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NATAL/RN
2014.2
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte / Biblioteca Setorial de Arquitetura.
RN/UF/BSE15 CDU 72
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Professor Dr. George Alexandre Ferreira Dantas – UFRN(Orientador)
____________________________________________________
Professor(a): Dra. Angela Lúcia de Araújo Ferreira – UFRN
(Examinador interno)
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Dr. Pedro Antonio de Lima Santos
(Examinador externo)
Natal / RN
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Agradecimentos
Obrigada por ser uma amiga maravilhosa e uma irmã que o destino me deu, Rebeca Grilo!
Por me fazer um pouco menos cínica e por fazer repensar muitas atitudes (sobre amizade, inclusive).
Suas correções (os seus ganchos lindos e charmosos, kkk), seu carinho, seu ombro amigo, lágrimas
compartilhadas e conselhos foram muito mais que decisivos. Você sabe muito bem de tudo!
Ao meu orientador, prof. George Dantas, obrigada por ter me guiado durante esse longo
trajeto na Iniciação Científica e agora no TFG. Seu comprometimento e entusiasmo com a pesquisa e
com seu ofício são inspiradores. Pelas correções, incentivos, conselhos e puxões de orelha serei
sempre grata, eles foram essenciais. Obrigada por aturar meus rompantes Orinoco Flow, com toda a sua
paciência, agora que estou virando adulta (GRILO, 2013), prometo e-mails mais lineares. Ou não.
À professora Angela Ferreira, norteadora da minha vida acadêmica, obrigada pelos
ensinamentos diários, apontamentos precisos, palavras de incentivo e conselhos. São em mulheres
como a senhora que devemos nos espelhar. Jamais vou conseguir expressar a intensidade da sua
influência na minha formação, mas saiba que é enorme.
Ao meu ―irmão acadêmico‖ Ítalo Maia, pelas conversas, pela força, pelo carinho, pelas
mensagens de incentivo mútuo.
Aos professores do Departamento de Arquitetura, pelos ensinamentos e, por me deixarem
aprender com os erros. Em especial a Clewton Nascimento, Marizo Victor, Aldomar Pedrini, Paulo
Heider, Verônica Lima, Misslene Pereira, Ruth Ataíde e Françoise Valery. Deixo aqui minhas
desculpas por não ter sido uma melhor aluna, mas tenham a certeza que deixaram muito de seus
ensinamentos em mim. Ao professor Pedro Lima, que me encantou com a possibilidade de ver a
história do mundo pelas pátinas da cidade (e pelas explicações para as bobas perguntas de caloura).
Eugênio Fonseca, (Eugs querido), obrigada por ter enxugado tantas lágrimas (literalmente), pelos
inúmeros e sábios conselhos; definitivamente eu não teria terminado esse curso sem suas aulas sobre
o mundo, sua amizade maravilhosa, seus livros, filmes, abraços e lanches. Agradeço à professora
Giovanna Paiva, pelo exemplo de integridade, compromisso com os alunos e pela alegria com que
sempre me tratou e à Paulo Nobre por toda a ajuda e carinho. Ainda falando em mestres, agradeço à
Professora Emilia Carvalho, pela leitura de sua inspiradora tese e por sua amizade além-mar.
Aos meus amigos de curso, em especial a todos os Arquitetônicos. Por tudo o que passamos
juntos ao longo desses cinco anos. Nossa amizade não entende o que é distância (ouviu, Dilma?).
Marília, Fernando, Mariana, Maísa, Cleyton, Lenilson, Maria, Iran, Nikeilany, Viviane, Érica, Ismara,
Ana Cristina, Maxwell, Kelben, Michel: Com vocês aprendi coisas inestimáveis, que nenhuma sala de
aula pôde me ensinar. Um obrigada especial a quem também me acolheu: Jessica, Gilnadson, Íris,
Larissa e Theo. ―Algum‖ arquiteto por aí disse que a amizade era fundamental. Estava certíssimo.
Aos pesquisadores do HCUrb, em especial à Désio, Adriano, Thamms, Luiza e Sthepanie:
obrigada pelo apoio e incentivo. Obrigada à Ana Raquel pela magnífica ajuda com a bibliografia e a
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Gabriel pelos constantes conselhos. Agradeço a um dos melhores professores que já tive: Yuri
Simonini (aka Coronel Starker) e minha companheira de pesquisa Debora (Tia Debbie), amiga
querida que com seus abraços, recadinhos, conselhos – e que conselhos!- e risadas compartilhadas
deixam meu dia mais bonito. E por falar em dias mais bonitos, um agradecimento especial à Seu
Mário, Dona Márcia, Dona Elza e à Neide: São vocês que fazem a Universidade funcionar e ficar
mais acolhedora.
A pesquisa não é uma atividade tão solitária assim; há sempre pessoas maravilhosas que nos
ajudam a encontrar as pistas e a atravessar as veredas com mais tranquilidade. Agradeço à presteza e a
dedicação da Professora Maria Cristina Wolff de Carvalho; À Lynn Parker, curadora-assistente da
seção de Artes e Ilustrações do Royal Botanic Gardens (Kew) e à Kiri Ross-Jones, arquivista da
mesma instituição; Ao Instituto Moreira Salles, em especial nas pessoas de Jovita Santos e Julia
Kovensky (especialmente pelas ilustrações cedidas tão gentilmente a respeito de Burchell e pela
presteza com que sempre me trataram); À Kate Santry, chefe dos Arquivos de coleções do Museu de
História Natural de Oxford; À Maya Donelan, secretária da Fullham Society de Londres; Ao Roger
Stewart, pesquisador de Cape Town, pela gentileza ao me indicar bibliografia; e à Elaine Charwat,
bibliotecária do Linnean Society of London. Obrigada pela gentileza e desculpas de antemão pela
imaturidade acadêmica em tratar deste material riquíssimo.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ser um espaço de tanto aprendizado,
que me proporcionou um ambiente acolhedor para meu crescimento acadêmico e pessoal, espero
retribuir todo o investimento em minha formação. Agradeço à PROPESQ por me proporcionar
meios para a realização de minha pesquisa ao longo destes anos como I.C.
“Last but not least”, agradeço a dois personagens que me tiraram o sono ao longo desse ano: O
meu gato Félix, por sempre me lembrar que já eram 03:00 am e ao protagonista deste trabalho, pela
sua coragem e talento: William John Burchell.
RESUMO
O Brasil do início do século XIX mostrar-se-ia um rico panorama de novas formas, cores e
costumes à um público estrangeiro cada vez maior, principalmente após a Abertura dos Portos
em 1808. A figura do naturalista inglês William John Burchell destaca-se dentre esse grupo,
sobretudo pela sua obra, onde converge a poética das descrições do período romântico e o rigor
da representação das ciências naturais. A pesquisa apresentada busca compreender o papel da
obra de Burchell na construção das representações sobre a paisagem urbana oitocentista,
contribuindo ao debate sobre a formação das representações sobre a cidade colonial. A análise
fundamentou-se na revisão bibliográfica, com enfoque na problematização do material
iconográfico produzido por Burchell como fonte historiográfica sobre o assunto e na análise da
iconografia elencada por meio de sua leitura formal e interpretativa. Os primeiros resultados
apontam dissonâncias entre a obra de Burchell e o corpus iconográfico dos demais viajantes:
Burchell apercebe-se da unidade arquitetônica colonial; porém, acura o olhar e distingue outras
influências em nossa arquitetura, (como a herança indígena) e avança acima da homogeneização
tão recorrente na historiografia do tema. Os arraiais e vilas do Brasil são por vezes apresentados
em intenso movimento, um contraponto aos discursos dos viajantes que os percorreram,
demonstrando que o olhar de Burchell vai se adequando e apreendendo sobre o Brasil à medida
que segue viagem.
Palavras-Chave
Representações- viajantes – iconografia.
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ABSTRACT
The Brazil of the early nineteenth century would show a rich panorama of new shapes, colors
and costumes to a growing foreign public, especially after the opening of the Ports in 1808. The
figure of the English naturalist William John Burchell stands out among this group, especially for
his work, which converges poetic descriptions of the Romantic period and the accuracy of the
representation of the natural sciences. The research presented here seeks to understand the role
of work in constructing the Burchell's representations of nineteenth century urban landscape,
contributing to the debate on the formation of representations of the colonial city. The analysis
were based on literature review, focusing on the problematic of iconographic material produced
by Burchell as historiographical sources on the subject and analysis of iconography listed through
its formal and interpretive readings. The first results indicate dissonance between Burchell's work
and the iconographic corpus of other travelers: Burchell realizes the colonial architectural unit.
However, improves the look and distinguishes other influences in our architecture (such as
indigenous heritage) and moves above the homogenization so recurrent in the historiography of
this subject. The camps and villages of Brazil are sometimes presented in intense movement, a
counterpoint to the discourses of travelers who visited them, demonstrating that Burchell's
perception will be suiting and seizing on Brazil as it continues its journey.
Keywords:
Representations - travellers- iconography.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Caio Prado Jr. Aspecto do arraial de Rio do Peixe- MG. Fotografia. Fundação Caio
Prado Júnior. ............................................................................................................................................... 34
Figura 2 Caio Prado Jr. Ruínas de igreja em Rio do Peixe-MG. Fotografia. Fundação Caio Prado
Júnior. .......................................................................................................................................................... 34
Figura 3 Leonardo Da Vinci, A última Ceia. Afresco, 460 cm x 880 cm. (1495–1498). ................. 44
Figura 4 Pietro Fabris, Descobrimento do Templo de Isis em Pompéia (ca. 1740) ........................ 48
Figura 5 Thomas Ender, Cercanias de Botafogo, 1817/1818. ............................................................ 49
Figura 6 Thomas Ender, Porto Estrela, 1818. ....................................................................................... 49
Figura 7 Philippe de Loutherbourge, ―Avalanche nos Alpes‖, 1803. Nota-se as características do
estilo sublime nas cores e teatralidade da cena. ..................................................................................... 51
Figura 8 Camille Corot, Souvenir de Mortefontaine, exemplo de pitoresco nas artes, notar as
cores esmaecidas e o sfumatto empregado. ........................................................................................... 51
Figura 9 Maria Graham, "Vista do Corcovado". Notar a utilização de cores (que não condizem
com os reais matizes) para acentuar a idéia de diversidade vegetal. ................................................... 52
Figura 10 Nicolas-Antoine Taunay, O exterior de um hospital militar, Italia................................... 54
Figura 11 Nicolas-Antoine Taunay, Rio de Janeiro. óleo sobre tela. ................................................. 54
Figura 12 São Sebastião do Rio de Janeiro na obra "Reys-boeck van het rijcke brasilien" (ca.
1624) ............................................................................................................................................................ 56
Figura 13 Frans Post, Vista de Olinda, 1662. ........................................................................................ 57
Figura 14 Frans Post, Paisagem com plantação (O Engenho), (1668). ............................................. 58
Figura 15 Félix Émile Taunay, Baía de Guanabara vista da Ilha das Cobras, c.1828. óleo sobre
tela. ............................................................................................................................................................... 59
Figura 16 Nicola Facchinetti, Lagoa Rodrigo de Freitas, óleo sobre tela. ......................................... 59
Figura 17 Vista do Largo da Matriz (Praça do Coreto), Vila Boa de Goiás em 1751. Desenho de
Tosi Colombina .......................................................................................................................................... 60
Figura 18 Detalhe da prancha n° 189 – ―Goyaz‖, lápis aquarelado de Burchell - Matriz de Goyaz
–12-05-1828. ............................................................................................................................................... 60
Figura 19 Maria Graham, aspecto de Laranjeiras, fora dos limites do Rio de Janeiro, 1821.
Desenho integrante do Journal of a Voyage to Brazil ................................................................................ 61
Figura 20 Maria Graham, São Cristovão (ao fundo, o Paço), 1823. Aguatinta. ............................... 62
Figura 21 Thomas Ender, Paço de São Cristovão.1817. Aquarela. À esquerda, detalhe da
construção. .................................................................................................................................................. 64
Figura 22 De la Michellerie, Paço de São Cristovão. Circa 1830-1834. Desenho retocado à
aquarela sobre papel. ................................................................................................................................. 65
Figura 23 Maria Graham, Gameleira....................................................................................................... 65
Figura 24 Jean Baptiste Debret, Entrudo. 1823. ................................................................................... 67
Figura 25 Thomas Ender: Vista da Enseada de Botafogo, 1817.Oléo sobre tela. Acervo particular
(coleção Geyer)........................................................................................................................................... 69
Figura 26 Eduard Hildebrandt. Rua Direita, Rio de Janeiro. óleo sobre tela................................... 70
Figura 27 Eduard Hildebrandt. A Glória, Rio de Janeiro, 1846. Óleo sobre tela. .......................... 71
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Figura 28 Felix Émile Taunay, Rua Direita, Rio de Janeiro, 1823. Aquarela sobre papel, coleção
particular ...................................................................................................................................................... 72
Figura 29 Johann Moritz Rugendas, Rua Direita. Litogravura. ........................................................... 72
Figura 30 Emil Bauch, Vista da Rua Direita, segunda metade do século XIX. ................................ 73
Figura 31 Thomas Ender: Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro, 1817-1818. Pena e sépia
sobre papel, 27,2 x 43,3 cm. À direita, um detalhe do desenho. ......................................................... 74
Figura 32 Thomas Ender, ―Arredores do Rio de Janeiro‖1817 óleo sobre tela 104 x 188 cm ...... 74
Figura 33 William Gore Ouseley. Ruínas da Capela de São Gonçalo, Bahia. Bahia, 1852. ............ 76
Figura 34 Thomas Ender, Nos arredores do mangal de S. Diogo. Nanquim e aquarela sobre
papel. ............................................................................................................................................................ 76
Figura 35 Armand Julien Pallière, Vila Rica por Armand Julien Pallière, 1820. Litogravura .......... 78
Figura 36 Piero della Francesca, View of an Ideal City. ....................................................................... 86
Figura 37 Claude Lorrain, the Embarkation of Saint Paula for Jerusalem, 1639. Óleo sobre tela,
100.9 x 135.2 cm. ....................................................................................................................................... 86
Figura 38 Claude Lorrain, Landscape With A Sacrifice To Apollo, 1639-40. Oleo sobre tela ...... 86
Figura 39 Robert Barker, panorama da cidade de Edinburgh, Escócia. Óleo sobre tela, 1783 ..... 88
Figura 40 Imagens da rotunda de Leicester, projetada por Mitchell. ................................................. 89
Figura 41 Charles Landseer, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, 1825. 91
Figura 42 Friedrich Salathé, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, água-
tinta, 65 x 123,7cm, 1826 .......................................................................................................................... 92
Figura 43 Benjamin Mulock, Panorama de Salvador. Fotografia. ...................................................... 93
Figura 44 Benjamim Mary, Panorama do Rio de Janeiro, 1835. Grafite, nanquim e aquarela sobre
papel, 30,3 X 312,4 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo.............................................................. 95
Figura 45 Johann Jacob Steinman, Rio de Janeiro visto a partir do morro de Santa Teresa, 1834.
...................................................................................................................................................................... 96
Figura 46 Jean-Julien Deltil (baseado em desenhos de Johann Moritz Rugendas), Vistas do Brasil,
Primeira metade do século XIX. Acervo Instituto Moreira Salles. Aquarela sobre papel, 451 x
1541 mm...................................................................................................................................................... 97
Figura 47 Papel de parede atualmente impresso pela Casa Zuber, nota-se que os desenhos
continuam idênticos ao original. .............................................................................................................. 98
Figura 48 Sala de jantar da Embaixada brasileira em Moscou, Rússia. Notar o emprego do
referido panorama. ..................................................................................................................................... 98
Figura 49 Johann Moritz Rugendas, "Brasilien", imagens que tentam resumir as paisagens
brasileiras. .................................................................................................................................................... 99
Figura 50 Felix-Émile Taunay, Panorama do Rio de Janeiro, 1824. ................................................ 100
Figura 51 Jacob Steinmann, possível base para ampliação do panorama do Rio de Janeiro, 1824.
.................................................................................................................................................................... 101
Figura 52 William Burchell, Panorama do Rio de Janeiro. Lápis, 1826. .......................................... 103
Figura 53 William Burchell, uma das 8 folhas do panorama em 360 graus da cidade do Rio de
Janeiro, olhando em direção Nordeste, mai/jun 1826. ...................................................................... 104
Figura 54 William Havell, Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre tela, 1827. .................. 109
Figura 55 William Havell, Garden Scene on the Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre
tela, 1827.................................................................................................................................................... 109
Figura 56 Alfred Martinet, O Passeio Público. Gravura, 1847. ........................................................ 110
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Figura 57 W. Loeillot, Entrada do Passeio Público no Rio de Janeiro. Gravura, 1835. ................ 111
Figura 58 África do Sul, vista da Cidade do Cabo, Baía da Mesa, e Tygerberg (Robbin Island),
1810. ........................................................................................................................................................... 111
Figura 59 Detalhe da imagem acima, o homem embaixo do guarda-sol é o próprio Burchell que
se autorretratou. ....................................................................................................................................... 112
Figura 60 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis ......... 112
Figura 61 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
.................................................................................................................................................................... 114
Figura 62 William Burchell, Casario colonial e o morro do Castelo ao fundo, 1825..................... 116
Figura 63 William Burchel, The English Burial Grounds (Gamboa. [Cemitério dos Ingleses, na
Gamboa]. Grafite e aquarela sobre papel. c. 1825-1826. ................................................................... 117
Figura 64 Maria Graham, Cemitério dos Ingleses. Litogravura. ....................................................... 118
Figura 65 Alfred Martinet, Cemitério dos Ingleses. Gravura ............................................................ 118
Figura 66 William Burchell, Casario da Praia Formosa, 1826. Lápis e aquarela. Acervo particular
.................................................................................................................................................................... 119
Figura 67 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto
Moreira Salles............................................................................................................................................ 120
Figura 68 William Burchell, Os arcos da Carioca vistos da rua Mata-Cavalos, atual Riachuelo,
1825. Lápis. ............................................................................................................................................... 122
Figura 69 William Gore Ouseley, Views of South America…1852. Litogravura. Biblioteca Nacional
.................................................................................................................................................................... 123
Figura 70 William Alexander, The Aqueduct in Rio de Janeiro, Litogravura. 1812. ...................... 123
Figura 71 William Burchll, Ponte coberta nas proximidades de Teresópolis, c.1825-1826. ......... 124
Figura 72 William Burchell, Vista a partir da estrada para o Rio, c. 1825-1826. Aquarela. Acervo
Instituto Moreira Salles ........................................................................................................................... 125
Figura 73 William Burchell, Vila de São Bernardo entre Cubatão e São Paulo, 1826. Aguada.
Acervo Instituto Moreira Salles. ............................................................................................................ 126
Figura 74 William John Burchell, São Paulo a partir da estrada para Santos, c 1825-1826.
Aquarela. Acervo Instituto Moreira Salles............................................................................................ 126
Figura 75 William Burchell ―Rua direita at Santos‖, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira
Salles........................................................................................................................................................... 127
Figura 76 William Burchell, a marinha do porto de Santos, 1826. Aguada. ................................... 128
Figura 77 William Burchell, Panorama de São Paulo, vista do Braz e caminho para o Rio de
Janeiro, 1827. Grafite e aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles ............................. 129
Figura 78 William Burchell, Ladeiras do Memória e dos Piques, 1827. Lapís aquarelado, 340 x
500 mm. ..................................................................................................................................................... 130
Figura 79 William Burchell, Convento e igreja do Carmo. 1827. ..................................................... 131
Figura 80 Jean Baptiste Debret, Igreja do Carmo, 1827. ................................................................... 131
Figura 81 William Burchell, Meiaponte, 1827. Lápis, 260 x 480 mm............................................... 132
Figura 82 William Burchell, Goiás Velho. Lápis. ................................................................................ 133
Figura 83 William Burchell, Ponte de Goiás Velho, s/d. 340 x 500 mm. Lápis............................. 134
Figura 84 William Burchell, Natividade, 1828. Lápis, 340 x 500m. .................................................. 135
Figura 85 William Burchell, Aspecto geral de Porto Real, 1829. Lápis............................................ 136
Figura 86 William Burchell, vista de Belém do Para, 1829. Lápis..................................................... 138
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Figura 87 Johann Moritz Rugendas, "Costumes do Rio", 1825. Gravura. ...................................... 146
Figura 88 Johann Moritz Rugendas, "Costumes da Bahia", 1825. Gravura. ................................... 146
Figura 89 Thierry Frères (gravação) Jean Baptiste Debret (original), Quinta da Boa Vista, desde o
ano 1808 à 1831. Gravura. ...................................................................................................................... 149
Figura 90 Jean Baptiste Debret, Rio de Janeiro. .................................................................................. 150
Figura 91 Jean Baptiste Debret, Café Torrado, 1826. Aquarela sobre papel, 15,4 x 19,6 cm.
Museus Castro Maya - IPHAN/MinC. Editado pela autora. ............................................................ 151
Figura 92 RUGENDAS, Johann Moritz. VENTA A REZIFFÉ (Venda em Recife). Domínio
Público. ...................................................................................................................................................... 153
Figura 93 Detalhe da figura "VENTA A REZIFFÉ (Venda em Recife)." ..................................... 153
Figura 94 Johann Moritz Rugendas - Carregadores de água, 1822-1825. Litografia e aquarela
sobre papel, 32,8 X 42,8cm .................................................................................................................... 154
Figura 95 Johann Moritz Rugendas - Vista do Rio de Janeiro nas proximidades da Igreja da
Glória, 1827-1835 Litografia e aquarela sobre papel, 32,8 X 42,8 cm ............................................. 154
Figura 96 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel,
413 x 541 mm. .......................................................................................................................................... 157
Figura 97 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto
Moreira Salles............................................................................................................................................ 158
Figura 98 William Burchell, Rua Direita em Santos, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira
Salles........................................................................................................................................................... 159
Figura 99 Johann Moritz Rugendas, Índios em uma fazenda de Minas Gerais, 1824. Litogravura
.................................................................................................................................................................... 161
Figura 100 Johann Moritz Rugendas, Lundu, c.1822-1825. Litogravura ......................................... 161
Figura 101 Johann Moritz Rugendas, [Casa de taipa no interior do Brasil], c.1822-1825. Grafite e
aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles ....................................................................... 161
Figura 102 Johann Moritz Rugendas, [Interior de um povoado com cavaleiros, Minas Gerais],
c.1822-1825. Grafite e aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles ............................... 162
Figura 103 Thomas Ender. Fábrica de pólvora. .................................................................................. 163
Figura 104 Thomas Ender, Fazenda Mandioca, 1825. Aquarela. ..................................................... 164
Figura 105 William Burchell[Belo exemplar de casa rural da baixada fluminense], 1825. ............ 166
Figura 106 William Burchell, Matriz e casas de Paraíba do Sul. ........................................................ 167
Figura 107 Detalhe da figura "Matriz e casas de Paraíba do Sul." Em que se vislumbra os
enquadramentos ....................................................................................................................................... 168
Figura 108 Enquadramento utilizado na edificação ............................................................................ 168
Figura 109 William Burchell, Church [na Ilha do Governador]. 140 x 210 mm. Aguada............. 169
Figura 110 William Burchell, Mosteiro de São Bento, em Santos. Aquarela. ................................. 170
Figura 111 Rua São Bento, com o mosteiro e a fonte ao fundo, em foto de Militão Augusto de
Azevedo. (albúmen com 10,5 x 17,2 cm. ) Acervo IMS. ................................................................... 170
Figura 112 Detalhe da figura ao lado, vista do Mosteiro de São Bento e a torre sineira da capela
de Nossa Senhora do Desterro. Acervo IMS. ..................................................................................... 170
Figura 113 William Burchell, Monastério Beneditino em Santos e casa e jardim onde W. J. B.
viveu, c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel, 215 x 448 mm. ................................................ 171
Figura 114 William Burchell, Capela de Santa Catarina, em Santos. c. 1826-1826. Acervo Instituto
Moreira Salles............................................................................................................................................ 172
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Figura 115 William Burchell, Rua em São Carlos (Campinas), 1827. 300 x 480mm. .................... 174
Figura 116 Detalhe da figura ―Rua em São Carlos (Campinas)‖. ..................................................... 174
Figura 117 Sistema construtivo da taipa de pilão. ............................................................................... 174
Figura 118 William Burchell, Rua do Quartel, 1827. Lápis aquarelado. 300 x 480 mm. ............... 175
Figura 119 William Burchell, Aspecto de Vila Franca (atual Franca), 1827. ................................... 176
Figura 120 Detalhe da figura "Aspecto de Vila Franca‖ .................................................................... 177
Figura 121 Esquema de beiral com galbo no contrafeito, típi co da arquitetura colono=ial. ...... 177
Figura 122 William Burchell, Cemitério dos ingleses. Observar a casa à direita ............................ 177
Figura 123 Detalhe da figura "Cemitério dos ingleses". ..................................................................... 177
Figura 124 William Burchell Ponte sobre o rio Tietê, 1827. 235 x 485 mm. Lápis ....................... 178
Figura 125 Detalhe da figura Ponte do rio Tietê: sistema de pau a pique ....................................... 178
Figura 126 Detalhe da figura Ponte do Rio Tietê: Palafita. ............................................................... 178
Figura 127 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis. ...... 179
Figura 128 Detalhe da figura "uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828 " :esteios 180
Figura 129 Ligação em meia madeira de encontro ............................................................................. 180
Figura 130 William Burchell, Interior de casa em Goiás Velho, 1827. Lápis.................................. 180
Figura 131 Dobradiça de cachimbo ou leme, comum nas edificações oitocentistas. Desenho de
Vasconcellos. ............................................................................................................................................ 181
Figura 132 Lêuncio Nobre, Janela superior do Aljube- Olinda, 2001. ............................................ 181
Figura 133 Thomas Ender, Interior de uma casa paulista, 1817. Aquarela. ................................... 181
Figura 134 William Burchell, presídio de São João das Duas Barras, no Araguaia. Sem data, grafite
sobre papel. ............................................................................................................................................... 182
Figura 135 Johann Moritz Rugendas, Acampamento de índios, 1824. Lápis e nanquim sobre
papel, 115 x 117 mm. .............................................................................................................................. 184
Figura 136 Johann Moritz Rugendas, Habitações de negros, c.1822-1825. .................................... 184
Figura 137 William Burchell, Igreja das Mercês, Pará. Grafite sobre papel, c.1829. ...................... 186
Figura 138 Detalhe do desenho anterior, relativo à Igreja das Mercês. ........................................... 186
Figura 139 Três retratos sucessivos de Burchell.................................................................................. 208
Figura 140 Churchfield House, residência da família Burchell, demolida em 1898. ...................... 208
Figura 141 William Burchell, País de Gales, vista do moinho próximo à queda d'água em
Aberdyllis, Neath, Glamorganahire. Lápis aquarelável, 23 agosto,1804 ......................................... 210
Figura 142 William Burchell, País de Gales, vista de Swansea. Lápis aquarelável, 31 agosto 1804.
.................................................................................................................................................................... 210
Figura 143 Uma vista próxima à Santa Helena................................................................................... 212
Figura 144 Mande's Battery. Lápis e aquarela, sem data. ................................................................... 212
Figura 145 Salsa de Praia (também comum no litoral brasileiro)representada pelo naturalista
William Burchell. Ipomea biloba, lápis e aquarela, sem data. ............................................................ 213
Figura 146 William Burchell, ―Interior of my African Wagon". Óleo sobre tela, 1822. ............... 214
Figura 147 William Burchell, Part of the caravan going across the Karoo. Gravura, 1822. ......... 215
Figura 148 William Burchell, Desenho de Burchell representando o Rio Gariepe. ....................... 216
Figura 149 Residência em Tulbagh. ..................................................................................................... 216
Figura 150 A mesma residência em Tulbagh atualmente. .................................................................. 217
| 17
SUMÁRIO
Preparativos para a
Viagem:
Considerações iniciais
―Toda estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo leve demais para
se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos
sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na
mentira do encantamento a verdade se casa à estória.‖
1 A circulação das publicações relativas ao Brasil na Europa será tratada adiante, no capítulo 2.
2 GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Diplomacia Brasileira e Política Externa: Documentos Históricos (1493 – 2008). Rio de
Janeiro: Contraponto, 2008.
| 20
XVI. Este período de grandes navegações, que correspondia à segunda fase do Renascimento,
seria carregado fortemente pelo gosto do fantástico e misterioso na literatura de viagem, forte
herança do imaginário medieval europeu3.
O cenário relativo às descrições sobre o Brasil sofreria mudança significativa no início do
século XIX. Com a Abertura dos Portos e a transferência da Corte Real Portuguesa, em 1808, o
contingente de europeus em terras brasileiras aumentaria consideravelmente. O Oitocentos
mostrar-se-ia um período de intensas transformações em algumas cidades brasileiras, ao passo
que em tantas outras o período de transformações ocorreria de forma mais dilatada, chegando,
em muitos casos, à quase estagnação de seu crescimento urbano. As transformações não
ocorreram com mesma intensidade e em sincronia; a ação mostrar-se-ia muito mais complexa e
descontínua.
Os motivos para que essas mudanças se revelassem distintas em cada lugar foram, muitas
vezes, de ordem econômica, politica e geográfica4. Recife, por exemplo, já era, no inicio do
século XIX, uma cidade de papel importante nos processos econômicos do país; sua paisagem
urbana fora bastante alterada nos séculos anteriores, no contexto da tomada pelos holandeses da
região, especialmente durante o período do governo do conde João Maurício de Nassau-Siegen
(1637-1644) 5. Os esguios sobrados, herança neerlandesa, assistiriam a abertura de novas vias e a
arborização das ruas no século XIX. São Paulo, à época ainda uma pequena cidade, só assistiria
mudanças significativas a partir da segunda metade dos Oitocentos, mais precisamente na década
de 1870, crescimento impulsionado pela produção cafeeira. Outra transformação iminente
ocorreria nas cidades do norte do Brasil, com a produção da borracha, à época da abertura dos
portos brasileiros, as cidades ainda seriam pequenas.
Se algumas cidades estariam na expectativa de crescimento, outras estariam em declínio
das suas atividades econômicas mais lucrativas, como no caso das cidades mineiras, que viram o
resplendor aurífero dos Setecentos perderem seu brilho já no século XIX, o que ―cristalizou‖ a
urbe mineira durante este tempo. Por outro lado, Salvador teria papel importante nos processos
econômicos da colônia desde o início de sua colonização, visto sua condição de antiga capital da
colônia e também passaria por mudanças em sua estrutura urbana à época. A cidade do Rio de
Janeiro, alçada à condição de sede do império português em 1763, seria protagonista dessa
3 LE GOFF. Jacques. O maravilhoso no Ocidente Medieval. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa.
Edições 70. 1983, p. 263-270.
4 ARAGÃO, Solange Moura Lima de . A cidade brasileira na pintura dos viajantes e na fotografia do século XIX. In: V
Encontro de História da Arte - 20 anos de História da Arte na UNICAMP - 2009, 2009, Campinas. V Encontro de
História da Arte - 20 anos de História da Arte na UNICAMP - 2009, 2009. p. 137-143.
alteração com a chegada da Corte, suas reformas prosseguiriam pelas décadas seguintes. Como
ponto de partida, como área de permanecia prolongada ou até mesmo como última parada antes
da volta à Europa, diversos viajantes estrangeiros aportaram na Guanabara, providos de lápis,
carvão, aquarelas e cadernos de anotações, prontos e na expectativa de representar a exótico
cenário que se descortinava aos olhos já enfastiados do constante azul oceânico. Uma bagagem
muito menos visível também seria transportada lado a lado a seus pertences, como veremos a
seguir.
Se a chegada à cidade do Rio de Janeiro ocorresse no período da manhã, as impressões
seriam conduzidas pelas vivas cores da paisagem, imersa em um ―perpétuo verão‖6, e adornada
com ―a coroa de granito mais maravilhosa (sic) que a natureza tenha preparado à capital de um
império‖7 , ―transmitindo um tom violáceo‖8 ao envolver as serras e suas sombras que ―parecem
riscadas de rosa e púrpura‖9. Os matizes da floresta resplendem no ―verde vivo da esmeralda e o
amarelo, brilhante do ouro polido‖10.
Caso o desembarque ocorresse à noite, a cidade apresentar-se-ia numa escuridão
pontilhada pelas poucas luzes dos lampiões à base de óleo existentes, quase um reflexo da
abóbada celeste. Se o viajante tivesse a oportunidade de adentrar a baía em noites festivas, teria a
oportunidade de vislumbrar a chamada alvorada, momento no qual, sob edital da Câmara
Municipal, toda a população era convidada a iluminar a frente das suas casas nas noites de
6KIDDER, Daniel P.; FLETCHER, James C. O Brasil e os brasileiros. 2 vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1941. P.02. Disponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/o-brasil-e-os-brasileiros. Acesso em: 11 set.2014.
7 LEITÃO, Candido de Melo. O Brasil visto pelos ingleses. Viajantes ingleses. Companhia Editora Nacional, 1937.
Disponível em: < http://www.brasiliana.com.br/obras/o-brasil-visto-pelos-ingleses-viajantes-
ingleses/pagina/104/texto> Acesso em: 11 de setembro de 2014. P.104.
8 BIARD, François Auguste. Dois anos no Brasil. Companhia Editora Nacional, 1941. Disponível em
<http://www.brasiliana.com.br/obras/dois-anos-no-brasil/pagina/144/texto > P. 141
9 BURTON, Richard Francis . Viagens aos planaltos do Brasil - Tomo I: Do Rio de Janeiro a Morro Velho. Companhia
Editora Nacional, 1941. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/123/viagens-aos-
planaltos-do-brasil-tomo-i-do-rio-de-janeiro-a-morro-velho> . Acesso em: 11 de set. de 2014. p.57.
10Ibidem. p.58. Ressalta-se que a visão de uma baia de Guanabara edênica não seria unânime. Embora fora de nosso
período de estudo, o relato de Levi-Strauss em Tristes Trópicos (1995) ao apelidar a baía de Guanabara de ―boca
banguela‖, (visto sua grande dimensão em relação aos poucos lugares importantes espaçados ao longo de sua
extensão), demonstra que a beleza da baía não seria unânime na visão dos viajantes.
10BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Festas cívicas na corte regencial. Varia hist., Belo Horizonte , v. 22, n.
36, Dec. 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104
8775200600200014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 Set. 2014.
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procissões ou de cortejos imperiais11. A cidade então ganharia ainda mais ares teatrais e
sublimes12, como o relato do viajante letão Ernst Ebel, quando em passagem pelo Brasil em 1824,
nos revela:
A noite estava linda e o calor aliviado pela benfazeja brisa marítima que
naquele momento encrespava o mar, prateado pelo clarão do plenilúnio. [...]
Num semicírculo anfiteatral, a cidade aparece distante, à beira-mar. Seu casario,
iluminado por focos sem conta, produzia aprazível efeito. De quando em vez,
subiam foguetes à retaguarda, cujas explosões, iluminando magicamente o
cenário um instante, não menos rapidamente se extinguiam. Festivamente,
repicavam os sinos até nós — as Ave-Marias — para logo se calarem. Também
iam-se apagando as luzes. Um silêncio, cada vez mais profundo, baixou sobre a
terra e, como a lua se escondesse atrás das montanhas, recolhi-me [...]13.
Seria este o cenário descoberto pelas missões europeias, de finalidades distintas, que
aportariam no Brasil a partir de 1808. No entanto, o trecho acima apresentado revela-nos mais do
próprio viajante do que nos revela o que foi observado, como se notará ao longo do trabalho,
este será um argumento constante. Para se entender a motivação do olhar estrangeiro em
percorrer a urbe brasileira do século XIX de rica herança colonial, é necessário alcançar suas
intenções e o contexto em que estes relatos se inserem. Os viajantes do Oitocentos diferem dos
corsários e marinheiros dos séculos anteriores pelo caráter científico de seus relatos. Ao
preencher seus cadernos de desenhos com reproduções de tipos humanos, espécies vegetais,
animais e aspectos do cotidiano, suas anotações serviam muito mais que ao propósito de
identificar e informar os europeus sobre ―as coisas e as gentes‖ brasileiras; buscavam informações
e pontes para seus interesses econômicos, políticos e científicos. As expedições científicas
europeias empreendidas nos diferentes continentes foram utilizadas como peças importantes no
contexto da expansão europeia. Tendo em mente o lema baconiano de que ―conhecimento é
poder‖ o saber adquirido nestas explorações científicas, patrocinada pela riqueza dos grandes
centros europeus, azeitava as engrenagens econômicas do Velho Continente, como aponta Mary
Louise Pratt, em Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação (1999):
11BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Festas cívicas na corte regencial. Varia hist., Belo Horizonte , v. 22, n.
36, Dec. 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104
8775200600200014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 Set. 2014.
12 O conceito de sublime será mais bem tratado no capítulo 1 deste trabalho.
13EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. Companhia Editora Nacional, 1972. Disponível em: <
www.brasiliana.com.br/obras/o-rio-de-janeiro-e-seus-arredores-em-1824 > Acesso em 12 de set. de 2014. p.11.
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14PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução Jézio Hernani Bonfim Gutierre.
Bauru, SP: EDUSC, 1999, pp.52-53.
15 CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. The Landscape Art of William John Burchell (1781 – 1863). Report,
Washington DC, n. 32, CASVA – NGA, 2012, p. 164-167. Disponível em: http://www.nga.gov/casva/pdf/center-
32.pdf. Acesso em 25 jun. 2013.
| 24
Santa Helena16.
A figura de Burchell, salvo algumas menções17, torna-se pública aos brasileiros a partir da
década de 1960, por ocasião da descoberta de seu acervo composto por 250 desenhos de
temática brasileira. Com a publicação da série de oito pranchas de O Mais Belo Panorama do Rio de
Janeiro, em 196618, e, já na década de 1980 da obra O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico
Willian John Burchell, 1825-182919, o historiador Gilberto Ferrez lança luz ao trabalho de Burchell e
abre a vereda para estudos posteriores.
Vislumbres de sua obra já seriam postas à luz décadas antes; porém, foram creditadas
erroneamente ao viajante Charles Landseer. Em 1924, o historiador brasileiro Alberto Rangel
encontrou no castelo de Highcliffe, antiga residência de Charles Stuart20, cerca de 340 obras sobre
a passagem de Landseer pelo Brasil. Às obras de Landsser somaram-se alguns trabalhos de Henry
21
Chamberlain, Debret e Burchell. Sabe-se que a permuta de desenhos entre viajantes não era
rara, o que pode explicar o motivo de sua presença junto às de Charles Landseer. Porém, em
1926, o Highcliffe Album seria adquirido pelo colecionador carioca Guilherme Guinle e guardado
22
em acervo particular. Em 1999 o Instituto Moreira Salles o obtém, através da compra pelo
leilão da Christie‘s.
Desta terra tropical, Burchell pouco deveria saber, valendo-se de uma quantidade mínima
de informações colhidas entre sua correspondência com outro viajante e amigo, William
16Stewart, Roger; Warner, Brian. William John Burchell: the multi-skilled polymath. S. Afr. j. sci., 2012, vol.108, no.11-12,
p.52-61. ISSN 0038-2353. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.4102/sajs.v108i11/12.1207> Acesso em: 04 nov.
2014.
17 George Gardner, viajante que aportou no Brasil em 1836, cita-o em Em sua obra Viagem ao Interior do Brasil,
classificando-o como cita-o como ―intrépido‖ e comenta a respeito do ―viajante africano‖ que permaneceu durante
seis semanas na fazenda Santa Ana do Paquequer, pertencente a um inglês, George March, localizada na Serra dos
Órgãos, no Rio de Janeiro.
18 FERREZ, Gilberto. O mais belo panorama do Rio de Janeiro: (1825) / William John Burchell ; texto de Gilberto
Ferrez. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , 1966. A obra é composta por oito paginas de
texto em formato 32 x 23 cm além de oito pranchas de desenho que formam o panorama medindo 23 x 250 cm. O
estudo e descrição do panorama é de autoria de Ferrez.
19FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico Willian John Burchell, 1825-1829, Fundação Moreira
Salles, 1981.
20 Ibdem, ibid.
21Cf. < http://ims.uol.com.br/hs/charleslandseer/highcliffealbum.html > . Acesso em: 03 out. 2014.
22Pode-se ver menções das aquarelas de Burchell (creditadas como de Landseer), em: Revista do IPHAN, n. 6,
1942, acessada pelo link: http://ims.uol.com.br/hs/charleslandseer/highcliffealbum.html
| 25
Swainson23 e dos meses em que passou em Lisboa, no intuito de aprender o português. Para além
destas cartas, o universo de dados disponíveis ao seu alcance era restrito, visto a escassez de um
corpus documental relativo ao Brasil no mercado literário europeu. Burchell pode ter tido contato
com a publicação, em 1823, do primeiro tomo de uma série de três sobre a expedição ao Brasil
empreendida pelos viajantes alemães Karl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von
Spix, Viagem pelo Brasil: 1817-1820. As obras iconográficas de maior vulto relativas à paisagem
urbana seriam publicadas após sua ida ao Brasil, como a série de três fascículos da obra ―Viagem
Pitoresca e Histórica ao Brasil”, relativas aos 15 anos do viajante Jean Baptiste Debret24 sob o sol
brasileiro, lançada entre os anos de 1834 e 1839; também em 1834 Johann Moritz Rugendas25
publicaria o livro Voyage Pittoresque dans le Brésil26, Kosmos, a extensa obra do maior naturalista do
século XIX, o explorador Alexander von Humboldt27, seria publicada apenas em 1845. Neste
campo de representações do Brasil pouco trabalhado, em especial o campo pictórico, ainda muito
preso aos materiais cartográficos e às telas holandesas do XVIII, os viajantes viram a
possibilidade de pioneirismo e méritos, justificativas para empreender viagem. Em relação ao
desconhecimento de mais detalhes sobre as terras brasileiras, Lorelay Kury (2004) sugere: ―Para
os viajantes-naturalistas europeus que aqui estiveram nas primeiras décadas do século XIX, não
foi difícil coroar suas carreiras com a descrição de dezenas ou centenas de espécies novas‖.
E, como o viajante diria em uma de suas missivas, era ―muito mais fácil marcar uma linha
interessante de roteiros num mapa do que traçá-la no próprio país‖, seu trabalho relativo à
paisagem brasileira não seria publicado, como parecia ser seu primeiro intento, seguiria viagem ao
23 William Swainson foi um naturalista britânico, participante da comitiva de Henry Koster ao Brasil. Aportou na
província de Pernambuco em 1816. Após viajar pela Bahia, parte rumo ao Rio de Janeiro e em agosto de 1818
retorna à Inglaterra (MARTINS 2001, p.118). Os trópicos brasileiros parecem que criaram uma boa impressão em
Swainson (e essa admiração pode ter sido passada à Burchell entre suas conversas). Em carta datada de março de
1830, Swainson admite que "I am sick of the world and of mankind, and but for my family would end my days in the
primeval forests of my beloved Brazil‖ in The Auk, Volume 22. Disponível em: https://archive.org/details/jstor-
4070157. Acesso em: 08 Set. 2014.
24Logo após a queda de Napoleão, Portugal e estreitaram novamente seus laços. Acatando um pedido do próprio
Dom João VI, em 1816, chegou ao Brasil, vinda da França, uma missão artística comandada por Joachim Lebreton,
com inúmeros artistas, dentre eles o pintor de cenas históricas Jean-Baptiste Debret, que vivem no Brasil por 15
anos.
25 Johann Moritz Rugendas, pintor alemão do século XIX, chegou ao Brasil em 1821, como desenhista da missão
científica do barão de Langsdorff, retornando à Europa em 1826.
27 A pesquisadora Mary Louise Pratt destaca a influência de Humboldt sobre os viajantes e naturalistas do século
XIX em Imperial eyes: travel writing and transculturation (1992). Pratt atribui à Humboldt a posição de responsável pela
matriz ideológica da ―reinvenção‖ da América do Sul no início do século XIX. Se a primeira A ―invenção‖ das
américas teria por responsabilidade Colombo e os viajantes contemporâneos ao explorador descreveriam as novas
terras como edênicas, os contemporâneos à Humboldt o fariam da mesma forma, proclamando-a como ―um mundo
primitivo da natureza, um espaço perdido no tempo e não reclamado, ocupado por plantas e criaturas (algumas delas
humanas), mas não organizado por sociedades e economias‖ v (PRATT, 1992, p.126).
| 26
longo dos milhares de quilômetros que separariam a costa do Brasil da sua residência na
Inglaterra e, posteriormente, em posse de um de seus descendentes, aportaria em Johanesburgo,
África do Sul, onde descansaria em anonimato durante mais de um século.
Sabendo que as narrativas de viajantes configuram-se como importante fonte sobre a
representação da configuração urbana dos núcleos antigos, construindo imagens sobre as cidades
coloniais que influenciaram posteriores descrições, questiona-se: Como a paisagem urbana
brasileira do século XIX foi representada na obra de William John Burchell?
Ao adentrar no campo de estudo sobre os viajantes e seus relatos, o pesquisador
invariavelmente enfrentará a problemática do pretenso caráter testemunhal e ocular de tais
representações, afirmada pela historiografia relativa ao tema. A importância dos relatos dos
viajantes como documento histórico não está na ―legitimidade‖ de suas descrições; adquirem
sentido histórico pois se revelam como produto cultural de uma época, deixam entrever gostos,
temores e preconceitos –individuais e coletivos– traduzidos em composições. Ademais, a
relevância de seu estudo indica a importância de individualizar cada uma das produções
integrantes desse conjunto imagético, lendo-as em separado e conscientes de que são portadoras
de intenções e contextos distintos. Se os desenhos de Burchell supostamente perdem em
repercussão, ganham na nova atitude perante a paisagem brasileira. Botânico por formação e
viajante experiente das paisagens tropicais, Burchell faria poucas pranchas sobre esta temática.
Embora sua coleta de espécies da flora brasileira tenha sido vultosa, em seus desenhos a
vegetação foi representada em grandes e esboçados maciços, sem as distinções encontradas em
quadros como os do também botânico Albert Eckhout. Se seriam posteriormente detalhadas em
um futuro processo litográfico28ou em telas à óleo em seu retorno à Europa, esta discussão pouco
influi no contexto deste trabalho, o que nos é imperativo na análise é a escolha do viajante em
trabalhar os pormenores da cidade construída e não de seus arredores vegetais.
Por que então debruçar-se no estudo de um viajante que não possui influência ativa na
construção da imagem recorrente das cidades brasileiras? Ao desviarmos o olhar para a produção
burchelliana nos permitimos vislumbrar um novo participante deste jogo de espelhos da
28 Litogravura: ―Inventada na Alemanha no final do século XVIII por Alois Senefelder, essa técnica de impressão
utiliza a pedra como matriz e é baseada no princípio de repulsão entre gordura e água. O desenho é feito sobre uma
pedra de composição calcária com tinta ou lápis litográficos, ambos gordurosos. Utiliza-se, então, uma solução de
goma arábica acidulada para cobrir toda a superfície. As partes protegidas pela gordura ficam lisas, enquanto as
partes expostas são atacadas pelo ácido e adquirem uma textura porosa. A matriz é limpa e levada à prensa
litográfica, onde é umedecida e, com a ajuda de um rolo, é aplicada uma tinta gordurosa. As áreas porosas, que
absorveram a água, repelem a tinta, que fica retida apenas sobre as áreas lisas da pedra, que definem a imagem a ser
impressa‖. Cf : < http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo/noticias/glossario-de-tecnicas-e-processos-graficos-
e-fotograficos-do-seculo-xix > Acesso em: 20/10/2014.
| 27
construção icônica das cidades brasileiras, sua obra é um exemplo do conjunto de imagens
relativas à iconografia dos viajantes que permaneceu menos conhecida; por outro lado, o alcance
de seu repertório não permeou e influenciou nosso imaginário de paisagem colonial ao longo da
história, como fariam as aquarelas de Debret ou as pinturas à óleo de Taunay, que
fundamentariam o imaginário sobre o Brasil, tanto na Europa como, consequentemente,
rebatidos em nossa própria historiografia do tema. Por que então debruçar-se no estudo de um
viajante que não possui influência ativa na construção da imagem recorrente das cidades
brasileiras?
Portanto, o objeto de estudo deste trabalho consiste na arquitetura da cidade brasileira do
século XIX e o olhar de fora na formação pictórica do cenário urbano.
Dentre os fatores que justificam esta pesquisa, lista-se primeiramente o vínculo da aluna
como bolsista de Iniciação Científica no Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e
do Urbanismo (HCurb) desde 2010, tendo sua bolsa atrelada ao plano de trabalho Fontes primárias
para analisar a matriz urbanística das representações sobre a cidade colonial no Brasil, plano delineado a
partir das discussões suscitadas pela tese defendida pelo orientador da pesquisa Prof. Dr. George
Alexandre Dantas A formação das representações sobre a cidade colonial no Brasil (2009). Ao longo da
trajetória como bolsista, a discente teve a oportunidade de trabalhar com relatos de viajantes de
natureza textuais e posteriormente iconográficos.
O principal objetivo da pesquisa, por sua vez, é discutir a contribuição da produção
iconográfica de William Burchell referente ao Brasil, contribuindo assim para a construção de
uma visão mais complexa das paisagens urbanas brasileiras do Oitocentos. Nesse contexto,
desdobram-se pelo menos três objetivos específicos: Analisar o uso de modelos de representação
(esquema) sistematizando que elementos da realidade foram percebidos e fixados, auxiliadores na
construção da imagem final da urbe brasileira na obra do artista; (ii) Discutir as influências de
seus estudos e do espírito da época (Zeitgeist) na obra realizada pelo viajante; e, por fim, (iii)
Identificar oposições e singularidades da produção iconográfica compulsada em relação ao seu
próprio trabalho e ao corpus iconográfico conhecido de outros artistas, que permitam expandir a
função referencial dessas imagens. A delimitação espacial da pesquisa compreende as cidades
retratadas no percurso do viajante pelas províncias do Brasil. Iniciada no Rio de Janeiro, sua
viagem percorreu as províncias de Minas, São Paulo Goiás e Grão-Pará. O recorte temporal
compreende a estadia de Burchell em solo brasileiro, os anos entre 1825 e 183029.
As hipóteses da pesquisa sugerem algumas diferenças entre as representações da cidade
colonial das obras de Burchell em relação às realizadas por outros viajantes. Como pintor
experiente de paisagens tropicais era esperado que Burchell conseguisse ―ler‖ de forma mais
acurada a topografia, as cores da vegetação e a conformidade dos núcleos urbanos visitados, de
certa forma tal expectativa é alcançada, entretanto o ―ineditismo‖ da paisagem brasileira não
atendia aos valores estéticos da arte europeia a qual o botânico vinculava-se, apesar da crítica
recair apenas na paisagem urbana. A sua apreensão das técnicas construtivas e seu apreço pelos
detalhes das edificações e de seus mecanismos (a abertura do gelosia, a construção em pau-a-
pique, os entalhes das cachorras) não implicam, necessariamente em uma representação livre de
críticas. Se as cidades são repletas de detalhes (que significariam um apreço estético, embora
exótico), a pátina da indolência e dos atrasos da sociedade os mancharia com os tons da lama, do
lodo e da má conservação. A paisagem é comumente enaltecida, embora o elogio se encerre na
natureza que enquadra o local.
À medida que o viajante adentra a cidade e ultrapassa o primeiro vislumbre da
composição entre o casario caiado em branco e a vegetação dos mais escuros matizes de verde, a
ilusão edênica desvanece-se. A representação da cidade colonial em desalinho ―insalubre‖ e
―decadente‖ ocupou papel central nos discursos que caracterizariam os núcleos urbanos do Brasil
ao longo de sua história cultural, gradativamente alimentado desde as primeiras descrições sobre a
paisagem urbana brasileira ainda no século XVI até as primeiras reformas urbanas, em final do
Oitocentos30. Dentre os vários documentos que foram produzidos sobre as cidades brasileiras, os
relatos dos viajantes, de sobremodo os estrangeiros, foram os que tiveram maior poder de
reverberação, utilizados para iluminar passagens de nossa história obscurecida pela escassez de
documentos descritivos realizados quer seja pela Coroa, quer seja pelos residentes da Colônia.
Para além do caráter testemunhal, essas vozes estrangeiras serviram ao propósito de legitimação
de diversos discursos atrelados à leitura da urbe colonial sob o prisma do aparente ―desleixo‖
com que foram ―semeadas‖ ao longo do território brasileiro.
Os capítulos se mostram tal como a cidade se deixa entrever ao viajante que, ao observa-
la, busca enquadrar e esquadrinhar cada nível dessa aproximação. O primeiro capítulo
corresponde à expectativa do início do percurso e sobre as notícias e relatos que chegam aos
ouvidos e olhos antes de empreender viagem. Entretanto, tal como os viajantes, era necessário
saber, de antemão, as ferramentas necessárias para a viagem.
Desta forma, na tentativa de apresentar um breve panorama da representação dos núcleos
urbanos brasileiros no Oitocentos, o primeiro capítulo se volta e lança olhares às representações
30DANTAS, George A. F. A formação das representações sobre a cidade colonial no Brasil. 2009. 237p. Tese - Escola de
Engenharia de São Carlos (EESC). São Carlos: Junho de 2009.
| 29
dos séculos anteriores e as relacionam aos relatos do século estudado: existe uma matriz de signos
relativos à paisagem brasileira repetidos ao longo dos séculos? Quais aspectos morfológicos da
urbe seriam amplificados em suas descrições? Neste ponto da pesquisa as leituras e análises dos
trabalhos de George Dantas (2009)Ana Maria Belluzzo (1994) e Pratt (1992) foram os
fundamentos desta leitura. O uso da obra de arte como documento e repositório de
representações sobre a cidade é uma opção enquanto metodologia de pesquisa histórica. Ao
investigar de forma crítica e à luz da história cultural urbana o que as pátinas de tinta escondem,
levando em consideração não apenas as impressões que estão mais nítidas, mas também o
contexto no qual foi criada e lida, novas camadas de significação, ainda desconhecidas pelos
pesquisadores que abordam o tema podem ser reveladas. O emprego de fontes alternativas ao
documento textual foi tratado por vários autores, dentre os quais destacamos Carlo Ginzburg
(1991)31 e Roger Chartier ( 1991)32. Estas leituras também serão válidas em relação à leitura das
imagens, onde são levantadas questões e conceitos apresentados pelos autores supracitados, além
de conceitos de Ernst Gombrich (2007)33.
O segundo capítulo, apresenta a cidade vista de longe e por muitos olhares, participando
do enquadramento como ornamento da paisagem, com peso representativo tal como as
palmeiras34, a topografia recortada ou os rios. Assim como o artista nas proximidades da área
urbana, esquadrinhando seus modos de ocupação, sua relação entre cheios e vazios, o capítulo
nos apresenta a visão de alguns viajantes, sobremodo Burchell, sobre a cidade como elemento
único. As leituras das obras de Gilberto Ferrez (1966, 1981)35, Anna Maria Belluzzo (1994)36,
George Dantas (2009)37 e Valeria Salgueiro Souza (1995)38 foram fundamentais para o seu
31GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti; São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
32 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 245p.
34Neste trabalho, todas as representações de espécies da família Arecaceae serão tratadas pelo nome genérico de
―palmeira‖ ou ―coqueiro‖.
35FERREZ, Gilberto. O mais belo panorama do Rio de Janeiro: (1825) / William John Burchell ; texto de Gilberto Ferrez.
Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1966; ________ O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico
Willian John Burchell, 1825-1829, Fundação Moreira Salles, 1981.
36 BELLUZZO, Ana. Maria. De Morais. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Metal Livros/ Rio de Janeiro:Objetiva, 1999.
38 SOUZA, Valéria Salgueiro de. Gosto, sensibilidade e objetividade na representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados
pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 1995. 392 f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
| 31
1
As pátinas que compõem CAPÍTULO
a imagem
Os viajantes adentram os
trópicAnexosos.
AS PÁTINAS QUE COMPÕEM A IMAGEM: OS VIAJANTES ADENTRAM OS
TRÓPICOS
| 32
Há duas fases bem distintas num pôr de sol. No inicio, o astro é arquiteto.
Somente em seguida (quando os seus raios chegam refletidos e não mais
diretos) ele se transforma em pintor. Desde que desaparece atrás do horizonte,
a luz enfraquece e faz aparecer planos cada vez mais complexos. A luz intensa é
inimiga da perspectiva, mas, entre o dia e a noite, há lugar para uma arquitetura
tão fantástica quanto temporária.
39Qualquer coleção de de obras (fotos, filmes, gravuras, livros, estudos, ensaios, documentos ou artigos) cujos temas
sejam relativos ao Brasil pode receber o nome de brasiliana
40 Esse desejo em se publicar sobre o Brasil não seria privilégio da Companhia Editora Nacional, Documentos
Brasileiros, lançada em 1936 pela Editora José Olympio e a Biblioteca Histórica Brasileira, produzida a partir de 1940 pela
Livraria Martins Editora, seriam outros exemplos desse esforço. A respeito desse boom de publicações sobre o Brasil,
Cristina Carneiro Rodrigues (2012) explica que elas seriam lançadas―[...]Com o objetivo de desvendar, mapear,
estudar e diagnosticar a realidade brasileira, em sintonia com o quadro de interesse pelo Brasil gerado pelo governo,
que envolveria a criação de um movimento de unificação cultural e a noção de ―civilizar‖ o país[...]‖In:
RODRIGUES, Cristina Carneiro . Brasiliana e Reconquista do Brasil: projetos editoriais de traduções. Revista de
Letras (Curitiba. 1996), v. 85, p. 219-230, 2012.
| 33
obras que tratariam sobre o Brasil e sua conformação física e social do século XX.
Um dos maiores historiadores brasileiros, Gilberto Freyre, em sua célebre obra
Casa Grande & Senzala (1933), já testemunhava a favor da seguridade das informações contidas
nos relatos dos cronistas estrangeiros:
A não ser no Quinhentos e, até certo ponto, no Seiscentos, nunca o nosso país
parecera tão atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos economistas, aos
simples viajantes, como naqueles anos que imediatamente se seguem à
instalação da Corte portuguesa no Rio e à abertura dos portos ao comércio
internacional. O fato acha em si mesmo sua explicação. A contar de 1808 ficam
enfim suspensas as barreiras que, ainda pouco antes, motivaram o célebre
episódio daquela ordem régia mandando atalhar a entrada em terras da Coroa
de Portugal de ‗certo Barão de Humboldt, natural de Berlim‘, por parecer
suspeita a sua expedição e sumamente prejudicial aos interesses políticos do
Reino. De modo que a curiosidade tão longamente sofreada pode agora
expandir-se sem estorvo, e não poucas vezes, com o solícito amparo das
autoridades‖. (Holanda, 1975, p. 12).
Até mesmo os relatos de viagens às terras mineiras em Caio Prado Jr.42 e a escolha pela
multiplicidade de temáticas que buscava se debruçar, das manifestações religiosas às
características topográficas da região, bem como suas descrições das cidades e de aspectos
econômicos, travariam diálogos com as produções dos viajantes naturalistas como Saint-Hilaire
ou George Gardner. O seu método de investigação da sociedade brasileira também incluiria o
documento pictórico; à maneira dos artistas estrangeiros, Prado Jr. enquadrará em suas
fotografias o pitoresco e a decadência destas cidades. Na Figura 1 a fotografia tem como
observação escrita a punho pelo próprio Prado Jr: ―observar a guarnição exterior das casas, de
41Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia.
patriarcal, 51. ed. revista, S„o Paulo, Global, 2006, p. 47.
42 IUMATTI, Paulo Teixeira . Um viajante e suas leituras. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 43, p. 108-129, 2007.
| 34
tábuas, utilizada em quase todas as construções do povoado‖43, a Figura 2, por outro lado, traz
uma igreja em ruínas enquadrada.
Figura 1 Caio Prado Jr. Aspecto do arraial de Rio do Figura 2 Caio Prado Jr. Ruínas de igreja em Rio do
Peixe- MG. Fotografia. Fundação Caio Prado Júnior. Peixe-MG. Fotografia. Fundação Caio Prado Júnior.
44CASCUDO, Luís da Câmara: História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 1983.
45 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/8/15/ilustrada/13.html
| 35
também está atrelada ao ineditismo em ao apresentar– por meio da publicação quanto pela
mostra a qual se originou – uma importante coleção de imagens até então desconhecidas pelo
grande público.
Ainda em relação ao real e imagem, neste caso a fotografia, mas com algumas
considerações que cabem ao universo pictórico como um todo, o ensaio de Vânia C. de Carvalho
e Solange F. de Lima (1995)46, também lançaria um olhar sobre a representação iconográfica
acerca do Brasil. Em outro esforço de apresentar a produção destes viajantes, com foco na
tentativa de resgate da história urbana na primeira metade do século XIX de três cidades (Rio de
Janeiro, Cidade do México e Buenos Aires) Valéria Salgueiro de Souza (1995)47, em sua tese de
doutorado também trataria de suas produções, circulação e apropriações.
Sobre o Brasil representado em telas e papéis, o crítico de arte Rodrigo Naves lançou mão
do exemplo de Debret, já no inicio de sua obra A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira (1996),
para exemplificar como o Brasil foi visto e reproduzido pelos viajantes europeus. A discussão
empreendida em A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira já nos trazia a questão do inadequado
uso da iconografia viajante como fonte histórica sem aprofundar sua visão para além desta
primeira impressão de testemunho ocular:
Mas como esses artistas [...] com raríssimas exceções, foram sempre apreciados
como documentaristas, análise do aspecto propriamente estético de suas obras
e objetos representados colocou-os num pé de igualdade pouco esclarecedor.
Serviram de material para etnólogos, historiadores e antropólogos, sem que
seus próprios trabalhos merecessem uma análise adequada.48
Luciana de Lima Martins (2001) também nos traz importantes contribuições ao tema da
cidade retratada pelos viajantes. Em O Rio de Janeiro dos Viajantes: o olhar britânico (1800-1850)49
analisa a obra dos viajantes ingleses diante das especificidades do cenário brasileiro oitocentista,
apresentando-nos as singularidades de suas visões sob a ótica naturalista. Seriam essas leituras da
46CARVALHO, Vânia Carneiro de e LIMA, Solange Ferraz de. ―Fotografia e História: Ensaio Bibliográfico‖, in
Anais do Museu Paulista. São Paulo, NS 2, 1994, pp. 253-300.
47 SOUZA, Valéria Salgueiro de. Gosto, sensibilidade e objetividade na representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados
pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 1995. 392 f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
48 NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Compainha das Letras. 1996.
49MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes, o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001.
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paisagem, nas palavras de Martins, que construiriam, ―um vocabulário iconográfico para o
brasileiro falar de si mesmo‖50, base para os discursos sobre a construção da identidade brasileira
proferidos pela elite imperial, republicana e até mesmo pela classe intelectual modernista51.
Outra contribuição pertinente ao emprego das imagens viajantes em nossa historiografia
encontra-se na tese do pesquisador George Dantas, A formação das representações sobre a cidade colonial
no Brasil (2009), a qual aborda a leitura realizada pelos viajantes estrangeiros no início do século
XIX sobre a cidade brasileira e como estas visões negativas foram problematizadas e
instrumentalizadas para servir a inúmeros propósitos, sobremodo como endossaram as
justificativas para as reformas e melhoramentos por que passaram muitas cidades na virada para o
século XX.
A cidade, quer seja como cenário, quer seja como protagonista, sempre foi alvo de
representações visuais ao longo da história; porém, a partir do Renascimento passa a ser objeto
de um gênero pictórico, e, graças à cartografia ―descritivo-ornamental‖ do trecento italiano,
desvincula-se do texto, encerrando a mensagem que porta nela própria, não mais como aporte
para os textos52.
O meio construído e as interações sociais formam este sistema complexo a qual
denominamos ―cidade‖ e o pesquisador que decide trilhar os estudos sob a perspectiva da
história urbana deve entender que não se deve categoriza-la como um elemento estável e
genérico, que vai, ao longo do tempo, sofrendo variações unidirecionais; como Ulpiano de
Meneses (1996) aponta, ―faz-se necessário historicizar a cidade como ser social. Historicizá-la é
defini-la e explorá-la levando em conta sua prática e representações pela própria sociedade que a
institui e a transforma continuamente53.
O prisma de leituras que abordam a cidade possuem muitas faces e, aos que trilham o
caminho da história da cidade por meio das artes, impreterivelmente também esbarrarão em
alguns obstáculos, como as linguagens especificas de cada manifestação artística. No entanto, a
historiadora Sandra Jatahy Pesavento(2002) nos alerta para que, ao se escolher a arte como objeto
51 MARTINS (2001) apud LENZI, Maria Isabel Ribeiro. “Para aprendermos história sem nos fatigar”, a tradição do
antiquariado e a historiografia de Gilberto Ferrez. 2013. 267 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2013.p.221.
52 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de . Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da
iconografia urbana. Revista USP, São Paulo, n.30, p. 144-153, 1996, p.145.
54PESAVENTO, Sandra Jatahy. Esse mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história. CPCOC/FGV,
Estudos Históricos, Arte e História, nº30, 2002/2.
55 Ibidem, p. 4.
56MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Morfologia das cidades brasileiras: Introdução ao estudo histórico da iconografia
urbana, op.cit. p.08.
| 38
A leitura das obras de arte proposta pelo trabalho deve fazer iluminar, dentre este vasto
universo de elementos que compõem a tela e os desenhos, pontos a serem considerados relativos
às cidades e suas tipologias representadas. O ―ler‖ a obra deve apontar os matizes com os quais a
cidade é pintada: o fascínio, a indolência, a homogeneidade, o pictórico, etc. O tópico a seguir
busca subsidiar, por meio do referencial teórico-metodológico, as ferramentas necessárias ao
leitor para que a leitura desta iconografia escolhida seja realizada sempre em consideração à
perspectiva da história cultural urbana.
O historiador francês Jacques Le Goff em seu livro História e memória (1994)58, nos
apresenta seu conceito de História; nas palavras do autor, a história seria a forma científica da
memória coletiva, resultado de uma construção galgada em dois elementos, o documento e o
monumento59. Jacques Le Goff (1994) afirma que o que sobrevive à passagem do tempo não é
mero conjunto do que existiu nos tempos passados, são escolhas, quer seja pelos que ―operam no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade‖, quer seja ―pelos que se dedicam à
ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores‖60. Estes materiais da memória podem
60 Ibidem.
| 39
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem.
Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não
existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para
fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos.
Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os
eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras
feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa
61 Ibidem, p.535
62BARROS, José D'Assunção A Escola dos Annales e a crítica ao Historicismo e ao Positivismo. Revista Territórios &
Fronteiras, vol.3, jan/jun 2010 Cuiabá: UFMT, 2010.
63ANTUNES, A. P.; WILKE, V. C. L. . Imagens da Ciência Brasileira: a produção iconográfica do artista viajante
Oitocentista. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 5, p. 194-209, 2012.
64PESAVENTO, Sandra J. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história, In: Estudos Históricos, n. 30,
2002, p. 57
| 40
67CHARTIER, Roger; GALHARDO, Manuela (trad.). Historia Cultural: entre praticas e representacoes. Lisboa:
DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 17.
Ainda na discussão sobre os dois conceitos, Maria Stella Bresciani, apoiada na explanação
de D‘Allones, conceitua lugar-comum como uma palavra cujo significado é prontamente
compreendido e seu significado é considerado coletivo; o lugar-comum participaria de um fundo-
comum, receptáculo de informações, imaginários e preconceitos sobre determinado tema. O
rebatimento das discussões em volta do uso deste diálogo entre lugar-comum, fundo-comum e
representações prestar-se-iam, nas palavras de Dantas (2009) como apoio para ―compreender
diacronicamente a construção e ou uso de imagens recorrentes que formam, conformam ou
sustentam‖71 a imagem final das cidades oitocentistas.
A produção iconográfica criada pelos viajantes promoveu a concepção de um repertório 72
imagético no intuito de traduzir os trópicos aos leitores e consumidores de arte europeus, por
meio de signos73 já conhecidos na literatura de viagem em meio aos cânones das escolas
estilísticas ao quais estes viajantes inserem-se. As escolhas de enquadramento, de composições,
do revelar e esconder aspectos da urbe, não são eleições ingênuas. Segundo Gombrich: "[...] é
claro que toda imagem será de algum modo sintomática de seu criador, mas pensá-la como uma
fotografia de uma realidade preexistente é compreender mal todo o processo de feitura de
imagens‖.74
72―conjunto de signos que devem ser dispostos por um processo de eleição (seleção)‖. BENSE, MAX & WALTER,
Elizabeth, dir. La semiótica; guía alfabética. Barcelona, Anagrama, 1975. p. 132. Apud: NEIVA Jr. Eduardo. A imagem.
O repertório é uma unidade mais abrangente do que o signo.
73 De acordo com Eduardo Neiva Jr, signo é tudo aquilo que representa algo sob algum aspecto, desde que
preencham a função de representação.
74 GOMBRICH, E. Meditações sobre um cavalinho de pau ou as raízes da forma artística. In: Meditações sobre um cavalinho de pau
e outros ensaios sobre teoria da arte. São Paulo: Edusp, 1999, p.04.
| 42
A schemata, portanto, funciona como ponto de partida para o artista desenvolver suas
experiências, um vocabulário indiciário de motivos por ele conhecidos e que o auxiliarão na
representação da paisagem, como Gombrich discorre:
75 Ibidem, p.547.
76MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao estudo histórico da iconografia
urbana. Revista USP, São Paulo, n.30, p.144-155. 1996, p.152.
Para além dos cânones de determinado movimento artístico, o registro visual traz a tona
discursos específicos, construídos com base na bagagem de quem produz e de quem ―consome‖
a obra. Afinal, não existe um olhar ―puro‖ que capta a realidade, mas como afirma Ernest
Gombrich, um modo de apreensão conformado numa determinada tradição, que percebe, na sua
projeção do real, aquilo que, segundo o observador, merece ser fixado80. Sob esta perspectiva,
novas realidades vivenciadas pelo artista deveriam acrescentar novos elementos a schemata
conhecidas pelo artista e, ao serem copiadas e recopiadas ao longo do tempo, esta imagem
―estrangeira‖ passaria também a compor à schemata dos artistas no geral.81
Erwin Panofsky, célebre historiador da arte alemão, tornou-se importante figura no
campo da História da Arte graças aos seus estudos de iconologia. A partir de seu método
iconológico, densamente influenciado por sua relação com as ideias de seu mentor, Aby
Warburg82, concebeu importantes contribuições para as bases interpretativas de obras de arte em
seu artigo Iconografia e iconologia uma introdução ao estudo da arte da Renascença escrito em 193983.
Partindo do pressuposto de que a arte sempre traz consigo um significado, Panofsky elaborou
três níveis de análise, pautado na descrição, na identificação e na compreensão da obra de arte. O
autor inicia a análise temática através da descrição visual do objeto artístico, esta categoria
consiste na percepção da obra em sua forma pura. O arquétipo utilizado foi o de um quadro de
Da Vinci, A Última Ceia, neste nível, a mensagem passada pela pintura nada mais é do que a
representação de 13 homens sentados à uma mesa, não sendo necessário maiores conhecimentos
culturais para a apreensão dessa mensagem.
83PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento. In: ____. Significado nas
Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.
| 44
Figura 3 Leonardo Da Vinci, A última Ceia. Afresco, 460 cm x 880 cm. (1495–1498).
84 Erwin Panofsky define o conceito a partir de seu sufixo grafia, que provém do grego grafhein e significa escrever.
Para o autor, iconografia "é a descrição e classificação das imagens", correspondendo a um "ramo da história da arte
que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma" e é ―de auxílio incalculável para o
estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer
interpretações ulteriore (PANOFSKY, 1991, p.53). Embora forneça informações importantes para a análise da obra
de arte, por si só não realiza as interpretações.
85 A iconologia seria, portanto, a responsável pelas interpretações, ―Pois, se o sufixo ―grafia‖ denota algo descritivo,
assim também o sufixo ―logia‖ – derivado de ―logos‖, que quer dizer pensamento, razão –denota algo interpretativo.
[...] Assim, concebo a iconologia como uma iconografia que se torna interpretativa‖ (Ibid., p. 54)
| 45
todos esses elementos como sendo o que Ernst Cassirer chamou de valores
―simbólicos‖. [...] A descoberta e interpretação desses valores „simbólicos‟ (que
muitas vezes são desconhecidos pelo próprio artista e podem, até, diferir
enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar) é o objeto do que
se poderia designar por ―iconologia‟ em oposição a ―‘iconografia‖.
De acordo com o historiador da arquitetura Giulio Argan em sua célebre obra História da
arte como História da Cidade: ―o grande mérito de Erwin Panofsky consiste em ter entendido
que, apesar da aparência confusa, o mundo das imagens é um mundo ordenado e que é possível
fazer a história da arte como história das imagens‖86.
Ainda a respeito de Argan e sua obra História da arte Como Historia da Cidade, ressalta-se a
importância de seu estudo da relação entre obra de arte e a cidade. Sua discussão é balizada em
três importantes conceitos: cidade, objeto e arte. Segundo Argan, a obra de arte determina um
espaço urbano, uma vez que é a necessidade de representar de quem vive no espaço uma forma,
seja verdadeira ou distorcida, desta realidade espacial em que opera. A obra de arte, nos conceitos
de Argan, seria uma impressão das informações sobre hábitos e atitudes de um período histórico,
e dela se desprende, inclusive, suas aspirações e suas projeções a respeito da realidade87.
O que não deve ser perdido do horizonte de análises é ―colocar a imagem fora do real, de
que ela faz parte integrante. Práticas e representações [...] são indissociáveis‖88 . Para Meneses
(1996) no uso de fontes iconográficas para a produção do conhecimento histórico deve-se ter
em mente que as imagens são uma representação em si e mobilizam outras representações. Não é
possível pensar nas imagens apenas como um registro do real externo e objetivo, buscando
avaliar seu grau de fidelidade, pois a imagem é: ―uma construção discursiva, que depende de
formas históricas de percepção e leitura, das linguagens e técnicas disponíveis, dos conceitos
vigentes‖89.
Se se mostra ingênua a polaridade entre realidade e imaginação, Meneses avança na
discussão e levanta a questão a respeito do suposto caráter probatório da imagem urbana. A ideia
da imagem ter seu valor documental balizado pela representação mais ou menos coincidente com
a paisagem real mostrar-se-ia redutora.
ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte. In: ______. História da Arte como História da Cidade. São Paulo:
86
Para entender a bagagem trazida pelos viajantes europeus do Oitocentos e de como essas
várias faturas90 se uniram na tentativa de traçar uma imagem final da cidade brasileira, é
necessário discorrer a respeito das escolas estilísticas e cientificas em voga no final do século
XVIII e início do século XIX. Dentre elas, destaca-se a escola do Neoclassicismo e o movimento
científico do Naturalismo.
90 O emprego do termo ―fatura‖ neste capítulo está relacionado a duas significações. A primeira corresponde à idéia
de fatura como prova da transmissão de determinados ―valores‖ das escolas neoclássica e do naturalismo. Em Artes,
o termo ―fatura‖ corresponde ao uso peculiar de instrumentos e de materiais que caracterizam e individualiza o
trabalho de um artista.
| 47
91 O período Biedermeier estende-se de 1815 (por ocasião do Congresso de Viena) a 1848 e foi caracterizado pela
restauração e desenvolvimento dos estados alemães após a era napoleônica. Nas artes, o Biedermeier traria forte
cunho conservador. Ao não tratar dos temas sociais e políticos, as obras teriam como tema a família e a fuga para o
idílio.
93COELHO, Mário César. Artistas viajantes e acadêmicos. Revista Esboços, Santa Catarina, v. 1, n. 12, p.165-171, maio
2004. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:vyjyGUcEXEwJ:https://periodicos.ufsc.br/index.php/
esbocos/article/download+&cd=1&hl=pt-BR >. Acesso em: 25 ago. 2014, p.166.
95 ALBUQUERQUE, André Luis de Castro et al. A Pintura em Foco: o neoclassicismo em uma abordagem
historiográfica. Revista Homem, Espaço e Tempo. Vale do Acaraú. v. , n. , p.1-12, mar. 2008. Anual. Disponível em:
<http://www.uvanet.br/rhet/artigos_marco_2008/pintura_em_foco.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2014.
uma arte que visava ao desencadear irreprimível de emoções‖. 97 O mesmo comedimento seria
encontrado inclusive nas famosas pinturas de paisagem inglesa.
As escavações que posteriormente fariam ressurgir as cidades de Herculano e Pompeia,
no segundo quartel do século XVIII, influenciariam decisivamente o fortalecimento do gosto
pelo ―estilo grego‖. Os locais das escavações seriam visitados nos Grand Tour98 e virariam alvo de
estudo de inúmeros artistas e auxiliariam na sedimentação dos preceitos clássicos na parcela
―ilustrada‖ da população.
97 Ibdem p. 460. O autor ainda retoma, como que para ratificar o emprego da parcimônia e sobriedade na arte
inglesa, a herança puritana e do protestantismo, que se opunham contra imagens e luxo nas artes.
98 Grand Tour era uma viagem realizada, em sua maioria, por jovens das classes mais abastadas pelo continente
europeu, que seguia um itinerário que os expusessem à herança cultural da Antiguidade Clássica e do Renascimento.
Cf em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/grtr/hd_grtr.htm Acesso em 13 de out. de 2014.
Figura 5 Thomas Ender, Cercanias de Botafogo, Figura 6 Thomas Ender, Porto Estrela, 1818.
1817/1818.
Fonte:<http://www.casaruibarbosa.gov.br/oprazer Fonte:<http://mirindibaipcca.blogspot.com.br/200
dopercurso/natureza.htm >Acesso em 03 nov. 2014. 8/07/relato-do-naturarista-auguste-de-
saint.html>Acesso em 03 nov. 2014.
Foi necessária a distância entre o ser humano e a natureza que o circundava para que ele
pudesse então observar a paisagem natural de forma estetizada, com valor artístico e não apenas
mero plano de fundo para suas expressões artísticas:
John Ruskin, em meados do século XIX, valia-se do conceito de pitoresco para qualificar
uma edificação e agregar valor cultural e histórico. As ―pátinas do tempo‖ confeririam ao objeto
arquitetônico estilo característico e uma idéia de singularidade103. O termo pitoresco surge no
final do século XVIII, como maneira de nomear uma nova categoria estética em relação à
paisagem natural e representada, antagônica ao conceito do sublime. O
sublime busca reações estéticas na qual a sensibilidade se volta para aspectos extraordinários e
grandiosos da natureza, considerada um ambiente hostil e misterioso, muitas vezes insinuando
sentimentos como o medo e a solidão nas obras. Não é raro a massa arbórea representada
mostrar-se escura, densa e intransponível. Em oposição ao sublime, o conceito de pitoresco
busca acender as assimetrias e variações nas cenas, valorizando as imperfeições do ambiente,
sempre vistas como agradáveis, buscando representar uma natureza acolhedora e convidativa. O
pitoresco designa tanto o objeto natural quanto a sua representação. Pode-se observar, como
expressão artística exemplar do pitoresco, a paisagem dos jardins ingleses, em que a natureza é
―educada‖ e guiada pelas mãos dos homens, entretanto, sem perder sua espontaneidade. As
figuras 7 e 8 são exemplos dos estilos do sublime e do pitoresco, respectivamente:
102TIBERGHIEN, Gilles A. Nature, Art, Paysage. École nationale supérieure du paysage, Centre du Paysage, 2001
apud FAVERO, Franciele. O Romantismo e a Estetização da Natureza, disponível em:
http://www.ceart.udesc.br/dapesquisa/files/9/02VISUAIS_Franciele_Favero.pdf.
103OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de. O pensamento de John Ruskin. Resenhas Online, São Paulo, 07.074, Vitruvius,
fev 2008.
| 51
Figura 7 Philippe de Loutherbourge, ―Avalanche nos Alpes‖, Figura 8 Camille Corot, Souvenir de Mortefontaine, exemplo
1803. Nota-se as características do estilo sublime nas cores e de pitoresco nas artes, notar as cores esmaecidas e o sfumatto
teatralidade da cena. empregado.
104 Bernard Smith, European Vision and the South Pacific. apud MARTINS, 2001.
| 52
Figura 9 Maria Graham, "Vista do Corcovado". Notar a utilização de cores (que não condizem com os reais
matizes) para acentuar a idéia de diversidade vegetal.
―Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria,
não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o
negam até como valor plástico‖.
O Brasil, a partir da abertura dos portos, mostrou-se não apenas um novo mercado para a
economia européia, foi também um laboratório para a as ciências e as artes de uma Europa cada
vez mais industrializada. Como descrever uma paisagem tão alheia da encontrada no Velho
Mundo? Como alimentar o crescente interesse pelo exótico? O que reproduzir? O que é digno de
nota? São questões que permeavam a consciência de Burchell e de outros europeus que aqui
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chegavam nos Oitocentos. A natureza indomável dos trópicos brasileiros sempre intimidara o
colono português, que preferia permanecer pelas regiões costeiras conhecidas:
Por outro lado, a tessitura do tema tropical abarcava várias realidades que ora sobravam,
ora faltavam nos restritivos modelos iconográficos de tradição na história da arte europeia.
Taunay, nas palavras de Schwarcz (2008), buscou adaptar sua técnica às formas novas dos
trópicos, trabalhando com os princípios da escola estilística neoclássica108, inserindo na paisagem
pintada elementos que lhe eram familiares, permitindo-o entrar na representação desta paisagem
estranha com mais propriedade, daí a profusão de vacas, cachorros e outros animais, tão
presentes na pintura de paisagem inglesa. Os schemas também fariam com que suas árvores,
embora tropicais, possuíssem copas de formato tipicamente temperado e suas cidades
parecessem quase com villas romanas.
Mais do que uma crítica ao espaço urbano e rural colonial, a imagem final também seria
restringida pelas limitações de representação impostas pela corrente artística em voga. O Brasil
mostrar-se-ia uma paisagem difícil de ser pintada, como veremos a seguir.
108Embora à época a escola romântica já estivesse em voga na Europa e influenciasse nas obras de temática de
paisagem, vale salientar que em artistas como Nicolas-Antoine Taunay e William Burchell, sua influência é limitada,
uma vez que foram doutrinados na escola Neoclássica e já eram pintores maduros ao chegarem no Brasil.
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109OLIVEIRA, C. M. S. O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: documento ou invenção
do Novo Mundo?. Portuguese Studies Review, v. 14, n.1, p. 115-138, 2007.
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Figura 12 São Sebastião do Rio de Janeiro na obra "Reys-boeck van het rijcke brasilien" (ca. 1624)
O ―Brasil holandês‖ também seria retratado na obra de Post, que residiu no Recife de
1637 a 1644. Com os fortes traços da escola barroca e da representação da paisagem da tradição
111 ANCHIETA, Padre 1585 apud MANSUR, Kátia Leite et al . O gnaisse facoidal: a mais carioca das rochas. Anu.
Inst. Geocienc., Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, dez. 2008 . Disponível em
<http://ppegeo.igc.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010197592008000200001&lng=pt&nrm=iso>.
acesso em 04 nov. 2014.
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flamenga, o Brasil nas obras do pintor holandês mostrava-se oprimido por uma grande porção do
céu enquadrado na cena112; a escala diminuta com que tantas vezes as edificações foram tratadas
não nos impede, entretanto, de divisar certos aspectos construtivos, como suas coberturas em
duas ou quatro águas, as esquadrias e seus postigos, as arcadas estruturantes dos engenhos e as
paredes caiadas em branco das construções. Dispersas pela imagem, a massa edificada seria
emoldurada pela profusa mata tropical e por seus elementos mais característicos: bichos-preguiça,
abacaxis, mamoeiros, coqueiros e uma infinidade de palmeiras emergem por entre a vegetação,
no intuito de ―condensar‖ a maior quantidade de elementos tropicais na cena e agradar aos
compradores das obras de Post, ávidos pelos elementos exóticos e pitorescos tropicais.
1 2
Fonte: <http://www.coletiva.org/site/index.php?option=com_k2&view=item&id=87:o-
%E2%80%9Cmattam%E2%80%9D-do-brasil-e-as-paisagens-de-frans-post&tmpl=component&print=1 >Acesso
em: 04 nov. 2014. Editado pela autora.
112ARAGÃO, Solange de. A Cidade Brasileira na pintura dos Viajantes e na Fotografia do século XIX. In: V Encontro de
História da Arte – IFCH / UNICAMP, 2009, Campinas. Anais... . Campinas: Unicamp, 2009. p. 137 - 143.
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Nas telas de Post as ―tímidas‖ cidades e vilas concorreriam com os engenhos nas escolhas
compositivas das obras, fazendo o papel de elemento construído. Embora a paisagem mude –
rural ou urbana- a composição da cena mantem-se igual.
1
1
As imagens são semelhantes pois Post segue a risca as tradições pictóricas e descritivas da
escola neerlandesa, que tanto consagrariam suas obras com tema de paisagem perante a História
da Arte. O Brasil que avistamos em Post é na verdade uma Holanda tropical e decerto era
realmente esta a mensagem que o pintor buscava passar, o que recai em questionamentos sempre
pertinentes a quem almeja ler uma obra de arte: para quem o artista produz a obra de arte?
Certamente, por ser tratar de uma expedição colonizadora, os principais alvos seriam a Corte
holandesa, portanto, o Brasil deveria apresentar-se sim como uma Arcádia selvagem, mas
―colonizável‖.
Ao reconstruir a realidade nordestina em suas telas, o pintor lançou mão de certos
cânones que serão replicados em seu trabalho: O céu extremamente luminoso contrasta com os
matizes escuros do repoussoir113 da diversificada vegetação em bordadura (apercebe-se sempre um
elemento verticalizado em uma das extremidades do primeiro plano, como a criar as curvas e
113Elemento utilizado no primeiro plano de uma pintura, gravura ou desenho, de matizes mais profundos e escuros,
no intuito de destacar o centro do quadro (ou outro elemento da composição) e produzir um efeito de profundidade.
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contra-curvas barrocas).114 Porém, se há estas volutas em schemas diluídos na têmpera usada por
Post, há também curvas que levam outras indagações sobre o Brasil do século XVIII: No detalhe
1, percebemos uma ascendente ordem de importância das construções, que também refletiria a
ordem política da época: No cume da elevação, encontrar-se-ia a igreja, símbolo das ordens
religiosas que aportam no Brasil colônia, imediatamente abaixo, a casa-grande e, por último, o
engenho.
Os cânones empregados por Post seriam, na verdade, schemas típicos da pintura de
paisagem holandesa que seriam replicados por toda a Europa, e seriam inclusive empregados nas
paisagens brasileiras, as imagens 15 e 16 trazem os cânones empregados por dois artistas do
Oitocentos:
Figura 15 Félix Émile Taunay, Baía de Guanabara vista Figura 16 Nicola Facchinetti, Lagoa Rodrigo de
da Ilha das Cobras, c.1828. óleo sobre tela. Freitas, óleo sobre tela.
Fonte:<http://www.tecnoartenews.com/tag/ismael- Fonte:<http://deniseludwig.blogspot.com.br/20
nery/> Acesso em: 20/09/2014. 14/02/pinturas-tropicais -com.html > Acesso
em: 20/09/2014.
Figura 17 Vista do Largo da Matriz (Praça do Coreto), Vila Boa de Goiás em 1751. Desenho de Tosi Colombina
1
Fonte: LUZ, 2012.
Figura 18 Detalhe da prancha n° 189 – ―Goyaz‖, lápis aquarelado de Burchell - Matriz de Goyaz –12-05-1828.
Fonte: FERREZ,1981
A visão do viajante observador e raramente participante ativo nas atividades da urbe –ou
a sensação de ―não estar de todo‖115, como Sussekind (1990) conceituara- seria recorrente na
representação da colônia a partir do século XIX. O viajante observa, toma nota, mas raramente
adentra a cidade em suas cenas, preferindo os panoramas e voos de pássaro para desenhá-la; o
olhar para o edificado é visivelmente viciado em questões de composição destas cenas tropicais
harmoniosas.
As ―toleravelmente belas‖ casas urbanas cariocas seriam descritas à bico de pena pela inglesa
Maria Graham, em visita ao Brasil em três ocasiões, entre 1823 e 1826. Das páginas de seu Diário
de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823 emergiam
descrições das casas de campo ―nem grandes nem luxuosas‖; mas, quando no sopé do
Corcovado e imersas na exuberante vegetação, foram consideradas ―deliciosas casas de
campo116‖. Sobre a tipologia das casas do subúrbio carioca, Graham disserta:
Para ―ilustrar‖ suas impressões sobre as casas do subúrbio carioca, Graham produz o
desenho abaixo, no qual a mensagem é consoante com o conteúdo do seu texto. Nota-se o
agrupamento de várias plantas tropicais, dentre elas bananeiras e coqueiros, lembrando-nos de
que, embora lembre motivos pastorais, a cena se desenrola no Brasil. O caminho sinuoso, o
homem e seu cachorro remete-nos a uma cena bucólica que poderia facilmente ser confundida
com uma paisagem inglesa, entretanto, o relevo dramático seria outro lembrete utilizado pela
artista para remeter à paisagem brasileira.
Figura 19 Maria Graham, aspecto de Laranjeiras, fora dos limites do Rio de Janeiro, 1821. Desenho integrante do
Journal of a Voyage to Brazil
116GRAHAM, Maria Dundas. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos 1821, 1822,
1823. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p.55.
117 Ibidem, p.233.
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O centro da Figura 20, por sua vez, é preenchido pela Quinta da Boa Vista, chácara
pertencente a Elias Antonio Lopes, um rico comerciante, e cedida à D. João VI em 1808,
tornando-se o Palácio Real (e posteriormente, Palácio Imperial), residência oficial da família real.
Erguida em 1803, a edificação passaria por constantes reformas e adições, até adquirir as linhas
neoclássicas que perduram até os dias atuais. No desenho de Graham, observamos a presença de
um torreão em estilo neogótico, projetado pelo arquiteto John Johnston, em ocasião de sua
estadia no Rio de Janeiro incubido da reforma do palácio118. Graham também discorre
textualmente sobre o prédio ―[O palácio] é situado em terreno elevado, e construído um tanto em
estilo mourisco, pintado de amarelo com molduras brancas119.‖
Figura 20 Maria Graham, São Cristovão (ao fundo, o Paço), 1823. Aguatinta.
118SCHWARCZ, Lília Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012. p.335.
119GRAHAM, Maria. Op.cit, p.277. A cor amarela atribuída por Graham era proveniente da cal misturada ao
açafrão.
120 PARDIM, op cit. p.61
A crítica à cidade antiga, então, passaria por cima de qualquer diferenciação, criando uma
representação própria de cidades coloniais. Este mesmo fundo-comum seria reclamado em
outros relatórios e documentos oficiais.
As ruas estreitas, tortuosas e mal calçadas das cidades antigas não comportariam as
necessidades do moderno. Usados para vencer o atraso e irregularidade, os lugares-comuns
surgidos do olhar europeu vão permear o imaginário sobre o traçado colonial, que iriam se firmar
na historiografia do século XX. Os relatos de viajantes europeus, portanto, tiveram seus discursos
ressoados em vários escritos técnicos e nos discursos de modernização, que ajudariam a embasar
a discussão sobre as intervenções propostas para os núcleos urbanos.
Se, por vezes, foram as únicas vozes conhecidas a relatar as várias evoluções e involuções
dos núcleos urbanos, foram compostas por várias camadas de pré-conceitos, schemas e
antecipações, pois, como Belluzzo (1999) trata:
124 BELLUZZO, Ana Maria. A Propósito d’O Brasil dos Viajantes. In Revista da USP nº30
(http://www.usp.br/revistausp/n30/fbelluzzo.html )
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A Quinta da Boa Vista é um exemplo desta afirmação. Ao longo do século XIX fora
retratada por vários viajantes e nota-se, diluído no tema do pitoresco, as diversas adições ao
prédio original125: mm um momento anterior ao retratado por Graham, a Figura 21, aquarela de
Thomas Ender, apresenta-nos o casario com suas feições iniciais. Como Lilia Moritz Schwarcz
(1999) relata: [...] viajantes desse período descreveram o prédio como um quadrado fechado, com pátio
interno e varanda de três faces, e uma série de janelas envidraçadas que defendiam os moradores do clima
abrasador126.
Figura 21 Thomas Ender, Paço de São Cristovão.1817. Aquarela. À esquerda, detalhe da construção.
127Ibidem, p.337.
128 Eugène Dela Michellerie (Nantes, França, 1802 - idem,1875) foi um pintor, engenheiro militar e desenhista
francês. Residiu entre 1826 a 1832 no Brasil. De acordo com o pesquisador Mario Carelli Dela Michellerie pode ser
descrito como "o exemplo típico do marinheiro de Nantes com um bom manejo do lápis" CARELLI, Mario. Os
pintores viajantes, a travessia da diferença. In: Missão artística francesa e pintores viajantes: França-Brasil no século XIX.
Rio de Janeiro: Instituto Cultural Brasil-França: Fundação Casa França-Brasil, 1990. p. 89. Apud Enciclopédia Itau de
Artes Visuais, Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas /index.cfm?
fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=1689&cd_idioma=28555&cd_item=1. > Acesso em 30 de setembro de
2014.
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Figura 22 De la Michellerie, Paço de São Cristovão. Circa 1830-1834. Desenho retocado à aquarela sobre
papel.
Às vezes entrávamos pela floresta selvagem e densa, através dos vãos cheios de
arbustos, em seguida surgíamos em claros campos, com coqueiros esparsos,
entre os quais se viam casas de campo, granjas e plantações. De cada elevação
via-se a baía, o mar ou o lago, completando o panorama. Aqui e ali, a imensa
gameleira surgia como uma torre, adornada, além de suas própria folhas, com
inúmeras parasitas, desde o rijo cactus até a tilândsia; a presença constante de
uma torre de igreja ou de mosteiro suaviza e enobrece as feições da terra."129
Esta ambiguidade de motivações faria surgir não um embate entre a técnica naturalista
versus impressões intimistas, mas a confluência destes dois aspectos no modo de representar a
cidade e seus arredores. A gameleira em Graham seria o trabalho escravo em Debret ou o vazio
da paisagem de Ender: tentativas de descrever um cenário desconhecido e dele iluminar aspectos
representativos deste ambiente.
As imagens relativas à cidade brasileira sofreriam leituras diversas de acordo com os
diferentes viajantes que aqui aportaram. Debret pintaria a cidade como pano de fundo para seu
tema mais caro, a dinâmica da interação social de um recém criado império. Dos umbrais dos
sobrados, dos beirais dos casarios, da praça e do leito carroçável é que desenrolariam as
atividades retratadas em suas aquarelas no primeiro plano: o trabalho dos escravos, o movimento
do comércio, as procissões; o cenário pouco interfere no objeto de estudo: as ações humanas130.
Nas cenas urbanas nas obras de Debret, as linhas arquitetônicas da colônia são sobrepujadas
pelas cenas do cotidiano que marcam o ―atraso‖ das cidades brasileiras perante a Europa, como a
persistência de hábitos rurais e a presença do escravo.
GRAHAM, Maria. Journal of a Voyage to Brazil, and Residence There During part of the Years 1821, 1822, 1823. London:
129
131 Seu parente e mentor foi Jacques-Louis David (1748-1825), importante pintor neoclássico.
132 Técnica de pintura sobre papel que utiliza pigmentos puros e aglutinantes, diluídos em água, proporcionando uma
tinta translúcida. A aplicação é feita em camadas transparentes, que, sobrepostas, intensificam a cor. O suporte mais
utilizado é o papel, em geral de gramatura elevada. Por ser de rápida secagem, foi muito utilizada para pinturas ao ar
livre, como no caso dos artistas viajantes‖. Cf. < http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo/noticias/glossario-
de-tecnicas-e-processos-graficos-e-fotograficos-do-seculo-xix > Acesso em: 21/10/2014
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ser retratado, uma técnica preparatória e transitória para a tela final, em óleo133. A aquarela era
bastante usada na Inglaterra, embora fosse considerada um meio artístico inferior à pintura a óleo
em toda a Europa. Por outro lado, a pintura em aquarela exigia domínio da técnica, pois seria
impossível realizar retoques posteriores, como pode ocorrer com a tinta à óleo134. A dificuldade
em encontrar as tintas nas terras tropicais – sobretudo nas regiões mais afastadas das capitais das
províncias- também era um fator que desestimulava o uso de tintas à óleo, além da constante falta
de determinadas cores no mercado local. Sobre a aquarela – suas qualidades e riscos- Lima (2003)
esclarece:
[...]é uma técnica de efeitos inesperados. A aquarela não está jamais acabada
nem enquanto técnica (pois as cores e contrastes se alteram com o tempo), nem
enquanto composição (as imagens e cenas não são definidas com precisão,
deixando espaço para a imaginação, pontos inexatos).135
Se a ―brasilidade‖ em Debret seria expressa por meio das atividades sociais da colônia, na
obra do austríaco Thomas Ender seria a predileção pela paisagem ampla e vazia136 e a
luminosidade dos trópicos que ressaltariam o pitoresco das cenas expostas137. Ender, artista
que acompanhou a missão científica de Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von
Martius ao Brasil, entre os anos 1817 e 1818, produziu, nesse período, mais de 700 registros das
cenas do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao observar a Figura 25 e Figura 26, vê-se o emprego de
nuances douradas na cena tropical, na tentativa de representar a forte iluminação zenital; o sol do
Brasil quase ofusca a visão do observador, tamanha sua intensidade.
O céu é representado em cores bastante claras, com largo emprego do branco,
fortalecendo a sensação de ofuscamento. Percebe-se que a falta da bordadura de vegetação no
primeiro plano, tão recorrente nas pinturas de tema de paisagem, é parcialmente sanada pela
escolha de cores mais escuros na extremidade inferior direita do quadro.
SIQUEIRA, Vera Beatriz. Redescobrir o Rio de Janeiro. 19&20. Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em:
133
<http://www.dezenovevinte.net/artistas/Redescobrir_RiodeJaneiro.htm>.
134 SOUZA, Valéria S. de. Gosto, sensibilidade e objetividade na representação da paisagem urbana nos álbuns ilustrados pelos
viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852). 2 vols. Tese 1995 (Doutorado em História)- São
Paulo, FFLCH-USP, 1995, p.234.
135LIMA, Valéria Alves Esteves. A Viagem Pitoresca e Histórica de Debret: por uma nova leitura. Tese de Doutorado
apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas. Campinas: [s.n.], 2003, p.136.
136LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>.
137 ARAGAO, Solange de & SANDEVILLE Jr., Euler. Expressões de tropicalidade na pintura dos viajantes, na fotografia de
paisagens e na literatura brasileira do século XIX - contrapondo olhares. In: ENCONTRO DE HISTORIA DA ARTE, 7,
Campinas, 2010. Anais... Campinas: UNICAMP, 2010a, p.434-444..
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Figura 25 Thomas Ender: Vista da Enseada de Botafogo, 1817.Oléo sobre tela. Acervo particular (coleção Geyer).
Fonte:<http://s2.glbimg.com/7Fath6wLuBRSwiM4R18n4=/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2014/05/19/832_vi
sta_da_enseada_de_botafogo.jpg > Acesso em 21 nov. 2014.
Figura 26 Eduard Hildebrandt. Rua Direita, Rio de Janeiro. óleo sobre tela.
1
2
Figura 27 Eduard Hildebrandt. A Glória, Rio de Janeiro, 1846. Óleo sobre tela.
A vinda da família real e a adaptação do Rio de Janeiro como sede do Império nos
trópicos foram o pano de fundo para as inúmeras mudanças que ocorreram na estrutura social e
urbana à época.140 Para garantir o teor de ―civilidade‖ esperado de uma capital de império, órgãos
de manutenção da ordem foram importados de Portugal, como a Intendência Geral da Polícia,
uma das repartições importadas de Portugal responsável pelas obras públicas, iluminação,
segurança e pelo abastecimento de água, iluminação e segurança, bem como pela manutenção da
ordem e disciplina na vida dos moradores.141
Os espaços públicos no Rio de Janeiro do século XIX funcionavam como pontos de
convergência, suas praças e ruas transformavam-se em pontos de interação social, principalmente
entre escravos. Tais espaços constituíam-se como a base da estrutura social das cidades
oitocentistas, contribuindo para o acontecimento de inúmeras formas de interação social. A Rua
Direita, no Rio de Janeiro, era a epítome deste ambiente de trocas sociais. No início do século
XIX constituía-se como uma das principais vias da principal cidade do país, caminho direto entre
o morro do Castelo e o de São Bento, margeando o Largo do Paço (atualmente Praça XV) e
SILVA, L. Memórias do urbanismo na cidade do Rio de Janeiro 1778/1878: Estado, administração e práticas de
140
141DOS SANTOS CARVALHO, Amanda Lima. O Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte Portuguesa: Planos,
intenções e intervenções no século XIX. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, n. 13, p. 55-63, 2014.
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próxima ao Paço Imperial. Pela sua importância e por apresentar tantas convergências em torno
de sua extensão, foi profusamente retratada por inúmeros viajantes no Oitocentos, ressaltando
ora seus aspectos mais pitorescos, ora seus elementos mais críticos.
Figura 28 Felix Émile Taunay, Rua Direita, Rio de Figura 29 Johann Moritz Rugendas, Rua Direita.
Janeiro, 1823. Aquarela sobre papel, coleção particular Litogravura.
Fonte:<http://www2.uol.com.br/historiaviva/bibliot
ecario_de_d__joao_vi_imprimir.html >Acesso em 12 Fonte:<http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog
out. 2014. .com.br/17926/RUGENDAS-RUA-DIREITA-
RIO-DE-JANEIRO/ > Acesso em 12 out. 2014.
Muito mais ―ordenada‖ seria a Rua Direita retratada no quadro do litógrafo e pintor
alemão Emil Bauch (Figura 30). Qual seria a explicação deste Rio de Janeiro mais racional? A
indagação ―a quem se dirige a obra de arte?‖ faz-se pertinente. Bauch, residindo no Brasil desde
1849, seria condecorado em 1859 com a medalha de prata na Exposição Geral da Academia
Imperial de Belas Artes e viu-se inserido no coração da Corte, trabalhando, inclusive, na
decoração do Palácio de Nova Friburgo. 142 Com sua clientela nacional, nada mais natural que
retratar a capital do Império com ares elegantes e ―limpos‖ do atraso colonial.
142PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Um retrato (quase) íntimo da nobreza brasileira: Emil Bauch e a Marquesa do
Paraná. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 3, jul. 2008. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/artistas/ebauch_rapj.htm>.
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Figura 30 Emil Bauch, Vista da Rua Direita, segunda metade do século XIX.
Figura 31 Thomas Ender: Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro, 1817-1818. Pena e sépia143 sobre papel,
27,2 x 43,3 cm. À direita, um detalhe do desenho.
Muito mais tímida é a posição da Igreja quando na sua transposição para a tela a óleo
(Figura 32). Esmaecida e distante da vegetação do primeiro plano, a igreja perde-se em meio à
névoa e ao ofuscamento da iluminação solar. Ao utilizar a aquarela como esboço para a tela
realizada em seu atelier em Viena144, Ender opta por diminuir a presença do elemento construído;
a igreja esmaecida e a cidade além da baía são apenas a mata e a presença humana que se
desenrola em primeiro plano tornam-se protagonistas da cena, realçando-as.
Figura 32 Thomas Ender, ―Arredores do Rio de Janeiro‖1817 óleo sobre tela 104 x 188 cm
143 Sépia: ―Bastante popular no século XIX, esse pigmento era extraído da tinta natural da siba – um molusco similar
à lula – e possuía uma coloração semitransparente de cor marrom-escura. Quando diluído em água, adquiria um tom
castanho avermelhado. Foi amplamente utilizado na composição de tintas para diversos usos, seja para a pintura,
com maior ou menor diluição em aguadas, ou para gravura‖. Cf: <
http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo/noticias/glossario-de-tecnicas-e-processos-graficos-e-fotograficos-do-
seculo-xix> Acesso em: 21/10/2014.
A distância temporal não é a única presente no universo desta tela. Ender parece se
distanciar da cidade brasileira até mesmo em sua representação, preferindo iluminar os aspectos
mais pitorescos da paisagem brasileira, que corresponderiam melhor aos gostos dos
consumidores de pinturas com a temática tropical, relegando à urbe a um papel secundário de
composição. É aqui, na tela à óleo, a técnica ―final‖ por excelência, que Ender se deixa influenciar
pelos cânones da pintura de paisagem: A vegetação verticalizada a emoldurar os limites laterais do
quadro, entremeada por uma diversidade vegetal e pela presença dos ―tipos humanos‖
caracterizadores dos trópicos. Resgatando os conceitos de linear e pictórico apresentados por
Wölfflin (1984), a aquarela se mostra muito mais linear –e, portanto, buscando-se mais a
―catalogação‖ e apreensão da paisagem pelos preceitos naturalistas - do que pictórica; a tela a
óleo, mostrar-se-ia muito mais idealizada e homogeneizadora em termos de mensagem145.
Entretanto, como indica Lima (2008): [...]Isso não significa que a referência não seja mais a
realidade observada pelo artista, mas o resultado de seu trabalho não se subordina ao olhar que
tudo classifica e define no interior de contornos muito marcados146.
Ao se afastar das áreas urbanas, outros aspectos da paisagem construída saltariam aos
olhos dos viajantes. Assim como os cânones neoclássicos pregavam, a presença de ruínas nas
composições dos quadros eram um elemento primordial para a transmissão do tema do
pitoresco. As ruinas coloniais de antigas localidades abandonadas fariam às vezes de ruínas
clássicas greco-romanas, uma vez demonstrando o uso dos schemas clássicos aprendidos na
representação tropical.147 A Figura 33 corresponde a uma litografia do desenho original de
William Ouseley, representando uma ruína de igreja na Bahia. Ouseley encarrega-se de dar
importância ao edifício arruinado e diz que encontrou ―vestígios de detalhamentos arquitetônicos
em pedra e mármores bem cortados, atestando o cuidado com o qual o local fora antes
ornamentado, e a que custo fora construído‖148
145LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>
146LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>
147 BELLUZZO, Ana Maria. O viajante e a paisagem brasileira. Porto Arte, v. 15, n. 25.
148OUSELEY, William Gore. Views of South America: from original drawings made in Brazil, The River Plate, The Parana.
With Notes. London: Thomas McLean, 1852, p.18. apud: HERMANN, C. G. . Buscar Vitruvius nos trópicos -
percepções de viajantes ingleses da primeira metade do século XIX sobre o Aqueduto da Carioca. Concinnitas
(Online) (Rio de Janeiro), v. 2, p. 11, 2014.
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Figura 33 William Gore Ouseley. Ruínas da Figura 34 Thomas Ender, Nos arredores do mangal de S. Diogo.
Capela de São Gonçalo, Bahia. Bahia, 1852. Nanquim e aquarela sobre papel.
A Figura 34, de autoria de Thomas Ender, traria a coexistência desses dois processos: a
ruína está lado a lado com a casa-grande em pleno funcionamento.
Há, entre o olhar de quem produz a obra e de quem a observa – instantes, anos ou
séculos depois – uma lacuna onde se misturam linhas, esquemas, cores e interpretações da
realidade retratada. Ademais, a interpretação de uma obra não seria uma via de mão única; como
veremos a seguir. O observador final muitas vezes tem influência direta na composição - para
quem o artista trabalha?- ou até mesmo na interpretação da obra: diferentes períodos ou
diferentes sociedades darão ao objeto artístico leituras diversas. Portanto, antes de carregar
qualquer peso de veracidade, os panoramas e paisagens retratados falam muito de como fomos,
em diferentes épocas, observados e quais lentes, lapidadas por intenções e interesses diversos
auxiliaram nesta visualização e posterior representação .
A obra de arte, especialmente a imagem, não é o reflexo de um real recortado antes de
qualquer intervenção do espírito humano em objetos conforme as nossas
nomenclaturas. (...) Ela não é jamais analógica, mas sempre constelada por numerosos
elementos que associam lugares e tempos não homogêneos. (...) A Arte nos informa,
em suma, mais sobre os modos de pensamento de um grupo social que sobre os
acontecimentos e sobre o quadro material da vida de um artista e seu ambiente. A obra
está no imaginário. (FRANCASTEL, 1993, p.17).
―conexidade‖ (Zusammengehörigkeit)- e não sua dependência- entre o texto e a imagem já havia sido
abordada por Warburg. Para ambos não há meios de se separar o estudo do conteúdo das
imagens de sua estrutura; a forma e a função são intrinsecamente ligadas; uma possível
abordagem em que se ilumine uma e sublime a outra se mostraria incompleta. Os esboços muitas
vezes chegavam à Europa com informações à bico de pena em suas margens, com explicações a
respeito da cor, dos materiais empregados, etc. Na Europa, passariam por inúmeras mãos e
técnicas diferentes, manejados por pessoas que geralmente não conheciam a paisagem a qual
estavam manuseando, rearranjando elementos e os modificando.
A adoção do ponto de vista do naturalista parece levar a paisagem-instantânea a um
processo interno de multiplicação e variação de tal ordem que indica por vezes sua implosão
antes mesmo de acabada. Daí a quantidade de esboços, desenhos inconclusos, aquarelados
apenas em parte. O que se explica pela pressa dos viajantes, mas também por esse desejo de ao
mesmo tempo representar e colecionar a paisagem. Como se, não bastando o simples registro de
uma vista, fosse necessário delinear com nitidez ainda alguma árvore, espécie vegetal de pequeno
porte, algum homem em atividade característica ou apenas passando. Como se uma prancha
devesse cumprir papel de várias. Como se numa estampa se devesse dar conta de uma
multiplicidade de espécies existentes ou atividades possíveis naquele exato local. Ou singularizar
simultaneamente diversos elementos que, a rigor, poderiam estar dispersos, imersos numa vista
geral, num grande plano150.
O esboço, portanto, era tratado muito mais como um documento do que como uma
experiência artistica, uma vez que era entregue ao chefe das expedições e aos governos da mesma
forma que os relatos, cartas geográficas, espécies botânicas, etc.
As facilidades de entrada e locomoção por terras brasileiras desde a Abertura dos Portos
alentou a realização de viagens de exploração; para além dos fatores já citados, soma-se o
aumento da popularidade de publicações que retratassem as novas colônias como elemento
catalisador do número de viajantes em terras brasileiras dispostos a descrevê-la, no intuito de
posteriormente ver suas anotações publicadas. Se antes a circulação das imagens e relatos de
terras longínquas se restringia a um seleto grupo de leitores e apreciadores, a popularização da
imprensa e os avanços nas técnicas de reprodução de imagens baratearam e tornaram acessíveis
publicações fartamente ilustradas, dando aos desenhos e pinturas novos usos, novos raios de
influência, pois:
150SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.
118-119.
| 78
Até o século XVIII, a impressão de uma imagem ou escrito em larga escala era uma tarefa
que demandava muito tempo e um considerável número de pessoas envolvidas. A técnica de
xilogravura, surgida na China, consistia no entalhe de uma imagem em uma peça em madeira,
deixando em relevo os elementos que se pretendia reproduzir. Em seguida, aplicava-se a tinta na
superfície da madeira e prensava-a com algum objeto que auxilia-se na revelação da imagem no
papel ou outra superfície. Posteriormente, a técnica aperfeiçoou-se em uma nova matriz,
usualmente cobre ou alumínio, que lentamente foi sendo preferida na produção das publicações,
especialmente após o domínio da técnica de laminagem, o que auxiliou na diminuição nas
espessuras das lâminas trabalhadas.
Figura 35 Armand Julien Pallière, Vila Rica por Armand Julien Pallière, 1820. Litogravura
A ideia comumente sugerida, que a distancia entre local retratado e local de gravação
também aumentaria a distancia entre a realidade e o produto final, pode-se usar a figura do
151GOYA, Edna de Jesus. Gravura comercial ou aplicada em Goiás: documental, publicitária e de ilustração. In:
ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 20., 2011, Rio
de Janeiro. Anais... . Rio de Janeiro: Anpap, 2011. p. 432- 445. Disponível em:
<http://www.anpap.org.br/anais/2011/>. Acesso em: 26 ago. 2014.
| 79
litógrafo e aquarelista francês Arnaud Julien Pallière, pioneiro da litogravura no Brasil para
apontar que, ao contrário do que se pode deduzir, os schemas da arte já eram tão arraigados no
subconsciente do artista que mesmo imerso durante anos nos trópicos brasileiros, sua
representação pouco diferenciar-se-ia das imagens produzidas na Europa.
| 80
CAPÍTULO 2
Exuberantes panoramas:
A urbe em panoramas e vedutas.
153SALGUEIRO, Teresa Barata – Paisagem e Geografia. Revista Finisterra, ano XXXVI, vol. 72, p. 37-53. Lisboa,
2001.
CLARK, Keneth Paisagem na Arte: Editora Ulisséia, Lisboa, 1961apud Parques Nacionais - Brasil/ Guias Philips:
154
Humboldt inicia a tradição da análise e apreensão das cenas naturais por meio do olhar científico
e estético, simultaneamente e com mesma importância, influenciou posteriores viajantes.
NAXARA, M. Natureza e civilização: sensibilidades rimanticas em reoresentalçies do Brasil no século XIX. In: BRESCIA I,
155
M. S. & NARXARA, M. (Orgs.) Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma quesão sensível. Campinas:
Editora da Unicamp, 2001.
complexa de acordo com dinâmicas que relacionam aspectos sociais, culturais e naturais158. A
paisagem, portanto, não é meramente constituída pelos acidentes topográficos, o conceito de
paisagem, segundo Rivera e Bujalance (2010), apoiados em escritos de Delgado Y Ojeda (2007)159
apontam que a paisagem deve ser compreendida como o produto final de um processo em que
determinado espaço geográfico transforma-se em um território ou um país a partir de um longo
processo de apropriações, normatizações e organizações e termina sendo codificado em
160
paisagem, por representações e percepções culturais. A dualidade de sentidos para a palavra
(por representar e remeter tanto as paisagens materiais quanto as paisagens mentais) é trabalhada
pelos pesquisadores Graciela Silvestri e Fernando Aliata no livro El paisaje como cifra de armonía
(1999)161. Silvestri, em outro escrito, nos dá pistas importantes para a abordagem do estudo deste
conceito:
Por ciento, el tema del paisaje puede ser abordado, como cualquier otro,
haciendo pie em uma sola de sus múltiples sugerencias. Lo que es imposible
cancelar es el horizonte complejo sobre el cual cada uma de ellas se recorta y
halla em gran medida su sentido. La Gioconda es um retrato; pero sabemos que
em su fondo está também la clave de sua ambígua seducción. Em el tema de
paisaje, la permanente alusión a algo existente que no se disuelve em la
representación es um dato constitutivo del concepto; enfrentarse com esto es
tan timportante como para la Gioconda su inquietante fondo162.
A leitura e a apreensão da cidade pode ocorrer sob distintas lentes, muitas dessas apoiadas
em diversos teóricos neste campo; embora não encerrem as discussões, podem ser utilizadas para
completar uma as outras ou apresentar como a cidade se é dada a olhar sob um aspecto
peculiar163. Se em Mumford (1961) a ―cidade é um fato da natureza, tal como uma gruta ou um
158MARTÍNEZ DE PISÓN, E. El paisaje patrimonio cultural. Revista de Occidente, 1997, nº 189, p. 36-49 apud
RIVERA, Juan Francisco Ojeda; BUJALANCE, Buenaventura Delgado. Representaciones de paisajes agrarios
andaluces. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, v. 14, n. pp. 310-347, 2010.
161Silvestri, Graciela; ALIATA, Fernando. El paisaje como cifra de armonía. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visíon,
2001.
162 SILVESTRI, Graciela. Paisaje y representación. Prismas, Revista de historia intelectual, nº3, pp. 231-245, 1999.
163 GOITIA, Fernando C. Breve História do Urbanismo. Lisboa: Ed. Presença, 1989 apud Aristóteles Siqueira Campos
Cantalice. Uma breve reflexão sobre a forma urbana. Architecton - Revista de Arquitetura e Urbanismo, Recife, v. 02, n.
01, p.35-45, fev. 2012. Disponível em:
<http://www.faculdadedamas.edu.br/revistas/index.php/arquitetura/article/viewFile/223/217>. Acesso em: 02
out. 2014.
| 84
formigueiro‖ ela também é ―uma obra de arte, consciente‖164; configurando-se também como um
mosaico de outras formas de arte mais simples e pessoais e, por inserirem-se no universo de
elementos produzidos por uma sociedade, é testemunho físico da História; ainda apoiando-se na
analogia com a obra de arte, é possível admirá-la sob vários ângulos, enquadrando-a por inteiro –
e dessa forma tendo uma leitura do todo sem atentar às especificidades - ou escolhendo trechos e
deles ressaltando detalhes importantes na construção dessa estrutura geral.
Para a discussão que se segue, importa-nos essas diversas visões, a cidade como obra de
arte, como repositório de temporalidades e como um fato da natureza, tudo isto à luz da
discussão da representação da paisagem relativa às cidades brasileiras do oitocentos. Seja de perto
ou de longe, os volumes e a silhueta da cidade sempre interessaram aos artistas.
No entanto, antes de aprofundarmos a discussão das representações das vistas urbanas e
naturais, não podemos desvincula-la do conceito de paisagem ideal, uma matriz figurativa surgida
na Itália no início do século XVIII que aborda a concepção de natureza e detém cânones tão
definidos e fortes que se tornou não somente um paradigma para a arte da paisagem europeia
como também influenciou e ―treinou‖ o próprio olhar do viajante e sua maneira de percepção,
composição e rearranjo dos elementos da paisagem a ser retratada165. Salgueiro(1995) traz a
definição de paisagem ideal pelo Lexikon der Kunst166 com as seguintes palavras:
Por ela entende-se uma clara e harmoniosa paisagem plena de sol e luz.[...] Na
paisagem ideal são eleitas seções de paisagens reais que, segundo rigorosos
princípios, são reunidas em uma única e determinada composição, composta
mediante a construção de coulisses no primeiro plano e de recessão (visão
profunda para dentro do espaço). [...] Os principais representantes dessa
abordagem foram os artistas franceses atuantes em Roma, Nicolas Poussin e
Claude Lorrain167.
O artista não buscava a representação tal como a realidade se apresentava, mas como ela
deveria ser, ora produzindo imagens de árvores, pessoas e edificações que não existiam na
realidade ora retocando as que haviam de fato, sempre no intuito de compor e fazer ressaltar
determinado aspecto que ele almeja passar com sua tela ou desenho (a natureza selvagem? A
calmaria idílica dos trópicos? A decadência das cidades?).
Como o artista compunha a sua obra? Partia-se de uma estrutura já discutida
anteriormente: dividida em três planos (primeiro plano, plano intermediário e plano de fundo),
164 MUMFORD, Lewis. A Cultura das Cidades. Belo Horizonte: Ed.Itatiaia, 1961.
165 SALGUEIRO, 1995, p.104. op. Cit.
166 Importante obra sobre História da Arte, nos moldes de uma "Enciclopédia da Arte".
167 Cf. Lexikon der Kunst, vol. 4, Leipzig, 1975, apud SOUZA (1995), p.104
| 85
168AGUILLAR, Nelson (org.). Mostra do descobrimento: o olhar distante - the distant view. Fundação bienal de
São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 anos artes visuais, 2000, p.39.
| 86
Entretanto, mesmo com o uso destas ferramentas, o artista deveria ser hábil na
representação de múltiplos pontos de fuga e na representação miniaturizada;169 o que, a um
primeiro momento, não parece que foi um grave problema, uma vez que grande número de vistas
panorâmicas no Oitocentos também revela-nos que a maioria dos artistas da época possuíam
afinidade com a visão do espaço amplo170. Outra inovação que pode ser observada é a
representação que o panorama oferece ao artista oitocentista, ao transgredir os cânones da
pintura de paisagem renascentista, na qual os métodos de perspectiva linear limitava o ângulo de
visão em 45°, uma vez que a ―cabeça‖ do expectador deveria estar fixa e a imagem representada
seria limitada à área varrida pelo seu olhar nesta posição.
Fonte: <http://www.nytimes.com/2012/05/09/arts/09iht-conway09.html?pagewanted=all&_r=0>
Acesso em: 01out.14.
Figura 37 Claude Lorrain, the Embarkation of Saint Paula Figura 38 Claude Lorrain, Landscape With A Sacrifice
for Jerusalem, 1639. Óleo sobre tela, 100.9 x 135.2 cm. To Apollo, 1639-40. Oleo sobre tela
O panorama circular
171CORDEIRO, C. H. G. M. ; Cláudia Maria França da Silva . Paisagens Desenhadas: Reflexões Sobre a Construção de uma
Geografia Subjetiva - V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual - UFG, Goiânia: ISSN: 2316-6479.
In: V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual, 2012, Goiânia. Anais do V Seminário Nacional de
Pesquisa em Arte e Cultura Visual, 2012. p.13.
PERROTA, Isabella. Desenhando um paraíso tropical. A construção do Rio de Janeiro como um destino turístico. 2011. 109 f.
173
Tese (Doutorado) - Curso de História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (cpdoc), Rio de Janeiro, 2011. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8997>. Acesso em: 30 set. 2014, P.91.
| 88
Os panoramas variavam de escala, desde aqueles que deveriam ser observados de cima
(panoramas de salão, como a Figura 39) ou aqueles em que era necessário que o espectador
entrasse em uma estrutura própria e observasse o desenho (menor em tamanho que os de salão),
dando a sensação de estar no local retratado, concebidos como entretenimento comercial174. Os
salões para panoramas foram criados a partir da exposição da tela do pintor inglês Robert Barker,
cuja pintura da cidade de Edinburgh, na Escócia, foi exposta na rotunda projetada pelo arquiteto
Mitchell, em Leicester, em 1799175.
Figura 39 Robert Barker, panorama da cidade de Edinburgh, Escócia. Óleo sobre tela, 1783
A partir desta primeira exposição, outras imagens seriam realizadas no intuito de serem
expostas nas rotundas construídas nas grandes cidades europeias176; muitos destes panoramas
foram pintados a partir de esboços ou pinturas de paisagens distantes realizadas por viajantes
europeus. As imagens tropicais não seriam unanimidades, artistas como o britânico Frederick
Catherwood retratariam Tebas e Jerusalém, imagens que fariam tanto sucesso quanto as vistas
O surgimento dessa nova maneira de se admirar a cidade fez surgir o padrão de leitura da
―categoria cidade‖ disciplinando o olhar dos espectadores para este objeto específico178. Inclusive
seria o crescimento da cidade industrial europeia quem daria impulso ao estabelecimento das
cenas urbanas (as atividades características da cidade) como uma das grandes temáticas da
pintura. De acordo com Meneses (1996), com o advento da industrialização ―a cidade se torna
cada vez mais complexa, ao mesmo tempo em que se acentua seu caráter de um sistema de
representações‖179.
O autor prossegue apresentando-nos os modelos mentais e visuais pelos quais, ao longo
da história, o ambiente urbano foi pensado, propostos por Christine Boyer (1994): A cidade
como obra de arte, característico da cidade tradicional; a cidade como panorama, característico da
cidade moderna; e a cidade como espetáculo, característico da cidade contemporânea. Meneses,
apoiado em Boyer, afirma que fora destes parâmetros propostos, o trabalho com imagens de
cidade com o foco na história fica comprometido.
Salvador em panorama
"A vista da cidade é magnífica. Ninguém seria capaz de imaginar nada tão belo
quanto a antiga Cidade da Bahia. Ela fica docemente aconchegada num bosque
exuberante de lindas árvores e, situando-se sobre uma colina íngreme,
descortina as águas calmas da grande Baía de Todos-os-Santos. As casas são
brancas e altivas. Os conventos, os pórticos e os prédios públicos quebram a
Figura 41 Charles Landseer, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, 1825.
Este desenho de Landseer representa (Figura 41) a baía de Todos os Santos vista de um
ponto da Cidade Alta, em Salvador. Observa-se no detalhe 1 o emprego de espécies vegetais
típicas (mamoeiro e bananeira) a ressaltar a imagem tropical de uma das maiores cidades
brasileiras à época. Percebe-se a representação dos sobrados mais altos que o ―usual‖ no que
tange a representação da arquitetura colonial, indícios da importância econômica da cidade.
Observar-se a construção das edificações ao longo da encosta, criando um jogo de alturas,
salientando a ―informalidade‖ do traçado, em primeiro plano, o muro da ladeira acentua o
182DARWIN, C. Correspondence, 10 vols. Ed. de F. Burkhardt & S. Smith. Cambridge, Cambridge University Press,
1985-1997 (Correspondence) apud HORTA, Marcio Rodrigues. O impacto do manuscrito de Wallace de 1858. Sci.
stud., São Paulo , v. 1, n. 2, June 2003 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662003000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 13 Nov. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662003000200007.
| 92
No sopé da montanha que liga a cidade baixa e alta, observamos apenas as duas torres em
estilo barroco da Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia183 (A), pontuando a cena com
motivos religiosos e pitorescos. Ao longe, vislumbra-se os contornos do que seria o complexo da
Igreja e Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Serrat (B)184. A Igreja do Corpo Santo (na imagem
aparece com uma torre, embora atualmente não a possua mais)185
Figura 42 Friedrich Salathé, Vista da cidade de S. Salvador na Bahia de Todos os Santos, água-tinta, 65 x 123,7cm,
1826
Catedral Basílica
Bahia de 1859 a 1862186, tiradas a partir do Forte São Marcelo. As arcadas do térreo, no entanto,
chegam a possuir a altura equivalente a dois pavimentos, lembrando muito mais as construções
romanas ou italianas que a arquitetura colonial. Ademais, cena como um todo parece muito mais
com a vista de uma cidade italiana que uma cidade brasileira, principalmente pelo emprego da
embarcação de traços italianos. A faixa de céu e de mar oprime a cidade, diminuta e estirada,
embora com prédios de quatro andares, prova material da importância econômica e política da
cidade, Salvador aparece horizontalizada. O mais interessante nesta imagem é de que não consta
na bibliografia pertinente ao tema a sua vinda ao Brasil; Salathé seria um exemplo, dentre muitos,
que leriam a paisagem brasileira através dos olhos de outro –ou de vários outros- viajante.
Tal como na comparação entre a litogravura realizada por Landseer em solo brasileiro e a
produzida na Europa, nota-se os schemas tão bem amarrados na obra dos artistas que
representaram o Brasil in loco, é quase imperceptível a diferença daqueles que não visitaram o país;
interessante notar as estratégias que Salathé usa para transmitir veracidade ao seu desenho, como
as embarcações em primeiro plano, denotando que o artista estava dentro de uma outra no
momento em que divisava a cidade e tomava nota a partir de tintas e lápis.
E aqui é um risco que se toma ao confrontar fotografia e desenho, espera-se que o leitor
não tome uma mais verossímil que a outra, por que não se deve perder de vista que no corupus
de elementos que podem traduzir a realidade, a fotografia é uma alternativa a mais de leitura de
mundo.
A cidade do Rio de Janeiro foi amplamente retratada pelos viajantes ao longo do século
XIX como capital do Império e principal porto de entrada da maioria dos europeus que
chegavam ao Brasil, sua baia. São suas descrições, somados aos inúmeros outros relatos viajantes
que auxiliariam na fundamentação do imaginário sobre o Brasil.
O panorama de Benjamin Mary mostra-nos que até mesmo o panorama, que em tese,
deveria informar com acuidade ao observador a respeito dos pontos marcantes e característicos
de uma cidade, variaria em intensidade de schemas empregados, sem no entanto perder de vista
que todos, mais realísticos ou não, serviriam ao proposito de informar e fazer circular os vários
fundos-comuns imagéticos a respeito de nossa paisagem.
As duas vistas panorâmicas apresentadas possuem elementos em comum para além da
cidade retratada. Ambas foram desenhadas a partir do topo do Monte do Castelo, cuja altura era
de aproximadamente 63 metros e tinha por limites as atuais Avenida Rio Branco (antiga Avenida
Central) Santa Luzia, São José e Misericórdia188.
O Morro do Castelo, mirante utilizado por ambos os artistas, foi um importante marco
para a história urbana carioca, uma vez que Mem de Sá escolheu o Morro do Castelo como local
dos assentamentos definitivos da cidade, em 1567189. A escolha deste sítio para a tomada de cena
187CANABARRO, I. S. . Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre,
v. XXXI, p. 23-39, 2005, p.24.
188
189BARROS, Paulo Cezar de. Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro ? ( um pouco da história do Morro do
Castelo. Revista Geo-paisagem: Niterói, v. 01, n. 02, jul/dez 2002. Semestral. ISSN Nº 1677 – 650 X. Disponível em:
<http://www.feth.ggf.br/origem do rio de janeiro.htm#_ftn1>. Acesso em: 30 set. 2014.
| 95
não foi por acaso. Além da sua altura, o topo do morro seria importante por causa de seu ponto
de longitude, como SMITH & SMITH (1967) indicariam, apoiados nas poucas palavras que
Burchell deixaria registradas: [...] The Castello Hill in the town of Rio de Janeiro (S 22° 54’, W 43° 11’,
the first settlement on Rio and the zero point of longitude on old Brazilian maps, later removed for fill o extend the
city into the bay)190. Sem dúvidas não imaginariam qual o destino que o morro teria décadas depois;
no esforço de abarcar a modernidade pungente, o morro do Castelo seria arrasado.
Figura 44 Benjamim Mary, Panorama do Rio de Janeiro, 1835. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel, 30,3 X
312,4 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo.
1 2
Neste panorama, realizado por Benjamin Mary, a cidade toma lugar secundário, como um
pano de fundo, pois interessa muito mais ao artista retratar a miríade tropicalidade da vegetação,
com suas cores, texturas e formatos do que nos informar a respeito da paisagem construída,
como se retrocedesse alguns passos para o interior da mata e vislumbrasse a cidade a partir daí,
com uma cortina de coqueiros, cipós e mamoeiros à frente.
190SMITH, Lyman B.; SMITH, Ruth C. Itinerary of William John Burchell in Brazil, 1825-1830, Phytologia, vol.14, n.8,
1967, p.492-506.
| 96
O ponto de vista escolhido foi o bairro de Santa Teresa, situado sobre um morro junto ao
centro191, o que nos coloca em outra perspectiva.
Figura 45 Johann Jacob Steinman, Rio de Janeiro visto a partir do morro de Santa Teresa, 1834.
Fonte: <http://historiasemonumentos.blogspot.com.br/2014/04/passeio-publico-do-rio-de-janeiro1779.html>.
Acesso em: 10/10/2014.
A luminosidade arcádica, inspirada nas pinturas italianas de Lorrain, se faz presente nesta
obra de Steinman. O casario da Lapa, o Passeio Público e o Morro do Castelo estão aqui
representados com traços neoclássicos, retos e limpos. A vegetação dos quintais e do entorno
natural assemelham-se muito mais aos pomares e ciprestes europeus do que às espécies
tropicais192. Todos esses elementos auxiliariam na transmissão de uma imperturbável calmaria,
reforçada pela bruma que recobre a baía e o plano de fundo esmaecido da cadeia de morros ao
longe, nesta aquarela, como em tantas outras, a urbe colonial seria retratada com um forte peso
pitoresco, realística de certo modo, de traços estrangeiros até certa medida, mas não o suficiente
para imprimir estranhamento nos fruidores dessa arte na Europa.
A síntese encontrada no panorama, o desejo de abarcar a porção máxima de uma cidade,
arraial ou vila, seria, pois, extrapolada pelos anseios de artefato decorativo e lucro pela companhia
Zuber de papéis de parede. Aqui, mais do que informar o Velho Mundo sobre as terras
191OLHAR viajante na Casa Fiat de Cultura: Coleção Brasiliana / Fundação Estudar da Pinacoteca do Estado de São
Paulo. Minas Gerais: Casa Fiat de Cultura, 2008. Exposição realizada em Minas Gerais, Casa Fiat de Cultura, 22/10-
18/12/2008, p.31.
192 RAMINNELLI, op. cit. p.26.
| 97
longínquas do Brasil, ela servirá de ornamento das residências das classes médias e da burguesia
europeias, servindo ao gosto do momento por imagens utópicas e exóticas193.
Figura 46 Jean-Julien Deltil (baseado em desenhos de Johann Moritz Rugendas), Vistas do Brasil, Primeira metade
do século XIX. Acervo Instituto Moreira Salles. Aquarela sobre papel, 451 x 1541 mm.
1 2
O painel de Jean-Julien Deltil, Panorama du Brésil (1829) é composto por trinta telas
inspiradas em litografias de Rugendas quando no Brasil, ilustrações do livro Voyage pittoresque dans
le Brésil, publicado em fascículos entre 1827 e 1835194. No painel encontram-se as várias tipologias
vislumbradas pelos viajantes: a casa-grande (aqui, remodelada com traços mouros), a igreja
(assentada em uma elevação, remetendo à realidade de sua posição de acrópole na cidade, ornada
com uma profusão de palmeira), as tipologias indígenas e senzalas. As cores sólidas e vivas e as
constrições operadas por Deltil na paisagem escondem, no entanto, os investimentos técnicos
necessários ao seu fabrico em série, inerentes à produção de gravuras à época, como aponta
Celeste Zenha (2002):
194ZENHA, Celeste. O Brasil de Rugendas nas ediçoes populares ilustradas. Topoi - Revista de Historia PPGHIS, Rio de
Janeiro, v. 5, p. 134-160, 2002. P. 146.
| 98
recebeu um fundo colorido. O efeito da luz do sol no céu azul foi obtido
através do emprego da técnica do irisé que sobrepôs duas cores produzindo um
dégradé que vai do azul da parte superior da imagem ao bege da altura do
horizonte para baixo. [...]quando as vendas reunidas de todos os tipos de
panoramas totalizaram 598195.
Figura 47 Papel de parede atualmente impresso pela Casa Zuber, nota-se que os desenhos continuam idênticos ao
original.
Figura 48 Sala de jantar da Embaixada brasileira em Moscou, Rússia. Notar o emprego do referido panorama.
imagem única ou agrupados numa forma que remotamente lembram métodos como os de
Warburg.
Figura 49 Johann Moritz Rugendas, "Brasilien", imagens que tentam resumir as paisagens brasileiras.
Felix- Émilie Taunay veio ao Rio de Janeiro em 1816, acompanhando seu pai, integrante
da Missão Artística Francesa, o pintor Nicolas Antoine Taunay, de papel decisivo em sua
formação artística. Em 1821 realizou uma série de desenhos e aquarelas que constituem o
primeiro Panorama do Rio de Janeiro até hoje conhecido, e posteriormente pintado em tela, em
1824, por Fréderic Guillaume Ronmy e exposto em Paris, na rotunda do Boulevard des Capucines196.
Controversa autoria, uma vez que estudiosos de arte como Mário Barata e Margareth
Pereira levantam hipóteses sobre o real autor das oito pranchas; algumas correntes afirmam ser
de Nicolas-Antoine Taunay, como foi publicado por M. David Roy (1990), mas até o presente
momento as provas não se mostraram consistentes o suficiente para que a autoria fosse
reclamada e retirada de Taunay.
196DIAS, Elaine. Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp,
2009.
| 100
Félix Taunay possuía uma ligação estreita com a dimensão urbana do Rio de Janeiro, pelo
menos do ponto de vista estético, uma vez que colaborou com o arquiteto Grandjean de
Montigny no programa de embelezamento das ruas da cidade do Rio de Janeiro. Ademais, sua
técnica de pintura de paisagem lhe valeu, como substituto do pai, a cadeira de Paisagem da
Academia e Escola Real de Belas Artes, mais tarde Academia Imperial de Belas Artes, onde
lecionou entre 1820 e 1851197.
1 2
2
Fonte: SOUZA, 2009.
Figura 51 Jacob Steinmann, possível base para ampliação do panorama do Rio de Janeiro, 1824.
199Johann Jacob Steinmann (1804 - 1844), Johann Jacob Steimann chegou ao Brasil em 1825, contratado para instalar
uma oficina litográfica no Arquivo Militar.
200LEITÃO, Thiago. O panorama digital: da representação pictórico-espacial às experiências digitais. Dissertação de Mestrado,
213p. Rio de Janeiro: PROURB, 2009, p. 31. Com isto, a nossa omissão em atribuirmos à cidade brasileira maior ou
menos destaque em determinados panoramas, uma vez que a grande porção de céu era necessária para a reprodução
em panoramas circulares.
| 102
Imperial se ofereceu aos olhos, e ao grande pincel do autor, e onde ele copiou
as diversas paisagens desta cidade.201
Seria ridículo descrevera cidade do Rio janeiro às pessoas que podem vê-la ou
que a viram. Seria ridículo e impossível descrever o país que a rodeia.
Combinar-se-iam em cem maneiras as palavras beleza, grandeza, majestade,
magnificência sem lhe fazer ver, sem lhe fazer sentir, sem lhe fazer
compreender. [...]é preciso ir ver um dos mais belos panoramas que já foram
oferecidos aos nossos olhos202.
No entanto, outro panorama teria por título ―O Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro‖ e
seria de autoria de Burchell, que deixou-nos uma inestimável obra acerca de seu olhar sobre a
cidade; tomando notas e esboços d’après nature, o viajante procurava esboçar elementos e tipos
que mais tarde poderiam ser elaborados em pinturas mais complexas; entretanto, nunca as
chegou a fazer. O que afinal chamaria a atenção do experiente viajante? Se os trabalhos de
Rugendas seriam denominados de ―obras de juventude‖ por Diener (1996)203, o mesmo não
poderia ser dito de um artista-viajante que passou uma década percorrendo outras terras tropicais.
Visualizar a paisagem era, sobretudo, tentar catalogá-la. Embora houvesse o ―desejo‖ em
colecionar espécies ou atividades referentes ao local, a idéia do ―empilhamento‖ de elementos
nitidamente tropicais recai no conceito de schemas gombrichiano.
Para dar veracidade à cena, fazia-se necessário ressaltar ou adicionar elementos característicos
do local, daí a profusão de plantas e animais endêmicos das florestas tropicais, os escravos
negros, o indígena, as ruas em desalinho, as gelosias nas esquadrias, dentre outros elementos. Se
o trabalho de Burchell, à primeira vista, nos parece ―livre‖, o que pode ter influenciado
afirmações como as de seu primeiro estudioso, Ferrez (1981), ao observamos minuciosamente
observaremos que os cânones estão ali, apenas encobertos e mais discretos.
Antes de se iniciar a análise do panorama realizado por Burchell, faz-se necessário indicar que
o botânico não produziu apenas um em sua estadia no Brasil, outro panorama foi desenhado para
201 Spectador Brasileiro, 23/08/1824, Biblioteca Nacional, apud, DIAS, Elaine, 2010), op. Cit., p.213.
202Le Courrier Français, 28/05/1824, Bibliothèque de l‗Institut de France, Paris apud, DIAS, Elaine (2010), op. cit.
P.214.
a cidade de Belém, na província do Grão-Pará, em 1829, quando na sua estadia de nove meses à
espera de embarcação para a Europa. No entanto, este panorama encontra-se, até o momento,
perdido, restando apenas seu índice, o que nos dá uma breve idéia do quão preciso deveria ser.
O Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro é um conjunto de oito pranchas sequenciais,
realizadas em 1825, executado no interior da fortaleza de São Sebastião, no morro do Castelo.
Aquareladas e desenhadas a bico de pena, no formato 53 x 37 cm cada uma, o que dá ao
conjunto o tamanho de 4,24 x 37 cm. O índice remissivo do panorama foi perdido, contudo,
Gilberto Ferrez em sua publicação sobre o “O Mais Belo Panorama...” recompõe a parte relativa às
ruas, elevações e prédios, sendo a referência base para as considerações a seguir204:
O ―Mais Belo Panorama do Rio de Janeiro‖ (1825) mostra-nos uma cidade em destaque, como
poucas vezes foi representada pelos artistas viajantes dos oitocentos. Do ponto de vista
expressional, temos duas curvas ascendentes no qual seu ponto mais alto corresponde ao centro
do desenho, o que caracteriza a imagem como um panorama circular. Fontes indicam que o
panorama de Burchell foi adquirido pelo panoramista Buford, sucessor de Robert Barker no
comando da rotunda dupla de Leicester Square, ampliado no atelier de Buford e exposto na
rotunda em 1828 206.
204A figura do panorama inserido no corpo do texto tem finalidade ilustrativa, uma cópia do Panorama pode ser
encontrada no Anexo desta pesquisa.
205 Ver Pranchas no ANEXO A.
Longe do acanhamento com que costumeiramente foi descrita, a urbe carioca espraia-se
pelo terreno – e pelo papel- com profusão de elementos e toma importância ao longo das oito
pranchas que correspondem ao desenho. Percebe-se que, diferente de outras vistas panorâmicas,
o ambiente construído e seu entorno ocupam maior espaço do que o céu ou o oceano, porém,
deve-se notar que os panoramas circulares tinham grande parte de seus cenários ocupados pela
abóbada celeste no intuito de. Nota-se a vegetação207 em riscos rápidos e esquemáticos enquanto
a arquitetura é desenhada em pormenores e traços precisos. Ao fundo, a cadeia de morros que
circundam a urbe é apenas delineada.
Figura 53 William Burchell, uma das 8 folhas do panorama em 360 graus da cidade do Rio de Janeiro, olhando
em direção Nordeste, mai/jun 1826.
Em carta a Hooker, afirmou que a natureza do Brasil ―era quase exuberante demais‖ para
ser retratada. Um excerto de suas missivas demonstra que, a despeito do discurso de outros
207 Essa vegetação pouco detalhada deveria ser composta por espécies nativas e algumas aclimatadas nos muitos
quintais, como o cajueiro que ―[...] entre os séculos 16 e 18, tornou-se árvore freqüente nos quintais de regiões
quentes da colônia‖ e também romanzeiras, coqueiros,mamoeiros, mangabeiras, araçazeiros, etc. In DOURADO,
Guilherme Mazza . Vegetação e quintais da casa brasileira. Paisagem e Ambiente, v. 19, p. 83-101, 2004.
| 105
O discurso sobre a decadência da colônia perdura em sua obra, quer seja pela constante
presença do escravo, quer seja pelas cidades retratadas vazias de movimento urbano. Como
Amílcar Torrão Filho aborda:
208 Carta de W. Burchell a William Hooker, 11 dez.1825 apud Martins, 2001, op., cit.
TORRÃO FILHO, Amílcar. Arquitetura da alteridade: imagens conceituais da cidade luso-brasileira na literatura
209
portuguesa, mas apura o olhar e distingue as inúmeras tipologias das regiões do país e das
influências de outras culturas em nossa arquitetura e avança acima da homogeneização tão
recorrente na historiografia do tema. A seguir, elenca-se os elementos urbanos mais
representativos de cada prancha, baseado em Ferrez (1981):
Prancha I
Em primeiro plano encontra-se a vegetação do morro do Castelo, desenhada com traços
esquemáticos, da esquerda para a direta encontram-se desenhadas as casas da Rua Treze de Maio,
a igreja de Santo Antonio e todo o seu conjunto. Percebe-se a igreja de São Francisco de Paula, o
palacete da Aclamação e, no centro e ao fundo, a Tijuca211.
Prancha II
A presente prancha nos apresenta a o trecho do Rio compreendido entre a rua da
Quitanda (ao centro), morro da Conceição, rua da Vala e São José. Observa-se o maciço do
casario aixo pontilhado pelas igrejas da região, como a de São Pedro, Boa Morte e Rosário212.
Prancha III
Aqui, retrata-se a parte central da capital, compreendendo as ruas do Carmo, São Bento,
Candelária, largo do Paço e o mar. Pode-se observar o Mosteiro de São Bento, as igrejas da
Candelária, a antiga Câmara e Cadeia, o Convento do Carmo e a Catedral no segundo plano; ao
fundo, observa-se a ilha das Cobras e a Serra do Mar.
Prancha IV
Interessante a presença do balão do observatório Astronômico do Rio de Janeiro, em
primeiro plano. O mecanismo de acerte da hora na capital carioca no século XIX consistia
Ao fundo, veem-se as ilhas das Cobras, Niterói e Fiscal, além do ancoradouro e seus
barcos. A presença humana é apenas sugerida, à esquerda do balão.
Prancha V
Observa-se o portão de uma antiga residência e exemplares de vegetação local, como as
bananeiras. À direita, encontra-se o cruzeiro da nova igreja do Colégio dos Jesuítas.
Prancha VI
Em primeiro plano observamos parte da muralha do antigo forte do Castelo, bem como
algumas chácaras e casas. Deve-se atentar para o jogo de alturas e ritmo que os telhados coloniais
imprimem ao horizonte, presente em todas as pranchas. Ao fundo, encontram-se a Sé Velha, e,
na extrema esquerda, o Forte da Vera Cruz.
Prancha VII
Encontramos a prancha com os casarios mais espraiados, em um polígono que
compreende a Ajuda, Lapa, Catete, Glória Urca e o Pão de Açúcar. Ferrez ainda aponta a igreja
da Lapa e o Passeio Público. Nota-se grande área de terras pertencentes pela Sé Velha ladeadas
por um muro.
Prancha VIII
Ao final do panorama, temos a esquina das ruas Evaristo da Veja e Treze de Maio,
inclusive, vê-se o casario que faz esquina com a rua em questão e o Largo da Carioca. Pode-se
observar, ao longe, os arcos e o morro de Santo Antônio. Em relação aos arcos, Ferrez afirma
que é o melhor desenho que foi encontrado sobre o pequeno aqueduto acima deles, da pena
d‘água que servia o convento de Santa Teresa. Aqui, mais uma vez, percebemos a profusa
vegetação e a cidade incrustada por entre os morros.
Vistas a partir de um ponto mais baixo, como se o observador estivesse no nível de uma
rua ou de uma praça, consequentemente terá como elementos de ênfase em suas elaborações a
arquitetura e as dinâmicas sociais. A este tipo de representação denomina-se veduta, termo
proveniente do italiano e que significa ―o que é visto‖. Ao fragmentar a vista da cidade, o artista
pode acurar seu olhar para detalhes e aspectos singulares, aproximando-o do trecho retratado,
porém no caso dos viajantes no Brasil, no entanto, sem dele fazer parte, ressaltando dele o que é
de seu interesse. A veduta, ao constituir-se numa vista de uma seção em particular, sob o ponto
de vista de um ―transeunte‖ ou ―admirador‖ no nível da rua, dá ao viajante que percorre as
cidades, um outro elemento para representa-las, e que, por enfocar os detalhes da urbe, podem
fazer resplandecer outras notas de pitoresco, para além das já empregadas no panorama (casario
baixo, topografia acidentada, verde das matas, e.g):
A arte de veduta, por exemplo, mantém uma relação estreita com viagens,
ocupando um lugar importante na produção cultural que acompanhou as
viagens do século 18 europeu. Dentro da arte de paisagem, a veduta significou
um desenvolvimento relacionado a certas necessidades de representação
colocadas pelos viajantes europeus à Itália, os quais desde o final do século 17
estavam à procura de uma experiência de representação do país. Os viajantes
não desejavam apenas belas imagens, mas também vistas que fossem
lembranças visuais de fato do real, isto é, que funcionassem também como
registros topográficos214.
Figura 54 William Havell, Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre tela, 1827.
Figura 55 William Havell, Garden Scene on the Braganza Shore, Rio de Janeiro. Guache sobre tela, 1827.
216PEREIRA, Sonia Gomes . A representação do poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro colonial. In: II Congresso
Internacional do Barroco, 2003, Portugal. Barroco - Actas II Congresso Internacional. Porto: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2001. v. 1. p. 663-678.
| 110
Palco de sociabilidade no Império, foi retratado por inúmeros viajantes, como na gravura
de Alfred Martinet217, em publicação de seu O Brasil pittoresco, historico e monumental em 1847. Sua
visão da paisagem ofertada pelo Passeio nada mais era que a da incauta floresta guarnecida de
poucos elementos de manufatura humana, como toscas cercas de madeira e poucos elementos
arquitetônicos sem o devido destaque, uma vez que se perdem em meio às espécies vegetais
plantadas a esmo para os padrões da época, mesmo que os jardins ingleses pregassem a
naturalidade da paisagem, apenas contornada por discretas intervenções, o jardim do Passeio se
apresenta meramente selvagem.
Fonte:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon211917/icon211917_17.jpg>. Acesso
em: 10 out. 2014.
Enquanto W. Loeillot retrata a arquitetura elegante da entrada do Passeio e a alameda
formada pelas copas das árvores plantadas de forma racional e clássica, em primeiro plano o
atraso do império é deslindado pelos tipos humanos que o povoam: escravos levando pelo
ombro uma ―cadeira de arruar‖, ocupada por algum membro da elite e soldados em posição
indolente.
217―Joseph Alfred Martinet (1821, França - 1875)- Paisagista, retratista e litógrafo francês. Gilberto Ferrez registra
sua chegada ao Brasil a 18 de janeiro de 1841, vindo do Havre pelo navio Le Béranger‖ In:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/oprazerdopercurso/bio_martinet.htm. Acesso em: 10/10/2014.
| 111
Burchell, no entanto, não empregou este artifício quando no Brasil, mas estava a par desta
insígnia, uma vez que se utilizou deste elemento revelador de presença em tela ainda na África do
Sul. Burchell relacionava-se com os temas que registrava, colocando-se como narrador diante da
realidade dos fatos. A sua presença in loco passa sempre um atestado de veracidade aos seus
desenhos, bem como suas várias anotações astronômicas e geológicas. Suas anotações em linhas
de chamada, ao apontar os materiais utilizados nas construções (sapê, barro etc) ou pequenas
observações sobre o local ou objetos na cena, vão reafirmar esse ―atestado‖ e vão ser a sua forma
de mostrar sua presença em seu trabalho:
Figura 58 África do Sul, vista da Cidade do Cabo, Baía da Mesa, e Tygerberg (Robbin Island), 1810.
Figura 59 Detalhe da figura 58, o homem embaixo do guarda-sol é o próprio Burchell que se autorretratou.
A pesquisadora Maria Cristina Wolff de Carvalho em sua pesquisa aponta, na figura 60, a
presença dos instrumentos de desenho utilizados por Burchell: A câmera, o cilindro e o prumo. A
presença de Burchell não é visível como na última gravura apresentada, porém está lá, em seus
instrumentos218.
Figura 60 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis
218CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. A visão da paisagem na obra de William John Burchell (1781–1863).
Arquiteturismo, São Paulo, n. 73, p.01-10, mar. 2013. Mensal. Disponível em:
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700>. Acesso em: 13 nov. 2014.
| 113
Não se pode negar uma preocupação documental relevante por parte de Burchell. Poucos
foram os aspectos da cidade colonial que fugiram à sua observação, sempre tintos por sua aguda
sensibilidade, cujo espectro temático abrangeu a paisagem natural e a paisagem edificada de um
país se fazendo nação. Entretanto, o registro hábil e rápido, ―acurado‖ como Ferrez (1981) e
Martins (2001) apontam, também seria carregado de esquemas de sua visão europeia
etnocêntrica.
O botânico, desde o início dos estudos artísticos, descobriu no lápis e nanquim a rapidez
e precisão de traços e na aquarela a celeridade na transmissão das cores da paisagem. A aquarela
era bastante usada na Inglaterra, embora fosse considerada um meio artístico menor e inferior à
pintura a óleo. Por outro lado, a pintura em aquarela exigia domínio da técnica, pois seria
impossível realizar retoques posteriores, como pode ocorrer com a tinta à óleo.219 A dificuldade
em encontrar as tintas nas terras tropicais – sobretudo nas regiões mais afastadas das cidades
maiores- também era um fator que desestimulava o uso de tintas à óleo, além da constante falta
de determinadas cores no mercado local.220 Sobre a aquarela – suas qualidades e riscos- o excerto
a seguir esclarece:
Os aspectos técnicos e práticos da aquarela foram, geralmente, fatores
fundamentais para a sua aceitação e sucesso. Os materiais empregados, práticos
e acessíveis se comparados à pintura à óleo, permitem liberdade de ação ao
artista, permitindo-lhe uma maior aproximação do que poderia ser seu projeto.
Ao mesmo tempo é uma técnica de efeitos inesperados. A aquarela não está
jamais acabada nem enquanto técnica (pois as cores e contrastes se alteram com
o tempo), nem enquanto composição (as imagens e cenas não são definidas
com precisão, deixando espaço para a imaginação, pontos inexatos).221
A arte neoclássica de Burchell deveria dialogar com os trópicos, onde tudo causava
conflitos: o sol impiedoso, o verde chamativo da vegetação, as cores, a mestiçagem da população
e a presença dos escravos, que nada se pareciam ao porte e compleição física européia. Burchell
retrataria os assentamentos de forma minuciosa, mas iluminaria aspectos como a decadência da
urbe (ver figura relativa à Rua Direta, em Santos) e a presença constante da escravidão (a maioria
das pessoas por ele retratada seriam escravos); em suma, a cidade colonial na obra de Burchell é
rica em detalhes e digna de nota tanto quanto a natureza tropical, mas seus tipos humanos e sua
apresentação denotam indolência, decadência e atraso.
Figura 61 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.222
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
A partir dos princípios do século XIX, a rua foi deixando de ser o escoradouro
das águas servidas dos sobrados, [...] para ganhar em dignidade e em
importância social. De noite, foi deixando de ser o corredor escuro que os
particulares atravessaram com um escravo na frente, de lanterna na mão, para ir
se iluminando a lampião de azeite de peixe223 suspenso por correntes de postes
altos. Os princípios de iluminação pública. Os primeiros brilhos de dignidade
da rua outrora tão subalterna que era preciso que a luz das casas particulares e
dos nichos dos santos a iluminasse pela mão dos negros escravos ou pela
piedade dos devotos (FREYRE, 2006, p.32).
222
A aquarela encontra-se em melhor resolução no anexo A deste trabalho.
223 O que Freyre chama de ―azeite de peixe‖ é, na verdade, óleo retirado das baleias.
| 115
Limpa, porém vazia. Embora importante logradouro comercial do Rio, a Rua do Cano
(hoje Rua Sete de Setembro) é representada desprovida da presença humana, paradigma desta
urbe silenciosa retratada por Burchell, na qual as poucas pessoas a transitar por ela seriam os
escravos e o baixo-clero e, até mesmo eles o fazem em pequeno número, servindo muito mais
aos propósitos de escala humana do que retratar o fluxo de transeuntes. A opção pelo
enquadramento da cidade sem o movimento de quem dela participa, não seria uma escolha
apenas de Burchell, nem tampouco seria uma abordagem apenas Oitocentista, pois, como
Ramminelli (2002) discorre: ―No período colonial, enfim, os artistas retrataram as fachadas, as
fortalezas, o porto e o relevo em torno da cidade. Não se preocuparam em retratar seus
habitantes, tornando a urbe desabitada e vazia‖224. A assertiva concinde com as palavras do
historiador Almícar Torrão Filho (2008) em sua tese de doutorado, A arquitetura da alteridade: a
cidade luso-brasileira na Literatura de viagem (1783-1845):
Burchell também desviaria o seu olhar para a paisagem circundante da cidade carioca.
Esta escolha de enquadramento não seria inédita, mas a maneira com que o viajante inglês
representa, sim. No interior da cidade do Rio de Janeiro, Burchell faria uma de suas mais
emblemáticas aquarelas:
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell, 1981.
226 EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1972, p. 45.
| 117
Ferrez (1981) aponta ainda que, de acordo com a topografia apresentada, a vista deve ter
sido tomada nas proximidades da Rua da Quitanda e da Rua do Ourives; a localização exata não
nos importa por ora, já que o importante é saber que esta era a visual dos moradores desse trecho
do Rio de Janeiro e aperceber a forte presença na paisagem carioca por parte do Morro do
Castelo e de como a mesma seria drasticamente transformada após seu desmonte, iniciado em
1904.
Outros morros também fariam parte da paisagem observada pelo artista na cidade do Rio
de Janeiro, como o morro da Gamboa, aqui representado na aquarela relativa ao Cemitério dos
Ingleses:
Figura 63 William Burchel, The English Burial Grounds (Gamboa. [Cemitério dos Ingleses, na Gamboa]. Grafite e
aquarela sobre papel. c. 1825-1826227.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
A visão do cemitério dos Ingleses228 realizada por Burchell difere da perspectiva escolhida
por Graham, tomada de cima da encosta do morro da Gamboa em direção ao mar 229. Burchell
227
A aquarela encontra-se em melhor resolução no anexo B deste trabalho.
228O Tratado de Comércio e Navegação de 1810 possibilitou a instalação de inúmeros ―cemitérios dos ingleses‖ nas
cidades brasileiras, o que sanava toda a discussão sobre o sepultamento de não-católicos nos cemitérios públicos. Cf.
RODRIGUES, Cláudia. Cidadania e morte no Oitocentos: as disputas pelo direito de sepultura aos não-
católicos na crise do Império (1869-1891).In: Anais do XXIV Simpósio Nacional de História: História e
Multidisciplinaridade: Terremotos e deslocamentos,2007, São Leopoldo. Anpuh/UNISINOS, 2007
229Em razão das obras do porto do Rio de Janeiro e os constantes aterramentos sofridos, o cemitério não fica mais a
beira-mar. Atualmente à frente do cemitério se encontra o prédio da Cidade do Samba.
| 118
escolhe, no entanto, voltar-se contra o mar enquanto ela prefere representar a cena da maneira
mais pitoresca possível, o que demonstra, por parte do botânico, o real desejo de ilustrar o
cemitério pelo que ele é.
Uma tomada de vista semelhante foi realizada, décadas depois, por Alfred Martinet,
paisagista, retratista e litógrafo francês que visitou o Rio de Janeiro em 1840. A gravura de
Martinet, diferente da aquarela de Burchell, faz uso da porção de água visualizada para transmitir
uma paisagem idílica; embora Burchell também traga essas aspirações, o faz com mais discrição:
no movimento sinuoso dos trabalhadores, na arquitetura das edificações do cemitério em meio às
frondosas árvores, na embarcação estrategicamente posicionada, na casa ao lado do cemitério,
etc.
Figura 64 Maria Graham, Cemitério dos Ingleses. Figura 65 Alfred Martinet, Cemitério dos Ingleses.
Litogravura. Gravura
FREITAS, J. F. B. . Técnica versus política na localização dos portos do Rio de Janeiro e de Vitória. In: XIII Encontro
230
Nacional da Anpur - XIII ENANPUR, 2009, Florianópolis. XIV Encontro Nacional da ANPUR. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 2009. v. 01. p. 1-17.
| 119
A Praia Formosa também seria retratada por Burchell, seu registro do casario à beira-mar,
seria o único do local, nas palavras de Ferrez (1981)231, aterrado em 1879 para dar lugar ao porto
do Rio232. Nesta aquarela vislumbra-se a orla da praia e a relação entre as fachadas das casas, o
caminho informal à frente e o mar.
Figura 66 William Burchell, Casario da Praia Formosa, 1826. Lápis e aquarela. Acervo particular
Outra aquarela do viajante (Figura 67)retrataria um dos arrabaldes da cidade, onde hoje
situa-se o bairro do Catete
A presença de muros, vegetação densa e a falta das casas sem recuo com a rua atestam o
caráter suburbano. O Rio de Janeiro do século XIX teria fortes traços dos processos rurais
arraigados em sua estrutura urbana, áreas ao sul da cidade, como os atuais bairros de Botafogo,
232MELLO, Fernando Fernandes de. A Zona Portuária do Rio de Janeiro: Antecedentes e Perspectivas. 2002. 1 v.
Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.,
Rio de Janeiro, 2002.
| 120
Glória e Catete, era ocupadas por inúmeras chácaras233. Esses traços seriam herança das cidades
que serviram de modelo à urbanização carioca, como Lisboa. A respeito da forte ruralidade
presente nas cidades européias, o historiador francês, Fernand Braudel nos traz uma
esclarecedora descrição:
[...] até o século XVIII, mesmo as grandes cidades conservam atividades rurais.
Abrigam pastos, guardas rurais, lavradores, viticultores (até em Paris); têm
dentro e foradas muralhas um cinturão verde de hortas e pomares e, mais
longe, campos por vezes repartidos em três folhas, como em Frankfurt-am-
Main, em Worms, na Basiléia ou em Munique. Na Idade Média, o barulho do
mangual pode ser ouvido em Ulm, Augsburgo ou Nuremberg, até as
imediações da Rathaus, e os porcos são criados nas ruas em liberdade, tão sujas
e tão cheias de lama que é preciso usar andas para atravessá-las ou fazer pontes
de madeira de um lado para o outro. Na véspera de uma feira, em Frankfurt,
cobriam-se às pressas as ruas principais com palha ou aparas de madeira. Quem
poderia pensar que em Veneza, ainda em 1746, foi preciso proibir a criação de
porcos ―na cidade ou nos mosteiros‖234
Figura 67 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto Moreira Salles. 235
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
233SANTOS, L. S.; DUARTE, F M. A desruralização da cidade do Rio de Janeiro de fins do século XIX. In: XXX Encontro
da Associação Portuguesa de História Económica e Social, 2010, Lisboa. ANAIS do XXX Encontro da Associação
Portuguesa de História Económica e Social. Lisboa, 2010. v. 1. p. 1-20.
234 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV -XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
p. 446apud SANTOS, L.S, 2010. Op.cit
235
A aquarela encontra-se em melhor resolução no Anexo D.
| 121
Porém, a Lisboa-modelo dos processos urbanos da cidade carioca não mais existia,
vítima do terremoto que praticamente a deixou sob escombros. Surgiria uma nova Lisboa, a
cidade a qual os portugueses contemporâneos ao primeiro quartel do XIX nasceriam e
lembrariam ao chegar aos trópicos. À medida que o Rio de Janeiro crescia, a elite começou a
ocupar as margens do caminho do Catete, que passaria a ser chamado Estrada do Catete. A
grande casa de traços arquitetônicos rurais no desenho de Burchell representaria, pois, a
vizinhança abastada, comum na região. A divisão porosa entre rural e urbano na região sul da
cidade seria percebida por outro estrangeiro, o militar alemão Carl Schlichthorst, que viveu na
cidade durante a segunda década do Oitocentos:
Mesmo se pudéssemos atestar o estilo francês dos jardins, o que não é nosso objetivo na
análise, Burchell insere elementos de tropicalidade, como o coqueiro, na cena. Mais uma vez, as
poucas pessoas a atravessar a ponte e o caminho mal calçado seriam os escravos e o baixo clero.
236 SCHLICHTHORST, Carl. SCHLICHTHORST, C.. O Rio de Janeiro como é (1824-1826): Contribuições de um
diário para a história atual, os costumes e especialmente a situação da tropa estrangeira na capital do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 2000. pp. 195-96. Ainda nestas páginas, a nota do tradutor Emmy Dodte Gus tavo Barroso comenta
sobre a história da ponte: ―A Ponte do Catete sobre o rio desse nome, rio das Laranjeiras ou Carioca, ficava no local
da atual Praça José de Alencar, de onde partiam os caminhos para Botafogo. A primeira obra de urbanização
realizada no Rio de Janeiro. Chamou-se durante muito tempo Ponte do Salema e nela se pagava pedágio para entrar
ou sair da cidade. O nome lhe vinha, segundo uma versão, de ter sido construída pelo Governador Antônio Salema
(ou Sellema). Outra versão atribuía a sua construção a um particular ali morador, Garção Salema, que cobrava o
pedágio para se pagar das despesas havidas com ela‖.
| 122
Figura 68 William Burchell, Os arcos da Carioca vistos da rua Mata-Cavalos, atual Riachuelo, 1825. Lápis.
DUARTE, C. F. Lapa: abrigo e refúgio da cultura popular carioca. In: XIII Encontro Nacional da ANPUR
238
O Aqueduto da Carioca seria amiúde retratado pelos viajantes no século XIX, como uma
espécie de marco civilizatório na paisagem carioca, prestando-se como ―descanso‖ para os olhos
que enxergavam sempre os morros verdejantes; de linhas romanas, complementava as
composições artísticas tropicais tal como as ruínas clássicas adicionavam grandiosidade às cenas
italianas239. Como tema dos registros estrangeiros, o Aqueduto inseriria outra escala nas
composições, que seriam agora tomadas fora da cidade, no intuito de mostrar as arcadas de
inspiração romana em todo o seu esplendor, pois um sinal de europeidade nos trópicos não
passaria despercebido pelos olhares viajantes. A obra arquitetônica poderia ser de herança
romana, mas seu entorno em nada lembraria a vegetação mediterrânea, como os viajantes
deixaram explicitados; atentar ao fato de que na gravura de autoria de William Ouseley o próprio
Arco aparece com apenas uma carreira de arcadas:
Figura 69 William Gore Ouseley, Views of South Figura 70 William Alexander, The Aqueduct in Rio de
America…1852. Litogravura. Biblioteca Nacional Janeiro, Litogravura. 1812.
239HERMANN, C. G. . Buscar Vitruvius nos trópicos - percepções de viajantes ingleses da primeira metade do
século XIX sobre o Aqueduto da Carioca. Concinnitas (Online) (Rio de Janeiro), v. v. 2, p. 11, 2014.
| 124
a vegetação tropical) e, embora esteja centralizado na prancha, o Aqueduto da Carioca não ocupa
o papel protagonista do desenho.
O casario do lado esquerdo da via o supera em altura e em detalhamento, inclusive o
parapeito dos Arcos é apenas sugerido em um trecho, dada a sua repetição, Burchell acharia
muito mais proveitoso se debruçar nas edificações e em seus elementos diversificados e por isso
detalhados. Talvez um dos desenhos mais povoados de Burchell, o esboço relativo à Mata-
Cavalos ainda traz os resquícios da ruralidade na cidade, com a presença das duas carroças vazias
na via.
Figura 71 William Burchll, Ponte coberta nas proximidades de Teresópolis, c.1825-1826.
Registro de uma ponte coberta próxima à Teresópolis. Único registro conhecido dessa
tipologia de ponte. Nota-se, mais uma vez, a escolha de Burchell em esquematizar a vegetação (2)
em contraponto aos detalhes da ponte. Essa opção em ―simplificar‖ a massa vegetal será
recorrente em seus desenhos, quer seja pelo pouco tempo que ele tinha para se debruçar em cada
desenho (devido às constantes mudanças), quer seja para dar maior sensação de profusão sobre a
vegetação local. Observa-se a presença de negros às margens do rio.
Figura 72 William Burchell, Vista a partir da estrada para o Rio, c. 1825-1826. Aquarela. Acervo Instituto Moreira
Salles
240 SCHMIDT, Carlos Borges. Tropas e tropeiros. Journal of Inter-American Studies, p. 103-122, 1959.
| 126
Figura 73 William Burchell, Vila de São Bernardo entre Cubatão e São Paulo, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira Salles.241
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
Figura 74 William John Burchell, São Paulo a partir da estrada para Santos, c 1825-1826. Aquarela. Acervo Instituto
Moreira Salles.
A cena da Figura 75 diz respeito à Rua Direita, em Santos, o que acentua os recursos
estilísticos e plásticos empregados na representação: A Rua Direita traçou-se paralelamente à
linha costeira e foi endereço dos principais edifícios da vila, religiosos e oficiais, palco das maiores
manifestações sociais da sociedade colonial: as festas e procissões religiosas. O crescimento de
Santos foi gradual e lento: diferente das cidades mineiras retratadas à época em pleno declínio da
produção aurífera, Santos seria um dos palcos do grande desenvolvimento econômico
impulsionado pelo café em terras paulistas em 1850. Entretanto, a aquarela nos aponta uma
cidade ainda adormecida e não nos apresenta vestígios de um eminente desenvolvimento.
241
A aquarela encontra-se em melhor qualidade no Anexo F.
| 127
Figura 75 William Burchell ―Rua direita at Santos‖, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira Salles. 242
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
A cidade se deixa ver aos olhos do artista espraiada e silenciosa, numa sucessão de
construções homogêneas que se esmaecem no segundo plano de tal maneira que denota o
sentimento de que não há fim nem tampouco alguma quebra desta monotonia. Desguarnecida de
maiores dinâmicas sociais, a rua mesmo pontilhada com alguns tipos humanos, permanece vazia
de interações, quase triste.
Ao mesmo tempo em que o artista imprime a pátina da indolência e estagnação, presta-se
a desenhar detalhes construtivos: a solidez do volume construído, a cantaria presente no cunhal
do sobrado, as sucessivas esquadrias em arco de berço, a rótula em madeira do primeiro plano, as
telhas em capa e canal dispostas ao longo do arremate dos beirais, bem como o guarda-pó
insinuado são indícios de que as construções foram erguidas dentro do senso estético de uma
determinada época; entretanto, estes mesmos pormenores guardam outra crítica: Se há o cuidado
aos detalhes arquitetônicos os mesmos estão cobertos pelo lodo, descascados pelo tempo,
trespassados pelas ervas daninhas ou desfalcados em sua continuidade (como no caso das telhas).
Na mesma cidade de Santos, na qual Burchell demorou-se quase três meses, uma aquarela
chama-nos a atenção para uma temática muito usual nos pintores viajantes, as vistas que tratam a
relação da cidade com o mar. Helder Oliveira (2012) aponta as duas vertentes de paisagística
242
A aquarela encontra-se em melhor qualidade no Anexo E.
| 128
marinha na produção artística: ―a pintura histórica, que tem na batalha naval, sua representação
mais imponente, e a pintura de temática cotidiana, que apresenta no ambiente dos pescadores,
uma renovação do gênero‖.243
Na aquarela do Porto de Santos (Figura 76) a construção que mais se destaca é a Igreja
de Jesus, Maria e José (conhecida também pelo nome de Igreja do Terço). De linhas barrocas,
embora simples, a edificação avança sobre o cais de pedra seca que. As cores empregadas por
Burchell são esmaecidas, mal se distinguindo a cor do mar, sugerido apenas pelo reflexo das
embarcações que fala mais da calmaria da lagamar do que de matizes. Nota-se que o artista pôs-se
como a observar a cena a partir de um ancoradouro de pedra, enquanto mais à frente, frágeis
pontes improvisadas servem ao propósito de fazer a ligação entre as embarcações e a terra firme.
A próxima aquarela de seu caderno apresenta a cidade de São Paulo vista do Braz. Ferrez
(1981) afirma estar indicadas na aquarela representada pela Figura 77 a A- Igreja da Boa Morte na
Tabatingueira B- ladeira do Carmo e a Igreja de mesma invocação; E- Igreja de Santa Teresa e F-
243
OLIVEIRA, Helder Manuel da Silva de . OLIVEIRA, Helder Manuel da Silva de. A pintura de marinha no Brasil: um
ensaio curatorial. 2012. (Apresentação de Trabalho/Comunicação). Ainda a respeito das duas vertentes, Oliveira
(2012) afirma que estas coexistem desde o cenário holandês do século XVII.
| 129
Sé244. Como situação recorrente entre viajantes da época, em que os artistas vendiam ou trocavam
desenhos entre si, encontra-se no album de Landseer esta mesma aquarela.
Figura 77 William Burchell, Panorama de São Paulo, vista do Braz e caminho para o Rio de Janeiro, 1827. Grafite e aquarela
sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles
A B E F
Burchell apresenta-nos nesta aquarela (figura 78) uma das ―portas‖ de São Paulo, ligação
entre a cidade ―e o mundo civilizado da Corte Imperial. Tratava-se da estrada para o Rio de
Janeiro‖245. Os viajantes chegavam a partir do caminho do Brás (atual Avenida Rangel Pestana) e
desembocavam na parte mais nobre da cidade, onde situava-se a rua do Carmo, repleta de
palacetes (inclusive o da marquesa de Santos)246. A ―boa impressão‖ exigia, pois, uma constante
manutenção, prescrita inclusive no Código de Posturas de 1875, no qual determinava que:
As frentes e outões das casas da cidade bem como os fundos que deitarem para
outras ruas e especialmente para a várzea do Carmo serão caiados durante o
segundo trimestre de cada ano civil. Assim como no mesmo tempo serão
pintadas as portas, janelas e batentes247.
244FERREZ, 1981, op., cit., p. 98. Buscou-se utilizar as mesmas letras que Burchell utilizou em seus desenhos, no
intuito de, eventualmente, encontrar-se suas anotações e diários e ser possível descobrirmos mais detalhes a respeito
de suas marcações.
245 LEMOS, Carlos. Cinquenta anos de perplexidade. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena;
SACCHETTA, Vladimir (orgs.). São Paulo, Metrópole em Trânsito: Percursos Urbanos e Culturais. São Paulo: Senac, 2004,
p.34.
Figura 78 William Burchell, Ladeiras do Memória e dos Piques, 1827. Lapís aquarelado, 340 x 500 mm.
vezes do crescimento da cidade está inclusa em meio aos traços no papel e na tela dos
estrangeiros.
Ainda em São Paulo, Burchell desenha o Convento e igreja da ordem terceira do Carmo
(Figura 79). Ao confrontarmos o seu desenho e a outra imagem relativa à igreja, de autoria de
Debret, nota-se uma maior teatralidade na aquarela de Debret, com a elevação muito mais
pronunciada e a proporção da torre sineira muito mais delgada do que a encontrada em Burchell.
Fonte: FERREZ,1981.
século XVIII, sua estrutura básica estava consolidada, incluindo a construção de cinco igrejas
que, com exceção da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, marcavam os extremos do
perímetro urbano.
Figura 81. William Burchell, Ponte sobre o Rio das Almas, Pirenópolis.
A então capital da província, a cidade de Goiás Velho seria também representada por
Burchell em seu trajeto e seria seu pouso durante quatro meses; contudo, a alcunha de cidade
mais importante da região não se faz presente em seus desenhos, o núcleo urbano se mostra
rarefeito e diminuto em meio aos picos da Serra Dourada e dos morros de São Francisco, Canta
Galo e das Lages.
A prancha à lápis (Figura 83) apresenta uma das pontes que vencem o rio Vermelho. Ao
fundo, a vegetação do cerrado recobre uma das várias serras que circundam a cidade. As ―casas
encostadas cochichando uma com as outras‖252 de tipologia simples, de porta e janela e sem
maiores ornamentos, estão assentadas sobre a margem elevada, no entanto, não estão segregadas
da relação com o rio: as fachadas voltadas para o seu curso e os vários níveis do terreno, a
proporcionar patamares naturais, nos indica a possibilidade de interação entre os moradores do
casario e o rio e são essas práticas que prendem a atenção de Burchell na paisagem goiana e
teriam continuidade à medida que segue viagem, os cursos de água (ou sua menção
indireta)concorreriam com o casario em importância em seus desenhos.
Figura 83 William Burchell, Ponte de Goiás Velho, s/d. 340 x 500 mm. Lápis.
Seguindo viagem, Burchell seguiria em direção ano norte da província, parando na vila de
Natividade O inicio da ocupação da região na qual o arraial de Natividade se insere nos processos
econômicos do ciclo do ouro no Brasil, ainda século XVIII assim como suas correspondentes
mineiras. Edifica-se, em 1734, o Arraial de São Luiz, no topo da serra; com o declínio da
produção aurífera, em 1770, os moradores desceram a serra, formando um novo arraial
252 CORALINA, Cora. Minha cidade. In: Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora, 1983. p.
47.
| 135
denominado Natividade, que só viria a se tornar vila em 1833253. Este núcleo relativamente novo
da região seria retratado na figura 84:
A ocupação do arraial, no desenho de Burchell, nos parece rarefeito, sem ruas definidas,
tendo como elemento definidor de ocupação a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
toda construída em pedra sabão e de arcos feitos com grandes tijolos254. Nota-se o emprego da
tomada de perspectiva que privilegiava a porção de terra ―incauta‖ à frente de Burchell, não as
edificações. O núcleo urbano vazio é pontilhado por tipos ―indolentemente‖ sentados à porta das
casas, dando ao cenário um aspecto atrasado e não-produtivo. A respeito do perímetro urbano
referente às cidade goianas, Deusa Maria Boaventura (2007) discorre:
No entanto, além dos adros, e segundo imagens de William John Burchell [...] o
elemento que comumente se encontra nos arraiais setecentistas de Goiás são os
amplos largos fundacionais, para os quais confluíram os importantes acessos,
SOUSA, P. M.; ERTZOGUE, M. H. História, memória e religiosidade na festa do Divino Espírito Santo em Natividade -
253
Durante quatro meses, Burchell viveu no arraial de Porto Real (atual Porto Nacional), que
distava aproximadamente três dias de viagem da Vila de Natividade256 à espera da passagem da
estação de chuvas e da estabilização do nível das águas da rede fluvial da região. Seus desenhos,
que desde Goiás Velho já não apresentavam quaisquer resquícios de outras técnicas, como a
aguada, a partir de Porto Real serão realizados com urgência nos traços à lápis, um lembrete das
dificuldades de obtenção de quaisquer materiais nas zonas mais centrais do país e, talvez, da
própria inconstância meteorológica da região. O artista preocupa-se muitas vezes com as
coordenadas geográficas e ressaltar as divergências tipológicas do que com a harmonia da cena
num todo.
255BOAVENTRUA, Deusa Maria Rodrigues. Urbanização em Goiás no século XVIII. 2007. 280 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Arquitetura, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
256 GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Belo Horizonte[MG] : Itatiaia, 1975, p.307.
| 137
Sobre Porto Real, o naturalista inglês Francis de Castelnau, em 1847, discorreria ―A cidadezinha
em que estávamos, outrora conhecida por Porto Real257, possuía antes cento e quarenta casas;
hoje não tem mais do que setenta e cinco, para uma população de uns 400 habitantes‖258.
Os poucos relatos a respeito das regiões banhadas pelo rio Tocantins também seria
consequência de série de imposições por parte do Governo, uma vez que havia uma interdição
sobre a navegação nas águas rio Tocantins, existente desde 1730, que ensejava dificultar o
extravio do ouro259.
Declinada a produção aurífera, a interdição somente foi suspensa em 1782, período em
que se iniciam, por parte do governador de Goiás, Tristão da Cunha Menezes, medidas que
buscam aumentar o comércio com a cidade de Belém do Pará, a fundação de Porto Real estaria
inserida neste esforço em melhorar as condições de navegação e serviria como entreposto das
mercadorias e embarcações destinadas à Belém e funcionaria também como destacamento
militar, uma vez que era constante os ataques de indígenas.260
Na margem direita do caudaloso rio Tocantins, erguer-se-ia então o arraial, uma das mais
recentes povoações do país, num esforço de colonizar as ―bravias‖ terras goianas. Em seu lugar,
décadas mais tarde, seria erguida a Catedral Nossa Senhora das Mercês, finalizada em 1904.
Seguindo viagem por meio de embarcações, Burchell retrataria sua última vista do Brasil
até o momento conhecida.261 Fato interessante é que poucas vezes o viajante retrataria a
vegetação tão em evidência quanto neste desenho (Figura 86), e, como estava incrustado em meio
à densa vegetação das florestas brasileiras à esta altura, intriga-nos esta escolha em não colocar
em destaque o motivo da indômita floresta amazônica, comum nas representações de outros
viajantes. Outros desenhos do botânico aqui não apresentados, trazem poucas representações da
vegetação, muito mais nos informam sobre os caminhos ou os meios de locomoção (as faluas e
os barcos, neste momento da viagem), que são comuns neste tipo de narrativa iconográfica (na
257 Porto Real seria renomeada mais tarde por Porto Imperial e, posteriormente, Porto Nacional.
258CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul v.2 , São Paulo, Biblioteca Pedagógica
Brasileira/ Ed. Nacional, 1949.p.92.
GIRALDIN, O – ―Pontal e Porto Real: dois arraiais do norte de Goiás e os conflitos com os Xerente nos século
259
XVIII e XIX‖. Revista Amazonense de História, v. 1. n.1 jan/dez/ 2002, pp. 131-146
261Ao menos as atualmente conhecidas, visto que no índice de seu caderno de desenho consta o panorama de Belém
do Pará- até o momento desaprecido- como seu último registro das paisagens brasileiras.
| 138
tentativa de evidenciar a intrepidez dos naturalistas), mas que não tomam o lugar de importância
da iconografia relativa à mata brasileira262
Desta vez, Burchell não representa a baía da Guanabara e suas plácidas águas, a porção de
água corresponde ao caudaloso rio Tocantins. Para além de seu comprimento, Belém do Pará
avista-se ao longe, criando-se a expectativa de que, logo mais, será desvelada por completo. As
pranchas relativas à viagem ao Brasil terminam justamente neste encontro entre as águas do rio, a
vegetação tropical e a expectativa da cidade.
262Embora não tenha sido o foco do presente trabalho, há de se evidenciar a importância desta iconografia relativa à
floresta brasileira que, em muitos casos (se não, em sua maioria), era a protagonista destas imagens, até mais do que
os próprios núcleos urbanos, dependendo das intenções destas viagens.
| 139
CAPÍTULO 3
O enquadramento da paisagem
Os detalhes da urbe brasileira na obra do
viajante.
Todo homem que aspire a conhecer as emoções líricas deve dirigir-se ao Brasil, onde a
natureza poética corresponderá às suas inclinações. Mesmo a pessoa menos sentimental torna-
se poeta para descrever as coisas como elas são.
Gregory Ivanovitch Langsdorff, Mémoire sur lê Brésil pour tous ceux qui désirent s´y établir.
A cidade, quer seja como cenário, quer seja como protagonista, sempre foi alvo de
representações visuais nas Artes. Diferentes gerações, sob diversos estímulos e influências, leram
e releram as heranças acumuladas ao longo da História relativas à nossa cultura. Tão diversos
quanto o campo das produções culturais possa abarcar, alguns destes componentes dizem
respeito a quem estuda a morfologia e história dos núcleos urbanos, como Meneses (1996) 263
aponta:
mudanças ocorridas no período joanino nas tipologias da urbe carioca possuíram um raio de
influência limitado que não avançariam pelos ―sertões‖, cujos núcleos urbanos permaneceriam
em seu traçado urbano e tipologia edilícia essencialmente coloniais, como se observa na obra dos
dois viajantes.
A prática arquitetônica Oitocentista incorre em um conjunto muito mais complexo do
que preconiza Vaulthier ao afirmar que quem viu uma casa brasileira viu quase todas, pois, como
discorre Sonia Gomes Pereira (2007), há um mosaico de temporalidades estilísticas diversas
coexistindo na cidade do século XIX, de persistências técnicas e soluções coloniais e inovações
em materiais construtivos, estilos e programas265. Em meio a um corpus iconográfico
homogeneizador das várias tipologias encontradas na urbe brasileira, a produção burchelliana
permite problematizar tais especificidades: ao ―colecionar‖ as diversas soluções construtivas ao
longo de seu percurso, ao inserir nas paragens paulistas a matriz tipológica bandeirista, desenhar
as casas ribeirinhas goianas e representar o fluxo de tropeiros e seus pousos, Burchell nos conta
sobre um Brasil difícil de ser encontrado nos diários de viagens estrangeiros em forma de
imagens.
Na sequência deste trabalho, discutir-se-á a morada brasileira oitocentista no interesse de
iluminar sua representação na obra dos viajantes estrangeiros e, em especial, na produção de
Burchell. A arquitetura doméstica brasileira urbana e rural será apresentada a seguir; embora
consciente de que esta divisão não abarca todo o universo de classificações nem tampouco
encerra as discussões sobre as inúmeras tipologias presentes neste universo que chamamos de
―arquitetura doméstica‖, esta categorização foi necessária para efeito de análise das obras266.
265PEREIRA, Sonia Gomes. A Historiografia da Arquitetura Brasileira no Século XIX e os Conceitos de Estilo e
Tipologia. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_sgp.htm>.
Para o aprofundamento nas questões tiopólogicas e suas origens, conferir: REIS FILHO, Nestor Goulart .
266
A cidade brasileira vista pela sacada dos sobrados oitocentistas traria inúmeras
dissonâncias com sua predecessora imediata, a urbe colonial. Quem se debruçasse nos guarda-
corpos de ferro ricamente ornamentados veria que divisar essa transição não era tarefa fácil. A
historiografia tradicional a respeito da arquitetura colonial, apoiada em opiniões de autores como
José Wasth Rodrigues(1945)267 e Carlos Lemos (1979)268, trata como certa uma unidade tipológica
predominante na arquitetura doméstica brasileira.
A ―casa colonial brasileira‖, na verdade, possui inúmeras variantes e sua presença como
tipologia na urbe brasileira foi constante e duradoura. Seus primeiros exemplares já remontam
imediatamente ao início do povoamento e, de acordo com Lemos (1993) configurava-se como
um único ambiente a satisfazer todas as atividades sob um mesmo teto. Feitas de material
encontrado na região, sua construção deveria ser rápida e garantir segurança aos colonos contra
ataques de tribos indígenas hostis e intempéries. Estas construções brasileiras trariam muito dos
270
trópicos em si. Do solo brasileiro erguer-se-iam ―casas sincréticas‖ ; o sapé, o cipó e as palhas
de coqueiros não forrariam apenas o espaço da oca indígena, seu método construtivo
condicionariam agora os ambientes da morada portuguesa, selecionando e repartindo o espaço
para as múltiplas atividades por meio de paredes.271
Decerto que mesmo as primeiras construções brasileiras teriam muito da herança
portuguesa dos colonos, as técnicas construtivas como a taipa de pilão e o adobe, provenientes
267RODRIGUES, José Wasth. A Casa de Moradia no Brasil Antigo. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Vol. 9. Rio de Janeiro: MES, 1945, p.159 – 198.
268 LEMOS,
Carlos
A.
C.
Arquitetura
Brasileira.
Edusp,
São
Paulo,
1979.
269RODRIGUES, 1945, op. cit., p.159. Apud BRANDAO, H. C. L. ; MARTINS, A. M. M. . Varandas nas moradias
brasileiras: do período de colonização a meados do século XX. Revista tempo de conquista, v. 01, p. 01/01-20, 2007.
270 LEMOS, 1993, p.95- 96
do sul de Portugal e as grandes coberturas das casas da arquitetura rural do centro seriam a matriz
da arquitetura colonial brasileira. Como apontou Carlos Lemos (1993), essa herança portuguesa
vinha de uma sólida tradição de construção aprendida de povos antigos: as ―ruínas romanas,
muros visigodos e paredes românicas‖, nos dizeres de Rodrigues (1945), teriam influências na
arquitetura lusitana e de suas colônias272.
Os habitantes das vilas buscaram soluções construtivas para vencer o clima tropical.
Encontraram como alternativa ―[...] a adoção de profundos alpendres [...] com a providência de
se deixarem as paredes internas baixas e os cômodos sem forro, o que possibilitava ampla
ventilação de todo o interior‖273. Os alpendres e varandas teriam importância como posto
estratégico para se observar o estranho que se aproximava das casas no ambiente rural, onde o
afastamento das construções dava margem à insegurança. As varandas e os alpendres274 também
seriam ambientes da casa brasileira do campo bastante conhecidos dos viajantes oitocentistas,
uma vez que seriam lá que se apresentariam aos proprietários das terras. Passar pelo umbral da
porta de entrada seria um privilégio concebido a poucos, e, muitas vezes, a interações sociais se
restringiriam ao alpendre.
A sacada equivaleria à varanda na arquitetura urbana colonial e seria um dos elementos
mais emblemáticos desta tipologia. Após a chegada da família real e da Missão Artística Francesa
que tinha, como uma dos objetivos, fundar a primeira Academia de Arte no Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves, mudanças significativas, embora com um raio de influência que
avança pouco além das delimitações da nova capital, são visualizadas na cidade oitocentista.
Desta discussão, que é densa e na qual convergem várias fontes, interessa-nos entender
que a Corte portuguesa, acostumada às linhas arquitetônicas pombalinas de Lisboa, reconstruída
a partir do terremoto em 1755 e, portanto, livre da sua herança medieval, estranhou as ruas
tortuosas, grandes beiras e as inúmeras rótulas e gelosias de herança moura.
A arquitetura urbana
A proibição também teve natureza estratégica de manter a segurança de Estado, uma vez
que um ataque ao rei era um temor corrente, as frestas proporcionadas e a dificuldade em se ver
ao nível da rua o que ou quem estava atrás da barreira de frasquias das gelosias eram entraves à
segurança do monarca. O emprego destes elementos era muito mais que simplesmente pôr luz
nas escuras alcovas, era, também, uma coação ao uso da caixilharia de vidro e das varandas de
ferro, produtos ingleses, bem como a proibição do lançamento nas vias públicas das águas
provenientes dos beirais, seria subterfúgio para o consumo dos condutores de águas pluviais
industrializados, também de fabricação inglesa276. Freyre traz, em seu texto, que a obrigação das
mudanças de esquadria atingia somente os sobrados em detrimento às construções térreas, meio
termo entre o sobrado e mucambo. As rótulas e gelosias eram agressivas aos olhos apenas nas
residências mais abastadas, o que indicaria que seriam seus proprietários e não os donos de casas
térreas ou mucambos, quem possuiriam reais condições financeiras de atender o prazo
estipulado277, como Freyre discorre:
"no termo de oito dias", tolerando-se pelo "espaço de seis mezes" as do peitoris
daquelas casas que não tivessem ainda "grades de ferro", para, durante esses
breves seis meses, processar-se a substituição da madeira pelo ferro e não
apenas do xadrez mourisco pelo vidro de fabrico inglês. Excetuavam-se,
275 MACEDO, Joaquim Manoel. Memorias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1878
[fazendo uso da cópia em Domínio Público: Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000051.pdf >Acesso em 29 out. de 2014.]
276 FREYRE, op. Cit.
O vidro seria considerado ―os mais custosos ornamentos no interior do Brasil‖, à época da viagem de Spix e
277
Martius, entre 1817 e 1821. In: SPIX E MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro, 1938.
| 145
Foi [...] no sobrado, através da varanda, do postigo, da janela dando para a rua,
que se realizou mais depressa a desorientação da vida da mulher [...]. A varanda
e o caramanchão marcam uma das vitórias da mulher sobre o ciúme sexual do
homem e uma das transigências do sistema patriarcal com a cidade
antipatriarcal281.
Rugendas ainda traria em sua obra “Viagem Pitoresca Através do Brasil.” duas gravuras com
representações desses ambientes e sua relação com a mulher. Na Figura 87, uma das mais
célebres gravuras de Rugendas, observa-se uma varanda fantasiosa, visto a curvatura do forro da
madeira não corresponder aos exemplos da época. Estão aqui, uma vez mais, os tons tropicais,
278GOLÇALVES DOS SANCTOS, Padre Luiz. Memorias para servir à Historia do Reino do Brasil... Escriptas na Corte do
Rio de Janeiro no Anni de 1821 e Offerecidas a S. Magestade Elrei Nosso Senhor D. João VI, Lisboa, 1825, p.136 apud
FREYRE, op. cit.
279 Cf BRANDÃO E MARTINS. Op. Cit.
280 Indica-se, para maiores esclarecimentos a respeito destes elementos e sua relação com o Brasil joanino, a obra do
pesquisador Paulo César Marins: Através da Rótula: Sociedade e Arquitetura Urbana no Brasil, séculos XVII a XX, (2001).
281 FREYRE, Gilberto. Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil 2 - Sobrados e Mucambos: decadência do
patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Vol.1 e 2, 4ª ed.. Rio de Janeiro: ed. José Olympio, 1968.p.154.
282 VAUTHIER, op. cit., p. 173.
| 146
Figura 87 Johann Moritz Rugendas, "Costumes do Rio", Figura 88 Johann Moritz Rugendas, "Costumes da
1825. Gravura. Bahia", 1825. Gravura.
Fonte:<http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog.com. Fonte:<http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog.com.
br/17693/RUGENDAS-COSTUMES-DO-RIO-DE- br/17693/RUGENDAS-COSTUMES-DO-RIO-DE-
JANEIRO/ > Acesso em: 25. Out. 2014. JANEIRO/ > Acesso em: 25. Out. 2014.
Se, em um primeiro olhar, o episódio das rótulas pareça de importância menor, ele toma
valor quando observado como paradigma de um processo de ―reeuropeização‖ dos costumes na
| 147
colônia283, tentativa de tornar menos oriental e africana uma cidade que recebia, a partir daquele
momento, a alcunha de sede de um império e, portanto, necessitada de novos processos de
urbanidade e novas dinâmicas sociais entre público e privado. As determinações impostas por D.
João VI na cidade carioca que deixaram suas casas em trajes menores284, desprovidas de suas
tradicionais esquadrias, foram, consequentemente, estendidas para todas as cidades brasileiras; no
entanto, se mesmo um elemento aparentemente fácil de ser retirado e substituído ainda seria
presença constante na cidade Oitocentista, as medidas falharam na tentativa de ―eliminar o
285
caráter [...] das cidades amouriscadas componentes da rede urbana colonial brasileira‖ , visto a
isenção das casas térreas desta medida e tampouco, todos os sobrados o fariam. A permanência
das rótulas e gelosias seria acompanhada pela presença das construções de soluções tradicionais
não haveria de ser diferente, pois em um organismo tão dinâmico e vivo como a cidade, várias
temporalidades estilísticas coexistem, como uma pintura que ao longo do tempo recebe inúmeras
camadas de tintas das mais variadas cores, direções e técnicas, a cidade é um quadro que nunca
está acabado e, portanto, não se pode divisar a qual estilo pertence, pois, como discorre Sonia
Gomes Pereira (2007):
Embora Pereira (2007) adiante em sua explanação além do recorte estudado por essa
pesquisa, a cidade das primeiras três décadas do Oitocentos ainda assim já trariam essa
coexistência de estilos, se não substancialmente percebidos, ao menos iniciadas, indicadas em
casarios que receberiam as novas tipologias e materiais de acabamento mas inseridos em um
traçado urbano que pouco mudara. A respeito destas permanências das antigas formas
arquitetônicas e urbanas na cidade joanina, Flora Lahuerta (2009)287 remete ao conceito de
rugosidade a qual Milton Santos instrumentaliza para entender este descompasso. Nas palavras de
Santos (2002) "chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído,
paisagem [...] Em cada lugar, pois, o tempo se defronta com o tempo passado, cristalizado em
formas‖288.
As rótulas não seriam as únicas rugosidades desta cidade antiga: o cenário desvelado aos
olhos estrangeiros seria pontilhado pelas casas térreas, sobrados de duas águas e suas janelas
almofadadas, contudo, também seriam percebidas tipologias ―europeizadas‖ frutos da influência
das novas tendências estilísticas vindas, pouco a pouco, da Europa. As transformações sofridas
no exterior das edificações seriam percebidas, lidas e relatadas por viajantes como os naturalistas
Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, em suas viagens pelo Rio de
Janeiro em 1817, em dois trechos do Viagem pelo Brasil: 289
287LAHUERTA, Flora Medeiros. Geografia em movimento: território e centralidade no Rio de Janeiro joanino (1808-1821).
Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia, FFLCH, 2009, p.29.
288 SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 2002, p.140.
289Carl Friedrich Philipp von Martius (Erlangen, 17 de abril de 1794 — Munique, 13 de dezembro de 1868) foi um
médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil,
especialmente a região da Amazônia. Johann Baptiste von Spix (9 de Fevereiro 1781 — 14 de Março de 1826) foi um
naturalista alemão, companheiro de viagens de von Martius.
290 SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Vol. I, II, III. Melhoramentos, 3ªedição. p.46-48; 1976.
| 149
Figura 89 Thierry Frères (gravação) Jean Baptiste Debret (original), Quinta da Boa Vista, desde o ano 1808 à 1831.
Gravura.
Fonte:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393054/icon393054_154.htm>.
Acesso em: 25 out. 2014.
De baixo para cima, temos quatro instantâneos referentes a datas distintas, Debret
intercala momentos importantes da história com a sua própria jornada em terras brasileiras: 1808
(Vinda da Família Real portuguesa), 1816 (chegada de Debret ao Brasil), 1822 (data da
291 Uma vez mais a referência à Quinta da Boa Vista, já trabalhada no capítulo 1, no entanto, apesar de todas as
atividades governamentais ocorridas na edificação, ela era também uma residência (tanto em seu uso original quanto
no uso após a chegada de Dom João VI).
| 150
Independência) e 1831 (ano em que Debret retorna à Portugal). Debret chega a retratar uma
paisagem anterior à sua chegada ao Rio de Janeiro, de onde ele teria então buscado esta
―imagem‖? Esta deve ser uma explicação plausível para a Quinta da Boa Vista se encontrar
representada diminuta na paisagem. Observar que, à medida que os quadros se aproximam da
data mais avançada (1831), o foco na própria edificação vai se intensificando, denotando que sua
importância como objeto arquitetônico vai ganhando força somente quando se europeíza. Debret
também observaria o casario da cidade como um todo: das casas térreas aos sobrados de beirais
estreitos, ainda sobre forte herança moura, como observado na Figura 90:
292O enquadramento desta figura não corresponde com a imagem original, no entanto, as reproduções encontradas
em meio virtual do original encontram-se em baixa qualidade de resolução; optou-se por apresentar a imagem neste
recorte para fins didáticos.
| 151
1 2
Fonte: < http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/sandra_jp.html >. Acesso em: 25 de out. 2014.
293 São denominadas frasquias as pequenas peças de madeira ou de urupema (fibra vegetal) de cerca de 15 mm de
largura que, sobrepostas, formariam as treliças de gelosias e rótulas. Cf
http://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2010/09/06/tecnicas-construtivas-do-periodo-colonial-iii/ Acesso em:
24 de set. 2014.
| 152
A moradia da figura anterior por si só aponta que seus moradores não eram ―de posses‖;
visto sua condição térrea, falta-lhe um indicativo de status e modernização294 : a varanda.
Vaulthier denomina as varandas oitocentistas dos sobrados de sacadas, dada a sua pouca
profundidade295; porém, a pouca projeção ainda assim reclama à fachada frontal da edificação
uma nova volumetria, agora sem a cobertura de rótulas e gelosias.
294Aqui e em outras partes do trabalho, o termo modernização abrange o sentido de atualização de uma prática ou
de um novo uso para um novo elemento.
295 BRANDÃO, Helena Câmara Lacé; MARTINS, Angela Maria Moreira. O modo de vida oito-novecentista visto da
varanda. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_varanda.htm>.
VAUTHIER, L.L. Casas de residência no Brasil. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
296
298Utilizar-se-á a nomenclatura de Vasconcellos (1976) para definição de sacada e balcão. Enquanto o balcão
constitui-se de uma ―uma peça sacada, permitindo o trânsito‖, a sacada seria uma ―peça saliente, sem cobertura, não
permitindo o trânsito‖ Cf. VASCONCELLOS, Silvio, op. Cit, 1976, p. 105. Há ainda, outras denominações e
conceitos, no entanto, para efeito de diferenciação neste trabalho, bastam-nos por ora essas definições e elementos
apresentados.
299 VASCONCELLOS, Op. cit., p.106.
| 153
Figura 92 RUGENDAS, Johann Moritz. VENTA A Figura 93 Detalhe da figura "VENTA A REZIFFÉ
REZIFFÉ (Venda em Recife). Domínio Público. (Venda em Recife)."
Fonte: Domínio público, 2014. Fonte: Domínio público, 2014. Editado pela autora.
Outro elemento seria utilizado como subterfúgio para adicionar a pitoresca vegetação
tropical na representação do conjunto construído: os quintais. A casa colonial, profunda, sem
recuos e de lote estreito, teria seu ―jardim-horta-pomar‖, composto por plantas ornamentais,
hortaliças e árvores frutíferas, disposto no recuo posterior do terreno, longe da vista de quem
passasse pela rua300. Com as reformas engendradas no período joanino e a difusão do neoclássico
pela Missão Artística Francesa, aspectos da residência urbana e semi-urbana do Brasil vão
gradativamente transformando-se.
O jardim sai dos fundos da casa e ganha uma das laterais do lote, às vezes chegando a
avançar até a fachada frontal301. Contudo, esta mudança mostrar-se-ia processo extenso,
ocorrendo ao longo de todo o século XIX; o que não impediu de que fosse ―acelerado‖ nas
representações pictóricas. O que se vê na pintura de Rugendas é a utilização desta mudança de
implantação do jardim como subterfúgio para adicionar a pitoresca vegetação tropical na
representação do conjunto construído, como nas figuras abaixo (Figura 94 e Figura 95) deixa-nos
transparecer:
300ARAGÃO, Solange Moura Lima de. A casa, o jardim e a rua no Brasil do século XIX. Em Tempo de Histórias, v.
12, p. 151-162, 2008, p.152. Para mais informações a respeito do tema da casa brasileira, ver
301 Ibdidem, p. 152.
| 154
Figura 94 Johann Moritz Rugendas - Carregadores de Figura 95 Johann Moritz Rugendas - Vista do Rio de
água, 1822-1825. Litografia e aquarela sobre papel, 32,8 Janeiro nas proximidades da Igreja da Glória, 1827-1835
X 42,8cm Litografia e aquarela sobre papel, 32,8 X 42,8 cm
Fonte:
http://museuvirtualpintoresdorio.arteblog.com.br/176
87/RUGENDAS-CARREGADORES /. Acesso em : Fonte: http://ims.com.br/ims/artista/colecao/johann-
21/10/2014. moritz-rugendas/obra/4751
representações das moradas sul-africanas e das ilhas de Santa Helena, de influência inglesa, pouco
teriam em comum com o casario de heranças mouras e portuguesas no Brasil.
Experiente em representar as formas tropicais, mas não de todo. Burchell busca, além dos
cânones de representações de tema arquitetônicos, coletar estas novas formas, e o fará
meticulosamente. Destaca-se que, embora tenha tido a educação formal da classe abastada, a qual
de fato pertencia, Burchell não frequentou os institutos de ensino superior como a Academia
Real em Londres303; antes de tudo, fora formado para exercer a profissão de botânico. Suas aulas
de desenho, certamente, foram inclinadas nesta direção e, evidente que embora imbuídas do teor
neoclássico, não deixavam nunca de ser um método científico de apreensão do objeto observado.
A ―acuidade‖ e a ―fidelidade‖304 com o qual seus trabalhos são descritos partem muito
mais dessa inclinação natural e formativa para a catalogação do que de uma pretensa quebra das
amarras de determinada escola estilística. Lima (2001) trata a respeito desta sensibilidade
naturalista diante da paisagem, apoiada nas palavras de Anne L. Larsen:
Sua vasta produção artística referente às vilas, fazendas e cidades seria uma maneira de
levar consigo a ―arquitetura brasileira‖ para ―catalogação‖ posterior e dividi-la em táxons306 e
encontrar uma matriz em comum, assim como no estudo botânico ou entomológico, Burchell
agrupará várias dessas tipologias (a casa paulista, o sobrado urbano, a palafita, a casa de pau-a-
pique, etc) e iluminará que há uma origem em comum, mas que as dissonâncias se fazem vistas.
Ferrez (1981) descreve-o como um naturalista de olhar acurado:
303 A Academia Real de Londres (no original: Royal Academy of Arts) foi frequentada por inúmeros viajantes,
dentre eles, pelo pintor britânico Charles Landseer, que entre 1851 e 1873, tornou-se seu principal instrutor. Para
mais informações a respeito: LANDSEER, Charles. Landseer. Texto Alberto Rangel. São Paulo: Candido Guinle de
Paula Machado, 1972..
LARSEN, Anne L. Not since Noah: The English scientific zoologist and the craft of collecting, 1800-1840, p.198 apud
305
Figura 96 William Burchell, Rua do Cano, c. 1825-1826. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel, 413 x 541 mm 309.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.
Maurício A. Abreu e Valéria Lima (2004) atribuíram à cidade carioca do início do século
XIX uma aparência ―bastante indiferenciada‖ antes da chegada da Corte, em 1808. As distinções,
quando havia, diziam respeito à altura (os prédios mais altos encontravam-se mais próximos ao
porto) e ao material construtivo empregado (em escala ascendente, a população mais pobre
construía em pau a pique, a taipa de pilão, a taipa de mão e a pedra e cal, utilizada pela classe mais
abastada)310. A vinda da família real e seu séquito engendraram inúmeras mudanças e deflagrou,
ainda de acordo com os autores supracitados, uma imediata crise no setor de habitação:
309 A aquarela encontra-se em maior resolução em anexo ao final do trabalho (ANEXO B).
Figura 97 William Burchell, Ponte do Catete, 1825. Aquarela, 340 x 500 mm. Acervo Instituto Moreira Salles 312.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.
Burchell mostrar-se-ia atento nas sutis mudanças na tipologia dos sobrados ao longo de
seu percurso. Na província São Paulo, predominariam os sobrados de taipa, com telhados de
duas águas e largos beirais a proteger as paredes contra as águas da chuva,313 como o viajante
retratou na Figura 98.
Figura 98 William Burchell, Rua Direita em Santos, 1826. Aguada. Acervo Instituto Moreira Salles 314.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles. Editado pela autora.
As construções rurais
313ARAGÃO, Solange Moura Lima de . Tipologia Edificatória em Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre. Pós. Revista do
Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, v. 16, p. 100-117, 2009, p.106.
314 A aquarela encontra-se em maior resolução em anexo ao final do trabalho (ANEXO E).
| 160
cercanias, mostrava-se inevitável seus intentos de catalogar os vários aspectos do império que as
―ilhas de civilidade‖ fossem representadas.
Caso o viajante percorresse os trajetos usuais Rio de Janeiro-Santos-São Paulo, via
caminho de Lorena e Rio de Janeiro-Minas Gerais via Serra da Estrela (Petrópolis) certamente as
primeiras edificações rurais observadas seriam pertencentes à tipologia da ―casa bandeirista‖315;
sua presença, mesmo que horizontalizada, chamaria a atenção por sua tipologia diversa à
encontrada nos centros urbanos da qual ele, o viajante, já se afasta; nas palavras de Lemos (1999),
esta tipologia seria formada "tomando feições próprias, um modelo popular ibérico qualquer. Na
arquitetura brasileira, teria sido a primeira manifestação onde uma apropriação assumiu feitio
regional ligado a uma sociedade segregada"316
Com características próprias e dissonantes das edificações urbanas e semi-urbanas, a
tipologia rural foi, muitas vezes, moldada nas representações em prol da adição de maior carga
pitoresca nas cenas. Muitas vezes manipuladas quando na Europa, os desenhos originais
passariam por uma série de modificações, garantindo que a cena fosse a mais pitoresca possível.
Seria importante, então, evidenciar os schemas já consagrados dos motivos tropicais.
Autores como Ferraz Cruz (2012) apontam a influência dos palacetes e solares
portugueses, soluções volumétricas conhecidas pelos primeiros colonizadores e replicadas a partir
de então, na forma final da casa rural. Vestígios da arquitetura clássica, como cornijas, capitéis e
cimalhas também serão importadas para essas edificações, além dos preceitos como a simetria,
harmonia e proporção largamente utilizados317. Essa matriz clássica, mesmo que em realidade
sejam breves ecos, serão evidenciadas pelas mãos dos artistas europeus, pois são schemas já
conhecidos pela escola neoclássica, uma vez que as imagens italianas eram influência direta na
representação de paisagem, como visto anteriormente.
Aliados aos motivos botânicos tropicais, ao escarpado pitoresco dos mares de morros,
estas linhas clássicas serviriam ao propósito de ilustrar grande parte da área rural brasileira. A
Figura 99, representativa de uma casa-grande de fazenda em Minas Gerais, seria um claro
exemplo desta apropriação de outros elementos na representação da realidade rural. Para além
Cf. LEMOS, Carlos A. C. Lemos. Casa paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo,
315
EDUSP, 1999.
316 Ibid, p.64.
317CRUZ, C. Ferraz. Fazendas do Sul de Minas Gerais: Arquitetura Rural nos Séculos XVIII e XIX. In: Seminario de
Paisajes Culturales UDELAR/UPC [Conpadre N.11/2012], 2, 2012, Montevideo, Uruguai. Montevideo: Red
Conpadre, 2012. p. 01-13. Disponível em < http://www.conpadre.org/conpadritos/c11-2012/art_15.pdf> Acesso
em: 23/10/2014.
| 161
dos traços citadinos na estrutura da casa-grande (i.e a cimalha mais próxima ao estilo urbano),
ressalta-se a presença marcante da palmeira e do bananal, reafirmando o caráter tropical da cena.
Com traços clássicos seria desenhada a edificação da Figura 100, na qual os pilares assemelham-se
muito mais à estrutura dórica do que às construções brasileiras. O teor pitoresco dos trópicos dá-
se pela coroação desta estrutura por um telhado em quatro águas, pela presença dos negros e uma
vez mais, da vegetação.
Figura 99 Johann Moritz Rugendas, Índios em uma Figura 100 Johann Moritz Rugendas, Lundu, c.1822-
fazenda de Minas Gerais, 1824. Litogravura 1825. Litogravura
Fonte:
Fonte: <http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galer
<http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/ ia/detalhe.php?foto=715&evento=12> Acesso em
detalhe.php?foto=715&evento=10> Acesso em 23/10/2014.
23/10/2014.
As imagens finais produzidas para sua obra Viagem Pitoresca Através do Brasil relativas
às casas-grandes rurais estabeleceriam proximidades com as cenas rurais produzidas pelo
holandês Frans Post, desenhadas no século XVIII. No entanto, cabe ressaltar que, no caso de
Rugendas em especial, essas escolhas de representação parecem-nos terem sido feitas com mais
ênfase no momento de gravação das imagens. Seus esboços in loco, como atestam as Figura 101 e
Figura 102, possuem tons mais sensíveis às tipologias do ambiente rural brasileiro, embora a
visão pitoresca ainda esteja presente na escolha da tomada de cena.
Figura 101 Johann Moritz Rugendas, [Casa de taipa no interior do Brasil], c.1822-1825. Grafite e aquarela sobre
papel. Acervo Instituto Moreira Salles
| 162
Figura 102 Johann Moritz Rugendas, [Interior de um povoado com cavaleiros, Minas Gerais], c.1822-1825. Grafite
e aquarela sobre papel. Acervo Instituto Moreira Salles
Na Figura 103, Thomas Ender representa uma fábrica de pólvora nas proximidades de
Petrópolis; percebe-se, no entanto, a matriz da casa bandeirista na conformação da edificação,
replicada para atender às necessidades das atividades realizadas: seus alpendres reentrantes
ladeados por dois cômodos frontais — o quarto de hóspedes e a capela — que se abrem para um
salão principal, pelo qual se tem acesso a outros cômodos e seu extenso telhado de quatro águas
mostrar-se-iam diminutos em meio à vastidão que a circundava.
A planta-baixa simples deixa-se entrever em seu volume formal, bem como suas meias-
paredes tão comuns nas zonas rurais. Seu volume divisa-se mais pelo contraste entre o escuro do
interior dos alpendres com o claro das paredes caiadas do que por qualquer detalhe em seu
delineamento; embora diminuta, a edificação não aparenta estar oprimida; o uso de cores
semelhante às empregadas na paisagem e a luminosidade suave e dourada denotam uma
| 163
coexistência pacifica entre o construído e o natural. Porém, ao suavizar essa relação, Ender opta
por não individualizar o aspecto construído da cena.
1
Fonte: <http://www.brasilartesenciclopedias.com.br/temas/ender.html> Acesso em: 31 out.2014.
318 Id, ibid. Fernando A. Novais, "Condições da privacidade na Colônia", in Fernando A. Novais (org.), História da
vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
| 164
Fiz uma parada numa venda muito limpa e regularmente sortida como, em
geral, as dos arredores da cidade. O telhado terminava em alpendre sustentado
por barrotes entre os quais se construíra uma parede de arrimo; gênero de
construção bastante comum nos arredores do Rio de Janeiro.322
O alpendre, tão típico da arquitetura rural brasileira, está presente nesta aquarela que
representa uma fazenda no caminho entre o Rio de Janeiro e Minas, via Serra da Estrela.
Observa-se a base em pedra na qual a edificação repousa, bem como os traços verticais na
extremidade inferior aparentam ser tacaniças, o que nos faz crer que a fazenda esteja às margens
de um rio, provavelmente o rio Inhomirim, uma vez que Ferrez (1981) localiza-a próximo ao
Porto de Estrela. As nuances empregadas são suaves, em contraponto com o matiz usado no
interior do alpendre, ressaltando sua profundidade:
322SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (29/01/1822 –
05/05/1822). Tradução Revista e Prefacio de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974.
| 166
Figura 105 William Burchell[Belo exemplar de casa rural da baixada fluminense], 1825.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell, 1981.
O
Fonte: FERREZ, 1981.
e
Este enquadramento é proporcionado pelas pilastras ou esteios e pelas madres.
Valem-se também dos recuos que a menor espessura das paredes sobrepostas a
outras vai proporcionar e dos cordões e ensoleiramentos que, sacados, dividem
os andares [...] possibilitam, assim, as fachadas, composições moduladas,
organizadas pelos citados enquadramentos, estabelecidos pelos baldrames,
embasamento, cunhais apilarados, cordões, arquitraves, cornijas e beirais,
determinando subdivisões em retângulos proporcionais.324
q
324
u
VASCONCELLOS, Op. cit., p. 37.
| 168
Figura 107 Detalhe da figura "Matriz e casas de Figura 108 Enquadramento utilizado na
Paraíba do Sul." Em que se vislumbra os edificação
enquadramentos
Por que essa tomada de cena que, a um primeiro momento nos informa muito menos
sobre a paisagem tropical do que os enquadramentos célebres? Talvez, como a leitura de
Ginzburg (1991) indica-nos, está nos ―detalhes negligenciados‖327 a chave para retirar
informações que podem nos contar muito mais do que os elementos de maior destaque (como
seria o caso da fachada); ao reportarmos à aguada de Burchell, encontra-se, no jogo de volumes,
apenas observado nas laterais do edifício, os elementos de uma igreja brasileira colonial, mas,
principalmente, uma que esteja dentro do raio de influência da tipologia da casa paulista, pois é
desta perspectiva que percebemos esta influência. O viajante também apontaria a predominância
do cheio em relação ao vazio no restante da edificação, o que não é incomum, visto que os dois
volumes maciços correspondem à nave e à sacristia, inclusive, a intercalação denota pitoresco, a
diferenciação na casa paroquial e na igreja em relação a cheios e vazios.
Figura 109 William Burchell, Church [na Ilha do Governador]. 140 x 210 mm. Aguada
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell,
1981.
O Mosteiro de São Bento, atual Museu de Arte Sacra de Santos, mostra-se, nesta aquarela,
(Figura 110) junto à sua capela de Nossa Senhora do Desterro. Fundado em 1649, datam do
século XVIII as obras que culminaram em seu aspecto atual.328 De acordo com Vasconcellos
(1979) os primeiros arcos começaram a ser empregados na arquitetura brasileira neste mesmo
século329. A aquarela de Burchell retrata com exatidão a fachada frontal da igreja com as três
janelas de vergas retas, a galeria de três arcos (um para a nave central e dois para as naves laterais),
elementos arrematados pelo frontão triangular retilíneo, tipologia típica da ordem beneditina.
Burchell trata-a em pormenores, imersa em um esquemático maciço de vegetação.
Figura 111 Rua São Bento, com o mosteiro e a fonte Figura 112 Detalhe da figura ao lado, vista do Mosteiro de
ao fundo, em foto de Militão Augusto de Azevedo. São Bento e a torre sineira da capela de Nossa Senhora do
(albúmen com 10,5 x 17,2 cm. ) Acervo IMS. Desterro. Acervo IMS.
Fonte:< Fonte:
http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos270.htm> <http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos270.htm>
Acesso em: 02 nov. de 2014. Acesso em: 02 nov. de 2014. Editado pela autora
A Figura 112 apresenta-nos uma vez mais o mosteiro de São Bento, visto agora desde o
jardim da residência que Burchell se hospedou330. O caminho retilíneo foi representado em
ângulo que proporciona uma continuidade até o mosteiro. A racionalidade do jardim atua como
um lembrete por parte do botânico que há ordem nos trópicos, embora seja encontrada inserida
em Ordens religiosas, acentuada pela presença do edifício religioso. A tropicalidade está presente
na diversidade vegetal deste jardim.
Figura 113 William Burchell, Monastério Beneditino em Santos e casa e jardim onde W. J. B. viveu 331, c.1825-1826. Grafite e
aquarela sobre papel, 215 x 448 mm.
A vila é cortada por alguns ribeirões que descem dos outeiros, onde se
localizavam as nascentes. Esse sistema poderia ser a base do abastecimento da
vila em sua primeira fase. Três são os ribeirões [...]o Ribeirão do Carmo ou
Itororó, passando ao lado do Convento do Carmo; o Ribeirão São Jerônimo,
que desemboca ao lado da Igreja de Jesus, Maria, José; e o Ribeirão de São
Bento, o qual, nascendo junto ao mosteiro desse nome, dirige-se ao mar,
passando frente ao Convento de Santo Antônio, no bairro do Valongo334.
Figura 114 William Burchell, Capela de Santa Catarina, em Santos. c. 1826-1826. Acervo Instituto Moreira Salles.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
Esta aquarela de Burchell traz muito dos conceitos de sublime imersos em suas tintas,
pelos escuros matizes que ele opta no intuito de transmitir profundidade e densidade da mata,
pela apresentação da fachada posterior da paróquia, desprovida de ornamento, desta forma
acentuando a representação da vegetação e certificar o tema natural da cena e pela presença
diminuta de uma pessoa, servindo ás vezes de escala humana. Esta seria uma das últimas
aquarelas de Burchell e um dos últimos trabalhos como membro da Missão Diplomática
Inglesa335; esta informação nos é importante, pois o questionamento ―para quem a obra é
destinada?‖ uma vez mais é iluminada. Burchell não representaria apenas o que ele imaginava ser
importante, mas principalmente qual a imagem do Brasil a missão gostaria de levar para os seus
intentos. Veremos que a partir do momento em que o viajante se desprende da missão e inicia as
suas viagens solo, se prenderá muito mais aos detalhes da arquitetura brasileira.
335 Esta conclusão é retirada mediante a informação de que estas aquarelas, hoje em posse do Instituto Moreira
Salles, estavam no álbum Highcliffe, ao mesmo tempo em que as de Landseer. Uma vez que Charles Stuart confisca
as aquarelas e desenhos de Landseer é provável que tenha feito o mesmo com as de Burchell.
| 173
A história das estratégias projetuais e das técnicas construtivas tradicionais brasileiras tem
seu início antes das primeiras povoações de São Vicente e Santo André em 1532. As construções
indígenas seriam, como já observado no inicio do capítulo, importantes referências para os
primeiros colonos, que adaptaram as técnicas construtivas por eles conhecidas às condições
socioeconômicas vigentes da época. Estas adaptações, permanências e inovações ocorridas entre
o século XVI ao XIX, época em que Burchell aporta no Brasil, processadas ao longo deste
período pelo ―fazer‖ construtivo, corresponde aos elementos que nos interessa neste tópico. A
produção burchelliana, tratou estas particularidades arquitetônicas com bastante preciosismo,
como observar-se-á a seguir:
Figura 115 William Burchell, Rua em São Carlos (Campinas), 1827. 300 x 480mm.
Figura 116 Detalhe da figura ―Rua em São Carlos Figura 117 Sistema construtivo da taipa de pilão.
(Campinas)‖.
1
Fonte: <http://www.vilavera.com.br/taipa.htm.>
Fonte: Ferrez, 1981, editado pela autora. Acesso em: 21/10/2014.
A Figura 118, relativa à Rua do Quartel, em São Paulo, também traria em sua
representação os largos beirais em cachorro aferente336, em contraponto às estreitas beiradas
336Cachorro aferente: acabamento de beirada misto no qual se unem o sistema de cachorro e de cimalha,
normalmente em madeira. Cf: MIRANDA, S. M. . A Igreja de São Francisco de Assis em Diamantina. 1. ed. Brasília, DF:
Iphan / Monumenta, 2010. v. 1. 300p .
| 175
Figura 118 William Burchell, Rua do Quartel, 1827. Lápis aquarelado. 300 x 480 mm.
337Peito de pomba ou peito de pombo: arremates da cumeeira que serviam ao propósito de lançar as águas pluviais mais
distantes das paredes.
338CAMARGO, Daisy. Sob sol, chuva e moscas: os quiosques na cidade de São Paulo (1880-1910). Antíteses, v. 3, n.
5, p. 419-438, 2010, p. 420.
| 176
Figura 119 William Burchell, Aspecto de Vila Franca (atual Franca), 1827.
Ainda na província paulista, Burchell traz-nos esta vista de Franca; em primeiro plano,
nota-se a estrutura autônoma em madeira, esperando o preenchimento pela taipa de mão.
Desenhos a respeito das etapas da construção seriam raros, mas passagens em relatos escritos nos
informam como era feitas, aos olhos estrangeiros, a construção das edificações:
[...] com esteios fincados no chão, suportando um telhado sobre uma armação
de madeira; muitas vezes, assim, o telhado fica pronto e são colocadas as portas
e janelas antes de aparecerem as paredes. Em seguida é que vem a construção
das paredes, com uma armação de varas, que é enchida com barro. Essa curiosa
forma de construção é chamada de pau-a-pique ou parede de mão. Onde se
conhece o adobe, este toma o lugar do pau-a-pique e do barro339.
Figura 120 Detalhe da figura "Aspecto de Vila Figura 121 Esquema de beiral com galbo no contrafeito, típi co
Franca‖ da arquitetura colono=ial.
Figura 122 William Burchell, Cemitério dos ingleses. Observar a casa à Figura 123 Detalhe da figura "Cemitério
direita dos ingleses".
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles, editado pela autora.
340VASCONCELLOS, Silvio. Arquitetura no Brasil: Sistemas construtivos. Belo Horizonte: Universidade Federal de
Minas Gerais, 1979, p.158.
| 178
A Figura 124 traz outro detalhe construtivo observado por Burchell. Ferrez (1981) indica-
nos a ponte de Sant‘Ana (ou Ponte Grande)341 que cruzava o rio Tietê e a casa do guarda, à
direita. Esta seria, na verdade, a primeira edificação que Burchell representaria em que o sistema
de pau-a-pique apresenta-se aparente, o que pode explicar a minúcia com que se debruça em
representar o afloramento da trama no barro que a recobre. A cobertura em telhas coloniais
repousam em um caimento de duas águas e a construção encontra-se elevada do nível da
ribanceira por palafitas, solução que seria amiúde encontrada em outras localidades ribeirinhas,
sobremodo em Goiás e no norte do país.
Figura 124 William Burchell Ponte sobre o rio Tietê, 1827. 235 x 485 mm. Lápis
Figura 125 Detalhe da figura Ponte do rio Figura 126 Detalhe da figura Ponte do Rio
Tietê: sistema de pau a pique Tietê: Palafita.
341LIMA, Adriana Tavares . Alterações toponímicas no município de São Paulo: as pontes sobre os rios Tietê e Pinheiros. Anais do
X Encontro do CELSUL: Círculo de Estudos Linguísticos do Sul, v. 1, p. 1-12, 2012. A Ponte Grande situa-se onde
hoje encontra-se a Ponte das Bandeiras.
| 179
Figura 127 William Burchell, Uma edificação em construção em Goiás Velho, 1828. Lápis.
342 WOLFF DE CARVALHO, Maria Cristina. A visão da paisagem na obra de William John Burchell (1781–1863).
In: Arquiteturismo, São Paulo, ano 07, n. 073.02, Vitruvius, mar. 2013
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/07.073/4700>.
| 180
Figura 128 Detalhe da figura "uma Figura 129 Ligação em meia madeira de
edificação em construção em Goiás encontro
Velho, 1828 " :esteios
Fonte:<http://www.
Fonte: Wollf de Carvalho, 2013.. woodsecondchance.blogspot.com>. Acesso
em 23/10/2014.
Em Goiás Velho Burchell também retrataria uma imagem invulgar, registro importante
do interior de uma residência (seria, pois, a mesma da figura anterior?). Na figura fica claro que o
elemento que lhe despertou a atenção foi a presença das conversadeiras nas janelas, construídas a
partir do largo dos vãos, mas há outros elementos importantes destacados: O teto em gamela, as
gelosias nas janelas, as ferragens das esquadrias típicas (dobradiças de cachimbo ou dobradiças de
leme), o assoalho de madeira e a alta janela na parede à direita.
Figura 130 William Burchell, Interior de casa em Goiás Velho, 1827. Lápis.
Figura 131 Dobradiça de cachimbo ou leme, comum Figura 132 Lêuncio Nobre, Janela superior do
nas edificações oitocentistas. Desenho de Aljube- Olinda, 2001.
Vasconcellos.
Esta cena é muito semelhante à uma aquarela de Thomas Ender que retrata uma
residência em São Paulo, demonstrando que em ambas as representações a matriz da casa paulista
é muito forte343.
Figura 133 Thomas Ender, Interior de uma casa paulista, 1817. Aquarela.
À medida que Burchell segue para o norte do império, as tipologias das moradias vão
cambiando. Há cada vez mais pranchas onde ele indicará, por escrito, o emprego do ―sapé‖ nas
coberturas, inclusive na varanda das igrejas. Ao observamos as representações destes núcleos
urbanos, percebemos que há algo em falta: onde estão a tipologia dos sobrados que tanto foram
utilizados na representação desta urbe Oitocentista brasileira? As construções das províncias do
norte guardam semelhanças com a matriz tipológica carioca e paulista, mas suas diferenças e
adições são claramente visíveis. Estas povoações geralmente surgiram a partir de destacamentos
militares, com constante presença de tropas, por isso, a presença de soldados e canhões será uma
constância nos desenhos de Burchell. Estas construções de palha e terra pontilhada por
elementos de seriam, inclusive, a representação destas fronteiras territoriais difusas, das
divergências e do alcance limitado dos poderes imperiais em uma região que mal se conectava
com o restante do império. Os enquadramentos de cena do viajante serviriam ao propósito de
aumentar este ar de atraso e de distanciamento da ―civilização‖, como observado na Figura 134
Figura 134 William Burchell, presídio de São João das Duas Barras, no Araguaia. Sem data, grafite sobre papel.
A construção com coberturas de material vegetal não seria uma prerrogativa das cidades
do norte, embora a cobertura de palha ou sapé seja associada às moradias provisórias ou
pioneiras, como Clarissa Rahmeier (2007) aborda: [...] essas construções possivelmente não
constituíam a moradia definitiva dos donos344. Sobre essa noção do emprego do sapê relacionado
às primeiras ocupações de núcleos urbanos, Aroldo de Azevedo (1958) afirma que a cidade de
São Paulo:
344RAHMEIER, Clarissa Sanfelice. Experiência da paisagem estancieira. Um estudo de caso em arqueologia fenomenológica.
Estância Vista Alegre, Noroeste do Rio Grande do Sul, séc. XIX. 2007. 1 v. Tese (Doutorado) - em História das Sociedades
Ibéricas e Americanas., Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul., Porto Alegre, 2007.
345Cf. Mota, Oconiel, p.9 apud AZEVEDO, Aroldo de. A cidade de São Paulo – Estudos de geografia urbana: os subúrbios
paulistanos. v. IV. São Paulo: Editora Nacional, 1958, p. 20.
| 184
Figura 135 Johann Moritz Rugendas, Acampamento de Figura 136 Johann Moritz Rugendas, Habitações de
índios, 1824. Lápis e nanquim sobre papel, 115 x 117 mm. negros, c.1822-1825.
Em três dias [constroem]uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota
da terra como um urupê346. [...] Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as
ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão
íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de
coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse
capaz de criar coisas tão feias347.
Esta tipologia brotada da terra, parafraseando Monteiro Lobato, seria retratada por
Burchell, que ao pé de um de seus desenhos, relativo à um arraial no Pará, escreveria ―tudo cor
de lama, salvo a igreja e a cadeia‖.348
346O Urupê é um fungo, costuma crescer sobre troncos de árvores em estado de decomposição. Não é comestível,
se ingerido, pode levar à morte. In: < http://www.natal.rn.gov.br/parquedacidade/paginas/ctd-540.html >
Disponível em: 01 nov. 2014.
347 LOBATO, Monteiro. Urupês. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1969. (Obras completas v. 1)
No entanto, nem todas as edificações seriam cobertas com fibras naturais, como visto
anteriormente; as telhas mouras (coloniais) eram reservadqs aos edifícios importantes, ou àqueles
de propriedade de ordens religiosas que possuíssem poder aquisito para bancar a vinda do
material até sua localidade. Um claro exemplo – e talvez tenha sido um dos motivos para Burchell
se debruçar neste desenho – é a prancha relativa ao Convento das Mercês, próximo à Belém do
Pará (Figura 137).
349 NASH, Roy. A conquista do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 232.
| 186
Figura 137 William Burchell, Igreja das Mercês, Pará. Grafite sobre papel, c.1829.
deseja passar ao espectador da obra. Também se devem observar figuras humanas rabiscadas,
como a mostrar que as subtrações da meia-parede serviriam às vezes de bancos e da escala
humana. Nesta estrutura observa a ausência do galbo do contrafeito, tão recorrente nas
províncias do sul, indicando que seu uso não fora percebido pelo mesmo durante seu trajeto pelo
norte do Império.
O acentuado grau de detalhamento e precisão de suas notas e desenhos não implica,
necessariamente, uma menor impressão de pré-conceitos em seus desenhos. No entanto, embora
carregada de uma visão eurocêntrica, a obra do botânico apresenta-nos um olhar apurado para a
arquitetura colonial, sua matriz e suas variáveis. Em um corpus iconográfico no qual a maioria das
representações relativas à paisagem urbana do norte se atém à reproduzir a tipologia da
construção indígena, Burchell demonstra sensibilidade para perceber as mudanças das tipologias e
dos materiais construtivos ao longo do trajeto.
| 188
Últimos vernizes:
Considerações finais
Ao longo do século XIX inúmeras cidades brasileiras foram retratadas nos cadernos de
visitantes europeus e viajaram, fizeram-se circular por entre os admiradores de arte de temática
tropical e, posteriormente, suas representações foram utilizadas para legitimar, preencher ações e
episódios de nossa história urbana. Alguns núcleos urbanos como São Paulo, Santos e Rio de
Janeiro, tão ricamente retratados pelos viajantes oitocentistas, hoje são metrópoles cortadas por
túneis e vias expressas, de acesso não mais por navios ou por serpenteadas estradas, mas pelo ar
ou por rodovias de rápido fluxo; seus altos prédios encobrem parte de sua topografia acidentada,
mancham de tons acinzentados o que antes eram densos matizes verdes, sua modernidade ora
encobriu ora arrasou os pitorescos morros, as tortuosas vielas e os largos beirais. Noutras, como
Goiás Velho e Natividade, a pátina colonial resistiu mais bravamente, embora com importantes
mudanças arquitetônicas e urbanas. Os caminhos retratados por Burchell agora são genéricas ruas
em meio à São Paulo, já não ligam mais arraiais distantes, o Progresso já fez o seu trabalho de
espraiar a mancha urbana, em um movimento contínuo e cada vez mais acelerado. Das fazendas
retratadas, poucas ainda sobrevivem, da mesma forma os sobrados urbanos, quase todos
demolidos ou irremediavelmente modificados. O que resta das cidades antigas e mais ainda, o que
resta das cidades que Burchell retratou?
Inúmeras reformas foram engendradas nas urbes brasileiras, a começar pela própria
capital do império e, posteriormente, capital da república do Brasil: o Rio de Janeiro passaria por
profundas transformações ao longo do século XX, em especial, no governo de Rodrigues Alves,
entre 1902 e 1906. Responsável por recobrir a cidade com ares modernizantes, Pereira Passos
concebeu uma profunda transformação na paisagem carioca. O desmonte de morros, a
retificação de ruas, o aterramento de áreas na costa e o arrasamento de quarteirões coloniais no
centro, mudariam a dinâmica da cidade e sua aparência colonial.
Antes das reformas da capital carioca, ainda em finais do século XIX, a primeira cidade
brasileira a ser projetada segundo preceitos modernos seria erguida em tábula rasa: Belo
Horizonte. O Relatório da Comissão de Estudos das Localidades, cujo intuito era a escolha de
um sítio para a nova capital da província de Minas Gerais, apontava para a inadequação de Ouro
Preto em suprir as necessidades esperadas de uma capital; seus ―ares insalubres‖ e sua ―péssima
posição topográfica‖ eram entraves para o seu crescimento, a opinião a respeito da incapacidade
destas cidades era tão compartilhada e vista como consenso que os escritos da Comissão mal
trazem esta discussão350.
350DANTAS, George A. F. A arte que lhe falta: representações sobre a cidade colonial e a formação do urbanismo moderno no
Brasil. In: XI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, 2010, Vitória-ES. Anais do XI SHCU. Vitória:
UFES, 2010. p. 1-15.
| 190
O relatório elaborado pela comissão técnica, chefiada pelo engenheiro Aarão Reis, ao
examinar Barbacena como possível local para a construção da capital, faz uma leitura da paisagem
marcada pelo encanto com a beleza pitoresca do local. Embora momentaneamente deslumbrado
pela paisagem, os engenheiros, ao descreverem a cidade, não deixam de fazer uso de lugares-
comuns, oriundos de um fundo-comum constituído, ao menos, desde fins do século XVIII por
diferentes fontes para respaldar o descarte de quaisquer núcleos urbanos outrora construídos para
receber a nova sede. Esta imagem de estagnação se estenderia desmedidamente a outras cidades,
indiferente ao porte, localização ou real disposição de seus elementos.
Os valores do Regime Republicano eram calcados na visão positivista do Progresso.
Necessário, pois, retirar a alcunha de capital de cidades como Vila Rica, impregnadas pelo ranço
do regime anterior, resultado material do atraso colonial e, posteriormente, imperial. Belo
Horizonte – e tantas outras cidades- nasceriam ―cidade nova‖, longe do solo traçado
irregularmente, das casas de ―porta e janela‖ e das vielas íngremes, símbolo da superação dos
entraves herdados do ―desalinho‖ colonial, materializando os anseios de modernização que a
sociedade almejava, exemplos a serem seguidos por outras capitais e cidades, alcançados ora pela
retificação de caminhos, ora pela destruição do passado ―sem ordem‖.
Seria na mesma Vila Rica percorrida pela Comissão Construtora da Nova Capital que o
escritor Olavo Bilac se refugiaria por motivos políticos. Se nas ―letras oficiais‖ estas cidades
seriam apontadas como incapazes de possuir a modernidade que se aproximava, na literatura seu
tratamento seria mais romanceado, mas não menos crítico. Pelos becos e vielas de Ouro Preto,
Bilac seria influenciado pela ―decadência gloriosa351‖ da cidade colonial e escreveria uma série de
crônicas, entre 1893 e 1894352. Seu soneto ―Vila Rica‖ traz as observações de uma cidade em
declínio de sua maior atividade econômica durante o século XVIII e parte do século XIX: a
mineração do ouro:
O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que a ambição
Na torturada entranha abriu da terra nobre:
E cada cicatriz brilha como um brasão.
351Em ocasião do bicentenário da cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto) Bilac escreveu ―Vila Rica, com sua estranha
beleza de cidade quase morta, conservando na decadência gloriosa, a majestade de um nobre orgulho. É essa, de fato,
a impressão que Vila Rica deixa no espírito de todos os artistas que a visitam: é impossível deixar de amá-la e
respeitá-la, vendo-a serena e resignada no seu alto sólio de montanhas verdes, abandonada das gentes que ali se
formaram e criaram. BILAC, O. Ouro Preto In BRANDÃO, Angela. Olhares oitocentistas para a arte barroca e
rococó. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/criticas/mg_viagem.htm
352 BILAC, O. Chronicas & Novellas 1893-1894. Rio de Janeiro: Cunha & Irmãos, 1894.
| 191
retratar a urbe, considerado quase ―fotográfico‖353 não impediria que nela se plantasse também
expectativas, lugares-comuns, preconceitos, tal como inúmeros outros relatos iconográficos.
Entretanto, a interpretação que o Brasil recebe nos traços e tintas do botânico é invulgar.
Observar os desenhos de William Burchell é seguir viagem percorrendo as províncias do
sul ao norte, no lombo de mulas por entre a Estrada de Lorena ou embarcado em faluas pelos
rios goianos; é também perceber nitidamente as várias mudanças de tipologias, vegetação, tipos
humanos e conformações urbanas, estes vários ―Brasis‖ que pouco foram postos à luz por essas
representações iconográficas. Sua representação do Rio de Janeiro merecia todas as cores de sua
paleta de aquarela e os enquadramentos mais pitorescos, pois eram destinados à responder a uma
finalidade documental de caráter oficial; no entanto, ao adentrar o sertão brasileiro, Burchell vai
se desprendendo cada vez mais das amarras de representação neoclássica; já ao final de sua
viagem, suas vilas ao longo do Araguaia são rapidamente rabiscadas no papel, sem cores ou
hierarquia de traços. Isto em nada desmerece o apuro artístico destas pranchas, apenas nos
indicam que muito mais que representar as paisagens brasileiras pelas tramas dos cânones
artísticos, Burchell queria catalogá-las como espécies, encontrar matrizes, traçar suas semelhanças
e divergências. Interessante é que em retorno à Inglaterra, o botânico não mais se debruça em
seus desenhos tropicais, não procura reproduzi-los em publicações, tal como fez com sua viagem
à África do Sul, mas continua a etiquetar todas as espécies botânicas e animais que trouxera. Será
que já tinha se dado por satisfeito com a catalogação das paisagens in loco? Difícil saber, pois até
de suas cartas pessoais o Brasil vai rapidamente desvanecendo.
Sua produção iconográfica nos impele a tomá-la como verdadeira, a cair nesta armadilha
do irrepreensível documento, da legitimidade medida pela acuidade. De fato, seus desenhos são
documentos, mas nenhum documento é neutro, é tecido em meio à escolhas, muitas delas
inconscientes até, de quem o produz, de quem o lê354. Como visto ao longo do trabalho, estas
imagens falam do Brasil, mas dizem também de como ele se deixou ser observado; trazem muito
dos seus próprios autores e de quem as lê e as decodifica. O roteiro de Burchell progride em
duas frentes: adentra pelo território brasileiro geograficamente, chegando a lugares até então
desconhecidos por estrangeiros e avança nos aspectos da sua representação dos núcleos urbanos.
Se a cidade carioca é retratada desprovida de cenas do cotidiano, as localidades do norte do país
são apresentadas muitas vezes em intenso movimento, um contraponto aos discursos dos poucos
viajantes que por lá estiveram, demonstrando que o olhar de Burchell vai se adequando e
apreendendo sobre o Brasil à medida que segue viagem. Em meio a estas pranchas, a série
relativa à paisagem goiana mostra a intensa ligação entre ambiente construído e os cursos de rio e
sua forte herança da fatura paulista em suas construções.
O discurso sobre a decadência da colônia perdura em sua obra, quer seja pela constante
presença do escravo, quer seja pelas cidades retratadas vazias de movimento urbano, mas há algo
de diferente em sua representação. A comprovação da hipótese de que o Burchell leria com mais
precisão a cidade mostra-se quando se observa que o viajante apercebe-se da unidade
arquitetônica colonial com forte herança portuguesa, mas acura o olhar e distingue as inúmeras
tipologias das regiões do país e das influências de outras culturas em nossa arquitetura, (como no
caso das construções indígenas) e avança acima da homogeneização tão recorrente na
historiografia do tema. Os rígidos preceitos do Neoclassicismo aprendidos pelo viajante
encontraram uma paisagem inédita, fora dos padrões dos esquemas da arte européia e foi
necessária a adequação aos objetos retratados e às formas tropicais e, se algumas vezes a cidade
colonial é descrita como imberbe, em outras, os pequenos arraiais tomam importância em seus
traços.
Mesmo que a célebre frase atribuída à Rembrandt na qual diz que ―uma pintura só está
acabada quando o artista diz que está acabada" em verdade possa não o pertencer, nunca nos
pareceu tão pertinente: Burchell nos mostra que anda há muito a se investigar, procurar e
conhecer sobre a sua obra e sobre suas visões a respeito da arquitetura Oitocentista brasileira.
| 194
Referências
| 195
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Apêndices
APÊNDICES
| 208
Fonte: Fulham Old and New, C J Feret, London 1900, vol. ii, p 73
355A data de seu nascimento foi durante muito tempo questionada. Gilberto Ferrez chega a atribuir o ano de 1781
como ano de seu nascimento, entretanto, os registros da Linnean Society (ver nota de rodapé referente ao Linnean)
apontam para o ano de 1782.
356 BROWN, A. Gordon.
| 209
Aos 15 anos recebeu lições de desenho paisagístico de James Merigot, artista francês
estabelecido na Inglaterra, e conhecimentos de perspectiva pelo topógrafo e pintor John Claude
Natts .357 As influências de ambos os artistas seriam primordiais em suas pinturas, pois as técnicas
de aquarela ensinadas por Merigot e o manejo do ―cilindro giratório”358 aliado ao emprego de uma
“câmera lúcida” 359 aprendidos por meio de Natts seriam fundamentais para a sua trajetória e alguns
dos aspectos que fariam ressaltar seu trabalho de representação em detrimento a outros viajantes.
Sua formação artística ocorreu na época em que a cultura do pitoresco era ainda pungente
e seus primeiros trabalhos à lápis e aquarela apontam para a inclinação aos detalhes minuciosos e
vistas abrangentes que tanto caracterizariam suas conhecidas obras posteriores, como pode-se
observar nas aquarelas que retratam a paisagem recortada do País de Gales realizadas em suas
férias. Nota-se a composição galesa que Charles Darwin havia comparado com a paisagem
tropical quando no Brasil. Ambiciosa seria fazer a afirmação de que esta paisagem determinou
diversos pontos da leitura das terras tropicais pelas quais mais tarde Burchell atravessaria,
entretanto é campo seguro alegar que possuíram relativa influência nas posteriores obras do
naturalista, como teremos a chance de observarmos ao longo do trabalho. A arte a ciência seriam
partes inseparáveis de um todo.
358 O cilindro giratório, ainda pouco utilizado à época de Burchell e por vezes erroneamente tendo sua invenção
atribuída ao mesmo, auxiliaria no desenho de panoramas em 360º
359A Enciclopedia Itaú Cultural de Artes Visuais define: ―Uma espécie de variante da câmera obscura, destinada a
facilitar a realização de esboços pelos artistas, inventada pelo inglês William Hyde Wollaston (1766-1828) em 1806.
Sua diferença básica com a camera obscura era o fato da imagem não ser captada por uma caixa fechada e sim por
um prisma de três ou quatro faces, que concentrava a imagem a ser decalcada diretamente sobre uma folha de papel.
Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=8
2 > acesso em: 09 mai. 2013.
| 210
Figura 141 William Burchell, País de Gales, vista do moinho próximo à queda d'água em Aberdyllis, Neath,
Glamorganahire. Lápis aquarelável, 23 agosto,1804
Figura 142 William Burchell, País de Gales, vista de Swansea. Lápis aquarelável, 31 agosto 1804.
Burchell decidiu não ingressar na faculdade e trabalhou durante algum tempo ao lado de seu pai, no horto
em Fulham, atuando, posteriormente, como botânico- assistente no Kew Gardens, realizando
desenhos e estudos das espécies360 e foi, posteriormente, eleito membro na Linnean Society of
360Kew Gardens (ou Jardins Reais Britânicos) constitui um célebre complexo de jardins na região sudoeste de
Londres. A partir de 1840 passou a ter objetivos voltados à investigação cientifica nas áreas de botânica e paisagismo.
| 211
London361 em 1803, patrocinado por quatro proeminentes botânicos362. Pouco se sabe quais
foram as motivações que levaram Burchell a partir, no dia 7 de agosto de 1805 para a ilha de
Santa Helena, a bordo do East Indiaman Nortkumberland e seguido por William Balcombe363,
com quem almejava abrir um comércio de mercadorias na ilha. Um ano de trabalho foi o
suficiente para que Burchell dissolvesse tal sociedade e aceitasse a posição de professor da ilha e,
mais tarde, por influência do governador Robert Patton –impressionado pelo conhecimento do
jovem botânico – assumisse à função de naturalista e superintendente do novo jardim botânico
da ilha, localizado em James-town Valley.
É em Santa Helena que temos os primeiros vislumbres de Burchell como desenhista de
motivos tropicais. O ambiente tropical encontrou em Burchell um acurado e preciso observador,
que tomava notas de objetos isolados e de paisagens desenhadas e in loco, tendo os diferentes
planos dos cenários números que indicavam suas distâncias em relação ao observador364. Suas
primeiras tentativas em entender e desenhar os exóticos formatos da paisagem, vegetação e dos
animais tropicais antecipariam seus desenhos da ―árida‖ paisagem africana e da ―exuberante‖
vegetação brasileira.365
361Linnean Society of London, fundada em 1788, é uma sociedade científica que se dedica ao estudo e a divulgação
da zoologia e botânica.
362 A.B. Lambert, C. Koening, R.A. Sailsbury, e W.G. Maton (informações cedidas pela Linnean Society)
363Superintendente de Compras na Companhias das índias Ocidentais e relacionado à Napoleão Bonaparte quando
o mesmo permanecia na ilha em seu exílio (Bonaparte instalou-se durante alguns meses em sua propriedade).
364MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes.(o olhar britânico 1800-1850), Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2001
365 CARVALHO (2013), op., cit.
| 212
Figura 145 Salsa de Praia (também comum no litoral brasileiro)representada pelo naturalista William Burchell.
Ipomea biloba, lápis e aquarela, sem data.
estimativa de tempo gasto em seus desenhos366. A partir de setembro do mesmo ano Burchell
segue sua jornada, que cobre cerca de 4.500 milhas sem companhia, exceto de seus empregados
locais.
Figura 146 William Burchell, “Interior of my African Wagon". Óleo sobre tela, 1822.
366 Essa informação nos será importante na discussão sobre a escolha de técnicas para a representação de cada cidade
brasileira.
367 ―Table mountains‖ é uma menção a uma grande montanha perto da Cidade do Cabo denominada ― Tábua do
Figura 147 William Burchell, Part of the caravan going across the Karoo. Gravura, 1822.
Em outro trecho, apresenta-nos sua descrição das margens do Rio Orange (River Gariep
nas anotações de Burchell) e mostra-nos sua visão de que ciência e arte estão intrinsecamente
ligadas. Sua explanação aproxima-se mais da literatura de viajantes corrente do que de uma análise
puramente científica. Pode-se observar que sua pintura tenta registrar todos os aspectos da
descrição, desde a incandescência da luz solar sob a superfície do lago, as ondulações da água e a
presença do salgueiro inclinando-se em direção ao rio:
370 William Swainson foi um naturalista britânico, participante da comitiva de Henry Koster ao Brasil.
371 BROWN, op. Cit.
| 218
A maneira pela qual você se expressa no que diz respeito às minhas coleções
botânicas, você parece estar sob impressões muito errôneas, para dizer que eu''
não quero publicar" é exatamente o oposto do que sempre foi minha intenção,
e foi quase o único prazer que eu tinha em minhas viagens para aliviar a fadiga
excessiva de fazê-las, foi a antecipação da gratificação de publicá-los no meu
retorno à Europa, e de obter a satisfação de ser útil para a ciência, e de garantir
as honras devidas às minhas descobertas: e se eu fui e ainda estou sendo
roubado destas honras por outros que têm menos em suas mãos do que eu e
podem participar da corrida de publicação com mais recursos, eu sinto a mais
injúria que eu sou vítima mais sensível.Depois de consumir grande parte dos
meus recursos financeiros para arcar com minhas viagens e da busca
desinteressada da ciência todo o resto da minha vida, a obtenção de assistência,
mediante o pagamento está completamente fora de questão.372
Sentindo-se cada vez mais preterido nas honrarias concebidas pelas autoridades inglesas
após todas as contribuições feitas em razão de suas constantes viagens, tornou-se uma figura
isolada e triste, demonstrando sinais de depressão e em constante convalência. No dia 23 de
março de 1863, aos 82 anos, Burchell tira sua vida em uma pequena estufa de seu jardim. O juíz
elencado para investigar sua morte chega à conclusão de que fôra um ―suicídio durante um
ataque de insanidade temporária‖, e acrescentou que não era o seu dever "investigar as causas que
levaram este grande homem a tomar este passo‖. Como se tratava de um suicídio, inicialmente foi
recusado um enterro cristão, entretanto, após a intervenção de uma de suas irmãs, Anna Burchell,
seu corpo foi enterrado perto de sua casa em Fulham, no túmulo da família no All Saints Church,
em Hammersmith.373 Anna Burchel, presenteia o Royal Botanical Gardens com os manuscritos,
coleções botânicas e desenhos fruto da passagem pela África do Sul e Brasil. Outros objetos,
pinturas e retratos encontram-se na biblioteca da Universidade de Witwatersrand em
Johannesburg, África do Sul e atualmente alguns de seus trabalhos encontram-se em coleções
privadas. Todos os manuscritos relativos à sua passagem pelo Brasil estão perdidos – irreversível
A Revolução Pernambucana foi um movimento emancipacionista que eclodiu no dia 6 de março de 1817 , para
376
relativas ao Brasil em ocasião de sua volta à Inglaterra. Burchell a essa altura, já categorizara o
material de sua viagem à África do Sul e publicara suas notas e desenhos nos dois tomos de
―Travels in the Interior of Southern Africa‖ (1822 e 1824, respectivamente), conferindo-lhe
conhecimento e certo prestígio nos meios científicos e seguia realizando suas pesquisas e estudos
na Inglaterra. Influenciado por Swainson, resolveu viajar ao Brasil377.
Aportou no Rio de Janeiro em 18 de julho de 1825, acompanhando a missão diplomática
de Sir Charles Stuart. O Rio de Janeiro oitocentista apresentava-se em todo o esplendor da mata
tropical e seus verdes matizes a delinear sua baía, em contraponto ao compacto casario acanhado.
O capitão do Beagle, navio que transportava Charles Darwin em sua expedição que visitou terras
brasileiras em 1832, chegou a atrasar sua entrada na baía para que os tripulantes pudessem ―ver o
porto do Rio e sermos vistos em plena luz do dia‖378. A admiração do primeiro encontro com a
paisagem tropical brasileira é descrita em uma carta enviada a R. A. Salisbury, datada do dia 14 de
agosto do mesmo ano:
Cheguei neste lugar no dia 18 do mês passado e por ter encontrado tanta
dificuldade em encontrar quartos convenientes, ainda sou obrigado a continuar
no sujo hotel lotado onde me abriguei primeiro. Não posso, portanto, perseguir
minhas operações científicas com muita facilidade mas eu me esforço em fazer o
melhor em todos os sentidos que as circunstâncias permitam. [...] Passei uma
semana em Mandioca encantado com o rico cenário do Brasil, e fiz algumas
coletas nas proximidades do Rio de Janeiro. Vou começar minha viagem ao
interior, uma vez que fiz os preparativos necessários e recolhido as informações
mais importantes. [...] Se após o início da viagem tudo transcorrer bem, eu espero
conseguir realizar todo o plano de viagens que tracei, de qualquer maneira eu não
temo fazer uma excursão que será extremamente interessante para mim 381.
Outro fragmento de correspondência nos leva a traçar mais conexões entre os discursos
de Burchell sobre a cultura brasileira e demais relatos de viajantes europeus:
380 Cf. DIAS, Olivia Basin. Viagens oitocentistas: A hospedagem no interior do Brasil e na cidade da Bahia disponível em:
http://www.eca.usp.br/turismocultural/olivia.pdf. acesso em: 04 maio 2013.
381 Carta de Burchell endereçada à Swainson, retirada da Swainson Correspondence Collection, cedidas gentilmente
Essa visão da ―exarcebada curiosidade brasileira‖é recorrente em relatos de outros viajantes, como os de George
382
carioca, incluindo o panorama circular de três metros (em anexo e melhor comentado
posteriormente), no qual ―dedicou 5 ou 6 semanas ao desenho [do panorama] para ilustrar a
descrição desta cidade e arredores‖383 e realizou em seu trajeto pelo ―Novo Caminho‖ das Minas
Gerais, 20 desenhos até Paraíba do Sul, passando por Porto da Estrela, Serra da Estrela,
Mandioca e Padre Correa.
Para Salisbury ele enviaria outra missiva, no dia 5 de setembro de 1826, em que constava
seu primeiro – e ambicioso- planejamento de viagem:
Meu plano e desejo é... explorar as províncias de São Paulo, Goiás, Cuiabá, e
Mato Grosso. Então atravessar para o Peru tendo, como principal objetivo,
uma curta estadia na cidade de Cuzco, para examinar as interessantes ruínas e
antiguidades do império dos incas, tanto lá como na região em torno do lago
Titicaca [...] Tendo completado minhas observações em Cuzco, eu rumaria para
o sul e visitaria os locais mais notáveis e interessantes dali até Buenos Aires,
onde minhas viagens acabariam.384
Entretanto, como o próprio admitiria mais tarde ser ―muito mais fácil marcar uma linha
interessante de roteiros num mapa do que traça-la no próprio país‖385, a última etapa de sua
intenção de viagem, que tratava sobre a travessia ao Peru e demais regiões sul-americanas, não
pôde ser realizada.
Seguiu viagem, por mar, a Santos, permanecendo três meses na cidade. Viajou para São
Paulo e chegou em janeiro de 1827.Durante seis meses visitou os arredores da cidade,
preparando-se para o restante da viagem.
Em plena época de chuvas, chegou a Goiás, detendo-se na cidade por nove meses. De
seu período em terras goianas foram realizados 22 desenhos, dentre eles dois panoramas da
cidade de Vila Boa, sendo as primeiras descrições tomadas por um estrangeiro europeu na
província386. Burchell foi o primeiro naturalista inglês a visitar Goiás, sendo precedido em sua
viagem pelo francês Auguste de Saint-Hilaire, pelo alemão, Johann Emanuel Pohl, ambos em
1819, e pelo português Cunha Mattos, em 1823387. Enquanto recuperava forças e herborizava,
recebeu a notícia de que seu pai adoentara-se e dessa forma abdicou do restante da viagem que
385 ibidem.
386Gilberto Ferrez afirma que há apenas duas representações mais antigas que as de Burchell da cidade de Villa Boa,
realizadas em 1751, de origem desconhecida e em 1782 pelo então Governador e capitão General da Capital de
Goyaz e que os mesmos ―são da mais alta importância histórica, mas de traços infantis, com perspectivas falhas e
nada comparáveis com a perfeição dos de Burchell, com os quais o serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional poderia reconstruir qualquer edifício da época‖. (FERREZ, 1981, p.19).
Ouvi falar que Burchell residiu por algum tempo no Pará; mas receio, que,
durante essa estada aí, a sua idade avançada não o tenha deixado estar à altura
da sua própria reputação ou dos intermináveis domínios naturais que se abriam
diante dele. 391
Burchell mostrar ia-se muito mais ativo do que Fletcher e Kidder imaginaram. O botânico
finalizou sua estadia no Brasil de maneira semelhante ao seu início: Um grande panorama da
cidade do Pará (atualmente Belém do Pará); até o presente momento perdido; contudo, seu índice
remissivo (onde consta a localização de edifícios públicos, ruas e residências de personagens
ilustres da cidade)foi encontrado por Ferrez, insinuando a minuciosidade com que a cidade foi
tratada em seu desenho.
Esperaria até fevereiro do seguinte ano para embarcar em um navio para a Inglaterra,
devido à dificuldade de transportes para a Europa. Levou consigo uma vasta coleção de 7.200
espécies de plantas coletadas e quase 260 desenhos e aquarelas de nossas paisagens. Escreveria
depois ao Dr. Hooker, em 1930, afirmando que:
Das belas coisas publicadas por Saint-Hilaire, Martius e Pohl, a maioria é por
mim conhecida assim como muitas não foram anotadas por eles. Ao escrever
388GARDNER, George. 1975. Viagens ao interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do
ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo.
389 Atualmente Porto Nacional.
FLETCHER, James C.; KIDDER, D. P. O Brasil e os brasileiros- esboço histórico e descritivo. São Paulo:
391
sobre estas maravilhas que descobri, perco a paciência por me sentir como que
com as mãos atadas 392.
O restante de sua trajetória já nos é conhecida; Burchell, de volta à sua casa em Fulham,
iniciou a classificação do material colhido no Brasil, entretanto nunca chega a publicá-lo. A
manipulação e reetiquetagem da coleção brasileira levariam 33 anos de sua vida restante. Alguns
autores, dentre eles Edward Poulton e Luciana Martins apontam a inabilidade de Burchell em
sistematizar seus conhecimentos sobre a flora brasileira por questões relativas às especificidades
do contexto científico inglês, no qual os sistemas de classificação não seriam capazes de receber a
―profusa riqueza‖ da natureza brasileira.
IDA - 1830
CHEGADA - 1825
LEGENDA
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anexos
Anexos
226
ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
20
14
ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
ANEXO A - William John Burchell, Panorama do Rio de Janeiro, tomado a partir do Morro do Castelo, c.1825. Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO C - William John BurchelL [The English Burial Grounds (Gamboa. [Cemitério dos Ingleses, na Gamboa]. Grafite e aquarela sobre papel. c. 1825-1826.
Grafite, nanquim e aquarela sobre papel.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO D - William John BurchelL Ponte do Catete, 1825. Aquarela.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO E - William John BurchelL [Street in the Town of Santos](Rua na cidade de Santos). c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO F - William John BurchelL [San Bernardo (between Cubatão and São Paulo)] c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.
ANEXO G - William John Burchell [Monastery of S. Bento, at St. Paul’s] (Mosteiro de São Bento, em São Paulo) c.1825-1826. Grafite e aquarela sobre papel.
Fonte: William John Burchell / Highcliffe Album / Acervo Instituto Moreira Salles.