com uma ―magnífica vista, por cima
dos telhados vizinhos, do qual se veem os morros verdejantes que ficam dentro da área
urbana226‖. Ao fundo, um dos ―verdejantes‖ morros é, na verdade, o morro do Castelo, como se
nota ao avistarmos parte da fortaleza de São Sebastião e da igreja.

226 EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1972, p. 45.
| 117

Ferrez (1981) aponta ainda que, de acordo com a topografia apresentada, a vista deve ter
sido tomada nas proximidades da Rua da Quitanda e da Rua do Ourives; a localização exata não
nos importa por ora, já que o importante é saber que esta era a visual dos moradores desse trecho
do Rio de Janeiro e aperceber a forte presença na paisagem carioca por parte do Morro do
Castelo e de como a mesma seria drasticamente transformada após seu desmonte, iniciado em
1904.

Outros morros também fariam parte da paisagem observada pelo artista na cidade do Rio
de Janeiro, como o morro da Gamboa, aqui representado na aquarela relativa ao Cemitério dos
Ingleses:

Figura 63 William Burchel, The English Burial Grounds (Gamboa. [Cemitério dos Ingleses, na Gamboa]. Grafite e
aquarela sobre papel. c. 1825-1826227.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

A visão do cemitério dos Ingleses228 realizada por Burchell difere da perspectiva escolhida
por Graham, tomada de cima da encosta do morro da Gamboa em direção ao mar 229. Burchell

227
A aquarela encontra-se em melhor resolução no anexo B deste trabalho.

228O Tratado de Comércio e Navegação de 1810 possibilitou a instalação de inúmeros ―cemitérios dos ingleses‖ nas
cidades brasileiras, o que sanava toda a discussão sobre o sepultamento de não-católicos nos cemitérios públicos. Cf.
RODRIGUES, Cláudia. Cidadania e morte no Oitocentos: as disputas pelo direito de sepultura aos não-
católicos na crise do Império (1869-1891).In: Anais do XXIV Simpósio Nacional de História: História e
Multidisciplinaridade: Terremotos e deslocamentos,2007, São Leopoldo. Anpuh/UNISINOS, 2007

229Em razão das obras do porto do Rio de Janeiro e os constantes aterramentos sofridos, o cemitério não fica mais a
beira-mar. Atualmente à frente do cemitério se encontra o prédio da Cidade do Samba.
| 118

escolhe, no entanto, voltar-se contra o mar enquanto ela prefere representar a cena da maneira
mais pitoresca possível, o que demonstra, por parte do botânico, o real desejo de ilustrar o
cemitério pelo que ele é.
Uma tomada de vista semelhante foi realizada, décadas depois, por Alfred Martinet,
paisagista, retratista e litógrafo francês que visitou o Rio de Janeiro em 1840. A gravura de
Martinet, diferente da aquarela de Burchell, faz uso da porção de água visualizada para transmitir
uma paisagem idílica; embora Burchell também traga essas aspirações, o faz com mais discrição:
no movimento sinuoso dos trabalhadores, na arquitetura das edificações do cemitério em meio às
frondosas árvores, na embarcação estrategicamente posicionada, na casa ao lado do cemitério,
etc.

Figura 64 Maria Graham, Cemitério dos Ingleses. Figura 65 Alfred Martinet, Cemitério dos Ingleses.
Litogravura. Gravura

Fonte: < http://marcossacorrea.com.br/wp- Fonte: < http://marcossacorrea.com.br/wp-


content/uploads/2010/11/Cemit%C3%A9rio-dos- content/uploads/2010/11/Cemit%C3%A9rio-dos-
Ingleses.jpg > Acesso em 30/09/2014 Ingleses.jpg > Acesso em 30/09/2014.

A Gamboa era um reduto para os mais abastados no início do século XIX,


principalmente para os grandes negociantes ingleses estabelecidos na capital, tendo em vista sua
proximidade com o Centro e o porto230 e talvez o motivo para que Burchell representasse essa
região fosse a relação com sua terra natal.

FREITAS, J. F. B. . Técnica versus política na localização dos portos do Rio de Janeiro e de Vitória. In: XIII Encontro
230

Nacional da Anpur - XIII ENANPUR, 2009, Florianópolis. XIV Encontro Nacional da ANPUR. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 2009. v. 01. p. 1-17.
| 119

Fui hoje, a cavalo, ao cemitério protestante, na Praia da Gamboa, que julgo um


dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei [...] no ponto mais alto, há
um belo edifício constituído por três peças: uma serve de lugar de reunião ou às
vezes de espera para o pastor; uma de depósito para a decoração fúnebre do
túmulo e o maior, que fica entre os dois, é geralmente ocupado pelo corpo
durante as poucas horas (pode ser um dia e uma noite) que, neste clima, podem
decorrer entre a morte e o enterro.

A Praia Formosa também seria retratada por Burchell, seu registro do casario à beira-mar,
seria o único do local, nas palavras de Ferrez (1981)231, aterrado em 1879 para dar lugar ao porto
do Rio232. Nesta aquarela vislumbra-se a orla da praia e a relação entre as fachadas das casas, o
caminho informal à frente e o mar.

Figura 66 William Burchell, Casario da Praia Formosa, 1826. Lápis e aquarela. Acervo particular

Fonte: < http://www.christies.com/lotfinder/LotDetailsPrintable.aspx?intObjectID=188123.>Acesso em:


14/10/2014.

Outra aquarela do viajante (Figura 67)retrataria um dos arrabaldes da cidade, onde hoje
situa-se o bairro do Catete
A presença de muros, vegetação densa e a falta das casas sem recuo com a rua atestam o
caráter suburbano. O Rio de Janeiro do século XIX teria fortes traços dos processos rurais
arraigados em sua estrutura urbana, áreas ao sul da cidade, como os atuais bairros de Botafogo,

231 FERREZ, (1981) op. cit.

232MELLO, Fernando Fernandes de. A Zona Portuária do Rio de Janeiro: Antecedentes e Perspectivas. 2002. 1 v.
Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.,
Rio de Janeiro, 2002.
| 120

Glória e Catete, era ocupadas por inúmeras chácaras233. Esses traços seriam herança das cidades
que serviram de modelo à urbanização carioca, como Lisboa. A respeito da forte ruralidade
presente nas cidades européias, o historiador francês, Fernand Braudel nos traz uma
esclarecedora descrição:

[...] até o século XVIII, mesmo as grandes cidades conservam atividades rurais.
Abrigam pastos, guardas rurais, lavradores, viticultores (até em Paris); têm
dentro e foradas muralhas um cinturão verde de hortas e pomares e, mais
longe, campos por vezes repartidos em três folhas, como em Frankfurt-am-
Main, em Worms, na Basiléia ou em Munique. Na Idade Média, o barulho do
mangual pode ser ouvido em Ulm, Augsburgo ou Nuremberg, até as
imediações da Rathaus, e os porcos são criados nas ruas em liberdade, tão sujas
e tão cheias de lama que é preciso usar andas para atravessá-las ou fazer pontes
de madeira de um lado para o outro. Na véspera de uma feira, em Frankfurt,
cobriam-se às pressas as ruas principais com palha ou aparas de madeira. Quem
poderia pensar que em Veneza, ainda em 1746, foi preciso proibir a criação de
porcos ―na cidade ou nos mosteiros‖234

Figura 67 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto Moreira Salles. 235

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

233SANTOS, L. S.; DUARTE, F M. A desruralização da cidade do Rio de Janeiro de fins do século XIX. In: XXX Encontro
da Associação Portuguesa de História Económica e Social, 2010, Lisboa. ANAIS do XXX Encontro da Associação
Portuguesa de História Económica e Social. Lisboa, 2010. v. 1. p. 1-20.

234 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV -XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
p. 446apud SANTOS, L.S, 2010. Op.cit
235
A aquarela encontra-se em melhor resolução no Anexo D.
| 121

Porém, a Lisboa-modelo dos processos urbanos da cidade carioca não mais existia,
vítima do terremoto que praticamente a deixou sob escombros. Surgiria uma nova Lisboa, a
cidade a qual os portugueses contemporâneos ao primeiro quartel do XIX nasceriam e
lembrariam ao chegar aos trópicos. À medida que o Rio de Janeiro crescia, a elite começou a
ocupar as margens do caminho do Catete, que passaria a ser chamado Estrada do Catete. A
grande casa de traços arquitetônicos rurais no desenho de Burchell representaria, pois, a
vizinhança abastada, comum na região. A divisão porosa entre rural e urbano na região sul da
cidade seria percebida por outro estrangeiro, o militar alemão Carl Schlichthorst, que viveu na
cidade durante a segunda década do Oitocentos:

A cidade termina na ponte do Catete. Ao longo de sebes e belas casas de


campo, o caminho acompanha o mar até onde começa Botafogo, renque de
belas residências campestres formando suave curva ao longo da praia. Nos
jardins, predomina um gosto que chamam francês e que preferiria fosse
mourisco por se adaptar melhor à paisagem. A natureza oferece parques à
inglesa que tornam qualquer imitação pueril. [...] As mais belas moradias são
construídas um pouco distante da rua, no fundo dos jardins, ao pé dos morros
e um tanto acima do nível da praia. A maioria, ao gosto mourisco, com cúpulas,
arcos de forma estranha e uma escadaria ligeiramente inclinada à frente236.

Mesmo se pudéssemos atestar o estilo francês dos jardins, o que não é nosso objetivo na
análise, Burchell insere elementos de tropicalidade, como o coqueiro, na cena. Mais uma vez, as
poucas pessoas a atravessar a ponte e o caminho mal calçado seriam os escravos e o baixo clero.

236 SCHLICHTHORST, Carl. SCHLICHTHORST, C.. O Rio de Janeiro como é (1824-1826): Contribuições de um
diário para a história atual, os costumes e especialmente a situação da tropa estrangeira na capital do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 2000. pp. 195-96. Ainda nestas páginas, a nota do tradutor Emmy Dodte Gus tavo Barroso comenta
sobre a história da ponte: ―A Ponte do Catete sobre o rio desse nome, rio das Laranjeiras ou Carioca, ficava no local
da atual Praça José de Alencar, de onde partiam os caminhos para Botafogo. A primeira obra de urbanização
realizada no Rio de Janeiro. Chamou-se durante muito tempo Ponte do Salema e nela se pagava pedágio para entrar
ou sair da cidade. O nome lhe vinha, segundo uma versão, de ter sido construída pelo Governador Antônio Salema
(ou Sellema). Outra versão atribuía a sua construção a um particular ali morador, Garção Salema, que cobrava o
pedágio para se pagar das despesas havidas com ela‖.
| 122

Figura 68 William Burchell, Os arcos da Carioca vistos da rua Mata-Cavalos, atual Riachuelo, 1825. Lápis.

Fonte: FERREZ, 1981.

Seguindo os passos de Burchell pela cidade, observamos o desenho a lápis


correspondente aos arcos da Carioca. Ferrez (1981) aponta o desenho como sendo ―o melhor
desenho do casario do começo da atual Rua do Riachuelo, que estão corretamente
representados"237. A Rua Mata-Cavalos à época da passagem do viajante pelo Rio era uma via de
bastante movimento e rica em dinâmicas sociais e econômicas. Contudo, não foi sempre assim.
Cristóvão Duarte (2009) traça um panorama do que seria a Rua de Mata-Cavalos no inicio em
finais do século XVIII bem como seu principal elemento visual:

[...] até finais do dezoito a ocupação da Lapa encontrava-se bastante rarefeita e,


praticamente, restrita à área de influência da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
da Lapa do Desterro, sagrada em 1750. A existência nas proximidades da Lagoa
do Boqueirão (aterrada em 1783 para a construção do Passeio Público) e o fato
da região se encontrar cercada pelos morros do Desterro (atual bairro de Santa
Teresa), Santo Antonio e Senado, certamente contribuíram para aquelas
hesitações iniciais. Apenas uma solitária estrada de terra, conhecida pelo
sugestivo nome de Mata-Cavalos (atual rua do Riachuelo), serpenteava o vale
formado entre os morros de Santa Teresa e Santo Antonio, permitindo o
acesso às terras do interior, em direção à Serra da Tijuca. Outro marco, ainda na
primeira metade do século dezoito, foi a construção de um grande aqueduto
para o abastecimento de água da cidade. Com 270 metros de extensão e 17
metros de altura o aqueduto cruzava transversalmente a estrada de Mata-
Cavalos, ligando os morros do Desterro e Santo Antonio.238

237 FERREZ, 1981, p.50. Op.cit.

DUARTE, C. F. Lapa: abrigo e refúgio da cultura popular carioca. In: XIII Encontro Nacional da ANPUR
238

ENANPUR, 2009, Florianópolis. XIV Encontro Nacional da ANPUR, 2009, p.09.


| 123

O Aqueduto da Carioca seria amiúde retratado pelos viajantes no século XIX, como uma
espécie de marco civilizatório na paisagem carioca, prestando-se como ―descanso‖ para os olhos
que enxergavam sempre os morros verdejantes; de linhas romanas, complementava as
composições artísticas tropicais tal como as ruínas clássicas adicionavam grandiosidade às cenas
italianas239. Como tema dos registros estrangeiros, o Aqueduto inseriria outra escala nas
composições, que seriam agora tomadas fora da cidade, no intuito de mostrar as arcadas de
inspiração romana em todo o seu esplendor, pois um sinal de europeidade nos trópicos não
passaria despercebido pelos olhares viajantes. A obra arquitetônica poderia ser de herança
romana, mas seu entorno em nada lembraria a vegetação mediterrânea, como os viajantes
deixaram explicitados; atentar ao fato de que na gravura de autoria de William Ouseley o próprio
Arco aparece com apenas uma carreira de arcadas:

Figura 69 William Gore Ouseley, Views of South Figura 70 William Alexander, The Aqueduct in Rio de
America…1852. Litogravura. Biblioteca Nacional Janeiro, Litogravura. 1812.

Fonte: Biblioteca Nacional, 2014. Fonte:http://concinnitas.kinghost.net/texto.cfm?edicao=2


1&id=119

A litografia da obra de Ouseley (gravada por Jonathan Needham) assemelha-se, no que


tange a escolha de local a representar, ao desenho de Burchell, contudo, observa-se pelo emprego
do jogo de luz e sombra, que o aqueduto é elemento central da gravura, uma vez que o casario e
parte da rua permanecem sombreados. Ao voltar o olhar para o desenho de Burchell percebe-se
que, a despeito de todos os mesmos lugares-comuns inerentes à estética pictórica viajante (como

239HERMANN, C. G. . Buscar Vitruvius nos trópicos - percepções de viajantes ingleses da primeira metade do
século XIX sobre o Aqueduto da Carioca. Concinnitas (Online) (Rio de Janeiro), v. v. 2, p. 11, 2014.
| 124

a vegetação tropical) e, embora esteja centralizado na prancha, o Aqueduto da Carioca não ocupa
o papel protagonista do desenho.
O casario do lado esquerdo da via o supera em altura e em detalhamento, inclusive o
parapeito dos Arcos é apenas sugerido em um trecho, dada a sua repetição, Burchell acharia
muito mais proveitoso se debruçar nas edificações e em seus elementos diversificados e por isso
detalhados. Talvez um dos desenhos mais povoados de Burchell, o esboço relativo à Mata-
Cavalos ainda traz os resquícios da ruralidade na cidade, com a presença das duas carroças vazias
na via.
Figura 71 William Burchll, Ponte coberta nas proximidades de Teresópolis, c.1825-1826.

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 >


acesso em. 04 maio 2013.

Registro de uma ponte coberta próxima à Teresópolis. Único registro conhecido dessa
tipologia de ponte. Nota-se, mais uma vez, a escolha de Burchell em esquematizar a vegetação (2)
em contraponto aos detalhes da ponte. Essa opção em ―simplificar‖ a massa vegetal será
recorrente em seus desenhos, quer seja pelo pouco tempo que ele tinha para se debruçar em cada
desenho (devido às constantes mudanças), quer seja para dar maior sensação de profusão sobre a
vegetação local. Observa-se a presença de negros às margens do rio.

Ao se distanciar da cidade, Burchell encontrou aquilo que só vislumbrava vestígios nos


bairros mais distantes do centro carioca: as dinâmicas sociais e econômicas de um império rural
pouco representado: O fluxo de tropeiros e suas mercadorias, seus pousos e casas de manufatura
rural. Ao se distanciar do Rio de Janeiro e empreender viagem à Santos, registra, em seus
desenhos, que as moradas vão ficando cada vez mais espraiadas em uma paisagem ampla e
| 125

bravia e a própria vegetação vai se modificando, adicionando novas espécies em seu


enquadramento, como a araucária., presente na aquarela relativa à aldeia de São Bernardo (atual
São Bernardo do Campo, representada na Figura 73)
Além dos exemplares da arquitetura de traços rurais, um trecho do Caminho do Mar, a
estrada que desde o século XVIII ligava o planalto de São Paulo ao mar, em Santos, se faz
presente. O trecho que descia a serra era íngreme e perigoso, até a construção da calçada do
Lorena (via pavimentada com pedras de granito) sanar parcialmente as desventuras dessa viagem;
no trajeto que ligava uma província a outra (Rio de Janeiro e São Paulo, e.g, para seguirmos a
viagem de Burchell, por exemplo) surgiram pousos que se transformariam em povoados e até
mesmo vilas, cuja economia girava basicamente no abastecimento das tropas que passavam por
elas240.
As várias aguadas pintadas desses trechos entre cidades são prova de que Burchell, além
de retratar a urbe em suas formas pitorescas, buscava entender como se dava as dinâmicas de
deslocamento e de relação entre as várias partes do Brasil; o percurso entre o arraial de Cubatão
e as vilas de Santos e São Vicente era feito em embarcações (faluas), ricamente registrado por
meio de rápidos esboços e desenhos a lápis realizados pelo viajante. A Figura 73 apresenta a vila
de São Bernardo, local de passagem para viajantes e ―tropas‖ de mercadorias que do Planalto se
dirigia ao Porto de Santos, o núcleo urbano começa a se desenvolver ao redor da fazenda dos
Monges Beneditinos, em 1717.

Figura 72 William Burchell, Vista a partir da estrada para o Rio, c. 1825-1826. Aquarela. Acervo Instituto Moreira
Salles

Fonte: http://www.faap.br/hotsites/panoramas/. Acesso em: 06/10/2014.

240 SCHMIDT, Carlos Borges. Tropas e tropeiros. Journal of Inter-American Studies, p. 103-122, 1959.
| 126

Figura 73 William Burchell, Vila de São Bernardo entre Cubatão e São Paulo, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira Salles.241

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

Figura 74 William John Burchell, São Paulo a partir da estrada para Santos, c 1825-1826. Aquarela. Acervo Instituto
Moreira Salles.

Fonte: http://www.faap.br/hotsites/panoramas/. Acesso em: 06/10/2014.

A cena da Figura 75 diz respeito à Rua Direita, em Santos, o que acentua os recursos
estilísticos e plásticos empregados na representação: A Rua Direita traçou-se paralelamente à
linha costeira e foi endereço dos principais edifícios da vila, religiosos e oficiais, palco das maiores
manifestações sociais da sociedade colonial: as festas e procissões religiosas. O crescimento de
Santos foi gradual e lento: diferente das cidades mineiras retratadas à época em pleno declínio da
produção aurífera, Santos seria um dos palcos do grande desenvolvimento econômico
impulsionado pelo café em terras paulistas em 1850. Entretanto, a aquarela nos aponta uma
cidade ainda adormecida e não nos apresenta vestígios de um eminente desenvolvimento.

241
A aquarela encontra-se em melhor qualidade no Anexo F.
| 127

Figura 75 William Burchell ―Rua direita at Santos‖, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira Salles. 242

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

A cidade se deixa ver aos olhos do artista espraiada e silenciosa, numa sucessão de
construções homogêneas que se esmaecem no segundo plano de tal maneira que denota o
sentimento de que não há fim nem tampouco alguma quebra desta monotonia. Desguarnecida de
maiores dinâmicas sociais, a rua mesmo pontilhada com alguns tipos humanos, permanece vazia
de interações, quase triste.
Ao mesmo tempo em que o artista imprime a pátina da indolência e estagnação, presta-se
a desenhar detalhes construtivos: a solidez do volume construído, a cantaria presente no cunhal
do sobrado, as sucessivas esquadrias em arco de berço, a rótula em madeira do primeiro plano, as
telhas em capa e canal dispostas ao longo do arremate dos beirais, bem como o guarda-pó
insinuado são indícios de que as construções foram erguidas dentro do senso estético de uma
determinada época; entretanto, estes mesmos pormenores guardam outra crítica: Se há o cuidado
aos detalhes arquitetônicos os mesmos estão cobertos pelo lodo, descascados pelo tempo,
trespassados pelas ervas daninhas ou desfalcados em sua continuidade (como no caso das telhas).
Na mesma cidade de Santos, na qual Burchell demorou-se quase três meses, uma aquarela
chama-nos a atenção para uma temática muito usual nos pintores viajantes, as vistas que tratam a
relação da cidade com o mar. Helder Oliveira (2012) aponta as duas vertentes de paisagística

242
A aquarela encontra-se em melhor qualidade no Anexo E.
| 128

marinha na produção artística: ―a pintura histórica, que tem na batalha naval, sua representação
mais imponente, e a pintura de temática cotidiana, que apresenta no ambiente dos pescadores,
uma renovação do gênero‖.243
Na aquarela do Porto de Santos (Figura 76) a construção que mais se destaca é a Igreja
de Jesus, Maria e José (conhecida também pelo nome de Igreja do Terço). De linhas barrocas,
embora simples, a edificação avança sobre o cais de pedra seca que. As cores empregadas por
Burchell são esmaecidas, mal se distinguindo a cor do mar, sugerido apenas pelo reflexo das
embarcações que fala mais da calmaria da lagamar do que de matizes. Nota-se que o artista pôs-se
como a observar a cena a partir de um ancoradouro de pedra, enquanto mais à frente, frágeis
pontes improvisadas servem ao propósito de fazer a ligação entre as embarcações e a terra firme.

Figura 76 William Burchell, a marinha do porto de Santos, 1826. Aguada.

Fonte: < http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos113.htm>. Acesso em: 13/10/2014.

A próxima aquarela de seu caderno apresenta a cidade de São Paulo vista do Braz. Ferrez
(1981) afirma estar indicadas na aquarela representada pela Figura 77 a A- Igreja da Boa Morte na
Tabatingueira B- ladeira do Carmo e a Igreja de mesma invocação; E- Igreja de Santa Teresa e F-

243

OLIVEIRA, Helder Manuel da Silva de . OLIVEIRA, Helder Manuel da Silva de. A pintura de marinha no Brasil: um
ensaio curatorial. 2012. (Apresentação de Trabalho/Comunicação). Ainda a respeito das duas vertentes, Oliveira
(2012) afirma que estas coexistem desde o cenário holandês do século XVII.
| 129

Sé244. Como situação recorrente entre viajantes da época, em que os artistas vendiam ou trocavam
desenhos entre si, encontra-se no album de Landseer esta mesma aquarela.

Figura 77 William Burchell, Panorama de São Paulo, vista do Braz e caminho para o Rio de Janeiro, 1827. Grafite e aquarela
sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles

A B E F

Fonte: http://www.faap.br/hotsites/panoramas/. Acesso em: 06 out. 2014.

Burchell apresenta-nos nesta aquarela (figura 78) uma das ―portas‖ de São Paulo, ligação
entre a cidade ―e o mundo civilizado da Corte Imperial. Tratava-se da estrada para o Rio de
Janeiro‖245. Os viajantes chegavam a partir do caminho do Brás (atual Avenida Rangel Pestana) e
desembocavam na parte mais nobre da cidade, onde situava-se a rua do Carmo, repleta de
palacetes (inclusive o da marquesa de Santos)246. A ―boa impressão‖ exigia, pois, uma constante
manutenção, prescrita inclusive no Código de Posturas de 1875, no qual determinava que:

As frentes e outões das casas da cidade bem como os fundos que deitarem para
outras ruas e especialmente para a várzea do Carmo serão caiados durante o
segundo trimestre de cada ano civil. Assim como no mesmo tempo serão
pintadas as portas, janelas e batentes247.

244FERREZ, 1981, op., cit., p. 98. Buscou-se utilizar as mesmas letras que Burchell utilizou em seus desenhos, no
intuito de, eventualmente, encontrar-se suas anotações e diários e ser possível descobrirmos mais detalhes a respeito
de suas marcações.

245 LEMOS, Carlos. Cinquenta anos de perplexidade. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena;
SACCHETTA, Vladimir (orgs.). São Paulo, Metrópole em Trânsito: Percursos Urbanos e Culturais. São Paulo: Senac, 2004,
p.34.

246 Ibidem, p.34.


247 Resolução n62 de 31 de março de 1875 da Câmara Municipal de São Paulo apud LEMOS, 2004, op. Cit.
| 130

Figura 78 William Burchell, Ladeiras do Memória e dos Piques, 1827. Lapís aquarelado, 340 x 500 mm.

Fonte: FERREZ, 1981.

Observa-se que a manufatura da cidade paulistana já possui traços mais rurais,


comparados ao Rio de Janeiro, como na presença de muros no lugar das casas de porta e janela
rentes ao leito carroçável. No primeiro plano, vislumbra-se a ladeira do Piques, onde se vê uma
tropa a caminho para atravessar a ponte de Lorena, no vale do Anhangabaú248; do outro lado as
ladeiras de São Francisco e Líbero Badaró.249 Nota-se a adoção de um muro de arrimo na
margem inferior da porção direita da imagem, o que auxilia a estrada a vencer os decliveis. À
esquerda, observa-se a insinuação de um perfil de árvore, entretanto ele é apenas uma sombra da
moldura de coulisses praticada comumente pelos artistas viajantes.
Atentar para a visão fotográfica de Burchell, na qual a descida da ladeira é acentuada pelos
planos formados pelo casario à esquerda e a tipologia de acrópole das cidades coloniais é
reforçada pela escolha do ponto de observação: a Ordem Terceira dos Jesuítas encontra-se como
coroamento da cidade que serpenteia pelo morro. É importante ressaltar a presença dos
elementos religiosos construídos na obra de Burchell e na de todos os viajantes; apontar como
principal resposta a admiração das suas fachadas de um barroco ricamente abrasileirado que, aos
olhos estimulados pela arquitetura neoclássica do Velho Mundo, apresentavam-se pitorescas, e
portanto, dignas de nota, mostra-se redutora; a importância da presença da Igreja, símbolo de
autoridade religiosa e cívica, detentora de grandes parcelas do solo urbano e definidora muitas

248 FERREZ, 1981, p.102, Op. Cit.


249 FERREZ, 1981 op. Cit.
| 131

vezes do crescimento da cidade está inclusa em meio aos traços no papel e na tela dos
estrangeiros.
Ainda em São Paulo, Burchell desenha o Convento e igreja da ordem terceira do Carmo
(Figura 79). Ao confrontarmos o seu desenho e a outra imagem relativa à igreja, de autoria de
Debret, nota-se uma maior teatralidade na aquarela de Debret, com a elevação muito mais
pronunciada e a proporção da torre sineira muito mais delgada do que a encontrada em Burchell.

Figura 79 William Burchell, Convento e igreja do Carmo. 1827.

Fonte: FERREZ, 1981.

Figura 80 Jean Baptiste Debret, Igreja do Carmo, 1827.

Fonte:< http://www.preservasp.org.br/20_informativo.html >Acesso em 03 nov. de 2014.


| 132

Figura 81 William Burchell, Meiaponte, 1827. Lápis, 260 x 480 mm.

Fonte: FERREZ,1981.

A Figura 81, representa a cidade de Meiaponte (Atual Pirenópolis). Observa-se neste


desenho à lápis, uma recorrência curiosa no trabalho de Burchell: As igrejas retratadas a partir de
suas fachadas posteriores, escondendo de nossas vistas sua fachada frontal, indicando-nos que o
interessava, nestes momentos muito mais o entorno do que a própria igreja que, muitas vezes, era
uma das poucas construções de fachada mais rebuscadas e por este motivo, um dos temas
recorrentes nos cadernos dos viajantes. As perspectivas por esse ângulo dão-nos a chance de
observa-nos, inclusive, a simplicidade das formas laterais e posteriores do edifício, do jogo de
volumes e alturas que ele proporciona na paisagem, assemelhando-se à cadeia da Serra dos
Pirineus ao longe e de sua relação com as construções de seu entorno. A igreja em questão é a
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, cuja construção se iniciou em 1728250.
Da mesma localidade, Burchell registrou uma das pontes sobre o rio das Almas (Figura
82).A esquerda, Ferrez (1981) identifica a construção religiosa como sendo a igreja das Mercês,
contudo, acredita-se ser, na realidade, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, construída entre
1750 e 1754 por Luciano da Costa Teixeira e seu genro Antônio Rodrigues Frota, como capela da
família, o que se atesta pela presença da edificação na outra margem da ponte, conhecida por
Palacete do Frota, atualmente destruída251. A igreja apresenta duas escoras ao lado de uma de suas
paredes externas laterais, sugerindo traços de decadência na construção. Em 1750, ainda no
250 VEIGA, Felipe Berocan. A Folia Continua: Vida, Morte e Revelação na Festa do Divino de Pirenópolis, Goiás.
In: Luciana Carvalho. (Org.). Divino Toque do Maranhão (Série Encontros e Estudos, 6). Rio de Janeiro: IPHAN,
CNFCP, 2005, v. , p. 83-94. Ainda a respeito da Igreja matriz, Veiga informa-nos: ―Na madrugada de 05 de
setembro de 2002, o povo de Pirenópolis viveu uma tragédia de grandes proporções: o incêndio total da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário, Matriz de Pirenópolis, a primeira, maior e mais expressiva igreja colonial de Goiás,
construída de 1728 a 1732. O fogo consumiu bancos, altares, retábulos, imagens e pinturas, derreteu o enorme sino
de bronze, desabou o teto e destruiu o assoalho de madeira do piso. O fato foi noticiado nacionalmente pela
televisão e pelos jornais‖.p.88.

251 Procurr o link do iphan


| 133

século XVIII, sua estrutura básica estava consolidada, incluindo a construção de cinco igrejas
que, com exceção da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, marcavam os extremos do
perímetro urbano.
Figura 81. William Burchell, Ponte sobre o Rio das Almas, Pirenópolis.

Fonte: FERREZ, 1981.

A então capital da província, a cidade de Goiás Velho seria também representada por
Burchell em seu trajeto e seria seu pouso durante quatro meses; contudo, a alcunha de cidade
mais importante da região não se faz presente em seus desenhos, o núcleo urbano se mostra
rarefeito e diminuto em meio aos picos da Serra Dourada e dos morros de São Francisco, Canta
Galo e das Lages.

Figura 82 William Burchell, Goiás Velho. Lápis.

Fonte: FERREZ, 1981.


| 134

A prancha à lápis (Figura 83) apresenta uma das pontes que vencem o rio Vermelho. Ao
fundo, a vegetação do cerrado recobre uma das várias serras que circundam a cidade. As ―casas
encostadas cochichando uma com as outras‖252 de tipologia simples, de porta e janela e sem
maiores ornamentos, estão assentadas sobre a margem elevada, no entanto, não estão segregadas
da relação com o rio: as fachadas voltadas para o seu curso e os vários níveis do terreno, a
proporcionar patamares naturais, nos indica a possibilidade de interação entre os moradores do
casario e o rio e são essas práticas que prendem a atenção de Burchell na paisagem goiana e
teriam continuidade à medida que segue viagem, os cursos de água (ou sua menção
indireta)concorreriam com o casario em importância em seus desenhos.

Figura 83 William Burchell, Ponte de Goiás Velho, s/d. 340 x 500 mm. Lápis.

Fonte: Ferrez, 1981.

Seguindo viagem, Burchell seguiria em direção ano norte da província, parando na vila de
Natividade O inicio da ocupação da região na qual o arraial de Natividade se insere nos processos
econômicos do ciclo do ouro no Brasil, ainda século XVIII assim como suas correspondentes
mineiras. Edifica-se, em 1734, o Arraial de São Luiz, no topo da serra; com o declínio da
produção aurífera, em 1770, os moradores desceram a serra, formando um novo arraial

252 CORALINA, Cora. Minha cidade. In: Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora, 1983. p.
47.
| 135

denominado Natividade, que só viria a se tornar vila em 1833253. Este núcleo relativamente novo
da região seria retratado na figura 84:

Figura 84 William Burchell, Natividade, 1828. Lápis, 340 x 500m.

Fonte: Ferrez, 1981.

A ocupação do arraial, no desenho de Burchell, nos parece rarefeito, sem ruas definidas,
tendo como elemento definidor de ocupação a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
toda construída em pedra sabão e de arcos feitos com grandes tijolos254. Nota-se o emprego da
tomada de perspectiva que privilegiava a porção de terra ―incauta‖ à frente de Burchell, não as
edificações. O núcleo urbano vazio é pontilhado por tipos ―indolentemente‖ sentados à porta das
casas, dando ao cenário um aspecto atrasado e não-produtivo. A respeito do perímetro urbano
referente às cidade goianas, Deusa Maria Boaventura (2007) discorre:

No entanto, além dos adros, e segundo imagens de William John Burchell [...] o
elemento que comumente se encontra nos arraiais setecentistas de Goiás são os
amplos largos fundacionais, para os quais confluíram os importantes acessos,

SOUSA, P. M.; ERTZOGUE, M. H. História, memória e religiosidade na festa do Divino Espírito Santo em Natividade -
253

TO. Revista Internacional de Folkcomunicação, v. 11, p. 101-116, 2013, p. 107


254 Livros do Tombo, Histórico, Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e das Belas Artes do IPHAN: <
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do;jsessionid=958EED57B956CF0172C49E97F1805E15?id
=18183&retorno=paginaIphan > Acesso em 15 nov. 2014.
| 136

particularmente os caminhos que os conectavam entre si. Igualmente ao espaço


do antigo Arraial de Santana de Vila Boa, em Bomfim, Meia Ponte, Jaraguá,
Natividade e Luziânia não se verifica nenhum tipo de barreira física entre os
largos e as igrejas; ao contrário, eles caracterizaram por atender os vários
interesses ritualísticos, sacros ou profanos da comunidade, o cortejo fúnebre, a
folia, as procissões e outras comemorações intríssecamente relacionadas às
diversas confrarias e irmandades255.

Durante quatro meses, Burchell viveu no arraial de Porto Real (atual Porto Nacional), que
distava aproximadamente três dias de viagem da Vila de Natividade256 à espera da passagem da
estação de chuvas e da estabilização do nível das águas da rede fluvial da região. Seus desenhos,
que desde Goiás Velho já não apresentavam quaisquer resquícios de outras técnicas, como a
aguada, a partir de Porto Real serão realizados com urgência nos traços à lápis, um lembrete das
dificuldades de obtenção de quaisquer materiais nas zonas mais centrais do país e, talvez, da
própria inconstância meteorológica da região. O artista preocupa-se muitas vezes com as
coordenadas geográficas e ressaltar as divergências tipológicas do que com a harmonia da cena
num todo.

Figura 85 William Burchell, Aspecto geral de Porto Real, 1829. Lápis

Fonte: FERREZ, 1981.

255BOAVENTRUA, Deusa Maria Rodrigues. Urbanização em Goiás no século XVIII. 2007. 280 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Arquitetura, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
256 GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Belo Horizonte[MG] : Itatiaia, 1975, p.307.
| 137

Sobre Porto Real, o naturalista inglês Francis de Castelnau, em 1847, discorreria ―A cidadezinha
em que estávamos, outrora conhecida por Porto Real257, possuía antes cento e quarenta casas;
hoje não tem mais do que setenta e cinco, para uma população de uns 400 habitantes‖258.

Os poucos relatos a respeito das regiões banhadas pelo rio Tocantins também seria
consequência de série de imposições por parte do Governo, uma vez que havia uma interdição
sobre a navegação nas águas rio Tocantins, existente desde 1730, que ensejava dificultar o
extravio do ouro259.
Declinada a produção aurífera, a interdição somente foi suspensa em 1782, período em
que se iniciam, por parte do governador de Goiás, Tristão da Cunha Menezes, medidas que
buscam aumentar o comércio com a cidade de Belém do Pará, a fundação de Porto Real estaria
inserida neste esforço em melhorar as condições de navegação e serviria como entreposto das
mercadorias e embarcações destinadas à Belém e funcionaria também como destacamento
militar, uma vez que era constante os ataques de indígenas.260
Na margem direita do caudaloso rio Tocantins, erguer-se-ia então o arraial, uma das mais
recentes povoações do país, num esforço de colonizar as ―bravias‖ terras goianas. Em seu lugar,
décadas mais tarde, seria erguida a Catedral Nossa Senhora das Mercês, finalizada em 1904.
Seguindo viagem por meio de embarcações, Burchell retrataria sua última vista do Brasil
até o momento conhecida.261 Fato interessante é que poucas vezes o viajante retrataria a
vegetação tão em evidência quanto neste desenho (Figura 86), e, como estava incrustado em meio
à densa vegetação das florestas brasileiras à esta altura, intriga-nos esta escolha em não colocar
em destaque o motivo da indômita floresta amazônica, comum nas representações de outros
viajantes. Outros desenhos do botânico aqui não apresentados, trazem poucas representações da
vegetação, muito mais nos informam sobre os caminhos ou os meios de locomoção (as faluas e
os barcos, neste momento da viagem), que são comuns neste tipo de narrativa iconográfica (na

257 Porto Real seria renomeada mais tarde por Porto Imperial e, posteriormente, Porto Nacional.

258CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul v.2 , São Paulo, Biblioteca Pedagógica
Brasileira/ Ed. Nacional, 1949.p.92.

GIRALDIN, O – ―Pontal e Porto Real: dois arraiais do norte de Goiás e os conflitos com os Xerente nos século
259

XVIII e XIX‖. Revista Amazonense de História, v. 1. n.1 jan/dez/ 2002, pp. 131-146

260 GIRALDIN, op., cit.

261Ao menos as atualmente conhecidas, visto que no índice de seu caderno de desenho consta o panorama de Belém
do Pará- até o momento desaprecido- como seu último registro das paisagens brasileiras.
| 138

tentativa de evidenciar a intrepidez dos naturalistas), mas que não tomam o lugar de importância
da iconografia relativa à mata brasileira262

Figura 86 William Burchell, vista de Belém do Para, 1829. Lápis.

Fonte: FERREZ, 1981.

Desta vez, Burchell não representa a baía da Guanabara e suas plácidas águas, a porção de
água corresponde ao caudaloso rio Tocantins. Para além de seu comprimento, Belém do Pará
avista-se ao longe, criando-se a expectativa de que, logo mais, será desvelada por completo. As
pranchas relativas à viagem ao Brasil terminam justamente neste encontro entre as águas do rio, a
vegetação tropical e a expectativa da cidade.

262Embora não tenha sido o foco do presente trabalho, há de se evidenciar a importância desta iconografia relativa à
floresta brasileira que, em muitos casos (se não, em sua maioria), era a protagonista destas imagens, até mais do que
os próprios núcleos urbanos, dependendo das intenções destas viagens.
| 139

CAPÍTULO 3
O enquadramento da paisagem
Os detalhes da urbe brasileira na obra do
viajante.

O enquadramento da paisagem: os detalhes da urbe brasileira na obra do viajante


| 140

Todo homem que aspire a conhecer as emoções líricas deve dirigir-se ao Brasil, onde a
natureza poética corresponderá às suas inclinações. Mesmo a pessoa menos sentimental torna-
se poeta para descrever as coisas como elas são.

Gregory Ivanovitch Langsdorff, Mémoire sur lê Brésil pour tous ceux qui désirent s´y établir.

A cidade, quer seja como cenário, quer seja como protagonista, sempre foi alvo de
representações visuais nas Artes. Diferentes gerações, sob diversos estímulos e influências, leram
e releram as heranças acumuladas ao longo da História relativas à nossa cultura. Tão diversos
quanto o campo das produções culturais possa abarcar, alguns destes componentes dizem
respeito a quem estuda a morfologia e história dos núcleos urbanos, como Meneses (1996) 263
aponta:

Por certo, há elementos morfológicos que parecem dotados de tal densidade


que os habilita a, sozinhos, remeterem a todo um conjunto de significações e,
mesmo, à cidade inteira. Assim, por metonímia, tomando a parte pelo todo, as
muralhas já foram convocadas como referência plena a certas cidades antigas;
ou, em nossa cidade colonial, a Casa de Câmara e Cadeia, o pelourinho, o
traçado das ruas e o desenho de praças e largos, além de chafarizes e outros
equipamentos urbanos e assim por diante.264

Assim como as edificações e estruturas urbanas remanescentes da cidade colonial, as suas


representações pictóricas também seriam chamadas a atuarem na função de representação e
referência desta cidade. Portanto, dada à escassez de registros de autores nacionais ao longo de
praticamente todo o século XIX, a produção pictórica relativa à urbe oitocentista e, mais ainda, às
suas tipologias edilícias, realizadas por estrangeiros como Jean-Baptiste Debret ou Nicolas-
Antoine Taunay, dotadas de intenções ou não, mostrar-se-iam importantes ferramentas que
fundamentariam o imaginário sobre a ―morada brasileira‖ em nossa historiografia do tema. As

263 MENESES, op. cit., p.07

264 Ibid, p.07.


| 141

mudanças ocorridas no período joanino nas tipologias da urbe carioca possuíram um raio de
influência limitado que não avançariam pelos ―sertões‖, cujos núcleos urbanos permaneceriam
em seu traçado urbano e tipologia edilícia essencialmente coloniais, como se observa na obra dos
dois viajantes.
A prática arquitetônica Oitocentista incorre em um conjunto muito mais complexo do
que preconiza Vaulthier ao afirmar que quem viu uma casa brasileira viu quase todas, pois, como
discorre Sonia Gomes Pereira (2007), há um mosaico de temporalidades estilísticas diversas
coexistindo na cidade do século XIX, de persistências técnicas e soluções coloniais e inovações
em materiais construtivos, estilos e programas265. Em meio a um corpus iconográfico
homogeneizador das várias tipologias encontradas na urbe brasileira, a produção burchelliana
permite problematizar tais especificidades: ao ―colecionar‖ as diversas soluções construtivas ao
longo de seu percurso, ao inserir nas paragens paulistas a matriz tipológica bandeirista, desenhar
as casas ribeirinhas goianas e representar o fluxo de tropeiros e seus pousos, Burchell nos conta
sobre um Brasil difícil de ser encontrado nos diários de viagens estrangeiros em forma de
imagens.
Na sequência deste trabalho, discutir-se-á a morada brasileira oitocentista no interesse de
iluminar sua representação na obra dos viajantes estrangeiros e, em especial, na produção de
Burchell. A arquitetura doméstica brasileira urbana e rural será apresentada a seguir; embora
consciente de que esta divisão não abarca todo o universo de classificações nem tampouco
encerra as discussões sobre as inúmeras tipologias presentes neste universo que chamamos de
―arquitetura doméstica‖, esta categorização foi necessária para efeito de análise das obras266.

3.1 Quem viu uma viu quase todas? As representações da arquitetura


doméstica no Oitocentos.

"De certo, estou aprendendo a viajar com essa viagem (...)"


Johann Wolfgang von Goethe, Viagem à Itália.

265PEREIRA, Sonia Gomes. A Historiografia da Arquitetura Brasileira no Século XIX e os Conceitos de Estilo e
Tipologia. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_sgp.htm>.

Para o aprofundamento nas questões tiopólogicas e suas origens, conferir: REIS FILHO, Nestor Goulart .
266

Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. v. 1. 214 p.


| 142

A cidade brasileira vista pela sacada dos sobrados oitocentistas traria inúmeras
dissonâncias com sua predecessora imediata, a urbe colonial. Quem se debruçasse nos guarda-
corpos de ferro ricamente ornamentados veria que divisar essa transição não era tarefa fácil. A
historiografia tradicional a respeito da arquitetura colonial, apoiada em opiniões de autores como
José Wasth Rodrigues(1945)267 e Carlos Lemos (1979)268, trata como certa uma unidade tipológica
predominante na arquitetura doméstica brasileira.

Interessante (o estudo das casas antigas no Brasil) pelas características


permanentes dessa casa, principalmente pela unidade do seu aspecto em todo o
território e pela imutabilidade, através do tempo, dos princípios que
prescindiram à sua construção, fenômeno esse comparável pela semelhança
(tendo em vista a extensão territorial) ao da língua e ao da religião. [...] manteve,
a casa, o seu caráter, a sua fisionomia, enquanto não perturbados pela
ocorrência de elementos estranhos em certas regiões e a partir de certas épocas;
incidente natural e inevitável (RODRIGUES, 1945, p.159).269

A ―casa colonial brasileira‖, na verdade, possui inúmeras variantes e sua presença como
tipologia na urbe brasileira foi constante e duradoura. Seus primeiros exemplares já remontam
imediatamente ao início do povoamento e, de acordo com Lemos (1993) configurava-se como
um único ambiente a satisfazer todas as atividades sob um mesmo teto. Feitas de material
encontrado na região, sua construção deveria ser rápida e garantir segurança aos colonos contra
ataques de tribos indígenas hostis e intempéries. Estas construções brasileiras trariam muito dos
270
trópicos em si. Do solo brasileiro erguer-se-iam ―casas sincréticas‖ ; o sapé, o cipó e as palhas
de coqueiros não forrariam apenas o espaço da oca indígena, seu método construtivo
condicionariam agora os ambientes da morada portuguesa, selecionando e repartindo o espaço
para as múltiplas atividades por meio de paredes.271
Decerto que mesmo as primeiras construções brasileiras teriam muito da herança
portuguesa dos colonos, as técnicas construtivas como a taipa de pilão e o adobe, provenientes

267RODRIGUES, José Wasth. A Casa de Moradia no Brasil Antigo. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Vol. 9. Rio de Janeiro: MES, 1945, p.159 – 198.

268 LEMOS,
Carlos
A.
C.
Arquitetura
Brasileira.
Edusp,
São
Paulo,
1979.
269RODRIGUES, 1945, op. cit., p.159. Apud BRANDAO, H. C. L. ; MARTINS, A. M. M. . Varandas nas moradias
brasileiras: do período de colonização a meados do século XX. Revista tempo de conquista, v. 01, p. 01/01-20, 2007.
270 LEMOS, 1993, p.95- 96

271 Ibidem, p.96.


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do sul de Portugal e as grandes coberturas das casas da arquitetura rural do centro seriam a matriz
da arquitetura colonial brasileira. Como apontou Carlos Lemos (1993), essa herança portuguesa
vinha de uma sólida tradição de construção aprendida de povos antigos: as ―ruínas romanas,
muros visigodos e paredes românicas‖, nos dizeres de Rodrigues (1945), teriam influências na
arquitetura lusitana e de suas colônias272.
Os habitantes das vilas buscaram soluções construtivas para vencer o clima tropical.
Encontraram como alternativa ―[...] a adoção de profundos alpendres [...] com a providência de
se deixarem as paredes internas baixas e os cômodos sem forro, o que possibilitava ampla
ventilação de todo o interior‖273. Os alpendres e varandas teriam importância como posto
estratégico para se observar o estranho que se aproximava das casas no ambiente rural, onde o
afastamento das construções dava margem à insegurança. As varandas e os alpendres274 também
seriam ambientes da casa brasileira do campo bastante conhecidos dos viajantes oitocentistas,
uma vez que seriam lá que se apresentariam aos proprietários das terras. Passar pelo umbral da
porta de entrada seria um privilégio concebido a poucos, e, muitas vezes, a interações sociais se
restringiriam ao alpendre.
A sacada equivaleria à varanda na arquitetura urbana colonial e seria um dos elementos
mais emblemáticos desta tipologia. Após a chegada da família real e da Missão Artística Francesa
que tinha, como uma dos objetivos, fundar a primeira Academia de Arte no Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves, mudanças significativas, embora com um raio de influência que
avança pouco além das delimitações da nova capital, são visualizadas na cidade oitocentista.
Desta discussão, que é densa e na qual convergem várias fontes, interessa-nos entender
que a Corte portuguesa, acostumada às linhas arquitetônicas pombalinas de Lisboa, reconstruída
a partir do terremoto em 1755 e, portanto, livre da sua herança medieval, estranhou as ruas
tortuosas, grandes beiras e as inúmeras rótulas e gelosias de herança moura.

A arquitetura urbana

272 RODRIGUES, 1945, p.161. op. Cit.

273 LEMOS, 1979, p.36


274Lemos (1979) diferencia o alpendre como sendo o ―telhado que se prolonga para fora da parede mestra da casa e
que é apoiado em suas extremidade por colunas, tendo uma função precípua fazer sombra à construção, evitando
que se acumule na alvenaria o calor do sol, refrescando, assim, os interiores‖ (p.27 e 28) e a varanda é ―um
refrescante local de lazer, de estar da família, seja alpendrada ou não‖ (p.30).
| 144

Os condicionantes para as transformações ocorridas no panorama arquitetônico do Rio


de Janeiro também passariam pelas questões econômicas e políticas. A ofensiva contra as rótulas
e gelosias da cidade carioca, iniciado na administração do intendente Paulo Fernandes Viana sob
ordens de D. João VI prestar-se-ia a uma delas a responder algumas questões levantadas por
determinados setores da sociedade. A mais célebre das explicações versa a respeito do caráter
amouriscado que as gelosias emprestavam à urbe, ou como nas palavras de Joaquim Manoel de
Macedo em Memórias da Rua do Ouvidor, publicado em 1878:

Costume quase bárbaro de raiz mourisca; nem todos, porém, temeram-se do


raio policial; muitas casas resistiram à reforma decretada pela civilização,
somente aos poucos foram despedaçando suas rótulas e gelosias [...] a higiene, a
arquitetura, o embelezamento da cidade exigiam a destruição das malignas e
feias gaiolas275.

A proibição também teve natureza estratégica de manter a segurança de Estado, uma vez
que um ataque ao rei era um temor corrente, as frestas proporcionadas e a dificuldade em se ver
ao nível da rua o que ou quem estava atrás da barreira de frasquias das gelosias eram entraves à
segurança do monarca. O emprego destes elementos era muito mais que simplesmente pôr luz
nas escuras alcovas, era, também, uma coação ao uso da caixilharia de vidro e das varandas de
ferro, produtos ingleses, bem como a proibição do lançamento nas vias públicas das águas
provenientes dos beirais, seria subterfúgio para o consumo dos condutores de águas pluviais
industrializados, também de fabricação inglesa276. Freyre traz, em seu texto, que a obrigação das
mudanças de esquadria atingia somente os sobrados em detrimento às construções térreas, meio
termo entre o sobrado e mucambo. As rótulas e gelosias eram agressivas aos olhos apenas nas
residências mais abastadas, o que indicaria que seriam seus proprietários e não os donos de casas
térreas ou mucambos, quem possuiriam reais condições financeiras de atender o prazo
estipulado277, como Freyre discorre:

"no termo de oito dias", tolerando-se pelo "espaço de seis mezes" as do peitoris
daquelas casas que não tivessem ainda "grades de ferro", para, durante esses
breves seis meses, processar-se a substituição da madeira pelo ferro e não
apenas do xadrez mourisco pelo vidro de fabrico inglês. Excetuavam-se,

275 MACEDO, Joaquim Manoel. Memorias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1878
[fazendo uso da cópia em Domínio Público: Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000051.pdf >Acesso em 29 out. de 2014.]
276 FREYRE, op. Cit.

O vidro seria considerado ―os mais custosos ornamentos no interior do Brasil‖, à época da viagem de Spix e
277

Martius, entre 1817 e 1821. In: SPIX E MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro, 1938.
| 145

porem, da violencia, as gelosias das ja numerosas "casas terreas que nada


influem na belleza do prospecto278

O espírito de reformas e europeização que chega aos poucos no Rio de Janeiro e,


posteriormente, nas maiores cidade do império, incorrerá em mudanças construtivas e sociais, que
se influenciariam mutuamente, como seria o caso da varanda e do alpendre nas casas urbanas e
semiurbanas e a estrutura patriarcal da sociedade colonial279. As rótulas e gelosias não filtrariam
apenas a claridade do exterior; empregados como postos de vigia, dos balcões assobradados por
estes elementos, a mulher, isolada das práticas sociais externas ao âmbito familiar devido a rígida
estrutura familiar patriarcal; do lusco-fusco das gelosias e urupemas, selecionaria sua pouca
interação com estranhos e com o exterior280. A proibição do emprego destes elementos
arquitetônicos trariam, nas palavras de Gilberto Freyre (1968), uma nova postura da mulher frente
a abertura da casa e sua relação com as práticas sociais ocorridas na rua:

Foi [...] no sobrado, através da varanda, do postigo, da janela dando para a rua,
que se realizou mais depressa a desorientação da vida da mulher [...]. A varanda
e o caramanchão marcam uma das vitórias da mulher sobre o ciúme sexual do
homem e uma das transigências do sistema patriarcal com a cidade
antipatriarcal281.

Vaulthier teria semelhante opinião:

As sacadas das fachadas constituem indícios mais fortes ainda da invasão do


espírito moderno. [...] uma invenção [...] que estimula a vaidade feminina a
expor aos olhos dos transeuntes. No tempo do velho rei [...] as fachadas, em
vez de sacadas, traziam varandas [...] eram como rostos mascarados, por entre
os quais os transeuntes circulavam282.

Rugendas ainda traria em sua obra “Viagem Pitoresca Através do Brasil.” duas gravuras com
representações desses ambientes e sua relação com a mulher. Na Figura 87, uma das mais
célebres gravuras de Rugendas, observa-se uma varanda fantasiosa, visto a curvatura do forro da
madeira não corresponder aos exemplos da época. Estão aqui, uma vez mais, os tons tropicais,

278GOLÇALVES DOS SANCTOS, Padre Luiz. Memorias para servir à Historia do Reino do Brasil... Escriptas na Corte do
Rio de Janeiro no Anni de 1821 e Offerecidas a S. Magestade Elrei Nosso Senhor D. João VI, Lisboa, 1825, p.136 apud
FREYRE, op. cit.
279 Cf BRANDÃO E MARTINS. Op. Cit.

280 Indica-se, para maiores esclarecimentos a respeito destes elementos e sua relação com o Brasil joanino, a obra do
pesquisador Paulo César Marins: Através da Rótula: Sociedade e Arquitetura Urbana no Brasil, séculos XVII a XX, (2001).
281 FREYRE, Gilberto. Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil 2 - Sobrados e Mucambos: decadência do

patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Vol.1 e 2, 4ª ed.. Rio de Janeiro: ed. José Olympio, 1968.p.154.
282 VAUTHIER, op. cit., p. 173.
| 146

embora suavizados pela técnica da gravura, mas observa-se a permanência da vegetação e da


fauna tropical, suavizadas, no entanto, para comporem a ambiência bucólica e romântica que as
ações das personagens pediam; seu titulo, ―Costumes do Rio‖ é uma clara referência à Figura 88
―Costumes da Bahia‖. Nesta, o alpendre nada mais é do que um anexo construído com esteios
em madeira verde e de cobertura de palhas de coqueiro, muito mais rústica que o anterior, a
"agresticidade" na paisagem é reforçada pelos tipos humanos, pelas atividades (a caça em
detrimento do ócio da outra figura) e, principalmente, pela vegetação circundante, muito mais
exótica em cores e na aspereza dos traços (observar o desenho das palhas das palmáceas).
Embora ambas, em tese, mostrem-se tropicais, são epítomes dessa gradação de intensidade de
motivos exóticos.

Figura 87 Johann Moritz Rugendas, "Costumes do Rio", Figura 88 Johann Moritz Rugendas, "Costumes da
1825. Gravura. Bahia", 1825. Gravura.

Fonte:<http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog.com. Fonte:<http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog.com.
br/17693/RUGENDAS-COSTUMES-DO-RIO-DE- br/17693/RUGENDAS-COSTUMES-DO-RIO-DE-
JANEIRO/ > Acesso em: 25. Out. 2014. JANEIRO/ > Acesso em: 25. Out. 2014.

Se, em um primeiro olhar, o episódio das rótulas pareça de importância menor, ele toma
valor quando observado como paradigma de um processo de ―reeuropeização‖ dos costumes na
| 147

colônia283, tentativa de tornar menos oriental e africana uma cidade que recebia, a partir daquele
momento, a alcunha de sede de um império e, portanto, necessitada de novos processos de
urbanidade e novas dinâmicas sociais entre público e privado. As determinações impostas por D.
João VI na cidade carioca que deixaram suas casas em trajes menores284, desprovidas de suas
tradicionais esquadrias, foram, consequentemente, estendidas para todas as cidades brasileiras; no
entanto, se mesmo um elemento aparentemente fácil de ser retirado e substituído ainda seria
presença constante na cidade Oitocentista, as medidas falharam na tentativa de ―eliminar o
285
caráter [...] das cidades amouriscadas componentes da rede urbana colonial brasileira‖ , visto a
isenção das casas térreas desta medida e tampouco, todos os sobrados o fariam. A permanência
das rótulas e gelosias seria acompanhada pela presença das construções de soluções tradicionais
não haveria de ser diferente, pois em um organismo tão dinâmico e vivo como a cidade, várias
temporalidades estilísticas coexistem, como uma pintura que ao longo do tempo recebe inúmeras
camadas de tintas das mais variadas cores, direções e técnicas, a cidade é um quadro que nunca
está acabado e, portanto, não se pode divisar a qual estilo pertence, pois, como discorre Sonia
Gomes Pereira (2007):

[...]é possível observar na prática arquitetônica do século XIX um conjunto


muito mais complexo, em que vários elementos estão imbricados: a persistência
de formas e técnicas coloniais; a necessidade de novos programas e funções; a
incorporação de materiais importados; a diversificação dos agentes; os novos
processos de formação profissional de arquitetos e engenheiros; além da
sincronicidade de várias linguagens formais - a recorrência aos estilos do
passado (barroco e rococó) e a apreensão dos estilos então contemporâneos (o
neoclassicismo e outros revivalismos, além do ecletismo e do art nouveau).
Portanto, em lugar de uma só feição dominante, coexistem técnicas, programas
e estilos do passado e do presente, evidenciando a permanência da tradição
colonial, entrelaçada no desejo de modernização e na necessidade de
construção imaginária da nova nação286.

283 FREYRE, Gilberto, 2000


284Pinto, Estêvão, Muxarabis & Balcões (e outros ensaios), passim, pref. de Gilberto Freyre, coleção Brasiliana n° 303, São
Paulo, 1958, p.19. Disponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/muxarabis-balcoes-e-outros-
ensaios/pagina/19.
285 FREYRE, 2000, op. cit.
| 148

Embora Pereira (2007) adiante em sua explanação além do recorte estudado por essa
pesquisa, a cidade das primeiras três décadas do Oitocentos ainda assim já trariam essa
coexistência de estilos, se não substancialmente percebidos, ao menos iniciadas, indicadas em
casarios que receberiam as novas tipologias e materiais de acabamento mas inseridos em um
traçado urbano que pouco mudara. A respeito destas permanências das antigas formas
arquitetônicas e urbanas na cidade joanina, Flora Lahuerta (2009)287 remete ao conceito de
rugosidade a qual Milton Santos instrumentaliza para entender este descompasso. Nas palavras de
Santos (2002) "chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído,
paisagem [...] Em cada lugar, pois, o tempo se defronta com o tempo passado, cristalizado em
formas‖288.

As rótulas não seriam as únicas rugosidades desta cidade antiga: o cenário desvelado aos
olhos estrangeiros seria pontilhado pelas casas térreas, sobrados de duas águas e suas janelas
almofadadas, contudo, também seriam percebidas tipologias ―europeizadas‖ frutos da influência
das novas tendências estilísticas vindas, pouco a pouco, da Europa. As transformações sofridas
no exterior das edificações seriam percebidas, lidas e relatadas por viajantes como os naturalistas
Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, em suas viagens pelo Rio de
Janeiro em 1817, em dois trechos do Viagem pelo Brasil: 289

Quem chega convencido, de encontrar uma parte do mundo, descoberta só


desde três séculos, com a natureza inteiramente rude, forte e não vencida,
poder-se-ia julgar, ao menos na Capital do Brasil, tanto fez a influência da
cultura da velha e educada Europa para remover deste ponto da colônia os
característicos da selvajaria americana, e dar-lhe o cunho da mais alta civilização
[...]As casas, de pouca altura e baixo frontispício, relativamente ao fundo, são na
maioria feitas com granito miúdo, ou com madeira nos pavimentos superiores,
e cobertas de telhas. Em vez das antigas portas e janelas gradeadas, já se podem
ver por todos os lados portas inteiriças e janelas envidraçadas. As sacadas
fechadas e sombrias, à moda oriental, foram por ordem superior rasgadas em
balcões abertos diante das janelas290.

287LAHUERTA, Flora Medeiros. Geografia em movimento: território e centralidade no Rio de Janeiro joanino (1808-1821).
Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia, FFLCH, 2009, p.29.
288 SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 2002, p.140.

289Carl Friedrich Philipp von Martius (Erlangen, 17 de abril de 1794 — Munique, 13 de dezembro de 1868) foi um
médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil,
especialmente a região da Amazônia. Johann Baptiste von Spix (9 de Fevereiro 1781 — 14 de Março de 1826) foi um
naturalista alemão, companheiro de viagens de von Martius.
290 SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Vol. I, II, III. Melhoramentos, 3ªedição. p.46-48; 1976.
| 149

Inovações e permanências da estrutura urbana colonial seriam também representadas nos


relatos iconográficos. Estas inovações e melhorias se fariam sentir não apenas o âmbito das
construções de menor porte; Jean-Baptiste Debret traria uma coleção de imagens (Figura 89)
referentes às reformas pelas quais à Quinta da Boa Vista passou ao longo de três décadas291:

Figura 89 Thierry Frères (gravação) Jean Baptiste Debret (original), Quinta da Boa Vista, desde o ano 1808 à 1831.
Gravura.

Fonte:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393054/icon393054_154.htm>.
Acesso em: 25 out. 2014.

De baixo para cima, temos quatro instantâneos referentes a datas distintas, Debret
intercala momentos importantes da história com a sua própria jornada em terras brasileiras: 1808
(Vinda da Família Real portuguesa), 1816 (chegada de Debret ao Brasil), 1822 (data da

291 Uma vez mais a referência à Quinta da Boa Vista, já trabalhada no capítulo 1, no entanto, apesar de todas as
atividades governamentais ocorridas na edificação, ela era também uma residência (tanto em seu uso original quanto
no uso após a chegada de Dom João VI).
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Independência) e 1831 (ano em que Debret retorna à Portugal). Debret chega a retratar uma
paisagem anterior à sua chegada ao Rio de Janeiro, de onde ele teria então buscado esta
―imagem‖? Esta deve ser uma explicação plausível para a Quinta da Boa Vista se encontrar
representada diminuta na paisagem. Observar que, à medida que os quadros se aproximam da
data mais avançada (1831), o foco na própria edificação vai se intensificando, denotando que sua
importância como objeto arquitetônico vai ganhando força somente quando se europeíza. Debret
também observaria o casario da cidade como um todo: das casas térreas aos sobrados de beirais
estreitos, ainda sobre forte herança moura, como observado na Figura 90:

Figura 90 Jean Baptiste Debret, Rio de Janeiro.

Fonte: http://en.wahooart.com/@@/9DHEK7-Jean-Baptiste-Debret-Rio-De-Janeiro--%281%29 Acesso em: 24 set. 2014292.

As três moradias da cena são representativas quanto ao caráter vernacular e diversificado


de tipologias encontradas no Rio de Janeiro à época. Diferente de outras imagens nas quais as
cidades são desenhadas em plena monotonia, o emprego da intercalação de sobrados e casas
térreas impõe maior sentido de heterogeneidade e espontaneidade das construções; nota-se,
inclusive, três das tipologias mais recorrentes na arquitetura colonial: o sobrado de térreo com
garagem para carroças e porta de acesso à ala íntima acima (observa-se, a partir da porta, os
degraus), sacadas com rótulas e gelosia remanescentes ao centro e munido de sótão e telhado de
quatro águas (A).
As casas térreas geminadas, com telhado de duas águas (as cores das esquadrias já
denotam que são ―independentes‖ entre si) e um sótão (B). A edificação seguinte aparenta ser de
uso misto, uma vez que se percebe a presença de um balcão (C). A porção do céu que se deixa
entrever em meio aos dois sobrados é tão logo preenchida pelas duas torres de igreja, como a
afirmar a condensação da massa edificada urbana e a forte influência religiosa na cidade. Os

292O enquadramento desta figura não corresponde com a imagem original, no entanto, as reproduções encontradas
em meio virtual do original encontram-se em baixa qualidade de resolução; optou-se por apresentar a imagem neste
recorte para fins didáticos.
| 151

profusos detalhes nas edificações ampliam a sensação de preenchimento e a presença de escravos


em primeiro plano atesta uma vez mais, o atraso de uma urbe que embora busque europeizar-se,
ainda está fincada nos processos econômicos coloniais.
Outra aquarela de Debret, Café Torrado (Figura 91), traria a temática social em primeiro
plano. A interação social é realizada pela leve abertura da rótula que nos faz observar surgir da
escuridão do interior de uma casa uma mulher branca, dado o título da imagem, comprando o
que se presume ser café de uma escrava. Ao observarmos a edificação, vê-se claramente a ação do
tempo e a falta de manutenção incidindo sobre sua cobertura, com a presença de ervas daninhas
nos beirais e nas paredes (onde percebe-se trechos em que o adobe desponta do reboco). A pedra
dos cunhais apresenta-se desgastada e damos falta de algumas frasquias293 na treliça inferior da
porta, mais símbolos da decadência. Na porção superior à direita da imagem, observa-se outra
edificação, ligada ao patamar do primeiro plano por uma ladeira serpenteada, denotando a
sinuosidade do relevo. A vista que se deslinda ao fundo, livre de quaisquer bloqueios, nos indica
que esta porção da cidade encontra-se em uma área de encosta bastante alta. Os típicos coqueiros
surgem ao lado da edificação no intuito de reafirmar o caráter pitoresco da cena.
Figura 91 Jean Baptiste Debret, Café Torrado, 1826. Aquarela sobre papel, 15,4 x 19,6 cm. Museus Castro Maya -
IPHAN/MinC. Editado pela autora.

1 2
Fonte: < http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/sandra_jp.html >. Acesso em: 25 de out. 2014.

293 São denominadas frasquias as pequenas peças de madeira ou de urupema (fibra vegetal) de cerca de 15 mm de
largura que, sobrepostas, formariam as treliças de gelosias e rótulas. Cf
http://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2010/09/06/tecnicas-construtivas-do-periodo-colonial-iii/ Acesso em:
24 de set. 2014.
| 152

A moradia da figura anterior por si só aponta que seus moradores não eram ―de posses‖;
visto sua condição térrea, falta-lhe um indicativo de status e modernização294 : a varanda.
Vaulthier denomina as varandas oitocentistas dos sobrados de sacadas, dada a sua pouca
profundidade295; porém, a pouca projeção ainda assim reclama à fachada frontal da edificação
uma nova volumetria, agora sem a cobertura de rótulas e gelosias.

As sacadas das fachadas constituem indícios mais fortes ainda da invasão do


espírito moderno. [...] uma invenção [...] que estimula a vaidade feminina a
expor aos olhos dos transeuntes. No tempo do velho rei296[...] as fachadas, em
vez de sacadas, traziam varandas [...] eram como rostos mascarados, por entre
os quais os transeuntes circulavam297.

E estão todas representadas pelos viajantes: as sacadas298 mais antigas, isoladas e


construídas em madeira, de balaústres torneados e bacias em madeira e os balcões corridos, que
permitem o trânsito entre um vão e outro299. Rugendas traria representações deste elemento fora
do eixo da capital do império e proximidades, denotando uma rápida proliferação de seu
emprego.

294Aqui e em outras partes do trabalho, o termo modernização abrange o sentido de atualização de uma prática ou
de um novo uso para um novo elemento.

295 BRANDÃO, Helena Câmara Lacé; MARTINS, Angela Maria Moreira. O modo de vida oito-novecentista visto da
varanda. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_varanda.htm>.

VAUTHIER, L.L. Casas de residência no Brasil. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
296

Vol.7 Rio de Janeiro: MES, 1943, p.174.

297 VAUTHIER, op. Cit., p.189.

298Utilizar-se-á a nomenclatura de Vasconcellos (1976) para definição de sacada e balcão. Enquanto o balcão
constitui-se de uma ―uma peça sacada, permitindo o trânsito‖, a sacada seria uma ―peça saliente, sem cobertura, não
permitindo o trânsito‖ Cf. VASCONCELLOS, Silvio, op. Cit, 1976, p. 105. Há ainda, outras denominações e
conceitos, no entanto, para efeito de diferenciação neste trabalho, bastam-nos por ora essas definições e elementos
apresentados.
299 VASCONCELLOS, Op. cit., p.106.
| 153

Figura 92 RUGENDAS, Johann Moritz. VENTA A Figura 93 Detalhe da figura "VENTA A REZIFFÉ
REZIFFÉ (Venda em Recife). Domínio Público. (Venda em Recife)."

Fonte: Domínio público, 2014. Fonte: Domínio público, 2014. Editado pela autora.

Outro elemento seria utilizado como subterfúgio para adicionar a pitoresca vegetação
tropical na representação do conjunto construído: os quintais. A casa colonial, profunda, sem
recuos e de lote estreito, teria seu ―jardim-horta-pomar‖, composto por plantas ornamentais,
hortaliças e árvores frutíferas, disposto no recuo posterior do terreno, longe da vista de quem
passasse pela rua300. Com as reformas engendradas no período joanino e a difusão do neoclássico
pela Missão Artística Francesa, aspectos da residência urbana e semi-urbana do Brasil vão
gradativamente transformando-se.
O jardim sai dos fundos da casa e ganha uma das laterais do lote, às vezes chegando a
avançar até a fachada frontal301. Contudo, esta mudança mostrar-se-ia processo extenso,
ocorrendo ao longo de todo o século XIX; o que não impediu de que fosse ―acelerado‖ nas
representações pictóricas. O que se vê na pintura de Rugendas é a utilização desta mudança de
implantação do jardim como subterfúgio para adicionar a pitoresca vegetação tropical na
representação do conjunto construído, como nas figuras abaixo (Figura 94 e Figura 95) deixa-nos
transparecer:

300ARAGÃO, Solange Moura Lima de. A casa, o jardim e a rua no Brasil do século XIX. Em Tempo de Histórias, v.
12, p. 151-162, 2008, p.152. Para mais informações a respeito do tema da casa brasileira, ver
301 Ibdidem, p. 152.
| 154

Figura 94 Johann Moritz Rugendas - Carregadores de Figura 95 Johann Moritz Rugendas - Vista do Rio de
água, 1822-1825. Litografia e aquarela sobre papel, 32,8 Janeiro nas proximidades da Igreja da Glória, 1827-1835
X 42,8cm Litografia e aquarela sobre papel, 32,8 X 42,8 cm

Fonte:
http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog.com.br/176
87/RUGENDAS-CARREGADORES /. Acesso em : Fonte: http://ims.com.br/ims/artista/colecao/johann-
21/10/2014. moritz-rugendas/obra/4751

Contemporâneo à Rugendas, ao menos no que toca o período de estadia em terras


brasileiras, Burchell faria uso destes mesmos elementos em suas composições: o alpendre, os
balcões e varandas, no entanto, seu foco será em outras discussões.
Burchell, exímio explorador, como convinha aos homens da ciência de sua época,
passeava por inúmeros campos dos estudos naturais, raro, na verdade, era encontrar em um
naturalista como ele as habilidades de desenhar, coletar e observar desenvolvidas em mesma
intensidade302. O viajante produziu duas centenas de imagens de temática urbana e arquitetônicas,
número muito superior aos desenhos de temas botânicos. Uma das hipóteses sugere que grande
parte destes desenhos fosse realizada, como de costume, na Europa, a partir de estufas, uma vez
que a atividade de desenhar e acima de tudo, desenhar com proporções e dimensões exatas,
demandava tempo.
A cidade oitocentista é esquadrinhada e vista sob diversas escalas e nada escapa a sua
observação: praças, ruas, casas, sobrados, pontes, estruturas de madeira, o sapé das coberturas e
os cunhais dos prédios. Das suas primeiras tentativas em esboçar a temática tropical, ainda em
Santa Helena, Burchell aprenderia que sua paleta de cores neoclássicas não abarcaria a profusão
de matizes da paisagem, o verde inglês e seus variantes não bastariam para preencher toda a gama
de cores da vegetação. Observaria também, e este é um ponto chave em nossa discussão, que as

302 MARTINS, 2001, op. Cit, p. 115.


| 155

representações das moradas sul-africanas e das ilhas de Santa Helena, de influência inglesa, pouco
teriam em comum com o casario de heranças mouras e portuguesas no Brasil.
Experiente em representar as formas tropicais, mas não de todo. Burchell busca, além dos
cânones de representações de tema arquitetônicos, coletar estas novas formas, e o fará
meticulosamente. Destaca-se que, embora tenha tido a educação formal da classe abastada, a qual
de fato pertencia, Burchell não frequentou os institutos de ensino superior como a Academia
Real em Londres303; antes de tudo, fora formado para exercer a profissão de botânico. Suas aulas
de desenho, certamente, foram inclinadas nesta direção e, evidente que embora imbuídas do teor
neoclássico, não deixavam nunca de ser um método científico de apreensão do objeto observado.

A ―acuidade‖ e a ―fidelidade‖304 com o qual seus trabalhos são descritos partem muito
mais dessa inclinação natural e formativa para a catalogação do que de uma pretensa quebra das
amarras de determinada escola estilística. Lima (2001) trata a respeito desta sensibilidade
naturalista diante da paisagem, apoiada nas palavras de Anne L. Larsen:

o exame detalhado das paisagens era um dos aspectos mais fundamentais da


história natural; os manuais de instrução usualmente ensinavam seus leitores
como observar, reunir e registrar espécimens que representassem os traços e as
características particulares de uma região305.

Sua vasta produção artística referente às vilas, fazendas e cidades seria uma maneira de
levar consigo a ―arquitetura brasileira‖ para ―catalogação‖ posterior e dividi-la em táxons306 e
encontrar uma matriz em comum, assim como no estudo botânico ou entomológico, Burchell
agrupará várias dessas tipologias (a casa paulista, o sobrado urbano, a palafita, a casa de pau-a-
pique, etc) e iluminará que há uma origem em comum, mas que as dissonâncias se fazem vistas.
Ferrez (1981) descreve-o como um naturalista de olhar acurado:

303 A Academia Real de Londres (no original: Royal Academy of Arts) foi frequentada por inúmeros viajantes,
dentre eles, pelo pintor britânico Charles Landseer, que entre 1851 e 1873, tornou-se seu principal instrutor. Para
mais informações a respeito: LANDSEER, Charles. Landseer. Texto Alberto Rangel. São Paulo: Candido Guinle de
Paula Machado, 1972..

304 FERREZ, 1981, op. cit.

LARSEN, Anne L. Not since Noah: The English scientific zoologist and the craft of collecting, 1800-1840, p.198 apud
305

MARTINS, op. cit, p.115.


306Aqui, toma-se emprestado o conceito de táxons da Biologia. A taxonomia é uma disciplina acadêmica que define
os grupos de organismos biológicos, tendo como base características. Ainda no campo dos estudos biológicos, o
conceito de táxon parafilético parece-nos pertinente: denomina-se táxon parafilético a um táxon que inclui um
grupo de descendentes de um ancestral comum em que estão incluídos vários descendentes desse ancestral, mas não
todos. Cf..HICKMAN JR., CLEVELAND, P.; ROBERTS, LARRY S. & LARSON, ALLAN. Princípios Integrados de
Zoologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 2004.
| 156

―Nada lhe passava desapercebido: os grandes beirais com seus cachorros de


madeira, os tipos de cimalhas, as janelas com rótulas ou muxarabis, as
ombreiras de madeira, as portas almofadadas, os cunhais de pedra, o
calçamento, os tipos de telhado, as varandas, os alpendres [...].307

A escolha da cena da Figura 96 acentua a homogeneidade das construções da rua e a


quebra do ritmo das sacadas denota a organicidade com que a rua foi traçada e a informalidade
com que a cidade se desenvolveu. A aquarela referente à Rua do Cano trará os sobrados em uma
luminosa alvura, criando contrastes com as coloridas esquadrias e estuques, apenas. As cores Os
relevos de estuque nas fachadas são insinuados apenas pela aquarela, (2). O guarda-corpo em
ferro fundido em primeiro plano destoaria dos demais da cena, em pedra-sabão e treliças. O
gradil foi arrematado com uma pinha, em segundo plano, o balcão da outra edificação ainda
apresenta as gelosias como fechamento.
A terceira edificação, pelas divergências entre as tipologias e materiais empregados,
sugere-nos uma ―evolução‖ em relação ao entorno. Observa-se o uso de portas envidraçadas e a
diferenciação de cor das esquadrias entre os pavimentos sugere usos diferentes, o que é
corroborado pelas placas (onde lê-se a propaganda de ―ourives‖)308 . O sobrado em ruas
comerciais usualmente apresentava uso misto (residencial e comercial), a área residencial situava-
se geralmente no segundo pavimento, o térreo possuía duas portas: uma para a loja (armazém,
etc) e outra de acesso à residência nos pavimentos superiores.

307 FERREZ, 1981, Op. cit., p.36.

308 Conferir na imagem em tamanho maior encontrada nos anexos.


| 157

Figura 96 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel, 413 x 541 mm 309.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.

Maurício A. Abreu e Valéria Lima (2004) atribuíram à cidade carioca do início do século
XIX uma aparência ―bastante indiferenciada‖ antes da chegada da Corte, em 1808. As distinções,
quando havia, diziam respeito à altura (os prédios mais altos encontravam-se mais próximos ao
porto) e ao material construtivo empregado (em escala ascendente, a população mais pobre
construía em pau a pique, a taipa de pilão, a taipa de mão e a pedra e cal, utilizada pela classe mais
abastada)310. A vinda da família real e seu séquito engendraram inúmeras mudanças e deflagrou,
ainda de acordo com os autores supracitados, uma imediata crise no setor de habitação:

309 A aquarela encontra-se em maior resolução em anexo ao final do trabalho (ANEXO B).

310ABREU, M. A. ; MARTINS, L. L. . Paradoxos da modernidade: O Rio de Janeiro do período joanino, 1808-1821.


In: Edésio Fernandes e Márcio Moraes Valença. (Org.). Brasil urbano. 1ed.Rio de Janeiro: Mauad, 2004, v. , p. 211-
236.
| 158

Tendo menos de dois meses para transformar um porto comercial na sede da


corte real, o vice-rei não tinha outra opção senão improvisar [...] A demanda por
acomodações gerou duas respostas. A primeira reação, originada entre os
habitantes locais, foi defensiva. Cientes da possibilidade de terem suas residências
confiscadas pela população recém-chegada, os habitantes locais praticamente
pararam de construir novas casas, e deixaram semi-acabadas as que estavam em
construção[...]A segunda resposta, por outro lado, originou-se dos recém-
chegados mais ricos [...]suas residências foram construídas longe do velho e
congestionado centro urbano, nos subúrbios mais saudáveis e menos densamente
povoados (notadamente, Glória, Botafogo, Catumbi e São Cristóvão)311.

O excerto acima ilumina importantes passagens deste episódio. Interessa-nos a


informação dessa ―descentralização‖ das classes mais abastadas do centro da cidade, uma vez que
indica-nos a ausência de tipologias mais diversificadas para além dos sobrados e térreos, e auxilia
a explicar, em parte, a homogeneidade da representação de ruas como a Rua Direita por parte
dos viajantes. Não explica em todo, pelo fato de que, por serem ruas principais e de comércio,
espera-se que haja ao menos mínimas mudanças nas tipologias, no intuito de abarcar os
programas diversos.
A figura abaixo é um indício dessa ocupação nos extremos da cidade. A grande casa de
traços arquitetônicos rurais no desenho de Burchell representaria, pois, a vizinhança abastada,
comum na região. Observa-se que o conjunto edilício é constituído por mais de um volume,
outra característica das casas semi-urbanas.

Figura 97 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto Moreira Salles 312.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.

311 Ibid, p.223.


312 A aquarela encontra-se em maior resolução em anexo ao final do trabalho (ANEXO D)
| 159

Burchell mostrar-se-ia atento nas sutis mudanças na tipologia dos sobrados ao longo de
seu percurso. Na província São Paulo, predominariam os sobrados de taipa, com telhados de
duas águas e largos beirais a proteger as paredes contra as águas da chuva,313 como o viajante
retratou na Figura 98.

Figura 98 William Burchell, Rua Direita em Santos, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira Salles 314.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.

As construções rurais

As construções rurais teriam importante papel nas representações acerca da morada


brasileira. Em constante trânsito, viajantes percorreriam longas distâncias entre um núcleo
urbano e outro e as fazendas espaçadas funcionariam como pousos de descanso e quebra no
aspecto geral da paisagem quase intocada pelo Homem. Demorando-se algum tempo em suas

313ARAGÃO, Solange Moura Lima de . Tipologia Edificatória em Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre. Pós. Revista do
Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, v. 16, p. 100-117, 2009, p.106.

314 A aquarela encontra-se em maior resolução em anexo ao final do trabalho (ANEXO E).
| 160

cercanias, mostrava-se inevitável seus intentos de catalogar os vários aspectos do império que as
―ilhas de civilidade‖ fossem representadas.
Caso o viajante percorresse os trajetos usuais Rio de Janeiro-Santos-São Paulo, via
caminho de Lorena e Rio de Janeiro-Minas Gerais via Serra da Estrela (Petrópolis) certamente as
primeiras edificações rurais observadas seriam pertencentes à tipologia da ―casa bandeirista‖315;
sua presença, mesmo que horizontalizada, chamaria a atenção por sua tipologia diversa à
encontrada nos centros urbanos da qual ele, o viajante, já se afasta; nas palavras de Lemos (1999),
esta tipologia seria formada "tomando feições próprias, um modelo popular ibérico qualquer. Na
arquitetura brasileira, teria sido a primeira manifestação onde uma apropriação assumiu feitio
regional ligado a uma sociedade segregada"316
Com características próprias e dissonantes das edificações urbanas e semi-urbanas, a
tipologia rural foi, muitas vezes, moldada nas representações em prol da adição de maior carga
pitoresca nas cenas. Muitas vezes manipuladas quando na Europa, os desenhos originais
passariam por uma série de modificações, garantindo que a cena fosse a mais pitoresca possível.
Seria importante, então, evidenciar os schemas já consagrados dos motivos tropicais.
Autores como Ferraz Cruz (2012) apontam a influência dos palacetes e solares
portugueses, soluções volumétricas conhecidas pelos primeiros colonizadores e replicadas a partir
de então, na forma final da casa rural. Vestígios da arquitetura clássica, como cornijas, capitéis e
cimalhas também serão importadas para essas edificações, além dos preceitos como a simetria,
harmonia e proporção largamente utilizados317. Essa matriz clássica, mesmo que em realidade
sejam breves ecos, serão evidenciadas pelas mãos dos artistas europeus, pois são schemas já
conhecidos pela escola neoclássica, uma vez que as imagens italianas eram influência direta na
representação de paisagem, como visto anteriormente.
Aliados aos motivos botânicos tropicais, ao escarpado pitoresco dos mares de morros,
estas linhas clássicas serviriam ao propósito de ilustrar grande parte da área rural brasileira. A
Figura 99, representativa de uma casa-grande de fazenda em Minas Gerais, seria um claro
exemplo desta apropriação de outros elementos na representação da realidade rural. Para além

Cf. LEMOS, Carlos A. C. Lemos. Casa paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo,
315

EDUSP, 1999.
316 Ibid, p.64.

317CRUZ, C. Ferraz. Fazendas do Sul de Minas Gerais: Arquitetura Rural nos Séculos XVIII e XIX. In: Seminario de
Paisajes Culturales UDELAR/UPC [Conpadre N.11/2012], 2, 2012, Montevideo, Uruguai. Montevideo: Red
Conpadre, 2012. p. 01-13. Disponível em < http://www.conpadre.org/conpadritos/c11-2012/art_15.pdf> Acesso
em: 23/10/2014.
| 161

dos traços citadinos na estrutura da casa-grande (i.e a cimalha mais próxima ao estilo urbano),
ressalta-se a presença marcante da palmeira e do bananal, reafirmando o caráter tropical da cena.
Com traços clássicos seria desenhada a edificação da Figura 100, na qual os pilares assemelham-se
muito mais à estrutura dórica do que às construções brasileiras. O teor pitoresco dos trópicos dá-
se pela coroação desta estrutura por um telhado em quatro águas, pela presença dos negros e uma
vez mais, da vegetação.

Figura 99 Johann Moritz Rugendas, Índios em uma Figura 100 Johann Moritz Rugendas, Lundu, c.1822-
fazenda de Minas Gerais, 1824. Litogravura 1825. Litogravura

Fonte:
Fonte: <http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galer
<http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/ ia/detalhe.php?foto=715&evento=12> Acesso em
detalhe.php?foto=715&evento=10> Acesso em 23/10/2014.
23/10/2014.

As imagens finais produzidas para sua obra Viagem Pitoresca Através do Brasil relativas
às casas-grandes rurais estabeleceriam proximidades com as cenas rurais produzidas pelo
holandês Frans Post, desenhadas no século XVIII. No entanto, cabe ressaltar que, no caso de
Rugendas em especial, essas escolhas de representação parecem-nos terem sido feitas com mais
ênfase no momento de gravação das imagens. Seus esboços in loco, como atestam as Figura 101 e
Figura 102, possuem tons mais sensíveis às tipologias do ambiente rural brasileiro, embora a
visão pitoresca ainda esteja presente na escolha da tomada de cena.

Figura 101 Johann Moritz Rugendas, [Casa de taipa no interior do Brasil], c.1822-1825. Grafite e aquarela sobre
papel. Acervo Instituto Moreira Salles
| 162

Fonte: < http://www.ims.com.br/ims/acervo/obra/4769> Acesso em 23/10/2014. Editado pela autora.

Figura 102 Johann Moritz Rugendas, [Interior de um povoado com cavaleiros, Minas Gerais], c.1822-1825. Grafite
e aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles

Fonte: <http://www.ims.com.br/ims/acervo/obra/4768> Acesso em 23/10/2014.

Na Figura 103, Thomas Ender representa uma fábrica de pólvora nas proximidades de
Petrópolis; percebe-se, no entanto, a matriz da casa bandeirista na conformação da edificação,
replicada para atender às necessidades das atividades realizadas: seus alpendres reentrantes
ladeados por dois cômodos frontais — o quarto de hóspedes e a capela — que se abrem para um
salão principal, pelo qual se tem acesso a outros cômodos e seu extenso telhado de quatro águas
mostrar-se-iam diminutos em meio à vastidão que a circundava.
A planta-baixa simples deixa-se entrever em seu volume formal, bem como suas meias-
paredes tão comuns nas zonas rurais. Seu volume divisa-se mais pelo contraste entre o escuro do
interior dos alpendres com o claro das paredes caiadas do que por qualquer detalhe em seu
delineamento; embora diminuta, a edificação não aparenta estar oprimida; o uso de cores
semelhante às empregadas na paisagem e a luminosidade suave e dourada denotam uma
| 163

coexistência pacifica entre o construído e o natural. Porém, ao suavizar essa relação, Ender opta
por não individualizar o aspecto construído da cena.

Figura 103 Thomas Ender. Fábrica de pólvora.

1
Fonte: <http://www.brasilartesenciclopedias.com.br/temas/ender.html> Acesso em: 31 out.2014.

A respeito da ―casa paulista‖, Lemos (1999) ainda iluminaria as três "atividades do


cotidiano" que seriam contempladas pelo programa desta tipologia: o convívio com estranhos, a
intimidade doméstica e o trabalho caseiro.318 O ciclo canavieiro pelo qual a região de Itu passaria,
ainda nas palavras de Lemos (1999), fundamentaria um desenvolvimento econômico contínuo
para dar à sociedade rural paulista uma base sólida para a sua consolidação na terra. ―(o ciclo

318 Id, ibid. Fernando A. Novais, "Condições da privacidade na Colônia", in Fernando A. Novais (org.), História da
vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
| 164

canavieiro)transformou o alpendre posterior da casa bandeirista na varanda, local de estar, comer,


de trabalhar.‖319
Ender também retraria a fazenda Mandioca, de propriedade de Georg Heinrich
von Langsdorff, o mentor da expedição Langsdorff, que durante os anos de 1821 a 1829
percorreu mais de 16 mil km através do território brasileiro, no intuito de coletar espécies da flora
e fauna e desenvolver pesquisas geográficas, da qual Ender fazia parte. A Fazenda Mandioca,
situada nas proximidades de Petrópolis, Rio de Janeiro, seria ponto de partida da expedição e é
aqui representada acima de uma elevação e próxima a um curso de rio.320
Apesar de aparentar certo isolamento, os acessos à fazenda eram facilitados pelo
Porto da Estrela e o Caminho Novo, utilizados havia mais de um século. A partir do Cais dos
Mineiros, no Rio de Janeiro, junto à atual Praça XV, seguia-se ao Porto da Estrela viajando em
uma falua; pelo Caminho Novo, seguia-se numa viagem de três horas até a Fazenda da
Mandioca321, constantemente registrada em relatos escritos de viajantes do século XIX. Observa-
se que a própria cena é recortada por diversas trilhas, provenientes do Caminho Novo, que passa
por entre os morros ao fundo, o Morro do Cortiço, à direita e a elevação denominada Cabeça de
Negro, o que levanta a questão de se a escolha da cena e dos evidentes caminhos (e os
iluminando com a luz solar) teria sido intencional.

Figura 104 Thomas Ender, Fazenda Mandioca, 1825. Aquarela.

319 LEMOS, 1999, p. 91.


320MELNIXENCO, V. C. A Planta Mater: Expedição Langsdorff em Nova Friburgo. In: I Simpósio Brasileiro de
Cartografia Histórica, 2011, Paraty, RJ. Passado Presente nos Velhos Mapas: Conhecimento e Poder, 2011.
321LACOMBE, Lourenço Luiz. Viajantes Estrangeiros a Petrópolis, Museu Imperial de Petrópolis, 1940, v. 2, apud
TAULOIS, Antônio Eugênio. O Barão de Langsdorff e a sua tentativa de de promover a imigração alemã na Fazenda de
Mandioca. 2010. Disponível em: <http://www.ihp.org.br/lib_ihp/docs/aeat20101000.htm>. Acesso em: 21 out.
2014.
| 165

Fonte: < http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=5337> Acesso em 31 de out. 2014.

Próxima à fazenda Langsdorff e, portanto, contemplada por estes mesmos caminhos,


encontrar-se-ia uma das primeiras representações da arquitetura rural no caderno de desenhos de
Burchell. Na Figura 105, a casa bandeirista nos parece mais detalhada e resolvida do que a
apresentada por Ender; protagonista na prancha, surgiria espraiada em toda a dimensão do papel,
com o prolongamento imaginário da curva de sua cobertura tocando as duas extremidades
laterais.

Saint Hilaire, em passagem à província de Minas, mencionaria essa característica


arquitetônica:

Fiz uma parada numa venda muito limpa e regularmente sortida como, em
geral, as dos arredores da cidade. O telhado terminava em alpendre sustentado
por barrotes entre os quais se construíra uma parede de arrimo; gênero de
construção bastante comum nos arredores do Rio de Janeiro.322

O alpendre, tão típico da arquitetura rural brasileira, está presente nesta aquarela que
representa uma fazenda no caminho entre o Rio de Janeiro e Minas, via Serra da Estrela.
Observa-se a base em pedra na qual a edificação repousa, bem como os traços verticais na
extremidade inferior aparentam ser tacaniças, o que nos faz crer que a fazenda esteja às margens
de um rio, provavelmente o rio Inhomirim, uma vez que Ferrez (1981) localiza-a próximo ao
Porto de Estrela. As nuances empregadas são suaves, em contraponto com o matiz usado no
interior do alpendre, ressaltando sua profundidade:

322SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (29/01/1822 –
05/05/1822). Tradução Revista e Prefacio de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974.
| 166

Figura 105 William Burchell[Belo exemplar de casa rural da baixada fluminense], 1825.

Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell, 1981.

Na Figura 106 nota-se a vegetação esquemática ao fundo e nas extremidades da aguada,


enquanto a arquitetura é desenhada com pormenores e traços precisos; as marcações acima das
construções a título de explicação sobre o que cada uma é, além de outras marcações que
representam coordenadas). A construção em primeiro plano trata-se da igreja Nossa Senhora da
323
Conceição (1) , ainda inacabada. Importante registro, uma vez que demonstra a forma de
construção da fachada frontal da igreja: são visíveis os troncos que seguram o estuque da fachada
(2) e a estrutura em pau a pique.

323 FERREZ, 1981.


| 167

Figura 106 William Burchell, Matriz e casas de Paraíba do Sul.

O
Fonte: FERREZ, 1981.

Embora ainda em construção, a igreja apresenta um afloramento da estrutura que não


será recoberto trata-se de uma escolha estética, aproveitando-se dos quadros estruturais em
madeira. Vasconcellos (1979) define este aproveitamento plástico:

e
Este enquadramento é proporcionado pelas pilastras ou esteios e pelas madres.
Valem-se também dos recuos que a menor espessura das paredes sobrepostas a
outras vai proporcionar e dos cordões e ensoleiramentos que, sacados, dividem
os andares [...] possibilitam, assim, as fachadas, composições moduladas,
organizadas pelos citados enquadramentos, estabelecidos pelos baldrames,
embasamento, cunhais apilarados, cordões, arquitraves, cornijas e beirais,
determinando subdivisões em retângulos proporcionais.324

q
324

u
VASCONCELLOS, Op. cit., p. 37.
| 168

Figura 107 Detalhe da figura "Matriz e casas de Figura 108 Enquadramento utilizado na
Paraíba do Sul." Em que se vislumbra os edificação
enquadramentos

Fonte: VASCONCELLOS, 1979.


Fonte: FERREZ, 1981.

A aguada da Figura 109 representa a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no atual


bairro do Jardim Guanabara. Ferrez (1981) aponta a varanda posterior guarnecida pela meia
parede, característica das casas da baixada fluminense em finais do século XVIII 325. É interessante
Burchell ter escolhido tal particularidade para iluminar em sua aguada, uma vez que dispensou o
desenho da fachada frontal da igreja (2), A representação lateral leste da igreja indica-nos que ele
dispensou a paisagem marinha (a igreja fica próxima ao mar) em sua representação, que tem forte
conotação com o pitoresco e o sublime326 na verdade, Burchell dá as costas ao mar, o que
adicionaria teor pitoresco em seu enquadramento.

Por que essa tomada de cena que, a um primeiro momento nos informa muito menos
sobre a paisagem tropical do que os enquadramentos célebres? Talvez, como a leitura de
Ginzburg (1991) indica-nos, está nos ―detalhes negligenciados‖327 a chave para retirar
informações que podem nos contar muito mais do que os elementos de maior destaque (como
seria o caso da fachada); ao reportarmos à aguada de Burchell, encontra-se, no jogo de volumes,

325 FERREZ, 1981, op. cit.

326 A ―dosagem‖ da porção de mar e sua representação (sereno ou bravio).


327 Em Mitos, Emblemas e Sinais (1990) o capítulo intitulado Sinais: raízes de um paradigma indiciário aponta-nos o
interesse de Ginzburg pelo método de pesquisa de três personagens: Sherlock Holmes, Freud e o crítico de arte
Italiano G. Morelli. Em comum, os três buscam, cada um se utilizando de um modelo de deduções, e guiados pelas
interpretações de pistas e sinais, encontrarem a solução para impasses diversos. No entanto, interessa-nos a sua
interpretação do ―método morelliano‖ de atribuição de autoria nas artes plásticas, o qual buscava diferenciar obras
verdadeiras de cópias ou atribuir a devida autoria de um trabalho ao artista, observando detalhes despercebidos ou
negligenciados. Este seria o cerne da questão do paradigma indiciário.
| 169

apenas observado nas laterais do edifício, os elementos de uma igreja brasileira colonial, mas,
principalmente, uma que esteja dentro do raio de influência da tipologia da casa paulista, pois é
desta perspectiva que percebemos esta influência. O viajante também apontaria a predominância
do cheio em relação ao vazio no restante da edificação, o que não é incomum, visto que os dois
volumes maciços correspondem à nave e à sacristia, inclusive, a intercalação denota pitoresco, a
diferenciação na casa paroquial e na igreja em relação a cheios e vazios.

Figura 109 William Burchell, Church [na Ilha do Governador]. 140 x 210 mm. Aguada

Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell,
1981.

O Mosteiro de São Bento, atual Museu de Arte Sacra de Santos, mostra-se, nesta aquarela,
(Figura 110) junto à sua capela de Nossa Senhora do Desterro. Fundado em 1649, datam do
século XVIII as obras que culminaram em seu aspecto atual.328 De acordo com Vasconcellos
(1979) os primeiros arcos começaram a ser empregados na arquitetura brasileira neste mesmo
século329. A aquarela de Burchell retrata com exatidão a fachada frontal da igreja com as três
janelas de vergas retas, a galeria de três arcos (um para a nave central e dois para as naves laterais),
elementos arrematados pelo frontão triangular retilíneo, tipologia típica da ordem beneditina.
Burchell trata-a em pormenores, imersa em um esquemático maciço de vegetação.

Livro do Tombo de Belas Artes, inscrição:314. Disponível em < http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm >


328

Acesso em: 30 out. 2014.


329 VASCONCELLOS, Op. cit., p.37.
| 170

Figura 110 William Burchell, Mosteiro de São Bento, em Santos. Aquarela.

Fonte: FERREZ, 1981.

Figura 111 Rua São Bento, com o mosteiro e a fonte Figura 112 Detalhe da figura ao lado, vista do Mosteiro de
ao fundo, em foto de Militão Augusto de Azevedo. São Bento e a torre sineira da capela de Nossa Senhora do
(albúmen com 10,5 x 17,2 cm. ) Acervo IMS. Desterro. Acervo IMS.

Fonte:< Fonte:
http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos270.htm> <http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos270.htm>

Acesso em: 02 nov. de 2014. Acesso em: 02 nov. de 2014. Editado pela autora

A Figura 112 apresenta-nos uma vez mais o mosteiro de São Bento, visto agora desde o
jardim da residência que Burchell se hospedou330. O caminho retilíneo foi representado em
ângulo que proporciona uma continuidade até o mosteiro. A racionalidade do jardim atua como
um lembrete por parte do botânico que há ordem nos trópicos, embora seja encontrada inserida

330 FERREZ, 1981, Op. cit., p. 84.


| 171

em Ordens religiosas, acentuada pela presença do edifício religioso. A tropicalidade está presente
na diversidade vegetal deste jardim.

Figura 113 William Burchell, Monastério Beneditino em Santos e casa e jardim onde W. J. B. viveu 331, c.1825-1826. Grafite e
aquarela sobre papel, 215 x 448 mm.

Fonte: www.ims.com.br. Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.

A aquarela seguinte de seu caderno é aqui apresentada na O outeiro de Santa Catarina,


local onde hoje se encontra a sede da Fundação Arquivo e Memória de Santos, constitui-se como
o marco inicial da construção da cidade de Santos332, é aqui representado coberto por densa
vegetação, em um enquadramento realizado no intuito de iluminar as formas naturais da região.
Coroando o conjunto de formas vegetais e minerais, encontra-se a antiga capela de Santa
Catarina, a mais antiga da vila e que desapareceu com o arrasamento do referido outeiro.333 O
pesquisador Benedito Lima de Toledo (1999) em seu artigo A cidade de Santos: iconografia e história
(1999) traz um panorama dos aspectos geográficos da vila:

A vila é cortada por alguns ribeirões que descem dos outeiros, onde se
localizavam as nascentes. Esse sistema poderia ser a base do abastecimento da
vila em sua primeira fase. Três são os ribeirões [...]o Ribeirão do Carmo ou
Itororó, passando ao lado do Convento do Carmo; o Ribeirão São Jerônimo,
que desemboca ao lado da Igreja de Jesus, Maria, José; e o Ribeirão de São
Bento, o qual, nascendo junto ao mosteiro desse nome, dirige-se ao mar,
passando frente ao Convento de Santo Antônio, no bairro do Valongo334.

331 Tradução do título que o próprio Burchell dá a sua aguada.


332DE MELLO, Gisele Homem. A modernização de Santos no século XIX: mudanças espaciais e da sociabilidade
urbana no centro velho. Cadernos CERU, n. 18, p. 107-131, 2007.
333TOLEDO, B. L. A cidade de Santos: iconografia e história. Revista USP, São Paulo, n.41, p. 48-61, 1999.
Disponível em:< http://www.novomilenio.inf.br/santos/lendasnm.htm > Acesso em : 11 nov. 2014.

334 Ibidem, ibid.


| 172

Figura 114 William Burchell, Capela de Santa Catarina, em Santos. c. 1826-1826. Acervo Instituto Moreira Salles.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

Esta aquarela de Burchell traz muito dos conceitos de sublime imersos em suas tintas,
pelos escuros matizes que ele opta no intuito de transmitir profundidade e densidade da mata,
pela apresentação da fachada posterior da paróquia, desprovida de ornamento, desta forma
acentuando a representação da vegetação e certificar o tema natural da cena e pela presença
diminuta de uma pessoa, servindo ás vezes de escala humana. Esta seria uma das últimas
aquarelas de Burchell e um dos últimos trabalhos como membro da Missão Diplomática
Inglesa335; esta informação nos é importante, pois o questionamento ―para quem a obra é
destinada?‖ uma vez mais é iluminada. Burchell não representaria apenas o que ele imaginava ser
importante, mas principalmente qual a imagem do Brasil a missão gostaria de levar para os seus
intentos. Veremos que a partir do momento em que o viajante se desprende da missão e inicia as
suas viagens solo, se prenderá muito mais aos detalhes da arquitetura brasileira.

335 Esta conclusão é retirada mediante a informação de que estas aquarelas, hoje em posse do Instituto Moreira
Salles, estavam no álbum Highcliffe, ao mesmo tempo em que as de Landseer. Uma vez que Charles Stuart confisca
as aquarelas e desenhos de Landseer é provável que tenha feito o mesmo com as de Burchell.
| 173

3.2 À sombra do alpendre: Detalhes arquitetônicos.

Muitos telhados são pintados de vermelho – os britânicos podem resmungar: “Sangue


de porco”, mas o colorido ressalta, como o olho de uma cobra, a fresca verdura da
floresta em torno.

Richard Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho.

A história das estratégias projetuais e das técnicas construtivas tradicionais brasileiras tem
seu início antes das primeiras povoações de São Vicente e Santo André em 1532. As construções
indígenas seriam, como já observado no inicio do capítulo, importantes referências para os
primeiros colonos, que adaptaram as técnicas construtivas por eles conhecidas às condições
socioeconômicas vigentes da época. Estas adaptações, permanências e inovações ocorridas entre
o século XVI ao XIX, época em que Burchell aporta no Brasil, processadas ao longo deste
período pelo ―fazer‖ construtivo, corresponde aos elementos que nos interessa neste tópico. A
produção burchelliana, tratou estas particularidades arquitetônicas com bastante preciosismo,
como observar-se-á a seguir:

As primeiras pranchas dedicadas a contar sua visão dos detalhes construtivos da


arquitetura brasileira são as que correspondem à sua passagem por São Paulo.O ―grande porte da
construção‖ como Ferrez refere-se à edificação à esquerda, na Figura 115 seria construído
utilizando-se do sistema construtivo da taipa de pilão, a técnica mais usual nas construções
coloniais no Brasil, devido à abundância de sua matéria prima, o barro vermelho, e sua relativa
facilidade de execução. Interessante notar a escolha, por parte de Burchell, em representar a
construção do prédio, informando-nos das traves (cangalhas) que serviam para manter as fôrmas
de madeiras fixas. Observa-se mais uma vez, os beirais cobertos por ripas de madeira, uma
prática que se mostraria comum na província de São Paulo.
| 174

Figura 115 William Burchell, Rua em São Carlos (Campinas), 1827. 300 x 480mm.

Fonte: Ferrez, 1981, editado pela autora.

Figura 116 Detalhe da figura ―Rua em São Carlos Figura 117 Sistema construtivo da taipa de pilão.
(Campinas)‖.

1
Fonte: <http://www.vilavera.com.br/taipa.htm.>
Fonte: Ferrez, 1981, editado pela autora. Acesso em: 21/10/2014.

A Figura 118, relativa à Rua do Quartel, em São Paulo, também traria em sua
representação os largos beirais em cachorro aferente336, em contraponto às estreitas beiradas

336Cachorro aferente: acabamento de beirada misto no qual se unem o sistema de cachorro e de cimalha,
normalmente em madeira. Cf: MIRANDA, S. M. . A Igreja de São Francisco de Assis em Diamantina. 1. ed. Brasília, DF:
Iphan / Monumenta, 2010. v. 1. 300p .
| 175

guarnecidas por cimalhas representadas anteriormente no Rio de Janeiro; a sensibilidade do


viajante em representar os peitos de pomba337 a arrematar a cobertura seria outro ponto a diferenciar
as construções paulistas daquelas da capital do império. O casario que Burchell representou não
resistiria à ação do remodelamento assistido por São Paulo, o ―bota-abaixo paulistano‖, ocorrido
partir de 1912, com a demolição de grande parte do centro, condenariam as ruas do Quartel, de
Santa Teresa e da Esperança ao arrasamento, no ensejo de ampliar o largo da Sé, que se tornaria a
praça que resiste até hoje338. Evidenciado pelas grades nas esquadrias e pela presença dos
soldados, o prédio à direita consistia do quartel.

Figura 118 William Burchell, Rua do Quartel, 1827. Lápis aquarelado. 300 x 480 mm.

Fonte: São Paulo: metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais.

337Peito de pomba ou peito de pombo: arremates da cumeeira que serviam ao propósito de lançar as águas pluviais mais
distantes das paredes.

338CAMARGO, Daisy. Sob sol, chuva e moscas: os quiosques na cidade de São Paulo (1880-1910). Antíteses, v. 3, n.
5, p. 419-438, 2010, p. 420.
| 176

Figura 119 William Burchell, Aspecto de Vila Franca (atual Franca), 1827.

Fonte: Ferrez, 1981

Ainda na província paulista, Burchell traz-nos esta vista de Franca; em primeiro plano,
nota-se a estrutura autônoma em madeira, esperando o preenchimento pela taipa de mão.
Desenhos a respeito das etapas da construção seriam raros, mas passagens em relatos escritos nos
informam como era feitas, aos olhos estrangeiros, a construção das edificações:

[...] com esteios fincados no chão, suportando um telhado sobre uma armação
de madeira; muitas vezes, assim, o telhado fica pronto e são colocadas as portas
e janelas antes de aparecerem as paredes. Em seguida é que vem a construção
das paredes, com uma armação de varas, que é enchida com barro. Essa curiosa
forma de construção é chamada de pau-a-pique ou parede de mão. Onde se
conhece o adobe, este toma o lugar do pau-a-pique e do barro339.

O uso da treliça simples (ou francesa) na representação condiz com os relatos da


bibliografia a respeito das construções do século XIX. Burchell traz-nos, evidenciado em seu
desenho, o recurso da mudança de inclinação da água próximo aos beirais a partir do contrafeito,
denominado galbo, solução característica da linguagem estética da arquitetura colonial e que
reforçaria os ares orientais tão atribuídos pelos viajantes.

339 BURTON, op. cit., p. 333-334.


| 177

Figura 120 Detalhe da figura "Aspecto de Vila Figura 121 Esquema de beiral com galbo no contrafeito, típi co
Franca‖ da arquitetura colono=ial.

Fonte: Ferrez, 1981. Fonte:


<http://coisasdaarquitetura.files.wordpress.com/2010/06/beir
a-1.jpg > Acesso em 15 nov. 2014.

Esta característica é representada em inúmeras outras pranchas de Burchell, como na


aquarela relativa ao Cemitério dos Ingleses, no Rio de Janeiro. O galbo do contrafeito perderia
uso ao longo do século XIX, uma vez que o telhado, já com tesoura propriamente dita, agora
possui seus caibros corridos prolongados para além das paredes, formando o beiral, que deixa de
ter estrutura própria340.

Figura 122 William Burchell, Cemitério dos ingleses. Observar a casa à Figura 123 Detalhe da figura "Cemitério
direita dos ingleses".

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles, editado pela autora.

340VASCONCELLOS, Silvio. Arquitetura no Brasil: Sistemas construtivos. Belo Horizonte: Universidade Federal de
Minas Gerais, 1979, p.158.
| 178

A Figura 124 traz outro detalhe construtivo observado por Burchell. Ferrez (1981) indica-
nos a ponte de Sant‘Ana (ou Ponte Grande)341 que cruzava o rio Tietê e a casa do guarda, à
direita. Esta seria, na verdade, a primeira edificação que Burchell representaria em que o sistema
de pau-a-pique apresenta-se aparente, o que pode explicar a minúcia com que se debruça em
representar o afloramento da trama no barro que a recobre. A cobertura em telhas coloniais
repousam em um caimento de duas águas e a construção encontra-se elevada do nível da
ribanceira por palafitas, solução que seria amiúde encontrada em outras localidades ribeirinhas,
sobremodo em Goiás e no norte do país.

Figura 124 William Burchell Ponte sobre o rio Tietê, 1827. 235 x 485 mm. Lápis

Fonte: Ferrez, 1981, editado pela autora.

Figura 125 Detalhe da figura Ponte do rio Figura 126 Detalhe da figura Ponte do Rio
Tietê: sistema de pau a pique Tietê: Palafita.

Fonte: Ferrez, 1981, editado pela autora


Fonte: Ferrez, 1981, editado pela autora

341LIMA, Adriana Tavares . Alterações toponímicas no município de São Paulo: as pontes sobre os rios Tietê e Pinheiros. Anais do
X Encontro do CELSUL: Círculo de Estudos Linguísticos do Sul, v. 1, p. 1-12, 2012. A Ponte Grande situa-se onde
hoje encontra-se a Ponte das Bandeiras.
| 179

A imagem relativa ao interior de uma residência goiana, traz a presença de importantes


elementos internos da conformação de uma residência colonial, a começar pela presença da
estrutura em madeira, autônoma (gaiola), com esteios descarregando seus esforços de forma
concentrada, com suas paredes trabalhando apenas no sentido de vedação. Burchell representa a
ligação em meia madeira da estrutura do quadro de madeira que receberá o barro, bem como as
marcas deixada pelas ferramentas nos esteios, característico da época.

A cena, diferente dos enquadramentos usuais de Burchell, tem uma profusão de


elementos concorrendo pela atenção do espectador, transplantando a mata tropical para o
interior da residência, sublinhando as sinuosidades das linhas, a atividade construtiva opera em
ambiente caótico e carregado de informações. O personagem em primeiro plano segura um
prumo, adicionando outra referência além da própria construção: como se constrói. Wolff de
Carvalho indaga-nos se esta não seria a casa em Goiás que Burchell habitou durantes alguns
meses342. Um detalhe quase despercebido é a torre da igreja, no último plano, aqui servindo, uma
vez mais, para apontar a importância religiosa e garantir teor pitoresco na paisagem.

Figura 127 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis.

Fonte: Wollf de Carvalho, 2013.

342 WOLFF DE CARVALHO, Maria Cristina. A visão da paisagem na obra de William John Burchell (1781–1863).
In: Arquiteturismo, São Paulo, ano 07, n. 073.02, Vitruvius, mar. 2013
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700>.
| 180

Figura 128 Detalhe da figura "uma Figura 129 Ligação em meia madeira de
edificação em construção em Goiás encontro
Velho, 1828 " :esteios

Fonte:<http://www.
Fonte: Wollf de Carvalho, 2013.. woodsecondchance.blogspot.com>. Acesso
em 23/10/2014.

Em Goiás Velho Burchell também retrataria uma imagem invulgar, registro importante
do interior de uma residência (seria, pois, a mesma da figura anterior?). Na figura fica claro que o
elemento que lhe despertou a atenção foi a presença das conversadeiras nas janelas, construídas a
partir do largo dos vãos, mas há outros elementos importantes destacados: O teto em gamela, as
gelosias nas janelas, as ferragens das esquadrias típicas (dobradiças de cachimbo ou dobradiças de
leme), o assoalho de madeira e a alta janela na parede à direita.

Figura 130 William Burchell, Interior de casa em Goiás Velho, 1827. Lápis.

Fonte: FERREZ, 1981.


| 181

Figura 131 Dobradiça de cachimbo ou leme, comum Figura 132 Lêuncio Nobre, Janela superior do
nas edificações oitocentistas. Desenho de Aljube- Olinda, 2001.
Vasconcellos.

Fonte: VASCONCELLOS, 1979.


Fonte:
<http://leucioferreira.blogspot.com.br/2009_06_28_a
rchive.html >

Esta cena é muito semelhante à uma aquarela de Thomas Ender que retrata uma
residência em São Paulo, demonstrando que em ambas as representações a matriz da casa paulista
é muito forte343.

Figura 133 Thomas Ender, Interior de uma casa paulista, 1817. Aquarela.

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.142/4898 > Acesso em: 15 nov. 2014.

343 FERREZ, 1981, op., cit.., p.135.


| 182

À medida que Burchell segue para o norte do império, as tipologias das moradias vão
cambiando. Há cada vez mais pranchas onde ele indicará, por escrito, o emprego do ―sapé‖ nas
coberturas, inclusive na varanda das igrejas. Ao observamos as representações destes núcleos
urbanos, percebemos que há algo em falta: onde estão a tipologia dos sobrados que tanto foram
utilizados na representação desta urbe Oitocentista brasileira? As construções das províncias do
norte guardam semelhanças com a matriz tipológica carioca e paulista, mas suas diferenças e
adições são claramente visíveis. Estas povoações geralmente surgiram a partir de destacamentos
militares, com constante presença de tropas, por isso, a presença de soldados e canhões será uma
constância nos desenhos de Burchell. Estas construções de palha e terra pontilhada por
elementos de seriam, inclusive, a representação destas fronteiras territoriais difusas, das
divergências e do alcance limitado dos poderes imperiais em uma região que mal se conectava
com o restante do império. Os enquadramentos de cena do viajante serviriam ao propósito de
aumentar este ar de atraso e de distanciamento da ―civilização‖, como observado na Figura 134

Figura 134 William Burchell, presídio de São João das Duas Barras, no Araguaia. Sem data, grafite sobre papel.

Fonte: FERREZ, 1981, editado pela autora.


| 183

A construção com coberturas de material vegetal não seria uma prerrogativa das cidades
do norte, embora a cobertura de palha ou sapé seja associada às moradias provisórias ou
pioneiras, como Clarissa Rahmeier (2007) aborda: [...] essas construções possivelmente não
constituíam a moradia definitiva dos donos344. Sobre essa noção do emprego do sapê relacionado
às primeiras ocupações de núcleos urbanos, Aroldo de Azevedo (1958) afirma que a cidade de
São Paulo:

―constituía-se de simples aglomerado de modestíssimas habitações de taipa,


cobertas de sapé, só começando a aparecer as coberturas de telhas no último
quartel do século XVI. Não havia telhas porque não havia oleiros nem olarias;
e como poderia montar-se uma olaria sem que primeiro houvesse bois ou
equinos para tirar a almanjarra, que faz girar os cilindros amassadores do
barro?. Somente em 1575 apareceu, na vila, o primeiro fabricante de telhas, o
qual "em presença de todos disse que ele se queria vir a morar nesta vila e se
queria obrigar a fazer telha para se cobrirem as moradas desta vila, por ser coisa
para enobrecimento dela e ser muito necessário"... "por rezão (sic)desta vila
estar coberta de palha e correr risco por rezão (sic) do fogo" - conforme reza a
Ata da Câmara345.

No entanto, as construções em sapé mostrar-se-iam muito mais ―permanentes‖ que


Aroldo Azevedo imaginaria. Estas coberturas seriam largamente utilizadas na região norte, parte
pela herança indígena, parte pela falta de material para o fabrico da telha de barro. Ao
analisarmos os desenhos de Burchell relativos às províncias do norte, percebe-se que poucas são
as construções que se utilizam de telhas (em sua maioria, a cobertura cerâmica seria encontrada
nas construções religiosas). O ineditismo de Burchell não está em retratar o emprego de palhas
como cobertura, outros viajantes, como Rugendas também o fizeram, sua diferença reside nas
edificações que representa, apontando que seu emprego ia além dos mucambos e edificações
indígenas (Figura 135 e Figura 136). Moradas urbanas e até mesmo edifícios oficiais (como
quartéis e cadeias) seriam apontados com o uso de coberturas naturais.

344RAHMEIER, Clarissa Sanfelice. Experiência da paisagem estancieira. Um estudo de caso em arqueologia fenomenológica.
Estância Vista Alegre, Noroeste do Rio Grande do Sul, séc. XIX. 2007. 1 v. Tese (Doutorado) - em História das Sociedades
Ibéricas e Americanas., Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul., Porto Alegre, 2007.

345Cf. Mota, Oconiel, p.9 apud AZEVEDO, Aroldo de. A cidade de São Paulo – Estudos de geografia urbana: os subúrbios
paulistanos. v. IV. São Paulo: Editora Nacional, 1958, p. 20.
| 184

Figura 135 Johann Moritz Rugendas, Acampamento de Figura 136 Johann Moritz Rugendas, Habitações de
índios, 1824. Lápis e nanquim sobre papel, 115 x 117 mm. negros, c.1822-1825.

Fonte: Fonte: Biblioteca Nacional, 2014.


<http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla.ht
m> Acesso em: 01 nov. 2014.

A cobertura em material vegetal se tornaria uma estrutura perene, estrutura recorrente na


tipologia permanente da população urbana mais pobre e daquelas mais afastadas das cidade. Essa
visão negativa das moradas em sapé da população pobre seria retomada em inúmeras passagens
de textos ao longo do próprio século XIX e no século seguinte, como os contidos em Urupês
(1918), de Monteiro Lobato. Ao convergir todas as convenções negativas que se tinham dos
―caipiras‖ no início do século XX na figura de Jeca Tatu, Lobato especifica todas as
características deste tipo. Uma de seus atributos determinantes falaria de sua morada:

Em três dias [constroem]uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota
da terra como um urupê346. [...] Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as
ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão
íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de
coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse
capaz de criar coisas tão feias347.

Esta tipologia brotada da terra, parafraseando Monteiro Lobato, seria retratada por
Burchell, que ao pé de um de seus desenhos, relativo à um arraial no Pará, escreveria ―tudo cor
de lama, salvo a igreja e a cadeia‖.348

346O Urupê é um fungo, costuma crescer sobre troncos de árvores em estado de decomposição. Não é comestível,
se ingerido, pode levar à morte. In: < http://www.natal.rn.gov.br/parquedacidade/paginas/ctd-540.html >
Disponível em: 01 nov. 2014.

347 LOBATO, Monteiro. Urupês. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1969. (Obras completas v. 1)

348 FERREZ, 1981, p. 148. Op. Cit.


| 185

A conotação negativa, entretanto, poderia ser mascarada por notas de exoticidade.


Publicada pela primeira vez em Nova York em 1926, A conquista do Brasil, obra do historiador e
economista norte-americano Roy Nash, traz, embebido em notas pitorescas, sua descrição desta
tipologia às margens dos rios da Amazônia:

Mergulhemos por um momento nas bastas matas virgens da foz do Amazonas


e visitemos uma das muitas choupanas feitas de folhas de palmeiras que
margeiam o Furo de Breves. Algumas estacas que elevam o piso acima do
charco, três paredes de palmas entretecidas e um ligeiro teto de palha;
entretanto, para o seu morador isso é o seu lar. Apenas um abrigo contra as
intempéries fustigantes daquelas latitudes bravias [...] É esse o tipo corrente de
moradia no vale amazônico, anualmente alagado pelo amplexo hídrico do
gigante potâmico: meros esqueletos erguidos sobre estacadas e rodeado de uma
espécie de esteira tecida com folhas de ubuçu ou açaí. A parte externa do
tronco desta última tem a consistência do chifre, e, por isso, cortada em longas
tiras é usada, ao longo do Tocantins, à guisa de parede e de assoalho.349.

No entanto, nem todas as edificações seriam cobertas com fibras naturais, como visto
anteriormente; as telhas mouras (coloniais) eram reservadqs aos edifícios importantes, ou àqueles
de propriedade de ordens religiosas que possuíssem poder aquisito para bancar a vinda do
material até sua localidade. Um claro exemplo – e talvez tenha sido um dos motivos para Burchell
se debruçar neste desenho – é a prancha relativa ao Convento das Mercês, próximo à Belém do
Pará (Figura 137).

349 NASH, Roy. A conquista do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 232.
| 186

Figura 137 William Burchell, Igreja das Mercês, Pará. Grafite sobre papel, c.1829.

Fonte: FERREZ, 1981.

Figura 138 Detalhe do desenho anterior, relativo à Igreja das Mercês.

Fonte: FERREZ, 1981.

A penúltima prancha do caderno de Burchell retrata a larga varanda que rodeia o


convento anexo à Igreja das Mercês, na vila de Santana. Observa-se o apuro do trabalho da
madeira, nas ombreiras, cunhais, pilares e nos caibros trabalhado em cachorras que Burchell
| 187

deseja passar ao espectador da obra. Também se devem observar figuras humanas rabiscadas,
como a mostrar que as subtrações da meia-parede serviriam às vezes de bancos e da escala
humana. Nesta estrutura observa a ausência do galbo do contrafeito, tão recorrente nas
províncias do sul, indicando que seu uso não fora percebido pelo mesmo durante seu trajeto pelo
norte do Império.
O acentuado grau de detalhamento e precisão de suas notas e desenhos não implica,
necessariamente, uma menor impressão de pré-conceitos em seus desenhos. No entanto, embora
carregada de uma visão eurocêntrica, a obra do botânico apresenta-nos um olhar apurado para a
arquitetura colonial, sua matriz e suas variáveis. Em um corpus iconográfico no qual a maioria das
representações relativas à paisagem urbana do norte se atém à reproduzir a tipologia da
construção indígena, Burchell demonstra sensibilidade para perceber as mudanças das tipologias e
dos materiais construtivos ao longo do trajeto.
| 188

Últimos vernizes:
Considerações finais

ÚLTIMOS VERNIZES- CONSIDERAÇÕES FINAIS


| 189

Ao longo do século XIX inúmeras cidades brasileiras foram retratadas nos cadernos de
visitantes europeus e viajaram, fizeram-se circular por entre os admiradores de arte de temática
tropical e, posteriormente, suas representações foram utilizadas para legitimar, preencher ações e
episódios de nossa história urbana. Alguns núcleos urbanos como São Paulo, Santos e Rio de
Janeiro, tão ricamente retratados pelos viajantes oitocentistas, hoje são metrópoles cortadas por
túneis e vias expressas, de acesso não mais por navios ou por serpenteadas estradas, mas pelo ar
ou por rodovias de rápido fluxo; seus altos prédios encobrem parte de sua topografia acidentada,
mancham de tons acinzentados o que antes eram densos matizes verdes, sua modernidade ora
encobriu ora arrasou os pitorescos morros, as tortuosas vielas e os largos beirais. Noutras, como
Goiás Velho e Natividade, a pátina colonial resistiu mais bravamente, embora com importantes
mudanças arquitetônicas e urbanas. Os caminhos retratados por Burchell agora são genéricas ruas
em meio à São Paulo, já não ligam mais arraiais distantes, o Progresso já fez o seu trabalho de
espraiar a mancha urbana, em um movimento contínuo e cada vez mais acelerado. Das fazendas
retratadas, poucas ainda sobrevivem, da mesma forma os sobrados urbanos, quase todos
demolidos ou irremediavelmente modificados. O que resta das cidades antigas e mais ainda, o que
resta das cidades que Burchell retratou?
Inúmeras reformas foram engendradas nas urbes brasileiras, a começar pela própria
capital do império e, posteriormente, capital da república do Brasil: o Rio de Janeiro passaria por
profundas transformações ao longo do século XX, em especial, no governo de Rodrigues Alves,
entre 1902 e 1906. Responsável por recobrir a cidade com ares modernizantes, Pereira Passos
concebeu uma profunda transformação na paisagem carioca. O desmonte de morros, a
retificação de ruas, o aterramento de áreas na costa e o arrasamento de quarteirões coloniais no
centro, mudariam a dinâmica da cidade e sua aparência colonial.
Antes das reformas da capital carioca, ainda em finais do século XIX, a primeira cidade
brasileira a ser projetada segundo preceitos modernos seria erguida em tábula rasa: Belo
Horizonte. O Relatório da Comissão de Estudos das Localidades, cujo intuito era a escolha de
um sítio para a nova capital da província de Minas Gerais, apontava para a inadequação de Ouro
Preto em suprir as necessidades esperadas de uma capital; seus ―ares insalubres‖ e sua ―péssima
posição topográfica‖ eram entraves para o seu crescimento, a opinião a respeito da incapacidade
destas cidades era tão compartilhada e vista como consenso que os escritos da Comissão mal
trazem esta discussão350.

350DANTAS, George A. F. A arte que lhe falta: representações sobre a cidade colonial e a formação do urbanismo moderno no
Brasil. In: XI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, 2010, Vitória-ES. Anais do XI SHCU. Vitória:
UFES, 2010. p. 1-15.
| 190

O relatório elaborado pela comissão técnica, chefiada pelo engenheiro Aarão Reis, ao
examinar Barbacena como possível local para a construção da capital, faz uma leitura da paisagem
marcada pelo encanto com a beleza pitoresca do local. Embora momentaneamente deslumbrado
pela paisagem, os engenheiros, ao descreverem a cidade, não deixam de fazer uso de lugares-
comuns, oriundos de um fundo-comum constituído, ao menos, desde fins do século XVIII por
diferentes fontes para respaldar o descarte de quaisquer núcleos urbanos outrora construídos para
receber a nova sede. Esta imagem de estagnação se estenderia desmedidamente a outras cidades,
indiferente ao porte, localização ou real disposição de seus elementos.
Os valores do Regime Republicano eram calcados na visão positivista do Progresso.
Necessário, pois, retirar a alcunha de capital de cidades como Vila Rica, impregnadas pelo ranço
do regime anterior, resultado material do atraso colonial e, posteriormente, imperial. Belo
Horizonte – e tantas outras cidades- nasceriam ―cidade nova‖, longe do solo traçado
irregularmente, das casas de ―porta e janela‖ e das vielas íngremes, símbolo da superação dos
entraves herdados do ―desalinho‖ colonial, materializando os anseios de modernização que a
sociedade almejava, exemplos a serem seguidos por outras capitais e cidades, alcançados ora pela
retificação de caminhos, ora pela destruição do passado ―sem ordem‖.
Seria na mesma Vila Rica percorrida pela Comissão Construtora da Nova Capital que o
escritor Olavo Bilac se refugiaria por motivos políticos. Se nas ―letras oficiais‖ estas cidades
seriam apontadas como incapazes de possuir a modernidade que se aproximava, na literatura seu
tratamento seria mais romanceado, mas não menos crítico. Pelos becos e vielas de Ouro Preto,
Bilac seria influenciado pela ―decadência gloriosa351‖ da cidade colonial e escreveria uma série de
crônicas, entre 1893 e 1894352. Seu soneto ―Vila Rica‖ traz as observações de uma cidade em
declínio de sua maior atividade econômica durante o século XVIII e parte do século XIX: a
mineração do ouro:
O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que a ambição
Na torturada entranha abriu da terra nobre:
E cada cicatriz brilha como um brasão.

351Em ocasião do bicentenário da cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto) Bilac escreveu ―Vila Rica, com sua estranha
beleza de cidade quase morta, conservando na decadência gloriosa, a majestade de um nobre orgulho. É essa, de fato,
a impressão que Vila Rica deixa no espírito de todos os artistas que a visitam: é impossível deixar de amá-la e
respeitá-la, vendo-a serena e resignada no seu alto sólio de montanhas verdes, abandonada das gentes que ali se
formaram e criaram. BILAC, O. Ouro Preto In BRANDÃO, Angela. Olhares oitocentistas para a arte barroca e
rococó. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/criticas/mg_viagem.htm
352 BILAC, O. Chronicas & Novellas 1893-1894. Rio de Janeiro: Cunha & Irmãos, 1894.
| 191

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre.


O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
O crepúsculo cai como uma extrema unção.

Agora, para além do cerro, o céu parece


Feito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...
A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

Como uma procissão espectral que se move…


Dobra o sino… Soluça um verso de Dirceu…
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

Às vésperas de ter seu status de capital revogado em prol da construção de Belo


Horizonte, Ouro Preto era a imagem clara da cidade colonial decadente e esquecida pelo
progresso iminente.
A urbe ―gloriosa e pobre‖ do soneto de Bilac seria a mesma descrita como decadente nos
relatórios da Construção da Nova Capital. Em comum, as duas descrições trazem ecos de uma
crítica à urbe colonial que não foi, necessariamente, originária de fontes nacionais ou
contemporâneas aos dois. Esse fundo comum vinha sendo alimentado desde as primeiras
descrições sobre a paisagem urbana brasileira e ganhara fôlego no início do século XIX, como se
observou ao longo do trabalho. Dentre os vários documentos que foram produzidos sobre as
cidades brasileiras, os relatos dos viajantes, de sobremodo os estrangeiros, foram os que tiveram
maior poder de reverberação.
A obra de Burchell não teve participação ativa no corpus iconográfico viajante do fundo-
comum que alimentou o imaginário coletivo acerca das cidades coloniais, uma vez que o
conhecimento público de sua obra é relativamente recente. O viajante retrataria a urbe de uma
colônia recém-alçada a império no intuito de dar notícias ―das terras e das gentes‖ brasileiras às
autoridades inglesas e, no entanto, deixou também muito de si em seus desenhos. Pouco o
importava as festividades, os acontecimentos históricos e cenas políticas, temas recorrentes em
artistas consagrados de outras missões, como Jean Baptiste Debret ou Nicolas-Antoine Taunay;
era na silenciosa e despovoada rua que se encontrava o material ao qual ele queria aprisionar: as
rótulas silenciosas, as casas esquecidas, a tropa indolente, os escravos tristes: seu preciosismo em
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retratar a urbe, considerado quase ―fotográfico‖353 não impediria que nela se plantasse também
expectativas, lugares-comuns, preconceitos, tal como inúmeros outros relatos iconográficos.
Entretanto, a interpretação que o Brasil recebe nos traços e tintas do botânico é invulgar.
Observar os desenhos de William Burchell é seguir viagem percorrendo as províncias do
sul ao norte, no lombo de mulas por entre a Estrada de Lorena ou embarcado em faluas pelos
rios goianos; é também perceber nitidamente as várias mudanças de tipologias, vegetação, tipos
humanos e conformações urbanas, estes vários ―Brasis‖ que pouco foram postos à luz por essas
representações iconográficas. Sua representação do Rio de Janeiro merecia todas as cores de sua
paleta de aquarela e os enquadramentos mais pitorescos, pois eram destinados à responder a uma
finalidade documental de caráter oficial; no entanto, ao adentrar o sertão brasileiro, Burchell vai
se desprendendo cada vez mais das amarras de representação neoclássica; já ao final de sua
viagem, suas vilas ao longo do Araguaia são rapidamente rabiscadas no papel, sem cores ou
hierarquia de traços. Isto em nada desmerece o apuro artístico destas pranchas, apenas nos
indicam que muito mais que representar as paisagens brasileiras pelas tramas dos cânones
artísticos, Burchell queria catalogá-las como espécies, encontrar matrizes, traçar suas semelhanças
e divergências. Interessante é que em retorno à Inglaterra, o botânico não mais se debruça em
seus desenhos tropicais, não procura reproduzi-los em publicações, tal como fez com sua viagem
à África do Sul, mas continua a etiquetar todas as espécies botânicas e animais que trouxera. Será
que já tinha se dado por satisfeito com a catalogação das paisagens in loco? Difícil saber, pois até
de suas cartas pessoais o Brasil vai rapidamente desvanecendo.
Sua produção iconográfica nos impele a tomá-la como verdadeira, a cair nesta armadilha
do irrepreensível documento, da legitimidade medida pela acuidade. De fato, seus desenhos são
documentos, mas nenhum documento é neutro, é tecido em meio à escolhas, muitas delas
inconscientes até, de quem o produz, de quem o lê354. Como visto ao longo do trabalho, estas
imagens falam do Brasil, mas dizem também de como ele se deixou ser observado; trazem muito
dos seus próprios autores e de quem as lê e as decodifica. O roteiro de Burchell progride em
duas frentes: adentra pelo território brasileiro geograficamente, chegando a lugares até então
desconhecidos por estrangeiros e avança nos aspectos da sua representação dos núcleos urbanos.
Se a cidade carioca é retratada desprovida de cenas do cotidiano, as localidades do norte do país
são apresentadas muitas vezes em intenso movimento, um contraponto aos discursos dos poucos
viajantes que por lá estiveram, demonstrando que o olhar de Burchell vai se adequando e

353 FERREZ, 1981, op. cit.


354 LE GOFF, op., cit.
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apreendendo sobre o Brasil à medida que segue viagem. Em meio a estas pranchas, a série
relativa à paisagem goiana mostra a intensa ligação entre ambiente construído e os cursos de rio e
sua forte herança da fatura paulista em suas construções.
O discurso sobre a decadência da colônia perdura em sua obra, quer seja pela constante
presença do escravo, quer seja pelas cidades retratadas vazias de movimento urbano, mas há algo
de diferente em sua representação. A comprovação da hipótese de que o Burchell leria com mais
precisão a cidade mostra-se quando se observa que o viajante apercebe-se da unidade
arquitetônica colonial com forte herança portuguesa, mas acura o olhar e distingue as inúmeras
tipologias das regiões do país e das influências de outras culturas em nossa arquitetura, (como no
caso das construções indígenas) e avança acima da homogeneização tão recorrente na
historiografia do tema. Os rígidos preceitos do Neoclassicismo aprendidos pelo viajante
encontraram uma paisagem inédita, fora dos padrões dos esquemas da arte européia e foi
necessária a adequação aos objetos retratados e às formas tropicais e, se algumas vezes a cidade
colonial é descrita como imberbe, em outras, os pequenos arraiais tomam importância em seus
traços.
Mesmo que a célebre frase atribuída à Rembrandt na qual diz que ―uma pintura só está
acabada quando o artista diz que está acabada" em verdade possa não o pertencer, nunca nos
pareceu tão pertinente: Burchell nos mostra que anda há muito a se investigar, procurar e
conhecer sobre a sua obra e sobre suas visões a respeito da arquitetura Oitocentista brasileira.
| 194

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| 207

Apêndices

APÊNDICES
| 208

APÊNDICE A - O intrépido viajante: formação e itinerários de William John


Burchell
William John Burchell nasceu em Fulham, Inglaterra, em 23 de julho de 1782 355,
primogênito de Matthew Burchell, botânico do reconhecido horto de Fulham. Seria nos nove
acres pertencentes ao horto e em Churchfield House , residência da família Burchell, que desde
tenra idade demonstraria aptidão aos estudos botânicos, sob forte influência paterna. Seus
estudos seriam realizados em Raleigh House Academy356, em Surrey e por sugestão de
professores ele aprofundaria seus estudos em botânica.

Figura 139 Referências Apêndices os s de Burchell

Fonte: STEWART, Roger.William Burchell‘s medical challenges: A 19th-century natural philosopher in


the field, 2012.

Figura 140 Churchfield House, residência da família Burchell, demolida em 1898.

Fonte: Fulham Old and New, C J Feret, London 1900, vol. ii, p 73
355A data de seu nascimento foi durante muito tempo questionada. Gilberto Ferrez chega a atribuir o ano de 1781
como ano de seu nascimento, entretanto, os registros da Linnean Society (ver nota de rodapé referente ao Linnean)
apontam para o ano de 1782.
356 BROWN, A. Gordon.
| 209

Aos 15 anos recebeu lições de desenho paisagístico de James Merigot, artista francês
estabelecido na Inglaterra, e conhecimentos de perspectiva pelo topógrafo e pintor John Claude
Natts .357 As influências de ambos os artistas seriam primordiais em suas pinturas, pois as técnicas
de aquarela ensinadas por Merigot e o manejo do ―cilindro giratório”358 aliado ao emprego de uma
“câmera lúcida” 359 aprendidos por meio de Natts seriam fundamentais para a sua trajetória e alguns
dos aspectos que fariam ressaltar seu trabalho de representação em detrimento a outros viajantes.

Sua formação artística ocorreu na época em que a cultura do pitoresco era ainda pungente
e seus primeiros trabalhos à lápis e aquarela apontam para a inclinação aos detalhes minuciosos e
vistas abrangentes que tanto caracterizariam suas conhecidas obras posteriores, como pode-se
observar nas aquarelas que retratam a paisagem recortada do País de Gales realizadas em suas
férias. Nota-se a composição galesa que Charles Darwin havia comparado com a paisagem
tropical quando no Brasil. Ambiciosa seria fazer a afirmação de que esta paisagem determinou
diversos pontos da leitura das terras tropicais pelas quais mais tarde Burchell atravessaria,
entretanto é campo seguro alegar que possuíram relativa influência nas posteriores obras do
naturalista, como teremos a chance de observarmos ao longo do trabalho. A arte a ciência seriam
partes inseparáveis de um todo.

357 LIMA, 2001, op., cit.

358 O cilindro giratório, ainda pouco utilizado à época de Burchell e por vezes erroneamente tendo sua invenção
atribuída ao mesmo, auxiliaria no desenho de panoramas em 360º

359A Enciclopedia Itaú Cultural de Artes Visuais define: ―Uma espécie de variante da câmera obscura, destinada a
facilitar a realização de esboços pelos artistas, inventada pelo inglês William Hyde Wollaston (1766-1828) em 1806.
Sua diferença básica com a camera obscura era o fato da imagem não ser captada por uma caixa fechada e sim por
um prisma de três ou quatro faces, que concentrava a imagem a ser decalcada diretamente sobre uma folha de papel.
Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=8
2 > acesso em: 09 mai. 2013.
| 210

Figura 141 William Burchell, País de Gales, vista do moinho próximo à queda d'água em Aberdyllis, Neath,
Glamorganahire. Lápis aquarelável, 23 agosto,1804

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 > acesso em. 04


ago. 2014.

Figura 142 William Burchell, País de Gales, vista de Swansea. Lápis aquarelável, 31 agosto 1804.

Fonte: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700 > acesso em. 04


ago. 2014.

Burchell decidiu não ingressar na faculdade e trabalhou durante algum tempo ao lado de seu pai, no horto
em Fulham, atuando, posteriormente, como botânico- assistente no Kew Gardens, realizando
desenhos e estudos das espécies360 e foi, posteriormente, eleito membro na Linnean Society of

360Kew Gardens (ou Jardins Reais Britânicos) constitui um célebre complexo de jardins na região sudoeste de
Londres. A partir de 1840 passou a ter objetivos voltados à investigação cientifica nas áreas de botânica e paisagismo.
| 211

London361 em 1803, patrocinado por quatro proeminentes botânicos362. Pouco se sabe quais
foram as motivações que levaram Burchell a partir, no dia 7 de agosto de 1805 para a ilha de
Santa Helena, a bordo do East Indiaman Nortkumberland e seguido por William Balcombe363,
com quem almejava abrir um comércio de mercadorias na ilha. Um ano de trabalho foi o
suficiente para que Burchell dissolvesse tal sociedade e aceitasse a posição de professor da ilha e,
mais tarde, por influência do governador Robert Patton –impressionado pelo conhecimento do
jovem botânico – assumisse à função de naturalista e superintendente do novo jardim botânico
da ilha, localizado em James-town Valley.
É em Santa Helena que temos os primeiros vislumbres de Burchell como desenhista de
motivos tropicais. O ambiente tropical encontrou em Burchell um acurado e preciso observador,
que tomava notas de objetos isolados e de paisagens desenhadas e in loco, tendo os diferentes
planos dos cenários números que indicavam suas distâncias em relação ao observador364. Suas
primeiras tentativas em entender e desenhar os exóticos formatos da paisagem, vegetação e dos
animais tropicais antecipariam seus desenhos da ―árida‖ paisagem africana e da ―exuberante‖
vegetação brasileira.365

361Linnean Society of London, fundada em 1788, é uma sociedade científica que se dedica ao estudo e a divulgação
da zoologia e botânica.

362 A.B. Lambert, C. Koening, R.A. Sailsbury, e W.G. Maton (informações cedidas pela Linnean Society)

363Superintendente de Compras na Companhias das índias Ocidentais e relacionado à Napoleão Bonaparte quando
o mesmo permanecia na ilha em seu exílio (Bonaparte instalou-se durante alguns meses em sua propriedade).
364MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes.(o olhar britânico 1800-1850), Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2001
365 CARVALHO (2013), op., cit.
| 212

Figura 143 Uma vista próxima à Santa Helena.

Fonte: Imagem cedida pelo arquivo do Kew Gardens , 2014.

Figura 144 Mande's Battery. Lápis e aquarela, sem data.

Fonte: Imagem cedida pelo RBG Kew Archives,2014


| 213

Figura 145 Salsa de Praia (também comum no litoral brasileiro)representada pelo naturalista William Burchell.
Ipomea biloba, lápis e aquarela, sem data.

Fonte: Imagem cedida pelo RBG Kew Archives.

Enquanto trabalhava na catalogação de plantas da ilha, Burchell correspondia-se com o


Reverendo C.H.F. Hesse, ministro luterano na Cidade do Cabo, na África do Sul e que o
encorajou a viajar em expedição ao continente africano. Embora sua condição em Santa Helena
fosse estável - seu ordenado mensal era de £ 300 e recebera uma casa ao ser contratado – buscava
atividades que exigissem mais dele, chegando ao episódio em que conta ao secretário do
governador que se o mesmo não encontrar algum serviço útil para que realize, não aceitará mais
nenhum salário. Pediu desligamento das funções de superintendente do jardim botânico e partiu,
em 1810, para a cidade do Cabo, por recomendação do general JW Janssens, com o intuito de
explorar e adicionar à sua coleção botânica espécimes africanas.
Ao final de 1810, se estabelece na Cidade do Cabo, sob os auspícios do reverendo Hesse.
Sua intenção era seguir a rota realizada por P. J Truter e W. Sommerville, adentrando o
continente e retornando às zonas costeiras, para que voltasse em um barco para Santa Helena.
Entretanto, alguns missionários o convenceram que tal rota seria impraticável, seja pela falta de
água, seja pelas tribos hostis ao longo do percurso. Contrariado, Burchell decide atrasar sete
meses sua expedição. Em 19 de julho de 1811 ele iniciou a viagem que duraria quase quatro anos.
Burchell locomovia-se ora em seu vagão à tração animal – lotado com mais de cinquenta
livros, suas aquarelas e a bandeira inglesa usada somente aos sábados- ora em cavalos. Uma de
suas célebres pinturas sobre a África do Sul versa a respeito de seu vagão, desenho este que lhe
custou, em suas palavras, 120 horas – quatro dias de esboços e 27 de pintura- o que nós dá uma
| 214

estimativa de tempo gasto em seus desenhos366. A partir de setembro do mesmo ano Burchell
segue sua jornada, que cobre cerca de 4.500 milhas sem companhia, exceto de seus empregados
locais.

Figura 146 William Burchell, “Interior of my African Wagon". Óleo sobre tela, 1822.

Fonte: < http://www.scielo.org.za/scielo.php?pid=S0256-


95742012000400023&script=sci_arttext > acesso em. 04 maio 2014.

O botânico apresenta-nos os matizes de um exemplo de paisagem africana no excerto


abaixo; é notável a presença do conceito de pitoresco pelas linhas de sua descrição e a tentativa
de imprimir no papel suas impressões sobre aspectos de matizes e relevos da paisagem:
A luz do sol da manhã seguinte nos trouxe uma desolada, selvagem e singular
paisagem. De nosso acampamento no topo de uma descida íngreme, as
montanhas de Karrebergen apareceram diante de nós. A única cor que vimos
foi um marrom estéril, suavizado por tons de azul e roxo à distância, o olho
procurou algum tom de verde; nada mais do que rochas e pedras espalhadas
por toda a parte. Mas o que tornou a vista mais marcante, foram as formas das
montanhas, apresentando uma multiplicidade de planos, cumes de diferentes
alturas, larguras, e criando a idéia de um cojunto de ―table mountains‖. 367 Eu
fiz um desenho minucioso de uma parte deste ponto de vista, inclusive, em
primeiro plano, uma parte de nossa caravana, os vários grupos formados por
esses elementos pitorescos e interessantes368.

366 Essa informação nos será importante na discussão sobre a escolha de técnicas para a representação de cada cidade
brasileira.
367 ―Table mountains‖ é uma menção a uma grande montanha perto da Cidade do Cabo denominada ― Tábua do

Cabo‖ ou ―Montanha da Mesa‖, nome recebido graças a sua característica de planalto.

368 BURCHELL apud BROWN op. Cit. p. 219 tradução nossa.


| 215

Figura 147 William Burchell, Part of the caravan going across the Karoo. Gravura, 1822.

Fonte: < http://trailriderreports.blogspot.com.br/2010/05/klaarwater-griekwastad.html> Acesso em: 04 maio 2013.

Em outro trecho, apresenta-nos sua descrição das margens do Rio Orange (River Gariep
nas anotações de Burchell) e mostra-nos sua visão de que ciência e arte estão intrinsecamente
ligadas. Sua explanação aproxima-se mais da literatura de viajantes corrente do que de uma análise
puramente científica. Pode-se observar que sua pintura tenta registrar todos os aspectos da
descrição, desde a incandescência da luz solar sob a superfície do lago, as ondulações da água e a
presença do salgueiro inclinando-se em direção ao rio:

A água brilhando sob o sol ardente, me chamou a atenção para a paisagem


arborizada e a poucos passos abrindo-se para uma encantadora vista tão
fantástica quanto poderia imaginar. Se os sentimentos de um entusiasta da
paisagem natural podem ter ingluenciado meu julgamento eu não poderia dizer,
mas posso afirmar que, quem quer que visite as margens do Gariep, e não sentir
tanto prazer e admiração, deve ser um indivíduo frio de fato, e muito deficiente
em gosto ou sensibilidade [...]a água do majestoso rio, que flui em um amplo
espaço semelhante a um lago translúcido suave, parecia -com suas ondulações
gentis- beijar as margens e acenar adeus para todo o sempre, uma vez
deslizando seu caminho para o oceano inquieto, imprimem sobre seu espelho
límpido a imagem de seus bancos de madeira , enquanto os salgueiros caídos se
inclinam sobre o espelho d‘água, como se não quisesse perdê-lo, e os longos
ramos pendentes longas, mergulham seus galhos frondosos no fluxo. [...] Aqui
eu poderia ter descansado o dia todo, aqui eu poderia ter feito a minha morada
para meses: aproveitando a sombra agradável e inalando o ar refrescante.
Extasiado com as sensações agradáveis que o cenário me inspirava, sentei-me
no banco por um longo tempo contemplando a serenidade e a beleza da
vista369.

369 Martins, 2001, P. 123.


| 216

Figura 148 William Burchell, Desenho de Burchell representando o Rio Gariepe.

Fonte: < http://trailriderreports.blogspot.com.br/2010/05/klaarwater-griekwastad.html>


Acesso em: 04 maio 2013.

Burchell também desenhou> aacesso em. 04sul-africana,


maio 2013. que sofreu influências holandesas,
arquitetura
inglesas e dos povos nativos, como podemos observar nas seguintes ilustrações seguidas pelo
aspecto das construções nos dias de hoje:

Figura 149 Residência em Tulbagh.

Fonte: < http://trailriderreports.blogspot.com.br/2010/05/klaarwater-


griekwastad.html> acesso em:09 de maio de 2013.

> acesso em. 04 maio 2013.


| 217

Figura 150 A mesma residência em Tulbagh atualmente.

Fonte: < http://trailriderreports.blogspot.com.br/2010/05/klaarwater-


griekwastad.html> acesso em: 09 de maio de 2013

> acesso em. 04 maio 2013.


O viajante retornaria à Inglaterra em 1815, com mais de 50.000 espécies, muitas destas
doadas ao Museu Britânico. Infelizmente, muito desse material sofreu danos irreparáveis, devido
à má alocação e manejo na instituição, o que provocou uma disputa entre Burchell e as
autoridades da instituição, resultando em um grande ressentimento por ambas as partes.
Em 1825 Burchell empreendeu nova viagem. Desta vez, ele viajou ao Brasil, percorrendo
o país por cinco anos, onde mais uma vez coletou um grande número de espécimes, incluindo
mais de 16.000 insetos, 362 espécies de aves e 260 desenhos da paisagem. Sobre a viagem ao
Brasil, falaremos posteriormente. Voltou à Inglaterra por pedidos da família, uma vez que seu pai
adoeceu gravemente. Seu pai falece logo depois de sua chegada.
Ao chegar à Inglaterra, Burchell descobriu que havia sido nomeado executor dos bens de
seu pai e de seu amigo, RA Salisbury, o que de certa forma auxiliou em seus recursos, uma vez
que todas as despesas do financiamento de sua viagem foram custeadas pelo próprio botânico.
Em 1832 foi eleito para o Comitê da Associação Britânica para o Avanço da Ciência e dois anos
depois a Universidade de Oxford lhe conferiu Doutorado honoris causa. A extensão do seu
reconhecimento público acaba nesses dois episódios. Em 1833 o botânico Swaison370 dedica-lhe
um de seus livros, escrevendo:
"À William John Burchell, o viajante africano... cujas descobertas têm
beneficiado todos os ramos das ciências naturais e cujos talentos -
desconhecidos e desestimulados pelo seu próprio governo – são respeitados e
admirados em todo o mundo civilizado‖371.

370 William Swainson foi um naturalista britânico, participante da comitiva de Henry Koster ao Brasil.
371 BROWN, op. Cit.
| 218

Burchell recebeu a proposta do governo prussiano de receber uma admirável pensão se o


mesmo estabelecesse em Berlim e levasse consigo sua coleção. Burchell preferiu permanecer em
solo inglês, presenteando o Museu britãnico com 43 de suas melhores telas, que foram
prontamente ignoradas. O excerto de uma carta endereçada à Sir W.J. Hooker, Diretor do Royal
Botanical Gardens, Kew, em 1835 demonstra o sentimento de desapontamento de Burchell (que
viria a se prolongar e intensificar ao final de sua vida):

A maneira pela qual você se expressa no que diz respeito às minhas coleções
botânicas, você parece estar sob impressões muito errôneas, para dizer que eu''
não quero publicar" é exatamente o oposto do que sempre foi minha intenção,
e foi quase o único prazer que eu tinha em minhas viagens para aliviar a fadiga
excessiva de fazê-las, foi a antecipação da gratificação de publicá-los no meu
retorno à Europa, e de obter a satisfação de ser útil para a ciência, e de garantir
as honras devidas às minhas descobertas: e se eu fui e ainda estou sendo
roubado destas honras por outros que têm menos em suas mãos do que eu e
podem participar da corrida de publicação com mais recursos, eu sinto a mais
injúria que eu sou vítima mais sensível.Depois de consumir grande parte dos
meus recursos financeiros para arcar com minhas viagens e da busca
desinteressada da ciência todo o resto da minha vida, a obtenção de assistência,
mediante o pagamento está completamente fora de questão.372

Sentindo-se cada vez mais preterido nas honrarias concebidas pelas autoridades inglesas
após todas as contribuições feitas em razão de suas constantes viagens, tornou-se uma figura
isolada e triste, demonstrando sinais de depressão e em constante convalência. No dia 23 de
março de 1863, aos 82 anos, Burchell tira sua vida em uma pequena estufa de seu jardim. O juíz
elencado para investigar sua morte chega à conclusão de que fôra um ―suicídio durante um
ataque de insanidade temporária‖, e acrescentou que não era o seu dever "investigar as causas que
levaram este grande homem a tomar este passo‖. Como se tratava de um suicídio, inicialmente foi
recusado um enterro cristão, entretanto, após a intervenção de uma de suas irmãs, Anna Burchell,
seu corpo foi enterrado perto de sua casa em Fulham, no túmulo da família no All Saints Church,
em Hammersmith.373 Anna Burchel, presenteia o Royal Botanical Gardens com os manuscritos,
coleções botânicas e desenhos fruto da passagem pela África do Sul e Brasil. Outros objetos,
pinturas e retratos encontram-se na biblioteca da Universidade de Witwatersrand em
Johannesburg, África do Sul e atualmente alguns de seus trabalhos encontram-se em coleções
privadas. Todos os manuscritos relativos à sua passagem pelo Brasil estão perdidos – irreversível

372 BROWN. op. cit. p. 18.

373 http://www.britishlistedbuildings.co.uk/en-506071-tomb-of-burchell-family. Acesso em: 11 nov. 2014.


| 219

ou temporariamente – sua correspondência é a única fonte, até o momento, de suas


reminiscências sobre os trópicos brasileiros.
Experiente pintor de paisagens tropicais, aliara seus conhecimentos de composição
artística e científicos para cobrir a visão de um exótico mundo que ganhava popularidade na
Europa. Embora muitos guias de botânica e zoologia frisassem a importância do registro de
dados perecíveis em esboços, datações e pequenos textos in loco, essa recomendação era pouco
seguida. A pesquisadora Anne Larsen, ao estudar os zoólogos científicos na Inglaterra vitoriana,
distingue duas categorias de dados considerados perecíveis: informações relativas ao conteúdo de
um ser vivo, tais como cor e formatos e informação em relação ao seu contexto, com descrições
de seu habitat natural. Como a autora expõe:

O exame detalhado das paisagens era um dos aspectos mais fundamentais da


história natural; os manuais de instrução usualmente ensinavam seus leitores
como observar, reunir e registrar espécimens que representassem os traços e
características particulares de uma região.374

Poucos naturalistas tinham as qualidades artísticas de Burchell, sua rapidez e qualidade em


observar, desenhar e coletar. Sua qualidade como desenhista é inegável e elogios são recorrentes
na historiografia sobre seu trabalho, mas é o momento em que o seu olhar capta a paisagem e o
pincel toca o papel e produz– e auxilia na circulação de - pré-conceitos, esquemas, lugares-
comuns, que nos interessa de sua obra.
Os primeiros passos a respeito da viagem de Burchell ao Brasil iniciaram-se quase quinze
anos antes de seu desembarque no Rio de Janeiro. Ainda em Santa Helena, em 1810, considerou
a viagem ao Brasil em detrimento à expedição na África do Sul, segundo relatos do diário de sua
estadia na ilha375. Cinco anos mais tarde, de volta à Inglaterra, conheceu e tornou-se amigo de
William Swainson, outro botânico explorador. Swainson intentava percorrer o interior da África
do Sul, mas tendo conhecimento de todo o volume da obra de Burchell, desistiu da viagem e
focou seus esforços em conhecer e explorar as terras brasileiras.
Swainson aportou em Recife em plena Revolução Pernambucana376, em março de 1817;
sua pretensão de seguir viagem rumo ao interior do Brasil foi abortada. Devido à recusa de seu
pedido de viagem, seguiu então para Salvador e Rio de Janeiro. Seria Burchell, oito anos mais
tarde, quem daria continuação a seu plano original, entusiasmado pelas descrições de Swainson

374 LARSEN apud LIMA, 2001. Op. cit.


375 MARTINS, 2001 p. 118. Op. Cit.

A Revolução Pernambucana foi um movimento emancipacionista que eclodiu no dia 6 de março de 1817 , para
376

mais informações acessar: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/revolucao_pernambuca.html


| 220

relativas ao Brasil em ocasião de sua volta à Inglaterra. Burchell a essa altura, já categorizara o
material de sua viagem à África do Sul e publicara suas notas e desenhos nos dois tomos de
―Travels in the Interior of Southern Africa‖ (1822 e 1824, respectivamente), conferindo-lhe
conhecimento e certo prestígio nos meios científicos e seguia realizando suas pesquisas e estudos
na Inglaterra. Influenciado por Swainson, resolveu viajar ao Brasil377.
Aportou no Rio de Janeiro em 18 de julho de 1825, acompanhando a missão diplomática
de Sir Charles Stuart. O Rio de Janeiro oitocentista apresentava-se em todo o esplendor da mata
tropical e seus verdes matizes a delinear sua baía, em contraponto ao compacto casario acanhado.
O capitão do Beagle, navio que transportava Charles Darwin em sua expedição que visitou terras
brasileiras em 1832, chegou a atrasar sua entrada na baía para que os tripulantes pudessem ―ver o
porto do Rio e sermos vistos em plena luz do dia‖378. A admiração do primeiro encontro com a
paisagem tropical brasileira é descrita em uma carta enviada a R. A. Salisbury, datada do dia 14 de
agosto do mesmo ano:

Estava certamente muito enganado ao imaginar, na Inglaterra, o que seria


pertencer ao séquito de uma embaixada; porém agora estou na América do Sul e
tenho, pelo menos, a satisfação de encontrar (sic) a natureza, sob todos os
aspectos, sempre interessante. Quanto às riquezas botânicas destes país (o pouco
do que já vi), você não pode fazer uma ideia adequada mesmo imaginado todas
as magníficas plantas de nossas estufas crescendo livremente e cobrindo
montanhas e vales na sua máxima exuberância. No Cabo da Boa Esperança você
passeia por uma estufa profundamente provida; aqui, você passeia numa das
maiores estufas da Natureza. Montanhas, penhascos, florestas, riachos e plantas
de formas as mais exóticas, se entrelaçam da maneira a mais pitoresca e tentam-
nos, muitas vezes, a deixar a História Natural pela Pintura379

Como já mencionado, os diários de sua viagem no Brasil encontram-se, até o momento,


perdidos. Entretanto, são nessas correspondências que chegaram aos nossos dias em que
encontramos suas impressões sobre o Brasil, sua paisagem e suas características. Interessante
notar que embora seu material iconográfico possua diferenças em relação ao corpus iconográfico
existente das cidades brasileira como um todo (como veremos adiante), é aqui, no discurso
escrito, que o botânico não se distancia muito de outros viajantes, como Maria Graham, Auguste
de Saint-Hilaire e George Gardner, para citar alguns, quando demonstra seu encantamento com o

377 FERREZ, Gilberto. O Brasil do primeiro Reinado


378 DARWIN apud MARTINS, 2011 op. Cit. P. 15

379 BURCHELL apud FERREZ, 1981 op. Cit.


| 221

cenário carioca, em oposição às críticas à ―incipientes‖ e ―precárias‖ acomodações brasileiras (que


podem ser entendidas como uma crítica ao ―atraso‖ colonial)380:

Cheguei neste lugar no dia 18 do mês passado e por ter encontrado tanta
dificuldade em encontrar quartos convenientes, ainda sou obrigado a continuar
no sujo hotel lotado onde me abriguei primeiro. Não posso, portanto, perseguir
minhas operações científicas com muita facilidade mas eu me esforço em fazer o
melhor em todos os sentidos que as circunstâncias permitam. [...] Passei uma
semana em Mandioca encantado com o rico cenário do Brasil, e fiz algumas
coletas nas proximidades do Rio de Janeiro. Vou começar minha viagem ao
interior, uma vez que fiz os preparativos necessários e recolhido as informações
mais importantes. [...] Se após o início da viagem tudo transcorrer bem, eu espero
conseguir realizar todo o plano de viagens que tracei, de qualquer maneira eu não
temo fazer uma excursão que será extremamente interessante para mim 381.

Outro fragmento de correspondência nos leva a traçar mais conexões entre os discursos
de Burchell sobre a cultura brasileira e demais relatos de viajantes europeus:

Este é um clima delicioso, mas os brasileiros são um povo extremamente


ignorante e anti-social. É um país bom para viajar com meus objetivos, mas
residir nele seria um desterro. As pessoas aqui, e em todo o Brasil, são tão lentas
em seus movimentos que toda a paciência se esgota quando se precisa negociar
com elas382.

Estabeleceu-se no Rio de Janeiro de julho de 1825 a setembro do ano seguinte,


empreendendo uma pequena viagem à província de Minas Gerais em novembro e outra à Serra
dos Órgãos, passando grande parte de seu tempo coletando observações astronômicas,
geológicas e recolhendo material botânico e entomológico. Esse grande período de permanência
no Rio pode ser explicado pela vontade de Burchell em familiarizar-se com a língua portuguesa e
os costumes locais, a exemplo de sua estadia na África do Sul. Enviou em novembro de 1825 os
primeiros desenhos e material coletado à Inglaterra, por intermédio de um membro da missão
Stuart. É nesse espaço de tempo que produz cerca de 40 desenhos e aquarelas da paisagem

380 Cf. DIAS, Olivia Basin. Viagens oitocentistas: A hospedagem no interior do Brasil e na cidade da Bahia disponível em:
http://www.eca.usp.br/turismocultural/olivia.pdf. acesso em: 04 maio 2013.
381 Carta de Burchell endereçada à Swainson, retirada da Swainson Correspondence Collection, cedidas gentilmente

pela Linnean Society of London.

Essa visão da ―exarcebada curiosidade brasileira‖é recorrente em relatos de outros viajantes, como os de George
382

Gardner e Richard Burton.


| 222

carioca, incluindo o panorama circular de três metros (em anexo e melhor comentado
posteriormente), no qual ―dedicou 5 ou 6 semanas ao desenho [do panorama] para ilustrar a
descrição desta cidade e arredores‖383 e realizou em seu trajeto pelo ―Novo Caminho‖ das Minas
Gerais, 20 desenhos até Paraíba do Sul, passando por Porto da Estrela, Serra da Estrela,
Mandioca e Padre Correa.
Para Salisbury ele enviaria outra missiva, no dia 5 de setembro de 1826, em que constava
seu primeiro – e ambicioso- planejamento de viagem:

Meu plano e desejo é... explorar as províncias de São Paulo, Goiás, Cuiabá, e
Mato Grosso. Então atravessar para o Peru tendo, como principal objetivo,
uma curta estadia na cidade de Cuzco, para examinar as interessantes ruínas e
antiguidades do império dos incas, tanto lá como na região em torno do lago
Titicaca [...] Tendo completado minhas observações em Cuzco, eu rumaria para
o sul e visitaria os locais mais notáveis e interessantes dali até Buenos Aires,
onde minhas viagens acabariam.384

Entretanto, como o próprio admitiria mais tarde ser ―muito mais fácil marcar uma linha
interessante de roteiros num mapa do que traça-la no próprio país‖385, a última etapa de sua
intenção de viagem, que tratava sobre a travessia ao Peru e demais regiões sul-americanas, não
pôde ser realizada.
Seguiu viagem, por mar, a Santos, permanecendo três meses na cidade. Viajou para São
Paulo e chegou em janeiro de 1827.Durante seis meses visitou os arredores da cidade,
preparando-se para o restante da viagem.

Em plena época de chuvas, chegou a Goiás, detendo-se na cidade por nove meses. De
seu período em terras goianas foram realizados 22 desenhos, dentre eles dois panoramas da
cidade de Vila Boa, sendo as primeiras descrições tomadas por um estrangeiro europeu na
província386. Burchell foi o primeiro naturalista inglês a visitar Goiás, sendo precedido em sua
viagem pelo francês Auguste de Saint-Hilaire, pelo alemão, Johann Emanuel Pohl, ambos em
1819, e pelo português Cunha Mattos, em 1823387. Enquanto recuperava forças e herborizava,
recebeu a notícia de que seu pai adoentara-se e dessa forma abdicou do restante da viagem que

383 BURCHELL apud MARTINS, 2001 p.118 op. Cit.


384 ibidem.

385 ibidem.
386Gilberto Ferrez afirma que há apenas duas representações mais antigas que as de Burchell da cidade de Villa Boa,
realizadas em 1751, de origem desconhecida e em 1782 pelo então Governador e capitão General da Capital de
Goyaz e que os mesmos ―são da mais alta importância histórica, mas de traços infantis, com perspectivas falhas e
nada comparáveis com a perfeição dos de Burchell, com os quais o serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional poderia reconstruir qualquer edifício da época‖. (FERREZ, 1981, p.19).

387 FERREZ, 1981, p.18.


| 223

inicialmente havia planejado e seguiu em direção ao Pará.


Entre o caminho de Goiás até Belém do Pará, descendo o Tocantins, são exatamente 34
desenhos, de extrema importância, pois desse trecho, são os únicos conhecidos. Sobre a
passagem de Burchell pelos arredores de Natividade (pertencente hoje à Tocantins), o viajante
inglês George Gardner discorre:

Em minhas visitas a este lugar fui sempre hospitaleiramente acolhido pelo


capitão Batista, português idoso ali estabelecido desde muitos anos e sogro do
proprietário da fazenda Sociedade. Falava frequentemente de Pohl e Burchell,
ambos os quais se demoraram algum tempo em Arraial e de quem parece que
foi íntimo388.

Em novembro de 1928 alcançou Porto Real389, onde permaneceu à espera de momento


oportuno para embarcar e descer o Rio Tocantins, chegando em junho de 1829 ao Pará. Em ―O
Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo‖, os viajantes norte-americanos James Cooley
Fletcher e Daniel Parish Kidder390 comentam sobre a estadia de Burchell no Pará:

Ouvi falar que Burchell residiu por algum tempo no Pará; mas receio, que,
durante essa estada aí, a sua idade avançada não o tenha deixado estar à altura
da sua própria reputação ou dos intermináveis domínios naturais que se abriam
diante dele. 391

Burchell mostrar ia-se muito mais ativo do que Fletcher e Kidder imaginaram. O botânico
finalizou sua estadia no Brasil de maneira semelhante ao seu início: Um grande panorama da
cidade do Pará (atualmente Belém do Pará); até o presente momento perdido; contudo, seu índice
remissivo (onde consta a localização de edifícios públicos, ruas e residências de personagens
ilustres da cidade)foi encontrado por Ferrez, insinuando a minuciosidade com que a cidade foi
tratada em seu desenho.
Esperaria até fevereiro do seguinte ano para embarcar em um navio para a Inglaterra,
devido à dificuldade de transportes para a Europa. Levou consigo uma vasta coleção de 7.200
espécies de plantas coletadas e quase 260 desenhos e aquarelas de nossas paisagens. Escreveria
depois ao Dr. Hooker, em 1930, afirmando que:

Das belas coisas publicadas por Saint-Hilaire, Martius e Pohl, a maioria é por
mim conhecida assim como muitas não foram anotadas por eles. Ao escrever

388GARDNER, George. 1975. Viagens ao interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do
ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo.
389 Atualmente Porto Nacional.

FLETCHER, James C.; KIDDER, D. P. O Brasil e os brasileiros- esboço histórico e descritivo. São Paulo:
391

Companhia Editora Nacional, 1941.


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sobre estas maravilhas que descobri, perco a paciência por me sentir como que
com as mãos atadas 392.

O restante de sua trajetória já nos é conhecida; Burchell, de volta à sua casa em Fulham,
iniciou a classificação do material colhido no Brasil, entretanto nunca chega a publicá-lo. A
manipulação e reetiquetagem da coleção brasileira levariam 33 anos de sua vida restante. Alguns
autores, dentre eles Edward Poulton e Luciana Martins apontam a inabilidade de Burchell em
sistematizar seus conhecimentos sobre a flora brasileira por questões relativas às especificidades
do contexto científico inglês, no qual os sistemas de classificação não seriam capazes de receber a
―profusa riqueza‖ da natureza brasileira.

392 BURCHELL apud FERREZ, 1981. P.27.


225
APÊNDICE B - Itinerário de William John Burchell no Brasil.

IDA - 1830

CHEGADA - 1825

Fonte: Google, 2014. INEGI, Inav/Geossistemas. Base IBGE

LEGENDA
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anexos

Anexos
226

ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.

20

14

Fonte: FERREZ, 1966.

Fonte: FERREZ, 1966. Fonte: FERREZ, 1966.


227

ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.

Fonte: FERREZ, 1966.

Fonte: FERREZ, 1966. Fonte: FERREZ, 1966.


228

ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.

Fonte: FERREZ, 1966.

Fonte: FERREZ, 1966. Fonte: FERREZ, 1966.


229

ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.

Fonte: FERREZ, 1966.

Fonte: FERREZ, 1966. Fonte: FERREZ, 1966.


ANEXO B - William John BurchelL [Street (Rua do Cano, Rio de Janeiro)]. c.1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO C - William John BurchelL [The English Burial Grounds (Gamboa. [Cemitério dos Ingleses, na Gamboa]. Grafite e aquarela sobre papel. c. 1825-1826.
Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO D - William John BurchelL Ponte do Catete, 1825. Aquarela.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO E - William John BurchelL [Street in the Town of Santos](Rua na cidade de Santos). c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO F - William John BurchelL [San Bernardo (between Cubatão and São Paulo)] c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO G - William John Burchell [Monastery of S. Bento, at St. Paul’s] (Mosteiro de São Bento, em São Paulo) c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel.

Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.

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