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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA
PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

BEIRA DO MAR, LUGAR COMUM:


os primórdios do lazer e bem-estar à beira-mar
da cidade do Salvador
séc. XIX

DANIEL J. MELLADO PAZ

salvador
dezembro 2019
BEIRA DO MAR, LUGAR COMUM:
os primórdios do lazer e bem-estar à beira-mar
da cidade do Salvador
séc. XIX

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo,
na Área de Concentração de Urbanismo,
da Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal da Bahia como
requisito para obtenção do grau de
Doutora em Arquitetura e Urbanismo.

DANIEL J. MELLADO PAZ


Orientador: LUIZ ANTÔNIO FERNANDES CARDOSO

salvador
dezembro 2019

II
III
Daniel J. Mellado Paz
BEIRA DO MAR, LUGAR COMUM: os primórdios do lazer e bem-
estar à beira-mar da cidade do Salvador. Séc. XIX

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em


Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da
Bahia.

Aprovada em _____________________________

Banca Examinadora:
Dr. Luiz Antônio Fernandes Cardoso – Orientador ___________________________
Doutor em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Federal da Bahia

Dra. Márcia Genésia Sant´Anna – Co-rientadora ____________________________


Doutora em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Federal da Bahia

Dra. Alejandra Hernández Muñoz ________________________________________


Doutora em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Federal da Bahia

Dr. José Carlos Huapaya Espinoza _______________________________________


Doutor em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Federal da Bahia

Dra. Gina Veiga Pinheiro Marocci ________________________________________


Doutora em Arquitetura e Urbanismo / Instituto Federal da Bahia

Dr. José Simões de Belmont Pessôa ______________________________________


Doutor em Arquitetura e Urbanismo / Universidade Federal Fluminense

IV
Dedicatória

A Raul José Paz, meu pai, in memoriam, que foi, e


continua sendo até os dias de hoje, meu norte.

E a Rosa Ester Mellado Campos, minha mãe, por


motivos fartamente conhecidos por qualquer
apreciador de tango.

V
Agradecimentos

Este Tese foi possível a despeito do seu autor. Houve condições propícias para tanto. E
estas condições são, a rigor, ao fim e ao cabo, pessoas.

Em primeiro lugar, o apoio institucional. Ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e


Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU-UFBA), pela chancela formal na
primeira vez em que fui doutorando, e pelo voto de confiança na minha segunda matrícula.
À própria Faculdade de Arquitetura da UFBA (FAUFBA), que me concedeu um afastamento
de 2 anos, sem o qual teria sido impossível realizar as pesquisas extensas que
fundamentaram este trabalho. Á Diretora da Escola nesse ínterim, Naia Alban Suarez, que
sempre agiu em função dessa mesma confiança, que tão generosamente distribuiu pelo seu
corpo docente, e com que fui beneficiado.

Aos funcionários da Biblioteca Central do Estado da Bahia, do Arquivo Histórico Municipal


da Fundação Gregório de Matos (AHM-FGM), do Arquivo Público do Estado da Bahia
(APEB), a estes e outros tantos acervos que permitiram muitas vezes que um pesquisador
fosse diretamente aos documentos, saltando as fichas e palavras-chave, inadequadas para
a pesquisa em curso. À Biblioteca Nacional, cujo acervo online – periódicos oitocentistas,
fotografias antigas, mapoteca – revolucionou o andamento desta Tese.

Aos dois orientadores que tive na extensa estadia no PPGAU: o Prof. Marco Aurélio
Filgueiras Gomes, e depois ao Prof. Luiz Antônio Fernandes Cardoso. Em ambos os casos,
por acreditarem naquele projeto de pesquisa ambicioso, quando não muito pouco ortodoxo.

Aos colegas que entenderam a situação de docência e doutorado, e criaram as condições


possíveis para o bom desenvolvimento das tuas tarefas, em especial às Prof. Natalie
Johanna Groetelaars e Aline Cardoso.

Assim como todos aqueles que criaram um ambiente de trabalho tão prazeroso de se
trabalhar, malgrado todas as dificuldades das condições, no Curso Noturno da FAUFBA;
cercado por gente dedicada e competente, o trabalho ficava muito mais leve. Sequer era um
trabalho: era um prazer. Em especial aqueles com quem dividi a sala de aula, como Akemi
Tahara, André Lissonger, Nei Barreto, Bruno Leão, Robério Coelho e Marina Teixeira, amiga
de longa data, que tão solicitamente se ofereceu para ajudar. Todos sempre muito
compreensivos com o colega em apuros.

Nos longos anos de eremitério, durante o afastamento, alguns amigos me ajudaram a não
enlouquecer em definitivo. Não poderia deixar de agradecer por isso a Ernesto Galindo,
Manuel Sá, João Paulo Guedes Daniel Argollo, Tiago Rocha e Mariano Portugal. Assim
como a colegas de trabalho de quem me tornei aproximei nesse tempo, Marcos Rodrigues e
Márcio Correia Campos, em agradabilíssimas conversas sobre Arte e Cultura Pop, que tão
bem me fizeram, junto com amigos que conheci ou reencontrei na Brooklyn – Hub Criativo,
com especial destaque para Caio Tuy e Yara Vasku.

Mais próximo aos temas da Tese, agradeço ainda aos professores, colegas e amigos
Nivaldo Vieira de Andrade Jr. e Ana Carolina Bierrenbach, que me deram preciosas
informações, e somam-se ao coro daqueles que, sem motivo aparente, confiaram no
trabalho e no seu autor.

VI
À Prof. Márcia Sant´Anna, que tem sido uma ardorosa incentivadora de todos os trabalhos
em que tenho mergulhado. Aos professores Arivaldo Leão de Amorim e Manoel José
Ferreira de Carvalho, este in memoriam, que muito tempo atrás confiaram em mim, quando
ainda aluno de Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Com eles, à Prof. Odete Dourado
que, mais além desse apoio mais geral, foi quem tantos horizontes me abriu, em tantos
assuntos a que estou me dedicando, demorando bastante a me dar conta que fora por sua
benéfica influência.

E, por último, a amigos a toda prova, Juliana Nery e Rodrigo Espinha Baeta, este último
infatigável companheiro de tantas aventuras nestes últimos anos.

VII
Epígrafe

A ausência de evidência não é a evidência da ausência.


Carl Sagan

...for who can look into the seeds of time


And say which grain will grow and which will not...
Fredric Jameson

E não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie


Desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me
Esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto
Que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim
Me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito
E se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem
Faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre
Que me ensinou já não dá ensinamento
Haroldo de Campos, Circuladô de Fulô

VIII
Resumo
A tese parte do fenômeno atual da urbanização de espaços litorâneos em uma sociedade do lazer,
ubíquo em todo o Ocidente e importante no Brasil das últimas décadas. Trata-se de investigar seus
primórdios em Salvador, a partir da premissa de que foram aproximações distintas e convergentes, à
maneira de uma polifonia, com linhas melódicas próprias. Por isso a investigação se inicia com a
identificação das atividades que modelaram o litoral oitocentista de Salvador. Para depois
compreender como funcionava o mundo dos pescadores, fundamental no abastecimento da cidade e
na colonização da beira-mar oceânica, cerne dos festejos religiosos marítimos e lastro do futuro uso
balnear. A linha de pesquisa seguinte é a toada das sensibilidades. Primeiro, a dos estrangeiros,
residentes e visitantes, em seu apreço ao ambiente costeiro por meio da contemplação, do interesse
científico, da escolha como sítio de moradia e de um lazer mais ativo, como excursões e garden
parties. Em contraponto, estava a sensibilidade dos luso-brasileiros, nos perguntando se havia algum
tipo de apreço paisagístico, como se dava, quais elementos e quais valores mobilizava. E dentro do
conjunto do lazer oitocentista em Salvador, enfocando o ócio e lazer das mulheres das classes
médias e altas, e a amálgama das formas modernas de entretenimento com aquelas tradicionais. À
continuação se investiga o deslocamento estival, base para o veraneio moderno, e o caráter particular
das festas populares em Salvador e sua relação com o mar, em romarias e procissões náuticas, e
como o “passar as festas” constituiu a forma prévia do veraneio nos arrabaldes litorâneos. Com
especial atenção à Península de Itapagipe, principal destino de veraneio na primeira metade do
século XIX, onde as festas, em especial o ciclo dedicado ao Nosso Senhor do Bonfim, foi fator crucial
na urbanização. Destacada foi a toada dos banhos de mar, reconhecendo os hábitos e habilidades
indígenas e dos trabalhadores do mar, questionando se houve um banho lúdico propriamente popular
e identificando o banho de mar moderno de cunho mais terapêutico. E a apresentação do discurso
médico local, com certa defasagem ao enquadrar em seu corpo teórico próprio os casos
empiricamente vividos de sanatórios naturais, e o papel do beribéri na vilegiatura de Itaparica e de
sítios de veraneio tradicionais. A pesquisa se encerra por volta de 1860, delineando o que esses
primórdios estudados precederam e fundamentaram: uma constelação de localidades, em torno da
cidade, porém com maior pujança naquelas litorâneas, e suas atividades durante o verão. Dentro
desse quadro, o mar apareceria como parte de um espectro de atividades possíveis, enriquecendo-se
com o advento do esporte.

Palavras-chave: litoralização, história urbana, mar, Salvador, litoral

IX
Abstract
This study starts from the current phenomenon of urbanization of coastal areas in a leisure society,
ubiquitous throughout the Western World and important in Brazil in recent decades. Its beginnings in
Salvador was investigated, based on the premise that they were distinct and convergent approaches,
in the manner of a polyphony, with their own melodic lines. Therefore, the investigation begins with the
identification of the activities that shaped Salvador's XIXth-century litoral. Then to understand how was
the world of fishermen fundamental in supplying the city and in the occupation of the oceanic
seashore, the seed of the future bathing use, and was the core of religious maritime celebrations and
ballast. The next line of research is that of sensibilities. First, that of foreigners in their appreciation of
the coastal environment through contemplation, scientific interest, choice as a place of residence and
more active leisure, such as excursions and garden parties. In contrast, there was the sensibility of the
luso-brazilians, asking if there was any kind of landscape appreciation, how it happened, what
elements and what values it mobilized. And within the set of XIXth century leisure in Salvador,
focusing on the free time and leisure of women of the middle and upper classes, and the mix of
modern forms of entertainment with traditional ones. Next, we investigate the summer movement, the
basis for modern vacancy in Salvador, and the particular character of popular festivals and their
relationship with the sea, in pilgrimages and nautical processions, and how “spend the feasts” (“passar
as festas”) was the previous form of vacancy in coastal areas. With special attention to the Itapagipe
Peninsula, the main summer resort in the first half of the 19th century, where the festivities, especially
in the weeks around the cult to Nosso Senhor do Bonfim, were crucial factors in urbanization.
Noteworthy was the melody of the sea baths, recognizing the habits and skills of the indigenous and
sea workers, inquiring whether there was a popular playful bath and identifying the therapeutic modern
sea bath. And the presentation of the local medical discourse, with a certain delay when framing in its
own theoretical body the experienced cases of natural sanatoriums, and the role of beriberi in the
Itaparica vilegiature and traditional summer resorts. The research ends around 1860, outlining what
these studied beginnings preceded and justified: a constellation of localities around the city, but with
greater presence in those seaside areas, and their activities during the summer. Within this
framework, the sea would appear as part of a spectrum of possible activities, enriching itself with the
advent of modern sports.

Key-words: litoralization, urban history, sea, Salvador, seaside, litoral.

X
Lista de Ilustrações

Figura 1 – Foto aérea de Salvador. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 2 – Península de Itapagipe. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 3 – Área da Calçada. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 4 – Ao longo da Av. Lafayete Coutinho (Contorno). Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 5 – Região da Barra e adjacências. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 6 – Ondina e adjacências. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 7 – Rio Vermelho. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 8 – Amaralina e Pituba. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 9 – Do Jardim de Allah à Boca do Rio. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 10 – Da foz do rio Jaguaribe ao Farol de Itapuã. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.
Figura 11 – Mappa do Reconcavo da Bahia de Todos os Santos (1836), de Von Busch. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 12 – Recém-inaugurado Parque Jardim dos Namorados, 1969. Fonte: AHM-FGM.
Figura 13 – Outeiro onde se situa a capela de Nossa Senhora dos Mares, sem data. Fonte: Instituto Feminino da
Bahia.
Figura 14 – Rio Vermelho (1870-80), de Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 15 – Morro da Sereia, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 16 – Vista do mesmo Morro da Sereia, a partir da então nova Av. Oceânica, sem data. Fonte: CEAB.
Figura 17 – Uma das colinas onde se instalaram os hotéis em Ondina. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 18 – Cristo Redentôr – Bahia, sem data. Fonte: CEAB.
Figura 19 – Monte Cristo Redemptor Bahia, cartão-postal da Litho-Typ. Joaquim Ribeiro & Cia., de 1928, da
Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 20 – Av. Oceânica, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 21 – Caminho da Av. Oceânica, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 22 – Av. Oceânica, Quintas da Barra e, ao fundo, o Farol da Barra, sem data. Fonte: Instituto Feminino da
Bahia.
Figura 23 – Fort St. Antonio of Bahia (1825-6), de Charles Landseer. Fonte: BETHELL, 2010.
Figura 24 – Brasil, Baia de Todos os Santos no Cabo de S. Antônio (Brazilie, Allerheiligen baai in kaap St.
Antonio, 1807-10), Q.M.R.Ver Huell. Fonte: REBOUÇAS, 2016.
Figura 25 – A Baía da Antiga Capital do Brasil (La Baye de Ancienne Capitale du Brésil, 1782), de Albert
Dufourck. Fonte: REIS FILHO, 2001.
Figura 26 – Vista das Docas da Bahia ou São Salvador, Thomas Lyde Hornbrook, sem data. Fonte: ATHAYDE,
2008.
Figura 27 – Mappa da Bahia de Todos os Santos, séc. XVIII. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 28 – Morro do Ipiranga (1884), de Marc Ferrez. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 29 – Foto do Farol da Barra (1884), de Marc Ferrez. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 30 – Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll.
Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 31 – Ferme de Cabritou, environs de Bahia (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 32 – Tanque da Conceição – Bahia, cartão-postal da Litho-Typ. Almeida, de 1917, da Coleção Ewald
Hacker. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 33 – Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll.
Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 34 – Trecho de mapa do Indicador e Guia Prático da Cidade do Salvador – Bahia (1928), de Lauro
Sampaio. Fonte: SAMPAIO, 1928.
Figura 35 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 36 – Lagoa de Amaralina, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 37 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 38 – Vista a partir do Canzuarte. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 39 – Jardim de Allah, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 40 – Armação, séc. XX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 41 – Foz do rio Santo Antônio das Pedras, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 42 – Foz do rio Santo Antônio das Pedras, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 43 – Rio Jaguaribe, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.

XI
Figura 44 – Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 45 – Litoral do Camarão. Fonte: ATLAS PARCIAL..., 1956.
Figura 46 – Trechos do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 47 – Mappa hydrographico da bahia de todos os santos (1863), de Joaquim Marques Lisboa. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 48 – Porto da Vitória (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 49 – Solar do Unhão, with the Church (1831-41), de François René Moreaux. Fonte: REBOUÇAS, 2016.
Figura 50 – Perfis das embarcações nas águas da Baía de Todos os Santos no Oitocentos. Fonte: CÂMARA,
1888.
Figura 51 – A canoa, com seus velames, de emprego na Bahia. Fonte: CÂMARA, 1888.
Figura 52 – Marinha – Rio Vermelho (Bahia), cartão postal da Casa Alexandre Reis et Cia, de 1911, da Coleção
Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 53 – Jangadas. Fonte: CÂMARA, 1888.
Figura 54 – Porto da Barra, 1860c, de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 55 – Porto da Barra, Cartão-Postal, circulando em 1912, do Fundo Renato Berbert de Castro. Fonte: PMS.
Figura 56 – A lancha baleeira de emprego na Bahia. Fonte: CÂMARA, 1888.
Figura 57 – Vista da Igreja de Nossa Senhora da Vitória nos Arredores de São Salvador no Brasil (1807-10), de
Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 58 – Eglise de la Victoria, à Bahia (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco, Bahia e
Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 59 – Victoria Hill and Cemetery (1835 circa), de William M. Gore Ouseley e J. Needham. Fonte:
OUSELEY, 1852.
Figura 60 – Porto da Vitória (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 61 – Porto da Vitória (1870), da Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 62 – Porto da Vitória, sem data. Fonte: CEAB.
Figura 63 – Vista da Igreja de Santo Antônio da Barra e do Forte de São Diogo nos Arredores de São Salvador
na Costa do Brasil (1807-10), de Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 64 – Pesca de Xareo – Amaralina, Bahia, cartão-postal da Litho-Typ. Joaquim Ribeiro & Cia, de 1928, da
Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004
Figura 65 – Pesca de xaréu em Armação, séc. XX, foto de Alice Brill. Fonte: FALCÃO, s/d.
Figura 66 – Pesca de xaréu, séc. XX, foto de José Oiticica. Fonte: FALCÃO, s/d.
Figura 67 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 68 – Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 69 – Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes Portugal. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 70 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 71 – Elevação em prospetiva das Fortalezas na entrada da Barra da Bahia, ao Sul, vista de terra para o
mar, oposta, regulando comparativamente, as suas partes (1775-1800), de Eques Carvalho. Fonte:
REIS FILHO, 2001.
Figura 72 – Porto da Barra (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 73 – Bahia. Coqueiro, cartão-postal, de 1906, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 74 – Gamboa, anos 1940. Fonte: ATLAS PARCIAL..., 1956.
Figura 75 – Unhão, cartão-postal de J. Pedrozo, de 1915, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 76 – Bahia – Água de Meninos, cartão-postal de J. Mello, 1911, da Coleção Ewald Hackler. Fonte:
VIANNA, 2004.
Figura 77 – Vista da Ladeira de São Francisco de Paula, Ancoradouro, Água de Meninos e Igreja da Santíssima
Trindade (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 78 – Bahia (Itapagipe) – Praia da Pedra Furada, cartão-postal de J. Pedrozo, de 1914, da Coleção Ewald
Hacker. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 79 – Ribeira-Itapagipe, cartão-postal da Litho-Typ. Almeida, 1908, da Coleção Ewald Hackler. Fonte:
VIANNA, 2004.
Figura 80 – Ribeira (1860-65), foto de Camillo Vedani. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 81 – Localização dos Contratos de baleia e Armações de xaréu no século XIX. Edição do autor a partir de
imagens do Google Earth.
Figura 82 – Fisheman's hut, sem data, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 83 – Fishermen in Jangada and Canoe, sem data, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca
Nacional.
Figura 84 – Nègre et negrèsse de Bahia, de Nicolas-Eustache Maurin, do livro de Johann Moritz Rugendas,
Viagem Pitoresca Através do Brasil. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 85 – Négres et Negresse de Bahia, de Monnin, do livro de Bresil par Ferdinand Denis. Colombie et
Guyanes par M.C. Famin. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 86 – Fish woman, sem data, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

XII
Figura 87 – Warhafftige Abbildung von Einnehmung der statt. S. Salvator (c.1634), de Emmanuel van Meteren.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 88 – Victoria (1855), de Marguerite Tollemache. Fonte: BERTANI, 2007.
Figura 89 – Bahia, cartão-postal de 1906, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 90 – Vista da Igreja de Nossa Senhora da Vitória nos Arredores de São Salvador no Brasil (1807-10), de
Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 91 – Victoria Hill and Cemetery (1852), de William M. Gore Ouseley. Fonte: OUSELEY, 1852.
Figura 92 – Vista da Baía de Todos os Santos e do Bonfim (1825-6), de Charles Landseer. Fonte: BETHELL,
2010.
Figura 93 – Vista da Enseada de S. Salvador (1807-10), de Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 94 – Vue de la Rade de Bahia prise du Jardin public (c.1837). Fonte: BERTANI, 2007.
Figura 95 – Fort (and Cape) of St. Antonio (1852), de William M. Gore Ouseley e J. Needham. Fonte: OUSELEY,
1852.
Figura 96 – Vista das Fortalezas da Entrada da Bahia, tomada da Ponta do Farol (Salvador) (1839), de Abraham
Louis Buvelot, acervo de Sergio Sahione Fadel. Fonte: ITAÚ CULTURAL.
Figura 97 – Porto da Barra (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 98 – Vista da Ladeira de São Francisco de Paula, Ancoradouro, Água de Meninos e Igreja da Santíssima
Trindade (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 99 – Bahia (1838), de Jules Marie Vincent de Sinety. Fonte: Brasiliana Iconográfica.
Figura 100 – Bahia, de Daniel Parish Kidder. Fonte: KIDDER, 1845b.
Figura 101 – Salvador vista do Bonfim (1825-6), de Charles Landseer. Fonte: BETHELL, 2010.
Figura 102 – San Salvador (1827-37), de Johann Moritz Rugendas. Fonte: Brasiliana Iconografica.
Figura 103 – San Salvador, de Alès, do livro de Bresil par Ferdinand Denis. Colombie et Guyanes par M.C.
Famin. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 104 – Vista da Bahia tomada a caminho do Monte Serrat (1839), de Abraham Louis Buvelot. Fonte:
WIKIMEDIA FOUNDATION.
Figura 105 – Vista do Lago ´O Dique´ próximo de São Salvador na costa do Brasil (1807-10), de Q.M.R.Ver
Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 106 – Lagoa de Freitas (1822), de Henry Chamberlain. Fonte: CHAMBERLAIN, 1822.
Figura 107 – Vista de Salvador da Baía de Todos os Santos (1841), de Edmond Patten Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 108 – A Cidade Vista da Bahia de Todos os Santos, de E.G. Müller. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 109 – Vista da Cidade Baixa – a partir do Forte de St. Alberto para a Península de Itapagipe (1849), de
Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 110 – Sketch-map of a part of the vicinity of Bahia (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT, 1860.
Figura 111 – Section across the Gneiss Hills north of Bahia (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT, 1860.
Figura 112 – Section of the Cliff at Montserrate (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT, 1860.
Figura 113 – Fossils from Bahia (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT, 1860.
Figura 114 – Maison habitée par des Anglais, environs de Bahia (1836-9) ), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 115 – Maison particulière a Bahia, de Ernest Jaime, em Brazil Pittoresco de Charles Rybeirolles. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 116 – Consulat Suisse (1837). Fonte: Brasiliana Iconografica.
Figura 117 – Vista do Forte de São Pedro (1859). Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 118 – Campo Grande (1873). Fonte: WILD, 1878.
Figura 119 – Banco dos Ingleses – Bahia, cartão-postal da Magasin Loureiro, foto de Rodolfo Lindemann, sem
data, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 120 – Colline de la Victoria (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro) e da Ilha de Ténériffe Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 121 – Bahia Cidade de S. Salvador, vista do ancoradouro dos navios de guerra (1864), Th. Muller &
Gluck. Fonte: REBOUÇAS, 2016.
Figura 122 – Ladeira da Barra (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 123 – Ladeira da Barra (c.1885), de Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 124 – Teatro São João com Vista da Baía de Todos os Santos (1855), de Thomas Colman Dibdin. Fonte:
ATHAYDE, 2008.
Figura 125 – Vista da Cidade de Salvador (c.1860). Fonte: Brasiliana Iconografica.
Figura 126 – Geografica Topografica da Cidade Capital de S. Salvador (1785). Fonte: REIS FILHO, 2001.
Figura 127 – Mappa Topographico da Cidade de S. Salvador na Capitania da Bahia Situada... (c.1785). Fonte:
REIS FILHO, 2001.
Figura 128 – Bahia de todos os Santos aufgenommen nach der Natur, de Julius Naeher. Fonte Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 129 – Porto da Vitória, sem data. Fonte: CEAB.
Figura 130 – Ponta de Monte Serrat, foto de Alice Brill. Fonte: FALCÃO, s/d.
Figura 131 – Bahia, de 1909, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 132 – Campo Grande (c.1890), de Guilherme Gaensly & Rodolpho Lindemann. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 133 – Solar na Soledade (1879), de Julius Naeher. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 134 – Ganhadeiras desenhadas por Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

XIII
Figura 135 – Vista da Cidade Baixa – a partir do Forte de St. Alberto para a Península de Itapagipe (1849), de
Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 136 – A Brazilian Family (1819-20), de Lt. Henry Chamberlain. Fonte: CHAMBERLAIN, 1822.
Figura 137 – Going to Mass, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 138 – Vista de Rua das Mercês e do Rosário (1859). Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 139 – Cadeira, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 140 – Huma Historia (1819-20), de Lt. Henry Chamberlain. Fonte: CHAMBERLAIN, 1822.
Figura 141 – Panorama do Bonfim vistos dos jardins públicos (1825-26), de Charles Landseer. Fonte: BETHELL,
2010.
Figura 142 – Vista da Bahia, de Abraham Louis Buvelot. Fonte: ITAÚ CULTURAL.
Figura 143 – The Harbour and Bay of Bahia Brasil, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 144 – Obelisco do Passeio Público (1842), de Franz Lané. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 145– Passeio Público (1859), de Victor Frond. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Figura 146 – Desenho do frontispício (1819), do Tenente Robert Pearce. Fonte: Guia Geográfico – Bahia –
Turismo.
Figura 147 – Planta da cidade de São Salvador (1894), de Adolfo Morales de los Rios. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 148 – Passeio Público (1862), de Castro y Ordoñez. Fonte: Guia Geográfico – Bahia – Turismo.
Figura 149 – A aléia de palmeiras, aparentemente situadas no terraço inferior. Fonte: CEAB.
Figura 150 – Passeio Público. Fonte: CEAB.
Figura 151– Passeio Público (c.1875), de Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 152 – Vue prise à Bom-fim (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 153 – Planta da cidade de São Salvador (1894), de Adolfo Morales de los Rios. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 154 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 155 – Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 156 – Gravura da obra de Gentil de La Barbinais. Fonte: LA BARBINAIS, 1728.
Figura 157 – Ruined Chapel of San Gonçalo (1852), de William M. Gore Ouseley. Fonte: OUSELEY, 1854.
Figura 158 – Chapel of San Gonçalo (1852), de William M. Gore Ouseley. Fonte: OUSELEY, 1852.
Figura 159 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 160 – Localização dos templos e devoções católicas, a partir do Mappa Topographica da Cidade de S.
Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll. Edição do autor.
Figura 161 – Um Trecho do Caes, Bahia (Brazil), cartão-postal da J. Mello, de 1904, da Coleção Ewald Hackler.
Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 162 – Cais das Amarras (c.1885) de Rodolpho Lindemann. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 163 – Bom Jesus dos Navegantes, foto do Serviço Fotográfico e Fotostático. Fonte: FALCÃO, s/d.
Figura 164 – Chegada da imagem sagrada à praia da Boa Viagem. Fonte: CEAB.
Figura 165 – Chegada da imagem sagrada à própria Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem. Fonte: CEAB.
Figura 166 e 167 – Jangadas embandeiradas na Ponta de São Tomé. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 168 – Lagoa do Abaeté. Fonte: CEAB.
Figura 169 – Localização das hierofanias aquáticas dos cultos afro-brasileiros, a partir do Mappa Topographica
da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll.
Figura 170 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.
Figura 171 – Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes Portugal. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 172 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1831-49). Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 173 – Ermida de Nossa Senhora da Luz. Fonte: A LUVA #100, 1929.
Figura 174 – Amaralina, vista a partir do outeiro onde situa-se a capela de N. Sra. dos Mares, sem data. Fonte:
AHM-FGM.
Figura 175 – Cabane de negre jus la route de Rio-Vº (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 176 – Route de Rio-vermeillo (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco, Bahia e Rio
de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 177 – Cabanes de pêcheurs à Rio-vermeillo (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 178 – Vue dessinée à Rio-vermeilho (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco, Bahia
e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 179 – Capela de São Lázaro. Fonte: FALCÃO, 1941.
Figura 180 – Capela de São Lázaro, sem data. Fonte: CEAB.
Figura 181– Outeiro de São Lázaro. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 182 – View of the entrance of the Bay of Bahia. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

XIV
Figura 183 – Localização das procissões, cortejos e corridas náuticas do Oitocentos, a partir do Mappa
Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll. Edição do
Autor.
Figura 184 – Localização das procissões, cortejos e corridas náuticas na Baía dxe Todos os Santos durante o
Oitocentos, a partir do Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes
Portugal. Fundação Biblioteca Nacional. Edição do Autor.
Figura 185 – Localização das procissões, cortejos e corridas náuticas do litoral atlântico no Oitocentos, a partir
da Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1831-49). Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Edição do Autor.
Figura 186 – Forte de Santo Antônio da Barra (1860), de Benjamin Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 187 – Forte de Santo Antônio da Barra, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 188 – Fonte da Mãe d´Água. Fonte: FALCÃO, 1941.
Figura 189 – Fonte da Mãe d´Água, de Sascha Harnisch. Fonte: FALCÃO, s/d.
Figura 190 – Bahia – Vista Panoramica, cartão-postal de Wessel, sem data, da Coleção Ewald Hackler. Fonte:
VIANNA, 2004.
Figura 191 – Isolamento Monte Serrat, cartão-postal da Litho-Typ. Joaquim Ribeiro & Cia., de 1928, da Coleção
Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 192 – Calçada do Bonfim (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 193 – Largo de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro (1865), foto de Georges Leuzinger. Fonte:
Brasiliana Fotografica.
Figura 194 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Figura 195 – Calçada do Bonfim, em cartão-postal de Almeida & Irmão, de 1918, da Coleção Ewald Hackler.
Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 196 – Bahia – Avenida Dendezeiros, em cartão-postal da Litho-Typ. Almeida, de 1906, da Coleção Ewald
Hackler. Fonte: VIANNA, 2004.
Figura 197 – Vista da Bahia, de Abraham Louis Buvelot. Fonte: ITAÚ CULTURAL.
Figura 198 – Calçada (1860-65), de Camillo Vedani. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 199 – Vista da Calçada, sem data. Fonte: CEAB.
Figura 200 – Église de Bomfim a Bahia, de Hubert Clerget, em Brazil Pittoreco, de Charles Ribeyrolles. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 201 – Calçada do Bonfim (1861), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988.
Figura 202 – Remodelação da Ladeira do Bomfim. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Figura 203 – Dique (Bahia), cartão-postal da Livraria Reis, de 1905, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA,
2004.
Figura 204 – Dique (1902), da Campagne Duguay-Trouin. Fonte: Acervo digital do autor.
Figura 205 – Dique e Lavandeiras, cartão-postal da Miscellanea, de 1912, da Coleção Ewald Hackler. Fonte:
VIANNA, 2004.
Figura 206 – Dique (1902), da Campagne Duguay-Trouin. Fonte: Acervo digital do autor.
Figura 207 – Dique (1902), da Campagne Duguay-Trouin. Fonte: Acervo digital do autor.
Figura 208 – Praia das Pedreiras. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 209 – Praia das Pedreiras. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.
Figura 210 – Praia das Pedreiras. Fonte: CEAB.
Figura 211 – Casa de Saúde do Dr. Augusto Villaça, em Itaparica. Fonte: REVISTA CÍVICA n.1, 7 set 1908.
Figura 212 – Caminhos antigos às Armações. Edição do autor sobre Mappa Topographica da Cidade de S.
Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll (ALMEIDA, 2014).
Figura 213 – Caminhos antigos às Armações. Edição do autor a partir da Planta do accampamento de Pirajá e
Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere (Fonte: Fundação Biblioteca Nacional).
Figura 214 – Caminhos antigos às Armações. Edição do autor a partir da Planta do accampamento de Pirajá e
Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere (Fonte: Fundação Biblioteca Nacional).
Figura 215 – Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes Portugal. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.

XV
Lista de Abreviações e Siglas
AHM-FGM – Arquivo Histórico Municipal/ Fundação Gregório de Mattos
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia
CEAB – Centro de Estudos da Arquitetura Baiana (da Universidade Federal da Bahia)
PPGAU-UFBA – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal da Bahia
PMS – Prefeitura Municipal de Salvador

XVI
Sumário
Introdução 1
Prolegômenos 12
um passeio imaginário 25
1. A Formação do Litoral 41
1.1. O Litoral Primitivo 41
1.2. Salvador e seu Porto 43
1.3. A Cidade se Ergue das Águas 47
As Olarias 48
As Caieiras 48
As Pedreiras 50
1.4. Cultivo e Pecuária 53
Os Engenhos de Cana-de-Açúcar 54
Os Currais e as Fazendas 62
1.5. Manufatura 71
As Cordoarias 72
Os Estaleiros 76
Os Alambiques 77
Outras Manufaturas 80
2. O Mundo da Pesca 85
2.1. Quem eram os Pescadores 86
2.2. Os Pescadores e o Meio 90
Na Baía: manguezais, gamboas e canoas 91
Os Arrecifes Conhecidos 94
Em Mar: jangadas e saveiros 97
As Armações de Baleias 102
As Armações de Pescado 113
As Localidades dos Pescadores 117
2.3. Para Alimentar a Cidade 123
2.3.1. O Quinhão dos Pobres 131
2.3.2. As Ganhadeiras 135
3. A Sensibilidade dos Estrangeiros 145
3.1. O Encanto da Visão 147
O Litoral Atlântico 153
A Baía de Todos os Santos 154
O Frontispício da Cidade 155
A Linha do Litoral 157
A Visão do Mar e a Irrupção do Sublime 169
3.2. Excursões e Passeios 173
A Caça e a Pesca 174
O Olhar Científico e os Passeios Botânicos 175
Os Lugares Visitados 181
Garden Parties e Similares 184
3.3. A Residência dos Estrangeiros 186
4. O Deleite dos Luso-Brasileiros 201
4.1. A Paisagem No Brasil Colonial 206
As Dilatadas Vistas 208
Antevisões Românticas 209
4.2. A Paisagem no Oitocentos 212
4.2.1. A Paisagem em Textos 212
4.2.2. A Paisagem em Pinturas 215
As Desventuras do Theatro Panorama 217
4.2.3. A Vista do Mar nas Residências 218
4.3. As Áreas Verdes e o Litoral 224

XVII
5. A Recreação das Famílias Baianas 244
5.1. O Lazer na Bahia Oitocentista 245
5.2. A Metade Reclusa 248
5.3. A Sociedade em Festa 260
5.4. Alguns Ensaios de Modernidade 263
O Passeio Público 265
Os Salões Privados: de serões, soirées e saraus 274
O Papel da Nova Geração 276
6. As Famílias Vão ao Campo 284
6.1. Campo e Cidade 285
6.2. Saindo de Salvador 289
6.2.1. De Patuscadas e Travessias Náuticas 292
6.2.2. A Hipótese Itaparica 298
6.2.3. Passar as Festas na Roça 299
7. Dias de Festas no Mar 309
7.1. Os Santos dos Pescadores 311
7.1.1. Os Santos Tradicionais 312
7.1.2. O Caso de São Gonçalo do Amarante 313
7.1.3. Assim na Terra como no Céu 323
7.2. As Festas dos Marítimos 324
7.2.1. No Porto de Salvador 324
7.2.2. As Festas dos Canoeiros 330
7.3. O Culto da Mãe d´Água 332
7.4. Passar as Festas no Litoral 339
Viagens pela Baía 339
Itapuã e as Festas de São Tomé 340
Pituba 344
Amaralina 348
O Rio Vermelho 349
São Lázaro 355
A Barra 358
8. O Destino da Península de Itapagipe 370
8.1. A Devoção do Bonfim 372
8.2. As Festas do Bonfim e a Urbanização da Península 381
As Gôndolas 386
A Companhia Bahiana de Navegação a Vapor 389
Os Hábitos Cosmopolitas 391
8.3. A Longa Calçada do Bonfim 393
9. A Aurora dos Banhos de Mar 409
9.1. Formas Anteriores do Nado 410
9.2. Os Banhos de Rio 412
9.3. O Banho Terapêutico 423
9.4. Os Banhos de Mar 427
9.4.1. Um Banho de Mar Popular 428
9.4.2. Os Banhos Salgados 432
10. Os Médicos Chegam Depois 447
10.1. O Problema de Itapagipe 451
10.2. O Beribéri e a Vilegiatura 455
A Procura do Litoral 458
Itaparica, a Europa dos Pobres 461
Outros Sanatórios Naturais: os lugares de sempre 465
10.3. A Consolidação dos Banhos Salgados 466

XVIII
Epílogo 472
Conclusão 477
Apêndice 1. Os Caminhos das Armações 482
Apêndice 2. Itapagipe de Baixo e de Cima 488
Apêndice 3. Os Contratos de Baleias 492
Apêndice 4. As Armações de Xaréu e a Pesca de Arrasto 497

Referências Bibliográficas 503

XIX
Introdução

Esta tese nasce errada.

Sua semente está em outra pesquisa, concluída com a defesa da Dissertação de Mestrado
Do Jardim ao Farol: uma análise dos usos nas praias de Salvador e sua arquitetura, em abril
de 2008, dentro do âmbito do PPGAU-UFBA.

Naquela que era uma tarefa ambiciosa, mas limitada no tempo e no espaço – a investigação
do uso da orla atlântica de Salvador como um espaço público – incluiu-se a pesquisa
histórica tanto dos movimentos gerais que levaram à valorização daquele ambiente costeiro
em todo o Ocidente, quanto daqueles mais próprios de Salvador, já desconfiando da tão
propalada vocação litorânea da cidade.

Abria-se o horizonte para um fenômeno de tremenda envergadura, que era a litoralização1, a


forte urbanização de espaços litorâneos em uma sociedade do lazer, e de um lazer com
grande movimentação de contingentes na forma do turismo. O que levava a uma
conurbação costeira, por meio da constituição de uma grande via beira-mar nacional, com
interrupções aqui e ali, com tremendas implicações na cidade e no território.2 Esse
fenômeno, ressaltamos, é mais antigo na Europa e Estados Unidos, e acabou por se tornar
ubíquo em todo o Ocidente.

O projeto esboçou-se com clareza: entender aqueles processos remotos na cidade e o


entorno que ela ativava, em tempos idos e mais recentes, as manifestações locais de
movimentos planetários, identificando as particularidades próprias. Era um panorama o que
se pretendia, ainda que restrito a Salvador e seu entorno. Este era o projeto inicial.

Para evitar confusões esclarecemos que a beira-mar que estudamos deve ser entendida em
sentido maior, quase como de um bordo marítimo, próximo, mas não necessariamente
adjacente. E com bem-estar queremos ampliar o espectro para além do lazer, incluindo um
estar prazenteiro ou aprazível, de modo mais difuso e mesmo passivo, naquilo que é mais
claramente definido em inglês como um pleasant place.

Tem-se como alvo o que poderia ser chamado de uma historiografia difusa que, sem estar
voltada especificamente ao assunto, tem como certa a transição de uma sociedade colonial
fechada para uma moderna, da mulher trancafiada à mourisca para as recatadas senhoras
em pesados trajes de baeta, nas primeiras horas da manhã, e, poucas décadas depois, as
esguias melindrosas com maillots modernos; com uma classe médica que está atualizada
com as novas modas – o termalismo, a balneoterapia marítima, a climatoterapia – e de uma
sociedade que bate continência ao receituário médico. Sumária, é inverossímil, pela falta de
etapas intermediárias, de tensões.

A descrição do que se procurou fazer é uma intercessão entre (ou pode ser descrita como)
uma história cultural do mar em Salvador, uma história do seu lazer com ênfase no litoral, e
ainda, sua história urbana vista desde o mar. Dentro disso, cabem alguns esclarecimentos.

1
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Construção da Imagem Turística de Fortaleza – Ceará. Mercator – Revista de
Geografia da UFC, ano 1, n.1, 2002, Fortaleza.
2
MACEDO, Sílvio Soares e PELLEGRINO, Paulo Renato Mesquita. Do Éden à Cidade – transformação da paisagem litorânea
brasileira. In: YAZIGI E.; ALESSANDRI CARLOS, A.F.; ARIZA DA CRUZ, R. de C. (org.). Turismo: espaço, paisagem e
cultura. São Paulo: Hucitec, 1996. 241p.

1
Peter Burke, em seu manual sobre o tema, em uma curiosa história da “história cultural”,
defende que, sob abordagens aparentemente distintas (história social, do imaginário social,
das mentalidades e sensibilidades), em países e gerações diferentes estava a se fazê-la,
não sem inovações.3 O que poderia unir a todos estes seria uma descrição histórica da
sociedade a partir de sua superestrutura (para usar terminologia marxista), por seus andares
superiores em termos de construtos intelectuais.

Nosso esforço alude não às puras idéias – como é a obra clássica de Paul Hazard4 –, mas à
sua articulação com as ações humanas e com transformações físicas que chegam mesmo a
ser duradouras. Tampouco lidamos com a Kultur, uma realidade em si, um solo ontológico
sobre a qual se assentava a sociedade, ou de onde ela emanava, como ocorria nos
clássicos de Jacob Burckhardt5 e da história cultural de matiz germânico. Como Paul Veyne
defendia, não acreditamos que exista um estrato da realidade social que preceda a todos os
demais, e funciona como causa a ser investigada, no “mundo sublunar” (ironizando o termo
aristotélico).6 Ele argumentava que na cadeia de causa e efeito, dada sua circularidade,
qualquer causa remontaria a uma regressão sem fim. Porém podemos ver de outra maneira.

O termo “cultura” corresponde a um plano projetante sobre a qual se lança uma imagem
bidimensional de um ente tridimensional, como a sombra na parede de um objeto sob a luz
de uma lanterna. Outros conceitos, como o de “economia”, servem como planos projetantes
em outros ângulos, revelando alguns detalhes e deixando de fora outros. Nunca um plano
esgota a riqueza do sólido, e cada novo ângulo permitiria silhuetas e detalhes não vistos
antes. O mesmo labirinto pode ser visto desde dentro como a vôo de pássaro, revelando
padrões diferentes. Assim, Peter Gay em sua série de livros A experiência burguesa: da
rainha Vitória a Freud pôde analisar o séc. XIX a partir de conceitos extraídos da psicanálise
freudiana aplicados a uma sociedade. Werner Jaeger, por sua vez, estudou como a Grécia
Antiga formulou e reformulou seu ideal de formação humana.7 Assim, o mar surge como
uma clave possível para essa historiografia, como possibilidade de revelar relações de outra
maneira inauditas. Teríamos uma história cultural em um sentido bastante lato, longe de ser
o intento de descobrir a alma de um povo, defini-la mesmo com uma frase, expressão e até
palavra, por meio da qual aquela seria sintetizada.8 Ao contrário, o mar, essa franja entre o
oceano e o continente, é uma possibilidade dentre muitas outras.9

O panorama também merece uma atenção rápida. Podemos ter um grande quadro
razoavelmente estático, como é o clássico de Johan Huizinga, O Outono da Idade Média.10
Não é o nosso caso: enfatiza-se o fluxo, as mudanças. E como acompanha-se mais de uma
linha, o risco é o de esgarçar a seqüência cronológica, de mais fácil compreensão.

3
BURKE, Peter. What is Cultural History. 2ed. Cambridge, UK/ Malden, USA: Polity, 2008.
4
HAZARD, Paul. A Crise da Consciência Européia 1680-1715. Rio de Janeirao: Editora UFRJ, 2015.
5
Pensamos especialmente em BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália: em ensaio. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. [Originalmente Die Kultur der Renaissance in Italien: Ein Versuch, 1860], e BURCKHARDT,
Jacob. The Greeks and Greek Civilization. Editado, com introdução de Oswyn Murray. New York: St. Martin´s Press, 1998.
6
VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 285p.
7
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
8
Johann Gottfried von Herder (Philosophical Writings. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2004) falava no espírito de
“precisão” dos antigos Egípcios. Burckhardt sintetizava o espírito da antiga Civilização Grega com uma palavra, o agon, ou,
no Renascimento, a individualidade. Gilberto Freyre sempre voltava à plasticidade dos portugueses e desta civilização luso-
brasileira, expressa no “amolecimento”, em todos os níveis. Certos aspectos da Cultura, dentro dessa tradição, como
maneira de se compreender uma sociedade exploramos em um trabalho muito diferente (PAZ, Daniel J. Mellado. Da
Importância do Pormenor: Alois Riegl e a Cultura Alemã. In: ANDRADE JR., Nivaldo Vieira de & ESPINOZA, José Carlos
Huapaya (org.). Anais V Encontro Internacional sobre Preservação do Patrimônio Edificado – Arquimemória. Salvador, BA,
27 de novembro a 1º de dezembro de 2017/ Departamento da Bahia do Instituto de Arquitetos do Brasil. CD-ROM. Salvador:
IAB-BA, 2017.).
9
Aqui empregaremos uma espécie de “definição apofática”, inspirada na teologia homônima, mais conhecida como teologia
negativa, que delimita o seu objeto por meio do que não é. Este método é uma versão simplificada, mas que também
estrutura o raciocínio em escalas maiores, do método ambidestro do pars destruens/ pars construens, de rejeitar equívocos e
hipóteses mais frágeis, enquanto se erige positivamente um raciocínio, tal como apresentado por Francis Bacon em seu
Novum Organum (The New Organon. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003).
10
HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

2
Outra dificuldade, e daí o erro que falamos no início, reside na situação atual da
historiografia baiana. O panorama, ao contrário das pinturas reais que permitem pinceladas
gerais ou meras silhuetas, exigia retratos parciais mais detalhados. Na escassez de
monografias de qualidade, muitos eram os vazios.

Isso levou a aprofundarmo-nos em tópicos laterais, como a longa obra da Rua da Valla, ou
que subsidiassem afirmações que só podem ser feitas de maneira geral, como sobre o
Passeio Público ou a paisagem tal qual concebida pelos estrangeiros. Ao contrário do usual,
de desmembrar o que se escreveu na Tese uma vez defendida em papers menores, ou de
ensaiar e submeter ao escrutínio dos pares partes depois reunidas e desenvolvidas, tivemos
pedaços necessários, porém desviantes da linha principal. Foram publicados e tomados
como base para afirmações que, de outra maneira, pareceriam sumárias e sem
fundamentação.11 Para manter a legibilidade desta polifonia na medida do possível, outras
tantas afirmações foram feitas, à espera de futuro esclarecimento.

Ao explicar a aparição dessa aproximação ao mar num âmbito específico como a cidade de
Salvador, outros problemas aparecem.

O primeiro deles trata da difusão dos valores, instituições e práticas de sua gênese histórica
para as cidades brasileiras, e Salvador.

Em um extremo, temos uma espécie de localismo, um tanto raro, onde se julga que
processos puramente locais regem o fenômeno. Não podemos perder do horizonte que
temos em ação uma corrente cultural de envergadura planetária, e com longevidade secular.
Assim, paralelismos de movimentos locais com aqueles internacionais não são acidentais. À
incorporação imobiliária, por exemplo, pode ser creditada aspectos específicos da
urbanização do litoral, como o perfil da ocupação do solo e mesmo a iniciativa de seu
loteamento ou o lobby para dotação de infra-estrutura urbana às custas do Estado, mas não
o movimento geral, que é similar em todas as cidades costeiras ocidentais.

O outro extremo é o que Eustógio Dantas chama de tropismo: a transposição imediata de


processos exógenos, transferidos ipsi litteris ao Brasil, e à Bahia.12

De entrada a noção da difusão atrasada dessas práticas precisa lidar com uma sorte de
sincronia crescente, em uma reprodução acelerada daquilo que acontece em nossos
modelos de civilização. Subentende-se que o apelo conspícuo a atitudes gestadas nos
países “desenvolvidos” é o motor por trás da repetição, embora sua existência denota uma
diferença elementar: se o que é comum em um lugar for elitista em outro, já na pura relação
entre estamentos temos uma diferença crucial, como observara Needell para a Belle
Époque fluminense.13 A tese da transposição atrasada só se sustenta se o atraso se
mantém constante, o que não é o caso. Então, teremos posturas simultâneas em lugar da
sucessão cronológica do lugar de origem, em uma espécie de compressão que já cria uma
situação em muito diferente.

Porém, há diferenças constitutivas nos assentamentos do Novo Mundo que são cruciais,
inviabilizando parte dessas abordagens. Uma vez que orientados sob outros fins e com
estrutura espacial diferente. Uma delas está na ocupação do território brasileiro a partir do
litoral, uma das bases da distinção entre o autóctone e o alóctone.14 No caso das capitais

11
Como se verá ao longo da Tese.
12
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Maritimidade nos Trópicos: por uma geografia do litoral. Fortaleza: Edições UFC,
2009.
13
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
14
DANTAS, 2009.

3
litorâneas brasileiras, claramente existe uma demanda autóctone, da própria população da
capital para suas bordas, como uma alóctone, vinda de outros países e mesmo outros
continentes.

O risco de estudar o litoral soteropolitano somente a partir do congênere europeu pode ser
demonstrado no papel dos cultos africanos e, para o que defendemos aqui, de festas, com
todas as suas ambiguidades, fortemente relacionadas com o mar. Ou seja, se de fato é a
expressão local de uma história ocidental geral – o lazer, as formas de lazer, e a
litoralização na urbanização –, forçosamente deveria possuir particularidades locais, ainda
que na simples velocidade das etapas seguidas. E existem tais particularidades. Na história
do uso balnear das praias de Recife e cidades vizinhas, Rita de Cássia Barbosa de Araújo
lida com os banhos no rio Capibaribe, a partir dos sobrados e palacetes às suas margens.15
Dantas registrara para Fortaleza suas idiossincrasias, como os picnics às dunas nas noites
de lua cheia.16

Sendo uma história cultural, ela inclui as idéias de poucos, ditas em alta voz, e se
encontrarem eco ou não nos demais. É uma história que inclui as possibilidades: as lendas
tidas como verossímeis, as justificativas e pretextos julgados válidos, as iniciativas
comerciais inauguradas na esperança de sucesso. E atentando para sua vigência na
sociedade, incorporando os malogros e insucessos, como o Theatro Panorama ou a
primeira Companhia Bahiana de Navegação.

A natureza tentativa, exploratória, da sociedade, é o fundamento, tal como Friedrich von


Hayek compreende suas atividades econômicas.17 Para ele, o conhecimento estava
disperso por toda a sociedade, impossível de ser reunido, e era adquirido em cada intento
de ato econômico, prospectando as reações dos demais. O raciocínio pode ser expandido
para todos os atos humanos em sociedade. Assim, se por um lado a mera possibilidade de
uma determinada iniciativa indica que estava no horizonte de uma pessoa em dada
sociedade, em determinado momento, por outro a sua propagação, em um número de
pessoas suficiente para mantê-la, aponta para um grau de maturação, para uma vigência
que é um passo além a simples especulação.18

Sendo no fundo uma história das ações humanas, existem aspectos bastante
contingenciais. Como as medidas de um governante, a influência de uma liderança social, a
ação de um empreendedor, e a interação de todos estes. Por exemplo, certos enigmas
urbanos estão enraizados nos aspectos particulares das propriedades, na história fundiária.
Na medida em que encontramos estas relações, levantadas por outros pesquisadores, e ela
tem alguma relevância para o que estamos contando, elas são apontadas. Porém na escala
em que lidamos, isso de certa maneira se dissolve. Se a mesma mecânica se repete em
vários arrabaldes, a história fundiária pode ser um condicionante, mas não o determinante,
sendo o terreno na qual se caminha rumo a um mesmo destino ou, as correntes oceânicas
particulares e o regime de ventos circunstancial que impõe as condições a um navegador.

Pois lidamos com movimentos mais longos que os da vida política mais imediata. Existe
evidentemente um substrato econômico, embora este não seja o fundamento causal,
apenas impulsionando ou amortecendo aqueles movimentos. Do contrário os processos
locais seriam muito distintos dos globais, análogos em todo o Ocidente e mesmo além. Pode
ainda dar-lhes uma forma específica, determinada, mas não a tendência geral.

15
ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. As Praias e os Dias: história social das praias do Recife e de Olinda. Recife: Fundação
de Cultura Cidade do Recife, 2007.
16
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Edições UFC, 2011.
17
HAYEK, Friedrich A. Individualism and Economic Order. Chicago, Illinois, USA: The University of Chicago Press, 1958.
18
Vigência é um conceito central nos arcabouços filosóficos para uma Sociologia que José Ortega y Gasset esboçava (O
Homem e a Gente. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano Ltda., 1960.). No entanto, jamais o desenvolveu mais,
permanecendo, como tantas outras coisas de sua obra, como porta aberta a ser explorada por outros.

4
O que propomos é recuperar, ou pelo menos ter em mente, o que chamamos de
ambivalência radical das ações humanas. Nenhuma ação humana, individual ou coletiva, se
faz por apenas uma inclinação.

Por isso evitamos abordar os presumidos “interesses ocultos” por trás das ações humanas.
Não há uma camada visível e outra invisível, uma escrita aparente, e outra real, subjacente,
hermenêutica derivada por caminhos diversos da exegese judaica. As ações humanas são
ambivalentes em sua raiz mesma. No indivíduo, cada ato é um feixe de motivações, alguns
tornados públicos, outros conscientes porém íntimos, e mesmo aqueles que fogem à sua
consciência. Para cada ação há várias motivações, expostas e ocultas, até para si, e
algumas inclinações sem um motivo instrumental imediato.

Nas ações coletivas, essa multiplicidade é ainda mais intensa. As pessoas envolvidas em
uma mesma empresa em comum, ainda que simultânea, ainda que consentida, não o fazem
pelas mesmas razões, com as mesmas ênfases, e nem estas se mantêm intocadas no
tempo.

O mistério está nessa indeterminação, visto que o ser humano não é causal, mas finalístico.
Pela escala da abordagem, pouco dessas camadas de vontades poderia ser investigada.
Faz-se alguns ensaios, ou adota-se a visão de terceiros, confiando em seus estudos em
profundidade.

Em vez de uma Genealogia, portanto, tratar-se-ia apenas de História, de historiografia, de


tentar identificar os passos de uma transformação, e identificar os processos em gérmen. De
identificar aquilo que Fredric Jameson chamou de sementes do tempo, e tentar ver, com a
vantagem de ter diante de si a distância, o que vingou.19

E sobretudo a crença na contínua transformação dos processos históricos, embora com


velocidades diferentes. Nem enfatizamos a permanência de um core imutável, nem a nas
rupturas e descontinuidades. É um falso dilema, a reedição, da aporia eleática/ heracliteana,
cuja solução data do século V a.C.: a existência de um substrato (ousia) que, permanecendo
em alguma medida, passa por transformações. O que chamamos de “ruptura” seria mais o
reconhecimento de uma velocidade maior nas mudanças, realizadas a partir de aspectos
forçosamente anteriores. Como um organismo adapta partes anteriores, preexistentes, e um
mesmo osso pode fazer parte da asa de um morcego, da barbatana de uma baleia e da pata
de um gato, modificado substancialmente em suas funções, submetido a forças sob vetores
diferentes. Se na evolução biológica existem surtos de transformações, o equilíbrio
pontuado de Stephen Jay Gould, também encontramos essas mudanças mais velozes na
sociedade.

Alain Corbin, em seu clássico sobre o litoral europeu como lugar desejado, apresenta uma
série de aproximações convergentes, mas não conseqüentes, que nos serviu como insight.20
Foi a inspiração para uma polifonia, aqui aprofundada, não no plano geral das idéias, das
mentalidades, mas no reconhecimento dessa ambivalência radical das ações humanas, da
amálgama de interesses, no indivíduo e sobretudo nos esforços coletivos. A aproximação ao
mar, assim, não teria se dado por um lado apenas, por um motivo apenas. Houvera uma
convergência, e abordagens diferentes, nem sempre fisicamente coincidentes: o piquenique
à beira-mar não implicava no banho, o banho não implicava num apreço estético, a vista do
mar se dava a cavaleiro... E nem sempre sociologicamente coincidentes: o banho dos
praieiros não era o mesmo do enfermo por beribéri, por exemplo.

19
JAMESON, Fredric. The Seeds of Time. New York/ Chichester, West Sussex: Columbia University Press, 1994.
20
CORBIN, Alain. O Território do Vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Ed. Schwarcz Ltda., 1989.

5
E esta polifonia, como método de investigação, exposição do conteúdo e estrutura da Tese,
requer explicações.

Entendemos que a Historiografia é um percurso linear (ainda que de muitas linhas) como
sucessão de eventos, e como coluna vertebral de sua exposição, mas retrospectiva como
investigação do Historiador. Nem a História se escreve a si mesma, nem são as ações
humanas pretéritas algo que ocorre em função teleológica do futuro. O que temos é uma
viagem em que o ponto de chegada é o ponto de partida, ou melhor, em que conhecemos
as plagas em que o navio chegará.21 Assim, a investigação constitui uma série de operações
de reconhecimento, paulatinas e crescentes, onde identificamos as características familiares
na paisagem. Não estamos fora da História, olhando um sentido geral para a mesma, mas
dentro, em um momento pontual.

Uma hipótese historiográfica é uma linha causal, ou ao menos uma sucessão cronológica,
que orienta o quê buscar, e onde, para confirmar a hipótese ou corrigi-la. Se aceitamos o
postulado das linhas diversas, daquela polifonia, a procura se expande.

O tempo corre, ao menos para os seres humanos, do passado ao futuro, como o rio segue
rumo ao mar. Mas, vasto, amazônico em sua extensão e amplidão, abriga em si muitas
correntes – que ora misturam suas águas, ora divergem, quando não estão isoladas – e
mesmo formam torvelinhos, com forças contraditórias. Uma historiografia polifônica trata de
identificar as várias linhas de sentido pertinentes, e seus pontos de contato, quando
convergem e auxiliam na compreensão dos fenômenos sob escrutínio.

Multiplicando uma dificuldade dada por ser um assunto não catalogado, não estruturado de
maneira unitária, sem palavras-chave, setor de um acervo determinado, em fichas de papel
ou prateleiras, ou maços específicos do Arquivo Público. Corria transversalmente, como sói
dizer-se hoje em dia, por assuntos vários, em tipos muito diferentes de documentos, de
anúncios de jornal a biografias, de relatórios públicos a livros de memórias. Os primeiros
anos foram empregados, além dos encargos docentes e de outras pesquisas com pouca ou
nenhuma intercessão com esta, recolhendo material, na tentativa de identificar tais linhas,
tais melodias na concertação geral. A imposição do próprio acúmulo de indícios, de início
menosprezados, levou a revisitar continuamente obras já consultadas.

Embora implicasse na tarefa do garimpeiro, de buscar pepitas escondidas entre o cascalho


do rio, ocorreu algo contrário, dentro do que chamamos de Princípio do Alquimista. Karl
Popper, criticando o que chamava de teoria do balde cheio, argumentava que a Ciência não
era a coleta indiscriminada de dados, e sim a procura intencional por algo, o que chamava
de teoria do holofote.22 Nos parece que, como esquemas puros, servem para ilustrar a
pesquisa científica. Mas não correspondem a uma sorte de objetividade renitente, a um
meio-termo. Acreditamos que a Ciência, quando bem praticada, guarda mais parentesco
com o projeto hermético do que se poderia imaginar a princípio.23 O alquimista realizava
suas operações com discrição em seu laboratório, repetindo-as indefinidamente. Destilando
a água várias vezes, por exemplo. Entendia-se que à repetição das ações e condições,
somavam-se sutis variações que poderiam conduzir a outros resultados. Mas, sobretudo,
que as operações ocorriam na própria alma do alquimista. A destilação era um ato exterior e
interior. A sua purificação, a sua própria transformação, era a chave da revelação da matéria
sob suas mãos. Da mesma maneira, nos ocorreu que lidando anos com a mesma literatura,
documentos, imagens, revirando-os continuamente, remanejando-os, recombinando-os, não
só indícios sutis se mostraram, como conjuntos amplos apareceram de modo tão ostensivo

21
Aquilo que Marc Bloch chama de método regressivo (BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2002).
22
Teoria que ele apresenta distribuída em vários trabalhos seus, como em Conjecturas & Refutações. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1972.
23
YATES, Frances. The Rosicrucian Enlightenment. St. Albans, UK: Paladin, 1975.

6
que cabia perguntar: como isso não foi percebido antes? Foi o caso, já de início e um dos
motes da pesquisa, do que chamamos de ciclo dos arrabaldes, que aparecia evidente na
literatura da República Velha e nem por isso era assim posta. E, na maturação da tese, o
papel crucial das mulheres e sua entrada na vida pública, como das festas de verão. Pode-
se argumentar que o insight, no sentido dos psicólogos da Gestalt, ocorreu; era uma
questão da ordem dos fatores, deles expostos na mesa de trabalho, na imagem à frente, no
esquema desenhado.24

As linhas da polifonia alternam palavras e coisas. Em certos capítulos, estamos lidando com
o plano das idéias, expressas em documentos escritos para escrutínio público. Em outros,
com documentos que apontam para lugares concretos, ações físicas e suas permanências.
Em certos momentos, as idéias das classes letradas, quando não de setores específicos,
como estrangeiros ou médicos, próximos do que consideram como história intelectual. Em
outros, a sondagem dos hábitos populares, a história cultural, no sentido antropológico, ou a
história dessas classes mais baixas, mais próximas de E.P. Thompson. Há capítulos,
portanto, em que se enfatizam ações sem textos, e outros, textos sem ações.

Outro elemento torna a escrita da história mais complexa: a heterogeneidade do mundo


físico, as permanências e suas inércias, que ora convergem, se opõem ou convivem de
modo indiferente. A cidade e seus edifícios como suporte material, como condição e limite,
dos acontecimentos humanos. Na medida do possível isso foi considerado.

O empreendimento concebido inicialmente tinha pelo menos três partes: descobrir as


condições preliminares do veraneio e do ciclo dos arrabaldes, uma espécie de “pré-história”
do uso balnear propriamente dito; o estabelecimento e vigência do que chamamos daquele
ciclo dos arrabaldes, onde o veraneio se distribuía por um cinturão de localidades próximas
da cidade, com o desenvolvimento de uma cultura do lazer própria, onde as atividades
praianas eram parte de um repertório maior; e a consolidação destes lugares como
residências, e o espraiamento para um veraneio mais litorâneo ao longo do século XX.

A dificuldade da primeira parte estava na escassez de material. Das outras duas, na


abundância de fontes a pesquisar, em especial a partir da Primeira República.

O enigma historiográfico era o século XIX, com ênfase na sua primeira metade. O esforço
em elucidar esse período levou ao seu crescimento, postergando os demais para uma
pesquisa futura. Esta nova abordagem não implicou em pedaços coeridos teleologicamente
pelo veraneio vindouro, mas na identificação de uma realidade própria, já na primeira
metade, com o avanço ostensivo para Itapagipe, e outro, mais discreto, porém real e
contínuo, para as bordas do mar aberto, na Barra e Rio Vermelho. O enfoque não foi
alterado e sim a ênfase, amputando as etapas históricas seguintes para outro momento,
mantendo-se o projeto geral original. A tese encerra suas linhas por volta dos anos 1860,
com algumas notas específicas nas décadas subseqüentes no último capítulo, e um esboço
do que veio depois em um Epílogo.

Não se espere que exploremos à larga a longa figura das mulheres em seus trajes de
pesada baeta, e as primeiras melindrosas nas recém-construídas vias litorâneas. Temos
esse material, da Belle Époque da Primeira República, porém esse é um capítulo que ficou
para o futuro. Concentramo-nos na gestação lenta dessa situação. É inverossímil saltar de
uma Bahia colonial para a modernidade da Primeira República: as sociedades se
transformam, mas não em saltos tão repentinos. Houve uma “modernidade” intermediária,
com transições e tensões necessárias para que o banho de mar emergisse por completo à

24
KOHLER, Wolfgang. Psicologia da Gestalt. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1968. KOFFKA, Kurt. Princípios de Psicologia da
Gestalt. São Paulo: Ed. Cultrix/ Editora da Universidade de São Paulo, 1975.

7
luz pública, para que estar à beira-mar fosse uma realização inquestionável. Ou mesmo uma
modernidade em mutação, ela mesma, na constante tensão por adaptar-se às constantes
mudanças vindos dos epicentros de prestígio em outros continentes.

E para essa mudança nos planos cabe falar rapidamente dos acervos pesquisados, ou pelo
menos daqueles que representaram um aporte significativamente novo. O primeiro foi a
restauração das Teses defendidas na Faculdade de Medicina, onde saltou à vista a
ausência das teorias e conseqüentes conexões esperadas, sempre invocadas para explicar
aquela rápida transição antes mencionada. A ausência foi, mais do que tudo, uma presença.

Mas a principal diferença estava nos periódicos. O acervo local apresenta-se em estado
lamentável, em especial o da Biblioteca Central do Estado da Bahia: os principais periódicos
praticamente perdidos para a consulta pelo excessivo manuseio, o armazenamento em
condições longe das ideais, a consulta em um ambiente precário em termos de
condicionamento de ar e iluminação. De entrada sabíamos que o grosso das fontes seriam
os periódicos. A mudança se deu com o acervo da Biblioteca Nacional – que tinha inúmeros
periódicos de nosso interesse microfilmados porém ainda em negativo – posto à disposição
online, com a Hemeroteca Digital. Da mesma maneira sua fototeca e mapoteca, que dirimiu
muitas dúvidas sobre toponímia e os antigos caminhos da cidade. Com a hemeroteca abriu-
se, de uma só vez, um leque inabarcável para o tempo e limitações humanas, mas
franqueando uma literatura ainda não consultada na História Urbana de Salvador. Pelo
ineditismo e pelo seu tamanho, acabou por absorver boa parte das pesquisas nos últimos
anos.

Também importante foi o site www.archive.org que, congregando o acervo de várias


Universidades pelo mundo, tornou fácil o acesso à fonte primária dos viajantes e
documentos coloniais. O problema foi o contrário dos predecessores: como ler a fundo e
interpretar uma massa documental de mais de uma centena de volumosos livros, nos mais
variados idiomas, só quanto aos viajantes.

Diante disso, o trabalho ainda apresentava dificuldades enormes. O primeiro é que o


passado não é uma estrada com lacunas eventuais, mas uma cratera com esparsos
pedaços pavimentados. Muitos dos documentos pesquisados nos fornecem os ossos,
porém sem os órgãos ali abrigados, os músculos que os envolvem, os tendões que os
uniam e movimentavam. Daí o apelo constante aos poucos memorialistas e costumbristas, a
Anna Ribeiro de Góes Bittencourt, ao Dr. José Francisco Silva Lima, ao Padre Miguel do
Sacramento Lopes Gama falando de Pernambuco, às obras de Wanderley Pinho, que nos
dão amostras vivas do tecido do cotidiano. De um cotidiano mais intrincando e mais
cambiante com suas modas fugazes, de outra maneira invisível. Motivo também do apelo à
literatura, inclusive a de ficção quando seu autor tinha conhecimento do período de primeira
mão ou por testemunhos, como fora Xavier Marques.

Esses aspectos mais obscuros da vida em sociedade nos tiram a possibilidade de


afirmações assertivas sobre o assunto. Uma notícia pode modificar a pintura. Uma memória
singular, iluminando aspecto de conhecimento público na época, porém sem registro escrito
ou iconográfico, pode modificar completamente uma interpretação. O que temos aqui é uma
espécie de aumento da densidade da malha de hipóteses, de sua maior filigrana,
salientando sempre seu caráter tentativo.

A exposição da polifonia, claro está, não permite sua exposição linear.

Ora seguimos cronologicamente, ora por um avanço mais propriamente geográfico ou


pontuando sítios específicos, e também por afinidade temática ou participação em um
mesmo fenômeno. Daí as inevitáveis idas e vindas nos anos, ou a abordagem de um

8
mesmo lugar sob distintos aspectos, como o Passeio Público. São os percalços
naturalmente decorrentes da abordagem polifônica.

Os capítulos podem ser entendidos como formando pares em uma unidade particular.

O primeiro capítulo, A Formação do Litoral, apresenta por quais atividades o litoral da cidade
fora modelado. Algumas extintas, no Oitocentos, deixaram vestígios físicos tomados como
parte da própria natureza. Outras minguantes e ainda aquelas pujantes, ou atualizadas
como forças ativas nesse desenho. Descreve-se muito sucintamente a consolidação da
cidade em torno do seu Porto, e seus braços pelo litoral, como as fortificações e os faróis, e
o uso do litoral como local da excreção. E, de modo mais extenso, aos aspectos produtivos
do litoral: a extração de madeiras, as olarias, as caieiras, as pedreiras, o papel múltiplo dos
engenhos de cana-de-açúcar, os currais de gado vacum e as plantações de certas
palmeiras (o coco, o dendê, a piaçava), as cordoarias, os estaleiros, os alambiques e as
fábricas, em suas modalidades mais primitivas.

O capítulo seguinte é um desdobramento imediato do anterior, que ganhou autonomia pela


sua importância e envergadura: O Mundo da Pesca. O foco foi aos pescadores, parte
fundamental no abastecimento da cidade e na colonização da beira-mar oceânica, lastro do
futuro uso balnear. Precisamos lidar com os pescadores nas águas mais interiores da baía,
e os aspectos de distribuição, pelas águas e costa, das embarcações e perfil da atividade.
Guarda especial importância o reconhecimento e localização das armações de pescado e
instalações de caça das baleias, declinantes no século XIX, que perfaziam, junto com os
povoados de pescadores, o ambiente geral das praias. Coube identificar como este setor
supria a cidade, as modalidades desse abastecimento. Em narrativas sobre os hábitos
modernos à beira-mar eles entram como personagens secundários, meramente incidentais,
quando precediam os veranistas e banhistas e, mais do que tudo, suas vilas foram a
condição necessária e indispensável para praticamente toda a vilegiatura posterior.

Esses dois capítulos ajudam a compreender não apenas a formação física, mas o quê era o
litoral para aquela sociedade, sua particular maritimidade.25 Estes capítulos mostram o
arcabouço do qual partiu a situação posterior, modificando-se. Não apenas as
preexistências físicas, mas as culturais. Das coisas nascem coisas, e mesmo a forma
particular dos cetáceos foi resultado da transformação dos ossos de mamíferos terrestres.
Delinear com alguma precisão como era essa situação antes da maritimidade moderna
torna-se então passo essencial.

Ao acompanhar a toada das sensibilidades, investigamos n´A Sensibilidade dos


Estrangeiros o apreço do ambiente costeiro pelos estrangeiros, residentes e visitantes,
como empregavam os sentidos, com especial ênfase na visão, e sua estrutura muito
particular. E, a partir de seus testemunhos, a identificação dos elementos na baía e na
cidade que lhes chamavam a atenção, além dos pontos de vista que consideravam
privilegiados, os motivos para tanto, e como percebiam o litoral oceânico, que papel
conferiam ao mar pleno, e as notas do sublime em suas descrições. Mas a aproximação ao
litoral na Bahia ocorria para além da mera contemplação. Ela foi impulsionada pelo interesse
científico, manifesto no hábito de colecionar e em maneiras próprias de olhar, com destaque
para o conquiliológico e o geológico. Ademais, os lugares escolhidos como residência na
cidade, e os seus motivos, e o lazer mais ativo que implicava naquela aproximação:
excursões e passeios, a caça e a pesca, os passeios botânicos e garden parties.

Ainda investigando a sensibilidade e suas manifestações, e a partir das diferenças e


aproximações com aquela dos estrangeiros, desenvolve-se O Deleite dos Luso-Brasileiros.
Nos perguntamos, a partir dos escassos documentos escritos e interpretando as ações

25
PERON, Françoise & RIEUCAU, Jean. (Orgs.). La maritimité aujourd'hui. Paris: L'Harmattan, 1996.

9
concretas, se havia nos tempos coloniais algum tipo de apreço paisagístico, como se dava,
quais elementos e quais valores mobilizava. Como no Oitocentos aparecia a idéia de
paisagem e se esta, em especial a vista do mar, constituía algum valor relevante. E de que
maneira se dava a aproximação ao mundo natural, uma variante científica moderna
culminando com a realização do Jardim Botânico da Bahia, futuro Passeio Público, e outra
mais difundida, arraigada na cultura luso-brasileira, que se materializou nas áreas verdes
privadas.

Ambas as linhas são evidentemente correlatas, embora mais paralelas que convergentes.
Isto é, as modalidades de transmissão dos códigos, tanto da sensibilidade quanto das
práticas, dos estrangeiros para os brasileiros não foram tão imediatas quanto pareceriam à
primeira vista.

Na ausência de obra que desenhasse o conjunto do lazer oitocentista em Salvador,


desenvolvemos este assunto em capítulo intitulado A Recreação das Famílias Baianas
Partimos do ócio como projeto vital e do estilo de vida que era então alvo de emulação, e da
cultura festiva. E enfrentamos o que se nos apareceu como essencial, inevitável, na
emergência do litoral como local de lazer: a mulher das classes médias e altas, seu ócio e
lazer, e sua presença nos espaços públicos. Daí vermos as condições de intimidade no lar,
os eventos familiares, em locais privados e públicos, as características e a definição mesmo
da ostentação naquela sociedade. Porém as formas modernas, imitadas especialmente da
França e Inglaterra, se amalgamavam com aquelas anteriores: os teatros, as sociedades
recreativas, as primeiras filarmônicas, o Passeio Público como iniciativa e uso efetivo, a
transformação dos serões familiares em saraus, o papel da juventude e os primeiros passos
da criança na esfera pública. Estes, junto com a aparição em público das mulheres das
classes médias e altas, são etapa indispensável para o usufruto da área aberta, em terra e
no mar, do litoral. E para que seu uso, antes discreto, se tornasse tema da esfera pública.

A continuação imediata lida com o deslocamento estival, base para o veraneio moderno,
quando lidamos com As Famílias Vão ao Campo. Investiga-se a movimentação das áreas
rurais para núcleos urbanos e da cidade do Salvador para os seus arrabaldes, seja na forma
de uma permanência mais prolongada, seja em passeios, excursões ou travessias náuticas
festivas.

Com estas duas, vemos o caráter mais próprio do que era a forma oitocentista do veraneio,
e seu ponto de intercessão com outro elemento crucial na maritimidade de Salvador:
aquelas festas e rituais ligados ao mar. Entronca-se aqui com o par seguinte de capítulos.

A exploração do caráter particular das festas em Salvador, e sua relação com o mar, com
santos afamados pela intercessão em percalços marítimos, romarias e procissões náuticas,
merece um capítulo próprio, Dias de Festa no Mar. Aqui vemos om “passar as festas” nos
arrabaldes litorâneos, e sua curiosa interação com as festas populares.

N´O Destino da Península de Itapagipe, lidamos com principal destino de veraneio na


primeira metade do século XX, o Bonfim, que, extrapolando o tema do capítulo anterior,
mereceu uma atenção particular. Foi a festa e o veraneio um fator crucial na urbanização da
península, e o banho de mar era uma atividade importante, porém secundária, nessa grande
movimentação e cotidiano.

Tratamos de identificar como apareceu o banho de mar em Salvador com A Aurora dos
Banhos de Mar. Passando pelos hábitos e habilidades indígenas, e dos trabalhadores do
mar, e questionando-nos se houve um banho lúdico propriamente popular. Verificamos os
cursos d´água na cidade e seu uso, as formas do banho de mar propriamente dito,
conjecturando como se deu a adoção de tal hábito.

10
Com Os Médicos Chegam Depois nos debruçamos sobre a documentação médica local.
Vimos o problema em enquadrar, em seu corpo teórico próprio, os casos empiricamente
vividos de sanatórios naturais. Saltou à vista o papel do beribéri, e seus impactos na
vilegiatura inclusive; da ilha de Itaparica e no reconhecimento desta, como de outros
lugares, sanatório natural e as justificativas empregadas para assim entendê-los. E a
presença da hidroterapia em geral, e dos banhos salgados em particular, na literatura
médica.

Este último par, então, atende à pergunta: qual o peso das preocupações com a saúde para
a imersão no mar, dentro do quadro anterior das formas de imersão na água e suas
funções, e mesmo para a fuga aos sítios de veraneio?

O período estudado encerra por volta de 1860. O último capítulo avança um tanto, e com o
Epílogo delineamos aquilo que estes primórdios estudados precederam e fundamentaram:
uma constelação de localidades, em torno da cidade, porém com maior pujança naquelas
litorâneas, e suas atividades durante o verão. Tal cinturão suburbano recebia parte
expressiva da população que, como um todo, não apenas deslocava-se nos picos das festas
populares em um movimento pendular com o centro, como implicava em uma relação mais
perimetral entre veranistas, festeiros e quem lhes prestava serviços. Dentro desse quadro, o
mar aparece como parte de um espectro de atividades possíveis, enriquecendo-se com o
advento do esporte.

11
Prolegômenos

A toponímia do litoral de Salvador e adjacências enfrenta o problema, habitual, das


localizações. Os lugares mudam de nome, certas localizações tornam-se obsoletas até se
extinguirem, assim como outros nomes flutuam, deslocando-se para aqui e para ali, e
mesmo mudam de escala. Não são um problema técnico, menor, mas parte da própria
história cultural do litoral. Estabelecemos no texto, conforme disposto em mapa, a relação
entre nomes e lugares, e nos Apêndices são mencionados os documentos que
fundamentaram as decisões, com as conjecturas auxiliares, as comparações, que de outra
maneira seriam desproporcionais ao corpo do texto.

Também assinalamos nomes que mudaram: dos cursos d´água, com o caso mais extremo
do rio Camurugipe, que “mudou” de percurso ao longo dos anos. Segundo Diógenes
Rebouças, em tempos remotos o rio, que nascia na Mata Escura, desaguava no Costa Azul.
Por algum motivo, desviou-se rumo ao Rio Vermelho, passando pela Chapada, que era a
conformação conhecida em tempos coloniais, adotada pelo esgotamento da Rua da Valla e
que persistiu no século XX. Entre 1950 e 1951, desviou-se artificialmente para seu antigo
percurso, no Costa Azul.1 O Programa Bahia Azul, iniciado em 1993, mudou novamente a
situação. As águas da bacia do Camurugipe voltam a correr novamente ao mar por esse
trajeto somente em épocas de chuva, quando extravasam e correm por sua calha
concretada.

Tentamos ao máximo localizar os outeiros e baixas, sem que todos pudessem ser
identificados, a exemplo da Baixa de Madre de Deus, próximo ao Rio Vermelho.

Os mapas e imagens seguintes são aqueles explorados ao longo das páginas


subseqüentes. Aqui aparecem no máximo tamanho possível para serem compreendidos,
visto que depois aparecerão reduzidos, como índice de pedaços específicos ampliados para
fins ilustrativos.

Algumas escolhas serão detalhadas nos Apêndices, na medida em que são interessantes
problemas historiográficos.

Seguindo da Barra, da Ponta de Santo Antônio rumo a nordeste, eis o que anotamos.

Há uma seqüência de colinas cujos nomes oscilaram, não tanto de designação, como de
atenção. Outeiros hoje sem nome eram importantes e comuns antigamente, e vice-versa.

O atual Morro do Cristo, até a década de 1970 era o novo Morro do Cristo, porque a estátua
fora transferida do morro onde hoje está a Prefeitura da Aeronáutica. Era parte do Morro
Ipiranga, desmembrado pela obra da Av. Oceânica. O Morro do Gato atual era virtualmente
desconhecido no século XIX.

Defronte, a expressiva colina rente ao mar não possuía um nome. Atualmente é referida em
relação à instituição que se instala no seu topo, supracitada. Antes era o Morro do Cristo,
algo que ninguém mais se recorda.

1
RIO VERMELHO – Projeto História dos Bairros de Salvador. Salvador: Governo do Estado da Bahia – Secretaria da Cultura/
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1988, p.63. Segundo Florisvaldo Henrique Falk (PLANDURB – estudo do sítio
Município de Salvador, 1976. Apud NOGUEIRA, Rita de Cássia Cordeiro. Dique do Tororó: propostas e intervenções em um
espaço público. Dissertação de Mestrado, PPGAU-UFBA, nov 2000)1 o desvio feito no Rio Camurugipe se fez entre 1948 e
1963 pelo Departamento de Obras e Saneamento para reduzir as inundações do Rio Vermelho.

12
Importantes eram, à continuação, os outeiros do Camarão e do São Lázaro, como as praias
do Camarão, da Areia Preta e Canzuarte, chamada Canzuá no século XX. Esta sucessão
está nos Apêndices.

O Morro da Paciência e do Conselho são denominações antigas e estáveis. Entre ambas, a


colina principal do Rio Vermelho teve a ventura de possuir dois nomes, ambos esquecidos
atualmente: Alto de São Gonçalo e Alto do Papagaio.

Ao lado do Morro do Conselho, separado pela Fonte do Boi, hoje Rua Fonte do Boi, está o
Morro do Menino Jesus, toponímia não de todos conhecida.

Amaralina fora antes Armação da Lagoa e, em tempos coloniais, Ubarana. Ou melhor, uma
parte de Amaralina fora a Armação, ou apenas Lagoa. O outro extremo, Ubanara. Hoje os
dois são Amaralina.

A inflexão na linha costeira era a Ponta de Itapuãzinho, nome em franco desuso.

Pituba sempre foi Pituba, por sua vez. A localização mais enigmática era a da antiga capela
a Nossa Senhora da Luz.

Escreveremos Chega-Nego, sendo que também se grafou como Chega-Negro e outras


variantes, e esta corresponde à foz do rio Camurugipe, assim escrito de agora em diante,
embora apareça de vez em quando como Camorogibe, e ainda Camarogipe2. A grafia
original supõe-se que seja Camarajipe, já que se refere a uma alga avermelhada – razão de
ser do nome Rio Vermelho, ao passo que Camurujipe aludiria a um peixe impossível de
existir no rio.

Ao lado fica o Jardim de Allah, grafia preferida pela maior proximidade à origem islâmica
remota do nome.

Armação e Boca do Rio apresentam uma trajetória intrincada. Estão localizadas no mapa
como se interpretará na Tese. O percurso interpretativo para localizar as armações que
ficavam ali está no Apêndice 4, assim como os caminhos das principais armações da orla –
a do Gregório e do Saraiva – para a cidade, é tema do Apêndice 1. Este é fundamental
porque corresponde aos caminhos percorridos pelos moradores do Litoral Norte, e pelo
trânsito de produtos, inclusive de Itapuã.

Desponta ali o Alto de São Francisco, também algo remoto, antes Outeiro de São Francisco.

Ainda que a o sufixo tenha a mesma origem do rio Camurugipe, a praia e o rio são escritos
como Jaguaribe, em vez de Jaguaripe, como até não muito tempo também se anotava3. Por
sua vez, a antiga vila, agora município, do Recôncavo Baiano cujo nome tem origem similar
será grafado como atualmente: Jaguaripe.

A praia de Placaford foi escrita como Placafor, Plakafor e Plakaford, e ainda Plakford4.

Itapuã é Itapuã, ao invés, de Itapoã (como até os anos 1980)5, Itapuam, e congêneres.

Da Barra para dentro, apontamos algumas situações.

2
BAHIA, 1973.
3
BAHIA, 1973.
4
SEPLAM-RENURB. Plano de Estruturação da Orla Marítima de Salvador – Trecho Amaralina-Itapuã Vol.1 Tomo1. Salvador,
1988.
5
BAHIA, 1971; BAHIA, 1973; SEPLAM-RENURB, 1988.

13
Entre o Outeiro de Santo Antônio e a colina da Igreja da Vitória, na angra onde está
atualmente o Yacht Club, abaixo da Ladeira da Barra, estava o Porto da Vitória.

A Península de Itapagipe também apresenta suas nuances.

É ainda o Itapagipe um conjuncto de saliencias e reintrancias que actualmente se conhecem,


aquellas, pelos nomes de Pedra-Furada, Penha, Fortinho, Porto dos Mastros e 2 de Julho, e
estas pelos de Caes do Porto do Bomfim, Ribeira, Porto dos Tainheiros, Dos Mastros, Mangue
e Caminho d´Areia. (CARVALHO, 1915, p.129).

A primeira dificuldade histórica está na localização do que se chamava em tempos coloniais


de Itapagipe de Cima e Itapagipe de Baixo – problema enfrentado no Apêndice 2. No século
XIX, Itapagipe designava mais propriamente a parte mais ao norte da península, onde hoje
estão Penha e Ribeira, algo assinalado constantemente no texto. Como Penha cedo ganhou
autonomia toponímica, no período estudado costumava designar a atual Ribeira.

Os locais e suas variações estão apontadas nos mapas.

Escrevemos Montserrate, em vez Montserrat ou análogos, e Bonfim, embora nas citações


textuais aparecerá Bom Fim ou Bomfim, por exemplo.

O grande rio da Baía de Todos Santos foi redigido como Paraguaçu.

Um problema estrutural, que merecem um tópico no texto, está na Calçada do Bonfim, via
pavimentada, “calçada”, feita para dar acesso à Colina Sagrada, e que era endereço
suficiente para localizar roças, casas de campo, sobrados e casas modestas em anúncios
oitocentistas. Acabou se coagulando em sua parte mais ao sul, hoje denominada
simplesmente Calçada.

As citações em português estão sempre transcritas com o máximo de fidelidade possível,


mantida sua ortografia original, e algo da formatação, como os itálicos e maiúsculas. A
fidelidade inclui a toponímia. Quando houve adaptações, elas foram tornadas explícitas. Em
outros idiomas, ou usamos obras traduzidas, ou realizamos traduções próprias (a exceção
do castelhano), apontando em rodapé certos aspectos singulares, muitos também parte dos
aspectos historiográficos.

14
Figura 1 – Foto aérea de Salvador.
Aqui apresentamos, nesta escala, o
nome atual dado aos trechos do
litoral:

1 – Península de Itapagipe;
2 – Porto (Preguiça, Conceição da
Praia, Comércio, Cais do Ouro);
3 – Vitória (sua encosta);
4 – Barra;
5 – Ondina;
6 – Rio Vermelho;
7 – Amaralina;
8 – Pituba;
9 – Jardim de Allah;
10 – Armação;
11 – Boca do Rio;
12 – Corsário e Pituaçu;
13 – Patamares;
14 – Jaguaribe;
15 – Piatã;
16 – Placaford;
17 – Itapuã.

Os nomes às vezes correspondem


a bairros que adentram mais à
terra, como a Boca do Rio, ou a
simples franjas litorâneas, como
Piatã. Certos vazios toponímicos
não são acidentais; possuem
nomes, mas para poucas pessoas,
até porque geralmente não são
áreas visitadas; em nosso caso,
costões rochosos. Edição do autor
a partir de imagens do Google
Earth.

15
Figura 2 – Península de Itapagipe. Em itálico, toponímia
antiga. 1 – Plataforma; 2 – Enseada do Cabrito; 3 –
Cabrito; 4 – Cabeceiras da Ponte; 5 – Enseada dos
Tainheiros; 6 – Ilha da Joana/ Ilha de Joanes; 7 – Porto
dos Tainheiros (hoje aterrado); 8 – Porto dos Mastros
(quase inteiramente aterrado); 9 – Ribeira; 10 – Penha;
11 – Praia do Bogari; 12 – Istmo do Papagaio (hoje
aterrado); 13 – Porto do Bonfim; 14 – Porto da Lenha; 15
– Alto do Bonfim/ Colina do Bonfim/ Igreja do Bonfim; 16
– Pedra Furada; 17 – Ponta de Humaitá/ Igreja de Nossa
Senhora de Montserrate/ 18 – Largo da Boa Viagem/
Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem; 19 –
Hipódromo São Salvador (hoje... Vila Policial Militar do
Bonfim); 20 – Largo de Roma; 21 – Massaranduba; 22 –
Tanque da Conceição/ Largo do Tanque. Edição do
autor a partir de imagens do Google Earth.

16
Figura 3 – Área da Calçada. 1 – Estação de Trem da Calçada; 2 – Noviciado/
Colégio dos Órfãos de São Joaquim; 3 – Forte da Jequitaia; 4 – Cais de Água
de Meninos (hoje aterrado); 5 – Solar Bandeira; 6 – Ladeira da Água Brusca.

Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.

17
Figura 4 – Ao longo da Av. Lafayete Coutinho (Contorno). 1 – Cais das
Pedreiras; 2 – Cais da Jaqueira (hoje aterrada); 3 – Solar do Unhão; 4 –
Forte de São Paulo da Gamboa; 5 – Gamboa; 6 – Passeio Público; 7 – Forte
de São Pedro; 8 – Campo Grande (do Forte de São Pedro).

Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.

18
Figura 5 – Região da Barra e adjacências. 1 – Porto da Vitória; 2 – Outeiro de Santo Antônio/ Igreja de Santo Antônio da Barra; 3 – Forte de São Diogo; 4
– Largo da Barra; 5 – Porto da Barra; Forte de Santa Maria; 7 – Morro do Gavazza; 8 – Forte de Santo Antônio da Barra/ Farol da Barra/ Largo do Farol/
Ponta de Santo Antônio; 9 – atual Morro do Cristo; 10 – Morro Ipiranga; 11 – Morro do Gato; 12 - antigo Morro do Cristo. Edição do autor a partir de
imagens do Google Earth.

19
Figura 6 – Ondina e adjacências. 1 – Foz do rio Camarão; 2 – Alto de São Lázaro/ Outeiro de São Lázaro/
Igreja de São Lázaro; 3 – Praia de Areia Preta/ Praia de Ondina; 4 – Loteamento Cidade Balneária de
Ondina; 5 – Sede da Fazenda Areia Preta; 6 – Praia do Canzuarte/ Canzuá; 7 – Morro da Sereia; 8 – Vila
Matos. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.

20
Figura 7 – Rio Vermelho. 1 – Praia da Paciência; 2 – Igreja de São Gonçalo/ Alto de São Gonçalo/ Alto do Papagaio; 3 – Praia de Sant´Anna/ Largo de
Sant´Anna; 4 – Praia da Mariquita/ Foz do Rio Lucaia; 5 – Praça Colombo; 6 – Largo da Mariquita; 7 – Morro do Conselho; 8 – Fonte do Boi; 9 - Morro do
Menino Jesus; 10 – Hipódromo/ Parque Cruz Aguiar; 11 – Rio Camurugipe/ Rio Lucaia. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.

21
Figura 8 – Amaralina e Pituba. 1 – Armação da Lagoa/ Capela de Nossa Senhora dos Mares; 2 –
Ubarana; 3 – Ponta de Itapuãzinho (estes três tópicos abrangem e são chamadas de Amaralina); 4 –
Porto da Pituba; 5 – atual Igreja de Nossa Senhora da Luz; 6 – Praia do Chega-Negro; 7 – Foz do rio
Chega-Negro/ Foz do rio Camurugipe; 8 – Jardim de Allah. Edição do autor a partir de imagens do
Google Earth.

22
Figura 9 – Do Jardim de Allah à Boca do Rio. 1 – Armação do Saraiva/ Saraiva/ Armação; 2 – Lagoa Água do Xaréu; 3 – Sede da fazenda
do Visconde do Rio Vermelho/ Aeroclube (demolido); 4 – Armação do Gregório/ Carimbamba/ Praia da Boca d Rio; 5 – Outeiro de São
Francisco/ Alto de São Francisco; 6 - Fazenda Bolandeira/ Bolandeira/ Estação da Embasa (da Bolandeira); 7 – Boca do Rio/ Foz do Rio
Santo Antônio das Pedras/ Foz do Rio das Pedras. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.

23
Figura 10 – Da foz do rio Jaguaribe ao Farol de Itapuã. 1 – Foz do rio Jaguaribe; 2 – Praia de Piatã; 3 – Ponta de São Tomé; 4 – Praia de Placafor
(talvez aí estivesse o Porto de Baixo); 5 – Uma das possíveis localizações do Porto de Baixo; 6 – Porto do Meio; 7 – Porto de Cima/ Canal; 8 – Farol de
Itapuã (de 5 a 8 correspondem à Praia de Itapuã). 9 – Lagoa do Abaeté. Edição do autor a partir de imagens do Google Earth.

24
um passeio imaginário

Imaginemos uma jornada por navio rumo a Salvador, vindo do norte, aproximando-se à
costa pouco antes de Itapuã. Não seria inexata, caso nosso olhar não fosse mais aguçado
que o de um tripulante real, e nem avançasse algumas centenas de metros, atravessando
inclusive alguns eventuais obstáculos.

Antes de chegar à costa talvez visse a paradoxal, mesmo onírica, imagem de homens, de
tez escura e grandes chapéus brancos, pairando sobre as águas. Sentados ou em pé, ao
lado de velas igualmente alvas, sobre os paus de uma singular balsa, a jangada, mais usual
nas praias do norte.

Do continente, a primeira coisa que veríamos seriam os lençóis de Itapuã, grandes dunas
que caíam como cortinas alvíssimas até a praia por quilômetros a fio. Antes, visíveis em
Abrantes e Arembepe. Depois, na própria Itapuã. E seguindo até a altura da Pituba,
intercalada por algumas faixas verdes de vegetação rasteira, gramíneas, o que alguém
chamou de “infindo deserto de areia”. Nas orlas da areia branca, a restinga, com suas folhas
rentes ao chão, cactos e bromélias. Recuada, a forma escura de árvores com sua copa
compacta e cheia. Aqui e ali licuris, murtas e cajueiros, formando densa e umbrosa
cobertura. Nas baixadas recuadas, na sombra das colinas e dunas, pequenos arroios e o
abrigo fresco dessa mata ciliar. Lagos e lagunas de diversos tamanhos, alguns escuros,
perlinos, ainda mais no contraste com a brancura da areia, alumbrando os olhos.
Acompanhando, coqueiros, esparsos ou em grupos maiores, como na própria Itapuã ou no
Jardim de Allah.

A depender do avançado no século, pontuaria e marcaria o que será Itapuã, dali em diante,
uma torre, assentada sobre rochas duras, um farol. Ao redor, coqueiros. Muitos coqueiros.

Se chegássemos no inverno, estariam pequenas lanchas caçando baleias, apenas para,


uma vez capturadas, arrastá-las à praia. Cações enxameariam as águas, atraídos pelo
sangue abundante, buscando seu quinhão. Haveria algazarra na areia, gente com cutelos e
outras lâminas, esquartejando o animal, arrancando pedaços de sua carne, retirando-a ali
mesmo, ensanguentada, mediante pagamento. Ou moqueando-a ao lado, para, em gamelas
carregadas sobre a cabeça, revendê-las mais longe. Os ossos seriam deixados ali mesmo,
ao relento, com a água a lamber-lhes os restos, e urubus, antes pousados nas folhas dos
coqueirais, descendo ávidos para seu repasto. Os grandes nacos de gordura, agarrados a
partes de carne, seriam levados para um pequeno galpão e ali mesmo, em tachos
metálicos, sob grande ruído, calor abafado e mescla inextricável de maus odores – do suor,
do sangue e da carne, da gordura derretida e do óleo que dali saía, da sujeira dos
caldeirões e do barracão, e da fumaça da lenha que alimentava o engenho de frigir.

Se chegássemos à noite, veríamos ou ali, ou mais adiante, a chaminé fumegando e, na


escuridão densa da terra, em contraste com um céu azul-marinho, polvilhado de estrelas e
nebulosas, a chama acesa do engenho atuando até as primeiras horas da noite.

Isso caso fosse inverno. Se nossa visita se desse no verão, seria outro cenário. Em algum
canto do mar aberto veríamos logo pela manhã uma multidão de homens negros (mais
negros ainda pelo trabalho ao sol e pelo contraste com a areia e com o esplendor da água)
de chapéus largos, trabalhando em uníssono, cadenciado por uma melopeia repetitiva, no
mar e na terra, puxando uma longa rede. À margem, suas mulheres e filhas esperando para
moquear o pescado.

25
Se fosse mais cedo, uma ou outra canoa, próxima à praia, ou algumas jangadas. Talvez
percorrendo a linha da costa trazendo ou levando carga. Um ou outro pescador na foz de
um dos rios, como o Jaguaribe ou o Santo Antônio das Pedras, lançando sua rede para o
pequeno pescado.

Nas silenciosas noites, na terra escura, deitada sob a amplidão dos astros, uma miríade de
lumes nos recifes, homens e mulheres, com seus filhos, com fachos buscando marisco. Em
noites de lua cheia, crianças brincando na areia da praia.

Ao longo desse litoral rústico, pequenas cabanas. Precárias, feitas ou inteiramente de


material retirado do onipresente coqueiro, ou de paredes toscas de pau-a-pique, mas por
igual cobertas por folhas de coqueiro. O viajante estrangeiro via ali a moradia dos
trabalhadores do mar, num vínculo telúrico com seu meio. Provavelmente não era o caso.
Morariam mais adentro, próximos uns dos outros. Na maioria das vezes, seria o local de
guarda dos seus instrumentos, de sua preciosa rede, e cobertas simples para as canoas e
jangadas puxadas do mar, ao abrigo do mau tempo.

Aqui e ali, bois apascentando à margem de um dos rios. Em algum momento, pelo cordão
litorâneo, a pequena crista de dunas que se seguia imediatamente à praia, onde começava
a vegetação, lentamente caminhando em direção à cidade, onde serão fatalmente abatidos.
Mais provavelmente burros trazendo e levando carga nos caçuás. Cocos quase com
certeza. Se fosse nas primeiras horas da manhã, antes mesmo do sol despontar,
caminhariam mulheres, com balaios à cabeça, na primeira parte de uma longa viagem até o
coração mesmo da cidade.

Talvez visse na altura da Boca do Rio uma casa senhorial, sede de fazenda, entre o mar
bravo e as dunas. Quem sabe já seria de Manuel Ignácio da Cunha Menezes, o Visconde do
Rio Vermelho, como por certo era na segunda década do oitocentos, arrendatário daquelas
terras, e quem de fato ganhava com o trabalho dos pescadores nas armações de pescado
ao redor.

Em Amaralina, começariam os costões rochosos, elevações, com pedra dura na base, e


grama rala no topo, sem que árvore alguma as colonizasse, varridas pelos fortes ventos
oceânicos. No primeiro desses morros, a capelinha de Nossa Senhora dos Mares da Lagoa,
e a sede de fazenda que seria justamente chamada de Amaralina, por José Alvares do
Amaral. Já veríamos a tal lagoa, um tanque formado pelas águas captadas das encostas,
para alimentar um engenho, obra de Dom Domingos da Gama, Marquês de Nisa. Também
se faria aquela pesca do xaréu, em armação tributária ao eventual senhor daquelas terras,
sobre a colina.

Pescadores haveria espalhados por toda essa costa, em comunidades maiores ou menores:
em Itapuã, algo na Ponta de São Tomé, de volta na foz do Rio das Pedras, nas armações
da Boca do Rio e Armação, imediatamente ao sul da atual foz do rio Camurugipe e, logo
abaixo, no porto natural da Pituba, retornando na Ponta de Itapuãzinho, em Amaralina.
Depois, na atual foz do Lucaia (antigamente, a foz do rio Camurugipe, que desviava na
altura do Iguatemi), chamada de Mariquita, e depois em Sant´Anna e algo na Paciência.
Passando pelo Morro da Sereia, outro costão rochoso, na pequena praia do Canzuá ou
Canzuarte, para depois aparecerem na Areia Preta (hoje Ondina) e no Camarão. Alguns
estariam nas bandas do atual Morro do Cristo e, enfim, no Porto da Barra.

O Morro do Conselho faz uma curva e, protegido, por meandros arenosos deságua o rio
Camurugipe. Canoas e jangadas encostadas na areia e, um pouco mais atrás, a mata nas
várzeas confusas em que se entremesclavam as águas daquele rio e do Lucaia, vindo das
bandas do Dique.

26
Mais adiante, no outeiro antes conhecido por Alto de São Gonçalo, ruínas definhavam no
meio das touceiras e das bromélias, raízes fincadas em um lento e fatal abraço. Era a Igreja
de São Gonçalo, razão de festas do orago, santo casamenteiro, em tempos idos. O vento
corria pelo ermo. Perto, casas simples, como as que apareciam pouco a pouco pela
longínqua Estrada do Rio Vermelho, futura Federação, e nas colinas seguintes.

Passando pela praia da Paciência e pelo Morro da Sereia, os outeiros caíam rente ao mar,
com uma fina faixa de praia, caminho percorrido nas marés baixas. No vale de Ondina a
seguir, apenas alguns anos depois deste nosso passeio, crescerão pastos, capim para
alimentar principalmente os cavalos, os burros e as mulas da cidade.

Acima, dominando a região, a pequena Igreja do São Lázaro e abaixo, onde corria o rio
Camarão, estava uma cordoaria, um simples telheiro, onde homens e mulheres trabalhavam
desfiando as folhas de caraguatá, e confeccionando fios e cabos.

Na face da Barra voltada para o mar, um ambiente selvagem, de morrotes de areia,


gramíneas e alguns coqueiros, curvados pelo vento batido. Na extremidade, no cabo de
Santo Antônio, o forte homônimo, já com seu farol. Não o atual. Solitário, fustigado por vento
e ondas, nas rochas vivas abaixo do promontório arenoso.

Próximo, construções à beira-mar. Alguns galpões, talvez de Contratos de baleias. De


algum canto próximo retiravam-se pedras, embarcadas no porto rumo à cidade. Dos recifes
de pedra dura, ao lado do Farol, também se extraíam pedras. Mas, de qualquer modo, por
perto, somente casas simples de pescadores, de taipa e adobe.

O forte de Santa Maria e do outro lado da pequena praia do Porto da Barra, o forte de São
Diogo, marcavam as pequenas enseadas, onde a praia ascendia num talude verde até a
altura das casas, a maioria de porta e janela, térreas e de duas águas. Ainda não havia nem
as casas mais vistosas, tampouco os sobrados e mesmo palacetes. No Porto da Barra,
jangadas e canoas na areia, mais coqueiros espalhados, ao fundo e acima.

No mesmo outeiro onde estava o Forte de São Diogo, no seu cume, despontava a Igreja de
Santo Antônio, branca, orlada de palmeiras, no cenário verdejante. Ainda não havia o
caminho que seria a Ladeira da Barra. Corria à meia encosta um caminho, orlada por uma
cerca viva, talvez de cítricos como era habitual na cidade.

A costa faz um pequeno recuo, e a Montanha se eleva a partir dali, bruscamente. Pois
nessa estreita faixa muito acontecia. Pedra se extraía de um canto. Baleias eram levadas e
destrinchadas em alguma construção no sopé da encosta. Um outro estrangeiro arriscava
banhar-se na angra, enquanto os escravos das roças acima desciam para recolher a água
de fonte que dali minava, e para viver suas aventuras amorosas. Em breve refulgiria acima o
muro branco do Cemitério dos Ingleses.

Na parte inferior da Vitória havia densas touceiras de bambu, balançando suavemente à


brisa, e às marolas de águas azul-turquesa. Cresciam árvores frondosas na sua cumeada e
encostas rente ao mar, e talvez nesta íngreme queda tivesse algo de vegetação nativa.
Porque nas roças e fazendas acima as copas revelavam uma flora tropical criada pelo
Império Lusitano, no transplante de espécime entre os continentes. Mangueiras, jaqueiras,
tamarindeiros, junto com oitizeiros e goiabeiras. Menos expressivos, mas olorosos, as
árvores de espinho, os cítricos, em especial as laranjeiras e os limoeiros. Uma dessas roças
depois foi transformada em Passeio Público, por exemplo.

27
Ao lado sul da mesma, o Forte de São Pedro. Hoje cercado pela cidade, antes postava-se
em uma estreita língua de terra, ladeada por duas ribanceiras, uma caindo ao mar, outra, ao
Dique Grande, grande lago interno, serpenteante, obra de engenharia defensiva portuguesa.

No sopé da encosta, ali mesmo, uma gamboa de pescar, e um pequeno agrupamento de


pescadores, em armação, que tirara dali seu nome: Gamboa. Acompanhado da bateria de
São Paulo da Gamboa, complementar à sentinela de São Pedro, acima. Logo depois
aparecia vistoso solar à beira-mar entre árvores, ao som delicado da água corrente vinda da
fonte do Gabriel enchendo um pequeno tanque. Água também minava da fonte de Santa
Luzia, de propriedades miraculosas.

Dali, observamos uma sucessão de pequenos portos e alguns trapiches no percurso da


Jaqueira, da Pedreira e da Preguiça, sob uma flora exuberante que incluía, além do que foi
dito, bananeiras. Muitas bananeiras. Por todos os lados, em recantos entre os edifícios,
bananeiras. Nesse verte tudo se confundia. Mesclavam-se os pomares, os jardins, as
hortas, e a vegetação que cresce por sua própria conta, nem por isso menos útil à
população local. Os limites eram imprecisos, cercas simples ou mesmo cercas-vivas, de
mimosas ou árvores de espinho, mal visíveis entre as copas maiores. Espalhados alguns
socalcos. Uns tantos, com um desenho mais preciso, intencionado, para seus jardins.

As casas e igrejas despontavam nessa tapeçaria verde irisada como pequenas pedras
brancas, brilhando ao sol, coroadas pelos telhados cerâmicos. Não coloridas, como seria
depois, e como passou a se imaginar a cidade desde sempre: brancas. Nas paredes,
avançavam varandas de madeira treliçada, dos pés à cabeça, de feição mourisca.
Aparência que se modificava lentamente, à medida em que o vidro ia se incorporando aos
solares mais prósperos e novos. Os sobrados da Cidade Baixa, dos ricos comerciantes,
ainda mantinham as antigas esquadrias. Por mais que se abrissem aquelas varandas, nas
casas alcantiladas, suspensas por cachorros de madeira por sobre o vazio, ainda assim o
faziam entremeada em rica vegetação, ora espontânea, ora cultivada nos quintais e roças
das propriedades. Se os prédios seguiam uma rua, um ao lado do outro, para quem via a
partir do mar, o fundo das casas, parecia-lhes como edifícios brancos despontando na
massa indefinida e variada do verde.

Acima, em pontos elevados, e elas mesmas elevadas sobre as demais, pontuavam as torres
sineiras das igrejas, em cristas de edifícios que acompanhavam a crista das colinas. Destas,
digna de nota é a Sé, não só pelo porte majestoso, como pelo seu adro abrir como um
belvedere para o poente, onde depois cresceriam palmeiras imperiais.

Abaixo, píeres e atividade portuária. A famosa azáfama do porto. Os estaleiros reparando e


construindo navios, calafetando os cascos, instalando os cordames. Ou fazendo a aguada
nas fontes. Docas sem fim avançavam sobre o mar, sobre uma miríade de palafitas.

Nas águas calmas da baía, toda sorte de embarcações. Galeotas, patachos, fragatas,
brigues, bergantins, sumacas, saveiros de carga e de pesca, lanchas rabos de peixe,
canoas e jangadas, barcaças, avisos (navios pequenos de grande velocidade, que traziam
ordens da metrópole e levavam respostas) e alvarengas (que faziam a baldeação do
conteúdo dos barcos maiores para o porto).

Para a maioria dos visitantes, aqui era uma espécie de concentração da atenção. Onde
aportavam, com os olhos repletos das imagens da ampla baía, da prosperidade comercial e
da variedade de embarcações, das ilhas verdes, das encostas luxuriantes, da cidade
disposta em “anfiteatro”, em elevação. Inevitavelmente desembarcando ali, o renovado
fascínio visual dado pelo colorido dos tipos humanos e das mercadorias se mesclava com a
repugnância pelo odor de putrefação dos legumes, carnes e demais produtos, somado ao
da própria atividade frenética das pessoas sob o sol dos trópicos, e dos escravos recém-

28
chegados, sujos e enfermos, sendo lavados com água do mar ali mesmo, e, por fim, o das
excreções humanas adjacentes, nas ruas e nas águas do porto, escoadouro natural das
águas servidas. Agravado pelo calor das ruas estreitas e de uma região sem possibilidade
de ventilação natural, de receber os alísios do quadrante leste. O caos sensorial se instalava
com a balbúrdia, o alarido, típicos de um porto, das feiras e dos mercados, junto com o
canto dos escravos, que assim cadenciavam seu transporte de carga, na cabeça ou, quando
junto, em longas varas sobre os ombros. E um outro contraste de ordem curiosa, saindo do
espetáculo deslumbrante e impoluto das águas, do céu, das ilhas e da cidade em anfiteatro,
com as cenas deprimentes da escravidão. Para depois percorrerem as íngremes ladeiras,
rumo à Cidade Alta, carregados por escravos de ganho (ou mesmo forros), nas cadeiras de
arruar ou, se chegassem décadas antes, em redes.

Desenvolvia-se naquela base da Montanha uma estreita faixa de terra. Em alguns pontos,
os edifícios, como trapiches, se ausentavam pela exiguidade, e uma única rua corria rente
ao mar. Tão importante era a localização ali no porto, tão bem-vinda, que nas poucas
ladeiras que subiam pelo flanco da Montanha, sobrados elevados também se apinhavam,
não raro desabando quando a terra deslizava, por ocasião das chuvas.

Os grandes edifícios dos trapiches, como o do Julião, com seus atracadouros, seguiam até
certo ponto, até a rua da Praia revelar-se, bordejando o mar.

Acima, em uma ribanceira, o Forte de Santo Antônio Além do Carmo. Rasgava-se ao lado
um talvegue, que porventura desaguava abaixo, em uma pequena enseada, com canoas e
barcos menores, onde crescia o persistente manguezal. Ali subiria a Ladeira da Água
Brusca, para os espelhos d´água acima, provavelmente um tanque artificial em tempos idos,
então charcos de águas estagnadas.

Depois, afagado pelas águas do mar usualmente dóceis, o Forte de São Alberto, ou da
Lagartixa. E mais adiante, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, destacada da Rua da
Praia e avançando sobre o mar.

O vento corria rente às colinas, conduzidos pelas fendas na Montanha, pegando


eventualmente de surpresa os saveiristas que iam do Porto à Ribeira, e da Ribeira ao Porto.

Onde a faixa de terra começava a alargar-se, erguia-se o Noviciado dos Jesuítas, hoje Casa
Pia e Colégio dos Órfãos. Atrás, a Montanha cedia, na passagem do Largo do Tanque.

Aquele era um terreno alagadiço, de difícil escoamento das águas. O istmo arenoso se
estreitava nas marés grandes. Ainda não existia a longa Calçada do Bonfim. O solo da
Península era arenoso, e a baixa declividade, mais os sucessivos relatos dos problemas de
aterro, consolidação do solo construído, do lençol freático elevado, e dos problemas de
drenagem, formavam algo como um banhado, com vegetação mais baixa e rarefeita do que
a dos manguezais, entremeados por cursos d´água indefinidos, e águas estagnadas,
especialmente voltados para a Enseada dos Tainheiros.

Na estreita praia voltada para a baía, na mansa ondulação do mar, de vez em quando
vinham carcaças nauseabundas de reses abatidas.

À beira-mar, roças e sítios seguiam, com suas casas de vivenda, e benfeitorias tais como
alambiques, usuais daí em diante. Como ocorria na roça Canta-Gallo, no lugar homônimo.
Como, antes, ao lado do Noviciado, a fazenda de Maria Violante Telles de Menezes e
Mattos, onde cresciam laranjeiras e mangueiras, coqueiros e tamareiras, todas entrelaçadas
com trepadeiras, beija-flores e borboletas a faiscar entre as árvores. Ou, mais adiante, a
roça de um professor catedrático em Retórica de nome Ferreira, mais simples, porém
igualmente ornada com suas laranjeiras, mangueiras e coqueiros, à beira-mar. Ou de

29
Fanchette, relojoeiro francês que se quedará na Bahia, após a passagem da esquadra
liderada por Jerome Bonaparte, casado com uma baiana, morando próximo à Igreja do
Bonfim, com uma varanda debruçada sobre o mar. Em outro momento se falará de casas à
beira-mar, em fileira. Mas não agora. Agora são roças mais espalhadas, ainda não loteadas
e subdivididas. Porém o seu caminho, correndo paralelo à costa, poucas dezenas de metros
adentro, diga-se, já era arborizado.

Nessa paisagem quase rente à água, com poucas elevações, as poucas edificações
marcantes ganhavam maior importância.

Primeiro, a capela e hospício de Nossa Senhora da Boa Viagem. Passadas algumas roças e
seus coqueiros, cajueiros, mangueiras, no cimo de uma pequena colina, o pequeno Forte de
São Felipe, branco.

A colina descia e a terra se prolongava em uma língua e, no seu extremo, a ermida de


Montserrate e o Hospício dos Beneditinos.

A costa ali recortava-se, e arrancavam colinas. Na sua base estavam pescadores, na Pedra
Furada, e em certo momento se via um Contrato de baleias. Acima, vigiava a construção
solitária da Igreja do Bonfim. Branca como as demais construções da cidade, via-se de
longe, única no ponto culminante de um terreno sumamente plano.

Aquela pequena crista de colinas criava seus vales, e ali se cultivava, por certo por uma
composição do solo mais propícia, como na chácara de Antonio José Correia, com
laranjeiras e coqueiros, dentre outras árvores frutíferas, além de roseiras e cafezais.

Dobrando a colina do Bonfim, o Porto da Lenha e do Bonfim. Em dias comuns, os saveiros,


canoas e embarcações menores traziam mercadorias das redondezas e Recôncavo, em
feiras que sustentavam os moradores da península. Também ali as sempre presentes
ganhadeiras, com sua gamela à cabeça e pés velozes seguiam por todos os caminhos,
formigas animadas por toda a cidade. Certos dias do ano eram festivos. E o mar se
coalhava de velas brancas, rumo a Candeias, por exemplo, para prestar homenagens a
Nossa Senhora das Candeias, ou aportando ali, em função ora do Senhor do Bonfim, ora de
São Gonçalo do Amarante, ora de Nossa Senhora da Guia. Tudo era movimento, então,
com os barcos aportando ou na Boa Viagem, ou ali no sopé da colina, e mais gente pela
região. Os donos daquelas casas de campo e roças, passando seu verão, com a família
ampliada, os agregados, e eventuais convidados, amigos da família que tinham acesso à
sua intimidade, e passariam alguns dias, em particular naqueles de maior efusão. Nas
missas na Igreja, nas efusões do arraial montado defronte, no congraçamento nas roças
familiares, tocando o violão, cantando modinhas e dançando o lundu, assim como juntos à
mesa.

Ao longo do mar, alambiques continuavam, em meio a roças e uma ocupação que


paulatinamente se adensava, e arriscava, ou arriscaria, suas primeiras vendas e sobrados
de dois pisos, ainda que estreitos. Casas que cresciam em torno do Bonfim e a partir do
Largo do Papagaio, naquele então um outro istmo, que isolava o que se chamava de
Itapagipe, hoje as localidades da Penha e da Ribeira.

À Penha, a Igreja de Nossa Senhora da Penha e o palacete onde se recolheu para viver
seus últimos anos Dom José Botelho de Mattos, destacava-se em meio às estreitas e
térreas casas. Naquela ponta, já na curva, estava de sentinela o Forte de São Bartolomeu
da Passagem, com uma de suas pontas imersa no raso do mar, de onde se avistava a
colina de Plataforma, a boca de duas enseadas, com suas ilhas verdejantes, como a de
Santa Luzia e da Joana, e plantações, e ao norte do seu interior, a saída do rio Pirajá.

30
Nas primeiras horas do dia podemos ver mulheres e crianças catando mariscos na planície
lodosa defronte à praia da Ribeira e de Plataforma. As canoas e jangadas percorrendo a
enseada, com suas redes. Ou, na curva da Ribeira, entrando na enseada, a atividade febril
dos estaleiros, construindo desde pequenas embarcações até as naus maiores da marinha
mercante, incluindo as alvarengas do porto.

Na orla da enseada e no topo das colinas, umas poucas sedes de fazendas, muitas de
canas, com seus engenhos, girando movidos pelas águas do rio Pirajá e seus afluentes. Em
recantos, os manguezais. Pescadores percorriam o espelho d´água tranqüilo e, batendo
com os remos na água, criavam o coruscante espetáculo das tainhas pulando para suas
canoas. Dali em diante, o cenário não era tão distinto, com suas casas térreas e capelas ou
ermidas, como a de Nossa Senhora de Escada ou, mais adiante, na baía de Aratu, a de São
Tomé.

Se estivéssemos navegando mais à noite, ou até madrugada adentro, poderíamos escutar


nesses meandros imprecisos da contracosta da península o batuque dos batuques. Isto é, o
som percussivo das festas e celebrações dos negros, africanos e brasileiros, escravos e
livres, em suas brincadeiras, rituais religiosos ou insurreições, e talvez tudo isto ao mesmo
tempo. Ali, como no informe e vasto cinturão verde da cidade, pairava a sombra da rebelião.

Em linhas muito gerais, a Baía de Todos os Santos era um misto de mangues, de


lagamares, de pequenas praias de areia branca. Morros suaves alternavam-se, abrindo
novas paisagens de rios e angras, despontando uma igreja discreta à beira-mar, alguma
casa perdida em meio ao verde, pequenas vilas, eventuais sedes de fazenda ou casas-
grandes mais garbosas, com seu cais de pedra, aléias de palmeiras imperiais e alamedas
de árvores frutíferas.

Na ponta de Itaparica, na vila e nas praias imediatamente ao sul, galpões ocasionais, não
grandes, onde as baleias caçadas, no mar interior ou no mar aberto próximo, eram
derretidas. As cenas do abate à praia, como vimos em Itapuã, se repetiam, praticamente
idênticas, em algumas praias do mar aberto de Salvador, na Pedra Furada na Península de
Itapagipe, mas majoritariamente nessa costa de Itaparica.

A ilha se distinguia por sua longa barreira de recifes, com seu azul luminoso, e as
piaçaveiras, cada vez mais frequentes, à medida que seguíssemos rumo ao sul da
Província. Aqueles recifes detêm as águas que, de outra maneira, invadiriam as terras
plantadas à beira-mar, com seus vários tipos de palmeiras. E eis que vemos pessoas ou
recolhendo rodolitos soltos, ou rompendo os corais, para as caieiras próximas, queimando-
os em fornos ou estruturas mais simples.

Visível, do outro lado da barra da baía, a cidade de Salvador, e o promontório de Santo


Antônio, com seu solitário farol.

Estes lugares, a cavaleiro ou à beira-mar, no salgado, começavam a ser frequentados, e já


começavam, de fato, com outras intenções. Para um tímido banho nas águas do mar, nas
primeiras horas do dia, ou para a contemplação daquela paisagem risonha da baía, com
seus barcos nos portos, as vilas e as palmeiras, ou, mais rara, do rumoroso mar aberto. Ou
ainda, quem sabe, da própria faina do mar, do esforço dedicado dos canoeiros, dos
jangadeiros, dos baleeiros, de quem lançava suas redes nos arrecifes ou as puxava em
grandes grupos

31
Figura 11 – Mappa do Reconcavo da Bahia de Todos os Santos (1836), de Von Busch. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. Na região da atual Itapuã, a indicação dos Lençóis, e de uma
série de lagos e lagunas, que se repetiam, em menor medida, nas áreas de dunas ao longo
da costa.

32
Figura 12 – Recém-inaugurado Parque Jardim dos Namorados, 1969. Fonte: AHM-FGM. As
duas margens da foz atual do rio Camurugipe estava composta por dunas de areias brancas.
As dunas se estendiam, ainda, para nordeste, no atual bairro de Armação, e a sudoeste, pela
Pituba.

Figura 13 – Outeiro onde se situa a capela de Nossa Senhora dos Mares, sem data. Fonte:
Instituto Feminino da Bahia. Surpreende o quanto aqueles costões rochosos estão despidos de
vegetação de maior porte, expostos ao vento batido.

33
Figura 14 – Rio Vermelho (1870-80),
de Guilherme Gaensly. Fonte:
FERREZ, 1988. Atrás, o Morro do
Conselho, limpo de qualquer
vegetação de maior porte. Os
coqueiros ainda não se haviam
insalado em seus flancos. Apenas
no sopé, pela ação humana e pela
proteção dos ventos oceânicos.

Figura 15 – Morro da Sereia, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. No seu sopé, visto
em segundo plano, era o antigo Canzuarte, ou Canzuá. Note-se que havia como fazer um
percurso à beira-mar, contornando o outeiro, um possível trajeto para o Rio Vermelho.

34
Figura 16 – Vista do mesmo Morro da Sereia, a partir da então nova Av. Oceânica, sem data.
Fonte: CEAB.

Figura 17 – Uma das colinas onde se instalaram os hotéis em Ondina. Fonte: Instituto Feminino
da Bahia. Não apenas eram tais colinas desprovidas de vegetação, como também de
ocupação humana relevante, sendo recorrente a presença de casas mais rústicas de
pescadores.

35
Figura 18 – Cristo Redentôr – Bahia, sem data. Fonte: CEAB. Tirada a partir do atual Morro do
Cristo, em segundo plano está o outeiro onde situava-se antes essa estátua. Atrás, a colina
onde se instalou o Othon Palace Hotel. A única elevação com árvores é a Fazenda Areia Preta.

36
Figura 19 – Monte Cristo Redemptor Bahia, cartão-postal da Litho-Typ. Joaquim Ribeiro & Cia.,
de 1928, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. Aqui aparecem dois “Morro do
Cristo”, o antigo e o novo, com sua pequena enseada.

Figura 20 – Av. Oceânica, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. À esquerda, o Morro
Ipiranga, cortado para a abertura da via. À esquerda, a descida à enseada da foto anterior, com
cabanas de pescadores próximas à nova pista.

37
Figura 21 – Caminho da Av. Oceânica, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. O corte
feito no Morro do Ipiranga secciona um promontório seu, que se tornou “autônomo”. Esta
pertence a fotos desse acervo onde, curiosamente, a colina aparece inteiramente desbastada de
coqueiros, o que é anômalo.

Figura 22 – Av. Oceânica, Quintas da Barra e, ao fundo, o Farol da Barra, sem data. Fonte:
Instituto Feminino da Bahia. O Morro do Gavazza, embora não tão desnudo como a maioria
daqueles vistos até agora, tampouco aparece com cobertura significativa. A partir daqui muda o
sentido da costa da cidade, entramos na Baía de Todos os Santos, e em vez de colinas
específicas, temos o flanco da Montanha, partindo do Largo da Barra.

38
Figura 23 – Fort St. Antonio of Bahia (1825-6), de Charles Landseer. Fonte: Brasiliana
Iconografica. A feição dos costões rochosos, tal como demonstrados nas fotos anteriores, não
parece ser diferente daquela capturada neste croqui oitocentista.

Figura 24 – Brasil, Baia de Todos os Santos no Cabo de S. Antônio (Brazilie, Allerheiligen baai
in kaap St. Antonio, 1807-10), Q.M.R.Ver Huell. Fonte: REBOUÇAS, 2016.
39
Figura 25 – A Baía da Antiga Capital do Brasil (La Baye de Ancienne Capitale du Brésil, 1782), de Albert Dufourck. Fonte: REIS FILHO, 2001.

40
1
A Formação do Litoral

A paisagem descrita no passeio é um retrato feito a partir de depoimentos de épocas


distintas, ainda que próximas, e algumas inferências do que deveria ser uma transformação
gradual de um ponto a outro. Como todo retrato, por mais que seja animado com cenas do
cotidiano, não revela as forças que pulsam por trás da cena. Há uma inércia da forma, dos
elementos da paisagem, essa casca na superfície, entretanto existem latentes as forças que
modelaram a situação e que persistiam no Oitocentos, ou minguantes ou em ascensão.

Pois o litoral em geral, e a praia em particular, não eram vazios totais, não em uma
colonização que começou por arranhar as costas. Nem vazios simbólicos, nem sociológicos,
quanto mais econômicos. Pode-se acusar alguns lugares de serem ermos. No entanto a
própria cidade não era grande. Até o final do século XIX um bairro hoje central como Barris
foi lugar de roças e chácaras. Ou seja, a rarefação dos costões rochosos e dunas não era
sintomática de um desinteresse ou abandono.

Dai tentarmos identificar as funções que tais áreas desempenhavam no metabolismo da


cidade. Quais os elementos físicos, constitutivos, das mesmas. Quais as forças que agiam
moldando-as, e suas linhas gerais no Oitocentos. Explicando assim os elementos
encontrados naquele passeio imaginário, ao dissecar analiticamente o que existia de modo
unitário e simultâneo.

1.1. O Litoral Primitivo


As longas praias de areias brancas da orla atlântica, que penetram em grandes dunas e se
espraiam a nordeste a partir da Pituba, não mereceram grande atenção nos primeiros
séculos da cidade. O que nos soa hoje como paradisíaco, entendia-se sob o espectro da
esterilidade. Ainda mais em contraste com a tremenda abundância das águas da baía. Não
apenas era meio menos denso ecologicamente, como de registros mais raros e sucintos.

Existem escassos registros coloniais da restinga e sua vegetação rasteira, como o


mandacaru. James Wetherell também o viu em 1848, junto com orquídeas, mas com uma
clave bastante diferente.1 Naquelas areias cresciam bromeliáceas, como os caraguatás,
designação geral de várias espécies que não deve ser entendida nos documentos aqui
mencionados sob o rigor botânico.2

Crescia uma vegetação na borda marítima, nas terras mais interiores, um tanto arenosas
algumas, chamadas “terras fracas”, algumas de árvores verdadeiramente frondosas, e
mesmo de madeira de lei. Eram araçazeiros, mangabeiras, muricis e mucuris, cajazeiras e
jenipapeiros, camaçaris, entre outros, mesm a maçaranduba, crescendo ao longo do mar. E
os cajueiros, de que “há tantos ao longo do mar e na vista dele”3, em areias e solos
arenosos.

1
WETHERELL, James. Brasil – Apontamentos sobre a Bahia 1842-1857. Salvador: Edição do Banco da Bahia S/A, s/d, p.35;
p.121.
2
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Hedra, 2010, p.193.
3
SOUSA, 2010, p.178. A breve enumeração anterior também tem como fonte Gabriel Soares.

41
De maneira análoga, havia uma fauna marinha, diretamente praiana, como uma da borda
marítima. Embora de descrição mais escassa: seja pela fauna ser mais limitada, seja pela
presença humana ser mais constante no interior da baía. Nos ares, havia pássaros vários
como a gaivota, a tinhosa, o calcamar, garças e gaviões4.

Nas praias de mar aberto vinham as tartarugas marinhas, em grande quantidade, cujas
“cascas são do tamanho de adargas, as quais põem na areia infinidades de ovos”5. E à praia
caíam os despojos da vida marítima, como estrelas-do-mar, águas-vivas e esponjas-do-
mar.6 Naquele litoral ermo e estéril, certos cardumes estivais e o âmbar gris eram as únicas
farturas reconhecidas, das quais trataremos adiante.

Dos esteiros e lagamares do complexo estuarino da Baía de Todos os Santos, e de sua


costa em geral, há dificuldade de distinção nos documentos, até pela sucessão de meios do
interior da baía: praias de areia e de silte, mais fino e quase lodoso; lugares de água
salgada, salobra e doce; os próprios manguezais. Se havia vegetação nas “várzeas de
areia”, como a jaborandiba, os manguezais eram mais importantes.

Infinitas são tambem as qualidades que há de mariscos, alem das pedras


dos recifes da costa e arêas das prayas, e muito principalmente entre os
mangues; e vem a ser muitos e grandes polvos, lagostas, labogantes,
santollas, e lagostins, ostras de muitas quantidades, em algumas das quaes
se tem achado perfeitas perolas, bem como dentro de alguns mexilhoens,
marisco a que dão o nome de sururús que se crião na lama, quando ahi
pegados nas pedras e costados dos navios, segundo mui velha lembrança.
Ameijoas diversas, berbigoes, sernambis que são humas ameijôas grandes,
lapas, pinaúnas, ou ouriços do mar, caramujos e Buzios diferentes, em
alguns dos quaes e tem igualmente achado perolas, carangueijos em suma
quantidade, e muito grandes e saborosos, seris ainda melhores e
igualmente grandes, aratús e ganhamús que se crião por terra, não porem
muito distante do salgado; e tanta he a differença e variedade de
conchinhas e buzios que o mar lança pelas prayas, que causa admiração a
multiplicidade dos viventes que nestes mares se crião. (VILHENA, 1922b,
p.734).

Esse fervilhar de vida ocorria nos esteiros dos rios e seus lagamares. Sebastião da Rocha
Pita enumerou entre os caranguejos os uçás, ganhamuns, siris, aratus e garauzás.7 Em
todos os depoimentos coloniais aparecia essa imensa fecundidade. As “árvores de ostras”,
as ostras dependuradas nos troncos das árvores na água salobra, foram um lugar-comum,
mesmo entre os visitantes estrangeiros oitocentistas.8

Esse interior da baía era muito mais rico na sua fauna. Toda a sorte de pescado e marisco
que crescia em suas águas atraía os pássaros, que também nidificavam naquelas árvores,
como a saracura. Era prolífico mesmo em insetos, como os maruins e as formigas
denominadas taricena pelos índios.9

4
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia/ Governo do
Estado da Bahia, 2014; SOUSA, 2010.
5
SOUSA, 2010, p.275.
6
SOUSA, 2010, p.285.
7
ROCHA PITA, Sebastião da. História da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013, p.52.
8
ROCHA PITA, 2013, p.52; WETHERELL, s/d, p.49; TOLLENARE, Louis François de. Notas Dominicais tomadas durante uma
viagem em Portugal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1956, p.343. KNIGHT, Edward
Frederick. The Cruise of the “Falcon”. A voyage to South America in a 30-Ton Yacht. London: Sampson Low, Marston,
Searle, & Rivington, 1884, p.69.
9
SOUSA, 2010; CARDIM, 2014; SPIX, Johann Baptist von & MARTIUS, Carl F. P. von. Através da Bahia. 3ed. Salvador:
Assembléia Legislativa, 2016.

42
E havia uma fauna marítima migratória, que encontrava na baía o seu refúgio durante uma
época do ano, como as tartarugas marinhas. Mas o caso mais estentóreo era o das baleias,
que vinham à baía para procriar no inverno. E houve um dia peixes-bois.

A baía se entendia como farta. Os manguezais eram um dos motivos. Foi prontamente
reconhecido em sua importância pelos primeiros europeus, com efeito determinante na
ocupação primitiva desta região.

Este era o quadro transformado a partir do assentamento da cidade, de seu porto e dos
dispositivos edificados auxiliares, e de toda a sorte de estabelecimentos produtivos ao longo
da costa.

1.2. Salvador e seu Porto


A cidade fundada por Thomé de Souza fora o centro e o nexo da colonização, abrangendo
assentamentos anteriores, como a Vila Velha, e posteriores vizinhas, tais quais os
aldeamentos jesuítas ou mesmo vilas como a de Paripe.10 Dali irradiaram as forças que
desenharam o litoral de suas proximidades, saltando para localidades marítimas próximas, e
articulava o seu hinterland no Recôncavo, sempre por meio das águas, esse mare
nostrum.11 Pelas águas se concatenavam partes, depois alcançadas de modo mais fluido
por terra, por curta cabotagem, como o Bonfim e a Penha, Cabrito e São João, e Paripe.

Partiremos do Porto (Fig.26), na Cidade Baixa original, e suas contribuições a esta história.

Na linha da costa interior da cidade, voltado para a Baía de Todos os Santos, se


estabeleceu uma sucessão de portos de envergaduras diversas: da Barra, da Vitória, do
Unhão, da Jaqueira, e assim por diante. No bairro da Praia, os cais e atracadouros que
doravante denominaremos apenas “Porto”, o núcleo principal da atividade, e o coração
mesmo da cidade.

Ali se apresentava uma amálgama de funções estreitamente relacionadas: o atracadouro


das embarcações, sua aguada, os reparos e construção de naus nos estaleiros, as
fortificações que defendiam o porto, o Arsenal Real, a Alfândega e o Celeiro Público, os
mercados e feiras que abasteciam a cidade, os armazéns e trapiches que guardavam as
mercadorias, as vendas e botequins que alimentavam ou entretinham os trabalhadores, as
lojas e oficinas dos mais variados artesãos, e as moradias de quem vivia dali, dos
proprietários aos escravos, sem contar com templos.12 O Porto possuía diferentes escalas
de atuação e alcance, atendendo ao comércio exterior e ao interno, de grande e pequena
cabotagem, mais ligada ao abastecimento da cidade.13

10
Paripe pode até ser compreendida como outro núcleo de povoação, já mencionado por Pero de Magalhães Gandavo no
século XVI (GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz. São Paulo: Hedra, 2008.), uma vila que junto
com as demais se articulava com o centro explícito daquele sistema. Apenas muito tardiamente é que seria, e ainda de modo
bastante incompleto, engolfado pela metrópole como parte integral de seu corpo. Em torno de Paripe se multiplicaram os
canaviais e engenhos (PINHO, Péricles Madureira de. São Assim os Baianos. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura,
1960, p.30).
11
Se isso funcionava de maneira orgânica nos primeiros tempos, Adriano Bittencourt Andrade (O Outro Lado da Baía: a
gênese de uma rede urbana colonial. Salvador: Edufba, 2013) argumenta que a Coroa portuguesa no século XVIII, em uma
política clara, formou uma rede a partir das vilas-porto do Recôncavo para controlar suas áreas de influência e bacias
hidrográficas, por onde irradiavam seus caminhos, penetrando no interior.
12
Os santuários, os santos e sua relação com o litoral serão vistos no próximo Cap.8.
13
PINHO, José Ricardo Moreno. Salvador do século XIX: o porto que abastecia a cidade. In: VELASCO E CRUZ, Maria
Cecília; LEAL, Maria das Graças de Andrade; PINHO, José Ricardo Moreno (org). Histórias e Espaços Portuários: Salvador e
outros portos. Salvador: EDUFBA, 2016, p.137.

43
Fora por quatro séculos o que se chamava de porto “natural”, ou “primitivo”, apoiado em
docas de atracação continuadas, uma ao lado da outra, compartimentando o porto. Sem
calado para ancoragem de naus maiores, necessitava de embarcações específicas, as
alvarengas, para fazer a baldeação das mercadorias e tripulantes vindos nas naus maiores.
Embarcações menores, como canoas e saveiros, logravam alcançar as docas. Somente na
Primeira República seria um “porto organizado”, com uma administração unificada, com
taxas uniformizadas quanto à espécie, incidência e denominação, de terminais
especializados, e um cais linear capaz de receber embarcações maiores.14

Figura 26 – Vista das Docas da Bahia ou São Salvador, Thomas Lyde Hornbrook, sem data. Fonte:
ATHAYDE, 2008.

No Porto a cidade cresceu pela conquista literal das áreas com aterros.15 Praticamente não
existia uma Cidade Baixa, apenas uma praia muito estreita em poucos lugares. Entre a
Igreja do Pilar e Água de Meninos a preamar bateria à Montanha, daí o acesso ser por barco
ou por caminho à meia-encosta. Os aterros se deram ao sul e em especial ao norte,
espraiando essa linha paralela à Montanha, e avançando passo a passo ao mar. No
primeiro caso, por particulares para ganho de área para armazéns e trapiches e, depois,
para enfim conectar-se com Água de Meninos, e daí para as localidades de Itapagipe, uma
constante que terá sua importância mais adiante.16

14
ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. A modernização do porto de Salvador na Primeira República (1891-1930).
In: VELASCO E CRUZ, Maria Cecília; LEAL, Maria das Graças de Andrade; PINHO, José Ricardo Moreno (org). Histórias e
Espaços Portuários: Salvador e outros portos. Salvador: EDUFBA, 2016.
15
ARRUDA CÂMARA, Marcos Paraguassu de. Conceição e Pilar – freguesias seculares do centro econômico e do porto de
Salvador até o século XIX. 1989. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU, Universidade Federal da
Bahia, Salvador. 1989.
16
MAROCCI, Gina Veiga Pinheiro. O Iluminismo e a Urbanística Portuguesa: as transformações em Lisboa, Porto e Salvador
no Século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
2011, p.407.

44
Apesar da ampliação do porto e de suas profundas mudanças, seu alcance internacional e
nacional foi minguando, dada a substituição dos veleiros da energia eólica natural,
dependente do regime planetário dos ventos, pela energia de combustíveis fósseis, nos
barcos a vapor. Assim a importância de Salvador e dos portos nordestinos, conferida pelos
alísios, desapareceu. A abertura do canal de Suez igualmente colaborou nessa mudança.
Para a história polifônica tratada aqui, alguns elementos são relevantes.

Um deles foi a Abertura dos Portos às Nações Amigas em 1808, trazendo ao Porto um
movimento ímpar, que praticamente inundou a cidade com uma gama maior de produtos, e
trazendo colônias de estrangeiros, com suas representações, sua sensibilidade e
testemunhos. O seu impacto na mudança dos hábitos e valores da cidade não pode ser
subestimado.

Outro foi o uso residencial dessa área, em especial pelas famílias, muitas ricas, que tinham
ali seu negócio, e como isso apresentava relações escópicas próprias, com seu posterior
declínio.17

Ainda a função portuária exigia uma série de atividades complementares, que se irradiaram
de modo contínuo e descontínuo para outras partes da orla: os estaleiros, as fortificações,
os alertas para navegação, estruturando o litoral adjacente e distante.

As construções militares, das mais simples às mais complexas (trincheiras, baterias, fortins,
fortes) foram sendo levantadas para fins de proteção do Porto, de atracadouros naturais
onde os inimigos poderiam penetrar na cidade (Porto da Barra, Água de Meninos, Península
de Itapagipe), além das barras de rios e esteiros (rio Paraguaçu, esteiro de Pirajá) para
defender a produção de açúcar, e contra inimigos entrando por terra na capital, em
estreitamentos das colinas e diques criados para salientar essa vantagem topográfica (a
exemplo dos Fortes de São Pedro e do Barbalho). Nas cotas mais baixas, as mesmas
colinas que dificultavam o acesso levaram à criação de binários, de fortificações no sopé, à
beira-mar, e de outras no seu padrasto, na elevação adjacente, complementares e
necessárias, como a Bateria de São Paulo da Gamboa com São Pedro, e o Forte de São
Alberto com o de Santo Antônio Além do Carmo. Os investimentos portugueses na
fortificação da cidade cessaram com a transferência da capital para o Rio de Janeiro.18 O
sistema então se estagnou, com alguns esparsos acréscimos, e com a demolição de alguns
dos edifícios. Além da perda da importância militar da cidade, também houve a
obsolescência de suas instalações, sempre premidas pelas mudanças na arquitetura militar
e na poliorcética. Como certos fortes estavam naqueles lugares passíveis de aportar-se, via
de regra onde estavam pescadores, e como tais sítios serviram, em muitos casos, como a
base para a ocupação posterior, a exemplo do Rio Vermelho, Barra, Montserrate e Ribeira,
os edifícios perduraram como singulares anacronismos. Não sem antes serem empregados
para outras funções, como hospitais de isolamento para enfermos.

Para a navegação, havia uma série de dificuldades no Porto e na baía para navios de
maiores calados. Como um banco da areia ao sul da entrada da baía (os Baixios ou Bancos
de Santo Antônio) e, na altura do paralelo do Farol da Barra, os recifes Prapatingas, que se
estendem além da ponta NE de Itaparica, estreitando o canal de entrada para duas milhas
de largura. Havia ainda ao largo da ponta de Nossa Senhora da Penha, bancos de areia e
recifes (Fig.27). No porto, um conjunto de rochas chamado Panelas, banco circular de
recifes de meia milha de diâmetro, com centro a 3/4 de milha a NO do Forte de São
Marcelo. Porém, ao redor deles, os melhores ancoradouros, 20 a 24 m de profundidade a
Oeste, e 15 a 16 m ao Norte, Sul e Leste. Por último, um banco de areia situado próximo à

17
Escópico alude a visual, porém mais “focado”, do ato de ver com uma intencionalidade mais direta, com raiz no grego
skopein, “olhar”, presente em palavras como telescópio ou microscópio, e a origem do termo “escopo”.
18
OLIVEIRA, Mário Mendonça de. As Fortificações Portuguesas de Salvador Quando Cabeça do Brasil. Salvador: Fundação
Gregório de Mattos, 2004, p.247.

45
terra, o banco da Gamboa, que se prolongava da costa do Forte da Gamboa até 600 m de
distância de seu fundo. Fora aqueles obstáculos formados por naufrágios, como o do navio
France a partir de 1856, a 8 m de profundidade.19

Figura 27 – Mappa da Bahia de Todos os Santos, séc. XVIII. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Neste os baixios perigosos já aparecem com suficiente nitidez para ilustrar a importância do Farol da
Barra.

19
PINHO, 2016.

46
O Farol da Barra, situado no Forte de Santo Antônio da Barra, foi construído imediatamente
após 1697, durante as reformas da fortificação, por conta daqueles Bancos de Santo
Antônio, risco para os navios de calado crescente, em especial na baixamar, em tempos
tormentosos e à noite.20 Houve reforma e modernização, começando em 1836 e
inaugurando em dezembro 1839, com mais de 28 km de alcance em tempo claro,21 e depois
nova reforma em 1890, e em 1937 a substituição da aparelhagem.22 Em Itapuã, em 1873,
inaugurou-se também um farol do mesmo porte sobre o rochedo Piraboca, construído por
Alcino Batista Monteiro, capaz de ser visto a 24 km de distância em tempo claro.23 Com
alguns ajustes subsequentes, como a ponte que lhe alcança, para o acesso durante as
marés cheias.24 Eram tais faróis elementos impactantes na paisagem litorânea.

1.3. A Cidade se Ergue das Águas


Como não podia deixar de ser, o litoral era abordado para extrair-lhe os recursos naturais,
da terra e do mar. Para a sobrevivência das comunidades estabelecidas ali ou nas
proximidades, para sustentar a cidade crescente, e, não há de se perder de vista, o
empreendimento colonizador nos primeiros séculos, ou seja, a metrópole lusitana. Quase
todos eram visíveis naquele passeio imaginário.

A cidade não nasce apenas à beira-mar. Como visto antes, o mar – as águas mais próximas
no mar aberto, e sobretudo o complexo estuarino da baía, com os rios, esteiros, lagamares
– era a ampla estrada que tornava possível Salvador. Mais do que isso, parte importante do
material de construção mais duradouro da cidade se retirou ou das suas margens, ou
diretamente das águas. Salvador se ergueu a partir das águas. Figurativa e literalmente.

A madeira de lei, demanda para os edifícios e para a construção naval, lei vinha das matas
do Recôncavo, como da vila de Jaguaripe25, devastadas em boa medida em mais de quatro
séculos de exploraçâo para movelaria, arquitetura, embarcações e maquinário, e sobretudo
como combustível das caieiras, olarias, engenhos de frigir e engenhos de açúcar: “o
alimento do fogo é a lenha e só o Brasil, com a imensidade dos matos que tem, podia fartar
[...] a tantas fornalhas”.26 O processo, alastrando-se a partir do litoral, desmatou boa parte
da cobertura vegetal do Recôncavo. Na visita ao Arsenal da Marinha na Preguiça, em 7 de
outubro de 1859, D. Pedro II já revela a falta de madeira na região, tão necessária para os
estaleiros (em verdade, uma das vantagens competitivas do Brasil no setor), pela destruição
das matas.27 Os manguezais passaram por processo de aproveitamento ambivalente.
Porém não para a cidade em especial, mas para o seu entorno mais imediato, galvanizado
pela ação piromaníaca dos engenhos, como se verá.

20
EDELWEISS, Frederico G. Achegas Cronológicas para a História do Farol no Forte de Santo Antônio da Barra. Salvador:
Centro de Estudos Bahianos, 30 jul 1969a, p.4.
21
O CORREIO MERCANTIL n.274, Segunda-Feira 23 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.
22
EDELWEISS, 1969a.
23
SILVA, Alberto. A Primeira Cidade do Brasil (Aspectos Seculares). Salvador: Câmara Municipal da Cidade do Salvador,
1953, p.129; WILDBERGER, Arnold. Fatos e Reminiscências em Tôrno à História do Consulado da Bélgica na Bahia 1837-
1971. Salvador: 1971, p.89; FREIRE, Antonio (org.). Almanak da Província da Bahia. Bahia: Litho-typographia de João
Gonçalves Tourinho, Arcos de Santa Barbara, n.83, 1881, p.183; RELATÓRIO..., 1873, p.28.
24
FALLA..., 1874, p.211.
25
VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasilicas... Vol.2. Bahia: Imprensa Official do Estado,
Rua da Misericórdia, n.1, 1922b, p.509.
26
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. 3ed. Belo Horizonte/ São Paulo: Ed. Itatiaia/ Ed. da Universidade de
São Paulo, 1982. [Obra original de 1711], p.115.
27
D. PEDRO II. Diário da Viagem ao Norte do Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora/ Universidade Federal da Bahia,
1959, p.50.

47
As Olarias
As telhas cerâmicas foram artigo de primeira necessidade, passada a fase das construções
precárias da fundação da cidade. As paredes bem que podiam ser de taipa de pilão, mas a
cobertura haveria de ser de telhas. Depois, tijolos, para a cidade, as vilas do Recôncavo, os
engenhos e fazendas.

As olarias se distribuíram pelo litoral, ao longo do Recôncavo. E, logo no primeiro século,


duas na atual Ribeira, de propriedade de Garcia d´Ávila, outras duas na região de Pirajá,
onde havia barro de qualidade, usado também para a purga do açúcar.28 Aquelas primeiras
não perduraram por muito tempo. No início do século XVII há menções a olarias na Praia,
próximas à Igreja de Nossa Senhora da Conceição.29 No entanto, as olarias dependem da
existência de argila propícia. Havia concentração de jazidas, depósitos ou ocorrências de
argila nas margens do rio Jaguaripe, nas proximidades de Maragogipe e em Camaçari, e
nas duas primeiras que se instalaram as olarias mais duradouras.30

Porém no Oitocentos, a região de Paripe também tinha olarias. Em 1896 há menções a


olarias em Pirajá e Paripe.31 As que aparecem na Península de Itapagipe serão
interpretadas adiante, sob outra luz. Das três olarias descobertas por Larissa Acatauassu
Santos para 1860 em Salvador, uma cabe apontar aqui: a do Tenente Coronel Gonçalo de
Amarante Costa, na Areia Preta, toponímia relacionada a fazenda que existiu por ali durante
todo o século XIX, que funcionou até 1876. Nesta região aparecem, em 1889, duas distintas.
Em 1889, situa-se em Ondina a olaria de Villanueva & Cia., e no mesmo ano, o registro de
uma olaria de Bibiano Ferreira Campos, proprietário da Fazenda Areia Preta.32 Essa fazenda
reaparece ao longo deste trabalho, sob diferentes donos. A continuidade da olaria por três
décadas pelo menos indica provisão de argila de alguma qualidade nas cercanias.

A queima para as olarias teve impactos nas matas e nos manguezais, de que trataremos
quando falarmos dos engenhos de cana-de-açúcar.

As Caieiras
O cálcio de origem marinha empregado na construção civil, e à larga na cidade de Salvador,
vinha da sua consolidação nos corais ou daqueles amontoados de cascas por ação
antrópica, em especial os sambaquis, todos devorados pela urbanização de Salvador.

Os sambaquis eram pilhas feitas por resíduos de conchas e mariscos, deixados pelas
sucessivas ondas de sociedades que precederam os colonizadores europeus no
Recôncavo. Uma mais primitiva, espécie de noite dos tempos, é a dos grupos ameríndios,
chamados Aratu a partir dos estudos de Valentin Calderón sobre seus vestígios na baía
homônima, oleiros e mariscadores que deixaram sambaquis de até 8.000 anos de
antiguidade.33 E as sucessivas ondas de ocupação. Os tupis (tupinajés e tupinambás, em
conflito) que expulsaram os “tapuias”, termo geral com que os tupis designaram os seus
predecessores. Pois os sambaquis foram vestígios arqueológicos incinerados de entrada,
feliz disposição de material tão bem-vindo pelos portugueses. Estes monturos haviam
conformado algo da paisagem, tão consolidados eram que crescera vegetação espessa

28
SOUSA, 2010, p.137. Alberto Silva (1953, p.226) divide a produção: as olarias de Itapagipe, junto com outras, forneciam os
tijolos, enquanto as duas de Pirajá, as telhas.
29
SANTOS, Larissa Corrêa Acatauassú Nunes. A Arqueologia da Arquitetura e a Produção de Tijolo na Bahia do Século XVI
ao XIX. 2012. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2012a.
30
SANTOS, 2012a.
31
SANTOS, 2012a. Há outras em áreas interiores, como a de Cônego Vigário Francisco Pereira de Souza, na Rua da Valla,
em 1860, e a de Ferraro e Cia., no Politeama.
32
SANTOS, 2012a.
33
RISÉRIO, Antônio. Uma História da Cidade da Bahia. 2ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

48
sobre os monturos: “se acham hoje montes delas cobertos de arvoredos”34, confirmado
também por Cardim. Sequer foram imediatamente descobertos como um todo.

Os índios naturais antigamente vinham ao mar às ostras, e tomavam tantas


que deixavam serras de cascas, e os miolos levavam de moquém para
comerem entre ano; sobre estas serras pelo discurso do tempo se fizeram
grandes arvoredos muito espessos, e altos, e os portugueses descobriram
algumas, e cada dia se vão achando outras de novo [...] (CARDIM, 2014,
p.80).

Esses morrotes verdes foram desfeitos em prol da construção de edifícios.35 A cal também
vinha dos restos deixados como subproduto da própria extração e consumo dos mariscos.36

Houve caieiras em Pirajá e Itapagipe, assim como em Paripe.37 Como a localização coincide
com sítios indígenas pela fertilidade das águas e manguezais, decerto matéria-prima original
eram os sambaquis. Nessa ação construtiva contínua temos a primeira remodelação da
paisagem litorânea. Pela facilidade de extração e queima, foi a primeira reserva a ser usada.
Depois veio o ataque aos corais.

Os corais eram mais distribuídos e a cidade extraía do mar, quase à superfície, a matéria-
prima da qual se fazia. Cybele Santiago identificou, a partir de vestígios sob escrutínio
laboratorial, os corais: chamados “cabeça de carneiro”, do gênero Mussismilia e da espécie
Meandrina braziliensis ou Leucina pectinata; em pedaços no cascalho da praia, coletado
para as caieiras; e o rodolito, concreções das algas Corallinaceae.38 E o faz com muita
cautela, aceitando com algum cuidado que de fato essa cal provinha de corais, embora as
fontes que confirmam essa procedência sejam várias.39 Mais: tão certo era o uso de corais
para alimentar as caieiras que conflitos se produziam pela sua extração. Os fazendeiros de
terras lindeiras reclamavam que a retirada dos recifes, e seu papel de limite às vagas,
causavam inundações em suas lavouras.40 Santiago menciona a “cal de marisco”, inclusive
testando sua performance, mas não alude aos sambaquis.

As caieiras se distribuíam pelo Recôncavo, como em Saubara.41 Também existiam em


número menor na linha litorânea hoje chamada de Subúrbio Ferroviário. Ou, como este
anúncio de 1818, imaginava-se como factível que retornassem ali as caieiras, como em
Itacaranha, onde se arrendava “humas sortes de terras, com casas de vivenda [...] com
terras de cannas, e mandiocas, beira mar, com suficiência para Fabrica de cal, e
alambique”.42 Mas as referências são mais freqüentes para Itaparica, ilha que se caracteriza
por expressivos recifes de corais.

34
VICENTE DO SALVADOR, Frei. História do Brasil 1500-1627. Salvador: P55 Edições, 2013, p.44.
35
A própria destruição desse material eliminou as condições arqueológicas para a reconstituição de parte considerável da
história ameríndia preliminar à colonização.
36
SOUSA, 2010, p.282. Bivalves dos gêneros Cassostrae e Meandrina braziliensis, identificados em exames laboratoriais
(OLIVEIRA, 2004, p.150).
37
Sobre Pirajá e Itapagipe, ver: SAMPAIO, Theodoro. História da Fundação da Cidade do Salvador. Obra Póstuma. Salvador:
Tipografia Beneditina Ltda., 1949, p.187. E em Paripe, PINHO, 1960, p.31.
38
OLIVEIRA, 2004, p.150; SANTIAGO, Cybèle Celestino. Argamassas Tradicionais de Cal. Salvador: EDUFBA, 2007, p.77.
39
Além de (SOUSA, 2010, p.331), que ela cita, encontramos Frei Vicente do Salvador (2013, p.44) e Fernão Cardim (2014,
p.81). E de um professor de Geologia, como Fred Hartt (Geology and Physical Geography of Brasil. With illustrations and
maps. Boston: Fields, Osgood, & Co., 1870, p.269). Von Martius (SPIX & MARTIUS, 2016, p. 170), ao falar do que pareciam
ser arenitos de praia, marcava que eram usados habitualmente como material de construção; e, com a maior presença de
conchas, como matéria-prima para o cal.
40
CASTELUCCI JR., Wellington. Pescadores e Roceiros: escravos e forros em Itaparica na segunda metade do século XIX
(1860-1888). São Paulo: Annablume. Salvador: FAPESB, 2008, p.91.
41
Da qual vivia a maioria dos seus moradores, junto com a exploração da lenha, a pecuária bovina, e a pesca, pelo solo ser
muito arenoso (BARICKMAN, 2003, p.44).
42
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.56, Terça-Feira 14 de Julho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1818.

49
Situavam-se as caieiras em sua maioria na região de Mar Grande, por ali emergirem mais
os recifes na baixamar, com os maiores fornos e mais escravos reservados à atividade43.
Sucessivos anúncios, sempre em Itaparica, ao longo do século XIX apontavam as caieiras
como parte das benfeitorias de uma propriedade. Em 1848, “vende-se ou arrenda-se uma
fazenda com grande coqueiral nas imediações da Penha de Mar Grande, com um
estabelecimento de fabrico de cal”.44 Inclusive, não raro o manejo desse tipo de lugar era
uma habilidade requerida, como em anúncio que, procurando alguém para trabalhar em
fazenda em Itaparica, salientava que “se souber do fabrico de cal será mais bem pago”.45

Nos tempos coloniais a queima da cal se fazia em fornos.46 Wellington Castelucci Jr.
assumia que a operação se realizava ainda em fornos no Oitocentos, inclusive os mesmos
empregados para a extração do óleo das baleias capturadas em alguns estabelecimentos.
Atualmente quase inexistente, a queima dos corais não ocorre mais em fornos, e sim a céu
aberto, com eficiência menor.47 A atividade declinava já no período imperial. Xavier Marques
descreveu no seu conto O Arpoador caieiras, no início do século XX, de “fogo morto” –
embora o termo se associe mais aos engenhos de cana-de-açúcar, também se aplicaram às
caieiras.

Surgiram de espaço em espaço, à meia luz do crepúsculo, caieiras de fogo


morto, com os fornos e galpões empoados de cal e carvão. Cestos e pás,
carrinhos, tinas, achas de lenha, cascalho em tulhas, fragmentos de pedra
calcárea, tudo abandonado, imobilizado, fixava um momento de desordem,
participando desse torpor em que mergulham as gentes de beira-mar, nos
dias de borrasca. (MARQUES, s/d, p.165).48

As Pedreiras
Gabriel Soares indicara os locais para se tirar estas pedras ao longo do mar:

[...] porque de redor da cidade ha muita pedra preta, assim ao longo do mar,
como pela terra, a qual é de pedreiras boas de quebrar, com a qual se
fazem paredes mui bem liadas; e pelos limites d´esta cidade ha muita pedra
molar, como a de alvenaria de Lisboa, com que se faz boa obra; e ao longo
do mar, meia legua cidade, e em muitos lugares mais afastados, há muitas
lagôas de pedra molle como tufo, de que se fazem cunhaes em obra de
alvenaria, com os quaes se liam os edifícios que se na terra fazem [...].
(SOUSA, 1879, p.320).

Para as obras da igreja de São Francisco, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão reconhecia
que fora necessário buscar as pedras “ao bayxo da Bahya, e costas do mar das
pederneyras, que cercão as suas prayas, que supposto abundantes e em distancia não muy
prolongada”.49

Pedra extraiu-se de um lugar denominado Itapitanga, chamada Itabipanga por Gabriel


Soares.50 Depois dali “se descobriu outra pedreira melhor, que se arranca dos arrecifes que

43
CASTELUCCI JR., 2008, p.89.
44
O MERCANTIL n.184, Sábado 5 de Agosto de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa n.78,
1848.
45
O MERCANTIL n.157, Quinta-Feira 6 de Julho de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa n.78,
1848.
46
SOUSA, 2010, p.331.
47
SANTIAGO, 2007, p.81. Mas, não custa observar, também havia modos muito similares, em sua simplicidade, do preparo,
sem precisar de fornos, ao se usar essa matéria-prima “engradada entre madeira” (VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.44).
48
MARQUES, Xavier. Os Praieiros. 6ed. São Paulo: GRD, 1976a.
49
JABOATAM, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico Parte Segunda. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de
Maximiano Gomes Ribeiro, R. do Sabão, n.114, 1859, p.59.
50
Ilhéu depois procurado por Theodoro Sampaio na segunda década do século XX.

50
se cobrem com a preamar das marés de águas vivas ao longo do mar, a qual pedra é alva e
dura, que o tempo nunca gasta”.51

Mar Grande, em Itaparica, fornecia pedras no Oitocentos. Durante as obras de calçamento


do final do século XIX e começo do XX, era comum a menção a “pedras de Mar Grande”.
Mas a primeira que vimos é mais antiga, de 1814, na demolição do antigo Forte de São
Fernando para se construir no terreno o atual edifício da Associação Comercial, na lista de
despesas, “dos cunhaes tirados do mar grande e Madre de Deos”.52 Além de Madre de
Deus, Cachoeira também supria a capital.53

Mais próximo, Ignácio Accioli falou de extração de pedras na Boa Viagem para a construção
de convento ali instalado.54 Da Barra se obtinham pedras. Em 1846, ao se tratar das
contenções da Montanha:

[...] não achando esponjas em sufficiente quantidade no mercado da Bahia,


achar-se-hão de sobra na praia da Barra, junto ao farol, na circumvisinhança
desses logares d´onde se extrae muito boa cantaria segundo as instrucções
do engenheiro polaco [André Przewodowski]; cantaria esta que servio para
a ponte do consulado, que actualmente serve para a ponte d´alfandega com
duas grandes escadas, etc. etc.55

Documento de 1854 aponta “extracção da cantaria da Barra”.56 E em 1857, que “concertou-


se o trilho do caminho de ferro da pedreira da Barra, e a respectiva ponte de embarque”.57
As pedras de maneira alguma iriam por terra; não havia meio de transporte com capacidade
de carga adequada. Iam por mar. Em 1818, se instava a “toda a Pessoa que tiver lanchas a
tirar pedra para esta Cidade, assim como salão capaz de entrar em agoa salgada” para
comprar sua carga, “toda e qualquer porção, e principalmente sendo a pedra graúda”58.
Aquele mesmo André Przewodowski defendia o emprego de cantaria da Barra para as
colunas da Alfândega Nova.59 Maria Graham localizou-as, ou ao menos uma, no Porto da
Vitória, ao afirmar que, na Vitória, “as melhores casas são construídas [...] de uma bela
pedra extraída da praia da Vitória”.60 Conforme descrito por Gabriel Soares, aparecem
indícios do uso das pedras da costa oceânica, próxima ao Farol, e dali em diante existem
marcas reiteradas, um litoral escarificado por pedreiras de porte crescente.

Não é atividade antiga e esquecida a exploração de pedreiras no litoral da cidade. Veremos


as cicatrizes das pedreiras até hoje, e de atividade que ocorreu ao longo mesmo do século
XX, como no primitivo Morro do Cristo, no Morro da Sereia, no Morro do Conselho (Fonte do
Boi) e no Jardim de Allah.61

51
SOUSA, 2010, p.331.
52
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.78, Sexta-Feira 30 de Setembro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
53
PINHO, Wanderley. História de um Engenho do Recôncavo. Matoim – Novo Caboto – Freguesia 1552-1944. 2ed. São Paulo/
Brasília: Companhia Editora Nacional/ Instituto Nacional do Livro – Fundação Nacional Pró-Memória, 1982, p.245.
54
SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia Tomo IV. Salvador: Typ. do
Correio Mercantil, de M.L. Velloso, E.C., Rua d´Alfandega, n.24, 1837, p.111.
55
O GUAYCURU n.214, Terça-Feira 7 de Julho de 1846. Salvador: Typ. do Gaycuru, de D.G. Cabral, à rua do Bispo, n.45,
1846.
56
FALLA..., 1854, p.1.
57
FALLA..., 1857, p.2. As figuras 31, 32 e 33 mostram lugares possíveis da atividade extrativa naquela costa.
58
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.60, Terça-Feira 28 de Julho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1818.
59
SAMPAIO, 2005, p.47.
60
[...] the better houses are built either of a fine blue stone, quarried on the beach of Victoria [...] (GRAHAM, Maria. Journal of a
Voyage to Brazil and Residence There, during part of the years 1821, 1822, 1823. London: printed for Longman, Hurst, Rees,
Orme, Brown, and Green, Paternostre-Row; and J. Murray, Albemarle-Street. 1824, p.148). O termo bluestone era usado
pelos britânicos como uma denominação geral que englobava algumas dezenas de pedras distintas, incluindo o basalto e o
calcário. Na falta de uma compreensão maior do que Maria Graham estava por descrever, optamos por apenas assinalar
“pedra”.
61
Cybèle Santiago e Karina Cerqueira ainda apontavam pedreiras em Amaralina (SANTIAGO, Cybèle Celestino; CERQUEIRA,
Karina Matos de Araújo Fadigas. Sobre Arcos e Bondes: resgatando a memória urbana de Salvador. Salvador: Edufba, 2019,
p.60) que abasteciam a cidade.

51
Figura 28 – Morro do Ipiranga (1884), de Marc Ferrez. Fonte: FERREZ, 1988. Aqui
vemos pedras empilhadas. Podem ser de obra adjacente, e sua extração não ser das
redondezas. Mas converge com uma série de outros indícios, até marcas muito mais
recentes de pedreiras na linha costeira adjacente, por quilômetros.

52
Figura 29 – Foto do Farol da Barra (1884), de Marc Ferrez. Fonte: FERREZ, 1988. Essas formações
coincidem com a descrição de Gabriel Soares de Sousa, de “pedra preta [...] ao longo do mar” e com
a indicação de O Guaycuru, n.214 7 jul 1846, de pedras “de sobra na praia da Barra, junto ao farol”.

1.4. Cultivo e Pecuária


Na exploração economica, fixação territorial e empreendimento evangelizador, aparecia um
olhar que a tudo intepretava como possível recurso, com benfeitorias que pudessem
suportar atividades produtivas diversas e coexistentes, era constante nas fazendas. Como
nesta à venda em 1836:

- Antonio José de Souza, vende sua fazenda, terras proprias, chamada


Barra de Carvalhos, tendo uma e meia legoa de testada na frente do mar, e
5 legoas de fundo com casas de morada, 12 escravos maxos e femeas,
todos moços, algum gado vaccum, uma porção de canas para o que as
terras são optimas, 50 pés de coqueiros, outros tantos de dendezeiros,
muita mandioca, larangeiras, bananeiras, boas mattas de coquilho,
piassava, muitas madeiras, bom barro para olaria, muita agua e boa, canoas
para pescaria, do que he muita farta, e mesmo de marisco [...]62

Armações de pescadores apareciam dentro de fazendas, diversificando sua carteira de


rendimentos, por assim dizer. Por isso a dissociação entre os elementos que realizamos
aqui – a exemplo da plantação, do forno de cal, do alambique – é mais analítica que
concreta. Tais atividades coexistiam e alternavam de ênfase sazonalmente, e mesmo com o
declínio e ascensão da procura (e dos preços) ou dos custos, como a oferta de matéria-
prima ou disponibilidade de mão-de-obra. Podiam coexistir em outra escala, no uso do solo
do hinterland da cidade, formando uma tapeçaria axadrezada com manchas alternando-se

62
O CORREIO MERCANTIL, Sábado 3 de setembro de 1836. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, 1836.

53
ao longo das léguas. O processo produtivo tinha distintos componentes, com ênfases
flutuantes, oscilando ao sabor dos ventos econômicos.

O engenho de cana-de-açúcar era o empreendimento econômico – e também familiar,


proto-militar, quase-religioso – por excelência, aquele com o qual se intentava extrair da
terra os seus tesouros.63 Se o solo não respondesse à altura, outras alternativas eram
sondadas, julgando-se pobres aqueles não propícios para aquele cultivo mais rentável. Os
engenhos pontilhavam pela região, precursores da urbanização. Foram fundamentais na
modelagem da paisagem da baía, e mesmo dos arredores da cidade nascente.

Os Engenhos de Cana-de-Açúcar
Os engenhos possuíam um enraizamento intrincado no meio geográfico. A partir de um
centro fisicamente localizado, valorizava-se a proximidade a distintos lugares: pasto ao seu
redor, parte em outeiro e parte em várzeas, alagadiços; de floresta próxima, para alimentar
as fornalhas e fornecer madeira; o mangue também tinha de estar perto, assim como os
apicuns.64 Eram tantas variáveis bem-vindas, que fatalmente algo faltava; à beira-mar
faltavam roças e matas, e, mais para dentro, faltava-lhes o apicum, o mangue e os rios.65

Gabriel Soares, em sua preciosa descrição dos engenhos, assinalava um em Água de


Meninos assim como canaviais já na Enseada dos Tainheiros.66 Tirando a característica
singular da Península de Itapagipe, então muito menor, de ser uma terra conquistada ao
mar por sedimentos, em solo flagrantemente arenoso, do seu istmo em diante, estava-se
imerso na dinâmica do fundo da baía, dos canaviais e esteiros, com maior ou menor êxito a
depender do solo. Itapagipe propriamente dita, pelo seu solo, recebeu currais, além de
olarias, alambiques, estaleiros e armações. A Enseada dos Tainheiros e do Cabrito,
canaviais e engenhos, e assim sucessivamente.

Os engenhos reais usavam a força motriz dos rios.67 Por isso existiram ao longo dos rios ao
redor de Salvador. Disse Theodoro Sampaio ter havido um engenho próximo ao Dique, às
margens do Lucaia.68 Alguns operando ainda em meados do século XIX, como o engenho
Retiro de Camorogipe, na Estrada do Cabula.69 Engenhos havia, embora em muito menor
número, pelo litoral norte, alternando com armações e contratos, ancorados em vilas de
pescadores e fazendas mais dispersas. Ao tentar capitalizar essa força natural, em vez de
usar a menos rentável alternativa da força bovina, não raro havia pequenas mudanças
hidrográficas, com a execução de represas, os tanques. O Largo do Tanque será uma
herança toponímica do Tanque do Engenho Conceição (Figs. 32 a 34). Como em Amaralina,
onde segundo Borges de Barros o marquês da Nisa, Dom Domingos da Gama, em 1768
formara tanque com as águas captadas das encostas vizinhas para alimentar um engenho à
margem, hoje desaparecido (Figs. 35 a 36).70

63
Na Baía de Todos os Santos, Ubiratan Castro de Araújo (A Baía de Todos os Santos: sistema geo-histórico resistente. In:
CAROSO, Carlos; TAVARES, Fátima; PEREIRA, Cláudio (org.). Baía de Todos os Santos: aspectos humanos. Salvador:
EDUFBA, 2011, p.60) reconhecia dois elementos dinâmicos principais, por sua vez interdependentes: o engenho de açúcar
como unidade agroindustrial central, e as técnicas de navegação e construção naval, desenvolvidas ao longo do Império
Lusitano e testados na Bahia.
64
Apicum é a faixa de terra acima dos manguezais, antes do solo seco, banhada somente pelas marés de sizígia, praticamente
sem vegetação.
65
ANTONIL, 1982, p.101.
66
SOUSA, 2010, p.137.
67
Isso é explicado, por exemplo, em Vilhena (1922a, p.198).
68
Há notícia de outro engenho assentado nas magens do Urucaya, vertentes do Rio Vermelho, em sítio que visinha do actual
S. João de Deus (SAMPAIO, 1949, p.143)
69
O CORREIO MERCANTIL n.85, Terça-Feira 14 de Abril de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
70
CAMPOS, João da Silva. Tempo Antigo – crônicas d´antanho, marcos do passado, histórias do Recôncavo. Publicações do
Museu da Bahia. Salvador: Secretaria de Educação e Saúde, 1942, p.118.

54
Figura 30 – Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. Abaixo, à esquerda, o Engenho Plataforma, claramente
alimentado por tanque formado nas cotas superiores. Á direita, o Engenho Cabrito, e o vasto Tanque
do Lobato.

55
Figura 31 – Ferme de Cabritou, environs de Bahia (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. O
aqueduto mostra água captada da vertente da encosta, talvez do próprio Tanque do Cabrito, para
alimentar suas máquinas. Também aparece alguém nadando no espelho d´água, sem nenhuma
indicação da natureza dessa atividade.

Figura 32 – Tanque da Conceição – Bahia, cartão-postal da Litho-Typ. Almeida, de 1917, da Coleção


Ewald Hacker. Fonte: VIANNA, 2004.

56
Figura 33 – Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. O Fiaes era alimentado por um tanque próprio, na Montanha,
como era o Engenho Conceição, a partir do extenso Tanque da Conceição. O Fiaes possui algo
artificial, quadrangular, talvez viveiros.

Figura 34 – Trecho de mapa do Indicador e Guia Prático da Cidade do Salvador – Bahia


(1928), de Lauro Sampaio. Fonte: SAMPAIO, 1928. Muito menos preciso, indicava a
persistência desses espelhos d´água na época de sua publicação.

57
Figura 35 – Trecho do Mappa
Topographica da Cidade de S. Salvador
e sus Suburbios (1845), de Carlos
Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014.
Aparece nele claramente a Armação da
Lagoa. Sua lagoa, natural ou artificial,
tinha saída ao mar. Não tinha a
característica mais comum dos tanques
dos engenhos, que era represar a água
em cotas superiores. Poderia ser um
espelho d´água apenas natural. Não
descartamos a possibilidade de uso
produtivo, por exemplo, como viveiro de
pescado, ou mesmo para mover algum
maquinismo logo abaixo.

Figura 36 – Lagoa de Amaralina, sem data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia.

Porém igualmente importante eram os rios navegáveis, o que fez com que a primeira leva
de engenhos ocupasse a orla da baía e seus rios. E que as embarcações fossem artigo de
primeira necessidade em cada engenho, cada qual com atracadouros próprios, de
preferência onde a maré alcançava.71 Essa ocupação estava atrelada ao mar interior, porém
penetrando nas digitações possíveis pelos muitos rios do complexo estuarino do
Recôncavo. A alternativa seria contraproducente: os caminhos por terra eram árduos, em
especial pelo mesmo solo que era responsável pela produtividade da Bahia, o massapê.72

71
SOUSA, 2010, p.154; VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.80; DIÁLOGOS DAS GRANDEZAS DO BRASIL. 2ed. integral
segundo o Apógrafo de Leiden, aumentada por José Antonio Gonçalves de Melo. Recife: Imprensa Universitária, 1966, p.33;
VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasilicas... Vol.1. Bahia: Imprensa Official do Estado,
Rua da Misericórdia, n.1, 1922a, p.186; p.41.
72
ANTONIL, 1982; PINHO, 1982, p.337. O melhor testemunho é o de Patroni (A Viagem de Patroni, pelas Províncias
Brasileiras de Ceará, Rio de S. Francisco, Bahia, Minas Geraes, e Rio de Janeiro: nos Annos de 1829, e 1830. Segunda

58
Os apicuns eram fundamentais para fornecer uma espécie de barro especialmente útil para
a produção do açúcar.73 Enquanto os manguezais tinham madeiras bem-vindas para
construção das casas e telhados, para as peças do engenho, para o tratamento dos couros
e como lenha. E a tensão na exploração do mangue e sua preservação estava dada.

O mangue preto se prestava para construção: cercas; caibros dos telhados; enchimentos e
pilares; mesmo para as casas-grandes dos engenhos e da aparelhagem.74 William Dampier
distinguia o mangue preto (de que se faziam tábuas) do mangue branco (para mastros e
outras partes de barcos); nem, nem outro, são convalidados pelos demais depoimentos.75
Em um breve parêntese, também a madeira de lei que crescia perto do salgado, ao longo do
mar, se viu comprometida para o uso mais imediato. Em especial, a maçaranduba, para o
madeiramento das casas e peças do maquinário dos engenhos.76 E mesmo outras árvores,
de lenho mais mole, como o cajueiro. O mangue vermelho, a apareiba, era importante fonte
de tanino, para curtir couro e como tintura. Em verdade, era a fonte principal.77 Dampier
falava que na Bahia havia grandes poços para essa tarefa.78 A casca do mangue vermelho
era usada para proteger as redes de calão, de algodão, de piaçava, dos pescadores da
cidade. Também nas velas, ao menos nas canoas, mas seguramente era prática
generalizada, conferindo-lhes uma cor avermelhada, ferruginosa. Assim como para colorir
de vermelho escuro as louças.79 Havia ainda outra espécie que fornecia cortiça80. No
começo do século XIX, a exploração do mangue para fins do curtume havia expandido seu
raio de ação: ou a demanda da cidade, do beneficiamento do couro do gado que vinha cada
vez mais do sertão, era maior que a capacidade do Recôncavo para abastecer; ou esta
capacidade minguou; ou, por último, havia uma limitação, dada pelos proprietários. O fato é
que esse produto vinha do Baixo Sul, dos manguezais da Baía de Camamu.Certas castas
de mangues eram propícias para lenha e para produzir a cinza usada na decoada.81

Paralelo a essa extração dos mangues, reconhecia-se claramente que era a fonte
indispensável de alimentação para a população como um todo, porque “são os mais certos
viveiros de mariscos e morada de muito peixe que entre elles se cria”.82 Nesse dilema o
berçário da vida marítima teria seus dias contados. Se a lenha de caldear deveria ser de
mangues, estes, retirados, eram “a destruição do marisco, que é o remédio dos negros”.83

Edição. Lisboa: Typ. Lisboense, de José Carlos de Aguiar Vianna, 1851), dos raros viajantes brasileiros, que foi por terra a
Salvador, com os cavalos arruinados pelos atoleiros, caminhos irregulares e carrapatos.
73
ANTONIL, 1982, p.130.
74
Para tais aplicações: VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.25; SOUSA, 2010, p.212; VILHENA, 1922, p.771. SIMÃO DE
VASCONCELLOS. Livro Primeiro Das Notícias Antecedentes, Curiosas, e Necessarias das Cousas do Brasil. In: SIMÃO DE
VASCONCELLOS. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil... Lisboa: Editor A.J. Fernandes Lopes, 1865a, p.20.
Para as casas-grandes e aparelhagem, as varas, mais propriamente, e de mangue-branco (ANTONIL, 1982, p.113).
75
DAMPIER, William. A Voyage to New Holland... Vol.III. London: Printed for James Knapton, at the Crown in St. Paul´s
Church-yard, 1703, p.63. O mangue branco é o Laguncularia racemosa (ALVES et al, 2001, p.13). O mangue vermelho é o
Rhizophora mangle, e o preto, Avicennia schaueriana.
76
Para o madeiramento, VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.25. Para o maquinário, ANTONIL, 1982, p.117.
77
SOUSA, 2010, p.199; SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.20; VILHENA, 1922, p.771; SPIX & MARTIUS, 2016, p.195.
Gabriel Soares de Sousa, ao comentar sobre o couro dos veados na Bahia, menciona de passagem que este era curtido
“com cascas de mangues” (SOUSA, 2010, p.239).
78
DAMPIER, 1703, p.63.
79
Sobre a aplicação nas redes, ver Rafael Davis Portela (Pescadores na Bahia do Século XIX. 2012. Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador. 2012, p.80) Maximiliano de Wied Neuwied contava que “as cordas de gravatá (Bromelia), ou de
algodão, são esfregadas com as folhas do mangue (Rhizophora)” (MAXIMILIANO. Viagem ao Brasil. 2ed refundida e anotada
por Olivério Pinto. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p.230). Do emprego nas velas das canoas, Antônio Alves
Câmara (Ensaio sobre as Construções Navaes Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor
31, 1888, p.38). Parece ter sido habitual porque ainda nos dias de hoje no Maranhão é aplicada nas velas e nas roupas
próprias para proteger os tecidos da ação degradante dos raios solares, das águas das chuvas e do mar (ANDRÉS, Luiz
Phelipe C. Castro. Embarcações do Maranhão. São Paulo: Audichromo, 1988). Para o emprego nas olarias, SPIX &
MARTIUS, 2016, p.195.
80
VILHENA, 1922, p.771.
81
ANTONIL, 1982, p.117; VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.181. Gabriel Soares identificava para a lenha, o mangue preto, e
o mangue vermelho para o carvão vegetal (SOUSA, 2010, p.212; p.199).
82
VILHENA, 1922b, p.771.
83
ANTONIL, 1982, p.131.

59
Problema vivido também para o alimento das olarias. Ainda mais quando o centro mesmo
da atividade econômica, e não apenas um fornecedor dentro do microcosmo do engenho. O
corte dos mangues provocava escassez de pescado e marisco, levando a que os
pescadores e mariscadores solicitassem ao rei, em 1722, que essa exploração cessasse.84
Esses mesmos ambientes eram favoráveis para uma ictiofauna de maior porte se
reproduzir, como os manatins. Foi uma das razões dos antigos assentamentos indígenas, e
depois dos primeiros brasileiros, levando à extinção desses animais nas redondezas, pelo
consumo direto. Os manguezais eram fecundos. Alimentavam os índios, e sustentaram as
novas populações. Em especial, os escravos se valiam dos caranguejos, pela sua
abundância e relativa facilidade de coleta.85 Era o “essencial sustento” das vilas de
Maragogipe e Jaguaripe.86 O esteiro do rio Pirajá nutria não apenas as suas redondezas,
como também Salvador, no século XVII:

Este rio de Pirajá é muito farto de pescado e marisco de que se mantêm a


cidade e fazendas de sua vizinhança, em o qual andam sempre sete ou oito
barcos de pescar com redes, onde se toma muito peixe, e no inverno, em
tempo de tormenta, pescam dentro dele os pescadores de jangadas dos
moradores da cidade e os das fazendas duas léguas à roda, e sempre tem
peixe de que se todos remedeiam. (SOUSA, 2010, p.138).

Se a ocupação do Recôncavo orbitava em torno dos engenhos, toda a sua população


dependia desses recursos. Barickman argumentava ser sua fonte suplementar de proteína.87
E essa fartura também vinha à mesa dos senhores.88 O príncipe Fernando Maximiliano José
Maria de Habsburgo-Lorena partiu em viagem pelo Paraguaçu e visitou o Engenho Novo, de
Tomás Pedreira Jeremoabo da Costa Vasconcelos. Na “opípara refeição” de que desfrutou,
constava “uma travessa de ostras de água doce, sem casca e cozidas. Na verdade, essas
ostras não provêm propriamente da água doce: aparecem próximo à casa de Jeremoabo
nos arbustos do mangue”89, e notava que a água da baía penetrava profundamente, até
muito perto de sua casa, ainda salobra. Barickman arremata que era uma refeição eventual,
de domingo ou dos dias santos.90 Além de não fazer parte da dieta diária, imaginemos que
não seria um lauto banquete, com espécimes mais vistosos, e melhor preparados, com todo
o luxo devido, ainda mais se recebendo visitas. No microcosmo do engenho havia escravos
especializados na pesca e na mariscagem para alimentar o senhor naqueles repastos e
diariamente a “gente de serviço”.91 E para as visitas. Quirijn Maurits Rudolph Ver Huell,
recebido por senhor de engenho na ilha Cajaíba, narra que, sob as ordens do seu anfitrião,
“alguns escravos foram enviados ao manguezal e retornaram com um grande número de
boas ostras que eles haviam coletado das raízes curvas das suas árvores”.92

Os manguezais eram tão importantes que havia conflito pelo seu usufruto.93

Essa exploração levou à acomodação do equilíbrio ecológico, com a redução e mesmo a


eliminação local de certos espécimes. Comia-se carne de tubarão; seus fígados eram de tal
porte que dele extraíam 20 a 24 canadas de óleo.94 Comia-se ainda cações-lixa, extraindo
de 15 a 20 canadas de óleo, como a carne da baleia, e os peixe-serra, do qual retiravam

84
SANTOS, 2012a, p.240.
85
SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.20; DIÁLOGOS..., 1966, p.168.
86
VILHENA, 1922a, p.508; p.510.
87
BARICKMAN, 2003, p.92.
88
CARDIM, 2014, p.322.
89
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.196
90
BARICKMAN, 2003, p.223.
91
CARDIM, 2014, p.349; ANTONIL, 1982, p.124; SOUSA, 2010, p.280; DIÁLOGOS..., 1966, p.190.
92
HUELL, 2009, p.222.
93
CASTELUCCI JR., 2008, p.150.
94
Se atualmente se prepara comida de caçonetes, pode-se tratar de esqualos desse porte, de cações.

60
também óleo, de 30 a 40 canadas, para iluminação e calafetagem das naus.95 Porém o óleo
dessa origem era menos comum que o das baleias.96 Algo disso dizia Luiz dos Santos
Vilhena: “tubaroens [...] de cujos figados se extrahe azeite melhor que o da balêa, assim
como de algumas lixas e tintureiras”.97 E os manatins, os peixes-bois, aos que “se mata com
arpões muitos grandes”.98

No Oitocentos os engenhos passaram pela concorrência do açúcar antilhano e do açúcar de


beterraba, agravada pela escassez de mão-de-obra escrava provocada pelo fim do tráfego
negreiro e a demanda cafeeira em São Paulo. O solo perdia os nutrientes. Os engenhos
localizados à beira d´água, no complexo hídrico da Baía de Todos os Santos, foram os
primeiros a se instalarem, e também os primeiros a exaurirem o solo, como Vilhena já
apontava no final do século XVIII, e mesmo antes, no início do setecentos.99 O que ainda
reteve por muito tempo a exploração na baía foi a vantagem da navegação em detrimento
dos custosos caminhos por terra.100 A partir do início do século XIX, o sistema de transporte
terrestre melhorou e permitiu a interiorização dos canaviais, primeiro rumo a norte, depois à
bacia do rio Jaguaripe.101 Outra mudança foi a introdução do vapor, na segunda década do
século XIX, chamados de banguês. A seguir o sistema se reorganizou a partir dos engenhos
centrais, e depois das usinas, com a redução e concentração dos produtores de açúcar.
Muitos dos engenhos tornaram-se meros canaviais, embora prósperos, levando a reformas
e construções de novos solares em propriedades tradicionais.102

Anúncios de venda de engenhos foram uma constante no século XIX, como este de 1812 da
venda do “Engenho de S. Cruz de Torres em Paripe”.103 Paripe se manteve região de
canaviais e engenhos, como as terras até aquela borda da Enseada dos Tainheiros até
Paripe. Em 1845, vendia-se “o engenho Plata-forma de cancellas abertas, com as suas
fazendas”.104

O cultivo mais dinâmico se interiorizou. Por outro, os engenhos minguaram no litoral da


baía. Por aquela reorganização da produção, encolheram de número, enquanto os canaviais
se mantiveram em alguma medida. Com isso aparecia o fogo morto, termo geral para indicar
o “apagar” da atividade com as chamas. Em 1851 noticiava-se um entrevero envolvendo o
Major Antonio Luiz Pereira Lisboa da Cunha e uma propriedade sua “casa velha
abandonada, que se apellida – engenho” e que “outr´ora fóra engenho denominado da
Praia-grande”, e descrevia sua situação:

Deve-se mais attender a que esse engenho se acha à muitos annos de fogo
morto, inteiramente abandonado, distelhado quase no todo, cheio de
crescido mato, mesmo por dentro, servindo unicamente de habitação de
ratos, e morcegos.105

95
SOUSA, 2010, p.268. Vilhena confirma: “tubaroens, especie de cação bastante grosso e pouco comprido, de cujos figados
se extrahe azeite melhor que o da balêa, assim como de algumas lixas e tintureiras que, como aquelles, vagão pellos mares,
ou vem de arribação” (VILHENA, 1922b, p.732).
96
ROCHA PITA, 2013, p.51. E a diferença de proporção do volume, do rendimento da extração, era abissal. Cada baleia rendia
entre 20 a 30 pipas, e cada pipa tinha 70 canadas (TOLLENARE, 1956, p.339). Ou seja, no limite inferior, falamos de 1400
canadas de óleo. Sendo que a canada em questão (não a medida portuguesa, nem a chamada “de Lisboa”) correspondia a
pouco mais de 6 litros (ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Melhoramentos/ Ed. da Universidade
de São Paulo, 1969).
97
VILHENA, 1922b, p.732.
98
SOUSA, 2010, p.269.
99
VILHENA, 1922a, p.173; ANTONIL, 1982, p.140.
100
PINHO, 1982, p.226.
101
AZEVEDO, Esterzilda Berenstein. Engenhos do Recôncavo da Bahia. Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta, 2009.
102
AZEVEDO, 2009.
103
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.5 Sexta-Feira 17 de Janeiro de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.
104
O GUAYCURU n.113, Sexta-Feira 8 de Agosto de 1845, Salvador: Typ. de José da Costa Villaça, à Ladeira da Praça, n.1,
1845.
105
O GUAYCURU n.163, Sábado 8 de Novembro de 1851. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar,
caza n.96, 1851.

61
Era isso o que ocorria com a principal força de modelagem do litoral do Recôncavo Baiano.

Os Currais e as Fazendas
No bordo marítimo havia formas menos rentáveis de cultura.

Os currais ocorriam em terras não suficientemente férteis para canaviais e engenhos. Nas
proximidades do litoral de Salvador, o primeiro foi em Itapagipe (onde hoje é a Ribeira)
instalado por Garcia d´Ávila, que logo depois estabeleceu seus currais em Tatuapara, e a
partir daí rumo ao interior.106 Notava-se que as terras da península não se prestavam para o
principal empreendimento agrícola da região. Ubiratan Castro de Araújo entendia que o
avanço dos currais era uma expansão do necessário hinterland da capital para sua
alimentação, da proteína para sustento seu e dos braços de sua economia.107 No bordo
marítimo os currais faziam parte de um mosaico de culturas: legumes, hortaliças, tuberosas
e canaviais. Por exemplo, os currais apareciam em Itaparica como parte das atividades
produtivas.108 Neste arranjo multifacetado, eram os currais o que caracterizava a ocupação
ao norte e além, aos olhos dos narradores. Seguindo o oceano, em uma faixa por alguns
quilômetros adentro, deu-se essa primeira ocupação.109 De Itapuã ao rio Joanes eram “três
léguas, cuja terra é baixa e fraca, e não serve, ao longo do mar, mais que para gado; e até
quatro léguas pela terra dentro está este limite e a terra dele ocupada com currais de
vaca”.110

O que nos interessa é a persistência, ainda que inexpressiva para a economia da Província,
do gado no litoral. Em 1811 havia criação na orla, na região do rio Jaguaribe, de Piatã, na
“Fazenda chamada Jaguaripe, sita na estrada da Itapuan, que consta de hum grande
Coqueiral, e outras arvores de caroço, muito fértil de água, e pasto para mais de 80 cabeças
de gado”.111 O mesmo se repetia na “fazenda Canta-Gallo com mais de mil pés de
coqueiros, boas baixas, matas, e algum gado de criar, perto do porto debaixo de Itapoan”.
Economicamente menor, o gado era aí presença constante.112

Também se cultivava o capim que alimentava o seu gado, e especialmente os cavalos,


burros e mulas, a força motriz da cidade e arredores. Sustinham-se com folhas de bambu e
abóboras, milho e farelo importado, mas sobretudo com capim, dado no lugar do feno: “bem
cuidado e adubado, o capim cresce em qualquer lugar, sendo que ele é muito mais viçoso
nos vales”.113 Ao longo de Salvador, pastos eram atributo das roças anunciadas em jornais e
característicos das várzeas de rios, de terrenos alagadiços conquistados. Embora não
vingasse nos cordões dunares da orla atlântica, tinham seu lugar nas margens dos rios que
ali desaguavam.

Por isso a criação de gado era vendida como realidade ou possibilidade nas margens do rio
Jaguaribe, como no anúncio visto.

E a Fazenda Areia Preta, origem do loteamento que deu nome ao bairro de Ondina, por
décadas forneceu pasto para a cidade (Figs. 37 e 38). Muito provavelmente crescia no vale
106
SOUSA, 2010, p.137. Carlos Alberto de Carvalho assinala que o curral não fora bem-vindo pelos primeiros moradores do
arrabalde (CARVALHO, Carlos Alberto de. Tradições e Milagres do Bonfim. Obra seguida de interessante Resenha Histórica
da Península de Itapagipe Salvador: Typ. Bahiana, de Cincinnato Melchiades, Rua Lopes Cardoso, ex-Grades de Ferro, 69,
1915, p.129), o que nos soa inverossímil, pelo caráter rural da localidade, distante do pequeno núcleo urbano de então.
107
ARAÚJO, 2011, p.55.
108
SOUSA, 2010, p.153.
109
MARIANI, José Bonifácio de Abreu. Povoamento da Bahia: Século XVI. Publicações do CEB, vol. 68. Salvador: CEB, 1971,
p.3.
110
SOUSA, 2010, p.67.
111
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.37, Terça-Feira 17 de Setembro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811.
112
O CORREIO MERCANTIL n.207, Sábado 26 de Setembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
113
WETHERELL, s/d, p.107.

62
formado pelas colinas do Alto de Ondina e São Lázaro, por onde corre a atual Av. Adhemar
de Barros. Poderia ser no vale logo a nordeste, mais estreito e de curso d´água mais
encorpado. Porém as várzeas maiores estavam naquele primeiro, daí ser mais provável ali
ter sido o cultivo de capim da fazenda, que merece uma atenção maior. Diz-se em 1816:
“quem quizer comprar a fazenda denominada: Areia Preta, com proporções, alambique,
armação de Balea: falle com o Tenente Coronel D. Braz Balthazar da Silveira, ou seu
mano”114, conjugando alambique, armação e plantio, como se viu em 1818: “o Proprietario
da Areia preta participa ao Publico que principia a vender na sua roça capim d´Angola pelo
preço de 180 réis o feixe”115, como por 220 réis, às tardes, em feira na Praça da Piedade.
Sem serem anunciados dois anos antes, talvez fossem cultura nova, na tentativa de explorar
o potencial agrícola da propriedade.

Em Areia Preta, fazenda do Sr. Tschiffeli, instruído agricultor suíço, vimos


grandes plantações de capim para fornecerem forragem fresca aos cavalos
da cidade.

Esses prados artificiais, formados de patanos dessecados, assemelham-se


aos melhores prados da Inglaterra pelo denso e viçoso desenvolvimento.
Dão lucro certo, pois a ração diária para um cavalo na cidade, onde se
desconhece outra forragem, nunca se vende por menos de 80 a 100 réis.
(SPIX & MARTIUS, 2016, p.106).

Os brejos (os charcos, várzeas, etc.) enxutos, dessecados, prestavam-se para o cultivo do
capim, mais propriamente de capim-de-Angola116, tal como explícito no anúncio de 1818, de
capim “muito bom por ser em brejo enxuto, vende-se a 240rs. o feixe na roça de Joaquim
Caetano de Almeida Couto ao Cabulla”.117 As várzeas eram área fértil em potencial,
explicando a cobiça pelas margens de espelhos d´água, e o processo de aterro, de avanço,
sobre áreas como o Dique. Não se tratava apenas de ganho de área, e sim da conquista de
terras férteis por si mesmas.

A Fazenda Areia Preta é uma exceção na orla atlântica. Uma das últimas colinas que
marcam a face do mar aberto, que rumo a nordeste se desfaz em dunas e vegetação de
restinga, ao contrário dos demais outeiros, apresentava cobertura vegetal mais densa, e
variada: porque fora plantada, transformada em relação à vegetação nativa, naquele esforço
de, junto com armação, alambique e pastos, lograr aproveitar as terras.

Porém não encontramos, espécies características das roças e sítios à beira-mar além das
palmeiras. Via de regra nos anúncios apareciam arvoredos ou árvores de espinho, indicando
um pomar, sem uma plantação mais especializada, nos torrões de terra próximas. Mas o
litoral era local de coqueiros, ou ao menos de palmeiras.118 Três eram as espécies
principais, uma boa amostra da mescla que perfazia a flora aqui aclimatada: a piaçava,
nativa, insumo da cordoaria; o coco-da-Índia, parte do projeto agrícola lusitano,
transplantado da Ásia, e que abastecia o mercado interno brasileiro; e o dendezeiro, de
origem africana, que atendia a uma demanda centrada em Salvador. O que era apontado
em uma mesma fazenda em Itaparica, de propriedade do Capitão Leovigildo de Macedo
Monteiro, que plantava e coletava, ao mesmo tempo, coco, piaçava e dendê, porém na
contracosta.119

114
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.45, Terça-Feira 4 de Junho de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1816.
115
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.101, Terça-Feira 22 de Dezembro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva
Serva, 1818.
116
SPIX & MARTIUS, 2016, p.142.
117
O GUAYCURU n.722, Quinta-Feira 13 de março de 1856. Salvador: Typ. de Guaycurú, à ladeira da Fonte dos Padres,
casan.º 604, 1856.
118
O coqueiro, embora na linguagem corrente designe o coco-da-Índia (Cocos nucifera), nem sempre tem esse sentido nos
documentos consultados.
119
CASTELUCCI JR., 2008, p.173.

63
Figura 37 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de
Carlos Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. Localização da Areia Preta, também da fazenda
homônima. Notar a praia de São Lázaro, no pé do outeiro homônimo, com a capela do santo, e mais
a oeste, da foz do rio Camarão. No cimo da colina, a sede da fazenda.

64
Figura 38 – Vista a partir do Canzuarte. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Nessa seqüência de
colinas a pique no mar, esta é a única com maior cobertura vegetal, local da antiga Fazenda Areia
Preta, cuja sede estava acima. A propriedade foi comprada pelo Estado em 1926, que dela fez seu
Campo de Experimentação e Demonstração de Ondina, para experimentos agrícolas. Sua feição
diferente é resultado da ação humana, do cultivo.

Os coqueirais, trazidos do Cabo Verde, já viscejavam no século XVI, e, segundo Gabriel


Soares, com melhor desempenho que em solo original, embora então subaproveitado em
relação ao que se fazia na Índia.120 Por mais que as plantações crescessem ao longo dos
séculos, era reiterada a observação de que os brasileiros não exploravam plenamente o
coqueiro “à maneira dos Aziaticos [sem] extrahir desta arvore fructa, agoa, vinho, vinagre,
azeite, açucar, madeira, cordas e cubertas para cazas rusticas, alem de outros mais
lucros”.121 Essa discrepância entre abundância material e potencial, e o que se fazia de fato,
não é de somenos. Ou havia alguma impossibilidade técnica, que os leigos desconheciam,
no seu afã de recomendações, ou a questão era de natureza etológica e sociológica, de
valores individuais e coletivos. As propriedades deveriam ser rentáveis, mas tampouco
seriam estabelecimentos inteiramente voltados ao lucro, racionalmente administrados; na
Bahia colonial e do Império, outros valores importavam.

O coco-da-Índia não aparecia como um produto relevante do comércio internacional partindo


da Bahia ou pela Bahia, nem como algo importado: parte dessa demanda era do Rio de
Janeiro122, a outra sem dúvida era a própria cidade. José da Silva Lisboa, o Visconde de
Cairú (1756-1835), em carta de 18 de outubro de 1781 a Domingos (Domenico) Vandelli
(1735-1816), naturalista italiano, diretor do Real Jardim Botânico de Lisboa, afirmava que
“ao longo da costa da ilha [de Itaparica] estão plantados grande quantidade de coqueiros, de
que se faz na cidade muito uso”.123 As ilhas da baía também possuíam coqueirais.124

O coco era parte do cotidiano de Salvador, e se espraiava pelas suas costas.125 Escreveu
Louis François de Tollenare em 1817 que perto de armações a uma légua do Rio Vermelho,

120
SOUSA, 2010, p.161.
121
VILHENA, 1922b, p.757. Século a século repetia-se esse lamento: Gabriel Soares no século XVI, Gabriel Dellon no XVII,
Vilhena no XVIII e Von Martius no XIX.
122
SPIX & MARTIUS, 2016, p.80.
123
ATHAYDE. Sylvia Menezes de (org). A Bahia na Época de D. João. A Chegada da Corte Portuguesa 1808. Salvador: Museu
de Arte da Bahia/ Solisluna Design e Editora, 2008, p.117.
124
MARC, Alfred. Le Brésil. Excursion a travers ses 20 Provinces. Tome 1. Paris: M.J-G.D´Argollo-Ferrão, 1889, p.306;
KIDDER, Daniel Parish. Sketches of residence and travels in Brazil... Vol.II. London: Wiley Putnam, 1845b, p.17
125
Em nossos levantamentos nos anúncios de periódicos encontramos plantações de coqueiros nos mais diversos sítios, como
Cabula, Cabrito ou na Cruz da Redenção, em Brotas. Porém a grande maioria das menções aparecia nas ilhas da baía

65
[...] vê-se um coqueiral de 1.200 pés; dizem que o produto de cada pé sobe
de 5 francos por ano; criticando este cálculo, nós o reduzimos à metade, o
que ainda é uma boa renda, porquanto o trabalho exigido por semelhante
plantação consiste em escolher um terreno arenoso e nele semeiar as
nozes, distantes 20 pés umas das outras; a benévola natureza faz o resto.
(TOLLENARE, 1956, p.317).

A armação que descreve é a das praias da atual Armação. E o coqueiral, aquele cujo
remanescente continuamente erodido é o Jardim de Allah (Figs. 39 e 40). Na sua descrição
o coqueiral expressivo não está nem no Rio Vermelho, nem em Amaralina.

Figura 39 – Jardim de Allah, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Ao fundo da cena, Itapuã.

Rebello falava que em Itapuã havia “muitas fazendas de plantações, com extensos
coqueiraes”.126 Apesar do nome “Itapuã” abranger uma área maior que a atual, incluindo
Placaford, Piatã e pelo menos Jaguaribe, é certo que era local constante de fazendas com
seus coqueirais. Em 1812 anunciava-se “huma Sorte de terras beira-mar com parte na Casa
de vivenda e no alambique, que nella ha, com hum grande coqueiral junto à Povoação de
Itapoan”.127 Em 1840:

- Quem quizer comprar uma fazenda com dous mil e tantos pés de
coqueiros, em Itapoã, terras proprias, contento 103 casas de rendeiros, isto

(incluindo Itaparica) e principalmente na Península de Itapagipe, mesmo na “varge” (a várzea), os alagadiços de


Massaranduba. E as referências a coqueirais maiores, no litoral.
126
REBELLO, 1829, p.136. Aqui há uma confusão toponímica importante. Por um lado, mais internamente, “no terreno de
Itapoán procurando a direcção do caminho de Pirajá, há duas lagoas notáveis, chamadas – Moçurungas –, huma grande, e
outra pequena; além destas tem ainda outros muitos pequenos lagos, que todos são conhecidos por Muçurungas”
(REBELLO, 1829, p.136). Por outro, há uma Fazenda chamada Mussurunga, antes Fazenda Guarda-Bolo, que mudou seu
nome em função do proprietário, Bernardino Marques de Almeida Torres Mussurunga. Se as lagoas coincidiam com a
fazenda, é difícil afirmar. Se o nome – de origem tupi – foi tomado em função do nativismo oitocentista, tomando inspiração
do acidente geográfico, é uma incógnita. Qual o grau de coincidência da Mussurunga atual com aquelas lagoas e essa
fazenda, ainda mais duvidoso.
127
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.26, Terça-Feira 31 de Março de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.

66
he 93 de palha, e 10 de telha, pagando aquellas por anno 2$000 rs. cada
uma [...]128

Figura 40 – Armação, séc. XX. Fonte:


Instituto Feminino da Bahia. Os erros
dos postais são indicativos de como
esse longo trecho da orla oceânica –
cerca de 10 km – era desconhecido em
seus detalhes, e como a sua aparência
era entendida de um modo um tanto
genérico. Vista a nordeste, a partir do
atual Jardim de Allah, onde se nota o
antigo, e depois demolido, Edifício
Carimbamba, pioneiro na região.

A fazenda também abrigava sua pequena localidade rústica, de casas de palha. Algo
análogo se repetia nesta outra fazenda “Itapoan, em terras proprias, com boa casa de
morada, com mais de 2.000 pés de coqueiros, 130 casas de taipa, as quaes rendem 3 a 4$
rs., e abundante d´aguas”.129 Mas a maior parte dos moradores de Itapuã estava em outra
fazenda:

- Antonio Vaz de Carvalho, tendo-se mudado para diverso districto, e


anhelando satisfazer quanto antes à seus benignos credores, propõe-se a
vender o engenho que acabou de edificar em terras proprias da Pinda,
novas, e de bons salões, e mattas, com um pé de moenda de agua e outro
de bois, pequeno alambique, e bons canaviaes; e bem assim outra fazenda
anneza, a Itapoan, propria para criar, e para plantações de coqueiros, com
grande casa de alambique, bom tanque de madeira para mel, e muitos
rendeiros, por ser nella situada a maior e melhor parte da povoação da
Itapoam.130

128
O CORREIO MERCANTIL n77, Sábado 4 de Abril de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1840.
129
O CORREIO MERCANTIL n.121, Terça-Feira 2 de Junho de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
130
O CORREIO MERCANTIL n.198, Sábado 12 de Setembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.

67
Naquela região, aparecia um João Vaz de Carvalho como dono do Engenho Aratu. Talvez
fossem estas terras. Porém isso contradiz Tânia Gandon, que defende a partir do registro de
terras que na segunda metade do Oitocentos estaria a aldeia nas terras de Maria Barbara
de Carvalho Albernaz. Tais terras limitavam-se com a Fazenda Porto Baixo, de Francisco
Lucatelli Dorea. Retornaremos em seguir a esta toponímia. As terras de Albernaz eram
descontínuas. Uma parte era esta onde situaria-se a vila de Itapuã. Separada por um
enclave de terras de Manuel Ignácio da Cunha Menezes, o Visconde do Rio Vermelho,
estava o Engenho Pinda, citado anteriormente, que, por sua vez, prolongava-se até a
Fazenda (e engenho) Mussurunga, de João Antunes Rodrigues da Costa. Algo dessas
terras, ao longo da praia e ao redor da aldeia de pescadores, ainda pertenceriam à
Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã. Na confusa situação fundiária da
cidade, tais fazendas em boa medida aforavam terras dos beneditinos e outras que eram da
Câmara Municipal.

Figura 41 – Foz do rio Santo Antônio das Pedras, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Outro
erro de reconhecimento. Olhando para sudoeste, em primeiro plano está a foz do rio, e a pequena
elevação onde se construiu a sede de praia do Esporte Clube Bahia, demolida recentemente. A
extensa praia vista é a atual Boca do Rio e Armação. Ao fundo, o Edf. Carimbamba, e na ponta, o
Jardim de Allah.

As terras de Manuel Ignácio, além de incluir aquelas da Armação do Saraiva, em Itapuã


correspondiam ao chamado Porto de Baixo ou Canal. A antiga população de Itapuã
distinguia três “portos”. O primeiro, na conformação situada a sudoeste do encontro da Av.
Otávio Mangabeira com a Av. Dorival Caymmi, chamado de Porto de Baixo. O segundo,
logo a nordeste, e defronte do Mercado Municipal de Itapuã, era o Porto do Meio. O Porto de
Cima, também chamado de Canal, é aquele a leste, formado e protegido pelas pedras e
corais, que culmina com o próprio Farol.

Disto isto tudo, é importante salientar que tais propriedades não eram muito produtivas. Nem
seus engenhos se notabilizaram pela riqueza, nem a terra era disputada palmo a palmo pelo
seu valor agrícola. O Coronel Frederico Costa, por exemplo, dono da Fazenda Mussurunga,
e que a aforava ao Município, tinha por hábito conceder pequenos lotes aos roceiros, para

68
suas casas e pequeno cultivo. Se acaso fossem rendeiros, deviam lhe ser mais úteis que
sendo meramente coqueiral.

Figura 42 – Foz do rio Santo Antônio das Pedras, séc. XIX. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. A
Boca do Rio, propriamente dita. Aqui o rio fazia um meandro e criava remansos. A urbanização
desfez essa situação. Exigiu uma das pontes necessárias para vencer e obter acesso livre à orla
atlântica.

Repetiam-se além Itapuã, nos sítios Taiassú e Catassaba, de propriedade da viúva D. Maria
Barbara de Carvalho Albernaz, na década de 1850. Mas vindo em direção à cidade também.
Albin René Roussin apontou coqueirais esparsos de Itapuã até a Ponta de Itapuãzinho, em
Amaralina.131 E mais próximo ainda da entrada da baía, em propriedade que estimamos
achar-se em Ondina, na região do Calabar, havia plantação de cerca de 200 coqueiros.132

Fernand Denis, em 1839, percebeu que o distintivo do Nordeste era o coqueiro ao litoral,
“cultivado somente entre o 18º de latitude sul até Pernambuco [...] mas prospera
admiravelmente nos arredores de São Salvador”.133

Luís Geraldo Silva, falando de Pernambuco, articulou o ambiente dos coqueirais com a
pesca em algo que pode ser aqui aproveitado. As comunidades marítimas deviam-se à
pesca marítima artesanal, que incluía a fabricação e emprego das jangadas, das redes e
linhas e currais de pesca, e que construíam suas moradias e edículas (as caiçaras, onde
faziam, consertavam e guardavam seu material de trabalho) a partir dos coqueiros.134 Silva
observa o processo de ocupação desse litoral, pela pesca e pelos coqueirais, conformando
a paisagem depois conhecida, dos coqueirais, mocambos feitos a partir destes pés, das
jangadas, tomando vulto a partir do século XVIII, que era o coqueiro “em grande escala,
cultivado ao longo de todo o litoral que se estende de Ilhéos a Pernambuco”.135 Com alguns
ajustes – por exemplo, o curral de peixes, que não comparece no mar aberto aqui – vale o
131
[...] sembrada de meganos, arbustos y cocales esparcidos aquí y allí [...] (ROUSSIN, Albin René. Derrotero de las Costas de
la América Meridional... Barcelona: Imprenta de D.A. Albert, 1844, p.99).
132
TOLLENARE, 1956, p.318.
133
DENIS, Jean-Ferdinand. Brasil. Belo Horizonte/ São Paulo: Ed Itatiaia/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p.73.
134
SILVA, Luís Geraldo. A Faina, a Festa e o Rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (Sécs. XVIII ao XIX).
Campinas, SP: Papirus, 2001, p.99.
135
SPIX e MARTIUS, 2016, p.80.

69
raciocínio: as fazendas de coqueiros, aproveitando o solo arenoso, e uma planta capaz de
crescer e colonizar áreas varridas pelos intensos ventos alísios, também naturalmente
recebem pescadores nos portos naturais. E os pescadores tomarão os coqueiros como base
material, naquele ambiente inóspito, para seus apetrechos. Como Gilberto Freyre o fizera
com a noção de áreas dominadas por complexos vegetais, dos quais a praia seria dada pelo
coqueiro.136 A colonização das terras litorâneas, arenosas, por coqueirais de vários tipos e
por pescadores aproximava um e outro, árvores e homens, a dispor das primeiras como
matéria-prima versátil para seu cotidiano. Ainda que subaproveitado, o coqueiral, os vários
tipos de palmeiras tal como a pindoba137, era o meio de utilizar aqueles solos e, ao ver de
Tollenare, se justificava pela facilidade na atividade, no mero plantio e na ação da natureza.

Figura 43 – Rio Jaguaribe, séc. XIX. Fonte:


Instituto Feminino da Bahia. Corresponde ao
trecho da atual Praia de Jaguaribe. A
regularidade dos coqueiros denota seu plantio.

E há o curioso caso do dendezeiro, introduzido pelos africanos em Salvador.138 Era o azeite


de dendê, até mesmo registrado por Vilhena na tabela de Importação e Exportação de
1798139, produto trazido diretamente da África, “de que vem muitos barris da costa da Mina,
por ser o tempero melhor das viandas dos pretos e de muitos brancos, alem do que he tão
bem muito medicinal”140, como para doenças de pele. Ademais, era importante na
alimentação popular e empregado nas lâmpadas.141

136
FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste. Algumas notas sobre o tipo de casa popular mais primitivo do nordeste do
Brasil. 2.ed. rev. e pref. pelo autor. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Imprensa Universitária, 1967. No
litoral sul da Bahia, Maximiliano de Wied-Neuwied parecia descrever um complexo vegetal relacionado à piaçaveira
(MAXIMILIANO, 1958, p.335).
137
VILHENA, 1922b, p.758.
138
SPIX & MARTIUS, 2016, p.81.
139
VILHENA, 1922a, p.54.
140
VILHENA, 1922b, p.757.
141
SPIX & MARTIUS, 2016, p.71.

70
O dendê teria sido trazido à Bahia pelos traficantes de escravos, já aclimatado pelo final do
século XVIII pelo menos. Seu azeite era fundamental na culinária de origem africana, e
naquela de uso litúrgico. Comia-se o côco do dendê geralmente fervido em água e sal, como
o sedimento que ficava ao fundo do tacho após a primeira fervura, chamado bambá, que se
vendia pelas ruas de Salvador, comido com farinha e sal. Os últimos restos, que formavam
torresmos, eram chamados catete, e cobiçados. Além do óleo, fazia-se também um “vinho”
do dendê, e de suas palhas, ainda um tanto impregnadas com o óleo do côco, fazia-se
pequenos rolos chamados aguxó para acender fogo, e da folha desfiada, o mariô, que era
empregado nos terreiros e em roupas cerimoniais.142

Havia uma demanda interna expressiva que tornava viável o plantio de dendezeiros pela
cidade e a importação complementar.143 Além de presença recorrente nos quintais e roças
da Península de Itapagipe, lá elas conformaram um espaço muito característico e que se
firmou na toponímia, como viu o Imperador D. Pedro II em 28 de outubro de 1859: “o
caminho [para o Bonfim] já é muito bonito, tendo belas casas e jardins, e antes de lá chegar
passa-se o Dendêzeiro, bela alameda de palmeiras dendês”.144

As piaçaveiras cresciam mais em Itaparica e Baixo Sul. Estavam plantadas ao longo do rio
Paraguaçu, e na vila de Jaguaripe; em Itaparica e no litoral sul da província, como em
Ilhéus.145 Era característica do litoral baiano, aparecendo, vindo de sul rumo a norte, a partir
de Porto Seguro, constante na costa, e abundando em Ilhéus.146 Johann Moritz Rugendas
deu conta dessa paisagem, sem descuidar que era artifício: “as palmeiras-cocos e os cocos-
de-endéia alternam com as palmeiras, cobrindo toda a parte baixa da costa com florestas
ralas [...] essa costa é uma das mais cultivadas e férteis do Brasil”.147 Este plantio vinculava-
se em especial a outro complexo, de manufaturas para consumo interno e exportação.

1.5. Manufaturas
Houve transformação em um punhado de instalações no litoral. Em alguns engenhos, que
transformam a cana-de-açúcar, nem sempre plantada pelo dono do engenho, em açúcar e
melaço. E alambiques. Algumas olarias, fabricando de tijolos a bilhas e moringas, e jarros e
utensílios de cozinha mais delicados, como frigideiras. Algumas cordoarias, ligadas à
atividade pesqueira, originalmente. As armações de xaréus, e Contratos de baleias,
beneficiando o pescado, como na extração do óleo da baleia. A fabricação de barcos, os
estaleiros.

Isso era o que se permitia no Brasil Colônia: fabrico e reparo de embarcações, olarias,
extração do óleo de baleia, junto com produção de açucar e o fumo e uma indústria têxtil
simplória, manufaturando sacos de aniagem para embalagens e tecidos de algodão cru para
os escravos. Alvará de 5 de janeiro 1785 reforçou a proibição, situação radicalmente

142
CARNEIRO, Edison. Ladinos e Crioulos: estudos sobre o negro no Brasil. 2ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2019, p.90.
143
Os dendezeiros aparecem menos que os coqueiros nos anúncios de roças e fazendas dos periódicos do século XIX. No
entanto, sua presença mais marcante foi em Itapagipe, na alameda que se tornou conhecida como Dendezeiros.
144
D. PEDRO II, 1959, p.147. No ano seguinte, Maximiliano de Habsburgo as descreveu (MAXIMILIANO DE HABSBURGO.
Bahia 1860 – Esboços de Viagem. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1982, p.128).
145
Sobre o rio Paraguaçu, VILHENA, 1922a, p.30; sobre a vila de Jaguaripe, VILHENA, 1922a, p.509. Em Itaparica, as fontes
são várias: REBELLO, 1829, p.133; SPIX & MARTIUS, 2016; HENDERSON, James. A History of the Brazil comprising its
Geography, Commerce, Colonization, Aboriginal Inhabitants, &c. &c. &c. London: printed for the author, and published by
Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1821, p.328; DENIS, Jean-Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, Éditeurs,
1839, p.233. Assim como Ilhéus: DENIS, 1839; EXPILLY, Charles. Mulheres e Costumes do Brasil. São Paulo: Editora
Nacional/ Brasília: INL, 1977.
146
MAXIMILIANO, 1958, p.205. Em outro lugar diz que essa espécie não se encontrava ao sul de Santa Cruz (MAXIMILIANO,
1958, p.231).
147
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem Pitoresca Através do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro S.A., s/d, p.74.

71
modificada com as guerras napoleônicas e a vinda da Corte portuguesa ao Brasil. Em 1º de
abril de 1808, Alvará revogava aquela proibição de 1785, seguido de incentivos à indústria
por Alvará de 28 de abril de 1809. No entanto, com pequeno mercado consumidor interno, e
forte concorrência dos ingleses, agraciados ainda com facilidades abusivas conferidas em
19 de fevereiro de 1810, pelo Tratado de Comércio e Navegação.148 Este era o quadro geral
no começo do século: permissão para a manufatura, mas dificuldades reais de toda ordem.

Vejamos aquelas que eram mais importantes na conformação do litoral da cidade.

As Cordoarias
Essa manufatura se desenvolveu atrelada aos trabalhadores do mar: dos cordames das
caravelas às redes da pesca de arrasto. Algumas técnicas eram legado indígena. As plantas
nativas propícias para as cordas foram prontamente identificadas pelos colonizadores, dada
a necessidade dos barcos.

Tollenare falou de uma cordoaria na região de Armação, imbricada com importante


estabelecimento pesqueiro. Outra cordoaria identificou próxima ao Farol da Barra, que
julgamos estar no vale da atual Av. Sabino Silva, ou naquela do Calabar, por onde corria o
rio Camarão (Figs. 44 e 45).149 Nela, o lucro era razoável, porque o produto se vendia ao
mesmo preço do seu concorrente importado. Era a principal atividade da herdade, a única
efetivamente lucrativa, dado o perfil do solo.150 E a matéria-prima não era local, mas trazida
de longe, muito longe, das bandas do Rio São Francisco, e era outra planta, o caraguatá, ou
caroá no texto, ou Bromelia variegata – conhecida ainda como caroá dos sertanejos.151

A piaçava era a matéria-prima preferencial.152 As cordas de piaçava eram reputadas como à


prova d´água, por isso “particularmente célebre”153 (daí ser preferida às de cairo), “porém um
pouco ásperas e de manuseio desagradável”154, e a capital da província recebia a
mercadoria em grandes quantidades produzida ao longo do seu litoral. A partir da tabela de
Importação e Exportação de 1798, a Bahia exportava a Portugal cordas de piassava.155 Os
estabelecimentos não supriam apenas o mercado interno, dos pescadores mais
rudimentares às armações de navios, como também a metrópole.

Wetherell descreveu o uso de planta fibrosa (a Furcraea gigantea, ou foetida), a pita (ou
gravatá-açu), usada para cordas, em especial para o trabalho no mar, por sua resistência à
água.156 Tollenare falou de “uma imensa cordoaria de piteiro”, parada, visitada em
Itaparica.157 E Wetherell que outro nome da pita era caraguatá158. Sob essa alcunha,
caraguatá ou caroatá, espécie que Gabriel Soares apontou crescer ao longo do mar, foi
mencionada repetidamente por ser fonte de boa fibra, própria para cordas e linhas de coser
e pescar, para tecido e redes.159 O nome geral não necessariamente indica ou discerne
espécies cientificamente catalogadas. Vilhena distingue o gravatá do caraguatá (chamada

148
LUTHER, Aline de Carvalho. Patrimônio Arquitetônico Industrial na Península de Itapagipe: um estudo para a preservação.
2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2012.
149
TOLLENARE, 1956, p.318.
150
Ainda, os atracadouros à beira-mar também se prestavam a fonte de receita ilícita, como receptadores de contrabando.
151
SPIX & MARTIUS, 2016, p.276.
152
VILHENA, 1922b, p.758. MAXIMILIANO, 1958, p.464.
153
SPIX & MARTIUS, 2016, p.82. Charles Expilly afirmava ser a preferida dos marinheiros por resistir “melhor que os outros à
ação do tempo e da umidade” (EXPILLY, 1977, p.258).
154
MAXIMILIANO, 1958, p.231.
155
VILHENA, 1922a, p.54.
156
WETHERELL, s/d, p.36.
157
TOLLENARE, 1956, p.342.
158
WETHERELL, s/d, p.35. Em outra obra, caraguatá (chamada caroatá) e pita são entendidas de modo distinto
(DIÁLOGOS..., 1966, p.131).
159
SOUSA, 2010, p.193; CARDIM, 2014, p.65. VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.44; SIMÃO DE VASCONCELLOS, Livro
Segundo das Notícias Antecedentes, Curiosas, e Necessarias das Cousas do Brasil. In: SIMÃO DE VASCONCELLOS.
Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil... Lisboa: Editor A.J. Fernandes Lopes, 1865b, p.127.

72
caruaa) como duas espécies de “piteira”, a primeira da qual se extraem “optimas fibras para
cordas” e a segunda, “huns filamentos rijissimos de que se fazem cordas, que pouco diferem
das de linho”.160

Figura 45 – Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere. Fonte:


Fundação Biblioteca Nacional. Aqui aparece o rio Camarão, o Outeiro da Areia Preta, eo Canzuarte.

160
VILHENA, 1922b, p.761.

73
Figura 47 – Litoral do Camarão. Fonte: ATLAS PARCIAL..., 1956. A foz do rio Camarão começa a
desaparecer com as obras da Av. Oceânica, que modificam sua calha. As colinas, rente ao mar,
apresentam nesse momento expressivas cavas de pedreiras. Abaixo, pelo relevo se indica o que
seria a foz do rio.

74
As cordoarias poderiam ser estruturas simples em fazendas. Mas uma Fábrica de Cordoalha
e Lonas apareceu no Noviciado nas primeiras décadas do século XIX.

Antonio Vieira da Costa, proprietário da Fabrica de Cordoalha e Lonas, sita


ao Noviciado, tem para vender as obras seguintes: Cabos de linho, dito de
acaroa, Linha alcatroada para enfrexadura, Merlim, Linho em branco para
aderissas de bandeiras, dita para Barquinha, sundarezas de todas as
vitolas, brabante de 2 e 3 fios para redes de pesca das Armações, fio e
Cabos para pesca de Balêa [...]161

Observe-se as demandas: redes para as Armações e cabos para a pesca da baleia. Não se
assume como “cordoaria”, e sim como “fábrica”. Aquela mesma fábrica de cordoalhas era
descrita antes, em 1811, tentando ocupar um espaço de mercado dado pela carência de
fabricantes destes produtos, objetivando “1º, dispensar para o futuro os maçames, e cabos
da Russia [...] e 2º approveitar as espécies sem número de vegetaes filamentosos até agora
inúteis, de que abunda este nosso Continente”.162

As cordoarias parecem ser uma “novidade” do século XIX. O Dr. José da Silva Lisboa em
1781 reconheceu então apenas como manufaturas os estaleiros, as olarias e as fábricas de
óleo de baleia.163 Na segunda metade do século XVIII havia plena atividade da construção
naval, porém faltava algo:

Esta febre de construções navais suscitou ao Capitão Thomas de Souza a


lembrança de propor ao governo o estabelecimento, na Bahia, de uma
fábrica de enxárcias, amarras, lonas, etc., material indispensável à
navegação.

Sugerida ao Vice-Rei Conde dos Arcos, em 1759, a proposta do referido


Capitão, que servia de Patrão-mor na Ribeira das Naus, foi ela muito bem
recebida, tanto assim que, em carta para a Metrópole, o Governador elogiou
a excelência do produto, fabricado com ervas agrestes chamadas gravatá e
ticum, abundantes no solo baiano. (ALVES, 1867, p.135).

A construção naval brasileira apoiava-se na oferta de madeiras de lei da Mata Atlântica,


assim como das florestas de araucária no Sul do país, importando os demais elementos,
que foram sendo gradualmente substituídos, com a exceção das lonas e cabos, ainda
dependente do estrangeiro.164 Isso nos dá a importância das cordoarias. Dos barcos de
cabotagem em operação na Bahia no final do século XIX, o Almirante Antônio Alves Câmara
(1852-1919) relatava que de côco eram feitas as tralhas das velas como os cabos, e os
cabos das amarras, de piaçava, feitos em geral em Nazaré.165

Tais instalações e seus intentos de modernização eram parte de um movimento incipiente


de industrialização, ainda bastante primitivo, atrelada ao porto, ocupando a região do
Noviciado e adjacências, necessitando estar à beira-mar para o transporte da mercadoria.
Por outro lado, aquelas espécies vegetais eram formas de explorar com alguma
rentabilidade o litoral, e, de quebra, minorar a penúria das classes mais baixas, incluindo os
que viviam da pesca. Dessa maneira, de uma certa forma tais árvores se multiplicavam.
Cresciam nas plantações, mas também ecoavam nas construções simples ao seu redor. Por
essa relação da pesca com a tecelagem aplicada, que se pode entender este trecho do
conto A Noiva do Golfinho, de Xavier Marques, passada em Tinharé, em que seus

161
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.99, Terça-Feira 11 de Setembro de 1821. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, 1821.
162
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.1, Terça-Feira 14 de Maio de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1811.
163
ATHAYDE, 2008, p.117
164
GOULARTI FILHO, Alcides. História Econômica da Construção Naval no Brasil: Formação de Aglomerado e Performance
Inovativa. In: EconomiA, Brasília (DF), v.12, n.2, p.309–336, mai/ago 2011, p.313.
165
CÂMARA, 1888, p.113.

75
moradores “trabalhavam dias inteiros no mato a cortar piaçaba, pelejavam na pesca e
marinhagem com borrascas e calmarias”.166

Os Estaleiros
Os estaleiros principais e primeiros estavam na Ribeira das Naus, defronte à Conceição da
Praia, adjacente ao Porto de Salvador. Esta não interfere na nossa investigação, e sim os
estaleiros que eram desdobramentos destes, em outras águas.

Alberto Silva enumera além da Ribeira das Naus: Preguiça, na antiga Ribeira dos
Pescadores; de Santa Bárbara e o da viúva Joana Nascimento, no porto de Salvador; de
Itapagipe; o de Matoim, ou de Ponta de Areia, na foz do rio Matoim167; o de Loreto, na ilha
dos Frades, junto com o de Itaparica, mais voltados ao reparo de embarcações.168 Ao longo
da costa havia estaleiros menores, como os de Garcia d´Ávila, em Tatuapara. Os estaleiros
de Itaparica e Caravellas se especializaram na confecção das lanchas baleeiras.169

As construções de maior porte se instalaram a partir da fundação dos Arsenais da Marinha.


O de Salvador, defronte à Conceição da Praia, é de 1770, o terceiro da colônia, após o de
Belém do Pará e o do Rio de Janeiro. Com demanda variável, os Arsenais fechariam pelo
final do século XIX, o de Salvador extinto em 1899.170 Na segunda metade do século XVIII
cresceram de importância a Ribeira das Naus e os estaleiros de Itapagipe, fabricando os
barcos da marinha real e da marinha mercante.171 Uma relação complementar se
estabeleceu. Em 1775, por exemplo, o armador Teodósio Gonçalves da Silva tentou
construir uma nau no estaleiro Real da Ribeira por falta de capacidade nos estaleiros da
Preguiça e da Ribeira de Itapagipe.172 Vilhena chega a dizer que naqueles de Itapagipe era
que se fazia os barcos de maior envergadura: “dos de Itapagipe [...] hé que os
commerciantes se servem de ordinário para a construcção dos seus vazos de mayor porte,
havendo naquelle citio capacidade para se fazerem muitos ao mesmo tempo”.173 E Martius
apontava que em 1818 as Docas Reais, na Praia, eram insuficientes para a demanda,
extravazada então para a Ribeira, que permitia os maiores barcos.174 Havia alternância e
complementaridade entre as duas regiões da cidade na construção naval. Os estaleiros de
Itapagipe desafogavam os da Conceição da Praia.175 A chegada da Família Real e a
Abertura dos Portos, ao aumentar o volume de transações mercantis, demandou também
reparos e construção, e a abertura de novos estaleiros. No início do século XIX em torno do
Arsenal havia 42 pequenos estaleiros.176

Quanto à construção naval, de um modo geral, nacionalmente a vantagem competitiva das


madeiras de lei foi um dos impulsos para a devastação das florestas atlânticas, ao mesmo
tempo em que deixou de existir pelo próprio progresso tecnológico em outras plagas.177 A
navegação a vapor, e de naus metálicas, de ferro e depois de aço, deslocava a importância

166
MARQUES, 1976a, p.106.
167
Wanderley Pinho (1982, p.131) mostra que Matoim já aparecia nos mapas do Livro que dá Rezão do Estado, e nas cartas
de João Teixeira Albernaz.
168
SILVA, 1953, p.31; p.34.
169
BARROS, J. Teixeira. A Pesca da Baleia na Bahia. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia set
1900. Anno VII, Vol.VII. n.25. Salvador: Typ. e Enc. “Empreza Editora”, Largo das Princezas, n.15 e 22, 1900, p.325.
170
GOULARTI FILHO, 2011, p.312.
171
VILHENA, 1922a, p.225; ALVES, Marieta. O Comércio Marítimo e Alguns Armadores do Século XVIII, na Bahia. In: Revista
de História, v.34, n.70. 1967, p.136.
172
ALVES, 1867, p.136.
173
VILHENA, 1922a, p.225.
174
SPIX & MARTIUS, 2016, p.93.
175
SILVA, 1953, p.31.
176
GOULARTI FILHO, 2011, p.317.
177
Von Martius apontava que, em parte pelas madeiras, “os navios nelas [nas Docas Reais] feitos se distinguem de todos os
outros construídos no Brasil” (SPIX & MARTIUS, 2016, p.93).

76
para a metalurgia (e depois siderurgia) e a mecânica. A falta dessa indústria derrubou os
grandes estaleiros, deixando apenas os menores em ação.178

Os Alambiques
Os alambiques estavam espalhados por toda a baía. Eram pequenos aparatos, sem chegar
ao porte de um engenho, partes e desdobramentos do processo de fabricação do açúcar.
Engenhocas e alambiques não precisavam ter canas no mesmo terreno, assim como
canaviais não tinham necessariamente a aparelhagem para beneficiá-los. De toda forma,
ser à beira-mar era um atributo recorrente.

Em Itaparica faziam parte do leque de atividades das fazendas, conforme relatado por
estrangeiros e brasileiros179, e demonstrado por sucessivos anúncios, até com a
especialização do escravo alambiqueiro: “quem quizer comprar o alambique foi do falesido
Capitão Antonio Luiz de Jesus, sito na povoação da Ilha de Itaparica, prompto de tudo para
trabalhar, com escravos lambiqueiro, marinheiros &c”.180

Também havia na orla exterior da cidade, embora mais rarefeito. Como em Itapuã, como se
viu com a propriedade vendida por Antonio José Froes em 1812. E em 1819:

Quem quizer rematar huma Fazenda de coqueiral, com portos de mar para
armação de peixe, e desembarque em toda a maré, com casa de
alambique, em terras próprias, sita na Itapoan, denominada a Armação
Grande ou do Guimarães, que foi da falecida D. Maria do Rozario, Viuva do
Capitão Francisco de Souza Guimarães [...]181

Decerto os alambiques no Litoral Norte se alimentavam com os canaviais da região.

Aparecia também em Ondina, na Fazenda Areia Preta, em 1816.182 E na Barra como, em


1839, o “alambique, que foi do finado Wucherer, sito na Povoação da Barra com caza de
morar, e todos os seus pertences”.183 E no mesmo ano a venda de “terreno com 5 braças de
frente, e agoa dentro, sito na povoação da Barra”, mais “alambique pequeno com sua
serpentina de estilo”184, isto é, o aparato específico. Nos anos seguintes, a região foi
perdendo essa inclinação produtiva, e as moradas de pescadores, para residências de outro
perfil. Na Barra, como em outras localidades, não temos tanta notícia, ou mesmo nenhuma,
de canaviais próximos. Ser à beira-mar era bem-vindo para receber a matéria-prima, e
retirar o produto.

Veremos com maior freqüência na área portuária e no seu prolongamento funcional, a


Península de Itapagipe. José Antonio Caldas, em 1759, enumera em Salvador e seu termo
22 alambiques: um na Barra, um na Gamboa, um no Unhão, dois na Preguiça, um em Santa
Bárbara, dois no Pilar, dois em Água de Meninos, um no Fortinho (de São Alberto) um na
Jequitaia, um nos Mares, quatro na Ribeira (“Itapagipe”), um na Passage (talvez a
contracosta da Ribeira, após o Forte de São Bartolomeu da Passagem). Com a digna

178
GOULARTI FILHO, 2011, p.316.
179
HENDERSON, 1821, p.328. DÉNIS, 1839, p.233; REBELLO, 1829, p.133.
180
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.77, Terça-Feira 27 de Setembro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
181
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.23, Sexta-Feira 19 de Março de 1819. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1819.
182
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.45, Terça-Feira 4 de Junho de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1816.
183
O CORREIO MERCANTIL n.6, Terça-Feira 8 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
184
O CORREIO MERCANTIL n.46, Quarta-Feira 27 de Fevereiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.

77
exceção de um, na Barroquinha, e de outros 4, cuja localização não identificamos, todos os
demais por certo estavam na linha litorânea.185

Figura 46 – Trechos do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios


(1845), de Carlos Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. Abaixo, à esquerda, roça do Canta-
Galo, à Calçada do Bonfim. Como outros lugares, a toponímia do lugar vem do nome da
propriedade rural anterior. Esse lugar depois será depósito de inflamáveis. Á direita, alambique
entre as Pedreiras e o Unhão. Pela data e localização, seria o alambique de João Gonçalves
Cezimbra.

185
CALDAS, Jozé Antonio. Notícia Geral de Toda esta Capitania da Bahia desde o seu Descobrimento até o Prezento Anno de
1759. In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia, n.57, 1931. Salvador: Secção Graphica da Escola de A.
Artífices da Bahia, 1931, p.235. Um no Calçadouro, e os três últimos, na Fonte de Santo Antônio. A listagem de Caldas
segue um nítido percurso de norte a sul. O Calçadouro aparece entre o Fortinho e a Jequitaia. E a Fonte, após a Passage.

78
Figura 47 – Mappa hydrographico
da bahia de todos os santos (1863),
de Joaquim Marques Lisboa. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional.
Nele, o Alambique do Barão de
Fiaes.

79
No século XIX essa tendência persistiu. Na região do Porto das Pedreiras, em 1839, nota
falava de tramitação judicial das propriedades do falecido Luiz Antonio Pinto Pires e de suas
propriedades “constante de um alambique, com excellente caes com todas as proporções
para embarque e desembarque”.186 E em Sessão Extraordinária de 22 de setembro de 1847
na Câmara Municipal fala-se do “caminho para o alambique do Sr. [João Gonçalvez]
Cezimbra” (Fig.46).187

A norte, já na Ladeira São Francisco de Paula.188 Também em Água de Meninos: “vende-se


huma propriedade de Alambique sito em Agua de Meninos da parte do mar [...] com hum
sobrado grande e morada com janellas de vidraças, em hum e outro lado, e com seu caes
que tem de frente nove braças”.189 Saliente-se o cais defronte, junto com o porte e qualidade
do sobrado. Também havia nas terras a norte da Enseada dos Tainheiros, como Itacaranha,
onde se anunciava uma propriedade “beira mar, com suficiência para Fabrica de cal, e
alambique”.190

Outras Manufaturas
Produtos como rapé, têxteis, o beneficiamento do fumo (primeiro, fumo de corda, mais tarde
cigarros), peças de vidro, vinagre, fundições, sabão, foram fabricados em partes do
Recôncavo, e em Salvador. Antes de saltarmos para a industrialização daquela região da
cidade, precisamos delinear o padrão inicial da aparição dessas fábricas que podemos
contar em poucas dezenas. As chaminés começaram a despontar no litoral.

Na Barra houve fábrica de vinagres na primeira metade do século XIX, de C.L. Wucherer
(talvez o mesmo proprietário do alambique mencionado), perto do forte de São Diogo,
exportando para outras províncias. Em 1851, fundou-se e instalou-se na Barra a Fábrica
Nacional de Fundição de Ferro de Cameron & Smith, por Eduardo Jorge Parker [sic].191
Alguns anos depois se mudaria para Montserrate.

No Porto da Vitória havia em 1863 a Fábrica Victória, de sabão. Depois, ali mesmo, se
instalaria uma fábrica de xales, a Fábrica de Xales Victória, por volta de 1910 (Fig.48).

No Unhão, no seu famoso Solar, estava a fábrica de Meuron e Cia, com a marca Areia
Preta, homônima da fazenda, entre 1816 e 1819 (Fig.49). Em 1824, vieram a público
denunciar imitações.192 Por volta de 1854, havia fábrica de vinagre, de Antônio José Mendes
Bastos, na Preguiça.

Como o Porto era terreno assaz disputado pelos trapiches, as fábricas reapareceriam logo a
norte, como nos anos 1830 a fábrica de sabão de Wenceslao Miguel de Almeida ao
Noviciado.193 Eram propelidos por uma dinâmica nova, que ganhara novo alento no
Oitocentos.

186
O CORREIO MERCANTIL n.18, Terça-Feira 22 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
187
O GUAYCURU n.443, Segunda-Feira 17 de Outubro de 1847. Salvador: Typ. do Gaycuru, de D.G. Cabral, à rua do Bispo,
n.45, 1846.
188
GRITO DA RAZÃO n.28, Terça-Feira 25 de Maio de 1824. Salvador: Typ. da Viuva Serva, e Carvalho, 1824.Talvez o
mesmo alambique vendido, agora com outras casas adjuntas, porém a tratar com José Antônio de Freitas, no ano seguinte
(GRITO DA RAZÃO n.16, Sábado 26 de Fevereiro de 1825. Salvador: Typ. da Viuva Serva, e Carvalho, 1825).
189
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.20, Sexta-Feira 11 de Março de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
190
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.56, Terça-Feira 14 de Julho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
191
REBOUÇAS, Daniel. Indústria na Bahia: um olhar sobre sua história. 1ed. Salvador: Ed. Caramurê, 2016, p.68. Poderia
trata-se de Edward J. Parker, reverendo anglicano, verdadeiro líder da comunidade britânico, e fundamental para a
urbanização do Campo Grande e Barra. Não seria acidental a instalação da fábrica exatamente na localidade cujos acessos
foram melhorados por aqueles anos.
192
GRITO DA RAZÃO n.54, Quinta-Feira 26 de Agosto de 1824. Salvador: Typ. da Viuva Serva, e Carvalho, 1824.
193
As informações pontuais acima, referentes às pioneiras fábricas, quando não indicadas à parte, estão em REBOUÇAS,
2016.

80
Figura 48 – Porto da Vitória (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988. Pela data, seria a
Fábrica Victória de sabão, que Daniel Rebouças (2016) aponta já existir em 1863. A Fábrica de Xales
Victória, que muitas vezes é identificada nessa foto, instalou-se no mesmo local, porém
posteriormente.

Figura 49 – Solar do Unhão, with the Church (1831-41), de François René Moreaux. Fonte:
REBOUÇAS, 2016. Sediava a Fábrica de Rapé Areia Preta.

81
Dos alambiques, e da manufatura nascente, sobre seus sítios, a questão não é exatamente
porque escolheram tais pontos, mas onde mais colocar. Não faz sentido ser terra adentro, já
que todo o transporte se fazia por mar, e os rios não se prestavam a essa penetração. Havia
alambiques em fazendas e engenhos mais interiores, como benfeitorias da propriedade, e
não como estabelecimento dedicado à produção. Muitos pontos da costa eram de difícil
abordagem, mesmo com vertentes a pique. Disseminarem-se pelo interior da baía era o
mais provável, assim como nas margens da atividade portuária mais intensa de Salvador, e
terrenos mais concorridos, aparecendo a partir do Noviciado, e daí por Itapagipe. E foi nesta
Península onde se concentraram, pela extensão de sua costa, não tão disputada palmo a
palmo como era aquela que ia do Unhão até a Jequitaia. Estes guardam um interesse
particular neste trabalho, por isso vamos abordá-lo em capítulo à parte, quando lidarmos
com a urbanização da península.

Os arrabaldes do entorno da cidade eram indiferenciados até certo ponto. Ainda que
predominasse uma dada atividade, receberam esses primórdios da industrialização lugares
como Barra, Vitória, Nazaré, e mesmo muito tardiamente, Rio Vermelho. Os ensaios
paleotécnicos situaram-se ali, não raro com conflitos severos. Em alguns lugares as
residências, ou alguns residentes influentes, lograram expelir tais iniciativas, ganhando para
si apenas as benesses. Em outros, a balança pendeu para os usos fabris. As fábricas
concentraram-se em Itapagipe, espalhadas pela área, não tão pequena, que vai da Calçada,
passando por Mares, Montserrate, Bonfim, Penha e Ribeira. Valia-se da linha litorânea, que
não era pequena, da península, permitindo cais particulares, e mesmo aproveitando-se de
instalações decadentes anteriores (em especial os alambiques).

Salvador tinha, e manteve em boa medida no século XIX, uma maritimidade particular. Ao
contrário do reiterado lugar-comum de uma cidade que por séculos “deu as costas para o
mar”, reduzindo a maritimidade a uma superficial conexão visual, escópica, o que tínhamos
era uma cidade profundamente, umbilicalmente, entrelaçada com os oceanos e com sua
baía. Erguia-se rente ao mar, extraindo de suas costas e das águas os meios para sua
construção, seu sustento e sua prosperidade. Dependia de um arcabouço náutico bem
desenvolvido para coerir o complexo estuarino da Baía de Todos os Santos mais a costa
imediata ao sul e ao norte. A baía era, como dito, seu mare nostrum. Nesse ínterim
transformou aquele litoral dos primeiros séculos.

Sem poder identificar o quadro geral das espécies que minguaram, temos certeza quanto a
espécies mais expressivas, como as tartarugas-marinhas, os peixes-bois e as baleias.

Caieiras e alambiques refluíam, os estaleiros se transformavam, manufaturas simples


começavam a aparecer. No interior da baía, as casas-grandes eram parte relevante daquilo
que se via a partir do mar, da intrincada linha da costa do complexo estuarino. Admiradas,
estavam em lento e constante declínio, interiorizando-se como empreendimento agrícola. Os
manguezais, e não a restinga, eram o bioma relevante, cuja fartura era elogiada, da qual
dependiam as populações ao seu redor e na cidade, e que sofrera com contínuas investidas
de outras atividades produtivas, dependentes de sua madeira como combustível.

As fortificações estagnaram, permanecendo como sentinelas avançadas, em localidades


pequenas e de vida vagarosa. A azáfama do porto se expandia, criava solo, e avançava o
que podia rumo ao sul, rumo ao Unhão, até encontrar o paredão da Montanha, e ao norte,
solidarizando-se com a Península de Itapagipe. Apareciam alambiques e as primeiras
manufaturas, ensaios de industrialização.

82
No mar aberto, o litoral rústico, “selvagem”, que o século XIX encontrou era já bastante
transformado pela mão humana. Destituído da vegetação de maior porte e mesmo de
algumas espécies que caracterizaram a costa nordestina. Essa transformação se deu, em
certa medida, pela ação microscópica e constante, pequena porém persistente, dos
pescadores que eram também roceiros. Com dificuldade, passo a passo, substituíram a
biota. Seu Miguel, em entrevista gravada por Carlos Ribeiro em 1988, testemunhava:

Antigamente, aqui em Itapuã era uma praia cheia de mato, um porto cheio
de mata. Agora, mato: uma fruta chamava joá, outra fruta chamava
cutixaba; agora, uma fruta chamada murta, agora, espinho; era completa de
espinho de mandacaru, espinho de pramatora, espinho de roseta. Era
completa Itapuã.

Então essa gente que chegou foi quem roçou esses espinhos de joá, roçou
os espinhos de cutixaba, roçou os espinhos de mandacaru, roçou os
espinhos de pramatora, roçou os espinhos de roseta que tinha na praia – a
praia toda era os espinhos de roseta que espetavam a gente – foi quem
limpou a Itapuã e quem iniciou a Itapuã. (GANDON, 2008, p.129).

O meio foi domesticado, substituído por uma vegetação menos hostil aos homens, que
servisse de suporte para suas atividades, para sua subsistência mais elementar. A
vegetação mais arisca, tão característica do litoral, era especialmente atacada: “tudo cheio
de mato, mato mesmo, esse espinho de pramatora... Pramatora era o mato que tinha aqui”,
e areia, muita areia, “que quentura que era a areia! Era uma areia! Era uma areia!...”194, dizia
Dona Ana, nascida em 1924.

Onde estavam os “tantos” cajuais que Gabriel Soares viu, e que fizeram a fama, por
exemplo, de Olinda?195 Cajuais que, para Theodoro Sampaio, foram motivo fundamental
para a fixação dos tupis em determinados locais, junto com o pescado e o marisco.196
Existiram um dia, sem jamais fazer parte da imagem da cidade. Sua ausência na maioria
das representações parece ser injusta. Os raros testemunhos específicos lembravam-se dos
cajuais. Dizia Dona Helena, nascida em 1926, sobre Itapuã e suas redondezas: “era tudo
mato, cajueiro, tudo era fruta”.197 Yves Quaglia, nascido em 1960, falando da região de
Jaguaribe e Piatã: “naquela parte ali de Placaford existia até cajueiros ali, certo? Cajueiros
naquela área, pra você ver... Existia uma vegetação bem densa”.198

Os coqueirais foram o resultado mais duradouro da atividade da Bahia colonial, não


vingando os engenhos naquele entorno. No século XX, se pôde dizer que as praias de fulva
areia, como aquelas de Amaralina a Itapuã, eram “emolduradas por coqueirais infindos a
darem à paisagem graça inconfundível”.199 Talvez sua época áurea fossem os séculos XVIII
e XIX. Tornaram-se a face daquele litoral, vistos por forasteiros àquelas paragens como uma
extensão contínua.

Os coqueiros! Você vinha de lá de Amaralina e começavam os coqueiros...


Começa ali, daqueles coqueiros dali... que não foi nem de Jans [refere-se a
Hans Grave], hoje tem este nome, eram de Seu Duprat aqueles coqueiros.
Aí você vinha... na Boca do Rio tinha os Coqueiros de Seu Santana,
passava Seu Santana, tinha os Coqueiros de Julieta – as fazendas eram
coqueiros –, passava os Coqueiros de Juliera era de [palavra
incompreensível], depois eram os de Dona Senhora. De Dona Senhora, os
de Chiquinho de Jaguaribe. De Seu Chiquinho, os de Seu Rafael. De Seu

194
GANDON, 2008, p.240.
195
Cuja destruição começou somente a partir dos anos 1930 (ARAÚJO, 2007, p.280).
196
SAMPAIO, 1949.
197
GANDON, 2008, p.240.
198
GANDON, 2008, p.241.
199
FALCÃO, Edgard de Cerqueira. Excerptos de História da Bahia. Salvador: 1956, p.20.

83
Rafael vinha pra tia Candinha. De tia Candinha vinha Seu Lúcio Caetano,
onde é Piatã. De Seu Lúcio Caetano vinha Frutuoso. De Frutuoso vinha Seu
Zeferino, passava, vinha Professor Teotímio, aí subia: Seu Maurício – pai de
Nicanor –, Seu Malaquias, Seu Joventino, Seu Martiniano Maia e outros. [...]
(Dona Francisquinha) (GANDON, 2008, p.256).

Tais nuances, as divisões por proprietários, eram conhecidas por quem tinha intimidade com
aquela extensão. O que ficou como imagem do local, preservada no cancioneiro, em fotos,
gravuras e literatura, foram os infindos coqueirais.

Continuaram as pedreiras, pontuais, erodindo silenciosamente as colinas. Algumas reses


continuaram, remanescentes das manadas que avançaram pelos sertões da Província. Os
Contratos encolhiam, fechavam, arruinavam-se, enquanto as próprias baleias visitavam
cada vez menos as águas. A pesca, embora com feição rudimentar, era atividade
promissora no Oitocentos. Este é um mundo tão intrincado, rico em detalhes, e fundamental
para esta história, que merece um capítulo à parte.

84
2
O Mundo da Pesca

Na formação do litoral, o aspecto mais importante talvez seja o da pesca e da mariscagem.


Seus trabalhadores não estavam apenas nas bordas do Porto: a sul, nas Pedreiras e
Unhão, e a norte, em Água de Meninos e Jequitaia. Eram quem intermediava esse contato
mais íntimo com o mar, sobre suas águas e mergulhando nelas. Quem penetrava nos
meandros dos manguezais, quem situava-se nas brechas dos costões rochosos da Barra a
Amaralina e quem espraiava-se além, pelas restingas da orla atlântica.

Trataremos aqui de identificar tais nucleações, e averiguar como relacionavam-se com o


meio imediato, como correspondiam-se entre si, como conformavam a paisagem, o que se
via, com aqueles aparatos que foram a assinatura visual do litoral e mesmo da Bahia:
jangadas, saveiros, redes de arrasto. E como articulavam-se com a cidade. Esses povoados
eram a face indispensável para se entender as preexistências do futuro veraneio balnear.
De entrada, é preciso entender como ocorria a pesca no Oitocentos.

As características físicas da Bahia amoldam de forma particular a pesca e a mariscagem.


Apesar da reiterada abundância das águas interiores, o mesmo não se repete nas águas de
mar aberto. O pescado é produto de apenas 10% do oceano: 9,9% em mar costeiro,
epicontinental, e 0,1% em ressurgências, tidos como oásis do mar. Apesar do extenso litoral
de 800 km, a plataforma continental baiana é estreita e em seu alto-mar não há
ressurgências, daí seu pescado, apesar de bom, ser escasso em volume. Se no sul do país
os peixes aparecem em cardumes, capturados em rede, no Nordeste eles vivem
individualmente, em tocas, os pesqueiros, recolhidos por anzol, com custo maior de
produção.1 Esses pesqueiros são bancos onde o peixe aparece em abundância, guardados
como segredos por seus descobridores, como veios de minério para mineradores. Somente
ali a pesca é viável, e é preciso ir a tais pesqueiros, porque muitos peixes não vêm à costa.2

O complexo estuarino da Baía de Todos os Santos, por outro lado, se não apresentava os
cardumes de pescado, tinha outra forma de fartura. Espantou nos primeiros séculos a
abundância das ostras, afixadas ao tronco e raízes das árvores das águas salobras, ao
alcance da mão.3 O mesmo para muitos dos artrópodes, como os aratus, os guaiamuns, e o
caranguejo-uçá, retirado de suas tocas com o braço nu, a imagem enganosa da facilidade.4
Manuel de Santa Maria Itaparica, em sua Descrição da Ilha de Itaparica, de 1769, enumera
os frutos do mar, e algo da predileção da época: “Também se cria o lagostim gostoso,/ Junto
co´a ostra, que por ordinária/ Não é muito estimada, porém antes/ Em tudo cede aos polvos
radiantes”, junto com os camarões, pouco atrativos in natura, e “Os c´ranguejos nos

1
IVO, Anete Brito Leal. Pesca: Tradição e Dependência. Um estudo dos mecanismos de sobrevivência de uma atividade
“tradicional” na área urbano-industrial de Salvador. 1975. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador. 1975.
2
Licídio Lopes (O Rio Vermelho e Suas Tradições – memórias de Licídio Lopes. Salvador: Fundação Cultural do Estado da
Bahia, 1984, 112p) fala do vermelho, que só aparece a 200 m de profundidade. Os pesqueiros ditos “fundos” têm de 150 a
200m. Para uma situação geral, Alina Sá Nunes (Habitats essenciais para os peixes explorados pela frota “linheira” do Porto
de Santana, Rio Vermelho, Salvador-Bahia. 2002. Dissertação (Mestrado em Geologia) – Instituto de Geociências,
Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2002) identificou que os pescadores do Porto de Sant´anna, no Rio Vermelho, ao
todo recorriam a 130 pesqueiros. Se por um lado a sucessão do tempo tende a aumentar os pesqueiros – por naufrágios e a
ação humana – podemos considerar que a fecundidade dos mesmos tende a cair pela sobrepesca geral e pela
contaminação crescente das águas. Assim que o número deles pode ser maior do que os usualmente explorados no
Oitocentos.
3
ROCHA PITA, 2013, p.52.
4
SOUSA, 2010, p.280.

85
mangues escondidos/ Se mariscam sem arte industriosa,/ Búzios também se vêem, de
musgos sujos,/ Cernambis, mexilhões e caramujos”.5

O século XIX é um hiato sob muitos aspectos. Muita documentação de que dispomos, mais
específica, data dos tempos coloniais, enumerando as riquezas naturais, a abundância do
meio e os modos de preparo, necessários ou singulares, do pescado e do marisco. No
século XX, o interesse etnográfico cruzou-se com as memórias de quem veio daquele
mundo ou que cresceu naquele ambiente. Optamos pela interpolação necessária, apesar
dos riscos inevitáveis que traz.

2.1. Quem eram os Pescadores

Quem pescava? Quem fazia parte dessas pequenas comunidades, algumas imediatamente
adjacentes à cidade?

No começo do século XVII, o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil afirmava que a
pesca em alto-mar era tarefa dos escravos, ao menos em Pernambuco6. Havia
especialização dos escravos quanto às tarefas do mar, divididos de acordo com a
modalidade de extração ou sua parte em um trabalho dividido socialmente7. Havia os
mariscadores: “a Francisco José Pinto Cirurgião Mór na Villa da Caxoeira lhe fugirão [...]
dous escravos da Villa de Maragogipe, ambos mariscadores”.8 Os pescadores, postos à
venda, como “hum Crioulo Manoel de Santa Anna, bom marítimo, e pescador”.9 E
mergulhadores: “a Viuva D. Maria Francisca da Conceição [...] faz sciente ao Público, que
tem para vender hum escravo de Nação Angola, ainda moço, bom mergulhador,
pescador”.10

Gilberto Freyre defendia que houvera mudança expressiva na composição étnica das costas
nordestinas. Sequer seria o lugar do caboclo, mas do negro, do africano e do mulato,
vivendo em seus mocambos: canoeiros, barcaceiros, jangadeiros.11 Wetherell em 1856
pintou quadro um tanto selvagem no litoral baiano: “muitos dos pretos, sobretudo os
homens, que vivem à beira-mar usam os dentes tão limados que isto lhes dá uma aparência
assaz selvagem”12, lembrando-lhe os tubarões. João José Reis comenta que é uma
intervenção relativamente rara. Era costume comum entre os iorubás e outros povos
africanos em seu continente original, e encontrara menções a eles entre os ganhadores e
algo nos anúncios de escravos foragidos. Tudo lhe era enigmático nessa marca corporal
específica, parte dos sinais distintivos dos africanos na Bahia: “de onde, de qual contexto
social e cultural tiraram eles a idéia para essas alterações dentárias, eu ainda não sei.
Também ignoro por que a adotaram”.13 Não sabia se tal modificação visava algum resultado
estético, se era algum ritual ou tinha fins intimidatórios. Comentando as descobertas
arqueológicas, apontava que esse desenho serrilhado específico, justo o descrito por
Wetherell (menção que parece haver lhe escapado), era o mais raro. Que tal hábito fosse
visto pelo inglês entre os negros pescadores (os trabalhadores do Porto não viviam naquela

5
ITAPARICA, 2011, p.24.
6
DIÁLOGOS..., 1930, p.231.
7
Silva (2001, p.86) fala em pescador de rede, pescador de alto, camaroeiro, caranguejeiro, em Pernambuco. Não encontramos
estes termos no material pesquisado para a Bahia.
8
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.8, Sexta-Feira 28 de Janeiro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1814.
9
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.13, Terça-Feira 15 de Fevereiro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
10
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.91, Sexta-Feira 13 de Novembro de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.
11
FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo: Livraria José Olympio, 1951, p.75.
12
WETHERELL, s/d, p.133.
13
REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 a Bahia. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2019, p.351.

86
beira-mar), e que seria hábito mais próprio dos africanos, e não dos crioulos, dos negros
nascidos em solo brasileiro, é algo bastante interessante, enigma ainda por resolver.

Fábio Bandeira e Ronan Caires de Brito deduzem que boa parte das comunidades
pesqueiras atuais da Baía de Todos os Santos teriam procedência quilombola.14 Há de se
tomar com cautela a afirmação. Esse litoral seguramente era o imediato ao da Baía de
Todos os Santos, irradiando-se da maior concentração de africanos, que era Salvador.
Maximiliano de Wied-Neuwied reconhecia que a população litorânea era de “índios
civilizados da costa”, e perfaziam, ao menos nas primeiras décadas do Oitocentos, os
jangadeiros por excelência do sul da Bahia: “cada família possui a sua embarcação, posta
de pé na areia da praia”15, bastando virá-la e aproveitar a maré enchente.

Sobre as comunidades pesqueiras de africanos, a escassez de dados sobre o assunto, e o


raio de abrangência de sua localização, tem levado a esse tipo de inferência, inverossímil do
ponto de vista quantitativo: podem estar assim distribuídas, mas não ser majoritárias.
Deveriam mesclar-se com pessoas oriundas de outra situação. Mas o argumento de que
essas minúsculas comunidades, localizadas fundo nos manguezais, abrigariam escravos
fugidos não é de todo injustificado.

Luiz Geraldo Silva matiza esse quadro.16 Os escravos negros seriam majoritários nas áreas
urbanas e vizinhas aos engenhos. Nas áreas não-açucareiras e em outras Províncias (como
Alagoas e Paraíba), os pescadores eram homens livres, de etnias diversas.

Adriano Bittencourt Andrade, a partir de dados de 1775, observou que nas freguesias do
Recôncavo havia um número maior de marinheiros cativos do que forros; porém o número
de pescadores era equânime, deduzindo que era uma atividade disponível ao alforriado.17
Isto põe em questão a associação da pesca com o trabalho escravo. Desse mesmo
recenseamento, Tânia Risério d´Almeida Gandon notou outro aspecto.18 Que, se havia
1.267 pescadores forros, menos de 100 eram brancos, e mais velhos em sua maioria. A
grande maioria era de pardos e pretos, e simples pescadores de redes, cofos e tarrafas. E
que a pesca da baleia era, naquele momento, atividade de escravos, sendo menos de 80
dentro de todo aquele universo.

Na segunda metade do século seguinte a composição étnica e laboral dos pescadores de


Salvador, da cidade, levantada a partir de escrutínio dos documentos por Rafael Davis
Portela, era distinta dessa imagem. Em 1861, pretos e pardos, nas matrículas de
pescadores, estavam subrepresentados quanto à composição da população geral da
cidade. O mesmo valia para os escravos, em 1872, formando 6% dos pescadores, sendo
12% do total dos homens da Bahia. Conclui Portela ser mito, ao menos nesse período, que
a pesca fosse atividade majoritariamente de escravos ou de negros.19 Acredita ainda que
mulheres exerciam o ofício, embora sem encontrar dados que confirmassem a presença das
mulheres na tarefa da pesca, a partir do exemplo do Pará e de comunidades pesqueiras
atuais.20

A atividade era rentável; podia-se enriquecer nessa lida. Ademais o pescador tinha
autonomia, o que não era algo ruim então. Essa situação soa paradoxal porque em seus
primórdios parece ser uma atividade de escravos, e no século XX, seria um ramo da

14
BANDEIRA, Fábio Pedro S. de F. & CAIRES DE BRITO, Ronan Rebouças. Comunidades Pesqueiras na Baía de Todos os
Santos: aspectos históricos e etnoecológicos. In: CAROSO, Carlos; TAVARES, Fátima; PEREIRA, Cláudio (org.). Baía de
Todos os Santos: aspectos humanos. Salvador: EDUFBA, 2011.
15
MAXIMILIANO, 1958, p.333.
16
SILVA, 2001, pag, 83.
17
ANDRADE, 2013, p.101.
18
Do Arquivo Histórico Ultramarino, compilado por Castro Almeida (apud GANDON, 2008).
19
PORTELA, 2012, p.69.
20
PORTELA, 2012, p.121.

87
economia completamente depauperado, dando a impressão que estes são herdeiros diretos
daqueles, em uma situação ancestral e imutável. Talvez tenha havido essa mudança étnica,
e da presença de homens livres, no século XIX. E não se deve desconsiderar também uma
paralaxe no olhar: os estrangeiros verem os baianos como mais escuros (ou mais
mesclados, com índios e africanos) do que eram, e os baianos se identificarem como mais
claros, até pela condição de homens livres.21 A cor da pele tinha certa plasticidade, a
depender bastante do status social, tanto na auto-imagem como no trato social.22

Perpassa a existência das comunidades pesqueiras, além da sua importância para a


economia e subsistência de toda a cidade, a escassez de pessoas experientes na
navegação. A Capitania dos Portos registrava os trabalhadores do porto, dos rios e os
pescadores, esquadrinhando esse perfil laboral por motivos de segurança nacional, dada a
falta de gente capacitada para a marinha mercante de guerra.23 O recrutamento forçado era
um expediente para aproveitar essa “reserva” de mão-de-obra, levando a um curioso e
importante episódio da história de Salvador: a aparição miraculosa de Nossa Senhora de
Sant´Anna avisando aos pescadores do Rio Vermelho do iminente recrutamento, feito
comemorado anualmente com festejos fundamentais para a cidade.24 A matrícula dos
trabalhadores do mar era meio fundamental para o recrutamento convencional e a formação
da reserva naval. Entendia-se o mar como de usufruto comum, bastando para tanto a
matrícula na Capitania dos Portos, o pagamento de uma pequena taxa, e uma vistoria
regular, mensal, dos registrados. Em troca podiam ser convocados a qualquer momento em
caso de guerra.25

Alguns dos pescadores se recusavam a matricular-se, usando como meio para evadir o fato
de que muitos tinham ocupações várias ao longo do ano, passando por roceiros, ou coisa
que o valha.26 Essa mudança de ênfase seguramente acompanhava as estações, a
disponibilidade dos recursos naturais. Uma antiga moradora de Itapuã, Dona Francisquinha,
contava sobre seu pai, que “trabalhava no verão na rede de armação. No inverno trabalhava
no mato, na roça, rocinha pequena”.27

Tal ambivalência dos trabalhadores era ainda equivalente à variedade das capacidades das
propriedades. Todo engenho precisava estar atrelado à rede hídrica, para escoamento de
sua produção. Por outro lado, ganha um incremento em sua produção, e na subsistência
dos empregados, escravos e meeiros, a proximidade do mangue e do rio, com os “currais”.
Mas repetia-se nos povoados mais “autônomos”, que assim lançavam seus braços para o
mar, mesmo o mar alto, e para a terra, a fim de garantir sua sobrevivência.

Daí que por “pescador” não devemos considerar como uma ocupação estável e exclusiva
daquelas populações à beira-mar.

21
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.86; WETHERELL, s/d, p.15; SPIX & MARTIUS, 2016, p.107; SUZANNET, Conde
de. O Brasil em 1845: Semelhanças e Diferenças Após um Século. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1957, p.43.
22
SPIX & MARTIUS, 2016, p.107. Henry Koster contava que um mulato, alçado à condição de capitão-mor, tornava-se branco,
o que fora repetido por outros (DENIS, 1980, p.158; RUGENDAS, s/d, p.127; EXPILLY, 1977, p.196). O mesmo Expilly conta
esse caso acompanhando uma experiência própria com capitães-do-mato, que negavam sua condição de mulatos: só
poderiam ser brancos (EXPILLY, 1977, p.196).
23
Motivo pela qual, apesar da exigência legal da maioria de brasileiros para a navegação de cabotagem, a alta presença de
estrangeiros nela (PORTELA, 2012, p.34).
24
QUERINO, Manuel. A Bahia de Outrora. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955a, p.137. Há duas versões para o
episódio miraculoso, que veremos em outro momento.
25
PORTELA, 2012, p.38.
26
PORTELA, 2012, p.46.
27
GANDON, 2008, p.274.

88
Figura 50 – Perfis das embarcações nas águas da Baía de Todos os Santos no Oitocentos. Fonte:
CÂMARA, 1888. A paisagem da baía era coalhada com tais naus.

89
2.2. Os Pescadores e o Meio
A extração dos recursos da natureza dependia das características da fauna marinha. De
como ela se distribuía nos diferentes ambientes (praias de areia, recifes, manguezais, mar
aberto, etc.) e seus ciclos próprios. Cada localidade se adaptou a esse arranjo, dispondo de
instrumentos específicos para cada situação, lançando-se em diferentes momentos a cada
ponto da costa para seu sustento. Cada grupo humano, uma vez assentado em um local,
explorava uma variedade de meios – os recifes, o mar aberto, o mangue, o mar próximo –,
em busca de distintas criaturas, em momentos adequados ou pelo acesso mais franco
(como as marés vivas) ou os ciclos das espécies (a exemplo da desova). Aplicaram um
conjunto de técnicas, heterogêneas entre si (envenenamento, arpões, cercados de madeira)
de acordo com a circunstância, e não necessariamente em um local ou outro. Algumas
destas foram aperfeiçoadas, com novos materiais (o nylon, no século XX, por exemplo) ou
equipamentos. Outras se mantiveram quase que as mesmas. Tateando o meio ao seu
redor, dependendo profundamente dele para sua subsistência, em uma sociedade da
carestia, ganhavam um conhecimento íntimo do mesmo. Os rios das redondezas eram
também fonte preciosa de recurso. Em sua foz, para a pesca pois as águas, carregadas de
sedimentos orgânicos vindos da terra, formava ambiente propício para os peixes. No
encontro das águas salgadas com as doces, e nos pequenos afluentes, mariscava-se. A
população de Itapuã, por exemplo, pescava e mariscava no rio Jaguaribe e córregos
próximos.28 Como dito, ainda, iam para as roças, para o pequeno cultivo.

Embora houvesse situações mais gerais, como a pesca e mariscagem na baixamar, a


relação com o meio estava mediada por uma aparelhagem e por técnicas um tanto
particulares, algumas visualmente marcadas, com forte relação com biomas específicos. No
interior da baía, mais marcada pelos manguezais, até bordejar a cidade, na região de Água
de Meninos no primeiro século, imperavam as canoas. No mar aberto, estavam as jangadas,
e depois os saveiros.

Essa diferença tinha uma escala mais ampla que a local. A Baía de Todos os Santos era
local de inflexão no perfil das populações tradicionais litorâneas, fazendo a transição
daquelas mais próprias do Rio de Janeiro e Espírito Santo, que Antônio Carlos Diegues
chama de pescadores artesanais, na falta de uma denominação melhor, para a dos
jangadeiros, característicos do litoral nordestino dali até o Ceará.29

Os instrumentos empregados eram meios de produção, e como tais merecem alguma


atenção, isto é, na sua posse e nas relações sociais daí decorrentes.

As redes eram reguladas e recebiam licença, pagas as devidas taxas, relacionadas ao


tamanho da bitola (dos alvéolos da malha) e o tipo de pescado que consequentemente
poderiam apresar, incluindo os alevinos, o que afetava a reprodução dos peixes e a
sustentação da cidade a médio e longo prazo. Mas as redes eram caras, a ponto de serem
herdadas. Mais valia seu constante reparo. Como outros equipamentos da pesca, exigiam
muitos homens trabalhando em torno de um meio de produção com um proprietário apenas.
Ter a rede era a realização da vida de um pescador, o esforço de toda uma vida, e um
símbolo de status. A rede para águas rasas era a de calão, já mencionada, feita de algodão

28
GANDON, 2008 p.271.
29
DIEGUES, Antônio Carlos (org). Povos e Águas. 2ed. São Paulo: NUPAUB-USP, 2002, 597p. Ele define as populações
tradicionais como aquelas que complementam extrativisimo vegetal, o artesanato, pequena agricultura com a pequena
pesca, feita em canoas. Esse é o perfil que se encontra espalhado pelo litoral, e tem forte presença no Recôncavo Baiano. Já
os jangadeiros são “pescadores marítimos que habitam a faixa costeira situada entre o Ceará e sul da Bahia, pescando com
jangadas ou com botes, que muitas vezes sucederam as jangadas, sobretudo a partir dos anos 50, no Nordeste” (DIEGUES,
2002, pag 43). Maximiliano de Wied-Neuwied encontrara as jangadas na região do rio Uma, e especulava que “talvez seja
esta região a mais meridional das em que cresce o pau de jangada” (MAXIMILIANO, 1958, p.333), notando essa inflexão da
canoa ao sul para a jangada a norte: “mais ao sul desaparecem as jangadas e só se vêem canoas; mais ao norte, pelo
contrário, estas rareiam e aquelas é que se tornam comuns” (MAXIMILIANO, 1958, p.333).

90
entretecido com piaçava, a cada 8 dias banhada pela casca do mangue vermelho, e
requeria no mínimo 8 homens trabalhando com uma delas. Rafael Portela documenta uma
rede de 10 x 220 m os de tamanho, e em torno dela se aglutinavam os demais pescadores,
sem posses, trabalhando sob o comando estrito do seu dono.30

O mesmo com os barcos, com uma porcentagem fixa que revertia ao proprietário.31

E estes “direitos” somavam-se. Por exemplo, na pesca feitas com munzuás em canoas, o
pescado considerado bom era dividido em quatro partes: uma ia para o dono dos munzuás,
outra para o dono da canoa ou embarcação em geral, a terceira para o mestre, que
conduzia a operação e a quarta para os demais. A questão é que as três primeiras partes
normalmente convergiam em um mesmo indivíduo, que era o mestre, o dono das redes
aparelhos, e dono do barco.32 Na pesca por rede, o pescado capturado era dividido em duas
partes: a primeira ia para o dono do barco e da rede, e a segunda, aos pescadores. Porém o
proprietário também era o mestre, ganhando uma parcela da segunda metade também. Na
pesca de linha, havia o quinto, a quinta parte do pescado que revertia para o dono da
canoa.33 Conseguir o meio de produção era meio de obter autonomia sobre sua atividade, e
poder arregimentar mão-de-obra e passar a explorá-la. Eram cobiçados por sua importância,
prática e simbólica, sinal de status, e de alcançar o pináculo da atividade.

Isso vale para as principais atividades extrativas do litoral: as Armações de Xaréu (também
chamadas “de Pescado”) e as Armações ou Contratos de Baleia. Armação era o nome geral
dado à relação contratual entre um proprietário dos meios de produção da atividade
marítima – engenho de frigir e baleeiras no caso da pesca das baleias, as grandes redes de
arrasto para a pesca do xaréu, saveiros –, e seus escravos ou assalariados. Esse
proprietário, às vezes chamado de armador, poderia inclusive ser alguém que também se
engajava fisicamente na tarefa da pesca.34 Habitualmente era aplicado ao pescado, em
especial o xaréu, mas também podia ser àqueles estabelecimentos dedicados ao
beneficiamento, por elementar que fosse, das baleias.

Estes casos serão vistos a seguir.

Na Baía: manguezais, gamboas e canoas


Um dos expedientes empregados para extrair do meio seus recursos era o das gamboas e
currais. Era uma técnica de origem indígena, que reproduzia, como artifício, o que se
encontrava na própria natureza: a retenção da água do mar com pescado na baixamar.

Gabriel Soares falava de “tapagens de pedras e de paus, a que os índios chamam


camboa”35, ora “cercas de pedra insossa” (alvenaria seca, sem argamassa), com as quais
capturavam peixes como meros e piraquiras.36 Um desses artefatos em pedra chegou a
batizar um lugar na cidade: a Gamboa.

Theodoro Sampaio tinha uma hipótese no mínimo ousada: que o atual Largo da Barra fora
uma gamboa às mãos de Diogo Álvares Correa, onde a água entrava na preamar, e se
retinha ali na baixamar. Um saco, como os fluminenses, original do terreno, que o Caramuru
aproveitara para constituir uma gamboa, aterrada nos séculos seguintes.37 Os elementos

30
PORTELA, 2012, p.112. As informações acima têm a mesma fonte.
31
Licídio Lopes (1984, p.43), falando do século XX, diz que essa porcentagem era de 20%, ou o quinto, do lucro bruto.
32
CÂMARA, 1911, p.31.
33
CÂMARA, 1911, p.32.
34
PORTELA, 2012.
35
SOUSA, 2010, p.270.
36
SOUSA, 2010, p.279.
37
SAMPAIO, 1949, p.138.

91
que Sampaio usa são tênues e circunstanciais e o esforço em aterrar tal saco seria
descomunal. E inverossímil.

Durante a invasão holandesa, capitães brasileiros vigiaram os invasores em Montserrate


que foram emboscados e capturados “saindo do forte de S. Filipe a pescar a umas camboas
que ficam perto”.38 Pela conformação física, provavelmente estavam no esteiro do rio Pirajá.
Porém no século XIX não estavam mais aí, recolhendo-se para os rios do fundo da baía. De
paus, tinham então outro nome:

Em muitas das partes baixas da costa, e mais particularmente nos rios, em


locais onde eles se espalham e formam como que umas lagoas, existem
lugares de pesca chamados “currais”. Tais currais são cercas irregulares,
feitas com estacas firmemente colocadas a certa distância uma das outras;
pedaços de madeira entrelaçados com folhas de palmeira são colocados
entre a parte alta das estacas, mas sem chegar até o alto das mesmas;
quando a maré sobe, o peixe entra no interior dessas cercas, passando por
cima delas; e quando a maré baixa, os peixes que ficam prisioneiros são
facilmente apanhados em redes ou costas. (WETHERELL, s/d, p.47).

Os currais eram centrais na pesca em Pernambuco e motivo de conflitos explícitos quanto à


navegabilidade das águas e ao usufruto dos recursos pesqueiros, e entravam na categoria
dos meios de produção, cuja propriedade era fundamental, como eram as redes e barcos.
Na Baía de Todos os Santos o mesmo não se repetiu. Estavam mais ligados à subsistência,
na contracosta de Itaparica, no estreito do Funil, em rios do Recôncavo, de proprietários
sem muitas posses. Essas estruturas ainda existem nos rios do Recôncavo.

Esses currais nos rios do Recôncavo eram invariavelmente alcançados por canoas.

São feitas de uma única peça de madeira39, vinhático nos dias de hoje40, e que parecia já
ser o material vigente no século XVIII, único material que encontramos nos anúncios de
“uma canôa de vinhatico de 2 ½ palmos de boca, e 40 de comprido, propria para pescaria”41,
ou de “4 canoas de vinhatico, 2 de 3 ½ palmos, e 2 de 4 palmos de boca”.42 Eram as canoas
nos tempos indígenas movidas a remo, e depois ganharam velas e as peças para seu
controle (Fig.51).43 Não eram no século XIX apenas uma lembrança de uma época
eotécnica.44

Com suas velas abertas e uma forte brisa a soprar, é extraordinária a


velocidade com a qual essas embarcações, de aspecto perigoso, voam por
cima das ondas; um, dois ou por vêzes três homens, cada qual amarrado ao

38
VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.400.
39
Depois recebe “remendos”, de outras madeiras.
40
CABRAL, João de Pina. A Ambiguidade dos Meios: ensaio ergológico sobre canoas de vinhático no Baixo Sul da Bahia. In:
CAROSO, Carlos; TAVARES, Fátima; PEREIRA, Cláudio (org.). Baía de Todos os Santos: aspectos humanos. Salvador:
EDUFBA, 2011. Especifica ser o Plathymenia reticulata Benth. (“vinhático-do-campo”, “amarelinho”, “pau-amarelo” ou “pau-
de-canela”), e não o Plathymenia foliolosa Benth. (“vinhático-da-mata”, “vinhático-rajado”), mais comum no litoral, muito
menos o “mogno da Madeira”, também conhecido por vinhático popularmente. Antônio Alves Câmara, que conheceu tais
canoas pessoalmente, indicou outra espécie para esse “vinhático”, a Echyrospermum Balthazarii (CÂMARA, 1888, p.179). O
mesmo João de Pina Cabral (2011, p.337) põe em questão até o termo “vinhático”, que denomina espécies muito diferentes.
Ubiratan Castro de Araújo (2011) fala que originalmente era de sucupira, embora não encontramos que nada o endossasse.
41
O CORREIO MERCANTIL n.6, Terça-Feira 8 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. so Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
42
O CORREIO MERCANTIL n.149, Terça-Feira 14 de Julho de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
43
CARDIM, 2014, p.57; SOUSA, 2010, p.303.
44
Há um esboço de caracterização da técnica, a partir da História Ocidental, em grandes períodos e complexos, feito por
Patrick Geddes, e depois aperfeiçoado e aprofundado por Lewis Mumford (Técnica y Civilización. 2Vol.Buenos Aires: Emecé
Editores S.A., 1945): uma fase eotécnica, outra paleotécnica e, por fim, uma fase neotécnica. A eotécnica, baseada na água
e no vento como forças motrizes em máquinas de madeira. dependia de insumos locais, em boa medida. A paleotécnica,
ancorada no carvão e no ferro, era cada vez mais internacional, com sua matéria-prima, tecnologia, insumos. Os saveiristas
de Jorge Amado eram o retrato de uma economia que se “retraíra”, entre outros aspectos, porque não acompanhara o
restante do sistema mundial, e que mantivera sua tecnologia sem grandes aperfeiçoamentos, dentro do perfil eotécnico.

92
mastro com uma corda passada em redor do peito, ficam de pé sobre a
beirada da canoa. [...] Naturalmente, quanto mais calmo o mar quanto maior
a velocidade desenvolvida. (WETHERELL, s/d, p.133).

Apesar da fragilidade e da baixa capacidade de carga, compensavam com a velocidade, a


velas plenas, para produtos sensíveis, como “o peixe e os tipos de frutas mais delicadas”.45
Também transportavam passageiros, com cadeiras ou esteiras e travesseiros ao fundo, com
uma sombrinha a proteger a cabeça.46

Figura 51 – A canoa, com seus velames, de emprego na Bahia. Fonte: CÂMARA, 1888.

Assim, as canoas ligavam as partes do Recôncavo por seus rios e pela vasta baía. Como
visto, garantindo a velocidade para transporte de material perecível à capital faminta. Mas
outro motivo de sua presença era ser instrumento eficiente para um meio ambiente
específico, o veículo par excellence para a penetração nos meandros dos manguezais, em
suas rasíssimas águas. Sem a canoa, não seria possível sequer sua ocupação humana,
quanto mais sua exploração.47 E, conectando com velocidade as partes da baía, levando
alimentos perecíveis, cimentava-lhes a unidade. Por primitiva que pareça, a canoa era
imprescindível para tanto.

Existia uma pesca em águas próximas, com linha de fundo e rede, em canoas e jangadas.
Desta maneira, o peixe mais pescado era a tainha, importante já na Salvador colonial.
James Wetherell fala em 4 ou 5 canoas realizando-as48, mas Antônio Alves Câmara, que
descreveu toda a mecânica da pesca, com detalhes, marcou que era necessariamente em
números pares. As tainhas, que deram o nome à Enseada e ao Porto dos Tainheiros, não
estavam ali por acidente, relacionando-se com o bioma local. Apareciam na floração e
frutificação do mangue, quando grandes cardumes percorriam aquelas águas. E, assim, era
pesca que se repetia por todo o Recôncavo. Certos detalhes desta modalidade de pesca, e
seu pescado, têm relevância para outros ângulos desta pesquisa.

45
WETHERELL, s/d, p.39. O mesmo fato, a embarcação mais veloz que as demais transportando frutas e pescado, for a
apontado por Dugrivel (1834, p.364).
46
WETHERELL, s/d, p.101.
47
CABRAL, 2011, p.331.
48
WETHERELL, s/d, p.73. É descrita, no século XX e localizando-a na Enseada dos Tainheiros, por Jafé Borges (2001) e
Ezequel da Silva Martins (2000).

93
O mesmo ocorria com a pesca das tainhas. Sinais sutis na superfície da água indicavam
seus cardumes. Antônio Alves Câmara deu detalhes: “ellas denunciam-se, quando está lisa
a superfície do mar, por um ligeiro marulhar e opacidade em fórma circular no centro do
cardume”.49 O papel do vigia, espia ou olheiro era análogo, sobre o costão rochoso, sobre
um pau de mangue, ou quando era pesca de arrasto, análogo à do xaréu, em canoa no mar
avançado. Era alguém mais experiente, identificando a chegada dos cardumes pela
diferença da textura da superfície do mar, além de sua localização mais precisa para o
lançamento da rede e a estimativa da quantidade do pescado, que comunicava aos demais
companheiros por sinais.50 Diegues observa que a pesca dos cardumes de tainha no litoral
de Sudeste e Sul do Brasil, nas comunidades de caiçaras e açorianos, tinha uma
importância tamanha que lhe levara a pensar num relação ecológica mais densa, uma
história ecológica, que considerava camadas de ritos e crenças ligadas à sua pesca.51 Não
encontramos algo que apontasse para tanto no Recôncavo, mas permanece a suspeita.

Os Arrecifes Conhecidos
Como dito, as gamboas e currais repetiam o que ocorria nos arrecifes, como em Itaparica e
na costa oceânica.52

Nas poças de pedra pegavam os peixes, envenenados. A casca do cipó chamado timbó e
as folhas do tingui, eram usadas na água retida nas pedras, nas gamboas naturais, do Rio
Vermelho e nos pequenos rios das adjacências de Itapuã.53 A técnica é secular, de origem
indígena, permanência de um etnoconhecimento, como de outros.54 Condenado, porém, por
Antônio Alves Câmara, por ser “barbaro e prohibido systema de pescaria”.55 De toda forma,
essa continuidade nos é importante.

Além da catação de superfície, havia a pesca nas locas, tocas específicas onde o pescado
se prolifera, com cofo ou um balaio, arpão e bicheiro (anzol de grande ou médio porte
afixado a um cabo de madeira ou metálico) para tirar da água o polvo, a lagosta, a moréia e
o mero. E algum tipo de lume, que teria efeito estupefaciente.56 É recurso atual, praticado ao
longo do século XX, no começo do século – quando a maré favorecia, o personagem do
conto O Arpoador, de Xavier Marques, João d´Aratuba “tomava o bicheiro, ia aos recifes e
fisgava um polvo”57 – e já no século XVI.58 Dessa pesca de facho, como se dizia, “há
lugares, em que abusam desse systema, que parecem cidades illuminadas, e em outros
perturbam o navegante proximo à costa”.59

49
CÂMARA, 1888, p.42.
50
DIEGUES, Antônio Carlos. A Pesca Construindo Sociedades: a história ecológica da tainha no Litoral Sul-Sudeste brasileiro.
In: DIEGUES, Antônio Carlos. A Pesca Construindo Sociedades: leituras em antropologia marítima e pesqueira. São Paulo:
NUPAUB-USP, 2004, pp243-311, p.237.
51
DIEGUES, 2004.
52
SAMPAIO, 1949, p.58. Olivério Pinto tratava as gamboas como sinônimos dos currais, que “fixa-se na terra, nas margens do
rio, uma fila de varas formando um cercado que desce até o fundo d´água” (PINTO, Olivério. In: MAXIMILIANO (Príncipe de
Wied-Neuwied). Viagem ao Brasil. 2ed refundida e anotada por Olivério Pinto. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1958, p.339).
53
LOPES, 1984; GANDON, 2008, p.271.
54
Sobre o timbó: Simão de Vasconcellos (1865a, p.78); Fernão Cardim (2014, p.66); Gabriel Soares de Sousa (2010, p.302);
Spix & Martius (2016, p.30); SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte/ São Paulo: Ed.
Itatiaia/ Ed. da Universidade da USP, 1976, p.104. O timbó que, pelo que diziam e Wetherell anotava em 1844, era
responsável pelo tom marrom escuro das águas de certos rios (WETHERELL, s/d, p.22). Von Martius identificava com a
Paulinnia pinnata. Mas “timbó” parece ser um termo “funcional”, que abrange “série numerosa de vegetais ictiotóxicos”
(PINTO, 1958, p.150). Sobre o tingui: Simão de Vasconcellos (1865, p.78); Fernão Cardim (2014, p.343). “Tingui” também
era uma palavra que designava uma variedade de plantas com identidade técnica; havia especificamenge “o ´tingui da praia´
chamado também “barbasco” (Jacquinia armillaris Jacq. Fam. Teophrastáceas)” (PINTO, 1958, p.150).
55
CÂMARA, 1911, p.31.
56
O lume variava de acordo com a época e tecnologia disponível. Em dado momento será a carocha (lata de óleo vegetal com
querosene, com pedaço de corda no bico, de pavio) que soltava muita fumaça. Depois, uma lanterna, chamada de bambau.
Na região de Lobato, os fachos eram embebidos no lodo. Oscar Cordeiro notara essa singularidade, e desconfiou haver
petróleo naquele subsolo (MARTINS, 2000, p.19).
57
MARQUES, 1976a.
58
SOUSA, 2010.
59
CÂMARA, 1911, p.29.

94
No Rio Vermelho, nos arrecifes chamados São Lázaro, Areia Preta (Ondina); Canzuá,
Paciência e Rio Vermelho [sic]60, nas marés grandes, de lua cheia ou nova, mulheres de
todas as idades e os meninos iam à cata de mariscos e peixes, incluindo as pinaúnas,
intumescidas. A praia era o local onde assavam-nas, com lenha recolhida por perto, ou as
levavam cruas para a casa, para escaldados.

Além de empoçar as águas, a baixamar revelava arrecifes normalmente inacessíveis a pé.


Na Península de Itapagipe apareciam alguns a 700 m da praia. Assim os arrecifes se
tornavam lugares efetivos, visitados, tanto os permanentemente emersos, como aqueles
que surgiam apenas nas marés grandes.

Essa maneira de olhar e reconhecer os elementos físicos do litoral levou a uma singular
maneira de relacionar-se com o meio, a uma intimidade topográfica. Eram as rochas ao mar
os marcos necessários à navegação, como veremos, e também lugares onde se pescava,
ampliados na baixamar e percorridos por todos da comunidade, na pesca e mariscagem.
Por isso as pedras eram reconhecidas e nomeadas.

Licídio Lopes dá o nome de algumas das pedras do entorno do Rio Vermelho, onde ia
pescar com vara-paus, bicheiros e linha de estender: da Sereia, nas imediações do Alto da
Sereia; Caituba, na praia de Ondina; Passagem, no Rio Vermelho, defronte à R. Guedes
Cabral, e do Telefone, também por ali.61

Na região de Itapuã, eram conhecidas as pedras Itapuã Mirim, Tanuassu, Redonda, Diogo
Dias, Ilha de Cima, Ilha de Baixo, Sardinha, Vermelha, do Chapéu, Pedra do Sal e a famosa
Pedra da Piraboca. Edison da Palma Meirelles enumera mais pedras:

Próximo ao farol temos a conhecida Pedra do Sal, vindo em seguida outras


tais como: a de Itapuã Mirim, Tauassu, Redonda, Diogo Dias, Ilha de Cima,
Ilha de Baixo, Sardinha, Vermelha, Jequitaia, do Grilo, do Chapéu, do
Arranha, os Alentaço, São Francisco e outras. O Farol está assentado sobre
a pedra Piraboca. (MEIRELLES, s/d b, p.13).

Oliveira apresenta outra lista, com algumas coincidentes: “Beraba, Sardinha, Redonda,
Itapuã (Primeira Pedra), Itapuã Mirim (Segunda Pedra), Diogo Dias, Ilha de Baixo,
Vermelha, do Chapéu, Pedra do Sal”.62

Tais comunidades tinham um contato estreito, e indispensável, com o meio: com as pedras,
as locas, os peraus. As crianças cresciam ali e suas atividades eram, em alguma medida,
variantes dessa exploração. Crianças de ambos os sexos colaboravam na pesca e catação
dos arrecifes, por exemplo. Mas também o faziam por conta própria. Segundo Terezinha
Maria Paim Azevedo, que crescera na Av. Beira-Mar, falando da baixamar: “quando estava
vazia, eram umas brincadeiras, fazíamos duplas e íamos pescar siri de mão”, e apontava
que “os pais não se preocupavam com perigos da maré, nós sabíamos até onde chegar.
Criança de beira-mar é livre, quando dá por si já sabe nadar, aprende com as
companheiras”.63 Não tinha porque ser diferente em tempos idos. A diferença entre um lazer

60
Aqui nos parece designar uma bateria de arrecifes ainda hoje visíveis, seguindo de leste a oeste: por São Lázaro, aquelas
pedras no sopé do Outeiro de São Lázaro, atrás do Ondina Apart Hotel; por Areia Preta, aquela que situa-se na base da
colina onde estava a Fazenda Areia Preta, e sua sede, e hoje o Palácio de Ondina, residência oficial do governador do
Estado; por Canzuá, a área a leste do Morro da Paciência; por Paciência, talvez as pedras na base da colina a sul ou a leste;
por Rio Vermelho, ou a região de arrecifes a leste do Porto de Sant´Anna, ou aquela menor, a oeste, onde está a moderna
Igreja de N. Sra. de Sant´Anna.
61
LOPES, 1984, p.36. No texto original, dava o nome de uma R. Guedes de Brito, o que foi um equívoco.
62
OLIVEIRA, Orlando José Ribeiro de. Turismo, Cultura e Meio Ambiente: Estudo de Caso da Lagoa do Abaeté em Salvador –
Bahia. Julho 2009. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) – Centro de Desenvolvimento Sustentável.
Universdade de Brasília, Brasília. 2009, p.76.
63
BORGES, 2001, p.68.

95
para quem visita o lugar e que gera as visitas, e aquele feito por quem está entediado, como
as crianças, que de tudo tiram partido, nas longas horas ociosas da infância (Fig.52).

Figura 52– Marinha – Rio Vermelho (Bahia), cartão-postal da Casa Alexandre Reis et Cia, de
1911, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. A foto é importantíssima para mostrar
algo da infância, e da infância dos filhos da terra, dos moradores do Rio Vermelho. Com seu traje
similar ao dos pais, brincam daquilo que viam sempre, que era o trabalho dos pais (junto com a
faina no roçado) e que seria seu futuro: com barcos a vela.

Dependia, porém, como essa infância se organizava em tais comunidades. Primeiro, se os


menores não eram absorvidos pelas atividades produtivas. Em geral, as meninas auxiliavam
as mães nos trabalhos do lar, incluindo a criação dos irmãos menores. Dependia, ainda, se
as crianças eram deixadas livres, fora do cuidado das mães. Em tempo não tão remoto,
assim ocorria em Itapuã:

Na época em Itapuã era tudo escuro, não tinha luz, a gente não ficava
brincando na rua, a gente só vivia dentro de casa. Brincava, ia pra escola,
quando vinha era pra dentro de casa, deu a noite ninguém saía. Agora, deu
tempo de lua a gente brincava de roda, brincava, corria picula... assim em
tempo de lua, mas passou a lua, a gente não brincava. Só vivia dentro de
casa. (Dona Maria) (GANDON, 2008, p.291).

A noite aparece como ocasião propícia e tempo livre, ou pelo menos condição ótima para,
sob a luz da lua, a praia e os areais da região se tornarem local dos seus jogos.

96
Em Mar Aberto: jangadas e saveiros
As jangadas aparecem primeiro nos tempos coloniais como meio para travessia de rios64,
veículo singular feito a partir de uma árvore singular, a apeíba dos indígenas, depois
chamada de pau de jangada ou simplesmente jangada, que podia ter de 3 a 30 toras.65 A
balsa indígena original passara por transformações como a canoa, com a introdução das
velas triangular e latina, permitindo aventurar-se em alto mar, “colonizar” aquele espaço,
trazê-lo para sua órbita. Melhorou-se o controle com o remo na popa da jangada, o banco
do mestre e a fateira, pequena âncora de ferro, comportando de 2 a 4 pessoas.66

Sua característica única, um plano pairando sobre as águas, conferia-lhe surpreendente


performance: “fora da baía vimos dois pescadores em um catamarã [...] de alguma maneira
eles avançam, embora sem velocidade ou graça, e são usados principalmente para cruzar
ondas massivas que são intransponíveis para barcos ordinários”.67 No entanto carregavam
muito pouco e o piso estava sempre úmido, daí a cuia com a água, as cestas para os
peixes, as linhas e demais apetrechos estarem suspensos em varas.68 Além da pescaria,
faziam navegação de cabotagem, levando cargas e passageiros, e aí ensaiavam um tejupar,
uma “baixa plataforma com um teto de folhas de palmeira sob o qual a pessoa pode deitar-
se”.69

Tudo nelas era surpreendente aos estrangeiros: sua precariedade ou rusticidade, sua forma
elementar e inesperada (um plano), a imagem espantosa ou onírica de negros pairando na
água (as ondas ocultavam a espessura do plano), e vê-los em alto-mar. Este depoimento é
o que melhor condensa tal surpresa: “neste bote absurdamente frágil de se ver, viagens de
muitas centenas de milhas são realizadas. Veleja com incrível velocidade, vai bem a
barlavento, pode aportar seguramente através de fortes ondas, e é na verdade um barco
verdadeiramente paradoxal”.70 Elwes afirmava tê-las visto entre 12 a 25 milhas do
continente, no mar.71

Pedro Agostinho anota aspectos importantes: a jangada não era empregada no interior da
Baía de Todos os Santos, e era mais elementar que as jangadas da costa nordestina
(incluindo o Sul da Bahia). Menor, com menos aparato e menores velames, em alguns
casos sem a apeíba original. Para a pesca do xaréu, seriam pouco mais que um estrado,
propelido com varas ou com cabos.72

Essa pesca não era de subsistência, embora sem o volume de pescado do arrasto do xaréu
ou das tainhas. Pela limitação dos pesqueiros, conseguiam pouco, porém de qualidade:
“assim como há muitos pescadores, que vão em jangadas a pésca do alto, e trazem

64
CARDIM, 2014, p.318; 340.
65
SOUSA, 2010, p.213; REBELLO, 1829, p.86; WETHERELL, s/d, p.27; RUGENDAS, s/d, p.202; SUZANNET, 1957, p.209;
TAVARES, 1961, p.91; MAXIMILIANO, 1958, p.333; GRAHAM, 1824, p.98; KIDDER, Daniel Parish. Sketches of Residence
and Travels in Brazil, embracing Historical and Geographical Notices of the Empire and its several provinces Vol.I.
Philadelphia: Sorin & Ball, 42 North Fourth Street. 1845a, p.176.
66
Dos dados físicos da jangada: SILVA, 2001, p.51. Da capacidade: ELWES, Robert. A Sketcher´s Tour Round the World. With
Illustration from Original Drawings, by the author. London: Hurst and Blackett, Publishers, 1854, p.53; KNIGHT, 1884, p.70;
WETHERELL, s/d, p.27.
67
[...] outside Bahia we saw two men fishing on a catamaran [...] They forge along somehow, though with no swiftness or
grace, and are chiefly used in crossing a heavy surf that is impassable by ordinary boats [...] (WILBERFORCE, Edward.
Brazil Viewed Throught a Naval Glass, with Notes on Slavery and the Slave Trade. London: Longman, Brown, Green,
and Logmans, 1856, p.97).
68
RUGENDAS, s/d, p.202; WETHERELL, s/d, p.27; GRAHAM, 1824, p.98.
69
WETHERELL, s/d, p.27.
70
[...] in this absurdly frail-looking craft voyages of many hundreds of miles are undertaken. It sails with amazing speed,
goes well to windward, can be safely beached through a heavy surf, and is in fact a very paradox of boats [...] (KNIGHT,
1884, p.70).
71
ELWES, 1854, p.53.
72
AGOSTINHO, Pedro. Embarcações do Recôncavo: um estudo de origens. Salvador: Oiti; OAS, 2011, p.46. Detalhes dá
Antônio Alves Câmara (1888).

97
grandes peixes, como sejão o Olho de boi, Vermelho, Cioba, Dentão, e todos de muita
estimação”.73

Figura 53 – Jangadas. Fonte: CÂMARA, 1888. Acima, o modelo rústico empregado no litoral aberto
de Salvador. Abaixo, para termos de comparação, a jangada maior e melhor constituída e aparelhada
do litoral nordestino.

Porém cabe atentar para outro aspecto dessa relação. Em mar aberto, a localização dos
pescadores dependia em alguma medida de atracadouros naturais, condição relacionada ao
porte da embarcação, com seu calado e tamanho. As canoas e jangadas, correndo rentes à
superfície, puderam se distribuir de modo muito mais versátil, permitindo a pesca de arrasto
por quase toda a extensão do litoral atlântico. Toda embarcação precisa ficar guarnecida da
fúria das intempéries, em especial no mar aberto. No caso de pequenas embarcações,
devem ser puxadas areia acima, até o cômoro da praia, onde as ondas não as alcancem.

A jangada, primitiva, ampliava enormemente o leque de possível locação dos pescadores,


ao poder aportar em praticamente todos os lugares. Permitia que outros fatores que
colaboravam com a subsistência da comunidade (como os cajuais e matos, de que falara
Sampaio) fossem conciliados com mais facilidade.

73
REBELLO, 1829, p.136.

98
A divisão entre águas interiores e mar aberto, canoas e jangadas, não era nem estrita, nem
estática. Em 1888, Antônio Alves Câmara apontou que as jangadas entravam de vez em
quando na baía, e imperavam em Itapuã e no Rio Vermelho, e neste “é ainda hoje quase o
único meio de transporte e de pescaria, que empregam”74 (Fig.53). Porém outra embarcação
entrava em cena para a pesca em mar alto. Sob o nome de saveiro eram chamadas na
Bahia “algumas embarcações de transporte de passageiros e trafego do porto, e com pouca
propriedade algumas maiores de carga, como no Rio são as puramente de carga”.75 Nas
últimas décadas do século XIX se tinham firmados tipos razoavelmente definidos de
saveiros: os do cais, para tráfego no porto; os de carga, com algumas variações mais
próprias para a cabotagem curta da linha costeira da Cidade Baixa a Itapagipe; e os
saveiros de pescaria, que iam para alto-mar. Aqui já temos a transição das jangadas para os
saveiros como veículos mais eficientes para a pesca em mar aberto, limitando, porém, os
portos capazes de abrigá-los no litoral atlântico, com longos trechos vazios.

A Baía de Todos os Santos era uma inflexão de veículos náuticos no litoral nacional e daí se
irradiou uma mudança nas embarcações em mar aberto, a partir do saveiro.

O saveiro chegou nessa pesca de mar aberto, com impactos imediatos. Embarcação maior
e muito mais pesada, exigia um porto natural melhor onde resguardar-se. Nem todo local
que se prestava para simples canoas e jangadas lograva aportá-la. Os saveiros realizavam
jornadas mais longas e por mais tempo, inclusive o pernoite. Eram mais seguros,
carregavam mais homens e traziam maior volume de pescado.76 As jangadas retraíram-se
para os exemplares mais rústicos, auxiliares da pesca de arrasto. Mais caros, os saveiros
traziam uma forte hierarquia na pesca pela simples posse da nau. Naquele começo do
século XIX, no entanto, não estavam em cena. Essa substituição foi tardia.

Figura 54 – Porto da Barra, 1860c, de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988. Até o momento,
as imagens que temos do Porto da Barra mostram canoas.

74
CÂMARA, 1888, p.10.
75
CÃMARA, 1888, p.140.
76
TAVARES, 1961, p.91.

99
Figura 55 – Porto da Barra, Cartão-Postal, circulando em 1912, do Fundo Renato Berbert de Castro.
Do mesmo ângulo, aqui os saveiros já dominam. Fonte: PMS.

Nas maiores, proteção maior, com recifes ou molhes construídos as protejam, com poucos
portos naturais no litoral atlântico: Rio Vermelho, Itapuã, Praia do Buraquinho, na foz do Rio
Joanes, Tatuapara. Dentro da baía, apareciam com mais freqüência, como o Porto da Barra,
da Vitória, e daí em diante, pela maior tranqüilidade de suas águas interiores.

Porém havia algo de artifício naqueles portos de mar aberto: os recifes eram removidos
quando se tornavam obstáculo à navegação e à pesca. Disse Vilhena, que, se Itapuã até a
Barra havia “infinitos portos”77, e que nestes

[...] tem os licenciados arrancado os recifes, por não lhes romperem as


rêdes que de muita distancia arrastrão athé as prayas e tem feito portos de
dezembarque com accesso fácil para lanchões, lanxas e escalleres dos
inimigos, tanto externos, como internos, entrando por estes contrabandistas,
principalmente vindos das costas da Minna e mais portos d´África.
(VILHENA, 1922a, p.218).78

Isso da parte da terra.

Da parte do mar, também havia artifício: os pesqueiros podiam ser criados. A partir, por
exemplo, de árvores de médio porte. Antônio Alves Câmara descreve uma das maneiras de
se criá-los: “em certos lugares, que cobrem e descobrem as marés vivas, enterram galhos
de arvores em certa extensão, enchendo uma superficie approximadamente de fórma
circular”79, talvez daí o nome coroa, dado também a tais sítios. Sem marca visível da
superfície, apenas seus criadores conheciam o local assim criado.80 Na prática era uma

77
VILHENA, 1922a, p.218.
78
Não nos está claro como se fazia essa remoção. Sem explosivos que funcionassem úmidos, sem a tração de motores a
vapor, restaria apenas o trabalho manual nas baixamares.
79
CÂMARA, 1911, p.28.
80
MARTINS, 2000, p.20.

100
benfeitoria marítima. Legalmente seus criadores não tinham nenhum direito específico sobre
essa obra, podendo qualquer um explorá-la, daí ser segredo ciosamente protegido. Mas
havia um sentimento de posse, de territorialidade descontínua, como eram os poços d´água
para os beduínos num deserto, sobre área de difícil reivindicação de direitos.

Os pesqueiros eram mais ou menos visitados por uma conjunção de fatores: eram
preferidos se próximos; se maiores, por serem de mais fácil localização, em detrimento dos
menores; se mais produtivos; se menos explorados pelos demais.81 A localização precisa
dos pesqueiros se dava por marcos em terra, triangulados mentalmente.82 Ora elevações na
Ilha de Itaparica, ou elementos no litoral, como o Farol da Barra ou a capela de Nossa
Senhora da Luz, na Pituba, ou ainda algumas casas à beira-mar. Ou os argaços, manchas
permanentes da areia usadas como marcas, visíveis apenas do mar. E ainda, antes da
maior urbanização da cidade, o que chamavam de Cajazeira, árvore visível do mar, que
ficava no Cabula, e ainda a Cajazeira do Meireles. E aqui entra algo importante: eles davam
nomes a tais sinais. Davam nomes às elevações de Itaparica (ex.: A Torta, Tanchão,
Periquito, Cabeço, Os Istroques, Boca de Sabão, etc.), como os argaços nomeavam trechos
das praias (ex.: Minguilinho, Minguilinho de Baixo, Mangue Grande, e um chamado O
Argaço) e, como vimos, a certas árvores. Os pesqueiros mais distantes tinham como
referência outros acidentes, atrás de Itaparica, chamados de “terra aberta”.83 O maior grau
de precisão encontrava-se com os ângulos aproximando-se do ângulo reto, onde o menor
desvio não levava a grandes diferenças.

Essa é uma primeira e curiosa inversão paisagística: não apenas o pescador contemplava a
terra a partir do mar, como mapeava este em função daquela, de uma topografia de pontos
visuais na planície aparentemente indistinta do oceano.

Outra inversão era o olhar para baixo, para reconhecer a topografia real, atrás da
translucidez das águas. Na Paraíba havia as Pedras Marcadas, rochedos subterrâneos que
serviam como indicadores dos pesqueiros. Como de resto as práticas dos jangadeiros
paraibanos conferem com as dos demais estados nordestinos, não há porque não especular
que o mesmo se dava aqui.84

Além da visão para se encontrar em alto mar, avaliavam tempo e distância percorridos. Não
era de menos. Era a diferença entre o mar de dentro, em que os elementos da terra firme
ainda eram visíveis, e o mar de fora, passado esse alcance de visão. Os saveiros permitiam
jornadas mais longas, e navegavam “perderem a terra de vista nas pescarias chamadas de
sondar, e demoram-se um e dous dias fóra”.85 Sem os marcos visuais do continente,
precisavam tatear a topografia submersa. Eram sondadas as profundidades, por meio de
cabos com tamanhos previamente conhecidos. Também se fazia o escrutínio do substrato,
por meio de uma chumbada, de uma peça que recolhia algo do material sedimentar do
fundo do mar. Ambos os meios, extensões protéticas do tato.86

Os recifes recebiam nomes. As marcas em terra, vistas de alto-mar, também. E os


pesqueiros tinham sua parte. Pontinho de Fora, Manguinho, Paracatiba, Miúdo, Penedo,
Pedra de Riba, Morro de Baixo, eram alguns dos nomes. Certos nomes se repetiam, para
marcas em terra e pesqueiros no mar, como Boca de Sabão ou Argaço.87 Este elenco
refere-se apenas àqueles nomes colhidos oralmente para os pescadores do Rio Vermelho.

81
NUNES, 2002.
82
Ezequel da Silva Martins dizia sobre a técnica: “dois ou três pontos em terra eram escolhidos e quando houvesse a
coincidência ou a visada simultânea, ali estava o pesqueiro” (MARTINS, 2000, p.20). A idéia da “visada simultânea” – dos
marcos entrarem no estreito cone visual real – é uma outra forma de lidar com essa trigonometria intuitiva.
83
LOPES, 1984, p.34
84
CASCUDO, Luís da Câmara. Jangadas – uma pesquisa etnográfica. Rio de Janeiro: Ed. Letras e Artes, 1964.
85
CÂMARA, 1888, p.141.
86
NUNES, 2002.
87
LOPES, 1984, p.34.

101
Algo dessa nomenclatura seria compartilhada com pescadores de outras localidades, mas
nem tanto, pela importância que tinha manter-se como segredos particulares; outros
pescadores teriam seus mapas coletivos próprios, sua própria toponímia.

Havia assim uma inversão na relação escópica com o litoral, constituída a partir do mar, e
com uma apreciação bastante característica, visto ser utilitária, destacando pontos que
permaneciam na visão à distância. E ironicamente as igrejas, parte de um outro sistema
escópico, prestavam-se a isso, ao pescador que “não se aventura às altas águas, nunca
perde de vista a torre branca do Orago”.88

As Armações de Baleias
A primeira modalidade de exploração dos cetáceos que afluíam à baía foi a do âmbar gris
que recaía nas praias de mar aberto, característico do litoral nordestino.89 Por aqui, vinha às
costas do mar aberto, e em Itaparica, como em Morro de São Paulo, e nas terras que
Capistrano de Abreu acredita serem as de Garcia d´Ávila.90 Antes da vinda dos
colonizadores, era repasto para a fauna praiana, “porque aves, caranguejos e quantas
coisas vivas há acodem a comê-lo”.91

Fora bem precioso que chegou a ser rentável. Os índios levavam aos padres da Companhia
de Jesus o que encontravam.92 Escravos atuavam na sua coleta, como em Itaparica, onde
“se descobre grande quantidade de ambar finissimo, a modo de mineral; porque à enxada
andão cavando grande numero de escravos a praia, e quase todos achão pedaços
enterrados, quaes grandes, quaes pequenos”.93 Fortunas podiam ser feitas por mera coleta
desse material, como a de homem que Fernão Cardim visitou, “nesta Bahia o segundo em
riquezas por ter sete ou oito léguas de terra por costa, em a qual se acha o melhor âmbar
que por cá há, e só um ano colheu oito mil cruzados dele, sem lhe custar nada”.94 Com o
posterior declínio das baleias, também haveria do âmbar-gris. Em 1799, sua coleta ainda
tinha algum peso no litoral entre Ilhéus e Itacaré95, e em 1813 James Prior ainda soubesse
que “era apanhado às vezes nas costas da baía”.96

O período ao certo varia de acordo com as fontes. As primeiras baleias deviam chegar por
maio, e o afluxo mais significativo, em junho.97 Houve quem dissesse que a temporada
encerrava em agosto, mas a maioria assinala que era em setembro, provavelmente com
algumas ainda em outubro.98 John Bulkeley e John Cummins observam que no século XVIII

88
MARQUES, 1976a, p.117.
89
O âmbar-gris é uma secreção biliar, formada no intestino do cachalote (Physeter macrocephalus), valiosa pelo seu uso na
perfumaria como fixador. E, nos tempos mencionados, teria outras propriedades úteis, como ser afrodisíaco.
90
Sobre o litoral nordestino: DIÁLOGOS..., 1966, p.98. Sobre o mar aberto da Bahia, CARDIM, 2014, p.341. Itaparica, há mais
testemunhos: SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865b, p.142; ROCHA PITA, 2013, p.241. Em Morro de São Paulo, VILHENA,
1922b, p.778. Nas terras de Garcia d´Ávila: SOUSA, 2010, p.67; CARDIM, 2014, p.341; ROCHA PITA, 2013, p.48.
91
VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.41.
92
SOUSA, 2010, p.67.
93
SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865b, p.142.
94
CARDIM, 2014, p.341. Gandavo (2008, p.115) foi quem falava de fortunas feitas de tal modo.
95
LIMA, Ana Paula dos Santos. Prática Científica no Brasil-Colônia: Ilustrado Luso-Brasileiro a Serviço da Natureza (1786-
1808). 2008. Dissertação (Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Ensino,
Filosofia e História das Ciências, Universidade Federal da Bahia/ Universidade Estadual de Feira de Santana, Salvador/ Feira
de Santana. 2008, p.110.
96
PRIOR, James. Voyage along the eastern coast of Africa to Mosambique, Johanna, and Quiloa. To St. Helena; to Rio de
Janeiro, Bahia, and Pernambuco in Brazil, in the Nisus Frigate by James Prior, Esq. R.N. London: Sir Richard Phillips and
Co., 1819, p.106 – tradução nossa.
97
Frei Vicente do Salvador (2013, p.318) diz que em junho afluíam em quantidade. Confirmavam como começo do período das
baleias nesse mês: Frei José de Santa Rita Durão (Caramuru. Poema Épico do Descubrimento da Bahia. Lisboa na Regia
Officina Typografica, 1781, p.218); Sebastião da Rocha Pita (2013, p.50); Domingos Rebello (1829, p.249); Arnold
Wildberger (A Bahia de 1676 vista por um Médico Francês. Publicação CEB. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1968,
p.17); Castelnau, Expèdition dans l´Amérique du Sud, Tome I, p.150 (apud HARTT, 1870, p.182). Gabriel Soares de Sousa
(2010) e Fernão Cardim (2014, p.71) falavam, ao menos em tempos coloniais, do início em maio.
98
Diziam que a temporada encerrava em setembro: Cardim (2014, p.71); Rebello (1829, p.249); Wildberger (1968, p.17);
Castelnau (apud HARTT, 1870, p.182). Até outubro: Santa Rita Durão (1781, p.218); Rocha Pita (2013, p.50). Gabriel Soares
de Sousa (2010) é o único que assegurava encerrar-se antes, em agosto.

102
alcançavam as baleias o porto da cidade.99 Chegavam a modificar o arranjo da ictiofauna.
Segundo Gabriel Soares os peixes da baía se refugiam nos “baixos e recôncavos”, quando
da temporada das baleias.100 Outros peixes grandes entram no mesmo período das baleias,
como o pirapicu ou espadarte, igualmente afugentando o pescado menor.101

Já no primeiro século da cidade as baleias encalhadas nas águas rasas eram


destrinchadas, como ocorrera no esteiro de Pirajá em 1580.102 Sua chegada anunciava uma
fartura, ora porque o peixe ia para o raso, pela chegada das baleias para o acasalamento,
ora pelo encalhe direto dos cetáceos nos baixios e praias. Era a única maneira pela qual a
população conseguia pôr as mãos naquela fauna portentosa.

Daquelas criaturas, partes diversas serviam como matéria-prima. Da cola e dos ossos
faziam-se pentes, caixas, botões, bancos. As barbatanas eram usadas para cintos e
espartilhos, para as anáguas (os balões) e para as caponas das beatas.103 Porém dois eram
os principais alvos da atenção: o óleo e a carne.

Da carne, veremos mais adiante. Já o óleo era empregado nos primeiros séculos para
calafetar os barcos e como remédio, no papel de depurador, além de insumo para
sabões.104 Mas, sobretudo, “da imensa inundação de azeite, que se tira deste peixe, se
alumiam todas as casas, fábricas e oficinas do Brasil”105. A iluminação privada, e depois a
pública no século XIX, era sustentada pelos grandes cetáceos. Havia a alternativa superior
do óleo de mamona, como também do azeite de outros peixes. Nas “estâncias particulares
de algumas pessoas mais poderosas [...] arde o de Portugal”106; o óleo de baleia cabia a
quem não tinha alternativas.107 Luís dos Santos Vilhena salientou que não era
intrinsecamente ruim: o que restava na cidade era o inferior, sendo selecionado o melhor
para a exportação.108 Ademais, a própria produção era em parte responsável por sua má
qualidade, com poeiras que entravam em todas as etapas, conduzidas por mão-de-obra
negligente, resultando em óleo mal-cheiroso com pedaços de toucinho não derretidos, em
comparação com aquele melhor preparado pelos baleeiros do Atlântico Norte.109 Era um
óleo ruim mesmo para sua própria matéria-prima. E com a substituição da tecnologia da
iluminação, com o gás alimentando os combustores, foi o azeite de baleia cada vez mais
relegado às moradias pobres.

A prática e a tecnologia para a caçada das baleias e extração dos seus recursos vieram de
pescadores do Golfo da Biscaia, liderados por Pedro de Urecha, em 1603, informação
sacramentada na historiografia baiana, Myriam Ellis dá-lhe maior significado: a permissão
99
BULKELEY, John & CUMMINS, John. A Voyage to the South Seas in the Years 1740-1741. London: Jacob Robinson,
publisher at the Golden-Lion in Ludgate Street, 1743, p.212.
100
SOUSA, 2010, p.266. Conta episódio da mesma ordem que ocorrera em 1584 em Itapuã (SOUSA, 2010, p.267).
101
SOUSA, 2010, p.267.
102
SOUSA, 2010, p.266.
103
Para o uso das colas e dos ossos, Hildegardes Vianna (Antigamente Era Assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador:
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1994). E das barbatanas, José Francisco da Silva Lima (A Bahia de Há 66 Annos
(Reminiscencias de um Contemporaneo). In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia, Anno XV, Vol.XV, n.34,
1908. Salvador: Litho-Typ. e Enc. Reis & C., Rua Dr. Manoel Victorino, 23 e 25, 1908, p.109).
104
Sobre o uso para calafetagem, Frei Vicente do Salvador (2013, p.318). Como também se viu, por outra fonte, para o azeite
extraído de peixes. Sobre o papel de depurador, Edison de Palma Meirelles (Itapuã do Passado. Salvador: s/d b). Frei
Vicente do Salvador apontava que, entre os que trabalhavam na lida da baleia, o seu óleo era usado “sarar de boubas e de
outras enfermidades e frialdades, e os senhores, quando eles vêm feridos das brigas, que fazem em suas bebedices, com
este azeite quente os curam, e saram melhor que bálsamos” (VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.318). Para a fabricação de
sabões: “[...] um sabão gorduroso, que comunica à roupa cheiro desagradavel” (SPIX & MARTUS, 2016, p.78). Todo sabão
se compõe essencialmente de gordura e soda cáustica. Daí que os óleos se prestem para essa produção.
105
ROCHA PITA, 2013, p.51.
106
ROCHA PITA, 2013, p.51.
107
O oleo de baleia seria “amargoso e fedorento”, e empregado nos engenhos, no trabalho noturno, justamente por isso, visto
que o azeite doce era roubado pelos escravos para sua alimentação (VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.318).
108
VILHENA, 1922a, p.133. Quando Spix e Martius visitaram, não viram essa distinção entre o melhor voltado para exportação,
e o pior, consumido in loco. A maioria do óleo seria usado no Brasil, inclusive nos estaleiros, para a produção de alcatrão. O
restante é que seria exportado para a Inglaterra e a França, para as fábricas têxteis e purificação do enxofre (SPIX &
MARTIUS, 2016, p.77).
109
SPIX & MARTIUS, 2016, p.78.

103
conferida aos biscainhos para explorar as baleias na Baía de Todos os Santos se deu na
união peninsular, quando a coroa da Espanha governava Portugal, sob a regência de Filipe
III.110 A permissão vigorou até 1612.111 Os estrangeiros estavam na vanguarda desta
tecnologia que, pela circunstância pontual da união das coroas, pôde ser transferida para o
Recôncavo, e depois para o restante da costa da colônia. Ao não renovarem os biscainhos a
concessão, passou a ser a exclusivamente brasileira a história da caçada.

No início do século XVII aparecem as notícias das primeiras fábricas de “azeite de peixe”,
como então se chamava o óleo retirado das baleias, em Itaparica. Mais propriamente, em
1612, na Ponta de Itaparica, de Antônio Machado de Vasconcelos, e em 1614, na Ponta da
Cruz, de Pedro Cascais de Abreu e Lourenço Mendes Pinheiro, sócios.112 Em um primeiro
momento da produção nacional teria havido uma concorrência com produtos de baixa
qualidade, levando a Coroa a instituir em 1614 um monopólio para sua pesca, arrendando
periodicamente a um único armador. Essa modalidade chegou a abranger os
estabelecimentos de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Nos Contratos de
concessão, os contratadores pagavam antecipadamente à Coroa e adquiriam o direito de
explorar a caçada da baleia sem impostos anuais. Findo o prazo, todo o patrimônio
(galpões, armazéns, tinas, fornalhas, caldeiras, apetrechos de pesca e extração do azeite, e
mesmo o terreno e escravos) revertia para a Coroa, que poderia voltar a arrendá-los ao
próximo monopolista.113 Por metonímia o estabelecimento onde a gordura era derretida em
óleo chamou-se também de Contrato, mesmo quando extinta essa mecânica legal, em
1798, passando a ser a permissão arrendada a mais de um particular por vez114, e as
armações, vendidas a particulares. Os armadores (os proprietários das baleeiras e
instalações) subcontratavam os trabalhadores, pagando-lhes por antecipado, em períodos
de seis meses, e premiavam a depender dos resultados da caçada. Sem resultado positivo,
a tripulação indenizava o armador do seu adiantamento.115 Também fazia parte das
armações o trabalho escravo.

Cid Teixeira identifica, em texto original de 1977, Manuel Ignácio da Cunha Menezes como o
grande monopolista do ramo, em determinado momento.116 Herdando de sua madrinha o
Contrato do Saraiva, adquiriu depois o de Itapuã, o da Pituba e o de Manguinhos.117
Beneficiava-se ainda da exclusividade no fornecimento do combustível para a iluminação
pública.

Uma diferença crucial é que a caça não se fazia em alto mar, mas na costa imediata,
preferencialmente nas águas interiores da baía: “nos tres primeiros mezes a pescaria é
quasi toda de sotavento [...] desde o forte Santo Antonio até a enseada de S. Thomé de
Paripe; e os outros tres mezes a barlavento, fora da barra”.118

Em linhas muito gerais, as baleeiras procediam ao ataque primeiro do filhote, o baleato, que
aparece mais à superfície, vulnerável, atraindo a mãe, chamada madrijo, que era depois

110
As menções coloniais são de Frei Vicente do Salvador (2013, p.318), Pyrard de Laval (The Voyage of François Pyrard of
Laval to the East Indies, the Maldives, the Molucas and Brazil. London: Hakluyt Society, 1890, p.321). Historiadores vários
repetirem essa unidade de informação: BARROS, 1900, p.323; RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do
Salvador. Salvador: Câmara Municipal do Salvador, 1953, p.85; RUY, Affonso. História Política e Administrativa da Cidade do
Salvador: evolução histórica da Cidade do Salvador Vol.1. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador, 1949, p.117;
RISÉRIO, 2004, p.358. Poucos foram mais além disso.
111
ELLIS, 1969.
112
ELLIS, 1969, p.34. Myriam Ellis não conseguiu documentação que comprovasse se estes estabelecimentos eram
vinculados, de alguma forma, com os biscainhos. Igualmente, óleo era extraído, de fato, de peixes. Mas em quantidades
inferiores, e sem o mesmo sistema.
113
CASTELUCCI JR., 2008, p.182.
114
ELLIS, 1969, p.35. Castelucci Jr. (2008) afirma que perdurou até 1801.
115
BARROS, 1900, p.325.
116
TEIXEIRA, 1986, p.50.
117
Menciona em outro momento, em texto de 1978, o Contrato do Gregório (TEIXEIRA, 1986, p.58), sem indicar sua
procedência, e falou apenas de um deles em Itapuã, quando havia dois no século XX.
118
BARROS, 1900, p.326.

104
repetidamente arpoada enquanto perseguida, até morrer, ser levada ao Contrato amarrada
a uma das lanchas.119 As lanchas ou baleeiras eram tipos específicos de barcos, saveiros
adaptados para a caça. Velozes, propelidas a vela e remo, não suportavam as jornadas em
alto mar.120

Figura 56 – A lancha baleeira de emprego na Bahia. Fonte: CÂMARA, 1888.

O retalhamento das baleias iniciava-se no mar muitas vezes, com os responsáveis em


canoas de “picar baleia”, e completava-se na praia, sob o olhar do “feitor da praia”. Manuel
de Santa Maria Itaparica, em poema publicado em 1769 chamado Descrição da Ilha de
Itaparica, canta a azáfama da captura da baleia.

Com algazarra muita, e gritaria,


Fazendo os instrumentos grão ruído,
Uns aos outros em ordem vão seguindo,
E os adiposos lombos dividindos.
(ITAPARICA, 2011, p.45).

A caça era levada à praia. A populaça, afluindo de vários cantos, repartia entre si a carne. A
gordura ficava para ser transformada em azeite nos galpões dos Contratos. Os pescadores
subiam o dorso da baleia caçada, desbastando na carne uma escada para galgar o flanco, e
retalhavam o toucinho em linhas retas, da cabeça à cauda, separando a gordura da carne.
Nisso, “o sangue escorria ao longo da praia e coloria a rebentação do mar. Os tubarões,
atraídos por aquilo, eram pescados com pedaços da própria carne da baleia”.121

A parte que interessava, a gordura, ia ao galpão, onde estavam os fornos, os tanques, as


fôrmas para a recolha do azeite, e outros equipamentos.122 Em analogia com os engenhos
de cana-de-açúcar, o aparato e o local eram chamados de engenho de frigir. Onde, nas
caldeiras (tachos de cobre ou ferro), a fogo contínuo, por mais de dez horas, fundiam-se os

119
VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.318; ROCHA PITA, 2013, p.51; DUGRIVEL, A. Des Bords de la Saone a la Baie de San
Salvador Ou Promenade Sentimentale en France et au Brésil. Paris: Lacour, Libraire-Éditeur, Rue des Boucaheries, 38,
1843, p.387.
120
CASTELUCCI JR., Wellington. Pescadores e Baleeiros: a atividade da pesca da baleia nas últimas décadas dos Oitocentos
Itaparica: 1860-1888. In: Afro-Ásia n.33. Salvador: CEAO-UFBA, 2005. ISSN: 1981-1411. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/issue/view/1472/showToc
121
HUELL, 2009, p.172.
122
ROCHA PITA, 2013, p.51; TOLLENARE, 1956, p.291; DÉNIS, 1839, p.237; MEIRELLES, Edison de Palma. Coisas da
Bahia. Salvador, 1977, p.13; PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. 2ed. Salvador: Livraria Agir Editora, 1946, p.69

105
retalhos de toucinho. As barbatanas eram tratadas a parte, ficando de molho em tanques
para, limpas de todo resto e secadas ao sol, serem exportadas para o continente europeu.

Câmara especifica uma diferença no final do Oitocentos. Havia, por um lado, o Contrato,
que se concentrava em “derreter o toucinho, a banha e a lingua da balêa”.123 O restante,
chamado fragmentos, era vendido a particulares que, por sua vez, em pequenas fábricas,
extraíam o azeite, para venda ou uso próprio, e aproveitavam a carne. Uma parte de carne
em particular, chamada escada, era muito dura, e era empregada como isca para cações,
depois de salgadas em retalhos, durando de um ano a outro.

Se à água os tubarões enxameavam, na areia outras criaturas rondavam para coletar os


despojos: “pousados sobre os matadouros e também voando perto dos estabelecimentos
[...] sempre se acham numerosos urubus”.124 Afinal, os Contratos eram abatedouros. Daí
que Tollenare deixasse sua praia de banhos pelos próximos dias: estaria completamente
conspurcada pelas “exalações do seu [da baleia] cadáver”.125 E ainda as emanações dos
próprios Contratos, somando-se aos cheiros da putrefação dos restos, como aqueles de
Itaparica, que empestavam o ar com mau-cheiro, segundo Pirajá da Silva.126

O processo de extração da baleia gerava seus rejeitos, deixados na praia ou jogados à


água, como as vísceras. Depois iria a borra, o que se acumulava no fundo dos tachos, ou
mesmo espécimes não aproveitados.127 As ossadas ficavam à areia ou no raso do mar, e
eram utilizadas das mais diversas maneiras, “nas cercas dos pátios e jardins”. 128 Também
se prestavam para móveis.129

Os motivos da decadência são vários, atuando em concertação. A atividade se fazia com


instalações pequenas, precárias até, com lanchas baleeiras pequenas, que confiavam no
número sazonal de baleias, caçando-as no interior da baía ou nas águas próximas,
trazendo-as para beneficiar na costa.130 Seus concorrentes estrangeiros ganharam outra
escala: as baleeiras eram maiores, mais custosas, e avançavam para mar aberto, em pleno
oceano, extraindo na própria embarcação o óleo. Assim, os baleeiros ingleses e norte-
americanos caçavam no Ártico, no Índico e outros mares, capturando mais animais.131 Essa
concorrência se deu pari passu com a redução das baleias, e foi uma de suas causas.
Incluindo os estoques locais pela caçada desenfreada na baía.132 Houve ainda a
obsolescência do óleo de origem animal para iluminação, e seus derivados, com a entrada

123
CÂMARA, Antônio Alves. Pescas e Peixes da Bahia. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1911, p.84.
124
WETHERELL, s/d, p.92. Os urubus estariam nas praias também por outros motivos. Junto com os restos das baleias, e em
algumas praias da região de Água de Meninos, carcaças bovinas (O CORREIO MERCANTIL n.501, Quinta-Feira 5 de Julho
de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp., 1838), não seria improvável que o mar, e a areia da
praia, fossem destino ocasional de escravos falecidos. Tal acontecia em Recife, por exemplo (CARNEIRO, Edison.
Candomblés da Bahia. 7ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1986, p.71). Ainda que em pequena porcentagem, de
qualquer maneira, pela envergadura da população escrava da cidade, se tornaria algo reincidente.
125
TOLLENARE, 1956, p.339.
126
SPIX & MARTIUS, 2016, p.77.
127
ELLIS, 1969, p.123. Myriam Ellis repete o mito do uso de material das baleias na construção civil. No caso, da borra. Nada o
atesta. Nem as propriedades físico-químicas, nem os testes laboratoriais, sequer fonte primária, sendo mais um mito
historiográfico que se mantém por mera repetição. Sem esse uso prático, restava o descarte no mar.
128
RUGENDAS, s/d, p.74. Câmara repetia: “os ossos e as costellas são aproveitados na construcção de cercas de quintaes
nas immediações dos Contractos, e os da espinha tomam a applicação de bancos de assento das mesmas casas”
(CÂMARA, 1911, p.84).
129
Dos ossos nas praias: WILSON, Sir Robert. Memorandum of S. Salvador, or Bahia, 1805. In: WILSON, Sir Robert. Life of
General Sir Robert Wilson... Volume 1. London: John Murray, Albemarle Street, 1862, p.347; TOLLENARE, 1956, p.291;
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.153 (ou seja, ainda em 1860). No conto O Arpoador, uma cena em Itapuã repete a
idéia de ossadas nas praias (MARQUES, 1976a, p.180). Dos móveis, os habitantes faziam assentos das vértebras e cercas
com as costelas (TOLLENARE, 1956, p.291; MAXIMILIANO, 1958, p.464; CÂMARA, 1911, p.84).
130
SPIX & MARTIUS, 2016, p.78.
131
BARROS, 1900, p.335. Antônio Risério (2004) menciona especificamente a caça nas Malvinas por esses mesmos baleeiros
como grande concorrência.
132
CASTELUCCI JR., 2008, p.193.

106
em cena do petróleo a partir de 1859, para combustível e insumo de produtos tais como
parafina.133

Figura 57 – Vista da Igreja de Nossa Senhora da Vitória nos Arredores de São Salvador no Brasil
(1807-10), de Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008. Na angra, as construções da primeira
metade do séc. XIX estão do lado norte. Apesar de que as instalações da face sul dos anos 1860,
como visto em foto de Benjamin R. Mulock, parecem ser anteriores, e correspondem mais a o que se
imaginaria ser um Contrato, é nesta lateral onde há uma pequena praia, com acesso fácil do Largo da
Vitória, coincidindo com o descrito por Tollenare. Nesta imagem as construções são pequenas, a
modo de casa. Existe já um “desfalque” na costa, uma espécie de reentrância.

133
São os motivos levantados por Myriam Ellis (1969).

107
Figura 58 – Eglise de la Victoria, à Bahia (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Uma das casas, aquela mais à direita, pode ser a desenhada por Ver Huell. A cava na colina não
aparece aqui, e nos registros posteriores aparece no outro lado. Há uma nova construção, também
parecendo ser uma casa. A data acima é a da publicação do catálogo de croquis, e não de sua
elaboração, ou da visita do autor, de quem não temos mais nenhuma informação.

108
Figura 59 – Victoria Hill and Cemetery (1835 circa), de William M. Gore Ouseley e J. Needham. Fonte:
OUSELEY, 1852. As edificações já são maiores, com um alpendre ou telheiro (por isso consideramos
depois, apesar das datas, em aparência, serem em ordem inversa). Defronte, uma praia rampada.

109
Figura 60 – Porto da Vitória (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988. A imagem mostra
mais da enseada. A praia que Tollenare descreveu aparece aqui. A reentrância na encosta parece
ser a pedreira mencionada por Maria Graham. Do lado esquerdo, uma construção maior, que avança
para a água, com um desenho que se assemelharia mais com uma finalidade produtiva ligada ao
mar. Acima há edículas

110
Figura 61 – Porto da Vitória (1870), da Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988. Se houve um
Contrato nessa angra, como de fato houve, essa edificação seria a mais provável de ter o engenho
de frigir. Rente à encosta, uma construção de duas águas similar à ilustrada nas prévias imagens.

111
Figura 62 – Porto da Vitória, sem data. Fonte: CEAB. O arruinamento avança. A Vila Matos –
originalmente uma vila proletária, em sua tipologia, diagonal às curvas de nível da encosta, avançou,
com um caminho próprio à praia abaixo.

112
Figura 63 – Vista da Igreja de Santo Antônio da Barra e do Forte de São Diogo nos Arredores de
São Salvador na Costa do Brasil (1807-10), de Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008. No
Porto da Barra de Ver Huell ainda não haviam chegado os saveiros. Nem as jangadas tinham
lugar. Eram apenas as canoas, adaptadas com o velame. Há uma construção maior ao fundo,
antes do Forte de São Diogo. Talvez ali fosse um Contrato.

A contração da atividade e da sua rentabilidade foi levando à redução do número de


estabelecimentos, conduzida de modo improvisado por pescadores mais pobres (havia se
tornado uma atividade de forros), para um mercado consumidor local, de igualmente de
baixo perfil, tanto pelo consumo da carne, como pelo uso do óleo mal-cheiroso, ao longo do
século XIX.

As Armações de Pescado
Nas Armações de pescado, o mais importante era o xaréu, peixe de fundo de mar cujos
cardumes se aproximavam da costa, rentes à superfície, em certas épocas do ano. A
primeira menção é de Gabriel Soares, que não atinou ao seu caráter sazonal, afirmando
presença o ano inteiro.134 Outra foi de Sebastião da Rocha Pita, que reconhecia sua
estação, do começo de dezembro até o final de abril:

Há para as suas pescarias muitas armações, desde a enseada da cidade,


até a Itapoã, quatro léguas por costa além da barra, e se fazem
consideráveis despesas em fábricas de casas, escravos, e redes, tão
grandes algumas, que carecem de cinquenta, e sessenta pessoas, para as
recolher, contando-se em alguns dos lanços mil e quinhentos, e dois mil
xaréus, e em outros com pouca diferença, deixando aos seus armados
importantes lucros. (ROCHA PITA, 2013, p.49).

Vilhena dizia que vinham com as cavalas, “e delles se mata nas armaçoens prodigiosa
quantidade, havendo lanço em que se tirão dois e tres mil xaréos”135. Junto com a tainha,

134
SOUSA, 2010, p.272.
135
VILHENA, 1922b, p.733.

113
sua importância se compreende pela limitação do pescado no Nordeste. Chegavam em
cardumes, permitindo a coleta em quantidade, o que não ocorria pela constituição do mar
nordestino. Outro aspecto fundamental é que sua afluência era complementar à das baleias,
praticamente no período oposto à dos grandes cetáceos na baía, de outubro a abril.136 A
pesca podia alternar no declínio de uma e despontar de outra.

Depoimento mais recente de um pescador dava detalhes sobre a movimentação do peixe a


adaptação dos pescadores:

Seu Vivi: [...] Outubro pra novembro botava rede do xaréu do sul, do xaréu
que vem subindo... vamos dizer novembro, dezembro e janeiro. Janeiro já
botava a rede do norte, o xaréu também já desce. E no mês de março
acabava... fevereiro, março, acabava o xaréu do sul e a pescaria era só pro
norte, que ali dava muita cavala no Carimbamba. (GANDON, 2008, p.320).

Rocha Pita assinalava dezembro; este pescador, o Seu Vivi, outubro. Porém na
Carimbamba davam como início da temporada o dia 8 de setembro.137

A pesca do xaréo é feita com rêde, e, pelas dimensões d´esta, quantidade


de peixe, peso e pessoal empregado, póde ser considerada como a maior
pesca de rêde feita não só no Brazil, mas tambem no Atlantico em toda a
costa oriental da America do Sul.

Assim é que, o xaréo pesando de 2 a 15 kilos, podendo-se entretanto


avaliar actualmente em 5 kilos a média do peso de cada peixe, não é facto
ainda de causar admiração a rêde trazer à praia mais de cinco toneladas de
peixe por occasião de uma puchada, e por conseguinte, custando em média
400 rs. o kilo, dar um lucro bruto superioer a 2:000$000, não entrando em
linha de conta as cavallas, que tem o dobro do valor, e muitos outros peixes
estimados. (CÂMARA, 1911, p.38).

A melhor rede, nova e nas melhores condições de tempo e mar, tinha capacidade para
cerca de 1.500 peixes. Em certas ocasiões, era tal a quantidade de xaréu que vinha à praia
que para não arrebentá-la, os pescadores soltavam o excesso. A safra de 1883 fora
“avaliada em 5.000 arrobas, ou 750 toneladas métricas, no valor bruto de 27 contos de
reis”.138

A rede da pesca precisava ser imensa e somente era usada nela, e seus cuidados, como
sua manufatura, era realizada pelos pescadores, escravos ou livres.139 Segundo Câmara, a
rede pesava, pronta, 1,5 ton, com 800 m de comprimento, feita de caruá, e tingidas em
casca de murici, com água salgada em depósito em gandes tanques ou cascos de canoa,
de mês em mês quando em serviço. Wilson Rocha e José de Barro Martins davam outros
dados: teria 1.000 m de corda, com aquele mesmo peso, consertadas e ao máximo
conservadas (em banhos com casca de cajueiro).140

Os xaréus nadam com a correnteza da maré, quase paralela à costa, de Leste a Oeste,
aproximando-se para desovarem. A pesca ocorria independente da maré, e não
necessariamente quando a rede era instalada, com uma operação bastante intrincada.
Poderia ficar por pelo menos dois dias, sendo que no terceiro dia, pela manhã, devia ser
retirada, trazendo o que houvesse nas águas, sob risco de deteriorar a rede, na chamada

136
TAVARES, Odorico. Bahia – Imagens da Terra e do Povo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A., 1961, p.66.
137
CÂMARA, 1911, p.40.
138
CÂMARA, 1911, p.38.
139
CÂMARA, 1911, p.39; TAVARES, 1961, p.66.
140
MARTINS, José de Barro & AMADO, Jorge. Apresentação. In: CARYBÉ. As Sete Portas da Bahia. 2ed. São Paulo: Livraria
Martins Editora S.A, s/d, p.25; CARYBÉ, 1951. Os mesmos afirmam que a rede era feita nos cinco meses em que esses
cardumes não visitavam a costa. Afirmação estranha, porque a rede, custando muito ser feita, não necessitava ser refeita
anualmente por inteiro.

114
puxada obrigatória.141 Como a instalação, a puxada da rede era uma ação coordenada
complexa, com funções delineadas e divididas por capacidade e experiência.142 Destacamos
o papel do chamado mestre do mar, necessariamente experiente, que identificava a
presença do cardume nadando rente à superfície das águas pela mudança na sua textura e
cor. Reconhecendo a arribação, mergulhava e sondava a quantidade, avisando ao mestre
de terra e com o chapéu sinalizava a quantidade. O mestre da terra a partir daí comandava
o esforço conjunto dos homens da terra e do mar.143 Por sua vez, os apetrechos requeriam
cuidados próprios, de funções específicas: do mestre do tendal, que dirigia a fabricação e
reparo das redes; do mestre da cordoaria de caruá, que dirigia a fabricação dos fios de
caruá; e do mestre da cordoaria de piaçava, que com 2 ajudantes fazem as cordas de
piaçava.144 Notamos aqui a importância das cordoarias. Era necessário um tipo específico
de rede, assim como jangadas ou canoas; em complemento, a habilidade de nadar, e a
sensibilidade aguçada da visão para captar nuances do reflexo da superfície do mar, e a
maneira como conseguem coordenar e somar esforços de uma multidão à terra e ao mar.

Figura 64 – Pesca de Xareo – Amaralina, Bahia, cartão-postal da Litho-Typ. Joaquim Ribeiro & Cia,
de 1928, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. Não necessariamente de xaréu; pode ser
a pesca de arrasto de outro pescado.

141
GANDON, 2008, p.320.
142
Os relatos abundam, e o mais detalhado que encontramos, de cada aspecto e parte da atividade, incluindo os instrumentos,
é o de Antônio Alves Câmara (1911).
143
MARTINS & AMADO, s/d, p.25.
144
CÂMARA, 2011.

115
Figura 65 – Pesca de xaréu em Armação, séc. XX, foto de Alice Brill. Fonte: FALCÃO, s/d.

Figura 66 – Pesca de xaréu, séc. XX, foto de José Oiticica. Fonte: FALCÃO, s/d.

Das revoltas e levantes escravos da primeira metade do século XIX, algumas se deram a
partir das armações do litoral atlântico. Em 1814 foi o primeiro levante realizado pelos
escravos da armação em Itapuã de propriedade de Manuel Ignácio da Cunha Menezes, o

116
Visconde do Rio Vermelho, com as instalações incendiadas, e as de mais duas ou três
armações no caminho dos insurrectos, depois capturados.145 Em 1828 houve outra revolta
na mesma região, com novo incêndio de armações, novamente a do Visconde do Rio
Vermelho, mais a de Francisco Lourenço Herculano.146 Outra vez os escravos foram
capturados, agora em Engomadeira, no caminho rumo a Pirajá. Em ambos os casos, os
escravos levantados resolveram ir rumo ao Recôncavo pelos caminhos internos.

As armações de pescado estavam em mar aberto, necessariamente. Mas nunca tão longe
da cidade os de maior porte, por motivos que serão explicados.

Pela envergadura da rede, e do subseqüente volume de pescado, era uma atividade


coletiva, com sua divisão de trabalho e coordenação. Porém ela foi reduzindo-se com o
tempo. No Oitocentos, segundo Câmara, a operação como um todo requeria de 80 a 100
homens, durando de 2 a 3 horas. Em decréscimo os pescadores, na virada do século a
puxada se estava fazendo com o reforço de 7 a 8 juntas de bois. Os relatos posteriores
atestavam número menor de pessoas envolvidas no arrasto. Martins e Amado diziam que
constaria de sessenta e três homens: vinte homens da terra, vinte homens do mar, vinte
atadores, um mestre da terra, um mestre do mar e um chefe.147

No começo do século XX as armações haviam se extinguido, restando apenas aquela da


Carimbamba. Antônio Alves Câmara credita, entre outras coisas circunstanciais (como a
morte dos proprietários) e crônicas (o transporte difícil), motivos mais plausíveis como a
diminuição dos escravos (e portanto da mão-de-obra barata) e do pescado.148 A redução da
antiga abundância à beira-mar é algo recorrente nos testemunhos dos pescadores.149

Isso não significa o fim da pesca de arrasto, mas sim do arranjo produtivo. Ao longo do
século XX, persistiu a imagem da pesca de arrasto, sempre identificada como a pesca do
xaréu, como símbolo daquele litoral rústico. Porém, muito menor em tamanho que antes, e
sem a importância que tinha para a economia da cidade.

As Localidades dos Pescadores


Estava clara nas Posturas do Senado de 1785 a origem do pescado que abastecia a cidade:
“todo o peixe fresco de Itapagipe, Pedreiras, Agoa de Meninos, Rio Vermelho, Ubarana,
Pituba, Itapoan e o que vem de fóra”.150 A curiosidade reside em Água de Meninos, que não
é citado por Portela em momento algum em seu estudo, que cobre a segunda metade do
século XIX. Talvez a armação que ali pudesse existir se tenha desfeito até o momento. Os
pescadores registrados na Capitania dos Portos, criada em 1846, concentravam-se em
áreas específicas, vivendo perto do local do trabalho e uns dos outros. Quase 90% dos

145
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835). 2ed. São Paulo: Ed. Brasiliense,
1986, p.70. Algo sobre o Visconde é mencionado por Parish Kidder: “about fifteen years ago, the late Visconde do Rio
Vermelho, a gentleman of the utmost veracity, and owner of an extensive fishery on this coast a few miles to the north of the
harbor of Bahia, near Itapican [sic]” (KIDDER, Rev. Daniel Parish e FLETCHER, Rev. J.C. Brazil and the Brazilians, portrayed
in Historical and Descriptives Sketches. Philadelphia: Childs & Peterson, 1857, p.496).
146
REIS, 1986, p.79.
147
MARTINS & AMADO, s/d, p.25. O número é preciso demais. É inverossímil que sempre se repetisse. Serve apenas para
entender a mecânica da pesca, e algo de sua envergadura. Wilson Rocha repete muitos dos dados, inclusive o número de
pessoas na empreitada (CARYBÉ. Pesca do Xaréu. Coleção Recôncavo. Salvador: Livraria Turista, 1951). No entanto, como
muito da narrativa sobre a pesca do xaréu, repete-se de autor a autor, sem que conseguíssemos identificar com certeza a
origem. Provavelmente Odorico Tavares, a partir de reportagens que fez e depois reuniu e publicou em 1947. Até certos
achados poéticos, certas imagens – as casas de palha vazias, os homens à praia – são repetidos. Ou ainda uma das causas
dos possíveis danos às redes – um cação eventual – é constante, denotando essa origem unitária.
148
CÂMARA, 1911, p.39.
149
LOPES, 1984; GANDON, 2008.
150
A BAHIA DE OUTROS TEMPOS: as posturas do Senado da Camara em 1785. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, Março de 1897. Anno IV, volV. I. n.11. Salvador: Typ. e Enc. Empreza Editora, Rua do Corpo Santo, 80,
1897, p.55.

117
pescadores da cidade estavam na Ilha de Maré, Itapagipe, do Unhão à Barra, no Rio
Vermelho e em Itapuã151 (Figs. 71 a 80).

O interessante é que algumas das localidades de pescadores, longínquas para a cidade de


então, eram consideradas como seus limites naturais, porém descontínuas, como povoados
próprios, já desde o século XVII. A Postura de 27 de agosto de 1635 denunciava o dano
causado pela venda de “vinho de mel” (cachaça) “nesta Cidade, Rio vermelho, e Itapagipe”
[sic], e se proibia que “que nenhuã pessoa ovendesse desde apraia de Itapagipe, até o Rio
vermelho, ePituba incluzivel” [sic].152

E onde estavam as Armações de Xaréu e os Contratos de Baleias?153

Foi em Itaparica onde surgiram os primeiros Contratos. Porém existiram Contratos em


outros lugares, também chamados de Armações, e não encontramos distinção de ordem
prática na localização das Armações de Baleia e dos Contratos. Havia Contrato em Itapuã,
persistindo mesmo em 1888. Ou melhor, dois: o Contrato de Cima e o Contrato de Baixo,
próximos um do outro. Pituba sediara um Contrato, em tempo incerto, não funcionando mais
em tal ano. Igual sorte teve um estabelecimento do mesmo tipo, na praia da Paciência, no
Rio Vermelho. Em 1816, anúncio estabelecia que havia “armação de Balea” na Fazenda
Areia Preta, na atual Ondina. Como houve na Barra, provavelmente mais de um
estabelecimento. Desmanchavam-se baleias mortas no Porto da Vitória, como Tollenare
testemunhara em 1817 (Figs. 57 a 62). Talvez houvesse um Contrato no Porto da Barra, e
assinala-se que ao menos outro estava ao lado do Forte de Santo Antônio da Barra.
Nenhum deles em funcionamento nas últimas décadas do século XIX. Havia um na Gamboa
e outro na Península de Itapagipe, precisamente na Pedra Furada, operando em 1819 mas
sem chegar ao final do século. Nesse encerrar do Oitocentos, em Itaparica, poucas
armações operavam, em penúria: Manguinho, Porto Santo, Gamboa, Barra do Gil e
Caravelas.

Em Itaparica havia armação de xaréus em Parapatingas nas primeiras décadas do século


XIX. Em tempos coloniais houve na Jequitaia, convergindo com aquelas Posturas de 1785
que incluía Água de Meninos. Na Barra um dia houve, ao menos no século XVIII. Também
armação no Rio Vermelho, no começo do Oitocentos. Menciona-se nos anos 1840 uma
armação em Amaralina, conhecida como Armação da Lagoa, e presente em mapas da
época. Como, no mesmo período, se assinala na Planta do accampamento de Pirajá e
Itapoan (1839) (Fig.68), de Henrique de Beaurepere, que houve na Pituba, a sudoeste do rio
Chega-Negro. Havia na praia de Armação, também chamada de Saraiva, onde fora a
Armação do Saraiva. E no trecho subseqüente, hoje Boca do Rio, onde estava a Armação
do Gregório, também denominada Carimbamba. Estas eram as armações mais famosas, e
persistentes, de todo o litoral atlântico. Existia armação nas bandas do rio Jaguaribe, perto
da Ponta de São Tomé, no final do século XVIII. Como seguramente nas praias de Itapuã,
nas primeiras décadas do século XIX. E em Catassaba, além do Farol.154

151
PORTELA, 2012, p.61.
152
ATAS DA CÂMARA 1625-1641. DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL 1º Volume. Salvador:
Publicações da Diretoria do Arquivo e Divulgação da Prefeitura do Salvador, 1944, p.279.
153
O processo dedutivo da locação das armações de xaréu e contratos de baleias, com todas as minúcias e fontes, está no
Apêndice 1.
154
A explicação detalhada sobre estes sítios, e a determinação da localização da toponímia antiga, está nos Apêndices 3 e 4.

118
Figura 67 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. A Ponta de Itapuãzinho é chamada neste mapa de Ubarana. Pituba
parece ser o porto que o mapa anterior denomina “Armação”.

119
Figura 68 – Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. Assinalando como Pituba uma formação rochosa com pequena
condição portuária. Os arrecifes maiores, onde esteve o Clube Português, estão chamados aqui de
“Armação”, localizando o que podia ter sido uma. O Rio do Chega-Negro é o atual Camurugipe. A
Armação do Saraiva no mapa é onde estava o Aeroclube.

120
Figura 69 – Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos (1803), de José Fernandes Portugal.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Aqui está Lagoa (Amaralina), a seguir Ubarana, Pituba.
Acusava, porém, um lugar chamado D. Ignacia, como era conhecida Bernardina Mirales de Souza,
madrinha de Manoel Ignácio da Cunha Menezes, a quem herdou tais terras. Mais adiante, no soé do
Outeiro de São Francisco, Carimbamba.

121
Figura 70 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. A Costa de Itapuã é a que vai do rio Jaguaribe até a região onde
depois se instalou o Farol. Esse trecho se subdividiu toponimicamente posteriormente. Em vermelho,
a indicação das vilas. Depois aparece Catassaba, atual Catuçaba

122
Figura 71 – Elevação em prospetiva das Fortalezas na entrada da Barra da Bahia, ao Sul, vista de
terra para o mar, oposta, regulando comparativamente, as suas partes (1775-1800), de Eques
Carvalho. Fonte: REIS FILHO, 2001. As construções são térreas, rente à praia e subindo as encostas,
paralelas às curvas de nível, térreas e simples, de pescadores.

Figura 72 – Porto da Barra (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008. Em primeiro plano,
pescadores estendendo sua rede. No segundo plano, abrigo reduzido de folhas.

123
Figura 73 – Gamboa, anos 1940. Fonte: ATLAS PARCIAL..., 1956. Ainda no séc. XX não era uma
ocupação contínua. À esquerda, a oeste do Forte de São Paulo da Gamboa, estava o lugar chamado
em alguns mapas como Unhão. À direita, a leste da fortificação, o Porto da Gamboa propriamente
dito.

Figura 74 – Bahia. Coqueiro, cartão-postal, de 1906, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA,
2004. Acima, as palmeiras imperiais do Passeio Público. No canto inferior esquerdo, o Forte de São
Paulo da Gamboa. Esse é o local conhecido como Unhão.

124
Figura 75 – Unhão, cartão-postal de J. Pedrozo, de 1915, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA,
2004. Apesar do nome Unhão no postal, este era o coração da Gamboa, onde estava o porto
propriamente dito, com sua parte construída.

Figura 76 – Bahia – Água de Meninos, cartão-postal de J. Mello, 1911, da Coleção Ewald Hackler. Fonte:
VIANNA, 2004.

125
Figura 77 – Vista da Ladeira de São Francisco de Paula, Ancoradouro, Água de Meninos e Igreja da
Santíssima Trindade (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008. À esquerda vê-se o pequeno cais
de Água de Meninos.

Figura 78 – Bahia (Itapagipe) – Praia da Pedra Furada, cartão-postal de J. Pedrozo, de 1914, da


Coleção Ewald Hacker. Fonte: VIANNA, 2004. Única imagem oitocentista que encontramos da Pedra
Furada, em um ângulo que não nos permite ver o conjunto maior. Nessa enseada houve um Contrato
de baleias.

126
Figura 79 – Ribeira-Itapagipe, cartão-postal da Litho-Typ. Almeida, 1908, da Coleção Ewald Hackler.
Fonte: VIANNA, 2004.

Figura 80 – Ribeira (1860-65), foto de Camillo Vedani. Fonte: FERREZ, 1988. Em ambos os casos,
antes do cais ser construído. As casas davam à rua, que descia por uma praia ao próprio mar.

127
Havia uma hierarquia entre os pescadores, relacionados tanto à posse dos meios de
produção como ao papel funcional, à cadeia de comando, nos empreendimentos (a caça da
baleia, a puxada de rede), que muitas vezes se mescla. O capitão era o dono do barco
como o mestre da pesca era o dono da rede, que devia ser imperiosamente obedecido,
ainda mais em situações limítrofes, do contrário a ação coletiva soçobrava.155 Assim como,
em um plano mais geral, se estratificavam os tipos de trabalhadores do mar, como as
próprias comunidades marítimas.156 Que não eram entidades isoladas, autônomas entre si,
relacionando-se de maneiras distintas.

Uma delas era a colaboração, necessária em muitos casos, na própria atividade da pesca.
O Peso, por exemplo, instituição colonial cuja função de aferir medidas de vendagem do
peixe, era por conseguinte centro de concentração de pescadores.

Nas Atas da Câmara se anunciava a existência de um Peso no Rio Vermelho, mas também
outro atendendo os portos de Ubarana (atual Amaralina) e da Pituba, sem nenhuma
indicação de localização. Em alguns momentos, parece que tais funções se concentraram
no Peso do Rio Vermelho. É de 10 de março de 1642 a primeira notícia que temos sobre
essa instituição, quando houve o pregão para seu controle, “a rematasão que se fes a
Simão Fernandez ren-/ dejr[o] do pezo do peixe do Rio Vermelho”.157 E do dia 9 de março de
1643 o leilão para o Peso de Ubarana e Pituba. Dava-se a entender que um mesmo lugar
coordenava o labor dessas duas localidades, efetivamente vizinhas: “lanso neste livro per
mandado dos ofi-/ siaes da Camera o arendamente que se fez a Filipe Correa do pe-/ zo
d[a] Petuba e Porto da Ubarana por p[r]esso/ de des patacas”.158 Esses lugares, em especial
o Rio Vermelho, operavam como nexos articulando a produção pesqueira do litoral norte,
em uma coesão funcional. Segundo Cid Teixeira, o antigo porto da Mariquita funcionava
como porto de toda a costa norte do Estado da Bahia. Saveiros iam de Mangue Seco,
Subaúma, Itacimirim, Itapuã, a produção de todo o litoral escoava-se pelo porto da
Mariquita.159

Lopes, falando a partir do século XX, acenava para uma proximidade social entre o Rio
Vermelho e Itapuã por conta do Contrato de baleias situado nesta última.160 Também na
pesca dos peixes de arribação, poderia haver solidariedade. Em 1954 houve grande pesca
de guaricema na Semana Santa. Não passando os cardumes em Itapuã ou Pituba, de onde
afluiram os pescadores para Rio Vermelho, por onde o cardume atravessou.161 Cabe
conjecturar que tal se desse nos séculos anteriores.

Pescadores poderiam trabalhar ora em um lugar, ora em outro. Como ocorria, no século XX,
entre Itapuã e Armação do Saraiva (atual Armação): “os mesmos pescadores trabalhavam
nos dois locais alternadamente. Além do mais, eram fortes os laços de família unindo a
gente ´do Saraiva´ ao povo de Itapuã”162, razão pela qual velhas itapuãzeiras consideravam
aquela região como uma extensão da Itapuã que conheciam.

155
PORTELA, 2012, p.80.
156
Referimo-nos, naturalmente, às confrarias, em particular as dos mareantes. O próprio facto de, por norma, estas se
diferenciarem das dos pescados, apresenta-se como indicador importante acerca da estratificação interna das
comunidades marítimas. As multiplicadas confrarias do Corpo Santo, de Nossa Senhora da Boa Viagem, de S. Pedro,
têm merecido estudos próprios que em muito contribuem para a percepção da especificidade das comunidades
marítimas na sua organização e nas suas representações. (POLÓNIA, Amélia. A centralidade dos espaços portuários
na Época Moderna: uma aproximação historiográfica. In: VELASCO E CRUZ, Maria Cecília; LEAL, Maria das Graças
de Andrade; PINHO, José Ricardo Moreno (org). Histórias e Espaços Portuários: Salvador e outros portos. Salvador:
EDUFBA, 2016, p.31).
157
ATAS DA CÂMARA 1641-1649. DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL. 2º Volume. Salvador: Prefeitura
Municipal do Salvador/ Publicações da Diretoria do Arquivo e Divulgação da Prefeitura do Salvador, 1949, p.83.
158
ATAS DA CÂMARA 1641-1649, 1949, p.164.
159
RIO VERMELHO – Projeto História dos Bairros de Salvador. Salvador: Governo do Estado da Bahia – Secretaria da Cultura/
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1988.
160
LOPES, 1984.
161
RIO VERMELHO..., 1988, p.73.
162
GANDON, 2008, p.144.

128
Figura 81 – Localização dos Contratos de baleia e Armações de xaréu no século XIX. Edição do autor
a partir de imagens do Google Earth.

Como havia solidariedade, havia também conflito pelo uso dos recursos. E neste revela-se
um senso de territorialidade e as leis não-escritas dos homens do mar.

Os pesqueiros tinham “donos” comunais: aquelas localidades mais próximas que


costumavam explorá-los. O uso pelos “de fora” não era bem-visto, apesar de legal. Portela
identificou em 1878 um conflito franco pelo usufruto da Coroa da Gamboa, ao Porto das
Pedreiras163, onde os pescadores daquele porto, da Gamboa e da Barra, que habitualmente
pescavam ali, se insurgiam contra a “invasão” de pescadores vindos de Itapagipe. Com
escaramuças que levaram inclusive à luta com pedras, carregadas em uma das canoas. Os
incomodados em abaixo-assinado apelaram explicitamente para um “direito das gentes”,
próprio deles:

[...] se a pesca é livre está instituído por todos os pescadores de todos os


portos que as redes cada uma tem seu lance onde possa deitá-la na
ocasião apropriada conforme a maré. Vossa Senhoria sabe que redes não
se podem deitar em todos os lugares, a não ser em coroas de areia [...]
(apud PORTELA, 2012, p.111).

Um dos pontos curiosos no caso é a petição do pescador Joaquim José de Santa Anna
Barbosa de uma exclusividade na exploração do pesqueiro em conflito, buscando uma
salvaguarda da comunidade frente à invasão dos forasteiros, não apenas baseado nessas
leis não-escritas entre os homens, como pelas despesas que tivera para beneficiar o local.
Aqui nos parece que entramos no terreno das confecções, ou nos incrementos, dos
pesqueiros já mencionados.

163
Lugar onde em 1816 se anunciava que “há para vender-se huma armação de bons escravos Cabindas” (IDADE D´OURO
DO BRAZIL n.15, Terça-Feira 20 de Fevereiro de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1816.

129
Porém o mais marcante eram as devoções em comum, as procissões marítimas que iam de
um santuário, por simples que fosse, pequena ermida de palha, a outro. E grande
comemoração entre as gentes do mar, que se verá em capítulo subsequente.

2.3. Para Alimentar a Cidade


Parte da pesca nos arrecifes e no bordo marítimo era de subsistência daqueles
assentamentos litorâneos. Em outra medida, havia uma relação com o metabolismo geral da
cidade, parte integral do seu sustento.

O peixe era um elemento importante na alimentação do soteropolitano. A cidade sofria


freqüentemente por escassez de víveres, e a carne era um artigo raro e caro, e não
necessariamente boa. John Mawe apontava abundância da carne bovina e a suína, porém
más. O pescado não tinha essa ressalva: “os peixes são em grande abundância e
variedade, e formam um artigo principal na dieta dos habitantes”164, em especial o dourado,
da predileção de todos, incluindo os mais abonados. Em 1856, Wetherell registra, com
arguto olhar sociológico: “o peixe parece ser um dos pratos favoritos dos baianos, e como é
muito bom e somente por vêzes encontrado em abundância, torna-se dispendioso”165,
estando sempre presente nos jantares de gente abonada. No final do Setecentos, era
pescado com alguma estima a cavala, a cioba, o beijupirá, o vermelho, o pampo e o
curimã.166 A hierarquia de valores, de preço e disponibilidade, em cima do pescado era
inevitável. Durante a Semana Santa do começo do século XIX, o aumento da demanda
incentivava o da oferta, em número e variedade, acarretando o “trabalho extra dos
pescadores”, com uma maior “profusão agora exibida no mercado”167, porém manutenção
do preço pela equivalência entre ambos.

O peixe fresco era artigo de luxo. Os mais abonados poderiam ter sua fonte particular,
criado em viveiros, valendo-se da água do mar, elementos incorporados a partir do século
XVIII em casas-grandes e fazendas pelo Recôncavo.168 Em 1857, tinham-nos a “maioria das
casas de campo que se erguem à beira-mar, e mais particularmente naquelas situadas nas
margens dos rios”.169 Em engenhos próximos à cidade estavam presentes, como no
Engenho Cabrito, de Ignacio Rigaud, em 1838.170 Também em fazendas, como esta em
Itaparica, com alambique, matos, gado bovino, ovino e caprino, “bons pastos, um viveiro, um
barco prompto de tudo, canoa, e outros objectos”.171 Mas, ao contrário do que disse Freyre
para Recife, não encontramos em Salvador os viveiros incorporados aos sobrados, nos
palacetes urbanos.172 O contato com esse espelho d´água, com suas conotações
recreativas, parece ter sido um apanágio rural. Guardemos por ora o viveiro como um sinal
de riqueza, raro na cidade pela falta de um tão franco contato com os corpos d´água, tal
como na capital pernambucana, exceto na Península de Itapagipe.

Obviamente, a parte que tocava aos mais pobres não era exatamente o que lhes estava
perto, mas o não desejado por quem tinha posses, pela simples distribuição pecuniária. O

164
Fish are in great plenty and variety, and form a principal article in the diet of the inhabitants. (MAWE, John. Travels in
the Interior of Brazil... London: Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1812, p.282).
165
WETHERELL, s/d, p.117.
166
VILHENA, 1922b, p.733.
167
[...] extra labour of the fisherman, and it is wonderful to see the profusion now exhibited in the market; yet the price
continues, and the demand is more than sufficient for the consumption of the whole [...] (LINDLEY, 1805, p.152).
168
Junto com os aquedutos em pedra, a carpintaria, o estaleiro (AZEVEDO, 2009, p.14).
169
WETHERELL, s/d, p.140.
170
O CORREIO MERCANTIL n.475, Segunda-Feira 28 de Maio de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1838.
171
O CORREIO MERCANTIL n.492, Quinta-Feira 21 de Junho de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
172
FREYRE, 2004.

130
peixe fresco, ao menos algumas espécies, era caro. Não o marisco. Não a carne de baleia.
Não o peixe miúdo.173 Com isso, abre-se aqui uma economia, cujo porte em termos
quantitativos precisos não temos como descrever, que era uma parte fundamental da
sobrevivência da Salvador oitocentista, como era quem explicava aqueles estabelecimentos
das armações no litoral da região, a caça da baleia e a pesca do xaréu e da tainha.

2.3.1. O Quinhão dos Pobres


Havia um setor da produção extrativista cujo lucro não vinha dos preços, mas pela sua
envergadura. Em alguns casos são restos ou subprodutos da atividade principal. Muito do
que era de baixa qualidade permanecia na economia local, como vimos com o óleo de
baleia, e se repetia com o tabaco.174 Podemos entender mesmo a carne da baleia como um
resto necessário da caçada da baleia, assim como os derivados da pecuária bovina, tal qual
suas vísceras. Porém estes e outros produtos faziam parte de um circuito específico, o
necessário sustento daquela força de trabalho nos engenhos e fazendas, nas vilas e capital,
nas tripulações dos navios (a matalotagem). Essa economia movimentava ainda toda a
produção de farinha de mandioca no Recôncavo e o consumo do charque, importado do Rio
Grande do Sul e da Argentina.175 Ou seja, implicava em uma produção específica para
algumas mercadorias. Sua contraparte era essa economia pesqueira, cuja face mais
ostensiva eram as Armações de Xaréu.

Rebello quando descreve o litoral atlântico acaba por mesclar em uma mesma sentença o
que é o fornecimento do pescado miúdo em quantidade para a população geral, e o
pescado de melhor qualidade, vendido fresco. Fala nas armações de baleias, e “outras de
cavalla e charéos”.176 A cavala, apesar de ser peixe de arribação, não comparece como um
pescado dos mais pobres.177

O entusiasmo pela carne dos grandes cetáceos moribundos na areia se justificava. Sendo
uma comida de escravos e dos estratos inferiores, não era disputada pelos mais
abonados.178 Era sua rara oportunidade de comer carne, ainda que considerada inferior.

[...] da baleia se fazem carnes, de que os escravos se sustentam: os


moradores, que possuem muitos, assim nas casas, como nas lavouras, as
mandam beneficiar em pipas, e barris, que lhes dura de uma a outra safra, e
delas consta a matalotagem da gente marítima, que serve nas
embarcações, que vão para a costa de África, e para outros portos [...]
(ROCHA PITA, 2013, p.51).

Frei Vicente do Salvador descrevia outra maneira de tratar a carne: “além do proveito que se
tira da carne magra da baleia, a qual fazem em cobros e tassalhos, e a salgam e põem a
secar ao sol, e seca a metem em pipas”179 e então a vendiam. Câmara, séculos depois,
descrevia algo análogo: que era a carne assada “em pequenos nacos para ser vendida à

173
BARICKMAN, 2003, p.90.
174
ANDRADE, 2013.
175
Sobre a farinha: BARICKMAN, 2004; GRAHAM, Richard. Alimentar a Cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal
(Salvador, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Sobre o charque: PINHO, 2016.
176
REBELLO, 1829, p.136.
177
Gabriel Soares indica que, vindo no verão com os ventos alísios, são pescados com anzol em movimento (SOUSA, 2010,
p.272).
178
DAMPIER, 1703, p.57; TOLLENARE, 1956, p.291; DÉNIS, 1839, p.144; DELESSERT, Eugène. Voyage dans le deux
océans, Atlantique et Pacifique 1844 a 1847. Paris: A. Franck, Libraire, 69, Rue Richelieu, 1848, p.39; OUSELEY, W.M.
Gore. Description of Views in South America... London: Thomas McLean, 1852, p.13.
A carne não é dada aos trabalhadores como pensei; é vendida aos pedaços de 4 a 10 francos. Só a carne rende
algumas vezes de 500 a 600$000 (3.000 a 3.700 francos). Se uma baleia dá 2.000 arrobas de carne vem a sair a libra
por 2 a 3 soldos. (TOLLENARE, 1956, p.339).
179
VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.318.

131
gente pobre, que a consome, para o que a collocam em um giráo, e accendem o fogo
embaixo”.180

Um escravo temia que seu amo perdesse status consumindo-a; ou melhor, que lhe era
indigna.181 Alguns estrangeiros eram um tanto indiferentes ao seu gosto, embora houvesse
quem gostasse, ou acha-se a razoável, e outros, repulsiva, e quem refletisse sobre essa
diferença de paladar.182 Licídio Lopes, em pleno século XX, diria algo bastante diferente:
com limão e moqueada seria mais saborosa que a carne bovina. Era sua madeleine,
evocando todos os sabores e sensações da infância.183

Também os esqualos, como os cações-lixa, e os peixes-serra eram aproveitadas pelos


escravos e marujos de alto-mar.184

Por um lado, a complementaridade da caça da baleia e a pesca do xaréu em alguma


medida eqüalizava o fornecimento da matalotagem. Por outro lado, cabe-se perguntar se
isso implicava em alguma estabilidade dos postos de trabalho.

No recenseamento de pescadores de 1775, compilado por Castro Almeida, se dizia que “de
Junho a Outubro pescao na armasao das Baleas e de Novembro até Fevereiro nas grandes
redes de armasão onde se alugao para esse fin”.185 No final do século XIX, isso havia se
modificado. Antônio Alves Câmara dizia que ambas as atividades não se mesclavam; mais,
que a ocupação de baleeiro se justificava mais por um senso de orgulho próprio que por
ganhos materiais:

Entretanto, e causa admiração, a maior parte delles occupados durante o


verão em empregos, que lhes dão o decupulo do salario, que ganham na
baleeira, sem perigos e sem grande esforço, abandonam-os no inverno, e
se alistam na tripolação destas embacações, tal é o gosto, que tomam pela
pesca da balêa, sendo de notar, que a maior parte da tripolação não é
composta de pescadores. (CÂMARA, 1911, p.67).

Era trabalho escravo no Setecentos, e justificava-se sua otimização por pertencerem às


mesmas unidades produtivas que, ademais, tinham desse extrativismo sua principal fonte de
receita. Podemos imaginar que, com o fim do trabalho escravo e a redução das baleias, e
ademais da queda de seu rendimento, terminamos com a situação descrita por Câmara.

Toda a economia do xaréu estava ligada à alimentação dos mais pobres, e de modo
sistemático à reprodução da força de trabalho. Observava já Rocha Pita: “ainda que muito
vulgar pela sua quantidade, merece especial notícia, pela grandeza da sua pescaria, e por
ser o sustento dos escravos, e do povo miúdo da Bahia”.186 As ovas do xaréu também
tinham “a sua estimação”.187 Rocha Pita detalha:

As suas ovas têm grandeza proporcionada, e não deixam de lograr


estimação, assim frescas, como salpresadas em uma forma de prensas,
onde espremidas, as põe a secar por alguns dias [...] com este benefício

180
CÂMARA, 1911, p.84.
181
TOLLENARE, 1956, p.343.
182
Foram os indiferentes: BULKELEY & CUMMINS, 1743, p.212; TOLLENARE, 1956, p.291. O único que dela gostou foi
DAMPIER, 1703, p.57. Tollenare considerou-a “um prato muito tolerável e pouco inferior à péssima carne de cava cozida da
terra” (TOLLENARE, 1956, p.343). Já Delessert (1848, p.39) entendeu-a repulsiva.
183
LOPES, 1984.
184
SOUSA, 2010, p.268. Vilhena confirma: “tubaroens, especie de cação bastante grosso e pouco comprido, de cujos figados
se extrahe azeite melhor que o da balêa, assim como de algumas lixas e tintureiras que, como aquelles, vagão pellos mares,
ou vem de arribação” (VILHENA, 1922b, p.732).
185
Apud GANDON, 2008, p.174.
186
ROCHA PITA, 2013, p.49.
187
VILHENA, 1922b, p.733.

132
permanecem muito tempo, e as levam por matalotagem, e regalo os
mareantes. (ROCHA PITA, 2013, p.49).

Embora o mar aberto seguisse o padrão de outras áreas, em sua ocupação – os coqueirais
ao norte e piaçaveiras ao sul, o gado vacum quando possível, pescadores e cordoarias
relacionadas – não era o mesmo quanto às armações de xaréu de maior porte. Elas não
poderiam estar distantes da cidade. Porque alimentavam mais do que fazendas e engenhos
das redondezas: aquelas armações “abastecem a capital com peixe”188, mas dependendo
da velocidade das canoas e jangadas, e das técnicas de preservação, com o produto levado
pelas ganhadeiras.

Por motivos que escapam ao horizonte desta Tese, o xaréu deixara de ser algo inferior.

Hildegardes Vianna descrevia todo o procedimento do trato do xaréu, que lhe permitia que
durassem semanas, presente junto comoutros peixes bem-vindos pelas famílias baianas.189
Manuel Querino, em 1922, o assinalava: se antes “o consumo desse peixe estava adstrito
aos escravos, à população pobre e as tripulantes dos navios que partiam para a costa de
África ou para o continente europeu”, naquele momento “o xáreu é muito apreciado também
pela classe abastada, variando o preço entre 800 e 1.400 réis o quilo, quando antigamente
não excedia de 40 rs. a libra”.190

Havia a tainha, a “galinha do mar” para os pescadores, “do que há infinidade deles na Bahia;
com as quais secas se mantêm os engenhos, e a gente dos navios do Reino, de que fazem
matalotagem para o mar”.191 Aqui entendemos algo papel da Enseada dos Tainheiros para a
Salvador de então. Quando Gabriel Soares afirmava que era o esteiro do rio Pirajá muito
fecundo, alimentando de pescado e marisco a vizinhança e a cidade, “em o qual andam
sempre sete ou oito barcos de pescar com redes”, e, no inverno, com chuvas e ventos,
“pescam dentro dele os pescadores de jangadas dos moradores da cidade e os das
fazendas duas léguas à roda, e sempre tem peixe de que se todos remedeiam”.192

O xangó era outro peixe reiteradamente mencionado como sustento dos pobres. Na vila de
São Francisco do Conde era “não só para sustento dos escravos, como para regallo de
muitos brancos”.193 No século XX eram vendidos enfiados em palitos de palma de coqueiro,
formando a corda de xangó, nas feiras e portas de quitandas. Estando na cozinha era sinal
inequívoco da penúria do dono.194 No conto Maria Rosa, Xavier Marques fala de uma
comunidade que vivia de sua pesca.

Vivem da pesca de xangó, peixe miúdo, verdadeiro rebotalho do mar. Para


essa pesca tecem redes apropriadas, de malha pequena e fio delgado.
Associam-se, compram canoas, levantam a cabaninha sem paredes para
guardar a bateria da profissão. (MARQUES, s/d, p.117)

Peixe que, em cardumes de centenas de milhares, se multiplicava “nos sacos do litoral,


esfervilha nos canais e em volta das restingas como areias revoltas pelo macaréu”, e
abarrotava as canoas dos pescadores. Descreve a pesca, inclusive o tratamento doméstico
e preparo da comida. Em algo relacionado com isso, afirma Edison de Palma Meirelles: “o
pescador, quando da puxada da rede, catava os mais graúdos, e o resto atirava na praia
para quem o quizesse”195, apanhado pelos garotos pobres dos arredores.

188
[...] there are fisheries which furnish the capital with fish [...] (HENDERSON, 1821, p.329).
189
VIANNA, 1994, p.73.
190
QUERINO, Manuel. A Arte Culinária da Bahia. Salvador: P555 Edições, 2006, p.36.
191
SOUSA, 2010, p.275. Sobre o epíteto “galinha do mar”: CARVALHO, 1915, p.139.
192
SOUSA, 2010, p.138.
193
VILHENA, 1922b, p.501.
194
VIANNA, 1994, p.82; MEIRELLES, Edison de Palma. Bate-Papo com a Bahia de Outrora. Salvador: s/d a, p.32.
195
MEIRELLES, 1977, p.49.

133
Nesse mesmo papel podemos pôr as pititingas: Vilhena descreve como eram tratadas em
Cachoeira, temperadas com limão e pimenta, embrulhadas em folhas de plantas secas,
servindo como provisão para “os que dali sahem, tanto para o mar, como por terra, para os
certoens”.196 O chicharro, cuja pesca nos rochedos era um grande evento no Rio Vermelho,
pelo menos décadas depois, se inscreve no mesmo perfil.197 Odorico Tavares confirma
estes dois pescados, junto com a sardinha, vendidas aos mais pobres.198 Em menor grau
havia a guaricema, pescado que já teve presença maior, também chamado de xumbrega,
como “xaréu”, palavra que ganhou conotação depreciativa, de algo banal e vulgar. Vilhena
enumerou ainda como peixes de pobres: “jaguaraçá, guaracema, capeta, sororoca, tapa,
bonito, tenca, gatinho, peixe soldado, carrapatinho, carapicú, baiacú”.199

Eram fundamentais os mariscos coletados nos manguezais para os engenhos e as vilas do


Recôncavo. O mais notável era sem dúvida o caranguejo-uçá, indispensável para o sustento
dos mais pobres.200 Alimentavam-se ainda de sarnambis, tarcobas, sururus, sarnambitingas
e longueirões.201 Para os estrangeiros parecia uma coleta fácil, sem percalços, mesmo com
notas depreciativas. Dizia Maximiliano de Wied-Neuwied sobre o gaiamum que “constitui um
alimento básico entre os brasileiros, cuja indolência é muitas vezes tão grande, que,
tornando-se o peixe escasso, vivem apenas do guaiamu, regime que achamos miserável”.202
Apareceriam lampejos de desperdício, como este de 1803, com as tartarugas, abundantes,
mas “não estimadas; e estes são destruídos apenas pela carapaça”, capturadas nas praias
por es escravos, “mas mesmo estes homens recusam a comida que para nós é tão rara e
custosa”.203 As ostras, ao menos no poema de Santa Maria de Itaparica, não eram
estimadas por ordinárias.204 Mesmo em tempos mais recentes, com a valorização dos frutos
do mar, dentro do marco da culinária baiana, esses mariscos eram o sustento imediato dos
mais pobres, “ostras, papa-fumos e por vezes até lagostas e polvos, alimento da gente
pobre do bairro”.205

Também era a pinaúna, ou ouriço-do-mar, encontrado em praticamente todas as pedras da


orla atlântica, e transtorno constante dos banhistas. A sua cata era hábito corriqueiro no
litoral, testemunhado por Maximiliano de Wied-Neuwied, em Trancoso, onde “havia gente
procurando ouriços comestíveis nos brancos rochosos descobertos pela maré”206 ou, um
pouco mais ao sul, falando de índios que comiam “várias espécies de mariscos, sobretudo o
ouriço do mar preto e comestível (Echinus)”.207 Era etnoconhecimento provavelmente antigo.
Gabriel Soares, no entanto, descreve-a, com o nome “pinda”, “os quais se criam em pedras;
e não usa ninguém deles para se comerem”.208 Ou não vira seu consumo ou não percebera
que havia duas espécies de ouriços do mar, das quais apenas uma, “a comestível, preta,
também coberta de longos espinhos”, servia de alimento “aos habitantes mais pobres”.209
Lopes, criado em povoado de pescadores, testemunhava seu regalo:

Era a comida melhor do mundo como eles diziam. Alguns traziam as


pinaúnas cruas para casa e faziam um escaldado com todas as verduras,
também era uma comida boa. Até o chefe da casa, quando chegava do

196
VILHENA, 1922b, p.505.
197
PORTO FILHO, Ubaldo Marques. Rio Vermelho. Salvador: s/d.
198
TAVARES, 1961, p.91.
199
VILHENA, 1922b, p.733.
200
SOUSA, 2010, p.280; CARDIM, 2014, p.79.
201
SOUSA, 2010, p.283.
202
MAXIMILIANO, 1958, p.72.
203
Shell-fish are in abundance; [...] turtle also, but not esteemed; and these are destroyed merely for the shell: they are
chiefly of the hawksbill kind; and slaves are employed to catch them on the sandy beaches, but even these men refuse
the food which is with us so rare and costly. (LINDLEY, 1805, p.152).
204
ITAPARICA, Manuel de Santa Maria. Descrição da Ilha de Itaparica. Salvador: P55 Edições, 2011, p.24.
205
MARTINS, Ezequiel da Silva. A Bahia – Suas Tradições e Encantos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, FUNCEB,
EGBA, 2000, p.18.
206
MAXIMILIANO, 1958, p.225.
207
MAXIMILIANO, 1958, p.223.
208
SOUSA, 2010, p.285.
209
MAXIMILIANO, 1958, p.216.

134
trabalho e encontrava uma comida de pinaúna, tinha grande satisfação,
porque as pinaúnas são boas até cruas e têm muita vitamina. (LOPES,
1984, p.101).

A existência da técnica e do hábito consolidado acaba por concorrer com a transformação


do paladar, o gosto das gentes. Os peixes mais valorizados no mercado não são os que os
pescadores preferem. Podemos conjeturar uma acomodação, e o desenvolvimento,
concomitante, das técnicas de preparo e do paladar para aqueles alimentos sem tanta
procura, ou mesmo desconhecidos das classes médias e altas.

Os pescadores não gostam de comer peixe de primeira como cavala,


vermelho e outros da mesma espécie. Preferem cação, arraia, caramuru,
barbeiro... Não é raro vê-los dizer: ´Eu não vou deixar de comer moqueca
de arraia, caçonete, caramuru, barbeiro, para comer vermelho ou cavala.
Isso é peixe para branco, que não sabe comer´. (LOPES, 1984, p.35).

Vide as rememorações de Licídio Lopes quanto à carne de baleia.

2.3.2. As Ganhadeiras
Fora aquelas propriedades à beira-mar, com seus próprios pescadores, e as que tinham
viveiro, o pescado vinha por mão das ganhadeiras, também chamadas de quitandeiras.

Elas derivavam de uma forma particular do trabalho escravo: o ganho. O escravo de ganho
entregava periodicamente – em geral, por semana – ao seu senhor uma quantia
determinada de dinheiro, e o que sobrava ficava para eles. Dinheiro que podia ser obtido de
qualquer maneira, e que vinha sobretudo do comércio e serviço urbanos. Havia uma divisão
de trabalho por sexo. Os homens, chamados de ganhadores, carregavam os pesos maiores:
as cargas (em especial entre a Cidade Baixa e Alta), os tonéis com excreções, os barris com
água potável e de gasto, e principalmente gente, no embarque e desembarque das canoas,
saveiros, alvarengas, e nas cadeiras de arruar. As mulheres, as ganhadeiras, realizavam o
preparo e venda da mercadoria, no mais das vezes em percursos muito extensos. Ambos
não necessariamente eram escravos: o termo designava também aqueles livres que
atuavam em tais atividades. Praticamente as ganhadeiras monopolizavam o pequeno
comércio, tanto aquelas feiras a céu aberto (então chamadas quitandas) como a venda a
domicílio. Nesse comércio varejista, havia homens: vendendo tecidos e sapatos, louças, e
gêneros mais pesados, como lenha e água. As mulheres dedicavam-se mais à comida:
mingau, acaçá, frutas e verduras, feijão e arroz, carne verde e moqueada, doces e salgados.
Todos em boa medida preparados por elas mesmas. Assim, por seu intermédio vinham as
carnes em geral, nas quitandas (ou seja, feiras).210 Os hortifrutigranjeiros oriundos dos
arrabaldes e do Recôncavo, assim como com a farinha de mandioca do Celeiro Público.
Esse comércio distribuía muitos produtos pela cidade, majoritariamente os alimentos.211

Tal dinâmica se estabelecia em certa medida porque parte fundamental do comércio


varejista era volante, sem que as donas-de-casa pisassem à rua. A compra na mão das
ganhadeiras ocorria por meio das escravas domésticas e em 1855 mesmo as roupas eram
vendidas a domicílio.212 A privacidade das mulheres dos sobrados se fazia às custas da
exposição de outras, circulando pela cidade ou paradas em alguma rua. Clientes eram
atendidos em suas residências, das mais variadas maneiras: “pela manhã, jovens negros –
rapazes e mocinhas – andavam de porta em porta, vendendo uma variedade de arroz doce

210
O GUAYCURU n.121, Sexta-Feira 5 de Setembro de 1845. Salvador: Typ. de José da Costa Villaça, à Ladeira da Praça,
n.1, 1845.
211
GRAHAM, 2013, p.66; p.72.
212
WETHERELL, s/d, p.99.

135
em pequenos potes”.213 Esse tipo de comércio ambulante, servindo na porta e a clientela
conhecida, prosseguiu até o século XX214.

Naquela primeira metade do século XIX, a ação das ganhadeiras formava uma rede mais
fina e precisa que a dos barcos, em seus portos e feiras, e das carroças e carros de boi.
Seus pés ágeis distribuíam as mercadorias pela cidade, levando-as aos sobrados.

Fugio no dia 16 de corrente uma escrava velha de nome Joaquina ladina, e


muito velhaca, a qual muda de nome, nação nagô, bastante alta e magra,
tem ambas as pernas enchadas, e uma belide em cima da menina de um
olho, costuma a mudar de roupa, e andar no Matatu, Brotas, Quinta
(lavando roupa), Rio vermelho, e armações a onde he bem conhecida por
carregar charéo, e por ter sido a 4 annos [...]215

A escrava de ganho foragida operava como vendedora, percorrendo o Rio Vermelho e


armações para comprar o peixe e os subúrbios a leste para vender. Note-se o quão longe
ela penetrava no interior da cidade a partir da fonte do pescado.

Figura 82 – Fisheman's hut, sem data, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

213
HUELL, Quirijn Maurits Rudolph Ver. Minha Primeira Viagem Marítima 1807-1810. 2 ed. Ampliada. Salvador: EDUFBA,
2009, p.144. O mesmo holandês foi atendido por outros serviços volantes, como uma “velha lavadeira mulata” e outra negra
que “nos trazia a água de beber e ia ao mercado a nosso pedido”, e notara que ambas tratavam a ele e seu companheiro
como “fregueses”, apontando: “quando um escravo – ou escrava – passa a lhe prestar um serviço, o termo frequês é
utilizado” (HUELL, 2009, p.183).
214
BORGES, Jafé (Org.). Salvador Era Assim Vol.2. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2001.
215
A MARMOTA n.263, Sábado 4 de Agosto de 1849. Salvador: Typ. de Epifanio Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A, 1849.

136
Figura 83 – Fishermen in Jangada and Canoe, sem data, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional.

Figura 84 – Nègre et negrèsse de


Bahia, de Nicolas-Eustache Maurin,
do livro de Johann Moritz Rugendas,
Viagem Pitoresca Através do Brasil.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
A gravura parece representar de um
lado um pescador, e do outro, quem
poderia ser uma escrava doméstica
fazendo compras ou, o que seria
mais ostensivo pela cidade, uma
ganhadeira.

Figura 85 – Négres et Negresse


de Bahia, de Monnin, do livro de
Bresil par Ferdinand Denis.
Colombie et Guyanes par M.C.
Famin. Fonte: Fundação Biblioteca
Nacional. Como no caso anterior,
vemos o que parece ser uma
transação habitual em Salvador.

137
138
Figura 86 – Fish woman, sem data, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Ou
seja, uma ganhadeira revendendo o pescado.

O papel das ganhadeiras oscilava entre dois extremos, do ponto de vista econômico. Por um
lado, a acusação de serem famigeradas atravessadoras do fluxo da mercadoria, como
repetia-se com o abastecimento de farinha de mandioca e de carne, criando um gargalo no
fornecimento e lucrando com a especulação da mercadoria. Vilhena notava que “de
ordinário são ou forão captivas de cazas ricas e chamadas nobres, com as quaes ninguém
se quer intrometter”.216 Eram as ganhadeiras, ou ao menos essas, as mãos e pés de
fortunas e poderes maiores. Vilhena não culpa somente as ganhadeiras e seus senhores, de
poder e influência. Havia também outra modalidade de cumplicidade, por oficiais inferiores
que tomavam com violência aos pescadores a mercadoria e “o levão pelo que querem e o
entregão a aquelles ou semelhantes negras, com quem tem seus tratos e commercios”217. O
trabalho geral da ganhadeira tanto poderia ser uma iniciativa própria como um serviço feito
como escrava ao seu proprietário. O mesmo problema reaparece na vila de São Francisco
do Conde, agora com o xangó, “onde prontamente lhos comprão as negras atraveçadeiras
que depois os revendem pelo triplo”.218 Em Itaparica, no século XIX, a atividade era
desempenhada majoritariamente por mulheres forras.219

216
VILHENA, 1922a, p.127.
217
VILHENA, 1922a, p.127.
218
VILHENA, 1922a, p.501.
219
CASTELUCCI JR., 2008.

139
Uma das tensões com esse comércio, além de “atravessar” o fornecimento, era disciplinar o
lugar e momento da venda dessas vendedoras volantes. A tentativa de instalar lugares fixos
em Salvador para venda de pescado – as cabanas – é recorrente ao longo dos séculos.220

CARTA.

Primo e amigo Dr. Jarreta.

Itapagipe, 31 de Maio de 1849.

[...] Peixe... oh! isso então não se fala! He aqui, meo primo, que se pode
saborear uma moquequinha quente: olhe, eu lhe conto, quando chegão as
canôas, vão muitas pessoas à praia em procura de peixe, e os pescadores
à uns responde que nada matarão, à outros que não chegarão a molhar as
rêdes, e à outros finalmente que vierão sapateiros: retira-se o povo, e d´ahi
à pouco, meo primo, faz gosto ver o garbo e soberbia com que passão as
ganhadeiras africanas com as gamellas cheias de peixe; e o mais he que eu
não sei onde ellas o vão buscar, quando os taes pescadores nada trasem,
porém isto provém de que ellas pagão melhor do que os comedores; e note,
que se estes as chamão para comprar, dão o áz de copas em resposta, e
continuão seo caminho, por que não vendem senão da Calçada em diante;
tanto prova que a gente de Itapagipe, com pequenas excepções, he
pobretona. Também me tem sucedido diversas vezes o mesmo: ante-
hontem deo me na vontade de comer peixe para variar a carne, e indo de
passeio ao porto dos Tainheiros, acabava de chegar uma canoa; que me
disseram ser do – Cahe na lama – (porque aqui, meo primo, ainda ha uma
couza boa, he raro aquelle que não tem um alcunho, até eu com ser noviço,
já me pregarão com o de – Maxixe –, que não he máo petisco para uma
frigideira) e perguntando-lhe se me vendia algum peixe, respondeu-me que
não tinha, retirei-me, e fiquei conversando com um amigo a espera de outra
canôa, quando vejo chegar-se à dita canôa uma preta e receber um pouco
de peixe: não me pude conter, e disse para o cujo pescador – Então o Sr.
pensava que eu lhe vinha comprar fiado? – mas o homem apenas me
tornou [ilegível] Senhor, esse peixe não he meu, man[ilegilve] entregar à
aquella preta – Zanguei-me tanto, primo, que não quiz saber mais de peixe,
e como era ja tarde, também não achei mais carne, e contentei-me com o
inseparável amigo bacalhão. [...]

Seu primo e amigo fixe

Pedro Maxixe.221

As ganhadeiras dissolviam a ação pontual das feiras.

Deve-se antes apontar que, como observava João José Reis, as “cabeças das ganhadeiras
eram então um lugar fundamental na geografia econômica de Salvador”222, presente
inclusive em legislação, como “local” de venda. O comércio não apenas era volante como,
quando estacionado em um local, não necessariamente implicava em uma barraca ou
tenda, por frágil que fosse. Bastava que os vendedores pousassem suas cestas, gamelas,
recipientes quaisquer e se pusessem a vender suas mercadorias, sentados, de cócoras ou
em pé, como ocorria na Praça São João nos anos 1850 ou no que seria depois a rampa do
Mercado. Podiam reunir-se e dispersar-se com velocidade. E, ao distribuir a mercadoria pela
cidade, permitiam que o critério de seleção da clientela não fosse geométrico (quem morava

220
Vilhena imagina que um bom lugar para tais cabanas seria o largo das Portas de São Bento (VILHENA, 1922a, p.127). Nas
posturas de 18 de outubro de 1787, repetiu-se o intento de fixar as ganhadeiras em cabanas, obrigando-as a arrendarem,
ainda por cima (A BAHIA..., 1897, p.53). O mesmo se repetiu em 1824 (GRAHAM, 2013, p.72). Em 1857, a Câmara
Municipal de Salvador realizou outra iniciativa parecida, tentando evitar a ação das ganhadeiras (PORTELA, 2012, p.120).
221
A MARMOTA n.248, Quarta-Feira 13 de Junho de 1849. Salvador: Typ. de E. Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A, 1849.
222
REIS, 2019, p.20.

140
perto), cronológico (quem chegou primeiro), e sim pecuniário (quem podia pagar mais).
Circulando com o produto a partir dos muitos pequenos portos da cidade, as ganhadeiras
desabasteciam o entorno imediato. A mera proximidade não assegurava o produto, visto
que outros, em outros lugares pagavam mais pelo bem. Neste caso, à Calçada do Bonfim.
Esse sinal distintivo de posses desse cliente voltará mais adiante. Note-se ainda que a
clientela com posses estava dentro de um raio de alcance dentro da própria Península, sem
precisar ir para o centro da cidade. Em caso contrário, os pescadores teriam ido ao próprio
Porto, para ali terem sua carga comprada pelas ganhadeiras.

A interceptação das canoas também é descrita por Wetherell como um tipo de monopólio,
onde o peixe era vendido “a não ser às esposas dos pescadores, que são as
revendedoras”.223 Embora não necessariamente compusessem todas as ganhadeiras, era
uma relação complementar que fazia sentido: o marido faria o trabalho de mar, e a esposa,
a de terra. E sequer devemos pensar em uma situação de cônjuges, mas de uma divisão do
trabalho por sexo.

Habitualmente fala-se no papel das ganhadeiras no comércio da cidade. O que é mais raro
é seu papel nas localidades mais distantes de pescadores. Porque elas não apenas
pegavam o pescado nas bordas da cidade e o distribuíam ao redor e terra adentro, como
traziam aquele obtido de mais distante. Itapuã mantinha aquela divisão do trabalho vista no
Rio Vermelho: os homens pescavam e roçavam, as mulheres preparavam a matéria-prima e
a vendia.

O interessante é que apesar das sucessivas localidades de pescadores ao longo do litoral,


lugares como Armação (Saraiva e Carimbamba) tinha as armações de pescado, mas não as
ganhadeiras para fazer a conexão com a cidade, ao menos nos primórdios do século XX.
Segundo o testemunho de Dona Astéria: “lá [em Armação] não tinha ganhadeira. As
ganhadeiras – eu mesmo vendia peixe – as ganhadeiras era daqui de Itapuã”.224 Aquela
pluralidade de pequenos empreendedores era mais característica de Itapuã, e talvez do Rio
Vermelho, as maiores vilas de pescadores e roceiros em todo o litoral norte. Se elas
disputavam com outros compradores com aqueles pescadores mais próximos do centro da
cidade, o mesmo não se repetia na longínqua Itapuã. Segundo dona Francisquinha: “você
tinha um saveiro, eu era freguesa de seu saveiro, esse menino aí [...] tinha um, essa menina
era freguesa do saveiro dele, às vezes até era marido e mulher, mas não tinha disputa,
não”.225 Repetia-se o consórcio entre marido e mulher, ainda que sem casamento
formalizado, mas a abundância do pescado para o número de trabalhadores permitia uma
divisão menos conflitiva. Ironicamente, na esquálida economia do vilarejo, a moeda era um
bem escasso, mais comum na mão das ganhadeiras. No binômio xaréu/ baleia, a escassez
desta última foi tornando os invernos cada vez mais magros. Assim, as primeiras décadas
do século XX viram-nas como prestamistas dos pescadores, ganhando certa autonomia.
Dizia Dona Francisquinha: “só que eles, coitados, viviam presos nos bolsos delas, porque
quando era no temporal elas emprestavam dinheiro para descontar no tempo bom que
tivesse peixe”.226

Isto traz á luz o desafio da preservação do produto, das distâncias a percorrer, e dos
caminhos que conectavam aqueles povoados mais distantes à sua clientela. Se os
pescadores da Penha e Ribeira podiam contar com fregueses na Calçada do Bonfim, o
mesmo não ocorria com aqueles da Pituba, das Armações e de Itapuã, e provavelmente
também do Rio Vermelho.

223
WETHERELL, s/d, p.39.
224
GANDON, 2008, p.266.
225
GANDON, 2008, p.267.
226
GANDON, 2008, p.302.

141
Luiz Aguiar Costa Pinto aponta que, justamente pela perecibilidade do produto, os
pescadores vendiam a muitos arrematantes, que por sua vez não se arriscavam a comprar
muito mais acima de sua capacidade de revenda.227 Não obstante o peixe, como a carne e
alguns frutos do mar, exigia algum modo de preservação, que depreciava o valor e
aumentava a sobrevida para outra população, menos ciosa da iguaria fresca. As
ganhadeiras, longe de serem meras intermediárias, beneficiavam o pescado, dando-lhe
durabilidade e o distribuindo pelas ruas da cidade, capilarmente a quem pudesse pagá-lo
em um concorrido mercado.

A baleia na praia tinha sua carne retirada em grossos talhos e vendida às ganhadeiras que,
noite adentro, a lavavam com limão, cortavam em fatias menores e a tratavam. Podia ser
escaldada com verdura para consumo imediato, ou salgada ou temperar assada na brasa,
para a revenda pela cidade em gamelas, balaios ou tabuleiros.228.

Para prolongar a validade dessa carne, o processo principal era o moquém, uma grelha feita
de varas sobre o braseiro, onde se preparava o pescado a fogo lento. A moqueagem técnica
usada entre os tupinambás, depois costume em todo o país, empregada, junto com a
secagem ao sol, para a preservação da carne229: “os peixes miudos embrulhão em folhas, e
metidos debaixo do borralho, em breve tempo ficão cozidos, ou assados”.230 O mesmo era
aplicado ao pescado de maior parte, como os peixes-bois, o peixe-serra e o tubarão, que
retalhavam, em “tassalhyos secos”231. Quando vinham às baleias à praia, moqueavam ou
assavam para consumir ali mesmo: “mais ao longe, via-se alguns negros pobres assando
aquela carne em espetinhos”.232 Os resíduos eram usados para iscas, ou alimentavam os
porcos, também à praia.233 A movimentação, todos os testemunhos confirmam, sempre era
grande.

[...] tal evento é uma ocasião geral de triunfo na Bahia. Centenas de


pessoas, especialmente as de cor, se aglomeram para assistir os espasmos
agonizantes do monstro, e para obter paartes de sua carne, que cozinham e
come. Vastas quantidades de sua carne são cozinhadas nas ruas, e
vendidas pelas Quitandeiras. Numerosos porcos também se alimentam da
carcaça da baleia; e todos aqueles que não são particularmente exigentes
em sua seleção de carne nos mercados, durante a estação destas caçadas,
estão passíveis de sentir o gosto da baleia, nolens volens. (KIDDER, 1845b,
p.25).234

Licídio Lopes assinala que essa tarefa não agradava aos homens, pelo trabalho que
demandava e pouco retorno, falando de uma atividade com retorno declinante.235 Embora a
moqueagem se relacionasse com as ganhadeiras, não era uma correspondência biunívoca.
Elas podem levar o peixe fresco a clientes abastados próximos. E a moqueagem poderá ser

227
PINTO, Luiz Aguiar Costa. O Anfiteatro: o recôncavo como uma síntese regional. In: BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.).
Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998, p.120. Sem ser
o foco da pesquisa, os poucos documentos que encontramos tendiam a enfatizar o caráter oligopólico da oferta do pescado,
talvez pela própria natureza do seu registro ser o de uma queixa.
228
LOPES, 1984; MEIRELLES, s/d b.
229
SAMPAIO, 1949. Como os Botocudos (MAXIMILIANO, 1958, p.255).
230
SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.85.
231
SOUSA, 2010, p.268.
232
HUELL, 2009, p.172.
233
BARROS, 1900, p.332.
234
[...] yet such an event is a general occasion of triumph at Bahia. Hundreds of people, the colored especially, throng
around to witness the monster´s dying struggles, and to procure portions of his flesh, which they cook and eat. Vast
quantities of this flesh are cooked in the streets, and sold by Quitandeiras. Numbers of swine also feast upon the
carcass of the whale; and all who are not specially discriminating in their selection of pork in the market, during the
season of these fisheries, are liable to get a taste of the whale, nolens volens. (KIDDER, 1845b, p.25).
235
LOPES, 1984.

142
realizada por outros comerciantes: “muitos varejistas, que vendem vinho, queijo, alimento,
etc., compram o peixe e o fritam, para depois revende-los em pequenas porções”.236

Para garantir a sobrevida do produto em seu longo percurso, iniciado nas primeiras horas do
dia, pouco após a meia-noite, as ganhadeiras de Itapuã forravam o balaio onde levavam o
peixo com a folha São Gonçalinho, que afugentaria as moscas. Levavam-no ao centro da
cidade: Baixa dos Sapateiros, o mercado de Santa Bárbara ou a Calçada. Ás vezes iam com
tal carga que sub-contratavam para levá-la um homem, chamado de ganhador.237

Esses pescadores não apenas garantiam sua própria subsistência, como eram braços da
cidade, raízes suas no solo local, extraindo dali seu sustento. Na Baía de Todos os Santos
eram parte de um ecossistema cultural centralizado nos engenhos em uma escala e nos
primeiros séculos, e na capital em outro grau. No litoral de mar aberto a fixação do homem
relacionava-se com o cultivo naquele solo “fraco” e a exploração dos recursos nas praias,
arrecifes e águas. Com uma fixação espiritual, de outro tipo, com santuários e santos,
alguns rentes à praia, dando um sentido maior àquela localização.

Tanto os manguezais como a restinga do litoral aberto eram meios hostis. As embarcações
singulares que tanto apareciam nos registros posteriores não eram acréscimos pitorescos,
mas condições indispensáveis para a colonização de tais meios. Explicando, assim, porque
algumas das embarcações mais “primitivas” ainda eram, e ainda são, empregadas na Bahia.

O mesmo vale para o plantio de espécies domesticadas. A substituição da biota em tais


lugares foi processo longo e fundamental. E os coqueirais ganham outro significado, visto
desta perspectiva.

Luís Geraldo Silva, falando de Pernambuco, articulou o ambiente dos coqueirais com a
pesca em algo que pode ser aqui aproveitado. As comunidades marítimas deviam-se à
pesca marítima artesanal, que incluía a fabricação e emprego das jangadas, das redes e
linhas e currais de pesca, e que construíam suas moradias e edículas (as caiçaras, onde
faziam, consertavam e guardavam seu material de trabalho) a partir dos coqueiros.238 Silva
observa o processo de ocupação desse litoral, pela pesca e pelos coqueirais, conformando
a paisagem depois conhecida, dos coqueirais, mocambos feitos a partir destes pés, das
jangadas, tomando vulto a partir do século XVIII, que era o coqueiro “em grande escala,
cultivado ao longo de todo o litoral que se estende de Ilhéos a Pernambuco”.239 Com alguns
ajustes – por exemplo, o curral de peixes, que não comparece no mar aberto aqui – vale o
raciocínio: as fazendas de coqueiros, aproveitando o solo arenoso, e uma planta capaz de
crescer e colonizar áreas varridas pelos intensos ventos alísios, também naturalmente
recebem pescadores nos portos naturais. E os pescadores tomarão os coqueiros como base
material, naquele ambiente inóspito, para seus apetrechos. Como Gilberto Freyre o fizera
com a noção de áreas dominadas por complexos vegetais, dos quais a praia seria dada pelo
coqueiro.240 A colonização das terras litorâneas, arenosas, por coqueirais de vários tipos e
por pescadores aproximava um e outro, árvores e homens, a dispor das primeiras como

236
Numbers of retail shopkeepers, who sell wine, cheese, groceries, &c., buy fish and fry it, and afterwards retail it in small
quantities. (MAWE, 1812, p.282).
237
GANDON, 2008, p.267.
238
SILVA, Luís Geraldo. A Faina, a Festa e o Rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (Sécs. XVIII ao XIX).
Campinas, SP: Papirus, 2001, p.99.
239
SPIX e MARTIUS, 2016, p.80.
240
FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste. Algumas notas sobre o tipo de casa popular mais primitivo do nordeste do
Brasil. 2.ed. rev. e pref. pelo autor. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Imprensa Universitária, 1967. No
litoral sul da Bahia, Maximiliano de Wied-Neuwied parecia descrever um complexo vegetal relacionado à piaçaveira
(MAXIMILIANO, 1958, p.335).

143
matéria-prima versátil para seu cotidiano. Ainda que subaproveitado, o coqueiral, os vários
tipos de palmeiras tal como a pindoba241, era o meio de utilizar aqueles solos e, ao ver de
Tollenare, se justificava pela facilidade na atividade, no mero plantio e na ação da natureza.
Os coqueiros foram maneira de extrair do solo arenoso do litoral o sustento antes inviável.

Tal aprofundamento no meio não era apenas de ordem funcional mais imediata. A pesca em
mar aberto obrigava a um aguçamento do olhar, uma técnica corporal em toda sua medida,
para a localização dos pesqueiros, além de interpretações dos sutis sinais do tempo. A
pesca dos xaréus e da tainha, um no mar aberto e o outro nos lagamares interiores,
dependia de sentidos aguçados, da identificação de cardumes vindo rentes à superfície da
água, além da habilidade em nadar, e outras tantas. Para um leigo, a vinda desse pescado
permanecia invisível. Por tais modalidades de atuação, pela profunda dependência do
extrativista com o meio, efeitos topofílicos acabavam por aparecer, como a toponímia dos
recifes, pesqueiros e marcas de sua localização, e, nestas, a inversão da paisagem para a
localização dos pesqueiros (e mesmo uma “paisagem” submersa).

Agora temos o quadro, que começamos a esboçar no capítulo anterior. A diminuição de algo
da fauna marinha pela pesca predatória local e internacional, notadamente das baleias, e do
âmbar-gris, e o recrudescimento subseqüente dos Contratos, uma forma particular de
engenho. Mais a atrofia dos alambiques e engenhos de cana-de-açúcar próximos. O
colapso da atividade baleeira se deu pari passu com o das armações de pescado, mais
propriamente xaréu.

Junto com a persistência dos pescadores mais rústicos, com suas jangadas, antes dos
saveiros... jangadas menores e mais rudimentares que suas congêneres das Províncias ao
norte, e os coqueirais viçosos, conferiam um ar primitivo, que deve ser entendido como o
declínio de certas funções produtivas, o ocaso de uma abundância e certo dinamismo
econômico, e um interregno antes da vinda de outras. Com aquela mais presente, os
coqueirais, sedimentados como a natureza imemorial daquelas costas.

Esta pesca no mar aberto também declinou, embora depois da caça da baleia, mais no
alvorecer do século XX. Talvez as armações tenham sofrido o impacto da escassez de
escravos na Bahia, drenados para o centro-sul do país, às vésperas da Abolição. Perderam
–à larga sua razão de ser. Também depois diminuiria a rentabilidade daquela pesca
artesanal de pouco volume, à costa imediata ou em pesqueiro com anzol e linha,
depauperando seus trabalhadores, e restando cada vez mais como subsistência.

Estas povoações, algumas datadas do primeiro século da colonização, lastrearam o avanço


urbano rumo ao litoral para fins de lazer.

Foram preexistências fundamentais para o veraneio moderno. Elas existiam, estavam lá,
servindo como cabeças-de-ponte para os visitantes e novos moradores. Serviriam, ainda,
como serviços domésticos, como abastecimento imediato – e a aparição de “mercados de
peixe” indicariam que as ganhadeiras foram dispensadas, próximas que as famílias
freguesas estavam – e como cenário pitoresco para seu verão.

Como dito antes, tainha e xaréu eram símiles porém opostos quanto aos ambientes
preferidos, as águas protegidas da baía no primeiro, o mar aberto no outro. Não é acidental
que os relatos detalhados da pesca da tainha sejam do século XIX, enquanto os do xaréu
aparecem apenas no século XX. O que é invisível de entrada em uma fotografia é o próprio
fotógrafo; mas se ambas as pescas tinham seus ares pitorescos – a pesca “das tainhas

241
VILHENA, 1922b, p.758.

144
merece especial menção por ser uma das mais curiosas”242 –, a condição sine qua era a
presença do testemunho, de alguma familiaridade com o lugar.

Outro aspecto crucial que se abre sob este ângulo é o das crenças desses homens do mar.

Até o momento lidamos com aspectos técnicos, sob o risco anacronístico de considerar
apenas os recursos materiais no sentido atual. Hoje distinguimos os rituais como simbólicos,
e outros atos como plenamente utilitários, eficientes. Porém não era assim que era visto, por
um lado. Para Mauss, a magia era uma arte “prática”, inventariando e sistematizando, ao
seu modo, o que havia ao redor.243 O problema metodológico, e historiográfico, é que o ato
mágico visava obter benefícios concretos do mundo, dos poderes que eram invisíveis, mas
não alheios à realidade. Abençoavam-se instrumentos de trabalho para atividades, como a
pesca e a caça, mais eficientes. Em hora de perigo, solicitava-se a ação divina, que depois
seria devidamente recompensada. Para estimular as chuvas, santos seriam intercambiados
à sua revelia dos seus devidos santuários, ou postos de ponta cabeça. Atos técnicos e
mágicos são de difícil distinção: pretendem-se eficientes, são criativos, são repetitivos e
transmissíveis, são socializados. De toda sorte, historiograficamente isso nos leva a um
corte artificial ao extremo, separando os atos mágicos, invocando a intercessão de poderes
extraterrenos ou preternaturais, daqueles mais materiais, que não correspondem a uma
distinção sentida.

O desempenho, uma das funções da técnica, é aperfeiçoado com a habilidade, com o


conhecimento e a destreza. Mas os pescadores eram cercados pelo imponderável. Das
medidas arbitrárias do poder de turno, da qual aqueles do Rio Vermelho foram “salvos” por
intervenção milagrosa. Das viragens atmosféricas, do tempo, da qual dependia suas vidas.
Da fecundidade das águas e suas ofertas, da qual dependiam sua sobrevivência diária.244
Uma série de recursos para vencer o azar, atrair as boas graças das Fortuna, serão
mobilizados. E esta relação com esse mundo invisível, as festas e devoções ligadas aos
pescadores, e mais além aos marítimos, orientou bastante o lazer à beira-mar, o veraneio
em sua origem e cotidiano, e até mesmo a imagem da cidade. Esta será uma toada
específica a se desenvolver mais adiante.

Por ora, deixemos essas duas linhas, a da visitação de outras pessoas e a dos cultos
ligados ao mar, e exploremos um outro percurso de aproximação ao litoral.

242
CÂMARA, 1888, p.42.
243
MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia Vol.1. São Paulo:
Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1974a, p.170.
244
Mesmo hoje pescadores do Rio Vermelho atestam essa relação. Cristiane Sobrinho Costa (Pescadores do Rio Vermelho:
ritos, tradições e ancestralidade da pesca artesanal. 2011. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – CEAO-
UFBA, Salvador. 2011), em entrevista a um pescador de nome Branco, escuta dele que passou a fazer a oferta de carteira
de cigarros à entidade Marujo – da Umbanda – desde que, diante de sucessivas pescas infrutíferas em pesqueiro tido como
fecundo, resolveu seguir a recomendação dos companheiros e fazer a oferta, sendo bem-sucedido na tentativa
imediatamente subseqüente. Não apenas não se pode separar o que é símbolo do que é um apelo “funcional” a poderes
invisíveis porém concretos, como estes se explicam pela irregularidade incontrolável do porvir; isto é, pela Fortuna dos
antigos.

145
3
A Sensibilidade dos Estrangeiros

A transformação do litoral em um local desejado não requer apenas atividades prazenteiras,


mas o próprio estar ali como uma espécie de deleite próprio, intenso ou sereno. O conjunto
de benesses, de todas as espécies, deve suplantar os inconvenientes, que não são poucos.

No que diz respeito aos códigos de apreço há uma distância entre os estrangeiros e os
brasileiros maior do que pareceria à primeira vista. Primeiro pela origem, característica
evidente inscrita nos próprios termos. Outra distância se revela no binômio visitante/
residente. Tanto que nos estrangeiros residentes há um outro tipo de aproximação, mais
acomodada aos gostos e hábitos locais, até por conveniência e resignação. Dentro daquela
distância, existem tangências, pontos de contato, pontes de uma cultura a outra, partes da
sensibilidade – e práticas, hábitos, valores – que são assimilados e desenvolvidos. Se a
cultura do sportsman não foi introjetada como um todo, o futebol foi incorporado vorazmente
à sociedade baiana e brasileira, em um par de anos. O bilhar, o billiard britânico, se enraizou
fundo na cultura local até os dias de hoje, enquanto esportes contemporâneos, como o
críquete jogado pela colônia inglesa, passara apenas por excentricidade dos estrangeiros.

Aqui lidaremos com os estrangeiros que estiveram na Bahia, considerando a literatura de


todo o século XIX. Preferimos falar de estrangeiros em vez de viajantes. Se estes são a
maioria dos que escreveram, houve estrangeiros residentes que nos concederam visões
mais matizadas.1 Quais os hábitos e valores dos estrangeiros, dos residentes e dos
viajantes, que podem nos interessar nessa história cultural?

Um deles é o valor escópico da paisagem litorânea e do mar, esse código internacional em


desenvolvimento que percolou por caminhos vários para o Brasil, e o reconhecimento e
visita aos mirantes da cidade, acidentais ou intencionais.

Outro relacionado é o olhar científico, a maneira como se aproximaram ao litoral a partir de


investigações científicas, profissionais ou de diletantes.

As excursões ao redor da cidade e para áreas litorâneas. Algumas serão para banhos de
mar, tratados em capítulo posterior.

Ainda as moradias. Até que ponto aspectos paisagísticos, escópicos, ditaram a escolha das
residências, seja sua construção, seja o aluguel daquelas que já existiam. E que fatores
ambientais que não este levaram à ocupação de áreas à beira-mar.

Os estrangeiros visitantes tendiam a ser mais ativos que os residentes. Em primeiro lugar
pela óbvia situação do uso de um tempo livre em terra estranha. Se estivessem por poucos
dias, tratavam de aproveitá-los ao máximo para conhecer algo da cidade em que pousou.
Se estivessem de maneira forçada e por extensão indeterminada, era tempo ocioso a ser
combatido. O entretenimento tornava-se um problema central. Esse ócio que buscavam
deveria ser ativo e útil, que refinasse e educasse o espírito, ou ao menos era este o vertido
nos registros e livros. O que não fosse digno, a face escura de sua própria atividade, estava

1
Curiosamente estes, como James Wetherell e Robert Dundas, não são tão mencionados. Na medida em que os viajantes
percorreram vários lugares e foram investigados por pesquisadores de cada região do Brasil, sedimentando uma literatura
específica para cada um dos viajantes, com notas biográficas, comparações com outros relatos seus, etc. Já o estrangeiro
residente interessa somente ao seu local de morada.

146
ausente dos escritos, com exceção de algumas indicações da vida amorosa, como fez
Quirijn Maurits Rudolph Ver Huell. O compatriota anfitrião chegava inclusive a criar ocasiões
de congraçamento em função do visitante, se este fosse importante. Cogitemos ainda que
os que se aventuravam em périplo eram justamente a camada mais irrequieta da sociedade
de origem. Isso implicava na abertura e interesse para a novidade, além do tempo livre
natural do visitante, ao contrário dos afazeres de trabalho, sociais e familiares que cercavam
o residente. Já os residentes tinham um cotidiano consolidado.2 O melhor testemunho dessa
diferença, e uma crítica severa à aculturação dos patrícios aqui residentes, foi dado por
Maria Graham:

Uns poucos mercadores, não de primeira ordem, cujos pensamentos são


absorvidos pelo açúcar e pelo algodão, até a completa exclusão de todos os
assuntos públicos que não lidem diretamente com seus negócios privados.
Ninguém sabia o nome das plantas em volta de sua própria porta; ninguém
estava familiarizado com a região dez milhas além de São Salvador;
ninguém podia me falar mesmo sobre o belo barro vermelho, do qual o
próprio artesanato, a cerâmica, era feita; em suma, eu estava
completamente sem paciência com esses indiferentes homens de negócio.
(GRAHAM, 1824, p.147 – tradução nossa).3

Nos primeiros anos dos 1820 os ingleses na Bahia não cumpririam seus deveres com a
Botânica e a Geologia, duas paixões em sua terra natal.4 Versões muito empobrecidas dos
ingleses em solo inglês, eram reles money makers, interessados em meta mais comezinha e
mesmo se adaptando aos hábitos brasileiros, como o jogo.

E uma última precaução geral: existia entre os estrangeiros estratos mais baixos, que
tendem a passar desapercebidos. Os estrangeiros mais “vulgares” não estariam
preocupados com coleções científicas, passeios botânicos, jornadas pitorescas, como seus
conterrâneos de passagem. Ver Huell conseguiu entrar no cotidiano de uma família “baiana”
porque tornou-se amigo de um desertor francês, Fanchette, casado com uma baiana. No
círculo de sociabilidade de que participou, de estrangeiros diversos residentes em Salvador,
havia essa curiosa amálgama com os âmbitos locais, sem contato com as esferas
superiores dos compatriotas.

Por volta desta mesma época, fomos casualmente apresentados a alguns


franceses que, assim como o mordomo de Dona Maria Violante, ficaram
para trás após a passagem da esquadra sob o comando de Jerome
Bonaparte. Eles sustentavam-se, exercendo diferentes ofícios: um deles, de
nome Fanchette, era relojoeiro e casado com uma crioula; um outro era
fabricante de plumas; um terceiro, tal qual os velhos trovadores, tocava a
guitarra e cantava muito bem. Este último vinha a ser também o zelador da
casa de campo do senhor Fanchette, situada na fértil península de
Montserrat. (HUELL, 2009, p.151).

Podemos inferir que nesse enxame de estrangeiros aqui residentes, nem todos eram
comerciantes bem-sucedidos vivendo em chácaras, em torno de salões, quanto mais
pessoas ilustradas, ou querendo passar-se por tal, com tempo livre para ser ocupado de
maneira elevada. Estes estratos mais baixos nos são menos visíveis, e se fundiram aos
2
Quem residiu por anos tinha condições de uma amostragem melhor que os visitantes. No entanto foram estes quem mais
escreveram sobre a Bahia.
3
A few merchants, not of the first order, whose thoughts are engrossed by sugars and cottons, to the utter exclusion of all
public matters that do not bear directly on their private trade, and of all matters of general science or information. Not
one knew the name of the plants around his own door; not one is acquainted with the country ten miles beyond St.
Salvador´s; not one could tell me even the situation of the fine red clay, of which the only manufacture, pottery, here is
made: in short, I was completely out of patience with these incurious money-makers. (GRAHAM, 1824, p.147).
4
Quando o Naturalismo se tornou moda na Inglaterra, entrou nos salões, com forte engajamento das mulheres, em especial na
entomologia (ALLEN, David Elliston. The Naturalist in Britain: A Social History. Harmondsworth, Middlesex, England: Penguin
Books, 1978). Relacionava-se não apenas com uma forma de ver o tempo livre e a Natureza, como também das
possibilidades franqueadas, não sem obstáculos, às mulheres. Daí não ser estranha a movimentação de Maria Graham.

147
locais, como se pôde perceber com Fanchette, ou como disse ainda o holandês: “nativos de
um mesmo continente, quando em uma terra estrangeira, rapidamente tornam-se amigos”.5

3.1. O Encanto da Visão


Este estudo da sensibilidade é relativamente fácil porque a documentação escrita é
abundante e a sua nascente, a tradição inglesa, é bastante articulada, em torno de uma
investigação filosófica, em especial a obra de John Locke. Este debate cultural britânico
assentou as bases para novas teorias da Arte da época, em especial na jardinagem
paisagística, e ao mesmo tempo que temas artísticos serviam de matéria-prima para
reflexões filosóficas.6 Mas nessa investigação encontramos elementos mais ricos que o
mero vocabulário e a maneira de distribuir as palavras.

O ponto principal é a distância entre esses estrangeiros e os luso-brasileiros, ancorado em


um conjugado de aspectos utilitários, científicos, estéticos ausentes no Brasil; em uma
articulação entre a literatura, o desenho e a pintura, mais a jardinagem paisagística,
implicando em maneiras de olhar, em motricidades, reais ou aparentes, também inexistentes
na Bahia.

Uma das marcas dessa mudança é o esfacelamento do mundo visual – aquilo que vemos e
que sabemos que é, como um todo – nos múltiplos campos visuais – as imagens
encapsuladas nos ângulos de visão, na percepção e na descrição.7

Em Sense and Sensibility, de Jane Austen, de 1811, um diálogo revelava que era linguagem
já sedimentada, codificada, servindo como veículo pronto, culturalmente herdado, para a
expressão de certos sentimentos.

“É verdade,” disse Mariane, “que a admiração da paisagem do cenário


tornou-se um simples jargão. Todo mundo pretende sentir e tenta descrever
com o gosto e elegância dele quem primeiro definiu o que era a beleza
pitoresca. Eu detesto jargão de todo tipo, e algumas vezes eu tenho
mantido meus sentimentos comigo, porque eu não encontro nenhuma
linguagem para descrevê-los que não o que está gasto e vulgarizado em
todos os sentidos e significados.” (AUSTEN, 2002, p.112).8

O século XIX viu uma grande mobilidade planetária, com meios de comunicação mais
confortáveis, e mais velozes. E motivos mais variados para a movimentação: firmas
comerciais e seus empregados, missionários pregando o Evangelho (com sensibilidade para
a nódoa do escravagismo), naturalistas percorrendo o mundo por conta própria ou
financiados por suas nações, profissionais errantes à procura de oportunidades. Várias

5
HUELL, 2009, p.151.
6
Os princípios vêm da obra de John Locke, An Essay Concerning Human Understading. London/ New York: J.M. Dent & Sons
Ltd./ E.P. Dutton & Co. Inc., 1948. Mas são desenvolvidas por Joseph Addison, em texto clássico de 1712 chamado On the
Pleasures of Imagination, expressão que se tornou ela mesma um lugar comum (que pode ser visto em ADDISON, Joseph.
The Spectator. Vol.II. New York: Samuel Marks, 63 Vesey-Street, 1826) e em outras obras dentro desse debate, como a de
Edmund Burke, A Philosophical Inquiry into the Origin of Our Ideas of The Sublime and Beautiful. London: George Bell and
Sons, York Street, Convent Garden, 1889; Uvedale Price, An Essay on the Picturesque, as compared with the Sublime and
the Beautiful; and, on the use of studying pictures, for the purpose of improving real Landscape. London: printed for J.
Robson, New Bond-Street, 1796; ou ainda de Richard Payne Knight, An Analytical Inquiry into the Principles of Taste.
London: T.Payne & J.White, 1805.
7
Os dois conceitos – mundo e campo visual – são explorados e explicados na obra de James Jerome Gibson (The Ecological
Approach to Visual Perception. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1986; La Percepción del Mundo Visual.
Buenos Aires: Ediciones Infinito, 1974).
8
“It is very true,” said Marianne, “that admiration of landscape scenery is become a mere jargon. Every body pretends to
feel and tries to describe with the taste and elegance of him who first defined what picturesque beauty was. I detest
jargon of every kind, and sometimes I have kept my feelings to myself, because I could find no language to describe
them in but what was worn and hackneyed out of all sense and meaning.” (AUSTEN, Jane. Sense and Sensibility.
Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2006, p.112).

148
clivagens se sucediam, em círculos concêntricos. Como círculo maior, o marco cultural de
uma época. Poderíamos dizer, existencial, dado que não é um estrato mais elevado e
superficial, mas a própria seiva do fazer diário, aquilo no seu horizonte de possibilidades e
de consciência, como a sobrevivência em um meio desconhecido e hostil para os primeiros
colonizadores. Havia a classe social, havia o ofício (pintor, botânico, etc.), tipos humanos e
perfis sociais diferentes: médicos, missionários, engenheiros, aventureiros, naturalistas,
príncipes da aristocracia europeia, e mesmo um futuro imperador (ainda que fugaz, o
príncipe Fernando Maximiliano José Maria de Habsburgo-Lorena) e um futuro presidente
(Domingo Faustino Sarmiento). Sua nacionalidade. A situação, da experiência e do registro:
se um visitante em trânsito, por uns breves dias, ou alguém condenado a permanecer
indefinidamente. Se estrangeiro ou nativo, se visitante ou residente, se nobre ou plebeu, em
princípio as coordenadas sociológicas de cada testemunho importam e estilhaçam a
multiplicidade de relatos a um grau impossível de lidar. Havia mesmo uma diferença de
valores ambientais e no olhar entre os estrangeiros, em especial no começo do século XIX,
uma inércia de outras épocas, como entre ingleses e franceses.

No entanto a maioria dos estrangeiros de passagem na Bahia apresentava, no Oitocentos,


certa unidade; em especial os ingleses, franceses, alemães, o único holandês que temos
como fonte, e os norte-americanos.9 Não havia diferença fundamental na sua agenda
cognitiva. Percebiam sempre aquilo que lhes soava como diferente10, orientados por um
espírito romântico-científico-utilitário, articulação tríplice entre Arte, Ciência e Economia
Política, em proporções diferentes de acordo com o escritor, temperada ainda com aspectos
religiosos.11 Esta orientação mobilizava uma série de procedimentos sinestésicos, em outra
articulação tríplice entre o pictórico, o literário e o sensorial, fora o colecionismo e o
naturalismo, profissional e diletante, que perpassava todos os estrangeiros, modelando o
quê e como ver e fazer.

Os sentidos eram despertados e procuravam experiências concretas, em um leque real de


sensações que se apresentavam no Brasil. Havia uma procura por determinados lugares,
muito da natureza, da mata virgem ou da capoeira, da mata de regeneração, ou mesmo da
flora tropical aclimatada, não raro amalgamada em um encanto unitário pelos Trópicos
edênicos. Havia curiosidade antropológica pelos índios no interior; pelos africanos e seus
descendentes no Brasil, nas maiores cidades, e pelo que lhes parecia crescentemente
exótico nos hábitos de origem portuguesa, pela própria mudança dos hábitos e valores dos
países europeus mais avançados. O que aos brasileiros eram sinais de seu progresso não
era do interesse dos visitantes: eram comparados, com nítida desvantagem, com a
crescente prosperidade européia.

Ironicamente as cidades tropicais brasileiras, que não eram em si objetos de interesse,


tinham a mata na porta do fundo das casas, mesclando-se com seus quintais. A visão do
exótico daqueles estrangeiros que apenas circularam por estas cidades foi dessa ambiência,
que era parte de sua “infra-estrutura”, por assim dizer, de seu cinturão verde imediato, muito
do abastecimento. Foram poucos os que se aventuram para os sertões, em busca do mato
virgem, quanto mais encontrar os esperados silvícolas. Não havia exatamente uma oposição
física cidade-natureza. O príncipe Fernando Maximiliano de Habsburgo notava que “a mata

9
PAZ, Daniel J. Mellado. O Olho Peripatético: a mecânica da visão dos viajantes oitocentistas em terras brasileiras. In: V
Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Programação do Encontro da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 13 a 19 de outubro. Vol.2. Salvador:
FAUFBA, 2018a. PAZ, Daniel J. Mellado. A Pena, o Pincel e a Paisagem: literatura e pintura na educação do olhar dos
viajantes oitocentistas. In: V Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.
Programação do Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 13 a 19 de
outubro. Vol.2. Salvador: FAUFBA, 2018b.
10
Mesmo em seus países vizinhos. A exemplo de Ver Huell, holandês, narrando sua estadia na Inglaterra, país que se
encontra a apenas um Mar do Norte de distância. A Inglaterra podia, para um holandês dos primórdios do século XIX, possuir
hábitos inopinadamente bárbaros.
11
Esta hipótese específica fugiria bastante ao escopo da tese, e deixamos para futuro desenvolvimento.

149
virgem avança até a cidade, e os macacos visitam o Palácio do Governo”12. Havia uma
natureza transformada, subsidiária à cidade, no seu subúrbio e penetrando na mata virgem.
Os primeiros colonizadores falavam da mata típica, de frutas e de madeira de lei. Os
viajantes oitocentistas, de árvores exóticas, aclimatadas, tropical de feição e ênfase frutífera.
De locais próximos à cidade consolidada, como o Campo Grande ou a Soledade,
estrangeiros desciam para os vales e já penetravam nos bosques, sem grande esforço.
Essa natureza modificada, dentro e nos arredores da cidade, é análoga à condição do litoral.
Isto guarda uma importância que não deve ser negligenciada.

Daquela maneira de impregnar-se do lugar, entrava o olfato, chocado com os maus odores
da Cidade Baixa, e encantado pelo perfume das laranjeiras e jardineiras, sentido pelas ruas
e até nos barcos fundeados na costa, pela brisa que lhes levava aqueles aromas, mais o
dos jardins, hortas, pomares e matas.13 A fauna tinha seus sons, fascinantes e misteriosos:
o canto dos pássaros, o som dos macacos, o zumbido dos insetos, em especial das
cigarras, este também ouvido desde os barcos ancorados na baía. E as águas, com seu
murmúrio ou rompantes impetuosos. Podemos considerar ainda as sensações térmicas: o
que era um calor sufocante para os estrangeiros compensava-se pelo frescor de certos
lugares, à sombra das árvores. O frescor das matas, de um solo que nunca sentiu os raios
do sol, e do efeito resfriador da evapotranspiração das folhas, acrescenta mais um motivo
para o seu fascínio. Embora mostrasse muito da fantasia e do encanto dos estrangeiros em
terras brasileiras, não indica uma diferença operativa dos sentidos, talvez por serem mais
passivos que ativos, onde a atividade é bastante sutil, e não se revela facilmente nos textos.
O olhar, ao contrário, mostra-se mais codificado e complexo.

Houve um elogio colonial da Baía de Todos os Santos e do frontispício da cidade, sob certa
tônica, que se modificou sensivelmente no século XIX. A navegação era o principal meio de
transporte e, sendo um porto, Salvador era de entrada compreendida pelo convés de um
barco. Pelo interesse dos primeiros séculos, a primeira coisa que se percebia era a
amplidão da baía e suas qualidades para o esforço colonizador.14 A descrição da baía era
utilitária. Existia o reconhecimento de uma beleza, que se realizava fundindo o Útil e o Belo.
A envergadura e a capacidade de recolher e acolher barcos sem conta eram sempre
salientados, e aí vinham as embarcações. O Útil para fins portuários ainda persistiu ao longo
do século XIX como um dos tópicos de interesse para entender a Baía de Todos os Santos,
convivendo e sobrepondo-se a outras claves. Disse Lindley que a baía “possui uma área
onde os navios reunidos do mundo podem se encontrar sem confusão”.15 Essa capacidade
hiperlativa era um topos usual. Samuel Greene Arnold disse em 1847 ela era “uma das mais
formosas do mundo [...] e pode acolher todos os barcos do mundo”.16 A representação da
cidade por meio de seu porto principal era, ademais, comum. A singularidade de Salvador
estava em que as elevações que permitiam a contemplação geral da urbe estavam
justamente ali, adjacentes ao porto, no flanco da Montanha, e seus arredores se desfaziam

12
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.205.
13
A narrativa em sucessão, da chegada de barco, acabava trazendo algo reincidente: o choque pelo desembarque no porto,
pela sua desordem, ruído e sobretudo mau cheiro. O porto não havia se deteriorado. A sensibilidade dos visitantes que havia
se transformado, provavelmente no que Norbert Elias chamava de processo civilizatório. A exemplo de Jemima Kindersley,
na sétima carta, de agosto de 1764 (KINDERSLEY, Jemima. Letters from the Island of Tenerife, the Cape of Good Hope, and
the East Indies. London, J. Nourse, 1777. Disponível: <http://travel-letters.org/kindersley/items/browse?collection=1>), como a
primeira carta de Forth Rouen, de 16 de julho de 1847 (A BAHIA EM 1847. In: Revista do Instituto Geographico e Histórico da
Bahia, n.57, 1931. Salvador: Secção Graphica da Escola de A. Artífices da Bahia, 1931, p.537). E ainda Tollenare
(TOLLENARE, 1956, p.281) e mesmo Sarmiento, de um país vizinho, em 1868 (SARMIENTO, Domingo Faustino. Un Viaje
de Nueva York a Buenos Aires De 23 de Julio al 29 de agosto de 1868. Edición digital del Proyecto Sarmiento basada en la
de Obras Completas de Domingo Faustino Sarmiento. Tomo XLIX, [S.l., Belin Sarmiento, 1900] Alicante: Biblioteca Virtual
Miguel de Cervantes; Buenos Aires: Biblioteca Quiroga Sarmiento, 2007. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>).
14
Ex.: François Froger (Relation d'un voyage... Paris: Dans l´Isle du Palaus, fur le Quay de l´Horloge, à la Sphere Royale, et
Chez Michel Brunet, nas la grande Salle du Palais, au Mercure galant, 1698, p.134); William Dampier (1703, p.49).
15
[...] have a space in which the united shipping of the earth might rendezvous without confusion [...] (LINDLEY, 1805,
p.239).
16
SILVA, Alberto. Um “Diário” Inédito sobre a Bahia. Publicação do CEB – Centro de Estudos Baianos, n.16. Salvador:
Universidade Federal da Bahia, 1952, p.5. Depois repetida, por exemplo, por William Scully (Brazil, Its Provinces and Chief
Cities... London: Trübner & Co, 60, Paternoster Row, 1868, p.348).

150
em muitas colinas que sem nenhuma especial proeminência. Assim era aquela vista a
primeira, a principal e a mais comum dentre as que encontramos entre os visitantes. A
elevação da encosta, a Montanha, conferia ares de majestade, de uma cidade desenvolvida
em “anfiteatro”, como era comum descrever, repetindo-se ao longo do século XIX.17

A representação, tanto os textos como os desenhos, eram ainda utilitários (Fig.87). No


porto, seus fortes, armazéns e trapiches, como aspectos elementares dessa função. Da
falésia, um fato marcante, e sua implicação imediata, que era a transposição, incluindo os
maquinismos pela qual a realizavam, vistos como notáveis.18 Também era algo fundamental,
não no texto, porém nas imagens, a topografia, suas ladeiras, as falhas na crista
montanhosa e, portanto, aberturas para possíveis ascensões, como os lugares de
desembarque. O espectro da guerra pairava.

A primazia era a da vista frontal, corrigindo e eliminando as distorções de perspectiva, a


ponto de soar estranha a representação do outeiro de Santo Antônio e a aparição, irreal, da
Ponta de Santo Antônio. Também pode surpreender uma deformação: a “falsa” visão frontal
da cidade, de seu frontispício, a partir da colina onde está o Forte de Montserrate. Era uma
convenção na representação de cidades, contempladas a partir de colinas ou da outra
margem de um rio, colocar em primeiro plano essa porção de terra onde estará o sujeito que
vê. Como as casas que, bordejando as íngremes ladeiras, ocupavam verdadeiros
precipícios para os estrangeiros, em imagem surpreendente. Aquilo que tanto encantara
estrangeiros de todas as procedências naquele momento não possuía a menor importância:
a vegetação da Montanha.

A descrição não era do campo visual, mas do mundo visual. Não era do que se via, de um
ponto de vista estático, ou da sucessão de cenas, e sim do que era, uma descrição da
realidade, como de um narrador onisciente. Porém, assim como as velhas formulações
persistiam ao longo do Oitocentos, uma nova compreensão da cidade e das viagens se
manifestara.

O século XIX foi o século da pintura paisagística, dos diários e da literatura de viajantes.19 O
século do Imperialismo, das nações européias mais os Estados Unidos mapeando o interior
dos continentes e os pólos, do trânsito de europeus e americanos pelo mundo. A visão, a
pintura e a escrita se interpenetravam naquele momento.20 Na escrita entravam elementos
gerais da pintura, e o próprio “quadro”, “pintura” e “cenário”, termos usados para denominar
e enuclear a paisagem vista. As paisagens eram descritas de acordo com as camadas de
uma pintura, como se convencionara que uma paisagem seria, assim como falava-se em
limites ou molduras para designar elementos que encerravam a visão, e se dispunha de
elementos analíticos da secular experiência pictórica: da variedade das formas, das linhas
de silhuetas, do contraste entre cores. Entramos aqui dentro do pitoresco, categoria estética
e mesmo um problema conceitual e filosófico, fundamental para compreender o elogio ao
litoral.

17
DUBBINI, Renzo. Geography of the Gaze: urban and rural vision in early modern Europe. Chicago & London: University of
Chicago Press, 2002. Alguns xemplos dessa descrição do “anfiteatro”: Dugrivel (1843, p.339); Tollenare (1956, p.280);
Sarmiento (2007); ALMAGRO, Don Manuel de. Breve Descripción de los Viajes Hechos en América... Madrid: Imprenta y
Estereotipia de M. Rivadeneyra, 1866, p.11.
18
Como dizia Pyrard de Laval (1890, p.310) ou Amédée François Frezier (A Voyage to the South-sea... London: Jonah Bowyer,
1717, p.296).
19
GAY, Peter. A Experiência Burguesa da Rainha Vitória a Freud: A Educação dos Setidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1988, p.320.
20
PAZ, 2018b.

151
Figura 87 – Warhafftige Abbildung von Einnehmung der statt. S. Salvator (c.1634), de Emmanuel van
Meteren. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Os detalhes importantes são os elementos
construídos, em especial os defensivos. Os guindastes. Os caminhos no flanco da Montanha, e sua
percepção nítida, com as possíveis falhas por onde um exército poderia ascender. A vegetação era
apenas indicativa, sem comprometer essa legibilidade.

152
Por “pitoresco” os estrangeiros, especialmente os britânicos, entendiam em linhas gerais
aquilo que William Gilpin defendia: a beleza compreendida pelos olhos de um pintor,
reconhecendo na paisagem a qualidade de prestar-se à perfeição para reprodução em um
quadro. E no que consistia essa beleza? A Arte na Inglaterra fundava-se nos prazeres da
imaginação, não tão grosseiros quanto os dos sentidos e menos refinados que os do
conhecimento. Deleitava-se na variedade, no repertório de imagens para combinar, associar
e fantasiar. Para o regalo da visão, sentido superior naquela abordagem, era fundamental a
variação de impressões, de insumos, ao longo do tempo. As cenas e sua sucessão
precisavam ter riqueza (richness) e variedade (variety), características ansiadas pelo olho.21
A irregularidade das formas e silhuetas, das sombras e textura seria o fundamento do
pitoresco, provendo com a variedade e o contraste necessários, assim como os efeitos de
luz. Junto com a idéia de que algo é pitoresco, estava uma decomposição do visto,
reconhecendo elementos que lhe adicionavam variedade, “diversificando-a” (diversifying), ou
riqueza, “enriquecendo-a” (enriching), saciando aquele olho tornado protagonista, sujeito
das orações, das frases, sedento de sensações com que se deleitar. Aqui está um resumo
dessa maneira de perceber as paisagens, embora em clave sarcástica:

Os costumeiros admiradores oficiais da natureza, aqueles que trabalham


segundo um estilo preestabelecido, não se detêm nesse tipo de paisagem;
eles precisam, em seus quadros, de objetos variados e dos habituais
acessórios; se não dispõem de um agrupamento de árvores, cabanas
graciosas, se possível uma torre de igreja pontiaguda, um riacho
murmurejante, margeado de flores e arvoredos florescentes, se em seus
quadros não passeiam cidadãos bem vestidos e bem alimentados, esses
indivíduos gritam logo, reclamando a monotonia. (MAXIMILIAN VON
HABSBURG, 2010b, p.63).

Em sua feição mais complexa, aquele olhar apresentava componentes motores em três
escalas inter-relacionadas: do corpo, da cabeça e do olhar.22 Nessa modalidade auto-
percebida de usufruir as paisagens, o olho, sem captar tudo de uma vez, deslizava pela
cena. A descrição das cenas era habitualmente a descrição de um percurso do olhar, em um
itinerário narrativo que se fundia, com a rememoração do ato do olhar, assim entendida e
exposta por escrito, à revelia dos movimentos erráticos reais. O artifício literário era também
a auto-imagem, a consciência, da observação, que, por sua vez, centrava-se na maneira
como se devia conceber e apreciar os quadros. Nessa movimentação pela cena, a
superfície suave não era a melhor. O regalo dos olhos acontecia na variedade dos planos,
das silhuetas, das formas dos elementos em cena. E a variedade ocorria na sucessão de
cenas, e na composição de cada cena individual, no seu arranjo geral, nas formas dos
objetos (plantas, rochas, edifícios) e a dada pela luz e sombra, pelos efeitos aéreos, pelas
texturas. Sequer todo e qualquer campo visual se prestava a ser qualificada como uma
paisagem. Se estava enraizado em condições físicas concretas, como o transporte humano,
a contemplação por outro lado se estruturava pela experiência estética e cognitiva de então
– pela Ciência, pela Religião, pela Arte em algumas de suas modalidades – e parcialmente
em seu substrato filosófico.

Seguiremos em alguma medida aquele passeio imaginário, de fora para dentro. O litoral não
é uma tênue superfície, uma casca limítrofe entre a terra e o mar, quase uma silhueta, mas
uma franja com espessura própria, modelada pela ação humana, que era vista e de onde se
via, inclusiva a si mesma.

21
O que nos trará dificuldades de tradução. Variety se obtém com elementos que diversify a cena; a tradução mais próxima,
“diversificar”, não faz jus a esse sentido. Igualmente a richness alude a uma profusão de formas e texturas, de elementos
pictóricos, sem tradução clara: “riqueza” não tem essa conotação. Quando alude à vegetação, usaremos adjetivos como
“exuberante” ou “profuso”, mas nem assim corresponde.
22
PAZ, 2018a.

153
O Litoral Atlântico
Os coqueirais da beira-mar, tão cantados em verso e prosa no século XX, não apareciam
como objetos do deleite no século XIX, agradáveis para se estar e se admirar. Estava
ausente a imagem dos coqueirais, as paisagens agrestes do litoral aberto, depois
apreciadas dentro da modalidade do pitoresco, do selvagem, do rústico. Mesmo as áreas de
dunas de areia alvíssima, depois valorizadas, quase não compareciam. Mencionadas no
caso de Itapuã, sequer eram citadas as da Pituba e Armação. O litoral visto desde o mar era
uma experiência contínua, linear. Além do Morro do Conselho, indo a norte:

A costa é orlada com pedaços e faixas de areia que, em parte formando


planícies enxutas com uma vegetação rala, em parte pantanosa, não
ascendem, como regra geral, a uma altura maior que oito a dez pés acima
do mar. [...] No litoral eles ocupam muitos pequenos vales entre as colinas.
À medida que avançamos rumo a norte, além do Morro do Conselho, estas
areias tornam-se maiores em extensão e ocupam grandes extensões. As
areias desta costa são muito finas, e são facilmente erguidas e carreadas
pelos ventos, de modo que grandes dunas são formadas, e as praias de
Itapuã, a poucas léguas ao norte de Salvador, são brancas como a neve.
(HARTT, 1870, p.334 – tradução nossa).23

Um dos limites da sensibilidade do pitoresco estava na aversão ao monocromático, como as


grandes áreas brancas das paisagens nevadas e geleiras, e a crítica mesmo a cottages
caiados de branco.24 Por isso que havia mais encanto pelos costões rochosos, pelas colinas
nuas que compunham uma paisagem mais familiar, que às dunas brancas, como se
depreende de Hartt: “na costa, como é o caso com o Morro do Conselho e as colinas nas
vizinhanças do Rio Vermelho, estas colinas estavam despidas de árvores, assim sua forma
é vista em toda sua beleza”.25 Alcançado pelos caminhos por terra, o litoral era descontínuo,
ancorado nas vilas de pescadores.

As palmeiras eram belas apenas dentro de um quadro, junto com outros elementos
formando um conjunto rico e variado, ou na sucessão de imagens, onde despontam como
sentinelas da terra firme, saindo da monotonia oceânica, anunciando a fartura do continente.
Plantadas ao longo do litoral oceânico, eram o prenúncio da barra da baía. Apareciam no
espelho d´água luminoso, e ganhavam feição de sonho.

[...] essas nobres árvores parecem surgir do mar mesmo, todas do mesmo
feitio, da mesma altura, exatamente como se encontram em muitos pontos
da costa do Brasil nas praias, formando uma faixa de floresta rarefeita, que
se avista de longe, antes mesmo de se divisar a praia. Oscilando no topo de
troncos esguios, formam as copas graciosas ilha aérea, um quadro tropical
suave, encantador e, contudo, tão simples. (AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.56).

Disse Maximiliano de Habsburgo, das ilhas da baía: “para conferir ainda mais à cena o
cunho do exótico, surgem do mar, à direita da extensa costa, como a dança da Fada
Morgana, ilhotas com coqueiros altos balançantes”.26 Para muitos, as palmeiras se
destacavam pela sua elegância, graça e nobreza, literalmente.27 Funcionavam, como

23
The coast is fringed with patches and strips of sands which, in part forming dry plains with a scanty vegetation, in part
swampy, do not rise to a greater height, as a general rule, than eight to ten feet above the sea. There are many patches
of this kind near Bahia, and some are of considerable extent. On the sea-coast they occupy several little bays between
the hills. As we go northward beyond the Morro do Conselho these sands become wider in extent and occupy large
tracts. The sands of this coast are very fine, and are easily raised and carried by the winds, so that extensive sand-hills
are formed, and the shores of Itapuan, a few leagues north of Bahia, are white as snow. (HARTT, 1870, p.334).
24
GAGE, John. Turner and the Picturesque – II. In: The Burlington Magazine, Vol.107, No. 743 (Feb., 1965), pp. 75-81; The
Burlington Magazine Publications Ltd. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/874461>
25
[...] on the coast, as in the case with the Morro do Conselho, and the hills in the vicinity of Rio Vermelho, these hills are
bare of trees, so that their form is beautifully seen [...] (HARTT, 1870, p.333).
26
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.152.
27
THOMSON, Wyville. The Voyage of the “Challenger”... Vol.2. London: Macmillan and Co., 1877, p.136; HUELL, 2009, p.80;
SPIX & MARTIUS, 2016, p.81; AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.24; TOLLENARE, 1956, p.39.

154
algumas outras espécies, como símbolos de uma paisagem tropical. Destacando-se por sua
figura e altura da massa da vegetação, do dossel das árvores, as palmeiras eram
fundamentais para a paisagem baiana. Vejamos a Baía de Todos os Santos.

A Baía de Todos os Santos


Nos relatos existem casos modelares, experiências compartilhadas pela maioria dos
europeus cosmopolitas na medida em que eram reforçados pela literatura de viajantes (em
especial, descobrindo novos sítios) e pela literatura clássica, dentro da formação liberal.
Cidades portuárias em baías, Rio de Janeiro e Salvador, eram comparadas com outros
portos do planeta. Com maior freqüência, Nápoles e Constantinopla: a baía de Nápoles e o
Chifre de Ouro do Bósforo, são não apenas ápices da beleza (Vedi Napoli, poi mori) como
loci clássicos milenares. Porém se inicialmente europeus, os exemplos depois seriam de
todo o mundo, em uma espécie de Grand Tour planetário. O céu italiano, fixado pela pintura,
pelas obras de Salvator Rosa e Claude Lorraine, era sempre mencionado pelos viajantes,
assim como a paisagem mediterrânea, de longa data conhecida por todo europeu instruído,
evocada continuamente para a Baía de Todos os Santos. Por isso que pinturas dessa
paisagem não raro tinham o mesmo véu dourado, o mesmo tem geral da golden hour, talvez
produzido por um Espelho de Claude, espelho escurecido, pequeno e portátil, usado
habitualmente por pintores para reduzir a variedade tonal e brindar um ar “pitoresco” à cena,
próprio para ser adequadamente capturado em tela.

Na Bahia, a formação labiríntica dos mangues nos esteiros e lagamares “dissolvia” o litoral,
tornando-o impreciso, em seus meandros intermináveis, o que se refletia nos registros
visuais que podiam no máximo registrar algum ambiente cerrado, a dificuldade crônica das
florestas tropicais. A experiência era em movimento, com a predisposição para encantar-se
com as sucessivas vistas, como escrevera Von Martius: “as margens baixas dessa extensa
baía e de suas numerosas ilhas são cobertas de espessos mangues [...], e, no correr da
viagem, deliciam a vista, pela risonha, mutação de panoramas, semelhantes aos do
Paraguaçu”.28 Habsburgo escreveu relato mais largo, atento à miríade da vida animal que ali
existia, e os aspectos mágicos dessa surpreendente “mata do mar”.

Tal conjunto é um extremo deleite para os olhos que sabem ver com
fantasia. Esse crescer emaranhado e desordenado dos galhos e das raízes,
o medo dos ramos que se erguem para o alto de se sujarem na lama úmida,
esse fantástico e enredado rastejar, essas cenas úmidas do interior da
mata, com seus recantos secretos e murmurantes, essa vida em vários
andares, do porão pantanoso habitado por caranguejos, ao andar-térreo,
apoiando-se, como que por pilotis venezianos, até a exuberância verde dos
andares superiores, onde os alegres passarinhos e o inteligente alcione
levam uma vida livre e banhada de sol como vou explicar tudo isso aos
meus europeus? (MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.169).

Ele transfigura, pela imaginação e pelas referências às fábulas infantis, o fervilhar da vida no
lodo dos manguezais, aquele correr dos caranguejos ao menor sinal, “como gnomos [...] mal
tínhamos, porém, nos aproximado, desapareceram da face da terra, como nas
transformações de um balé de conto de fadas”.29 Nas descrições dos alemães transparecia
a concepção vitalista da tradição cultural germânica, de um Universo animado, onde todos
os entes, todos os reinos, pulsam e possuem um impulso vital próprio, em uma grande
concertação de forças, que não exclui mesmo o espírito agônico e os embates. O mesmo
Habsburgo foi capaz de enxergar aquele ambiente de maneira levemente menos fantasiosa,
imediatamente, porém, arriscando aqueles vôos mais elevados. Ao falar das flores dos

28
SPIX & MARTIUS, 2016, p.76.
29
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.173.

155
manguezais, se exaltava: “a mais ousada fantasia de um jardineiro não conseguiria tal
combinação de cores como essa da Mãe Natureza, em seus caprichos poético-tropicais”.30

Esse ambiente não recebeu a pesada conotação de pântano da retórica médica, dos
miasmas pútridos das águas estagnadas, mas a admiração estética. Era bioma fortemente
caracterizado por umas poucas árvores, delas não apenas o nome mas o olhar dos
estrangeiros. Para Tollenare, junto com o coqueiro e o dendezeiro, foi o mangue “que mais
provocaram a minha atenção”.31 Esse fascínio pelo manguezal que não se refletiu nos
locais. Mais: foi um ponto cego no imaginário da cidade, ausente em praticamente todas as
representações, até o final do século XX.

O Frontispício da Cidade
Mrs. Kindersley na sua 6ª carta, de agosto de 1764, não disfarça seu encanto, da cidade
que se revelava à chegada, “com ruas de casas brancas uma sobre a outra, entremeadas
em algumas partes com pequenas plantações de cana-de-açúcar”.32 Aqui aparecem os
elementos pictóricos que deram a tônica desta nova maneira de conceber, a paisagem. O
deleite se ampliava e se aprofundava. A descrição ganhou mais detalhes, passou a se
espraiar pelas páginas, delineada pela lógica da pintura. Lindley descreveu o frontispício a
partir de um local visualmente privilegiado, o Forte de São Marcelo, na condição não muito
promissora de prisioneiro:

À tarde percorremos as muralhas, que comandam das mais elegantes


vistas da entrada da baía ao sul; a cidade e campos desviando-se para
leste, rumo ao distante ponto de Montserrate, e encantadoramente
intercalada por edifícios, conventos, etc.; ao norte aparece um grupo
distante de ilhas, e a oeste do forte está a bela ilha de Itaparica. (LINDLEY,
1805, p.51 – tradução nossa).33

A silhueta era essencial para a compreensão da cena e aquela motricidade do olhar, que lhe
tomava como guia condutor na admiração das cenas.

A vegetação se tornou parte integrante da mesma, não mais como indústria humana
transformando a natureza, e sim pela sua exuberância, da beleza das espécies em seus
exemplares individuais, do conjunto, e, num raciocínio inteiramente pictórico, no contraste
com o branco das construções e com outras pinceladas de cor.

Também, e principalmente para o que nos interessa, as embarcações do porto deixaram de


entrar no cômputo das capacidades militares e mercantis do lugar, e se tornaram elementos
que animavam os quadros. Naquele “cenário imponente desta magnífica baía” somava-se “o
vasto número de pequenas embarcações que são vistas constantemente atravessando-a,
pontilhando a superfície verde da água com suas velas brancas.34 Os barcos eram
fundamentais para, salpicados no mar, concederem variedade à pintura, valorizando e
completando uma paisagem entendida como quadro, sob os vários ângulos do registro do
litoral.

30
MAXIMILIAN VON HABSBURG, 2010, p.86.
31
TOLLENARE, 1956, p.41.
32
The part we see of it stands upon the side of a steep hill, with streets of white houses one above another, intermixed in
some parts with small plantations of sugar canes, which, from the reflection of the sun, in these unclouded skies, have a
very beautiful effect. (KINDERSLEY, 1777).
33
In the afternoon we walked the ramparts, which command a most elegant view of the entrance into the bay on the
south; the city and country diverging from it on the east, ranging along to the distant point of Montserrat, and charmingly
interspersed with seats, convents, &c.: to the north appeared a group of distant islands, and west of the fort is the rich
isle of Haporica. (LINDLEY, 1805, p.51).
34
If any thing can add to the imposing scenery of this magnificent bay, it is the vast number of small vessels that are seen
constantly traversing it, dotting the green surface of the water with their whitened sails. (KIDDER & FLETCHER, 1857,
p.299).

156
Figura 88 – Victoria (1855), de Marguerite Tollemache. Fonte: BERTANI, 2007. Sequer era uma
característica da ferramenta, do uso da tinta. Com lápis e grafite, também o artista enfatizava as
manchas, e não as linhas definidas, da encosta.

Figura 89 – Bahia, cartão-postal de 1906, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. Esta era
a situação de certos trechos da encosta.

157
A topografia não dominava as cenas na Baia de Todos os Santos, com raras exceções,
incluindo o coração da cidade. O interior era um tanto indiferenciado, e a elevação
significativa, a Montanha, era ela mesma a cidade, debruçando-se sobre a Cidade Baixa,
mostrava-se para a distante Itapagipe ou para os barcos que chegavam, e permitiam a
contemplação da baía e suas enseadas.

A Linha do Litoral
A partir de certos pontos privilegiados da Península de Itapagipe, os estrangeiros
assinalavam paisagens. Disse Henry Martyn, em novembro de 1805, que visitou, nas aforas
da cidade, “uma bateria que comandava uma vista de toda a baía”35, referindo-se a
Montserrate. E dali dizia Elwes: “desde este lugar há uma bela vista da baía e da cidade”.36
Ver Huell, da casa de um amigo em Montserrate, contempla da Jequitaia à Barra, e escreve:

A vista desimpedida, ao modo de um anfiteatro, topava ao longe com o


longo dorso da montanha sobre a qual se situa São Salvador, com todas as
suas brancas edificações, conventos e igrejas entremeadas pelo aprazível
verde das árvores. Mais ao longe ainda, o morro na entrada da baía,
coroado com o convento de Santo Antônio da Barra, o infinito oceano à
frente dos navios ancorados próximos ao castelo d´água e a mansa e
azulada superfície da água sobre a qual velejam, de um lado para o outro,
uma quantidade enorme de embarcações de todo tipo e tamanho. (HUELL,
2009, p.151).

Repetia a estrutura visual das pinturas: as linhas, as silhuetas da Cidade Alta e da Cidade
Baixa, guiando-lhe o olhar, com aquele contraste cromático entre o branco e o verde.
Próximo dali o alto do Bonfim, a única elevação significativa das redondezas, era mirante
privilegiado. Para Lindley, “as perspectivas desde aqui são realmente grandiosas, sobre
plantações em gradual declive até a baía [...] e perdendo-se no oceano próximo, com os
navios defronte, a cidade à esquerda, e a ilha de Itaparica à direita”.37 Maximiliano de
Habsburgo empregava o panorama, a vista completamente circular, a partir do adro da
igreja.38

Poderíamos considerar estes pontos como situações propícias para a contemplação


marítima, da baía. No entanto muito do encanto destes lugares residia em divisar a cidade
como um todo, até a distante Vitória. Prova é a total ausência da contracosta da península,
das cenas que da Ribeira se descortinam para Plataforma e o esteiro de Pirajá. Vista hoje
apreciada, em nenhum momento é comentada pela ampla literatura de viajantes em
Salvador.

Do porto até a Cidade Alta o caminho principal, mais imediato, era a penosa Ladeira da
Conceição. Mesmo a posterior abertura da Ladeira da Montanha levaria ao mesmo ponto:
até a antiga porta sul da cidade, por muito tempo conhecida como Largo do Teatro. Como
era uma área aberta, as descrições dessa vista soberana sobre a Cidade Baixa e a baía
tendiam a ocorrer ali. Em carta de 1º de fevereiro de 1833, assinalava Dugrivel que, após a
subida pela ladeira, do Largo do Teatro “o olhar se expande e junta-se a um dos mais belos
pontos de vista do mundo”.39 Em 1860, Maximiliano de Habsburgo, a partir dali:

35
[...] a battery which commanded a view of the whole bay [...] (SARGENT, s/d, p.127).
36
[...] from this spot there is a beautiful view of the bay and city [...] (ELWES, 1854, p.98).
37
[...] the prospects from whence is grand indeed, over a gradual descent of plantations to the bay [...] and to a distance
into the adjacent ocean, with the shipping in front, the city on the left, and the isle of Itaporica on the right [...] (LINDLEY,
1805, p.190).
38
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.132.
39
[...] une très belle position aux-desus d´une montée, Ladeira, d´où l´oeil s´étend et joint d´um des plus beaux points de
vue du monde [...] (DUGRIVEL, 1843, p.361).

158
Em frente, encontra-se uma enseada transformada em ancoradouro, com
os inúmeros navios mercantes agrupando-se em direção à margem e
rodeados de embarcações de todo o tipo. É meio dia. O sol no zênite lança
o brilho de seus raios sobre o mar, onde repousa a luz, como uma névoa
prateada, e que se reflete nas ondas de um azul maravilhoso. Através da
nuvem de raios do meio-dia triunfante, cintila o verde das matas. Da ilha de
Itaparica, situada ao longe, delineiam-se, em tons pálidos, as ilhas e colinas
do rio Paraguaçú. À direita, numa proximidade que se pode reconhecer,
brilha a baía propriamente dita, a península do Bomfin, com sombras de
palmeiras, rodeada por suas risonhas casas de campo e a sua luminosa
igreja das graças, de um branco brilhante. Grandes embarcações com velas
gigantescas cruzam, alegremente, como cisnes, a baía azul. [...] Embaixo,
concentra-se a vida do porto, entre o interessante forte construído, em meio
às ondas, da enseada e o Arsenal, com a Casa da Alfândega, situada ao
lado. (MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.88).

O próprio Teatro São João tinha sua varanda, um mirante próprio. E os principais hotéis da
cidade, postos ali, também divisavam aquela cena. Porém o mais importante dos mirantes
da Cidade Alta era o Passeio Público. Pensado originalmente como um horto, relacionado a
um projeto biotecnológico específico, foi construído como um belvedere, local civilizado para
o desfrute das horas livres e da contemplação da paisagem, inaugurado para usufruto
público em 1810. Fora ambiente inteiramente atrativo para os viajantes.

Dali se “comandava” uma vista de toda a baía.40 Em 1824 disse Von Martius que “a vista
espraia-se por sobre grupos de verdes ilhas da linda baía, ou repousa com saudades, sobre
a superfície azul e imensa do oceano, que o sol poente recama de cintilantes irisações”41.
Em obra de 1845, escreveu Kidder que estava “localizado no mais audacioso e mais
dominante [commanding] ponto elevado de toda a cidade”, divisando o oceano de um lado,
a baía de um outro e, vertiginosamente, “nada além de uma grade de ferro protege o
visitante do perigo de cair sobre o íngreme precipício à sua frente”.42 Uma plataforma que
avançava em uma curva da Montanha, possuía dois campos de visão distintos, o que era
uma vantagem do mirante. Alfred Marc falava que "colocado em uma situação magnífica, na
Cidade Alta, acolhendo uma vista soberba do porto e de uma boa parte da cidade”.43 Sua
cobertura vegetal complementava as virtudes escópicas, constituindo ambiente agradável
para os visitantes. Suas jaqueiras, mangueiras, tamarindeiros, árvores de fruta-pão, por seu
porte, e copa frondosa e densa. Embora Kidder considerasse o Passeio inferior ao Battery
Park de Nova Iorque, “a variedade e a riqueza das árvores e flores [...] compensam esta
deficiência plenamente a este respeito”.44 Era local de visita constante deles, ao longo do
século, de estrangeiros visitantes e residentes.

Os viajantes encantavam-se com a vegetação da Estrada da Vitória e como um


complemento ao cenário, ao fundo, o oceano. Kidder dizia que “as aberturas freqüentes,
entre as casas construídas ao longo do cume, exibem as vistas mais pitorescas da baía por
um lado, e do interior, por outro”.45 Disse Avé-Lallemant: “lá em baixo, a grandiosa baía
cintilando e marulhando, de manso, se mistura com o mar amplo, e, ao longe, na margem
oposta, viçosas plantações enfeitam a praia e pequenas colinas”.46 E Kidder que na “Colina

40
HENDERSON, 1821, p.340; GRAHAM, 1824, p.47.
41
SPIX & MARTIUS, 2016, p.100.
42
The public promenade of Bahia is located on the boldest and most commanding height of the whole town. One of its
sides looks toward the ocean, and another up the bay, while nothing but an iron railing guards the visitor against the
danger of falling over the steep precipice by which its whole front is bordered. (KIDDER, 1845b, p.58).
43
[...] placée dans une magnifique situation, à la ville haute, ménage en passant une vue superbe du port et d´une bonne
partie de la ville [...] (MARC, 1889, p.319).
44
[...] the variety and the richness of the trees and flowers of the Passeio Publico of Bahia fully compensate for its
deficienty in this respect [...] (KIDDER, 1845b, p.58).
45
Frequent openings, between the houses built along the summit, exhibit the most picturesque views of the bay on the
one hand and of the country on the other” (KIDDER, 1845b, p.21).
46
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.24.

159
da Vitória” (Victoria Hill) entre suas benesses havia uma “perspectiva magnífica da água
azul e das ilhas verdejantes”.47 O mesmo percebera Tollenare, que residira no largo da
Vitória: “a vista da baía completa o interessante quadro”.48 Esse papel aparentemente
subalterno do mar não é acidental.

Os corpos d´água – a baía, o mar, ou o lago – formavam sempre parte da cena. Não apenas
era o caso de que a cidade, uma península, cortada por vários rios e seus vales, estava
repleta de água. Mas que as cenas eram compreendidas como belas, com os corpos d´água
tornados dignos de atenção. Disse Graham que “desde cada elevação, a baía, o mar, ou o
lago, formavam parte da cena”49 ou “cada passo nos trazia a vista de uma bela cena,
geralmente encerrada pela baía e seus barcos”.50 Maximiliano de Wied-Neuwied escrevia,
sobre uma paisagem, que “à esquerda, numerosas manchas d´água e graciosas moradas
alegravam a paisagem, emoldurada, nos últimos planos, pelas montanhas azuis”.51

Era parte do código pitoresco. Diz William Shenstone, em seu Unconnected Thoughts on
Gardening (1764), “o olho deve sempre voltar-se para a água”52, e “ÁGUA deve sempre
aparecer, como um lago irregular, ou córrego sinuoso”.53 Nas pinturas, igualmente os corpos
d´água possuíam uma razão de ser. Apesar de suave em sua consistência física real, a
água enquadrava-se na busca pelos efeitos de textura e luz, nas variações que a pintura, e
que o pitoresco na paisagem, requeria. Os lagos seriam também pitorescos, apesar da
suavidade de sua superfície real, pois estaria dividida pelas ondulações da água e reflexo do
que estava ao redor.54 Por isso a paisagem desenhada, pintada e descrita ocorria em uma
diagonal referente ao litoral e às costas dos rios e lagos, mostrando as ondulações do
terreno e os corpos d´água em sucessivos planos alternados, com palmeiras, edifícios na
massa verde e torres de igrejas, embarcações, enriquecendo a cena. Em Salvador, o
arranjo de Itapagipe, que separa as águas do porto daquelas da Enseada dos Tainheiros,
visto do alto da Montanha, por isso aparece reiteradamente. Como na visão de Lindley a
partir do Forte do Barbalho onde, depois de descrever os planos mais imediatos:

O olho, fazendo a varredura para o norte, e passando pelas muralhas


verdes do forte de Santo Antônio [Além do Carmo], é atingido pelo fim da
baía exterior, à espreita logo abaixo, azul, imóvel e sereno, como um lago
de água doce, cheio das velas triangulares de canoas e barcos pesqueiros.

Saltando pela baía, a estreita península de Montserrat se estende;


intercaladas com igrejas, conventos, e casas de campo; acima orgulhosas
torres, e outra baía aparece, que se perde porém entre ilhas distantes, além
das quais as montanhas do continente erguem suas cabeças azuis,
encerrando a perspectiva. (LINDLEY, 1805, p.109).55

47
[...] magnificent prospect of blue water and verdant isles [...] (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.486).
48
TOLLENARE, 1956, p.295.
49
[...] from every eminence, the bay, the sea, or the lake, formed part of the scene [...] (GRAHAM, 1824, p.135).
50
[...] as we ascend from the street, every step brought us in sight of some beautiful scene, generally terminated by the
bay and shipping [...] (GRAHAM, 1824, p.134).
51
MAXIMILIANO, 1958, p.70.
52
[...] the eye should always look rather down upon water [...] (HUNT, John Dixon & WILLIS, Peter Willis (eds). The Genius of
the Place: the english landscape garden 1620-1820. London: Paul Elek Ltd., 1979, p.291).
53
[...] WATER should ever appear, as an irregular lake, or winding stream [...] (HUNT & WILLIS, 1979, p.295).
54
GILPIN, 1808, p.22. Até por aspectos da arquitetura da composição. Os rios sinuosos não raro eram percebidos como
maneira de articular as partes de um quadro – e de uma cena – conduzindo o olhar de um lado a outro, e costurando os
planos.
55
West of the fort is a deep cultivated vale, over which the many towers and spires of the city make their appearance,
glittering with the glassy tiles that cover them. The eye, sweeping to the northward, and passing the green ramparts of
fort San Anthonio, is struck with the end of the outer bay; which peeps below, azure, still, and serene, as a freshwater
lake, crowded with the triangular sails of canoes and fishing-boats.

Jutting across the bay, the narrow peninsula of Montserrat extends; interspersed with churches, convents, and seats:
over in the view proudly towers, and another bay appears; but is lost among distant islands, beyond which the
mountains of the continent rear their blue heads, and terminate the prospect. (LINDLEY, 1805, p.109).

160
Figura 90 – Vista da Igreja de Nossa Senhora da Vitória nos Arredores de São Salvador no Brasil
(1807-10), de Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008. Não é acidente que os desenhos, e depois
as fotos, sejam preferencialmente deste ângulo. Eles permitiam uma construção típica das pinturas
paisagísticas. Um primeiro plano, com vegetação singular, e pessoas ou animais. Um segundo plano
constituído por linhas que permitiam ao olho seguir cada detalhe da pintura, rumo aos planos
subsequentes. Que esses planos se distinguissem por uma iluminação diferente era também
recursos usual. De tal ângulo se poderia desenhar embarcações, sempre pitorescas, e os outros
elementos da baía, como ilhas e o seu fundo. O outro ângulo não o permitia.

Figura 91 – Victoria Hill and Cemetery (1852), de William M. Gore Ouseley. Fonte: OUSELEY, 1852.

161
Figura 92 – Vista da Baía de Todos os Santos e do Bonfim (1825-6), de Charles Landseer. Fonte:
BETHELL, 2010. As representações do porto invariavelmente lançam seu olhar para o mesmo lado, e
coincidem, sendo tomados em sua maioria da região do Largo do Teatro, após a subida da Ladeira
da Conceição. Se há um condicionamento físico, topográfico e urbanístico, existe uma conformação
estética, que via beleza – a beleza do pintor/ desenhista, dos elementos identificados na realidade
que lhe pareciam propícios, e por isso belos, de constarem de um quadro.

Figura 93 – Vista da Enseada de S. Salvador (1807-10), de Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Nesta todos os elementos são claros. Um primeiro plano, com figuras humanas (animais também
eram bem-vindos). Um segundo plano, com a encosta, edifícios (o Solar do Unhão) e vegetação. O
espelho d´água e barcos. E outras camadas, ao fundo, fornecidas pela Península de Itapagipe, ilhas
da baía e seu fundo.

162
Figura 94 – Vue de la Rade de Bahia prise du Jardin public (c.1837). Fonte: BERTANI, 2007. Quase
30 anos depois, outro artista, ângulo similar. O litoral ganha espessura, é uma faixa capturada pelo
olho do pintor, plasmada em sua pintura, onde se vê algo da terra adentro, seus edifícios, e algo do
espelho d´água. Uma vez que se apreende o método, a similaridade estrutural fica evidente.

Figura 95 – Fort (and Cape) of St. Antonio (1852), de William M. Gore Ouseley e J. Needham. Fonte:
OUSELEY, 1852. A linha da praia é acentuada, para formar o arranjo desejado, assim como pessoas
e vegetação mais nítida no primeiro plano obedecem a princípios estéticos a priori

163
Figura 96 – Vista das Fortalezas da Entrada da Bahia, tomada da Ponta do Farol (Salvador) (1839),
de Abraham Louis Buvelot, acervo de Sergio Sahione Fadel. Fonte: ITAÚ CULTURAL. Nesta
seqüência de quadros, cada trecho da Barra, cada pequena praia, cada trecho limitado por formações
rochosas, torna-se tema prototípico da composição. Esta, com aspectos mais românticos, na
movimentação das águas, na reação da copa das árvores e retrabalhando os tons dourados da
tradição paisagística.

Figura 97 – Porto da Barra (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008. Com tons mais pastorais,
o Porto da Barra. Aqui as diagonais reais da paisagem servem como diagonais da pintura: dos
pescadores às casas ao fundo; desas ao Forte de São Diogo, e daí pelo caminho de meia-encosta ao
topo do outeiro.

164
Figura 98 –Vista da Ladeira de São Francisco de Paula, Ancoradouro, Água de Meninos e Igreja da
Santíssima Trindade (1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008. Um primeiro plano umbroso,
com vegetação que somavam riqueza e variedade à cena e atrás, a linha da costa, pontilhada de
construções de altura e projeções variadas, acima e abaixo, contrastando com o verde da encosta.
E barcos, muitos barcos, agrupando-se no lado direito, em local improvável do mar, aparentemente
uma exigência da pintura, de evitar uma área monocromática, de azul sem variedade. O desenho é
raro, porque é simétrico à grande maioria, feita a partir do Largo do Teatro, do Passeio Público ou
imediações, ou do Outeiro de Santo Antônio. Isso nos diz menos sobre as virtudes paisagísticas da
parte norte da Montanha, e mais sobre os locais de visitação dos estrangeiros que desenhavam/
pintavam.

A vista mais importante era uma só, direcionada ao Porto. Mostrava os barcos, os muitos
navios, e também possuía aquela variedade da costa necessária, com a reentrância da
Jequitaia, o avanço da Ponta de Humaitá, o espelho d´água mais além e suas ilhas, o istmo
do Papagaio e a ponta da Ribeira, a Enseada dos Tainheiros e do Cabrito, a distante
Plataforma. Isso era claro no Passeio Público. A outra visada que seu mirante abria não
tinha nada disso: algo da encosta da Vitória, uma Itaparica distante, e apenas a grande
abertura do oceano, sem interesse pictórico. Não é um acidente que todos os desenhos que
temos do Passeio mostrem a mesma visão. Quando “além” do Porto, tal como a paisagem
descrita por Lindley a partir do Forte do Barbalho, a cena continuava com elementos o
suficiente para um quadro digno.

165
Figura 99 – Bahia (1838), de Jules Marie Vincent de Sinety. Fonte: Brasiliana Iconográfica. Neste
caso, as exigências plásticas leavam o pintor a criar terra firme onde não existe, para locar seus
negros pitorescos.

Figura 100 – Bahia, de Daniel Parish Kidder. Fonte: KIDDER, 1845b. Nova deformação para cumprir
os requsitos pictóricos, do primeiro plano, umbroso, com figuras humanas locais pitorescas. O
“pedaço de terra” de Montserrate é brutalmente deformada em função da conveniência da
convenção.

166
Figura 101 – Salvador vista do Bonfim (1825-6), de Charles Landseer. Fonte: BETHELL, 2010. Esta
representação é mais fiel, ainda que estruturada pelos planos da convenção. O desenho revela como
era a feição da península, a partir da Colina do Bonfim, com suas roças.

Figura 102 – San Salvador (1827-37), de Johann Moritz Rugendas. Fonte: Brasiliana Iconografica. O
desenho não é apenas a representação pioneira do que poderia ser um jogo de capoeira. Também é
“montada” pelo código da pintura vigente. As baianas aparecem com sua gamela na cabeça, de
modo inverossímil para a situação, mas pitoresco para o quadro. E serve como cena animada para o
primeiro plano (ou segundo plano, se considero a primeira formação arbustiva e pedras na frente
como um plano próprio), permitindo a paisagem subseqüente. A cena acima é praticamente idêntica à
de abaixo.

167
Figura 103 – San Salvador, de Alès, do livro de Bresil par Ferdinand Denis. Colombie et Guyanes par
M.C. Famin. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Nesta gravura, o que muda são as ações feitas
pelos seres humanos no primeiro plano, com seus trajes e gestos dando mais variedade à cena, junto
com os detalhes da vegetação. Apenas Rugendas montou a cena com uma ação mais singular: a
capoeira.

Figura 104 – Vista da Bahia tomada a caminho do Monte Serrat (1839), de Abraham Louis Buvelot.
Fonte: WIKIMEDIA FOUNDATION. Cena de ângulo análogo ao das anteriores, provavelmente do
caminho da Colina do Bonfim rumo a Montserrate. Os artistas compunham cenas mais pitorescas do
que a realidade lhes apresentava, juntando os motivos e elementos interessantes, diligentemente
esboçados nas viagens pitorescas, e depois recombinados para fazer uma cena mais perfeita do que
era o mundo real, em estúdio. A vegetação, que aparece de modo incidental como moldura destes
quadros, são baseados em roças reais, no cultivo humano, e não na natureza selvagem.

168
O mesmo valia para o Dique, percebido como um formoso lago interior.

A margem era orlada com as mais preciosas plantas. O lago brilhava, nos
raios do meio-dia, como metal fundido, e perdia-se nos contornos suaves
das baías distantes. À margem oposta, erguiam-se as colinas em cadeia e
que, devido às grandes matas, eram ricamente cobertas de brilho e de
sombra. Sobre os cumes das elevações, balançavam-se gigantescas
palmeiras, sobressaindo-se no firmamento de um azul intenso.
(HABSBURGO, 1982, p.212).

A comparação com o Dique é essencial. O papel do mar era o dos cursos e espelhos
d´água dentro da composição visual da paisagem. Nisso, o lago era idêntico na admiração,
explicando os ângulos e recursos das pinturas e das descrições, idênticos. Ademais, servia
para Salvador como contraparte a leste da baía, comparecendo nos desvãos das cenas. O
Dique naquele momento praticamente cercava toda a cidade a leste e, por sua estreiteza,
por estar “atrás” das casas e quintas, era um vislumbre e não uma presença ostensiva aos
olhos. Encantava aos visitantes mas como uma experiência discreta. Diz Avé-Lallemant que
“apresentam ainda alguns jardins da Bahia o peculiar encanto que lhes dá comprido e
sinuoso lago de água doce, na verdade estreito bastante para passar despercebido a quase
todos os viajantes”.56 Habsburgo escrevia em 1860 que ao lado do Forte de São Pedro
“abria-se um profundo vale, que nos revelava todo o esplendor da vegetação primitiva dos
trópicos, como numa paisagem de sonho, rica em maravilhas”.57

Figura 105 – Vista do Lago ´O Dique´ próximo de São Salvador na costa do Brasil (1807-10), de
Q.M.R.Ver Huell. Fonte: ATHAYDE, 2008. O mesmo raciocínio se aplicava aos lagos. O Dique era
bem visto pelos seus meandros, propiciando material pitoresco para um quadro, como as
lavandeiras, em primeiro plano, reduzidas a um par, de forma idílica.

56
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.24.
57
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.83.

169
Figura 106 – Lagoa de Freitas (1822), de Henry Chamberlain. Fonte: CHAMBERLAIN, 1822. Em
outro lago, outra cidade, desenho tremendamente parecido. E parecido porque as convenções
estavam cristalizadas e tinham peso expressivo.

A Visão do Mar e a Irrupção do Sublime


O mar puro, visto da terra, comparecia muito pouco, mesmo nos relatos dos viajantes
oitocentistas. Diante do que se entendia por uma paisagem bem-vinda, carecia de material
para preencher uma vista, para enriquecer a cena por inteiro. As descrições do litoral eram
da linha da costa, de suas ondulações, vegetação, edifícios, barcos e ilhas. A busca
paisagística atual ignora essa importância da variedade. Mas apesar da ausência de
protagonismo, existem algumas menções ao mar.

Na 11ª carta de Mrs. Kindersley, de setembro de 1764, afirmava que “após irmos por algum
tempo através de veredas frescas e umbrosas, que terminavam em uma planície aberta e
arejada, tivemos uma vista do mar das mais aprazíveis”58, final e ápice da partitura
cinestésica do percurso. Dundas, ao elogiar da situação a cavaleiro do São Lázaro, falou
daquela magnífica vista do mar.59 Tollenare descrevia a vista a partir do Largo do Teatro, e
imaginava que esta “constitue o principal predicado das casas que a podem ter [...]
principalmente pela manhã, porque o sol ao nascer ilumina a ilha de Itaparica e o fundo da
baía”.60 Fenômenos atmosféricos, auroras e crepúsculos, ao tingirem o céu e as águas de
uma variedade de cores mais pictóricas, forneciam alguma condição para o mar entrar como
elemento principal em uma paisagem. Nunca era o azul do céu puro, a luminosidade em si,
como depois seria descoberto nas pinturas. Naquele momento era impensável.

Precedido por apenas um breve intervalo de crepúsculo, o sol lançou para


cima seus mais suaves raios, tingindo as nuvens que cobriam o horizonte
oriental. Logo, de seu leito oceânico, ele se ergueu majestoso em seu

58
[...] after going for some time through cool shady lanes, which terminated in an open airy plain, we had a most pleasing view
of the sea [...] (KINDERSLEY, 1777).
59
DUNDAS, 1852, p.219.
60
TOLLENARE, 1956, p.283.

170
caminho vertical, olhando para baixo em uma das cenas mais belas que a
natureza jamais apresentou aos olhos do homem. A vastidão ilimitada do
Atlântico a leste, – a ampla e bela baía no sul e oeste, com suas ilhas
cobertas de palmeiras e montanhas circundantes, – eram apenas um
primeiro plano apropriado para o adorável quadro da cidade [...] (KIDDER &
FLETCHER, 1857, p.492 – tradução nossa).61

Uma descrição rara do mar foi de Tollenare, em uma “gruta” no Porto da Vitória. Nele o mar,
apesar de geometricamente no centro de seu campo visual, era parte de uma paisagem
que, como nos cânones da época, se compunha de outros elementos:

Do fundo desta gruta, onde só se ouve o ruído das vagas o olhar vai se
perder no alto mar, depois vem encontrar a ponta de Santo Antônio da
Barra, onde há um convento fortificado que parece suspenso sobre o
abismo; percorre em seguida quase todo o contorno da angra, e vem
pousar com prazer sobre o rochedo ao pé do qual brota a fonte.
(TOLLENARE, 1956, p.300).

Ocupava um breve parágrafo de uma descrição mais longa, onde o francês devotou mais
tempo à descrição de lagartos e serpentes, dos pitorescos negros ao seu redor vistos sob
uma luz alciônica, e de ensaios de História Natural. Várias feições do litoral foram
contempladas em uma longa descrição, mas não o mar pleno.

A paisagem tinha ainda um outro componente: as ressonâncias sentimentais. A descoberta


ou valorização das grandes paisagens exteriores, por um mundo que se esquadrinhava
palmo a palmo, se fez concomitante com as paisagens da alma, que iam se diferenciando e
desdobrando com o desenvolvimento dos romances e a crescente leitura da sociedade, e da
inclusão das mulheres nessa massa de leitores. Certas paisagens arrancavam arroubos
poéticos; o elogio do sublime; o terror genuíno que, convertido em um prazer estético, era
sua própria fonte; ou a introspecção em várias formas. Não raro, e pela origem do conceito e
experiência daquele sentimento, com invocações ao Criador. Ele se manifestava com mais
freqüência e clareza com a fúria do mar, ao litoral ou em alto-mar. A clave do sublime abre a
possibilidade de apreciar o que do contrário seria monótono: “nada pode ser mais sublime
que o oceano; mas inteiramente desacompanhado, tem pouco de pitoresco”.62

[...] em um final de tarde, pudemos testemunhar um grandioso e


impressionante espetáculo da natureza. Grossos amontoados de nuvens
pairavam sobre o oceano, destacando-se vivamente contra o límpido céu
azul. Elevando-se vagarosamente, o colosso de nuvens formava aos
poucos um arco bastante largo, margeado com franjas tão brancas quanto a
neve. Na parte escura da tormenta, cruzavam raios de um lado para o outro.
No horizonte, despontava uma linha clara: naquele local, o mar já era
agitado pelos ventos da tempestade.

[...] Um fúnebre tom plúmbeo baixou sobre tudo e aumentou ainda mais a
sensação de medo que tínhamos daquele imenso fenômeno natural. O
trovão ribombava ininterruptamente, misturado ao ruído sibilante da rajada
de vento que se aproximava. Os relâmpagos, por sua vez, brilhavam de
encontro às edificações mal iluminadas e ao sombrio arvoredo. (HUELL,
2009, p.140).

61
Preceded by but a brief interval of twilight, the sun threw upward his mellowest rays, burnishing the wreathed clouds of
the eastern horizon. Presently from his bed of ocean he rose majestic on his vertical pathway, looking down on one of
the fairest scenes nature ever presented to the eye of man. The boundless expanse of the Atlantic on the east, – the
broad and beautiful bay on the south and west, with its palm-crested islands and circling mountains, – were but an
appropriate foreground to the lovely picture of the city herself [...] (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.492).
62
Nothing can be more sublime, than the ocean: but wholly unaccompanied, it has little of the picturesque. (GILPIN, 1808,
p.42).

171
E seguia ainda um tanto mais, encantado e assombrado pelas potências da natureza.
Pictoricamente a animação do mar fornecia material para a variedade nos quadros. Daí não
ser raro o mar em movimento, com o quebrar das ondas em regiões onde não sói acontecer
(Figs. 107 a 109).

Figura 107 – Vista de Salvador da Baía de Todos os Santos (1841), de Edmond Patten. Fonte:
ATHAYDE, 2008. Ocupando cerca de 1/3 da cena, o mar, o espelho d´água, para fornecer matéria
pictórica, precisa ter movimento. No caso das composições pitorescas, o espelho d´água plácida
serve aos pintores na medida em que refletem a distribuição de manchas luminosas do céu (nuvens e
céu claro) e das margens. Nesta vista frontal, há menos oportunidades. Agitado, o mar entra como
protagonista.

Figura 108 – A Cidade Vista da Bahia de Todos os Santos, de E.G. Müller. Fonte: ATHAYDE, 2008.
Também o mar aparece agitado aqui, de modo inverossímil, embora sem a importância do anterior.
Lá, as águas revoltas estavam em primeiro plano, e o frontispício, quase em terceiro. Aqui, ambos
aparecem mais “achatados”.

172
Figura 109 – Vista da Cidade Baixa – a partir do Forte de St. Alberto para a Península de Itapagipe
(1849), de Emil Bauch. Fonte: ATHAYDE, 2008. Outra composição dentro do arranjo já conhecido e
apresentado, com seus planos e os elementos que, em profundidade, os atravessam. O mar se
apresenta com ondas em choque como não ocorrem na região. Outra vez era uma exigência estética.

Charles Expilly reconhecia que esse fascínio pelos infinitos (o deserto, o oceano, a grande
floresta), o sublime, era um sentimento desenvolvimento pelo homem civilizado e urbano, e
não pelos seus nativos, premidos pela urgência da sobrevivência.63 Salvador não era
propício para tais situações do terror estetizado, tal como o Rio de Janeiro, com seus
severos alcantilados que se alcançavam por uma simples caminhada, florestas majestosas
e bruscas irrupções de água nativa, cachoeiras repetidamente descritas. A cidade não
operava nessa clave.

Enquanto aos ingleses e americanos trazia à tona a devoção direta às obras do Criador, os
aspectos propriamente românticos do sentimento estavam mais presentes nos escritores
alemães, quase que sua exclusividade, mesmo nos naturalistas mais objetivos. Neles,
vemos o mar sob reflexões mais existenciais, e mesmo cósmicas. Avé-Lallemant relatou de
panorama de Ilhéus, “um cenário da profunda paz dos palmeirais, à beira do oceano, no seu
eterno sussurrar”.64 Disse Maximiliano de Wied-Neuwied, na Vila Nova de Benevente: “o sol
mergulhava no oceano azul-escuro que se estendia à nossa frente, transformando-lhe a
imensa superfície num mar de fogo”.65 Em Vitória, no Espírito Santo, e em Porto Seguro,
panoramas lhe fizeram assinalar o caráter cíclico do movimento do mar, e nas redondezas
do Monte Pascoal, contornou “vários penhascos [...] enquanto o vasto espelho do oceano
resplendia magnificamente ao clarão do luar”.66

63
EXPILLY, 1977, p.158.
64
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.72.
65
MAXIMILIANO, 1958, p.136.
66
MAXIMILIANO, 1958, p.222.

173
3.2. Excursões e Passeios
Os estrangeiros passeavam e excursionavam: variavam os motivos, os meios de locomoção
e mesmo o alcance. Algumas de suas modalidades tinham tradições e formatos próprios.

Havia as jornadas de campo dos naturalistas, que surgiram com os botânicos ou


herboristas, uma tradição rapidamente incorporada pelos demais diletantes.67 Havia a caça
e a pesca, primeiro como entretenimento autônomo, depois parte das expedições científicas.
Havia as viagens pitorescas (picturesque travels), de gênese igualmente recente, com o
intuito de capturar belas cenas ou idéias visuais.68 Fora os passeios a cavalo, os
piqueniques, as garden parties e outras formas de convívio ligeiro.

Não eram atividades incompatíveis entre si: o lanche sob as árvores sucedia a uma caçada,
onde um conviva desenhava, outro estaria coletando espécimes para sua coleção.69
Excursionava-se para admirar as paisagens e as cenas cambiantes, conhecer o lugar, caçar
e montar coleções, para a contemplação solitária e para o convívio entre os patrícios. Maria
Graham no Rio de Janeiro, em proposta feita pelo Mr. Hayne e irmã de uma festa (party)
para ver o Jardim Botânico em 21 de dezembro de 1822. As caminhadas por locais
agradáveis eram vistos, se não como uma festividade, como algo com certo bulício: “íamos
ao desjejum nos jardins, mas como agora a temperatura estava quente, resolvemos primeiro
passear ao seu redor”.70 Todos carregaram algo de volta. Frutas e flores atraíram alguns.
Langford coletou besouros e uma borboleta “magnífica”, e Graham, um esboço da
paisagem. Em comparação com esse rol de motivos para deambular pela cidade, arredores
e região, chocava a Tollenare a indisposição dos brasileiros.71 Ver Huell mesclava
explicitamente a jornada pitoresca com aquelas do colecionista de História Natural:
“fazíamos grandes passeios por dentro e ao redor da cidade. Nestas ocasiões, eu
aproveitava para coletar as peças da história natural e para desenhar a natureza, algo com
o que o meu amigo também se ocupava”.72

O termo picnic tampouco esclarece muito, pois englobava uma grande variedade de
passeios. Maria Graham comenta sobre sua viagem a Itaparica que “uns poucos dias atrás,
um grupo de cavalheiros estava retornando de um picnic”.73 A nota constante era a refeição
trazida pelos próprios excursionistas:

No dia seguinte aproveitei a oportunidade de fazer uma excursão entre as


ilhas da baía. Um pequeno barco a vapor, de calado leve, foi anunciado
para a ocasião; às dez da manhã, a hora da partida, cerca de cem pessoas
tinham subido a bordo. A maioria dos passageiros parecia ser de
estrangeiros. Além de brasileiros e portugueses, grupos de ingleses,
alemães e franceses foram postos juntos; enquanto uns poucos norte-
americanos se recusaram. Cada grupo tinha suas próprias provisões,
antecipando um piquenique. (KIDDER, 1845b, p.61).74

67
ALLEN, 1978.
68
GILPIN, William. Three Essays: on Picturesque Beauty, on Picturesque Travel and on Sketching Landscape: with a poem, on
Landscape Painting. London: Printed for T. Cadell and W. Davies, Strand. 1808.
69
Aqui e lá. Nos field club ingleses, as tradicionais jornadas de campo dos naturalistas, de longa tradição entre os botânicos e
boticários, se mesclaram com outras formas de garden parties (ALLEN, 1978).
70
[...] we were to breakfast at the gardens, but as the weather is now hot, we resolved first to walk round them [...] (GRAHAM,
1824, p.162).
71
TOLLENARE, 1956, p.59.
72
HUELL, 2009, p.148.
73
[...] a few days ago, as a party of gentlemen were returning from a pic nic [...] (GRAHAM, 1824, p.143).
74
The next day I availed myself of an opportunity of making an excursion among the islands of the bay. A small iron
steamboat, of light draft, had been advertised for the occasion; and by ten o´clock, the hour of sailing, about one
hundred persons had collected on board. The majority of the passengers appeared to be foreigners. Besides Brazilians
and Portuguese, groups of English, Germans and French, were here thrown together; while a few North Americans
were not wanting. Each party had provided its own provisions, anticipating a pic-nic. (KIDDER, 1845b, p.61).

174
Na sua undécima carta, de setembro de 1764, dizia Kindersley: “estávamos muito deleitados
com nossa pequena excursão, que nos propiciou uma vista da rica, fecunda e bela, ainda
que quase não cultivada, região”.75 Naquele primeiro momento os estrangeiros que não
portugueses sofriam restrições, como deixa-los usar cavalos. Thomas Lindley e sua esposa,
retidos como contrabandistas, caminhavam a pé, causando reações singulares.76 Ver Huell,
igualmente forçado a ficar na cidade, realizou muitos passeios a pé. Depois se tornou
comum o passeio a cavalo, com todos os percalços da cidade. Candler e Burgess
informaram que “um comerciante espanhol nos chamou para propor uma excursão, e se
ofereceu para nos prover com cavalos para a jornada”.77

A Caça e a Pesca
A caça se mantinha como atividade moderna na Europa e Estados Unidos, e serviu como
arcabouço técnico para as coleções de animais e vegetais. Empregado mesmo nas
expedições mais vultosas. Isso não apenas em áreas remotas do interior do país. Passando
a comitiva de Maximiliano de Wied-Neuwied em Salvador, fez-se uma bateria de excursões
nos seus arredores, nos “vários pequenos vales [...] em que os meus homens realizaram
algumas excursões, matando animais interessantes, como por exemplo o pequeno sauí de
tufo de pêlos brancos nas orelhas”.78

Ver Huell fora convidado para uma caçada em Itaparica, e reconhecia suas limitações, “por
não ser propriamente um Nimrode”79. Abateu pessoalmente perdizes, depois se regalando
com melancias, com um banho de mar e um breve descanso antes de almoçarem as
perdizes que, apesar de “saborosas e nutritivas [...] careciam do agradável sabor de caça
das européias”.80 O holandês fora convidado ainda por ingleses para “uma assim
denominada festa de piquenique em um grande engenho de açúcar situado no continente,
na foz do rio Sergipe do Conde”.81 Fretaram uma lancha (denominada no original em
português) e passaram a noite no engenho de São José do Ribamar. O anfitrião os levou
por um passeio pelos arredores de sua propriedade e, no dia seguinte, ao amanhecer,
apreciou a paisagem, descrevendo com tintas idílicas: “não pude deixar de fazer um esboço
daquele cenário no meu caderno de desenhos”.82 Saindo daquele transe, foi caçar,
derrubando um tucano e tendo depois um entrevero desagradável com uma jibóia. Tollenare
descreveu uma caçada que fizera na Bahia, à procura de tatus e pacas, com os cães
emprestados por um oficial português, devidamente adestrados, e queixando-se das lianas
e arbustos da mata.83 Outra caçada empreendeu em Itaparica, nos singulares manguezais:
Permanecemos na ilha algumas horas ocupados em caçar nos mangues,
onde andamos descalços e enterrados na lama até os joelhos; lá apanhei
tanto sol que pelei todo e cerca de 30 bichos nos pés. Não é desta forma
que se deve visitar a interessante ilha de Itaparica. (TOLLENARE, 1956,
p.342).

Havia na cidade algumas criaturas do terror e da fantasia. Tollenare tentara caçar jacarés,
sem sucesso.84 Em Salvador, o locus reconhecido pelos estrangeiros dessa criatura, em

75
[...] we were much delighted with our little excursion, which afforded us a view of a rich, fruitful, and beautiful, though
almost uncultivated, country [...] (KINDERSLEY, 1777).
76
LINDLEY, 1805, p.111.
77
A Spanish merchant [...] called on us to propose an excursion, and offered to furnish us with horses for the journey [...]
(CANDLER, John & BURGESS, Wilson. Narrative of a Recent Visit to Brazil... London: Edward Marsh, Friend´s Book and
Tract Depository, 1853, p.53.)
78
MAXIMILIANO, 1958, p.466.
79
HUELL, 2009, p.216
80
HUELL, 2009, p.218.
81
HUELL, 2009, p.219.
82
HUELL, 2009, p.219. Esse passeio pela herdade repetiu-se em outro momento, quando visitou o engenho da ilha Cajaíba.
83
TOLLENARE, 1956, p.341.
84
TOLLENARE, 1956, p.63.

175
verdade espécies menores, era o Dique.85 Não eram descrições por observação; muitas
eram parte da fama e expectativa do local. O sublime tem seu momento explícito: “que
curiosidade sublime tinha [...] atrás de cada folha brilhante de uma planta aquática, podia
estar escondida uma cobra e o encrespar da água revelar a presença de um Jacaré!”.86 De
toda forma, em 1899, os jacarés já eram memória.87 Temia-se as cobras peçonhentas, como
a cascavel e a surucucu, e as constritoras, como a legendária sucuri e, mais acessível, as
jibóias, embora nem sempre com o contato direto.88

A pesca, uma grande ausente nos relatos, era para Ver Huell uma oportunidade para refletir
sobre as espécies:

Além dos nossos passeios à vela com a chalupa, divertíamo-nos também


com a pescaria. Com esta finalidade, compramos uma variedade de cestos
de pesca, em uso por aqui, que tinham a forma quase idêntica à de uma
caixa de chapéu de formato triangular, mas com um furo quadrado em cima
que depois se afunilava. Dentro deste cesto eram amarrados, como isca,
pedaços de toucinho de baleia cozido. Uma meia dúzia deles era atada a
uma linha e baixada até o fundo do mar com o auxílio de um peso,
enquanto, na outra extremidade, usava-se uma bóia (que servia também
para içar o conjunto). Era uma enorme satisfação, ao romper do dia,
podermos sair a pescar no nosso barco, ajudados pelo nosso Pietro.
Freqüentemente, fazíamos uma boa captura: toda espécie de peixe,
caranguejos e lagostas. (HUELL, 2009, p.130).

Esta eram jornadas mais trabalhosas. De maneira mais simples, “à frente da nossa casa, na
praia rochosa, aproveitávamos [...] para nos divertir de vez em quando com uma pescaria”.89
Facilitava morarem defronte ao mar, em Água de Meninos. Ali, em plena atividade portuária,
ainda que menos transformada que hoje, havia esse tipo de prática, de subsistência e lazer.

O Olhar Científico e os Passeios Botânicos


A Ciência era um interesse que perpassava a sociedade, como uma possibilidade de
existência individual, um projeto vital, por muitos compartilhado.

Muitos viajantes foram “cientistas”, pesquisadores (geólogos, botânicos, zoólogos) em


viagem solitária, liderando expedições ou acompanhando um outro líder (como fora
Habsburgo, que trazia cientistas em sua comitiva, e coletara espécimes diversos para o que
chamava de “seu museu”). Outros tinham amigos amantes das Ciências, e para eles
enviaram amostras. O diletantismo mais superficial foi comum e generalizado era o ato de
colecionar como um hobby, uma atividade dentre outras do viajante ou do residente, ou
daquele que, tendo uma fase de sua vida dedicada à História Natural, acabou por fixar-se na
terra. Mobilizava-se um repertório de ações existente, um modus operandi, sem o arsenal
metodológico para dar-lhes sentido. Em alguns casos o visitante montava coleções próprias.
Em outros, percebia ali uma riqueza, que coletava sem método para amigos, ou lamentava
não ter esse gosto, diante da oportunidade. Carl Linnaeus e George Louis Leclerc, o Conde
de Buffon, foram fundamentais para estabelecerem as teorias que organizavam as
intermináveis espécies que iam se encontrando. Igualmente montaram redes que recolhiam
exemplares de todo mundo.90 Indivíduos dedicavam suas vidas a essa idéia, valor e projeto,

85
HENDERSON, 1821, p.338; REBELLO, 1829, p.137; SPIX & MARTIUS, 2016, p.102; AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.24;
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.99.
86
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.99.
87
SILVA LIMA, José Francisco de. O Dique da Bahia. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Março
de 1899, Anno IV, Vol.VI. n.19. Salvador: Typ. e Enc. Empreza Editora, Rua do Corpo Santo, 80, p.15.
88
TOLLENARE, 1956, p.60; p.295; HUELL, 2009, p.168; p.219.
89
HUELL, 2009, p.146.
90
FARBER, Paul Lawrence. Finding Ordern in Nature: The Naturalist Tradition from Linnaeus to E.O. Wilson. Baltimore/
London: The John Hopkins University Press, 2000, p.6.

176
oriundos de vários estratos sociais, alguns com ardor evangelizador. Ver Huell desenhava
os peixes que pescava, capturando suas cores enquanto ainda vivazes, e enviava cópias ao
Conde de Lacepéde: “imaginei que [...] pudessem ser de alguma utilidade para aquele
famoso erudito que havia tomado para si a continuação dos trabalhos de Buffon”.91 Ele fazia
parte daquela rede planetária montada pelo naturalista francês.

Os interesses científicos implicavam em uma maneira própria de olhar. O interesse do


colecionador, ainda que sem formação mais especializada, foi fundamental para a atividade
escópica dos estrangeiros. Longe de concentrar-se em grandes panoramas, e no espetáculo
do sublime, seu olhar era também microscópico, atento a essa fauna iridescente ao seu
redor.92 O olhar científico incidiu sobre o litoral, e o baiano, de modos muito particulares.

Esse diletantismo científico é normalmente desprezado diante da ênfase nos aspectos


românticos de seu olhar. Embora pareçam hoje antitéticos, estavam inextricavelmente
relacionados, não sem suas tensões, na crescente especialização da Ciência e nos
desenvolvimentos próprios da Arte, rumo a caminhos mais impressionistas, ópticos.93

Desde já marquemos algumas ausências. Uma delas é a do projeto antropológico, de


encontrar, naquela franja de território, resquícios de populações idas, em uma miscelânea
com pouco ou nenhum rigor científico.94 Somente para termos de comparação, Ramalho
Ortigão, em seu heterogêneo elogio ao mar, e no proselitismo ali embutido para um modo
ativo e proveitoso de aproximação, intitulado As Praias de Portugal, apelava para esse
raciocínio: os pescadores de Ovar e Olhão seriam de tipo grego – fino, magro, elegante, de
perfil aquilino – e os de Póvoa de Varzim, saxônios – ruivo, olhos claros, ombros largos,
peito atlético, pernas e braços hercúleos – revelando grupos étnicos remanescentes das
levas migratórias antigas.95 No Nordeste brasileiro não havia interesse, nem orgulho
possível ademais; no máximo alguma anotação curiosa.96

Tampouco o entusiasmo com o estirâncio das praias arenosas, com aquela fronteira entre a
terra e o mar, o ambiente anfíbio e instável, e o fervilhar da vida ali presente.97 Algo disso
estava na descrição feérica de Habsburgo, mais da ordem da fantasia que da curiosidade
científica, dos manguezais.

Os europeus visitavam os jardins de aclimação, os hortos e jardins botânicos, os passeios


públicos, com um misto de interesse econômico e estético. O apelo estético não era purista
quanto à origem da vegetação. Tollenare em 1817, na casa de um agricultor em
Pernambuco, relembrou o seu lazer antigo, quando, dentre outras coisas, “partilhava [...] dos
vossos passeios botânicos”.98 Em passeios matutinos ao redor de um engenho
pernambucano, em uma “natureza virgem e sublime”, imaginando druidas em torno de
freixos, fazia suas coleções. Porém, repleto de “de amostras de vegetais; mas, não
dispondo de livros de botânica, não logrei aproveitá-las para um trabalho regular”.99 No seu
diletantismo via-se frustrado. Buscava entender algo que lhe escapava. Sem o aparato
científico, restava-lhe a fruição estética e as fabulações da imaginação, dentro do espectro
romântico: “à falta de instrução, consigo aqui vãs e fantásticas sensações”.100 Na França
havia tradição análoga ao dos passeios botânicos ingleses, que curiosamente correspondia
à própria estrutura da sociedade. Se na Inglaterra ocorreu a partir do impulso dos boticários,

91
HUELL, 2009, p.130.
92
PAZ, 2018a; PAZ, 2018b.
93
Mais disso foi desenvolvido em outro lugar (PAZ, 2018b).
94
CORBIN, 1989.
95
ORTIGÃO, Ramalho. As Praias de Portugal. Guia do Banhista e do Viajante. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1943.
96
WETHERELL, s/d, p.133.
97
CORBIN, 1989.
98
TOLLENARE, 1956, p.109.
99
TOLLENARE, 1956, p.62.
100
TOLLENARE, 1956, p.62.

177
em suas livres associações, na França, o interesse pela História Natural foi impulsionado
pela própria Coroa, onde importância da sociedade de corte e dos processos imitativos,
gestaram um interesse continuado, e tinha um ritual próprio: as demonstrações botânicas.
Ocorriam no Jardin du Roi, no Jardim do Rei, onde, com um cerimonial próprio, o público via
exercícios de identificação, coleta e uso das plantas, tornando-se popular ao longo dos
séculos XVII e XVIII e deflagrando uma botanofilia própria nacional.101 Tollenare, e o amigo
a quem se referia, estavam dentro dessa tradição.

Thomas Lindley, na aurora do século XIX, coletava plantas medicinais, como nos dias 29 e
30 de dezembro de 1802, embrenhando-se por matas a partir do Forte do Barbalho, e
chegando ao Matatu.102 Suas tardes eram gastas “passeando ao redor do forte, e
escolhendo as plantas mais curiosas”, sem encontrar, porém, “um guia sistemático para
dirigir nossos esforços botânicos”.103 Mas não apenas de utilidade vivia ou se entretinha
Lindley: “suportei o calor do meio-dia na tentativa de coletar algumas das muitas elegantes
borboletas e mariposas que abundam nessa hora”.104 Também Ver Huell iniciou uma
coleção de borboletas em Salvador.

Da fauna e flora do litoral atlântico há menções fugazes a orquídeas na restinga. É a única


atenção dada a esse lugar, das dunas brancas, e concentradas nas orquídeas e bromélias,
a parte daquela flora que encantava aos estrangeiros. Wetherell as descreveu rapidamente,
“numerosos tipos da família das orquídeas que crescem na areia, a poucos paços [sic] da
orla do mar”, epidendros, pequenos arbustos, cactos, bromélias, e lamentava-se não
conseguir transpantá-las: “tentei em vão, muitas vêzes, transplantá-las com o máximo
cuidado: elas jamais sobrevivem”.105

George Gardner, botânico, visitou a região do Bonfim aproveitou para ampliar sua coleção,
sendo o único a descrever o ambiente de banhados da Península de Itapagipe, em uma
clara jornada botânica.

Depois de deixar a praia, onde crescia a Sophora tormentosa e a Eugenia


michelii, dois arbustos comuns ao longo da costa brasileira, atravessei um
pântano contendo muitas espécies de plantas que eram novas para mim.
Depois disto, a estrada passava por uma baixada de areia seca onde não
se sentia um sopro de ar, e os raios do sol de meio-dia, refletidos na areia
branca, esquentava tanto a atmosfera, que eu quase me sufoquei antes que
pudesse alcançar a pequena elevação no seu outro extremo. Aqui também
eu enriqueci minhas coleções, e mais adiante encontrei a Ampherephis
aristata, semelhante ao cardo, crescendo normalmente nas bordas da
estrada; e algumas poças largas em um brejo, sob a sombra de arvoredos
de palmeiras gigantes, estavam bem cobertas com Pistia stratiotes [...]
outras poças eram alegradas com flores amarelas de Limnanthemum
humboldtianum. Depois de alcançar a praia caminhei ao longo dela por um
pequeno caminho, e então retornei ao barco por um trajeto diferente.
Passando através de um lugar pantanoso no sopé de uma colina, onde se
ergue uma grande igreja, encontrei uns poucos espécimes da bela
Angelonia hirsute, com seus espigões de grandes flores azuis. Depois
encontrei muitas novas espécies deste belo gênero, algumas das quais,

101
MUKERHI, Chandra. Dominion, Demonstration, and Domination: Religious Doctrine, Territorial Politics, and French Plant
Collection. In: SCHIEBINGER, Londa & SWAN, Claudia (ed.). Colonial Botany: Science, Commerce, and Politics in the Early
Modern World. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2007, p.28.
102
LINDLEY, 1805, p.121.
103
[...] in strolling round the exterior of the fort, and selecting the most curious plants; but find an immense, and
irremediable, want in having no systematic guide to direct our botanical endeavours [...] (LINDLEY, 1805, p.140.)
104
[...] I endured the noon-day heat, in endeavouring to collect a few of the many elegant butterflies and moths which
abound about this hour [...] LINDLEY, 1805, p.133.
105
WETHERELL, s/d, p.121.

178
criadas a partir das sementes enviadas por mim para casa, são agora
comuns em estufas. (GARDNER, 1846, p.76 – tradução nossa).106

Dos manguezais, encanto poético, e também admiração estética com conhecimento


científico das espécies, vemos com alguma constância em Habsburgo:

Por entre Rhysophora mangle, descobrimos malpíghias como árvores ou


arbustos, com reluzentes flores amarelas, semelhantes a orquídeas; aqui e
ali, exemplares de ingá, com suas folhinhas pontiagudas, com quatro ou
cinco folíolos; os talos alados e as flores esbranquiçadas, com o pedúnculo
curto, com os estames em chumaço pendendo para fora em abundantes
tufos. (MAXIMILIAN VON HABSBURG, 2010, p.86).

Havia muito pouco ou nenhum interesse na vida marinha propriamente dita. Nem no
pescado, visto sempre sob a ótica utilitária, quanto mais da flora marinha, das algas.

As únicas coleções, de profissionais ou diletantes, efetivamente realizadas de modo mais ou


menos sistemático no litoral brasileiro e baiano foram as de conchas. Havia uma procura por
conchas por parte dos estrangeiros. Sem um testemunho direto de um conquiliólogo, ao
menos existe a menção a um, pelo mesmo Wetherell: “tenho uma longa lista de sessenta e
seis variedades de conchas encontradas nos arredores da cidade por um senhor suíço que
se dedica a este tipo de pesquisas”.107 A Kidder, em uma excursão para a Ilha dos Frades,
sem mesmo desembarcar, belas conchas lhe vieram às mãos, presente de um dos
passageiros, o que lhe fez anotar que “algumas coleções esplêndidas, de conchas marinhas
e terrestres, foram feitas nas ilhas e praias desta baía”.108 Habsburgo mencionou muito
rapidamente as conchas como objeto de interesse minoritário na sua expedição. Estava
obcecado com a selva tropical virgem, e não com o mar, embora tivesse trajetória pessoal
como marinheiro. E as encontrou no mercado de Linchast “uma coleção inteira de conchas
despertou-nos grande interesse”.109 A venda das conchas no mercado, se indicava a
existência de um público comprador, também lhes amputava o contato direto com a origem
desse material.

Existia ainda o interesse geológico. A Geologia tinha prestígio social na Inglaterra, sendo
bastante comum entre membros de sua elite, mesmo em líderes políticos110, relacionando-
se com alguns dos mais cadentes debates dos séculos XVIII e XIX.111 Foi um dos principais
motores para a revalorização das falésias, primeiro na Grã-Bretanha e depois pelo mundo,
na medida em que sua revelavam em suas sucessivas camadas as várias fases da história
do mundo. A estratigrafia deixara de ser apenas um método científico e se tornara uma
modalidade do olhar. O litoral fora entendido desde a segunda metade do século XVIII como
local privilegiado para interpretar a estrutura geológica do planeta, “ler os arquivos do

106
After leaving the shore, on which grew Sophora tomentosa, and Eugenia Michelii, two shrubs common all along the
coast of Brazil, I passed through a marsh containing several species of plants that were new to me. Beyond this, the
road passed through a dry sandy hollow, in which not a breath of air was to be felt, and the rays of the mid-day sun,
reflected from the white sand, had so heated the atmosphere, that I almost suffocated before I could reach a little
eminence at the other end of it. Here, also, I enriched my collections, and still further on I found the thistle-like
Ampherephis aristata growing commonly by the road-sides; and some large pools in a marsh, under the shade of a
thicket of giant palms, were quite covered over with Pistia stratiotes [...]: other pools were gay with the yellow flowers of
Limnanthemum Humboldtianum. After reaching the shore I walked along it for a little way, and then returned to the boat
by a different route. In passing through a swampy place at the foot of a hill, on which a large church stands, I found a
few specimens of the beautiful Angelonia hirsute, with its long spikes of large blue flowers. I afterwards met with several
new species of this fine genus, some of which, raised from seeds sent home by me, are now common in hot-houses.
(GARDNER, 1846, p.76).
107
WETHERELL, s/d, p.112.
108
[...] some splendid collections, both of marine and land shells, have been made on the islands and shores of this bay [...]
(KIDDER, 1845b, p.61).
109
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.202.
110
ALLEN, 1978.
111
NICOLSON, Marjorie Hope. Mountain Gloom and Mountain Glory – the development of the aesthetics of the Inifnite. New
York: The Norton Library, 1959.

179
mundo”.112 Salvador, e a Baía de Todos os Santos, circunstancialmente não se prestavam
para esse espetáculo das entranhas da terra. Ainda assim o olhar geológico apurado de
alguns viajantes assinalava algo, embora nada surpreendente. Um entrelaçamento
importante era o dos fósseis, necessariamente encontrados nos estratos geológicos, e
concebidos de início como espécie de eflorescência mineral.

Ao longo do mar, como por exemplo no Passeio Público e em Itapagipe,


surge a formação de grés cinzento, muito quartzífero, contendo lignite com
visível estrutura vegetal, carvão de pedra e, às vezes, também volutites e
outras conchas, transformadas em calcedônia, contendo, ainda encerrados,
animais marinhos de espécies que ainda existem. (SPIX & MARTIUS, 2016,
p.140).

Outras descrições desses fósseis na região de Itapagipe se repetiram na segunda metade


do século XIX, com a vinda de expedições científicas propriamente ditas, embora sem
grandes descobertas. Nas rochas da baía eram abundantes as espinhas de peixe e, vez por
outra, ossos de dinossauros e dentes de répteis, como crocodilos113 (Figs. 110 a 113).

Figura 110 – Sketch-map of a part of the vicinity of Bahia (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT,
1860. O olhar geológico, aplicado a Salvador, gerou suas peças gráficas, identificando seus pontos
particulares de interesse. Neste caso, os fósseis encontrados em Montserrate e Plataforma.

112
CORBIN, 1989, p.109.
113
ALLPORT, Samuel. On the Discovery of some Fossil Remaqins near Bahia in South America. In: Quarterly Journal of the
Geological Society of London, v.16, n.1-2, p. 263-266. London: Longman, Green, Longmans, and Roberts, 1860; HARTT,
1870; LAMBERT, C & S. The Voyage of the “Wanderer” from the Journals and Letters of C. and S. Lambert. Illustrated by
R.T. Pritchett, and Others. London: Macmillan and Co, 1883.

180
Figura 111 – Section across the Gneiss Hills north of Bahia (1860), de Samuel Allport. Fonte:
ALLPORT, 1860. As convenções próprias da descrição técnica – de uma Ciência em
desenvolvimento e especialização – assinalam o que era de seu particular interesse. Aqui, seções
(“cortes”, no sentido arquitetônico) nas localidades dos engenhos Cabrito e Plataforma, mostrando a
constituição das elevações adjacentes.

Figura 112 – Section of the Cliff at Montserrate (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT, 1860.
Seção específica da colina onde está o Forte de São Felipe ou Montserrate.

Os cortes no terreno realizado por obras de engenharia foram importante ocasião para esse
olhar geológico.114 Na Inglaterra, a construção das hidrovias e depois das ferrovias.115 Em
Salvador, as obras da ferrovia ao longo da costa interior da baía propiciaram essa exposição
geológica a cientistas de passagem, assim como para se alcançar o Forte de Santo Antônio
da Barra, bordejando o Morro do Gavazza, se fez necessário um muro de arrimo avançando
sobre a praia e um corte no próprio outeiro, revelando a natureza da rocha.116

114
ALLEN, 1978.
115
BELL, Colin & BELL, Rose. City Fathers: the early history of town planning in Britain. Harmondsworth, Middlesex, England:
Penguin Books, 1972.
116
HARTT, 1870, p.340.

181
Figura 113 – Fossils from Bahia (1860), de Samuel Allport. Fonte: ALLPORT, 1860. E representações
realistas, herdadas das Artes Plásticas, mas adaptadas à exigência da descrição fiel das Ciências,
dos modestos fósseis encontrados na Península de Itapagipe e Subúrbio Ferroviário.

Os Lugares Visitados
Denis recomendava “dois passeios agradáveis” aos estrangeiros (e anotava que eram
desestimados pelos habitantes da cidade): “um prolonga-se ao longo do belo lago,
conhecido pelo nome de dique, e que rodeia a cidade em semicírculo, de modo que quase
completamente a separa do continente; o outro é o passeio público, ou jardim público”.117 Já
vimos sobre a visita dos estrangeiros ao Passeio. Maria Graham percorreu os vales,
começando pelo Dique:

Terça-Feira, 18 – Eu andei com Mr. Dance e Mr. Ricken ao longo das


margens do lago, decididamente o mais belo cenário desta bela região; e
depois através dos bosques selvagens, onde todo o esplendor da vida
animal e vegetal brasileira eram exibidos. A plumagem berrante dos
pássaros, os tons brilhantes dos insetos, o tamanho e forma e cor e
fragrância das flores e arbustos, vistos quase sempre pela primeira vez, nos
encantaram [...] (GRAHAM, 1824, p.143).118

Esse espelho d´água, além de local do terror por possíveis répteis ameaçadores, era tido
como um paraíso entomológico: “vendo as brilhantes espécies, em um simples passeio [...]
às margens da Lagoa de São Salvador, vos faz participar, prontamente, do entusiasmo que
se apossa dos colecionadores”.119 Ver Huell, morando perto por algum tempo, sempre fazia
ali “uma boa captura de soberbos insetos”.120 Em carta de 2 de dezembro de 1856, disse

117
DENIS, 1980, p.250.
118
Tuesday, 18d. – I rode with Mr. Dance and Mr. Ricken along the banks of the lake, decidedly the most beautiful scenery
in this beautiful country; and then through wild groves, where all the splendours of Brazilian animal and vegetable life
were displayed. The gaudy plumage of the birds, the brilliant hues of the insects, the size, and shape, and colour, and
fragrance, of the flowers and shrubs, seen mostly for the first time, enchanted us [...] (GRAHAM, 1824, p.143).
119
DENIS, 1980, p.94.
120
HUELL, 2009, p.168.

182
Clark que encontrou “alguns belos insetos na margem de tal lago”.121 Era também local
privilegiado para os mui queridos beija-flores.122 Dizia José Alvares do Amaral que era
“muito apreciado pelos Estrangeiros que o visitam”.123 O Dique era acedido com facilidade a
partir de vários pontos da cidade. Por outro lado, os demais espelhos d´água, charcos e rios,
estavam muito distantes das caminhadas partindo da cidade. A mesma fauna estaria lá,
apenas invisível aos viajantes.

Na Península de Itapagipe, Montserrate e a colina do Bonfim, não raro alguma parte da


jornada se fazia por barco. Maria Graham os visitara.124 Parish Kidder fora de saveiro, e
também de barco aportara ali Gardner.125 A outra ponta da mesma península, Penha e
Ribeira, recebeu menos atenção, e em função dos estaleiros. Ver Huell ao visitar seu amigo
Fanchette revelou que “às vezes, esticávamos aquelas excursões às margens opostas da
península [...] onde pequenos barcos costeiros eram construídos em diversos estaleiros”.126
Sendo um homem da Marinha, e ademais holandês, de sólida tradição prática e artística
quanto aos portos e atividades navais, não seria estranha essa afinidade. Ele e seus
amigos, com embarcação própria e tempo livre, estavam em uma situação única, e
freqüentemente iam a Itapagipe, entre outras coisas para banhos de mar. Mas costumava
visitar entusiasmado a região por conta de seu interesse pela História Natural.

Instado por D. Violante a visitar sua roça na região da Calçada, o holandês aceitou a
contragosto porque “àquela altura [...] eu já havia começado uma coleção de borboletas e,
portanto, justamente na esperança de aumentar a minha coleção, finalmente decidi aceitar o
eu convite”.127 Encantando-se com a vegetação exótica (laranjeiras, mangueiras, coqueiros,
tamareiras, trepadeiras) e com as criaturas mais importantes para os estrangeiros
(borboletas e colibris), exclama: “que deleite para um apreciador da história natural!”128,
passando horas e horas naquela propriedade. E ao retornar de suas jornadas, dedicava-se
a pôr “em ordem os insetos que havia armazenado, desenhando algumas lagartas ou
plantas que encontrara na floresta, trabalhando nos meus desenhos já esboçados,
escrevendo em meu diário ou então executando outras atividades científicas”.129

Essa coleção crescia com investidas freqüentes a outro lugar, a roça do amigo Fanchette,
também na península, próximo ao Bonfim “a cada vez, eu aproveitava para aumentar a
minha coleção de borboletas”.130 São atividades constantes de Ver Huell, em uma espera
indefinida e em uma cidade exótica, basicamente: passear, colecionar e desenhar. A visita a
este amigo era um dos seus passeios preferidos.

Enquanto percorríamos o vale, aquela agradável e recôndita área


sombreada por onde fluía um marulhante ribeirinho, arrastava o espírito em
repousante devaneio. Ali, a ramagem das soberbas mangueiras, coberta
com aromáticos cachos de flores, pendia até o topo da abundante relva na
forma de uma cúpula; nas proximidades, avistava-se a jaqueira com os seus
grandes frutos ligados diretamente ao tronco. Além destas árvores, também
encontrávamos aqui conjuntos de laranjeiras com flores e frutos dourados e
as elegantes bananeiras com as suas largas folhas. [...]

121
We found some nice insects by the side of that pool [...] (CLARK. Hamlet. Letters Home from Spain, Algeria, and Brazil
during Past Entomological Rambles. London: John van Voorst, 1867, p.105).
122
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.92.
123
AMARAL, José Alvares do. Resumo Chronologico e Noticioso da Província da Bahia Desde o seu Descobrimento em 1500.
2ed. Revisto e Consideravalmente Annotado por J. Teixeira Barros. Salvador: Imprensa Official do Estado, Rua da
Misericórdia, n.1, 1922, p.395.
124
GRAHAM, 1824, p.143.
125
KIDDER, 1845b, p.87; GARDNER, George. Travels in the interior of Brazil... London, printed and published by Reeve,
Brothers, King William Street, Strand, 1846, p.76.
126
HUELL, 2009, p.155.
127
HUELL, 2009, p.142.
128
HUELL, 2009, p.142.
129
HUELL, 2009, p.169.
130
HUELL, 2009, p.155.

183
O azul profundo do céu tropical alvorece em meio à folhagem recoberta por
uma delicada penugem e as esguias palmeiras que erguem com altivez as
suas férteis coroas por cima de todo o resto. Completando o cenário,
pássaros e borboletas, brilhando com as mais vivas cores, planam em toda
parte. (HUELL, 2009, p.151).

Esta era a textura, por assim dizer, da elevação que se levantava de Montserrate e em cujo
alto estava a igreja do Bonfim. Ver Huell visitara áreas exuberantes que foram
transformadas pela mão humana; Gardner, bastante próximo a estas, passeava por
alagadiços mais próximos do preexistente.

O percurso pelas ilhas da baía poderia ser um périplo, como a visita a Cachoeira e São
Félix, e seus arredores, ou a Santo Amaro, como fizera Knight.131 Podendo ser
complementada com a estadia em alguma casa-grande. A navegação a vapor facilitou tais
viagens. Itaparica, ilha e vila, foi lugar de excursões exclusivas.132 Ver Huell foi a uma
excursão a Santo Amaro, mas as condições eram particulares. Ele e seu amigo J. C. Baud
foram convidados por um conhecido francês radicado na Bahia, o “fazedor de penachos
Louis”, que ia resolver um problema de ordem prática, de uma quantia que tinha a receber
de um comerciante português.133

Um roteiro habitual de Ver Huell era da praça de São Pedro até a ponta de Santo Antônio da
Barra.134 Descia desde o Largo da Vitória, por um caminho cuja descrição não coincide com
a Ladeira da Barra (talvez mesmo aponte que este foi obra de aterro considerável). Assim
chegava ao Outeiro de Santo Antônio e, passando de lá, chegava ao Porto da Barra, à
“aldeia de pescadores denominada Santo Antônio”, e depois ao foral, “situado num rochedo
em um remoto lugar da baía”.135 Como também valorizava o caminho para a Igreja de Nossa
Senhora da Graça, ambos “dos mais encantadores passeios que se pode imaginar”.136 E por
mar (eram marujos), em sua chalupa, faziam “passeios à vela na baía, sobretudo no final da
tarde”.137

Robert Dundas, alcançando por caminhos internos o povoado de São Lázaro, comentou
sobre casa ali situada e sua vista: “a terra ao redor é muito bonita; a vista do mar é
magnífica”.138

Mas o lugar mais visitado pelos estrangeiros era o Rio Vermelho, alcançado por um caminho
longo, repleto de atrações para o visitante. A vila de pescadores era o fim de uma toada, de
uma partitura específica. Kidder lhe visitou: “o percurso era lindamente ornamentado por
coqueiros e outras árvores e arbustos nativos”.139 Praticamente não fala daquela vila de
pescadores e do seu entorno imediato. Os coqueiros ornamentavam o caminho, e não a
vila. Retornando pela praia para a Barra, não fala nada do trajeto. John Candler e Wilson
Burgess já falaram algo diferente. Chegaram a uma “aldeia à beira-mar, habitada por
pescadores [...] A aldeia estava cheia de coqueiros”, e deles o que fala, somente, é que se
regalaram com “porções do refrescante líquido” de cocos recém-plantados.140 Avé-Lallemant
incluiu, em um registro raro, o encanto pelas ondas do mar, e por sua espuma. Não sem

131
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.56; KIDDER, 1845b, p.61; KNIGHT, 1884, p.69.
132
KIDDER, 1845b, p.61
133
HUELL, 2009, p.184.
134
HUELL, 2009, p.170.
135
HUELL, 2009, p.156.
136
HUELL, 2009, p.156.
137
HUELL, 2009, p.127.
138
[...] the country around is very beautiful; the sea view magnificent [...] (DUNDAS, 1852, p.219).
139
The route was beautifully ornamented by coqueiros, and other indigenous trees and shrubs. (KIDDER, 1845b, p.23).
140
[...] we came to a village by the sea-side inhabited by fishermen [...] The village was scattered over with cocoa-nut
palms [...] (CANDLER & BURGESS, 1853, p.53).

184
antes apresentar uma leitura cinética do percurso, em que, após “cenários de ramarias”,
com esporádicas moradias rústicas, ouviu

a rebentação e o bramir do mar. Logo se divisa através da folhagem,


trechos do Oceano; o elemento azul-escuro destaca-se suavemente contra
o verde-escuro das ravinas. Uma esplêndida vegetação de palmeiras
esforça-se para suplantar outra vegetação em volta ou para sufocá-la. As
copas das palmeiras curvam-se muito acima das franças das demais
árvores, e as ciciantes folíolos das imensas folhas sussurram levemente,
agitados pelo sudeste. O caminho desce aí para a praia; nesta, entalada
numa garganta, fica a freguesia do Rio Vermelho com bonitas e alegres
casas, bem protegidas contra a arrebentação do oceano por agudos
rochedos, por entre os quais o elemento verde do mar se transforma em
nívea espuma, murmurando ininterruptas melodias. (AVÉ-LALLEMANT,
1961, p.24).

Os coqueirais não eram uma característica própria do local. O Morro do Conselho estava
desnudo, como apontara Hartt141, formando “em cima, na sua chã relvosa livre, um pequeno,
maravilhoso belvedere do qual se pode contemplar com igual prazer a terra e o Oceano”142.

Garden Parties e Similares


Embora o termo picnic designasse apenas uma excursão somada a uma refeição, não o
descartamos como forma de diversão campestre, a céu aberto, como as fête champêtre,
nome tomado de antiga prática aristocrática francesa e empregado por estrangeiros não-
franceses e brasileiros. Algumas em áreas particulares, nas roças. Wetherell em 1855
assinalava que “durante o verão os piqueniques são uma grande fonte de divertimento nas
tardes de feriados” e acrescenta que “geralmente se realizam à beira-mar”.143 É nessa clave,
de um lazer campestre à beira-mar, mas não necessariamente na praia, que entendemos
Maria Graham quando diz:

Domingo 28 – Mr. Pennel gentilmente marcou a data para nos oferecer uma
festa no campo, e por isso alguns de nossos jovens foram ajudar a levantar
as tendas, &c.; mas um erro de cálculo das marés e do tempo e um
equívoco quanto à factibilidade de aportar em um trecho da praia além do
farol, provocaram uma série de aventuras e acidentes, sem o qual eu
sempre ouvi que nenhuma fête champêtre seria perfeita. Seja como for,
nossa festa foi aprazível. Em vez de tendas, fizemos uso de uma casa de
campo chamada Roça, onde a beleza da localização, dela mesma e do
jardim compensavam o que quer que pudéssemos pensar de romântico das
tendas caso tivessem sido erguidas. (GRAHAM, 1824, p.146 – tradução
nossa).144

Fora planejada uma fête champêtre no litoral atlântico, provavelmente no Rio Vermelho,
inviabilizada por entreveros particulares, e a festa se trasladou para uma roça. Também no
litoral disse Dundas: “Mrs. D., esposa de um comerciante britânico, chegou recentemente da

141
HARTT, 1870, p.333.
142
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.24.
143
WETHERELL, s/d, p.88.
144
Sunday 28th. – Mr. Pennell had kindly fixed to-day for giving us a party in the country, and accordingly some of our
young people were to go and assist in putting up tents, &c.; but a miscalculation of tide and time, and a mistake as to
practicability of landing on part of the beach beyond the light-house, occasioned a variety of adventures and accidents,
without which I have always heard no fête champêtre could be perfect. However that may be, our party was a pleasant
one. Instead of the tents, we made use of a country-house called the Roça, where beauty of situation, and neatness in
itself and garden, made up for whatever we might have thought romantic in the tents, had they been erected.
(GRAHAM, 1824, p.146).

185
Europa, no melhor da vida, e casada há poucos meses, esteve em uma fête champêtre à
beira-mar”.145

Tais práticas campestres ocasionaram uma certa confusão na interpretação do que


Tollenare viu, em 1816, em Pernambuco, quando saía da ilha de Santo Antônio pelo aterro
ao sul, chamado Afogados, onde viu cabanas rústicas feitas de palha;

Não conhecendo os costumes do país, supuz fossem senhoras da cidade


que tivessem vindo se recrear sob estas habitações temporárias, as
mulheres vestidas de finas musselinas bordadas que encontrei deitadas
sobre esteiras à porta das cabanas; fui tentado a lhes tirar o chapéu. Não
passavam de gente miserável de quem a elegante camisa de musselina
forma todo o enxoval. (TOLLENARE, 1956, p.39).

Num primeiro momento, lhe ocorreu que estariam em cabanas pitorescas senhoras da
sociedade, em idílio campestre. Na realidade, eram choças precárias de pessoas pobres,
vivendo da mariscagem, que por sinal também enxergou bucolicamente.

Sem dados maiores, os locais mais prováveis eram a Barra, acessível a uma caminhada
não muito longa e acessível, a partir da Vitória, ou o Rio Vermelho. Outros locais dessa
costa, como Amaralina, só se tornaram ocasião para piqueniques no começo do século XX.
Dundas descreve São Lázaro como lugar dileto para passeios dos ingleses e outros
estrangeiros. Pela sua “magnífica” vista do mar, e pela beleza da região, era escolhida
“como o passeio vespertino favorito dos ingleses e demais estrangeiros residentes. É
também freqüentemente usado durante o dia para diversões ao ar livre, retornando ao cair
da tarde”.146 Na povoação haveria apenas uma boa casa, de um mercador português, não
ocupada e emprestada aos estrangeiros que a solicitassem.147 Distinguia Dundas duas
atividades: festas (possivelmente, garden parties) e excursões mais ligeiras.

O Rev. Daniel Parish Kidder foi recebido pelo Rev. Edward J. Parker, que lhe convidou para
um passeio a cavalo até uma pequena casa que usava para veraneio no Rio Vermelho, sem
que necessariamente fosse de sua propriedade.148 Nesse momento era prática corriqueira
na sociedade baiana a segunda residência de verão, e já apareciam nas bandas do litoral
atlântico, pelos próprios locais.

Nas áreas verdes das herdades maiores – que os locais chamavam sempre de roça, e os
visitantes, de jardins – havia garden parties, como aquela que Graham mencionou, solução
emergencial para os percalços da fête champêtre. Maximiliano de Habsburgo encontrou
uma propriedade interessante às margens do Dique:

Em volta, enormes jaqueiras e coqueiros isolados, carregados de frutos,


com as copas entrelaçadas de trepadeiras, faziam sombra fresca em redor
de um casarão senhorial, cuja varanda dava para os vales verdes e por
onde passava a brisa marítima, enquanto sua fachada, voltada para o
Dique, era inteiramente ocupada por arbustos floridos e flores aromáticas.
Seu proprietário, um francês que deve ter prosperado por meio de negócios
ilícitos, e agora, por castigo, está-se arruinando rapidamente, teve o bom-
senso de não cercar medrosamente sua vila, nem considerar toda aquela
área propriedade sua. A tudo isso se une a natureza magnífica, formando,
nesse local, um imenso parque, cuja bacia d´água é o Dique.
(MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.110).

145
Mrs D., wife of a British Merchant, lately arrived from Europe, in the prime of life, and married but a few months, had
been out at a fête champêtre on the sea coast. (DUNDAS, 1852, p.217).
146
It is therefore chosen as the favourite evening ride of the British and other foreign residents. It is also frequently resorted
to, for the day, by parties of pleasure, who return to the city in the evening. (DUNDAS, 1852, p.219).
147
DUNDAS, 1852, p.219.
148
KIDDER, 1845b, p.23.

186
Ao menos aos olhos do príncipe austríaco, observava-se uma predileção pelas áreas verdes
e pelo espelho d´água abaixo, convergindo com fins utilitários, com o plantio. Ali ele viu, em
outra ocasião que “o entardecer magnífico atraiu uma alegre sociedade para o prado verde.
Senhoras vestidas de branco circulavam por ali, e uma criança muito linda e bem alva era
carregada por uma ama preto-azeviche, sob a brisa fresca”.149

3.3. A Residência dos Estrangeiros


A Vitória, constante na historiografia baiana, apresenta um problema a ser entendido. Eleito
pelos estrangeiros como local preferencial para sua residência após a Abertura dos Portos,
os motivos escópicos, o apreço da paisagem litorânea, seria central para tal escolha. Depois
seriam imitados por baianos de posses, selando o destino da Estrada da Vitória como bairro
aristocrático da cidade.

No início do século XIX eram os bairros prósperos da cidade a Praia, onde estavam os ricos
comerciantes, e ainda São Bento. Na cidade em expansão, Vilhena assinalava Palma e
Desterro. Sem poder precisar como acontecia essa distribuição da riqueza no território,
importa que não eram os lugares que se consagrariam no século XIX. Neste há uma
mudança, tanto pela transformação direta do solo, como pela alteração dos fatores
ambientais valorizados, e a melhoria dos meios de transporte na sua segunda metade,
permitindo maiores distâncias. Os estrangeiros desempenham um papel nesta mudança.

Os portugueses em verdade foram o contingente de maior fluxo, com maior constância, ao


longo do século XIX, trocando o papel de colonizador para o de imigrante.150 Como herança
imediata do passado colonial, tinham forte presença no comércio, dominando-o antes da
Independência. Por mais que houvesse surtos de animosidade, de antilusitanismo, essas
levas se fundiam com a cidade.151 Distribuíam-se nas famílias e espaços consolidados,
reforçando o componente lusitano da cultura baiana, sem nenhuma ruptura da ordem social,
dos hábitos, e da distribuição espacial. E tinham importância comercial que não deve ser
desprezada.152 Estes portugueses costumavam ocupar a região portuária, criada por aterros
nos séculos XVII e XVIII, com contínuo adensamento. Do século XVIII ao XIX a população
do Pilar aumentara, e Marcos Paraguassu de Arruda Câmara acredita pela ocupação
intensiva a partir do aterro entre Água de Meninos e Jequitaia, e depois dali até os Mares,
no segundo quartel do século XIX.153 A esse vetor de expansão rumo a Itapagipe
retornaremos em momento oportuno. Arruda Câmara cogitava uma diferença etológica,
cultural, entre as distintas nacionalidades, nas preferências ambientais, que não pôde
aprofundar: aos portugueses seria bem-vinda a Cidade Baixa, junto com seus próprios
estabelecimentos comerciais, não sem seus luxos. Aos franceses, reunirem-se em hotéis e
restaurantes. Aos ingleses, morar na Vitória e percorrer a distância, dado que seus negócios
estavam também na Cidade Baixa, a cavalo.154 Estes foram os estrangeiros mais importante
nas primeiras décadas do século XIX, pioneiros na ocupação de certas frentes que, agindo
como uma comunidade organizada e fisicamente definida, alavancaram a ida para seus
bairros de outros estrangeiros e baianos depois.

149
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.148.
150
BARBOSA, Rosana. Um Panorama Histórico da Imigração Portugesa para o Brasil. In: Arquipélago – História, 2ª série, VII
(2003), pp173-196.
151
GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O Antilusitanismo na Bahia do Primeiro Reinado (1822-1831). 2015. Tese
(Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2015.
152
João José Reis (1986, p.27) argumenta que no começo do Oitocentos eram vitais e que a debandada dos grandes
comerciantes, pelas guerras de independência e seus efeitos, impactaram consideravelmente a economia baiana.
153
CÂMARA, 1989, p.128
154
CÂMARA, 1989, p.139.

187
Figura 114 – Maison habitée par des Anglais, environs de Bahia (1836-9), de Vistas, usos e costumes
do Brasil (Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe Fonte: Fundação Biblioteca
Nacional. As moradias dos ingleses eram compradas ou alugadas de edifícios anteriores, de
portugueses e brasileiros. Este desenho revela o que era mais do que uma sede de fazenda simples,
pelos seus pavimentos. O entorno é campestre, porém. Defronte, no canto direito, o que era comum
nas moradias dos estrangeiros, ao menos dos seus cônsules – a bandeira nacional.

Figura 115 – Maison particulière a Bahia, de Ernest Jaime, em Brazil Pittoresco de Charles
Rybeirolles. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Esta seria um palacete de um nativo, em linhas
gerais. Tampouco tinha a feição de um sobrado urbano, das áreas mais densas. Era um palacete
naquela área periurbana, com jardins frontais, e ao fundo, ou grande quintal ou pequena roça.

188
Figura 116 – Consulat Suisse (1837). Fonte: Brasiliana Iconografica. Esta parece ser uma construção
mais sólida que a anterior, menos palacete, e mais quinta. E o entorno, roça com árvores de certo
porte. Em 1845, o cônsul suiço era Augusto Decosterd, que tinha residência no Canela.

A questão é de etologia urbana, portanto: se os ingleses na Bahia escolheram o sítio de


suas moradias a partir de valores ambientais próprios e como essa eleição influenciou nos
rumos da história da cidade.

Os ingleses, ao escolher o lugar onde vão morar, quase sempre preferem


uma posição de onde se possa desfrutar uma vista sobre o mar. Observar a
chegada e a partida dos navios é sempre uma das razões para a escolha de
tal localização na Bahia; mas os navios vêm com tal regularidade e
freqüência, que esse interesse já desapareceu. Uma outra razão é o
sentimento de querer agrupar-se em pequenas comunidades.
(WETHERELL, s/d, p.112).

Da Vitória poderia ver-se os navios entrando pela barra da baía e chegando ao porto. Não
seria igualmente prático como era para os imóveis da área portuária. A distância vertical da
praia e, mais importante, dos ancoradouros, não permitiria um acompanhamento mais
imediato, como ocorria às famílias ligadas ao comércio que viviam nos andares acima das
lojas, na Cidade Baixa.

Algo desse apreço estaria no espetáculo do pitoresco, das embarcações. E tampouco


poderia ser a única razão, do contrário estariam ombro a ombro com os portugueses na
Praia. Se tomarmos a afirmação de Kidder sobre Petrópolis, muito longe do mar e dos
hábitos dos ingleses ali – “os ingleses geralmente procurando as alturas”155 – o ponto seria
menos a vista do mar e dos barcos, e mais as alturas. Ou pelo menos, vê-los do alto.

Mas tampouco poderia ser apenas isso. Denis, já no começo do século XIX, apontava os
lugares preferidos pelos estrangeiros a Vitória, “gracioso promontório, de onde se avista a
baía”; os arredores do Forte de São Pedro, em especial “as casas construídas à beira-mar”,
e os Barris.156 No momento descrito por ele, encontramos sinais esparsos de uma inclinação
dos estrangeiros para a região dos Barris e do Garcia, nas muitas roças que desciam seus

155
[...] the English generally seeking the heights [...] (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.300).
156
DENIS, 1980, p.249.

189
terrenos até o grande Dique abaixo.157 Vejamos algo sobre a urbanização da área entre o
Campo Grande e o Largo da Vitória, para ter insumos sobre o assunto.

Vilhena, quando descreve a freguesia da Vitória, cita pouco mais que os estabelecimentos
religiosos, sem aparecerem ainda as casas de campo que tanto caracterizariam o Largo e a
Estrada da Vitória no século seguinte.158 Da mesma maneira nenhuma menção a edifícios
mais importantes na região aparece no relato de Thomas Lindley.159 Ver Huell ficou um
tempo no Campo Grande, que estava “pitorescamente situada no sul da cidade, era arejada
e muito aprazível” e “cercada de uma exuberante natureza”.160 Prenunciava a admiração dos
demais estrangeiros. Tollenare morou por um tempo mais adiante, no largo da Vitória, em
uma “casinha humilde”, com pequeno jardim ao fundo, no quintal, separado dos demais por
limoeiros.161 Num arroubo poético, enumerou as virtudes do lugar, ideal para uma vida
romântica e ociosa, a principal delas ser um meio-termo com as “comodidades da cidade e
todas as vantagens de um campo delicioso sob o melhor clima do mundo”.162 Denis, quem
apontava os lugares de predileção dos estrangeiros, têm sua obra publicada em 1822, com
observações seguramente do final dos 1810. Nas décadas seguintes não houve tanto lugar
para “casinhas humildes”. Wetherell foi quem melhor descreveu o processo de urbanização
da área e sua raiz sociológica na procura dos estrangeiros:

Os aluguéis, por esse motivo, quase duplicaram e os moradores se


contentam com pequenas casas nos arredores de Vitória, por preços que,
em qualquer outro lugar, lhes permitiria viver em casas muitos maiores. Por
esta razão, a construção tem aumentado muito nesta parte da cidade, e as
casas são alugadas logo que estejam prontas. (WETHERELL, s/d, p.112).

O largo da Vitória já tinha sobrados em época tão temporã, em 1818: “arrenda-se no lugar
da Victoria, subúrbio desta Cidade huma casa de sobrado, com o espaço de 22 braças de
quintal em fundos, e 9 de largo”.163 Iniciava-se um processo de arrendamento de
propriedades naquela região para estrangeiros. Na edição de 20 de dezembro de 1811,
tratava-se de “arrendar as Casas do Coronel Nicoláo Carneiro da Rocha de Menezes no
principio do caminho que vai para a Victoria”.164

Essa urbanização conviveu com roças na Estrada da Vitória até décadas mais tarde. Em
1839, por exemplo, José da Silva Marques arrendava “roça na estrada da Victoria”.165 Em
efeito, as “roças” eram uma propriedade intermediária entre as casas urbanas (como
sobrados e solares) e seus quintais, e os sítios e fazendas, podendo ter o porte da casa de
vivenda, como em quintas, ou ser casas térreas, algumas de teto de palha. Quando os
estrangeiros se referem a country houses, designavam tais roças na grande maioria dos
casos, de brasileiros, que lhes eram alugadas ou vendidas (Figs. 114 e 115). Como esta de
1856: “vende-se uma roça na estrada da Victoria, lado do mar, terras proprias, caza de
morar, sanzalas, estribarias e cocheira”.166 Sobrados (ou seja, casas com mais de um
pavimento), de perfil mais urbano, podiam encabeçar roças próprias, como em 1839: “aluga-
se ou vende-se uma casa de sobrado, com sua roça, sita à quina da Victoria”.167 A ocupação
157
Estes sinais são apenas indicativos, e não há como nos aprofundarmos neles por ora.
158
VILHENA, 1922a, p.36.
159
Essa mudança urbana, a partir da ausência de menções em Tollenare e Lindley, fora assinalada por Jan Maurício Oliveira
Van Holthe (2002) e Moema Parente Augel (Visitantes Estrangeiros na Bahia Oitocentista. São Paulo: Editora Cultrix, 1980).
160
HUELL, 2009, p.168.
161
TOLLENARE, 1956, p.295.
162
TOLLENARE, 1956, p.302.
163
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.79, Sexta-Feira 2 de Outubro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
164
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.64 Sexta-Feira 20 de Dezembro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva.
165
O CORREIO MERCANTIL n.233, Quinta-Feira 31 de Outubro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
166
O GUAYCURU n.722, Quinta-Feira 13 de março de 1856. Salvador: Typ. de Guaycurú, à ladeira da Fonte dos Padres,
casan.º 604, 1856.
167
O CORREIO MERCANTIL n.173, Segunda-Feira 19 de Agosto de 1839. Salvador: Typ. Do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.

190
da Vitória, apesar das chácaras, era rarefeita, na medida em que ainda em 1856 na Estrada
da Vitória, e do lado do mar, havia roça com sua senzala.168

Mas os líderes daquela comunidade de ingleses, os homens mais prósperos e importantes,


se radicaram ali. Maria Graham assinalava no começo dos anos 1820 o endereço do cônsul
inglês na Estrada da Vitória, como dos comerciantes conterrâneos.169 Robert Elwes foi
hospedado em 1848 por 14 dias na casa do cônsul Edward Porter.170 Candler e Burgess
foram abrigados em 1852 por outro conterrâneo, Robert Baines.171 Elwes, como Dundas,
confirmava que era a residência da maioria dos comerciantes ingleses.172 Lambert afirmava
que era no entorno do Campo Grande, tomando-o como ponto de referência, nas últimas
décadas do século XIX.173

Havia uma inclinação para lugares elevados, mas disto não diferia substancialmente das
ocupações iniciais portuguesas. A vista a um corpo d´água – o mar ou o Dique, sempre
descrito como um lago – poderia brindar alguma qualidade paisagística, como vimos. Mas
outros elementos nos indicam que, sim, a vista para o mar era um valor para os estrangeiros
em termos locacionais.

Encontramos essa orientação em outros lugares. Dentro da série de anúncios que


gradualmente revelavam a aparição de um critério escópico para eleição da residência, eis
que vemos em 1830 um estrangeiro assinalar claramente sua predileção, como um padrão
norteador: ao longo de toda a Montanha, gostaria de uma vista a cavaleiro da baía: “precisa-
se de uma casa pequena para um estrangeiro, que tenha vista de mar, e que seja do largo
do Theatro até a Victoria”.174 As hospedarias podem nos contar algo. É de 1845 anúncio que
apontava como parte duas qualidades de uma pensão as suas possibilidades escópicas. Na
Rua da Gameleira, n.10, apresentava-se como uma das melhores situações da Cidade, com
“magnífica vista de mar”.175 Embora a pensão pudesse ser nacional – o mais usual era o
proprietário ser um estrangeiro –, o seu público forçosamente eram os estrangeiros. A vista
ao mar seria uma benesse, mais importante que aquela outra, também bem-vindas, da
paisagem com espelhos d´água doce. Mas não teria sido apenas essa valorização a
responsável por aquela urbanização sui generis, do Campo Grande à Barra (Figs.117 a
121).

Também era o local tido como bastante agradável (e saudável) pela constante brisa e efeito
da vegetação: “a altura é suficiente para evitar o calor da Cidade Baixa, e obter o benefício
da brisa marinha”.176 Tollenare foi o primeiro, e talvez o único, a incluir os cursos d´água
como parte do cenário romântico da freguesia da Vitória: “neste estreito espaço rasgam-se
seis pequenos vales deliciosos”.177 Não devemos desprezar a possibilidade de penetrar em
tais vales para passeios, caçadas e outras formas de usufruto, como fizera Ver Huell,
“andando sobre o espaçoso largo com a intenção de penetrar na mata”.178 O cenário
daquela cumeada era de árvores luxuriantes: mangueiras, bananeiras, jaqueiras,
gameleiras, e, acima delas, orquídeas e outras epífitas, que muito encantaram os
estrangeiros. Para Kidder lá estavam “os mais belos jardins que a Bahia oferece, os

168
Por “senzala” não se deve pensar automaticamente em um tipo edilício, e um arranjo entre construções, similar ao das
fazendas e engenhos, podendo designar simplesmente o lugar de moradia dos escravos, talvez dentro do mesmo edifício
(WEIMER, Günter. Inter-Relações Afro-Brasileiras na Arquitetura. Porto Alegre: EDIPUCRS/ Champagnat PUCPR, 2014).
169
GRAHAM, 1824, p.134.
170
ELWES, 1854, p.92.
171
CANDLER e BURGESS, 1853, p.47.
172
ELWES, 1854, p.92; DUNDAS, 1852, p.248.
173
LAMBERT, 1883, p.45.
174
O CORREIO MERCANTIL n.468, Sexta-Feira 18 de maio de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
175
ALMANACH PARA O ANNO DE 1845. Salvador: Typ. de M.A. da S. Serva, 1844, p.239.
176
The elevation is sufficient to avoid the extreme heat of the lower town, and to get the benefit of the sea-breeze. It is
considered a healthy situation. (OUSELEY, 1852, p.13)
177
TOLLENARE, 1956, p.295.
178
HUELL, 2009, p.168.

191
caminhos mais encantadores, e a maior sombra”.179 A Habsburgo o resultado daquele lugar
lhe soava tipicamente inglês:

O local, com suas casas de campo e jardins, os caminhos dos arredores


como aleias de parques, a vegetação de um verde viçoso, os grupos
gigantescos de árvores, a exuberância da natureza e o conforto introduzido
pelo homem fizeram-me lembrar a encantadora região de Richmond, às
margens sombreadas do Tâmisa, e as inúmeras Cottages, envoltas de
flores, de Claremont e Twickenham. (MAXIMILIANO DE HABSBURGO,
1982, p.112).180

Figura 117 – Vista do Forte de São Pedro (1859). Fonte: ATHAYDE, 2008. Esta é a área aberta a sul
do Forte de São Pedro, absolutamente mais rural, na mesma época, e pelo mesmo pintor. Não havia
tal azáfama, tantas figuras ao mesmo tempo – moleques, solados, aguadeiros, carregadores,
cadeiras de arruar. Se cada uma das figuras – moleques na rua, mulheres de capona, vendedores
ambulantes – é verdadeira, sua simultaneidade, não.

Esse ambiente fora em parte modelado pela mão britânica, tornando-o sumamente
agradável para seus gostos. A urbanização da área foi resultado da ação contínua daquela
comunidade. Em 1846 já estava em andamento obras na Estrada da Vitória e dois anos
depois se anunciava seu nivelamento e calçamento.181 Na segunda metade do século XIX
seria uma das primeiras a receber benfeitorias e as novas tecnologias urbanas. Porém as
mudanças mais extremas se deram no Campo Grande. Houve um conjunto de complexas

179
[...] the finest gardens that Bahia affords, the most enchanting walks, and the most ample shade. (KIDDER, 1845b,
p.61).
180
E reconhecia-lhes um traço cultural próprio, destacando-os dos demais europeus setentrionais pelo quanto se deixavam
cercar de vegetação para brindar conforto: “é necessário terem-se visto a força da vegetação da Inglaterra num belo dia de
sol, e a quantidade de plantas estrangeiras, cuidadosamente reunidas em volta de cada Cottage, o especial bom gosto com
que se faz sobressair a natureza” (MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.111).
181
O GUAYCURU n.156, Sábado 7 de Fevereiro de 1846. Salvador: Typ. do Gaycuru, de D.G. Cabral, à rua do Bispo, n.45,
1846; FALA..., 1848.

192
operações realizadas para regularizar e urbanizar aquela área, uma antropização que não
implicou necessariamente em se opôr à vegetação.182

A aquisição de uma área plana como a do atual Campo Grande se fez com muito esforço,
devido às ravinas que avançavam de mais de uma direção. Por isso que o Campo Grande,
em 21 de outubro de 1830, foi um dos locais designados pela Câmara Municipal, para ser
depósito de lixo e aterrados pelo entulho.183 Das obras da praça propriamente dita, terra foi
retirada da margem leste da atual praça, que era elevada, onde depois estaria a casa do Dr.
Pacífico Pereira e mais tarde o Teatro Castro Alves.184 Anos depois, em 1846, o nivelamento
do Campo Grande ainda se sentia como uma necessidade.185 A obra, incluindo a
pavimentação dos caminhos com macadame, encerrou-se em 15 de janeiro de 1865.186 A
topografia geral da área foi modificada, com a retirada de terra das ruas Bom Gosto e
Canela para aterro do vale ao lado e nivelamento das ruas ao redor do Forte de São Pedro,
além de movimento de terra na Rua Banco dos Ingleses e nivelamento do Largo dos
Aflitos.187 Quem de fato conduziu tal empreendimento foi o Rev. Edward J. Parker, por meio
de mão-de-obra de escravos apreendidos e à disposição da Província, e de seu presidente,
Francisco Gonçalves Martins.188 O papel do sacerdote foi reconhecido por William Hadfield
em 1854, durante as obras, inclusive nos rumos daquelas transformações, das quais
destacamos a arborização, ato consciente que reforçava o caráter bucólico do lugar, já dado
pelas antigas chácaras com sua vegetação, e com os novos jardins.189 As novas árvores
plantadas foram primeiro cultivadas na varanda da casa da capela anglicana, pelo próprio
Reverendo, e depois levadas à nova praça, seguindo seu próprio traçado.190 Nesse Campo
Grande verde sabemos que se jogava críquete nos anos 1870, como fez a tripulação do
H.M.S. Challenger, com os jovens anfitriões do Bahia Cricket Club191 (Figs. 117 a 121).

Aquela contemplação do mar a cavaleiro tinha então essa vantagem de ocorrer em área
verde, tornada ainda mais verde, mais frondosa, pela ação diligente dos ingleses.

182
Consuelo Novais Sampaio (2005, p.80) acredita que o esforço provincial se dera em torno de atender à elite que para ali se
deslocava. As transformações urbanas do século XIX se relacionam, em boa medida, aos interesses das classes
mandatárias e, também, solventes, como se verá. O que não retira o papel do Rev. Parker nas transformações daquele
lugar.
183
Mais precisamente, “na baixa do Campo grande de S. Pedro em direção a cerca lateral de Silvestre José da Silva” (O
IMPARCIAL BRASILEIRO n.106, Sábado 30 de Outubro de 1830. Salvador: Typ. Imperial e Nacional, 1830).
184
BOCCANERA JR., 1905, p.112.
185
O GUAYCURU n.156, Sábado 7 de Fevereiro de 1846. Salvador: Typ. do Gaycuru, de D.G. Cabral, à rua do Bispo, n.45,
1846.
186
AMARAL, 1922, p.28.
187
FALLA..., 1853, p.43. Do entorno imediato do Forte de São Pedro, de que falou Denis, devemos entender mais esta
vertente, onde temos um histórico de intervenções urbanas de porte orientadas pelos britânicos, e de toponímia, e não tanto
na outra vertente.
188
FALLA..., 1852, p.19
189
HADFIELD, William. Brazil, The River Plate, and the Falkland Islands... London: Longman, Brown, Green, and Longmans,
1854, p.127.
190
BOCCANERA JR. Sílio. Páginas de História. O Campo Grande da Bahia – Sua origem – Dívida de honra. Dezembro de
1903. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Anno XI, Vol.XI. n.30, 1904. Salvador: Typ.
BAHIANA, de C. Melchiades, Rua do Arsenal da Marinha, 25, 1905, p.112. Parte dessas árvores seriam derrubadas pelo
governo alguns anos antes da escrita do texto de Sílio Boccanera Jr.
191
THOMSON, 1877, p.144; SPRY, W.J.J. The Cruise of her Majesty Ship “Challenger”... New York: Harper & Brothers,
Publishers, 1877, p.91.

193
Figura 118 – Campo Grande (1873). Fonte: WILD, 1878. A ilustração a que sempre se apela para
mostrar os britânicos jogando críquete no Campo Grande.

Figura 119 – Banco dos Ingleses – Bahia, cartão-postal da Magasin Loureiro, foto de Rodolfo
Lindemann, sem data, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. A foto é revela a mudança
expressiva de tipos edilícios, e estratos sociais, à medida em que desce o flanco da Montanha.
Acima, os palacetes dos Campo Grande. Na outra seção da rua, descendo, casas térreas, com porta
e duas janelas, e suas águas furtadas. E, mais abaixo, casebres.

194
Figura 120 – Colline de la Victoria (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Na ilustração,
simplória em sua execução, mostra-se como se viam aquelas chácaras na cumeada da Vitória.

Figura 121 – Bahia Cidade de S. Salvador, vista do ancoradouro dos navios de guerra (1864), Th.
Muller & Gluck. Fonte: REBOUÇAS, 2016.

195
Porém as raras descrições dos arredores a norte da Cidade Alta não diferem
substancialmente em termos da vegetação e vales pitorescos. D. Pedro II em 1859 disse
que o caminho para Pirajá, apesar de pouco cultivado, tinha “belas mangueiras, e craveiros
da Índia”,192 e Avé-Lallemant discorria:

Enquanto os jardins acima citados, com sua exuberância de flores, são mais
peculiares ao sul da Bahia, a norte da cidade é notoriamente menos
procurada e apreciada. Na parte norte, a cidade não se dissolve num
aristocrático cenário teatral dum Campo Grande e duma Vitória, e sim
chega-se paulatinamente às últimas casas, para encontrar então ainda, sob
belas palmeiras e gameleiras, algumas habitações em forma de verdadeiras
cabanas e trechos de mata, onde ressoam notas puras da Natureza. Nada
mais se percebe da vizinhança duma grande cidade; muito longe dali, o
ruído do mundo nobre, e quem aspira ao sossego e gozo na Natureza, sem
artifício, lá pode encontrar a mais agradável das estâncias. (AVÉ-
LALLEMANT, 1961, p.24).

Ali também aparecem os córregos e espelhos d´água, alguns mesmo produtos da mão
humana, remanescentes dos tanques dos antigos engenhos.

A ação britânica modelou algo da região da Vitória e Campo Grande para seus gostos. Mas
o ponto de partida não seria uma diferença ambiental marcante em detrimento de outras
áreas ao longo do flanco da Montanha. Wetherell, porém, levantava o “sentimento de querer
agrupar-se em pequenas comunidades”. Como não poderiam estar distribuídos por todos e
quaisquer lugares que atendessem àquelas qualidades ambientais, temos que, somadas a
estas, o gosto por viver junto criou um reforço mútuo, onde uma primeira escolha
sacramentaria o local da colônia.

Por isso que não apenas os ingleses prósperos escolheram o lugar para sua morada. Já na
época de Tollenare o lugar era “quase que exclusivamente ocupado por estrangeiros e
burgueses da Bahia”.193 Nos anos seguintes, outros viajantes testemunharam o mesmo, da
presença mais geral dos estrangeiros de posses.194 Wetherell assinalava o efeito
multiplicador da escolha inglesa, “tentados pelas vantagens e pela beleza desses locais,
outros estrangeiros – os alemães em particular – também vêm morar nessas alturas”.195

A distribuição espacial dos alemães na cidade guardava relação com sua distribuição
econômica. Os comerciantes de menor importância, como caixeiros-viajantes, espalharam-
se pela cidade: Santo Antônio, Preguiça, Unhão, Lapa, Barris, Mercês, Piedade, São Pedro,
e assim sucessivamente.196 Os mais prósperos, com prestígio crescente na cidade,
moravam preferencialmente nas bandas ao sul da cidade: Piedade, Aflitos, Garcia, Canela e
Graça, e em especial no Campo Grande e a Estrada da Vitória, onde instalaram suas
instituições, e se congregaram como uma comunidade.197 Lohmann, um dos muitos
cônsules alemães que recebeu Maximiliano de Habsburgo, alugara casa na Vitória.198 Aliás,
o príncipe ironizou, aludindo também à divisão política alemã: “em cada casa da Vittoria
ergue-se para o céu o mastro inevitável, já que cada uma delas abriga um cônsul
qualquer”.199

192
D. PEDRO II, 1959, p.71.
193
TOLLENARE, 1956, p.302.
194
BERTRAND, Arthur. Lettres sur l´Expedition de Saint-Hélène en 1840. Paris: Paulin, Éditeur, Rue de Seine-Saint-Germain,
33, 1841, p.55; WETHERELL, s/d, p.54; DUNDAS, 1852, p.248; SCULLY, 1868, p.351; SUZANNET, 1957, p.187.
195
WETHERELL, s/d, p.112.
196
RABELLO, Evandro Henrique. Deutschtum na Bahia: a trajetória dos imigrantes alemães em Salvador. 2009. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009, p.93.
197
RABELLO, 2009, p.91.
198
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.111.
199
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.79.

196
Vivia também na Vitória o cônsul francês, que hospedara Suzannet.200 E, em 1847 pelo
menos, Alex S. Tyler, o cônsul norte-americano, perto do cônsul inglês, Edward Porter, e
também dos Estados Unidos, de Boston, era um fornecedor de mercadorias para os navios,
de acordo com Samuel Greene Arnold.201 Em 1845 residia o interino do cônsul inglês,
Breton Whately; dos Estados Pontifícios, Giuseppe Carena; e Vice-cônsul da Sardenha,
Antonio José Armando.202

As roças e suas casas de vivenda vendidas e alugadas eram originalmente de brasileiros, e


era a Vitória relativamente similar a todos os demais arrabaldes de perfil rural. A instalação
de uma burguesia efervescente de estrangeiros, com todos os seus ritos sociais próprios,
atraiu baianos de posses para suas primeiras residências, como o Senador e Conselheiro
de Estado Francisco Gonçalves Martins, com sua “sua magnífica residência, no Campo
Grande, em Vitória”.203 Naquele momento uma série de comerciantes brasileiros ou
portugueses tinham ali sua primeira residência. Como aqueles comerciantes filiados como
sócios na Associação Comercial, João Antonio Moreira, Joaquim José Rodrigues, José
Antonio d´Araujo (este, diretor das Fábricas Úteis, fábrica de papel situado no antigo
Engenho Cabrito, na Enseada do Cabrito) e Manoel José Gonçalves Lemos. E, mais
significativo, um número não desprezível de desembargadores e juízes vivia nas
imediações. As indicações do Almanach não fornecem exatamente as coordenadas sociais
do indivíduo. Se a propriedade era própria e de bom tamanho, ou alugada e modesta.
Apenas a importância do cargo pode nos indicar algo da posição social do indivíduo. E,
mais, fornecem apenas (quando fornecem) a primeira residência, não as demais
propriedades, as segundas residências, seja uma simples roça usada para o veraneio
eventual, seja a chácara de maior porte ou mesmo a fazenda com casa de vivenda mais
robusta. O espraiamento da cidade é desfalcado de uma tipologia edilícia e fundiária de
transição.

O que vemos é que a Estrada da Vitória e seu Largo ao final começaram a ser habitada com
primeiras residências a partir de chácaras e sítios preexistentes, considerando aceitável a
distância ao seu trabalho no Comércio. Na segunda metade do século XIX, em especial no
último quarto, já são baianos que vivem também naquelas imediações. Firmara-se como
bairro “aristocrático” na cidade. Ou seja, além daqueles fatores que condicionaram a
presença localizada dos ingleses, temos a socialização, facilidades dadas pelo encontro e
convívio entre aqueles pares, e o prestígio criado pela comunidade e transferido para os
locais, que estabeleceram a realimentação positiva de sua urbanização.

Porém existe algo singular. No bojo das transformações da região, o mesmo Rev. Parker
impulsionou a conexão da Vitória e da Graça à Barra, a Povoação da Barra, por meio de
dois caminhos: o antigo Caminho da Floresta ou Caminho da Aguada, depois Estrada da
Graça204, descendo o que será a Av. Princesa Isabel, a cargo da Província, e a Estrada de
Santo Antônio, depois parte da Av. Sete de Setembro, hoje chamada Ladeira da Barra, obra
sob encargo da Câmara Municipal.205 Ambas contudo sob “direcção do súbdito Inglez o

200
SUZANNET, 1957, p.187.
201
SILVA, 1952, p.4.
202
ALMANACH..., 1844.
203
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.30.
204
PESSÔA, Yumara Souza. O Mar como Testemunha: a modernização do bairro da Barra (1850-1950). Tese (Doutorado em
Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2017.
205
Em 1838 aparecia um anúncio de venda de carro de quatro rodas por “Luiz Salvador Gersent, morador à ladeira da Barra de
Santo Antonio” (O CORREIO MERCANTIL n.540, Sábado 25 de Agosto de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de
M.L. Velloso e Comp.. 1838). Ou se tratava de algum trecho desse caminho, já assim chamado, ou de algum outro caminho,
ainda que improvável, anterior à obra mais extensa capitaneada pelo reverendo anglicano. Talvez se referissse ao trecho
que margeava a meia-encosta do Outeiro de Santo Antônio, hoje desaparecido, mas visível em algumas gravuras, e que
terminava na antiga entrada principal do Forte de São Diogo.

197
Padre Parker”206, e em algo custeada pela própria comunidade britânica e eventuais
interessados207 (Figs. 122 e 123.

Figura 122 – Ladeira da Barra (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988. Aqui se vê com
mais clareza a parte mais difícil das obras: o corte do morro e a descida, brusca, e que exigia cortes
também, no último lance da Ladeira, para alcançar o Largo do Porto da Barra. O caminho anterior
seguia pela meia-encosta do Outeiro de Santo Antônio, chegando pela antiga entrada do Forte de
São Diogo.

A questão que se levanta é: por que a comunidade britânica investiu em melhoramentos nos
acessos para a Barra? Para o Campo Grande, seu playground, fazia sentido, assim como
na Estrada da Vitória e mesmo a Estrada de Santo Antônio é compreensível pensando-se
apenas na localização de seu Cemitério. Porém esta obra por completo, e a Estrada da
Graça, são benfeitorias à Barra, conectando-a com a cidade e não com a Vitória. A não ser
que a urbanização do Porto da Barra e adjacências de algum modo beneficiasse os
comerciantes ingleses, seja por estabelecimentos já instalados, seja para melhoria ou
valorização de algo na iminência de ocorrer.

206
FALLA..., 1851, p.16.
207
A obra da Estrada entre a Graça e a Povoação da Barra, de cujo trabalho fora incumbido o Padre Inglês E.J. Parker se acha
quasi concluída, muito se devendo à dedicação deste Estrangeiro, saindo mais de metade das despezas de donativos
particulares, que elle próprio agenciaria; e a outra parte dos Cofres da Provincia, que em casos semelhantes auxiliará
sempre os esforços individuaes: recolhendo-se a vantagem de ser a obra feita mais economicamente no seu todo pela
superioridade da fiscalisação particular, e por concorrerem os Cofres Publicos com uma pequena parte somente. (FALLA...,
1850, p.28).

198
Figura 123 – Ladeira da Barra (c.1885), de Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988. A mesma via,
agora com pavimentação.

Os desenhos anteriores do Porto, na sensibilidade prévia à do pitoresco, eram em sua


maioria frontais, sem cores ou manchas, somente linhas, em um inventário dos recursos e
dos aspectos, importantes em termos econômicos e militares. O mar não tinha presença.
Ganha naquela modalidade de valorizar a experiência visual que se articulava com a
pintura, com a jardinagem paisagística e com literatura. Nesse momento, nos quadros
efetivamente desenhados ou o mar é um espelho, adicionando riqueza e variedade, ou entra
na composição como matéria pictórica, revoltoso. Ainda não obtivera sua autonomia, mas
era fundamental para a beleza paisagística. Em Salvador, ademais, pela característica
singular da falha geológica, permitindo amplos mirantes a cada tanto, com os dois andares
da cidade, a falésia verdejante, cortada por ladeiras e pontuada com edifícios caiados de
branco, e as reentrâncias do litoral interior. O litoral ganhava espessura e conteúdo próprio,
como situação e tema das pinturas, simultaneamente. Até porque a cidade representada
como tal, ao estender-se por aquela cumeada, estava em boa parte dentro dessa faixa. A
cidade era beira-mar, era bordo marítimo, ao menos sua parte central, e seu espraiamento
rumo ao sul.

O olhar científico não encontrou em Salvador material de trabalho que justificasse uma
maior presença. Mesmo a conquiliologia pareceu ajustar-se à comodidade de vendas
próximas, no Porto. Passeios botânicos se deleitaram com a vegetação próxima – com os
alagadiços de Itapagipe, e com a flora em transformação, cultivada, das roças e sítios – mas
relativamente pouco com a restinga e manguezais, ao menos nos registros. Que se
colecionaram espécimes destes biomas seria provável, dada a dificuldade que Wetherell
encontrava. Mas há presença muito escassa nos documentos.

199
Os estrangeiros excursionavam e divertiam-se pelos arrabaldes da cidade, à beira-mar
inclusive, ou atravessando a Baía de Todos os Santos. Sem dados que nos permitam
discernir épocas e modalidades mais próprias, não se pode duvidar de sua constância.
Veremos se houve a possibilidade de alguma influência nos hábitos dos baianos. Mas foi
nas próprias residências que tiveram uma influência mais perceptível na história urbana de
Salvador.

Até então a cidade era compacta, com suas funções sobrepostas ou vizinhas, como as
casas também o eram: trabalho e residência estavam a poucos metros de distância, ou no
mesmo edifício. Por um lado, o processo de diferenciação urbana, da separação da
residência e do trabalho, parece ter algum pioneirismo em certos estrangeiros, que
aceitavam como normal essa situação, como ocorria no Rio de Janeiro.

Muitos dos estrangeiros residentes, particularmente os ingleses e


Americanos, estabeleceram suas famílias em alguns dos extensos
subúrbios da cidade, e vão e voltam de manhã e de tarde. (KIDDER, 1845a,
p.96 – tradução nossa).208

A escolha do entorno do Campo Grande, Barris, Garcia, Canela e Vitória fundava-se na


clara dissociação entre o local de trabalho e moradia. Aqueles ricos comerciantes tinham
seus estabelecimentos majoritariamente na Cidade Baixa, em volta do porto.209 Havia na
cidade essa separação, mais altimétrica que planimétrica: a falésia da Montanha, com todas
as dificuldades para superá-la. Os estrangeiros aceitavam a distância, significativa para
aquele tamanho de cidade, mais as péssimas condições das ruas sem pavimentação e
irregularidade das declividades. Essa população distante e importante, forçada por sua
própria escolha a esse movimento pendular, foi crucial como demanda para a melhoria do
transporte. Para que o Campo Grande, Vitória e Graça fossem locais privilegiados na
nascente rede de transporte coletivo, até pelo seu grande público solvente. O
desenvolvimento do porto também asfixiou o uso residencial do entorno ao longo do século
XIX, estando bastante esvaziada ao final do Oitocentos.210 Mas esta descrição do fenômeno
ainda está incompleta.

Muitos estrangeiros seguiram a primeira inclinação dos ingleses que, por sua vez, incluíam a
vista a cavaleiro do mar como um dos fatores bem-vindos nessa seleção, embora não de
modo exclusivo. Foram essenciais na urbanização do Campo Grande, Estrada da Vitória,
Vitória e, ainda mais importante, dos acessos à Barra. Transformaram os ambientes de
modo pioneiro, em torno de um dos grandes espaços públicos da cidade, o Campo Grande.
E deviam ter, em alguma medida, o papel de referências da “civilização”; algo que os
franceses podiam sê-lo em seu próprio país ou em livros, mas não in loco.

Visto isto, cabe entender no que consistia a sensibilidade dos brasileiros.

208
Many of the foreign residents, particularly the English and Americans, locate their families in some of the extensive
suburbs of the city, and go to and fro morning and evening. (KIDDER, Daniel Parish. Sketches of residence and travels
in Brazil, embracing Historical and Geographical Notices of the Empire and its several provinces Vol.I. Philadelphia:
Sorin & Ball, 42 North Fourth Street. 1845a, p.96).
209
BERTRAND, p.55.
210
HOLTHE, 2002, p.25.

200
201
4
O Deleite dos Luso-Brasileiros

O que constituía um bom lugar dentro da cultura luso-brasileira? Quais características


ambientais eram visadas, prévias à transformação humana, e quais eram almejadas pela
mão humana, e em que medida estas se realizavam à beira-mar?

Nos perguntamos sobre os luso-brasileiros pois não encontramos distinção entre os


portugueses e os brasileiros no Brasil Colônia e no período enfocado para os termos do que
pesquisamos aqui. A cultura ainda era muito similar nesse país em formação. O fluxo de
portugueses, colonizadores e depois imigrantes, era constante. E, sobretudo, os
governantes eram essencialmente portugueses.

Na situação anterior, daqueles estrangeiros (ingleses, franceses, alemães, norte-americanos


e holandeses), abundavam documentos. Relatando, porém, em sua maioria as impressões
dos viajantes. Em poucos casos tínhamos mais detalhes de seu cotidiano na Bahia, quanto
mais daqueles que nos interessariam mais, os estrangeiros residentes. De toda maneira
estes registros constituíram no século XIX um corpus de literatura inabarcável, coletando
impressões de todo o orbe. Neles, a possibilidade crescente da reprodução de ilustrações, e
a formação artística dos escritores e de parte de seus leitores enfatizavam a conexão entre
pintura e escrita. Até nos escritores mais talentosos, naqueles de cultura que abrangia
civilizações, como Sir Richard Burton, encontramos a aplicação dos mesmos protocolos nas
descrições das paisagens dos autores mais medíocres.1

O meio estimulava a expressão, mesmo que autêntica, no intento de atender a uma platéia
virtual, que premiava e estimulava os que tinham maior verve literária ou quem mais atendia
ao gosto pelo exótico, criando novas convenções e novos patamares de exploração da
sensibilidade. No Brasil não havia nada disso, nos séculos anteriores, esse mercado e
fórum, essa esfera pública impressa. E aqui precisamos abordar a relação entre a
linguagem e a mentalidade, para entender esse fenômeno, e explicitar os procedimentos
desta parte da pesquisa.

Em termos bastante esquemáticos, no Iluminismo entendia-se a linguagem, escrita e falada,


como representação de idéias formadas por inteiro na mente humana. A partir do
Romantismo alemão, a linguagem passou a ter certa autonomia. Ela era a condição
indispensável para o próprio pensamento, a abertura de suas possibilidades e sua limitação,
até porque os processos mentais se dariam pela linguagem conhecida, ou seja, não seria
esta apenas uma representação exterior mas a própria substância interior do pensamento.
Esta é uma versão simplificada, já que as várias pessoas que participaram desse debate ao
longo dos séculos tinham visões mais nuançadas. Mas o esquema tem alguma validade
pelo simples fato de ser, vez por outra, herdado e adotado, mesmo nos dias de hoje.
Incorporou-se este como um dos fundamentos da Revolução Romântica, aquela tradição
alemã que deu origem, entre outras coisas, à própria História Cultural.2

1
PAZ, 2018b.
2
A melhor definição que encontramos é de Ernst Robert Curtius (Essays on European Literature. Princeton. New Jersey:
Princeton University Press, 1973), que compara a Revolução Industrial, de base econômica, na Inglaterra; a Revolução
Francesa, de cunho social, com aquela de fundamento filosófico e artístico nos países germânicos. Esse mesmo arranjo
ternário se consolidou na literatura posterior (BLANNING, Tim. The Romantic Revolution: a History. New York: Modern
Library, 2011.

202
E a língua seria não apenas mais um dos documentos da cultura, de um dos seus aspectos,
como a própria condição indispensável para a formulação de pensamentos, o
reconhecimento de sentimentos, a percepção de parcelas inteiras da realidade. Cada
linguagem, e cada cultura, corresponderia a um universo cognitivo próprio. A chamada
hipótese Sapir-Whorf disseminou essa compreensão até quase um lugar-comum, manifesta,
entre outros pontos, na tese de que a ausência e a presença de palavras correspondem à
ausência e presença de aspectos inteiros das mentalidades.3 Como cautela, é importante,
mas não é uma novidade, e nem é uma impossibilidade, como não raro se apresenta.4

É precipitado se pensarmos que os documentos escritos não são janelas perfeitas para o
cotidiano. Mesmo que o fossem, ainda que o cotidiano fosse carente de certas palavras, a
ausência da expressão sucinta não conota a ausência do sentimento ou da idéia, vide as
próprias teorias sobre o tema, que exigem uma exposição longa com palavras correntes,
sem que se deduzam diretamente destas. A mera existência de tais teorias nega o seu
conteúdo.

Pode-se contestar argumentando que “hipótese Sapir-Whorf” serve como locução que
sintetiza essa abordagem. O porém é que ela surgiu mais de um século depois de sua
primeira formulação, em pleno século XVIII. Não deixou de ser tremendamente fecunda e
recorrente na ausência de um termo que a designasse.

Por ora, vejamos que papel iremos conferir à linguagem. Sem pretender originalidade,
abordamos uma espécie de termo médio entre as duas posturas.5

A linguagem, todas as linguagens, podem ser vistas como técnicas, e como tais, atuam
como próteses, como extensões de suas capacidades orgânicas. E justamente em algo
mais objetivo como a memória podemos entender melhor esse papel protético da
linguagem, e dos registros que ela permite. Platão percebera que a memória humana,
orgânica, decaía na medida em que a escrita avançava.6 A perda de capacidade física
correspondia a um deslocamento do que é o próprio “eu”, por assim dizer: a memória se
externalizava, guardada em registros escritos. As agendas, em papel e eletrônicas quando
não em servidores na internet, dispensam cada um de memorizar os números telefônicos de
conhecidos. Textos inteiros escritos são desconhecidos em detalhes por seu autor, uma vez
que estão armazenados em alguma memória externa. Como observara Marshall McLuhan,
cada nova tecnologia, cada nova prótese nesse organismo ampliado – e aqui voltamos ao
tema da Técnica – reorganiza o papel do indivíduo de carne e osso, o original, nesse
sistema.7

Mas a linguagem e seus registros não apenas exteriorizam a memória, mas o conjunto mais
amplo dos sentimentos e elaborações intelectuais humanas. Como ato isolado, a linguagem
(escrever, falar, desenhar) já serve como um espaço complementar, uma expansão dos
processos que antes e sem estes seriam meramente interiores, exigindo maior vagar e
precisão em cada passo, e mesmo perdendo-se sempre pelo irrefreável devaneio dos

3
Referente aos linguistas Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin Lee Whorf (1897-1941), embora a expressão designe uma
versão simplória das obras de ambos, que por sinal nunca trabalharam em conjunto.
4
Esse princípio aparece na obra fundacional de Johann Gottfried von Herder, em textos como Isso Também é uma Filosofia da
História para a Formação da Humanidade (1774) e Fragmentos sobre a Literatura Germânica Recente (1767-8) (HERDER,
2004).
5
Suzanne K. Langer (Philosophy in a New Key – A Study in the Symbolism of Reason, Rite, and Art. New York: The New
American Library, 1954) enumera obras que consideravam a linguagem dessa maneira.
6
No seu famoso diálogo Fedro (PLATÃO. Diálogos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1976).
7
MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Ed. Cultrix, 1982. Daí sua
conhecida expressão, mal-interpretada usualmente, que o meio é a mensagem, isto é, na própria tecnologia está embutido o
seu efeito. Cada nova tecnologia reconfigura o sistema inteiro, da mesma maneira como o salto alto nos pés obriga a uma
nova postura do corpo por inteiro, e em cada parte.

203
pensamentos. Dar expressão a uma impressão, a definição de Benedetto Croce para a Arte,
permite que o seu autor tenha um conhecimento maior sobre si mesmo.8

O mundo mental – idéias, intuições, sensações, sentimentos – não é estruturado em uma


linguagem, somente em um sentido bastante metafórico. Da mesma maneira como uma
“imagem mental” é uma metáfora, para algo que não é uma imagem em miniatura na mente
humana, do contrário recairíamos em uma regressão infinita: a imagem necessitaria de um
outro observador, com sua própria imagem mental, e assim sucessivamente. A linguagem é
alto exterior e diferente do pensamento.

O ato de expressar-se, até para si mesmo, desdobra a consciência. Por isso o ato de
começar a desenhar as peças gráficas de um projeto idealizado – em verdade um agregado
heterogêneo de sensações, distâncias, especificações – revela novas relações e
possibilidades, de entrada aquelas geométricas. Assim como há um feedback praticamente
instantâneo em qualquer movimentação corpórea, que reorienta a ação de um braço ou de
uma perna, ocorre o mesmo, em um plano mais elevado, com o ato da representação. A
concepção mental de um poema parte de um conjunto vago de sensações para a
articulação mais clara de palavras, com seus ritmos e sons. Exigindo ou sua recitação, ainda
que para si mesmo, ou a escrita, para explorar suas possibilidades, e inspirar-se por
associações que vêm à tona no ato de falar ou escrever. Por isso cada linguagem é uma
nova camada, uma nova maneira de perceber e conceber algo, franqueando outras
possibilidades. Pensa-se desenhando, pensa-se escrevendo, pensa-se falando, em uma
contínua realimentação. Arranjos particulares de informação – em mapas, tabelas,
infográficos – permitem conexões entre variáveis que, do contrário, seriam mais difíceis.

Coletivamente, a linguagem cria ainda um outro espaço entre os seres humanos. Permite
que cada um se desenvolva, expanda suas possibilidades, e o faça na interação com os
demais, em co-desenvolvimento. Assim, diferentes poetas, podem se aprofundar de maneira
particular em possibilidades diametralmente opostas da sensibilidade humana e,
compartilhadas em uma mesma cultura, ampliar o rol de expressões à disposição de seus
leitores, ainda que de maneira truncada, superficial, ou mesmo que pela impostura da
repetição de chavões.

A linguagem, e nela a obra de arte, fornece símbolos pelos quais podemos nos comunicar, e
formular melhor os próprios pensamentos e sentimentos, com maior definição e refinamento,
com mais nuances. Torna-se mesmo uma matriz de intelecções, uma maneira de perceber o
mundo.9 E quanto maior o vocabulário, tanto literal quanto figurativo, de idiomas e
possibilidades, de metáforas e da cultura, maior o leque que pode ser percebido e descrito.

Neste meio tempo, o sol baixou até atingir o horizonte. O anoitecer


estendeu os seus véus púrpuros e translúcidos sobre tudo o que nos
cercava. Este misterioso caráter ossiânico da natureza, como eu assim o
denominava, este melancólico silêncio, tornava a nossa navegação
incrivelmente romântica. (HUELL, 2009, p.184).

Não é apenas uma referência ao Ossian, de James Macpherson, e com isso, um símbolo a
uma região de sentimentos, alusões e associações, que seus leitores prontamente
reconheceriam.10 Essa região da sensibilidade não era apenas descrita pelo termo

8
CROCE, Benedetto. Estetica come Scienza dell'Espressione e Linguistica Generale. 3ed. rev. Bari: Gius. Laterza & Figli,
1909.
9
LANGER, 1954.
10
Ossian é o nome de um suposto bardo celta, autor de poemas épicos, que teriam sido transcritos por James Macpherson a
partir de 1760, a partir de fontes orais (MACPHERSON, James. The Poems of Ossian. Edinburgh/ London: Archibald
Constable and Co./ Longman, Hurst, Rees, and Orme, Cadell and Davies, and J. Mawman, 1805). Teve uma influência
descomunal na cultura européia, visto como um análogo nórdico a Homero, similar e complementar. Descobriu-se depois ser
uma fraude do mesmo Macpherson. O impacto dessa obra na Europa está no livro de Howard Gaskill, The Reception of

204
“ossiânico”, como foi desenvolvida por Macpherson, e pela literatura da época: desdobrada,
detalhada, ampliada. E servira para Ver Huell enxergar um rio tropical sob tal clave, nascida
da expressão poética da atmosfera brumosa do norte da Europa. Esse termo não se
incorporou à cultura dos homens letrados do Brasil de então. Não dizia nada, não tinha tais
ressonâncias, e podemos suspeitar que, ademais, não apenas faltava o índice, mas o vasto
e difuso conteúdo a que se referia, isto é, o deleite com o gélido, o nebuloso, o selvagem, da
Europa ao Atlântico Norte. Mesmo hoje diria pouco a um brasileiro. Um outro exemplo:

As ilhas da Bahia, cobertas de eterna verdura e de campos enobrecidos


pela constante cultura, encantam-nos pelo cunho idílico.

Entretanto, não se encontram aí a mutação romântica das vistas, nem a


opulência e o vigor da frondosa floresta virgem, nem aquelas formas
grandiosas de serras, o que tudo reunido torna o Rio de Janeiro um dos
mais lindos lugares do mundo. (SPIX & MARTIUS, 2016, p.153)

Von Martius não apenas admira, mas reconhece uma clave específica do lugar, distinta
daquela mais intensa do Rio de Janeiro. Agora podemos entender porque a Baía de Todos
os Santos era sempre comparada com a atmosfera mediterrânea. Não apenas porque, de
fato, poderia ser semelhante, como porque aquela atmosfera fora fixada, condensada, e
propagada pelas classes letradas européias, a partir de obras como as de Salvator Rosa e
Claude Lorrain, que eram efetivamente mencionados.

E as referências literárias, como a Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, feita por Maria
Graham11, ou Maximiliano de Habsburgo quando disse que “diante de nós, sobre as ondas
azuis, flutuava um panorama como o poder de imaginação espera da América, uma
paisagem de ´Paulo e Virgínia´, cujas descrições ardentes alimentaram tão beneficamente,
a fantasia juvenil”.12 Note-se quão cedo aquela literatura impressionava o espírito dos
futuros viajantes. Habsburgo, em uma canoa, relembra Fenimore Cooper, o autor d´O Último
dos Moicanos, “com suas descrições da selva tão realísticas, e me invadiu um sentimento
de poética satisfação”13.

A sensibilidade relaciona-se com esse processo cumulativo recente de símbolos e


possibilidades. Daí que a cultura transmite uma série de instrumentos previamente
elaborados, mais conforme a expressão de certas idéias, à descrição de certos ambientes.

A similaridade nos arroubos cósmicos, de matizes panteístas, dos viajantes alemães, estava
dada pela cultura dos mesmos, onde lentamente o Deus ainda presente para Maria Graham,
e especialmente para o Rev. Daniel Parish Kidder, distanciava-se cada vez mais atrás de
termos mais abstratos como o Absoluto, e era substituído, lentamente, pela hipóstase da
Natureza.

Pode-se lidar passivamente com este legado cultural. A citação de Jane Austen que
exploramos no capítulo anterior bem o demonstra. O personagem reconhecia que o
pitoresco se tornara um protocolo, um jargão codificado e esvaziado, porém não encontrava
molde melhor no qual vazar seus sentimentos. Tomemos esse mesmo código como
exemplo de uma abordagem distinta. O príncipe Fernando Maximiliano José Maria de
Habsburgo-Lorena, ciente da limitação daquela maneira de ver e descrever, e que isso lhe
impedia de admirar, e de descrever essa admiração de maneira conveniente, pelo “mato
virgem”, buscara criar os meios literários para tanto:

Ossian in Europe. London: Thoemmes Continuum, 2004. Alain Corbin (1989) descreve seu papel na história da valorização
ocidental do litoral e do mar.
11
GRAHAM, 1824, p. 157.
12
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.152. A obra citada por Maximiliano de Habsburgo, publicada em 1784, tem por
autor Bernardin de Saint-Pierre e, como Robinson Crusoe, se baseia em náufragos em uma ilha deserta.
13
MAXIMILIAN VON HABSBURG, Ferdinand. Mato Virgem. Ilhéus: Editora da UESC, 2010, p.84.

205
Apesar de toda a monotonia da cor básica – o verde – havia, contudo, uma
tal variedade de matizes e formas, um tal contraste entre a profunda sombra
tropical, que se assemelha à escuridão do crepúsculo, e o brilho dos raios
solares, que o olhar nunca se satura e o sentimento se transforma num
culto silencioso à natureza. (MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982,
p.206).14

Embora, note-se, a serviço daquela hipóstase mencionada.

Por outro lado, as abordagens modernas sobre a historicidade da cognição aludem a


“construções” e “invenções”, que não podem surgir ex-nihilo, principalmente se forem
sentimentos. As formas simbólicas da Arte, em suas variadas modalidades (a poesia, a
prosa, a pintura) podem desenvolver e explorar percepções breves e fugidias, ainda assim
reais, embora desimportantes em outro momento. Ou seja, se entendemos que a linguagem
desdobra aqueles sentimentos, estes devem existir potencialmente em cada espírito. Os
símbolos podem aguçar a sensibilidade e dar-lhe importância, fazendo com que os padrões
não apenas sejam reconhecidos, mas procurados e amplificados. As sensações precisam
existir como tal, ainda que informes, não tão importantes, apenas como germens de algo
que será desdobrado, desenvolvido e explorado, em uma expressão formalizada e
estruturada. Os sentimentos e sensações necessariamente existiam antes de sua
emergência, porém latentes, dentro das múltiplas possibilidades de cada ser humano. A
cultura, o que é herdado e o comportamento coletivo visto por um indivíduo, fornece os
estímulos para sua expressão pública, sua normalidade, as recompensas para tanto e as
maneiras de fazê-lo, com procedimentos e tradições próprias. Permite o desenvolvimento e
elaboração de tais sentimentos em formas simbólicas relativamente sedimentadas e
sofisticadas. Ele precisa realizar, em ato, o que estava embrionário e potencial. E quanto
mais desenvolvido e elaborado estiver, mais pode galgar novos patamares. O latente se
elabora e floresce no patente.

A sensibilidade nacional teve poucos canais para sua expressão literária, dada a proibição
da impressão de livros em território nacional, até a vinda da Família Real em 1808. Isso
coibiu ainda o desenvolvimento da sensibilidade, na medida em que esta se desdobra com o
exercício continuado da escrita e da leitura. Quando aberta, a literatura que se produziu
localmente, além de medíocre, estava em muitos casos bastante defasada em relação à
européia. Não tomava os hábitos e ambientes reais como matéria-prima para sua
expressão. Precisamos inferir por indícios poucos e por realizações práticas. Pois a
escassez de registros não implicava na ausência de sentimentos topofílicos, e do apreço ao
litoral. Sequer a escassez de palavras sobre o tema o indicava.

Tentaremos encontrar os elementos do deleite e da fruição estética luso-brasileira, ainda


que mesclados com outros aspectos e interesses, tanto nos documentos como nos registros
das ações e lugares concretos, efetivamente realizados. Assim, vamos conferir se algum

14
Monteiro Lobato aponta dois aspectos correlatos, mas não idênticos, nessa luta expressiva, relativo ao mesmo ambiente: a
mata brasileira. Em texto intitulado A mata virgem, comenta “quão pobre é nossa literatura em alados. Alencar lançou meia
dúzia de aves, que logo se tornaram clássicas à força de repetição” (LOBATO, Monteiro. A Mata Virgem. In: LOBATO,
Monteiro. Na Antevéspera. Obras Completas de Monteiro Lobato 1ª Série, Vol.6. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1964). O motivo
não era a ausência dessa fauna no idioma, mas que os “bucolizantes” não conheciam nem o vocabulário popular, nem os
pássaros do país. Era “sempre florestas de Chateaubriand com polvilhamento de Alencar”. Mas também que era necessário
criar os recursos literário para captar a força da paisagem brasileira, exigindo-se “do pintor um pincel mais atrevido e tintas
mais enérgicas do que as vezeiras no reproduzir a frisada paisagem européia, onde o homem destruiu quanto era
selvatiqueza, ordenando-a aos caprichos duma orientação” (LOBATO, Monteiro. A Paisagem Brasileira. In: LOBATO,
Monteiro. Idéias de Jéca Tatú. Obras Completas de Monteiro Lobato 1ª Série, Vol.4. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1964). Esse
trabalho, de adaptação da língua ao seu próprio meio – físico, social, cultural – teria sido realizado, segundo José Lins do
Rego, na literatura argentina por “Sarmiento e de José Hernandez como de suas forças criadoras que foram capazes de
submeter o castelhano ao uso da vida argentina. Antes destes, o que houvera nada mais era que retórica” (REGO, José Lins
do. As Duas Línguas. In: REGO, José Lins do. O Cravo de Mozart é Eterno – Crônicas e Ensaios. Seleção, organização e
apresentação de Ledo Ivo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.). Só para tomar dois exemplos de alguns dos mais pujantes
prosadores do Brasil, de como tinham ciente esse trabalho do artista, em sua luta expressiva.

206
valor era conferido à paisagem e quais as modalidades da relação com o mundo natural, no
sentido mais corriqueiro da palavra, na constituição de um bom lugar.

4.1. A Paisagem no Brasil Colonial


Nos perguntamos aqui se havia apreço visual de algum tipo sobre as áreas litorâneas. E,
havendo, o que se via, de onde se via e, sobretudo, como se via.

A literatura mais constante dos séculos iniciais é a dos jesuítas, com a ressalva de sua
escassez em números absolutos diante da extensão do período abarcado. Abundava no
elogio às novas terras, seja pelo otimismo do evangelizador, seja pelo interesse apologético
de quem inicia nova e arriscada empresa. Porém não encontramos no plano dos valores,
fora o entusiasmo, uma diferença substancial com outras descrições da época, exceto a
oportunidade maior e o interesse para a expressão escrita. Assim, usaremos os
depoimentos dos jesuítas, como também dos poetas e o punhado de obras coloniais
clássicas, como de Gabriel Soares de Sousa. Encontramos nelas mais convergências que
diferenças.

Havia o encanto pela Natureza. No entanto, a obra paradigmática do Criador era o Jardim, o
próprio Paraíso Terrestre antes da Queda do Homem, moldura sob a qual se enxergava
muito do Novo Mundo. Então a Natureza era mais bela quanto mais se assemelhava a um
Jardim, geométrico e benfazejo, saindo de sua feição decaída e evocando a perfeição
original. A rigor, a Natureza não havia se destacado da Criação, ou seja, do próprio Criador.
De qualquer modo, isso implicava em que a paisagem poderia ser transformada, e essa
beleza era a de uma fecundidade voltada para o homem, fosse ela “espontânea”, de frutos
que davam por si só, fosse ela pela cultura humana. O que não era distinto e distante das
demais sociedades européias então.

Trataremos de identificar, primeiro, aqueles loci, físicos e retóricos, do prazer topofílico.


Depois, as sementes de uma sensibilidade distinta. E onde a vista ao mar consegue ser
isolada e identificada, propriamente dita.

O primeiro dos alvos do interesse seriam os campos formosos. Fala Simão de Vasconcellos,
sobre a Baía de Todos os Santos, que “parece hum Paraíso, onde habitam todos os
Santos”.15 E ainda que:

Na compostura da natureza, bem assombrada, levantada em outeiros,


estendida em campinas, povoada de bosques, abundante de pastos,
retalhada de rios, fecunda de fontes, sempre a mesma, sempre varia; donde
nasce, que he innumeravel o gado, e todo o genero de criação
abundantissimo. [...] O sitio principal d´esta paragem, he o daquella parte
junto à barra, onde hoje avulta a cidade, prominente a toda a bahia, e donde
a hum levar de olhos se estão vendo juntamente aquellas agoas, ilhas,
praias, penedos, verdura, boqueirões, entradas, e sahidas, e embarcações
innumeraveis, que acima dissemos; huma das vistas que no mundo se
gabão. (SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.20).

Nota-se aqui um deleite estético, de uma das vistas admiradas no mundo, onde se mesclam
as naus, como as ilhas, os vários braços de mar, o verde. Ainda não se estruturava como no
código do pitoresco, dos estrangeiros oitocentistas, mas os elementos curiosamente são os
mesmos, embora organizados de outra forma.

15
SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.20.

207
Elogiava-se a fecundidade das terras. A Baía de Todos os Santos, com suas propriedades
produtivas à beira-mar ao longo do seu bordo interior, tinha essa formosura de uma terra
lavrada e fértil. Em carta do Padre Manuel da Nóbrega a Martin de Azpilcueta Navarro, em
10 de agosto de 1549, falava da baía, onde “los montes parecen hermosos jardines y
hhuertas, y ciertamente nunco yo vi tapiz de Flandes tan hermoso”.16 Essa compreensão era
partilhada por leigos, como Gabriel Soares, entrando na Baía de Todos os Santos, disse que
a partir do rio Pirajá “vai tudo povoado de formosas fazendas e tão alegres da vista do mar,
que não cansam os olhos de olhar para elas”.17 Terra, rios e mar, “todos cheios de muita
fartura de pescados, lagostins, polvos, ostras de muitas castas, caranguejos e outros
mariscos”.18

29. As agoas d´este grande lagamar, ou pequeno Oceano, da barra para


dentro, parecem de crystal. Da não mais alongada praia, experimente, que
olhado pera o fundo das areas, via nelle os seixos, e as conchas
branquejando a modo de pedaços de prata. As margens, e ribeiras dos rios
por ordinario estão galanteadas da verdura dos mangues [...] (SIMÃO DE
VASCONCELLOS, 1865a, p.20).

É notável a descrição da vegetação e, sobretudo, os tons líricos das águas cristalinas e das
praias vistas, dos seixos e das conchas.

Simão de Vasconcellos depois enumerava os usos e virtudes dos mangues, e da fauna que
vicejava aos seus pés. O mangue era visto pelos índios, senhores de engenho e seus
escravos, e pelos jesuítas, como aquilo que era: um fervilhante berçário de vida, fecundo a
não poder mais. Com garças e manatins, pescado e marisco em abundância, e boa madeira
de muita valia. Destes, apenas os jesuítas escreveram algo sobre. Em sua missão
evangelizadora, entenderam que o Brasil era um paraíso terrestre, com todas as marcas da
bondade do Criador. Apesar de tal otimismo, eram homens nos primórdios da civilização no
Brasil, onde o menor dos elementos precisava ser manufaturado, onde tudo ainda era cru.
Assim, as virtudes fecundas do meio não eram apenas uma benção divina, como recursos
reais. As praias de areia branca e fina eram então estéreis. De uma certa maneira vigorava
aquilo que Leo Marx chamou de paisagem média, um meio natural que, apesar de fértil, e
mesmo em certos rompantes análogo ao Jardim da Criação, necessitava da indústria
humana para ser transformado e realizar-se.19

Nas jornadas dos padres aos engenhos, repetia-se o encanto pelos pássaros, a beleza da
baía, rios, enseadas e esteiros, até por sua fartura. Deve-se entender esse olhar como um
olhar da época, apenas mais rico em seu vocabulário e lirismo. Mas a matriz é a portuguesa,
que era, por sua vez, afim à européia. No século XVIII ainda se mantinha tal concepção:

Tem esta grande Bahia muytas Ilhas, todas tão frescas, que cada huma
dellas, parece hum paraiso: humas são pequenas, outras grandes, & tantas
em numero que se affirma passão de cento, as que tem da sua Barra para
dentro, as quaes se vem enrequecidas de muyto grossas, & deliciosas
fazendas dos moradores da sua Cidade. He fermosa com muyto graciosa
variedade de brancas prayas, toscos penedos, verdes arredores, adornados
de arvoredos, boqueyroens, entradas, & sahidas, que fazem Bahias

16
LEITE, Serafim. Monumenta Historica Societatis Iesu. Monumenta Brasiliae I (1538-1553). Roma: Monumenta Historica
Societatis Iesu, Via dei Penitenzieri, 20, 1956, p.132.
17
SOUSA, 2010, p.139.
18
CARDIM, 2014, p.347.
19
MARX, Leo. A Vida no Campo e a Era Industrial. São Paulo: Ed. Melhoramentos/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1976.
Do desenvolvimento desse conceito, desses “símbolos culturais”, a partir do pastoralismo clássico, é que pôde ser
incorporada a Máquina, o símbolo de todo o desenvolvimento tecnológico, ao Jardim (the machine in the garden). Claro está
em que apesar do início não ser distante ao do Brasil Colônia – de uma paisagem fecunda e formosa quando transformada
pelo homem – não apenas não houve o desenvolvimento econômico, como os símbolos culturais não se desenharam nesse
sentido.

208
differentes, & enganão facilmente a vista humas com outras, principalmente
aos que não tem dellas experiencia. (SANTA MARIA, 1722, p.4).

Não era então fundamentalmente diferente da concepção dos estrangeiros, a ponto do


mesmo Santa Maria repetir o entusiasmo pelas capacidades da baía, capaz de receber
“todas as armadas do mundo”.20

Outro elemento recorrente no elogio luso-brasileiro eram as quintas de recreio. Vários


sentidos eram acionados. Rocha Pita falava de “formosa casa de recreio” em Olinda, onde o
rio Beberibe com o “compasso das bicas fazem uma suave, e vistosa harmonia aos olhos, e
aos ouvidos”.21 As águas correntes, as bicas, os tanques, eram parte desse prazer
ambiental. Vilhena disse do Solar do Unhão que era propriedade “deliciosissima pelas
muitas agoas que para ahi fez encanar de hum olho della”.22 O som da água corrente e o
bom olor das plantas cultivadas dizem respeito a um ambiente mais intimista, onde se está
imerso, e não divisado à distância. E sobretudo um ambiente transformado pela mão
humana, criado para tanto, orientado para tais sensações. A clave olfativa se aplicava até
mesmo aos bosques. Simão de Vasconcellos, sobre a Vila de Vitória, no Espírito Santo, diz
que “suas mattas recendem, são delicia dos cheiros, balsamos, copaigbas, almececas,
salçafrazes”.23 Os frutos da terra mobilizavam não apenas a reflexão utilitária, mas o regalo
dos olhos, o gozo dos perfumes e os sabores ao paladar. Santa Rita Durão, em 1781,
explora essas sensações, elogiando os abacaxis que “tão grato cheiro dá, que huma
talhada/ surprende o olfacto de qualquer pessoa;/que a não ter do Ananas distincto aviso,/
fragrancia a cuidará do Paraiso”, enquanto as pitombas “fragrantes” davam “refrigerio na
febril seccura”.24

As Dilatadas Vistas
As cidades portuguesas se assentavam no topo de colinas; Salvador, no flanco de uma
falésia. E instalavam seus templos e fortalezas também em lugares privilegiados.

As descrições apontam para a qualidade escópica de tais sítios, na forma do que eram
“vistas dilatadas”, ou “grandes vistas”, campos de visão amplos e mesmo em total
circunferência, o que seria chamado de “panorama” pelos visitantes a partir da última
década do século XVIII. Embora sem uma prospecção maior do que era visto, ou dos
sentimentos, tais vistas eram elogiosas. As vistas dilatadas eram a paisagem antes da
paisagem.

Para Cardim, Salvador tinha “vista aprazível para a terra, e para o mar”.25 Gabriel Soares
dizia que “da banda do poente está desabafada com grande vista sobre o mar”.26 Era virtude
ainda do adro da Igreja da Sé, “donde tem grande vista”.27 O edifício dos jesuítas no atual
Terreiro de Jesus também, que “fica eminente ao mar [...] e é toda a recreação deste
Colégio, porque dele vêem entrar as naus, descobrem boa parte do mar largo, e ficamos
senhores de todo este recôncavo, que é uma excelente, aprazível e desabafada vista”.28
Muitas das casas nobres na crista da Montanha tinham a mesma virtude. Sobre o distrito de
São Pedro, diz Rocha Pita que suas ruas são “todas enobrecidas de formosas casas, com
vista dilatadíssimas para o mar, e para a terra”29, o mesmo dizia do Convento de Santa

20
SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuario Mariano... Tomo Nono. Lisboa Occidental: na officina de Antonio Pedrozo
Galram, 1722, p.3.
21
ROCHA PITA, 2013, p.90.
22
VILHENA, 1922a, p.102.
23
SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.58.
24
SANTA RITA DURÃO, 1781, p.209.
25
CARDIM, 2014, p.315.
26
SOUSA, 2010, p.127.
27
SOUSA, 2010, p.128.
28
CARDIM, 2014, p.395.
29
ROCHA PITA, 2013, p.68.

209
Tereza, e da região da Vitória e da Graça, “de alegre, e dilatada vista, pelos grandes
horizontes marítimos, que descobre”.30 Disse Vilhena sobre o Hospício de Jerusalém que
possuía “dilatadissima e agradavel vista eminente ao grande Golpho da Bahia”.31 Em 1757,
na Relação da Fregezia da Santa Vera Cruz da Ilha de Itaparica, do Arcebispado da Bahia
pelo Vigario Christovão dos Santos, constava da Capela de Santo Antônio, dos Velasques,
que seu sítio “he delicioso, tem hua vista admirável porque se vê toda a cidade, muita porta
do recôncavo e Barra da Bahia”.32

A paisagem era um valor inegável. A anedota sobre a origem da toponímia Olinda é


culturalmente relevante: assinalava ser verossímil que a beleza da vista levasse a uma
expressão de entusiasmo, consolidado em um nome, nas primeiras décadas do século XVII:
“depois que descobriram de um alto onde está situada a formosa vista que campeia, a qual,
pela exagerarem por tal, disseram oh! linda!”.33 A paisagem composta por aquelas
propriedades – quintas, casas de recreio, casas de campo, nos dizeres que vimos – era bela
aos olhos luso-brasileiros. Porém a beleza não se limitava a isso. Cardim se admira com a
Baía de Guanabara, onde “a cidade está situada em um monte de boa vista, para o mar, e
dentro da barra tem uma baía que bem parece que a pintou o supremo pintor e arquiteto do
mundo Deus Nosso Senhor, e assim é coisa formosíssima”.34 A beleza, comparada a uma
pintura mas de um onipotente artista, estava no conjunto, no espelho d´água, nas ilhas, e na
contemplação integral da paisagem. Carecia ainda de todo o arsenal literário dos
estrangeiros: das teorias da percepção, visão e estéticas; da modalidade de pintura
paisagística plenamente elaborada e do hábito de desenhar conforme a mesma, e da
incorporação desses preceitos, filosóficos e práticos do ofício do pintor, na maneira do
homem culto apreciar uma paisagem e descrevê-la para futuros leitores.

Uma singularidade notável era o encanto manifestado por Gabriel Soares pelo céu da Bahia,
precoce em alguns séculos quanto à apreciação mais usual: “em todo o tempo do ano,
quando chove, fazem os céus da Bahia as mais formosas mostras de nuvens de mil cores e
grande resplendor, que se nunca viram noutra parte”.35

Antevisões Românticas
Algo singular ocorre em uma poesia específica de Gregório de Mattos. Na sua jornada à
Festa de São Gonçalo do Amarante, na igreja homônima hoje inexistente, no Rio Vermelho,
afirmava: “tomamos dali o caminho/ para o porto das jangadas/ ver as casas afamadas do
nosso Domingos Borges”. O que são as casas afamadas, nos escapa. Mas é certo que
desceram à vila de pescadores. A outra é que após a refeição descansaram, tomaram a
sesta, nas areias. E com uma paleta descritiva elogiosa incomum, no poeta que aparece sob
a descrição Descreve o poeta huma jornada, que fez ao Rio Vermelho com huns amigos e
todos os acontecimentos:

Sesteamos no areal
onde o mar por mazumbaia
refrescando estava a praia
com borrifos de cristal;
a onda piramidal,
que nos ares se desata,
descaindo em grãos de nata
pedia por bom conselho,
que em vez de Rio Vermelho

30
ROCHA PITA, 2013, p.119.
31
VILHENA, 1922a, p.102.
32
BARROS, F. Borges de (org.). ARCHIVO HISTORICO 2º Vol. Primeira Parte (Organisações Communaes, Freguezias, Leis,
Reguladoras de Limites Municipaes). Salvador: Imprensa Official do Estado, Rua da Misericórdia, n.1, 1929, p.26.
33
DIÁLOGOS..., 1966, p.26.
34
CARDIM, 2014, p.381.
35
SOUSA, 2010, p.127.

210
lhe chamem Rio da Prata
(GREGÓRIO DE MATTOS, p.589, s/d).36

A hipersensibilidade estava voltada à espuma do mar, não à areia ou ao oceano. Longe de


ser uma massa informe, era uma explosão de reflexos. Pareceria algo pioneiro, um olhar
atento para uma minúcia singular do mar, aspecto tanto marcante quanto fugaz e localizado.
Era do gosto da poesia barroca pelo jogo de reflexos da água, em todas as circunstâncias,
individuando cada parte, e saboreando seus nuances, como se encontra em poetas
franceses (Théopille, Tristan, Saint-Amant, Jean de Sponde, André Mage de Fiefmelin,
Laurent Drelincourt)37 e especialmente no italiano Giovan Battista Marino (1569-1625),
influente a ponto de inspirar uma vertente poética denominada marinismo.38 E sequer é algo
central, mas lampejos em suas poesias, que precisam ser esquadrinhadas para serem
encontradas.39 Gregório de Mattos seguia um topos literário sem grande desenvolvimento
no Brasil, e não levou a uma outra apreciação do litoral.

Muitos dos elementos valorizados pelos luso-brasileiros não eram substancialmente


distintos dos estrangeiros no Oitocentos, mas sob outro prisma, e com outra organização.
Neste caso, o embrião das sensações românticas pode ser reconhecido nos documentos
coloniais.

O sublime, por exemplo, era sentimento despertado nos europeus oitocentistas pelas
montanhas do Rio de Janeiro, e nos jesuítas quinhentistas, como Cardim, para quem “tudo
são serrarias e rochedos espantosos”.40 E mesmo o tremendo espetáculo daqueles penedos
sob tempestades.

107. Pelo terreno vai rodeando toda a bahia, e reconcavo do Rio de Janeiro,
aquella espantosa serrania [...] e com a parte d´ella mais aspera, chamada
a montanha dos Orgãos [...] representão aquelles grandes montes
muralhas, ou torres formidaveis, postas entre nós, e os barbaros que
habitão a outra parte; porque alli fulmina a natureza em tempos tormentosos
taes raios, coriscos, e estrondos disformes de trovões, que assombram a
terra. (SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865c, p.57).

Este último aspecto, a seleção das tempestades como ocasião e momento do terrífico,
aponta para uma sensibilidade que detectava essa clave do espírito. O sentimento de
assombro existia, vazado na escrita. Apenas não era uma realização, algo procurado com
afinco e fascínio, quanto mais merecer um nome e uma categoria estética.

Como também a percepção de cenas variadas, de um ambiente indistinto, e mesmo


labiríntico, formado pelos sacos e reentrâncias das baías, pela variedade do litoral dos
estuários, pela confusão de ramagens dos mangues. Sobre o Rio de Janeiro, dizia Rocha
Pita que as montanhas da Serra dos Órgãos “vão formando na diferença das suas
perspectivas em Proteu inconstante de figuras várias, e uma bem-ordenada confusão de
diversos objetos, espantosos aos olhos”.41 Espantavam-lhe como aos europeus
oitocentistas. As diferentes perspectivas eram percebidas como uma qualidade do lugar
apesar de ainda não como valor estético almejado. Dizia Simão de Vasconcellos sobre a
Baía de Todos os Santos que era

36
GREGÓRIO DE MATOS. Obras Completas de Gregório de Matos. Sacra – Lírica – Satírica – Burlesca. Vol.III. Salvador:
Editora Janaína Ltda, Av. Estados Unidos, s/d
37
CORBIN, 1989, p.30.
38
CARPEAUX, Otto Maria. O Barroco e o Classicismo por Carpeaux. História da Literatura Ocidental v.4. São Paulo: Leya,
2012, p.69.
39
CORBIN, 1989, p.32.
40
CARDIM, 2014, p.379.
41
ROCHA PITA, 2013, p.103.

211
entrechaçada de apraziveis ilhas, humas grandes, outras pequenas, e
tantas em numero, que se affirma que passão de ceno da barra pera dentro;
pela mór parte enriquecida de grossas fazendas de moradores; fermosa,
com graciosa variedade em brancas praias, toscos penedos, verdes
arredores, boqueirões, entradas, e sahidas, que fazem bahias differentes, e
enganão facilmente a vista humas com outras, dos que não tem experiência
[...] (SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865a, p.20).

Aqui era característica do recortado da costa, de suas barras falsas, de seus rios ocultos em
esteiros. Assim era a Baía de Guanabara, “entreçachada de ilhas, boqueirões, e esteiros;
estes ornados da verdura dos mangues [...] fazem a vista aprazível”42, vista pelo mesmo
escritor. Na Baía de Todos os Santos os manguezais também apareciam intrincados. Após
o elogio aos mariscos, lagostas, polvos, ostras, e outros frutos do mar, diz Santa Rita Durão
situa os caranguejos “por entre os Mangues, donde o tino perde/ a humana vista em
labyrintho verde”.43 O mesmo labirinto visto por Rocha Pita, a partir dos troncos dos
mangues que “se vão outra vez enlaçando, e formam por muitas léguas confusões de
labirintos verdes”.44

A variedade de cenas, o inesperado, era algo efetivamente percebido. Não invisível ao


olhar, e insignificante para sua descrição, sequer negativa. Apenas não fora elevada a fonte
explícita e majoritária do deleite, merecedora de encômios. Vilhena, na Vila de São
Francisco do Conde, disse que entre a Ilha de Madre de Deus e dos Frades “se vae
reproduzir na infinidade de canaes que vão formar hum dos mais apraziveis Archipelagos”.45
Mas encontrava já em tais meandros inesperados uma fonte de deleite. Sobre o conjunto da
Baía de Todos os Santos, escreveu que era “de tal forma disposta pela natureza que formão
em partes hum labirintho curiozo e deleitável”.46

Vilhena compartilha o código do usufruto ambiental anterior. Mas encontramos tantas


diferenças que cabe perguntar se era ele tão diferente dos seus predecessores e
contemporâneos, ou se a diferença residia apenas em ser autor de volumosas páginas,
permitindo justamente a expressão de uma sensibilidade que era mais comum do que
poderíamos pensar à primeira vista. Da Serra de Ibiapaba, comentava:

[...] chegando, porem, ao seu cume bem pago fica do trabalho de subir pella
formosura do quadro mais lindo que a natureza talvez pintou em alguma
outra parte do Mundo; e ali se representa à vista, variando de montes,
valles, picos, rochedos, bosques e campinas dilltadissimas, bem como dos
longes do mar nos extremos do oriente [...] (VILHENA, 1922b, p.690).

Temos a descrição de um autêntico panorama, inclusive comparando-a a um quadro, como


a vista a partir do alto de Olinda, que podia “formar hum quadro que se semelhe ao que a
Natureza ali pintou”.47 Como repete em outro momento, onde conclui:

Dali se descobre huma legoa de distancia quazi tudo o que resta da Cidade
de Olinda, os montes que a acompanhão em que ella esta situada; a
frequencia de pequenas embarcações que sem cessar navegão para o
varadouro, as fortalezas que ficão na restinga, e finalmente meu Patrifilo eu
te acevero que he como impossivel haver em espaço tão pequeno hum
quadro mais deleitavel à vista. (VILHENA, 1922b, p.819).

42
SIMÃO DE VASCONCELLOS. Livro Terceiro da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. In: SIMÃO DE
VASCONCELLOS. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil... 2ed corrigida e aumentada. Lisboa: Editor A.J.
Fernandes Lopes, 1865c, p.57.
43
SANTA RITA DURÃO, 1781, p.219.
44
ROCHA PITA, 2013, p.52.
45
VILHENA, 1922b, p.502.
46
VILHENA, 1922a, p.29.
47
VILHENA, 1922b, p.814.

212
Embora na seqüência elogie a fecundidade das quintas, aqui vemos uma descrição que
mescla a beleza pela atividade humana, portuária, e de suas inumeráveis embarcações,
com o conjunto formado pelo rio e mar. A longa citação mereceu destaque pela sua
natureza pictórica, tanto nas alusões como na estrutura.

As cenas cambiantes, o ambiente mutável, dos manguezais, por exemplo, valiosos dentro
da moldura da riqueza e variedade dos viajantes europeus, eram percebidas pelos
brasileiros e portugueses dos tempos da Colônia. Apenas não eram valorizadas em si
mesmas. Podiam até causar alguma grata surpresa ou leve deleite sem exigir a verbosidade
descritiva oitocentista, e sem conhecimento mais acurado das operações do código do
pitoresco, até por falta dos veículos expressivos pela qual dar vazão a esse sentimento.

A partir do século XVIII se instala uma defasagem, uma diferença crescente, frente à nova
sensibilidade européia, irradiando da Inglaterra. Se antes a selva era bela quando parecia
um jardim, agora o jardim era belo caso similar à selva.

4.2. A Paisagem no Oitocentos


O século XIX viu a constituição mais explícita da paisagem com influência européia, até pela
Abertura dos Portos, dentro da matriz geral luso-brasileira.

Continuamos com documentos escritos, em alguns casos do Poder Público, em outros


casos de escritores privados, mais alguns anúncios de perfil mais apologético.

Aparece também paisagem como gênero artístico disponível ao público de maneiras


particulares, pinturas planas e pretensos panoramas, onde importa tanto a forma específica
da paisagem como ilusão, quanto o conteúdo, o tema de tais pinturas.

E documentos escritos singulares: anúncios de venda e aluguel de imóveis. Destoam dos


demais porque apontam que a paisagem não era apenas um valor no sentido mais geral da
palavra, mas que chegara a influir em preços, e nos preços de um artigo tão importante e
custoso como era um imóvel.

4.2.1. A Paisagem em Textos


A grande característica é sempre o laconismo, a expressão compacta do desfrute da
paisagem; existe, em meios os mais diversos, mas invariavelmente sucinta.

Domingos José Antônio Rebello, nas primeiras décadas do século XIX, apresenta em vários
momentos esses lampejos do valor da visão: “o Reconcavo que he todo retalhado de muitos
rios navegaveis, portos, e muitas Ilhas; o que tudo faz a mais bella e pithoresca vista”.48 Não
vemos diferença significativa dos registros setecentistas, onde o utilitário funde-se com o
estético. Ao falar do Passeio Público dizia que dali “descobre-se fóra da barra a entrada das
embarcações, e a grande Enseada da Bahia, e melhor de hum alegre, e extenso miradouro
com varandas a roda”.49 Do entorno da cidade, que tinha “valles, e grandes vazios com
hortas, e quintaes todos cheios de arvoredos e hortaliças, cuja eterna verdura recreia a
vista”50, novamente onde aquelas áreas verdes híbridas, de pomares e hortas com a mata
de maior porte serviam como regalo do olhar. E reconhece alguns dos méritos escópicos de
seus predecessores: o Convento de Santa Teresa; o Mosteiro de São Bento, a Igreja de

48
REBELLO, 1829, p.131.
49
REBELLO, 1929, p.168.
50
REBELLO, 1829, p.156.

213
Santo Antônio da Barra; as casas e roças que se estendiam a partir da Soledade, ao norte,
tinham “deleitável vista da grande Enseada da Bahia”51 e e assim por diante. Rebello
operava dentro dos valores coloniais, sem o entusiasmo e explorações de sensibilidade que
Vilhena demonstrara antes.

Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva (1808-1865) não era diferente de Rebello: elogiava o
Hospício beneditino na Ponta de Humaitá como tendo “uma situação belíssima”52, e que o
Convento de Santo Antônio do Paraguaçu gozava “do quadro pittoresco que aprezenta o rio
até o engenho da Ponte, que se deviza confuzamente em distancia de mais de legoa”.53

Em “anecdota histórica” da sessão de Variedades de periódico de 1839, dizia-se sobre


chegada do Imperador D. Pedro I ao Rio de Janeiro, e do Pão de Açúcar “que tão
magestosamente domina aquella magnifica bahia, obra prima da natureza, e que reune as
bellezas da classica Italia, com as scenas da romantica Suissa”.54 Um lugar-comum literário
para um viajante europeu, em especial do tipo mais medíocre, a comparação com o
Mediterrâneo e os Alpes, aparece como nota singular nos documentos brasileiros da época.
No Almanach para o Anno de 1845 diz-se do Passeio Público que tinha “uma bella vista do
Mar”.55

Os documentos do Poder Público também assinalam a vista do mar como um valor. Como
os anúncios, aqui também não havia espaço para grandes descrições.

A grande maioria dos registros nas Falas e Relatórios da Província versava sobre o Passeio
Público, o primeiro espaço público efetivamente realizado como mirante, a despeito da
pouca afluência de locais. Na primeira metade do século XIX, vemos a Falla de 1845
apontando que era “um lugar aprasivel e de boa vista”56, ou em 1849, da “bella vista que
offerece sua linda situação”.57

A curiosidade está em documento sobre obras viárias na Península de Itapagipe, que


reconheciam benesses paisagísticas de seus mirantes. Na obra da Estrada da Boa Viagem,
dirigida pelo engenheiro polonês André Przewodowski58, falava-se em 1852 de realizar
depois ruas complementares a partir do Largo da Boa Viagem: uma em linha reta até a
Ponta de Humaitá, e outra rumo à Igreja do Bonfim, ampliando-lhe a beleza pois abriria
“diante daquella Igreja (segundo a expressão do Engenheiro) a grande Bahia e sua
magestosa embocadura” [sic].59 A pulsão visual da majestosa embocadura da baía está
presente, como parte diretora da intenção, ao menos como parte expressa. Se não temos
como afiançar os intentos reais dos governantes nas suas decisões, quanto mais reconstituir
o conjunto de exigências dos distintos atores naquelas sociedades, ainda é culturalmente
relevante que no documento oficial apareça a paisagem como uma justificativa válida, capaz
de reforçar as razões dos recursos empenhados na obra.

Vejamos alguns documentos notáveis, por um e outro motivo.

Nos anos de 1829 e 1830 circulou um brasileiro por Salvador e pelo Recôncavo. E melhor:
ele escreveu. Era Filippe Alberto Patroni Martins Maciel Parente (1798-1866), nascido na
Província do Pará, advogado no Rio de Janeiro, que fora nomeado juiz de fora da Praia

51
REBELLO, 1829, p.176.
52
SILVA, 1837, p.180.
53
SILVA, 1837, p.114.
54
O CORREIO MERCANTIL n.34, Quarta-Feira 13 de Fevereiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
55
ALMANACH..., 1844, p.366.
56
FALLA... 1845, p.75.
57
FALLA..., 1849, p.15.
58
O engenheiro André Przewodowski, não por coincidência, morava próximo do Forte de Montserrate (D.PEDRO II, 1959,
p.149).
59
FALLA..., 1852, p.21.

214
Grande e Maricá. Prestes a casar-se, retornou ao Pará, e de lá partiu ao Rio de Janeiro para
assumir o cargo de juiz de fora. A situação crucial é que, navegando rumo à corte, teve
problemas severos de enjôo e teve de aportar no Ceará e viajar o restante por terra.60

É o único relato de viagem de um brasileiro pela Bahia, além do Imperador D. Pedro II,
servindo como contraste para os viajantes estrangeiros. Mesmo em Patroni existe um elogio
à paisagem, embora sucinto e comedido como a grande maioria. Percorre por terra o
Recôncavo Baiano. No Iguape, comenta: “que sítio pittoresco! É um valle deliciosissimo,
similhante em tudo ao jardim do Ceará, excepto unicamente na povoação que ahi não há,
pois que seus edifícios são engenhos d´assucar separados uns dos outros”.61

Em uma jornada longa e penosa pelo bordo da baía, aquele foi o único arroubo visual de
Patroni. Pensou em retornar a Cachoeira. Apesar dos seus problemas com as travessias
náuticas, ponderou que seus cavalos se haviam arruinado nos atoleiros de massapê da
primeira viagem (fora os carrapatos posteriores) e que o incômodo da jornada por barco
baía seria breve, apenas duas horas “até à foz do rio Paraguaçu, cuja viagem se me
representava, e é com efeito belíssima, e muito agradável!”. 62 Nesse ínterim, entre as duas
passagens por Cachoeira, na sua estadia de duas semanas em Salvador:

Não tínhamos a fazer na Bahia mais do que passear e ver: eu levava minha
curiosa viajante em cadeirinha aos logares mais celebres da cidade, praças
e edifícios públicos, com especialidade templos e conventos de freiras. (A
VIAGEM DE PATRONI..., 1851, p.99).

A “curiosa viajante” podia ser curiosa, mas ela e seu marido, brasileiro e da nobreza togada,
buscavam na cidade os marcos de sua grandiosidade, os templos e conventos, e a
percorriam de cadeira de arruar. Como bom homem local e de importância, cabia a Patroni
conduzir a esposa às costas de escravos. Toda e qualquer mulher de alta estirpe a pé pela
cidade seria objeto de um estranhamento ímpar. E isso contrasta substancialmente com os
viajantes estrangeiros.

O Dr. José Ferrari publicou em 1853 um longo poema intitulado Engenheida: poema
didactico-heroico-comico. Repetindo o sufixo tão antigo quanto a literatura ocidental, que
conotava os épicos, fazia um extenso elogio aos engenhos de cana-de-açúcar. Nele
encontramos o pitoresco, mas não o código, e sim uma condensação em torno da palavra
“pitoresco”, com laivos do elogio romântico. Em uma descrição da orla interior daquela baía,
falava dos “marítimos Engenhos/ que magestosos [...] De pitoresca vista vos erguendo”63 no
espelho natural das águas. Existem pedaços truncados da sensibilidade romântica

Oh! quantos vede, bellos, magestosos;


De quão risonhas e variadas vistas!
Todos de grande lustre, novos Édens.
Ah! primeiro se attenda a um outro caso:
Gigantes, millenarias, virgens matas
Que em alto lá nas nuvens se envolveram
E mesmo topetavam com estrellas,
Aqui a tudo em torno assoberbavam.
Era seu interior de estranho aspecto:
De troncos multiformes, monstruosos,
Entrelaçados com já mortas plantas
Que a infectas aguas represadas tinham;
(FERRARI, 1853, p.6).

60
A VIAGEM DE PATRONI, 1851, p.VII.
61
A VIAGEM DE PATRONI..., 1851, p.87. Seus termos de comparação são obviamente locais. No caso, o Ceará.
62
A VIAGEM DE PATRONI, 1851, p.104.
63
FERRARI, Dr. José Ferrari. Engenheida. Poema Didactico-Heroi-Comico. Salvador: Typ. de Carlos Poggetti, Rua
d´Alfandega, n.37, 1853, p.5.

215
Há o assombro com a floresta, e o “multiforme” dos frutos e dos troncos, e, depois, da
“infernal orchestra” dos sons da fauna da mata. Mas nunca se aprofunda para além disso.
Essa floresta era, apesar dos tons daquele assombro, algo a ser conquistado. Estamos
ainda na paisagem média de que falamos antes, a “a humana industria,/ A inuteis ou
nocivas amplas matas/ (Ás aguas dado o curso) convertera/ Em seáras e pomares”64,
empreendimento centrado nos Engenhos. E esta abordagem até por um motivo prosaico, ou
estrutural ao poema: o alvo do encômio era um engenho, e a rigor o Engenho, unidade
produtiva por definição. Contrastava francamente as tintas intensas do romantismo europeu

Quem de prazer não se enche, toda olhando


Essa immensa amplidão que a vista abrange,
Ou esses bellos quadros, tão variados
Que pitorescos todos se apresentam?
He tudo novo: de penhascos nada
Aqui se avista nem de cavernoso,
Esteril, em ruinas, feio ou triste. –
Viçoso tudo pullular parece
Com louçania nunca alhures vista;
(FERRARI, 1853, p.9)

O leitor divisa quadros variados, dentro da idéia do pitoresco, mas não vê a intensidade
romântica – os penhascos, as ruínas, as cavernas – no máximo os “restos de antigos
bosques” ao longe, afastados pelo labor que construiu e movimenta o engenho. É o bucólico
o tom da descrição, e do poema como um todo. A mesma sucessão de cenas aparece em
outro trecho do poema, na travessia náutica até o engenho:

Em pittorescas vistas entretido,


Vira a Cidade, o mar, collinas, Villas
De longe e perto em movimento e Engenhos
Quasi em jocosa scena; pittorescas
Aldeias vira, Templos e Conventos,
Campinas, searas, casas e pomares,
Parte se apropinquarem delle, e parte,
Os vira para trás graciosos irem.
(FERRARI, 1853, p.42).

Mantém-se muito fiel à antiga sensibilidade, inclusive nos “aromas e sabores deliciosos” dos
frutos, em “lindos matizados quadros”.65

4.2.2. A Paisagem em Pinturas

João Antonio dos Santos, anuncia ao Publico que no dia 28 do corrente


pertende mostrar a nova reforma da sua casa de Pasto Flor da Bahia, com
o dístico mudado, o Bosque da Praça do Commercio, com toda a decência
e asseio, aonde haverá duas vistas, huma de Bosque e outra de Jardim
[...]66

O produto era um item bastante menor da Casa de Pasto, que alardeava duas paisagens –
talvez não tão grandiosas como eram as pinturas paisagísticas, talvez mais modestas,
“vistas” – não por acaso de áreas verdes.

Tollenare descrevia uma singular discrepância entre os gostos. Primeiro, que “as pessoas
ricas adornam as paredes as paredes dos seus salões de algumas gravuras”, importando

64
FERRARI, 1853, p.7.
65
FERRARI, 1853, p.84.
66
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.7, Sexta-Feira 24 de Janeiro de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.

216
litografias da Europa”. Não havia disponível para aquelas classes "estes pintores
ambulantes de retratos que exploram sucessivamente várias cidades”67, e conjecturava que
era um mercado em potencial para os jovens pintores franceses. Fora que os escassos
pintores franceses no Brasil viajavam “para oferecer à Europa uma série de paisagens
brasileiras”.68 Algo disso mudou um tanto nas décadas seguintes. Em 1839 aparece o
anúncio de um pintor e suas paisagens: “- LUIS BUVELOT, participa ao publico, que tem
aberto uma casa, onde desenha paisagens, retratos de todos os tamanhos, e tudo quanto
diz respeito a esta arte” 69, em sua casa na Travessa do Palácio. Tratava-se de Abram-Louis
Buvelot, pintor suíço que chegara no Brasil em 1835 e depois, em 1840 já, mudou-se à
capital do império, onde não passara desapercebido: recebeu em 1847 o título de Cavaleiro
da Imperial Ordem do Rosa das mãos de D. Pedro II, que também agraciou em 1851 sua
firma com o patrocínio da Coroa, o primeiro fotógrafo a recebê-lo.70 De Salvador, fez pelo
menos três quadros, idênticas em ângulo e ponto de vista a outros quadros: no caminho de
Montserrate divisando-se o porto e a Montanha; no Morro Ipiranga vendo o Forte de Santo
Antônio da Barra e o Morro do Gavazza, e do Passeio Público.

Em 1840 aparece outro pintor, Paolo de Geslin, pretensamente francês, este apenas
retratista, oferecendo seus serviços na Rua Direita de Palácio.71 O dado é que estrangeiros
circulando pelo país traziam as novas técnicas, e os conceitos subjacentes. Como havia
estabelecimentos que vendiam quadros e elementos para tanto, como a loja de Guadencio
Bertholacini, na Rua do Corpo, que vendia quadros prontos, estampas e molduras para
quadros, entre outras mercadorias.72 O sobrenome italiano, verdadeiro ou falso, não é um
acidente. Esta notícia de 1851 é notável:

RETRATOS
PHOTOGRAPHICOS COLORIDOS
chapas a
ELECTROTYPO

Regresso a esta capital do retratista Francisco Napoleão Bautz.

Rua direita de Palacio, casa pegada ao Theatro 2º andar

[...] Tirão-se os retractos com chapas à electrotypo com a vista do porto e


do Bomfim, ou sem ella, afiançando a perfeição e a duração dos retratos,
que só agradando se entregarão: convida-se aos senhores e senhoras para
verem a sua collecção de retratos, mesmo independente de se retratarem.
Ensina a tirar retratos e tem instrumentos para vender.73

A visão típica das pinturas oitocentistas, do litoral e do espelho d´água, aqui entra como tela
de fundo para os retratos, para a nova tecnologia em ação. Eram as únicas paisagens à
disposição, literalmente cenários, voltando ao papel original das primeiras paisagens no
Renascimento, subsidiárias à imagem principal em primeiro plano das pinturas. Inferimos
que se consideravam as belas imagens da cidade, e que as caracterizavam,
obrigatoriamente do mar, do seu centro mesmo (o porto) e do arrabalde do Bonfim, que

67
TOLLENARE, 1956, p.362.
68
TOLLENARE, 1956, p.363.
69
O CORREIO MERCANTIL n36, Sexta-Feira, 15 de Fevereiro de 1839. Salvador: Typ. Do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
70
Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/
71
O CORREIO MERCANTIL n.153, Sábado 18 de Julho de 1840. Salvador: Bahia: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
72
O CORREIO MERCANTIL n.77, Sábado 4 de Abril de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1840.
73
O MERCANTIL. Segunda-Feira 24 de Março de 1851. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa n.78,
1851.

217
ganhou importância por motivos vários. Em 1854, o anúncio se repetiu, em outro endereço:
na Rua da Preguiça, n.11, 1º andar. Ainda com os mesmos dois cenários.74

As Desventuras do Theatro Panorama


Em 4 de agosto de 1838 aparece a primeira notícia de um tipo singular de estabelecimento:

THEATRO PANORAMA

Domingo 5 do corrente, haverá as riquissimas vistas, a saber:

1º O Jardim de Versailles.
2. º O Entrincheiramento do Porto, e o combate de 29 de Setembro
3.º A Revista Miguelista dada por Dom Minguel.
4.º O Palácio de Versailles na França.
5.ª A Tomada de Argel pelos Francezes.
6.º O Funeral de D. Pedro.
Todas estas vistas são representadas em uma casa no Largo do Terreiro,
defronte de S. Pedro Novo. Principiará as 6 horas da tarde: preço de
entrada 320.75

Situava-se no Terreiro de Jesus e levanta uma série de perguntas. Tratava-se de um


panorama aos moldes clássicos, com paredes semi-circulares? Se assim fosse, o público
baiano teria um contato direto com a experiência dos panoramas, em vez de via menções
literárias. Ademais, cabe perguntar qual era o conteúdo das imagens, em qual o ambiente
se pretendia imergir o espectador, e qual a reação do público à novidade. Antes de Salvador
o Theatro Panorama estivera no Rio de Janeiro.76

Dos conteúdos, depois da primeira lista anunciada, apareceram em outros dias, revezando-
se sempre com as pinturas anteriores (as datas são dos anúncios, não das funções): o
desembarque das tropas de D. Pedro I no Algarve, Constantinopla, o confronto entre as
esquadras de D. Pedro I e D. Miguel, e a batalha de D. Carlos com a Rainha Maria II a partir
do dia 11 de agosto de 1829, ambas na Guerra Civil Portuguesa; no dia 18 de agosto
entram uma vista de Nápoles e outra de São Petersburgo; uma semana depois, em 22 de
agosto, três cenas da guerra do Grão-Pará (a guerra em si mesma; as tropas portuguesas e
inglesas e o incêndio nas casas e a fuga das famílias); no dia 30 de agosto, o Vesúvio em
chamas, o estreito de Dardanelos, uma cena de Veneza (seu porto), a entrada da Baía de
Guanabara, e a “entrada do exército pacificador no grande dia 2 de julho de 1823”77; a partir
de 1º de setembro, o convento de Mafra, a batalha entre as tropas pedristas e miguelistas
em Santarém, uma vista de Bordeaux, o bombardeio do Porto, e Regent Street em Londres;
em 13 de setembro, a retirada miguelista nos Arcos das Águas Livres.

No dia 15 de setembro mudou o horário de exibição, das 16 h às 20 h. A partir do dia 27 do


mesmo mês, baixou o preço para metade do que até então fora cobrado – agora a 160 réis
por pessoa – e anunciou seu encerramento no dia 18 de outubro, ocorrendo porém antes,
no dia 7 do mesmo mês.

Apesar do aviso de êxito, outros anúncios não corroboraram o entusiasmo. Já em 11 de


setembro, antes da queda dos preços, anunciava-se: “quem quizer comprar o theatro

74
O CORREIO MERCANTIL, Quinta-Feira 28 de abril de 1854. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, 1854.
75
O CORREIO MERCANTIL n.525, Sábado 4 de Agosto de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
76
Este episódio por inteiro, e os anúncios mencionados, estão nos números 525, 530, 535, 538, 544, 546, 555, 564, 557e 572,
cobrindo de 4 de agosto a 31 de outubro de 1838, do periódico O CORREIO MERCANTIL. Salvador: Typ. do Correio
Mercantil, de M.L. Velloso e Comp., 1838.
77
O CORREIO MERCANTIL n.544, Quinta-Feira 30 de Agosto de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.

218
Panorama, no Terreiro, com todos os seos pertences”78, repetido no dia 13 de outubro,
agora não mais revendendo todo o estabelecimento, mas partes: “vende-se paineis dos
pertencentes ao Theatro Panorama”79. E mais claramente: “tambem se vende os paineis
pertencentes ao theatro panorama, à retalho ou toda a collecção”.80

O empreendimento encerrou antes do que anunciara. Ao mesmo tempo em que


desempenhava suas últimas funções, e antes de tornar público o seu encerramento, o
proprietário tentava passar adiante o empreendimento e, falhada a tentativa por ausência de
interessados, quis recuperar parte do capital, vendendo as pinturas. Apesar de anunciar que
finalizaria o estabelecimento por “ter outros afazeres”81, e de propagar cenas que “tanto
applauso tem tido do respeitavel publico”82, tudo aponta para um fracasso de público.

O termo “panorama”, cunhado em 1791, espalhou-se muito rapidamente, e designava telas


e cenas de diferentes perfis e tipos. As pinturas do Theatro Panorama não eram panoramas
no sentido original da palavra: da pintura circular ou semicircular. Era uma técnica difícil, e
uma pintura custosa. Em alguns casos, a receita do empreendimento tardaria meses e
mesmo anos para dar um bom retorno ao investimento.83 Neste caso, na seqüência da
exposição, havia pinturas cariocas e, passados alguns dias, uma pintura mais propícia aos
baianos, afinada ao seu sentimento cívico, ilustrando a vitória no 2 de Julho de 1823. O
anúncio desta pintura fez-se menos de um mês após a inauguração do Theatro Panorama.
Não daria tempo para executar um panorama de fato. Tampouco vemos menções à
superfície circular.

Parte das cenas eram de cidades vistas a partir da entrada de suas baías ou seus portos, ou
de áreas marítimas clássicas, dentro dos cânones da pintura paisagística, do século XVII ao
XIX, como Nápoles, Constantinopla e o estreito de Dardanelos, o porto de Veneza – todos
dentro do Grand Tour – e, agora, o Rio de Janeiro, a partir da imagem paradigmática da
barra da Baía de Guanabara.84

4.2.3. A Vista do Mar nas Residências


Havia um apreço estético da paisagem, e da paisagem litorânea, bastante compacto nos
tempos coloniais. Encontramos, contudo, antes do que se poderia imaginar, claramente
assinalado um valor dado à vista do mar, e valor no sentido quase literal, de influência
pecuniária, no preço de imóveis, conforme seus anúncios em jornais. Por sua própria
natureza telegráfica, não podem ser efusivos, no entanto são indícios irrefutáveis dessa
mudança na sensibilidade, constituindo uma qualidade ambiental requisitada e
recompensada.

Em 1811, anunciava-se para para venda “humas casas de dous sobrados, e seu eirado com
boa vista de mar” na ladeira da Misericordia”.85 E no mesmo ano Kenneth Pringle, que
estava à Rua das Grades de Ferro, anunciava, ao contrário, a intenção de alugar um

78
O CORREIO MERCANTIL n.553, Terça-Feira 11 de Setembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1838.
79
O CORREIO MERCANTIL n.578, Sábado 13 de Outubro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
80
O CORREIO MERCANTIL n.593, Quarta-Feira 31 de Outubro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1838.
81
O CORREIO MERCANTIL n.564, Quarta-Feira 26 de Setembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
82
O CORREIO MERCANTIL n.546, Sábado 1 de Setembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
83
HUHTAMO, Erkki. Illusions in Motion: Media Archaelogy of the Moving Panorama and Related Spectacles. Cambridge,
Massachusetts/ London, England: The MIT Press, 2013, p.7.
84
PAZ, 2018b.
85
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.48, Sexta-Feira 8 de Novembro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811.

219
escritório e uma casa com vista ao mar.86 Em 1817 buscava-se “quem tiver huma boa casa
para alugar na Cidade baixa com vista de mar”.87 Havia essa procura específica. E
claramente estava vinculada ao Porto, com no anúncio de 1818 onde se procurava “quem
tiver hum primeiro andar de casas para alugar, que tenha vista do forte do mar”.88 Vinculado
com escritórios para atividade comercial, como no ano seguinte, “precisa-se de huma casa
com vista para o mar, com o commodo de hum Escriptorio e salas para receber fazendas,
nos lugares de Santa Barbara até às Portas da Ribeira”.89 Alugavam-se escritórios, como
este de 1836: “no Trapiche Novo tem para alugar dous escriptorio grandes com vista de
mar”.90 Como também residências, sobrados inteiros, como em 1842, “João de Oliveira Dias
aluga por preço commodo um sobrado ao porto da Jaqueira, que tem duas salas, quatro
quartos, e boa vista de mar”91, E andares de sobrados. Em 1848, “João Pereira da Motta
aluga o 2. Andar da sua casa a Prainha do Peixe, com excelentes commodos para uma
família; o tem 3 vistas por ser de quina, e excellente vista de mar”.92

Essa vista para o mar tinha sentido utilitário. A azáfama portuária, seu ruído, os odores
desagradáveis dos alimentos apodrecidos das feiras e do refluxo das águas contaminadas
com os rejeitos daquele amontoamento humano, os ratos que percorriam as casas à beira
d´água (como na Praia, Preguiça, Pedreira e Jaqueira)93, não justificam a proximidade como
fonte de deleite sensorial. Para negócios, sim: acompanhando a chegada das embarcações
e o transporte das alvarengas, trazendo as cargas dos navios para o cais, onde poderia
haver perda de material, danos, etc. Isto não deve ser subestimado. Segundo a Comissão
Parlamentar de Inquérito da Assembléia Geral, em 1883, perdia-se muito material, quando
de natureza frágil: “ha exemplos frequentes de quebras em louça, vidros, fayança e
porcellana na rasão de 60% de seu valor, e em ferro fundido de 15 a 40%”.94 Naqueles
edifícios, atividades comerciais mesclavam-se com a função residencial, daí que famílias
vivessem em andares ou sobrados inteiros, e ali mesmo trabalhassem, com o olho atento às
alvarengas e à carga e descarga das mercadorias.

No entanto, em época temporã vemos a virtude do mar à vista, de modo inegável e


inesperado.

Já em 1818 encontramos: “vende-se huma Rocinha sita na Barra, com bastante arvoredo de
espinho, agoa dentro, casa de morar, e boa vista de mar”.95 As virtudes eram as de uma
pequena roça, como o arvoredo de espinho e a fonte. Singular era a “boa vista de mar”,
talvez já apontando o uso para veraneio. Mas este anúncio foi uma exceção. O normal não
seria a valorização de uma vista do mar dos arrabaldes litorâneos distantes, mas de uma
situação a cavaleiro, onde se divisava algo mais amplo.

86
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.42, Sexta-Feira 4 de Outubro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811.
87
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.51, Terça-Feira 1 de Julho de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1817.
88
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.47, Sexta-Feira 12 de Junho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
89
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.20, Terça-Feira 9 de Março de 1819. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1819.
90
O CORREIO MERCANTIL n.433, Sábado 10 de setembro de 1836. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, 1836, da Viúva de
Precourt e Comp., Rua d´Alfandega, n.24.
91
O CORREIO MERCANTIL, Quarta-Feira, 23 de março de 1842. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1842.
92
O MERCANTIL n.169, Domingo, 18 de Julho de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa n.78,
1848.
93
Temos aqui uma extraordinária abundância de ratos e, nas casas perto da água, existem verdadeiras multidões que se
instalam frequentemente sob os barrotes onde o ruído que fazem torna por vêzes a vida insuportável. (WETHERELL, s/d,
p.141).
94
Apud CÂMARA, Antônio Alves. A Bahia de Todos os Santos com Relação aos Melhoramentos de seu Porto. Rio de Janeiro:
H. Lombaert & Comp., Rua dos Ourives, n7, 1890, 1890, p.45.
95
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.51, Sexta-Feira 26 de Junho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.

220
Vimos antes um anúncio onde um estrangeiro abertamente procurava alguma moradia com
uma boa vista, na crista da Montanha.96 Porque de fato essa característica aparece em
imóveis onde a função residencial não se tem como se vincular à atividade portuária
imediata. Como em 1838, defronte à Igreja do Carmo à venda “uma morada de sobrado com
terras proprias, e agoa furtada, com muito boa vista do mar”.97 No mesmo ano, na
vizinhança, para alugar “uma casa com commodos para grande familia, bom sotão para
caixeiros, cavalharice para cavallos, e muito boa vista de mar e terra, nas Portas do
Carmo”.98 Em 1839, alugava-se o “2 andar de um sobrado na rua direta de Santo Antonio
além do Carmo, da parte do mar, com 3 quartos, 2 salas, e cosinha, boa vista tanto para o
lado da Barra como para o do Bomfim”99, com essa característica singular de abrir a vista
para duas frentes, ambas “exteriores”, litorâneas, e claramente estéticas: a ponta sul e a
ponta norte de Salvador. Não era apenas o mar o objeto dos panoramas, das vistas, embora
fosse o abertamente majoritário.

Mais adiante, na Lapinha, em 1853, alugava-se uma casa “para grande familia, com sua
rocinha, boa vista de mar”.100 Vistas que não apenas da baía eram benesses. Vendia-se em
1840 roça “sita pouco adiante da Lapinha; com casa, senzallas para escravo, plantações,
boa vista de cidade, e mar”.101 E perto, no princípio da Estrada das Boiadas, “rocinha com
uma linda casa collocada de maneira que della se avista toda a cidade, arrabaldes, e todo
mar da Bahia”.102

Mais próximo ao Pelourinho, no Taboão, alugava-se um sobrado “com bons commodos para
uma familia; tem grande salla, tres quartos, salinha de jantar, cozinha com forno, e boa vista
de mar”.103 Nesse mesmo ano, esse mesmo lugar é alugado; cabe notar a contração da
descrição, e o que resta: “aluga-se o 2.º andar de um sobrado n.48, ao Taboão, com
excellentes commodos para uma familia, e boa vista de mar”.104 A vista permanecia.

Nas imediações do Largo do Teatro também era virtude procurada. Em 1848 buscava-se
uma moradia por ali “preferindo-se com vista do mar”.105 Próxima, na Rua da Gameleira,
alugava-se casa “com quintal amurado, e bastantes commodos para uma familia numerosa,
e com boa vista para o mar”.106 De fato, na região encontramos, nos registros iconográficos,
um e outro sobrado com balcões e loggias, mas não são majoritários (Figs. 124 e 125).

Ao sul do núcleo urbano mais consolidado, no Areal de Cima e de Baixo, encontramos


anúncios similares. Em 1838:

- Anda em leilão [...] uma morada de casas de frente baixa, do lado do mar
à rua do Areal de baixo n.º 23, com 2 janellas de frente, com vidraças, salla
fechada, assoalhada e forrada, bem como o primeiro quarto, com sotão que
abrange os cumprimentos da salla e primeiro quarto, dois quartos

96
No Cap. 3.
97
O CORREIO MERCANTIL n.476, Terça-Feira 29 de Maio de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
98
O CORREIO MERCANTIL n.573, Segunda-Feira 8 de Outubro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1838.
99
O CORREIO MERCANTIL n.268, Sábado 14 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
100
O CORREIO MERCANTIL, Quinta-Feira 28 de abril de 1853. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, 1853.
101
O CORREIO MERCANTIL n.134, Segunda-Feira, 22 de Junho de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
102
O CORREIO MERCANTIL n.24, Quinta-Feira 30 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
103
O CORREIO MERCANTIL n.114, Sábado 23 de Maio de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
104
O CORREIO MERCANTIL n.257, Quinta-Feira 26 de Novembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
105
O MERCANTIL n.150, Quarta-Feira 28 de Junho de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1848.
106
O CORREIO MERCANTIL n.26, Quinta-Feira 31 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.

221
ladrilhados, salla de jantar, dispensa, e cozinha assoalhadas, com janellas
de vidraças, grande vista de mar, quintal murado, com parrões e latrinha de
alvenaria, em terras proprias, livre e desembargada [...]107

Notar os parrões, que aqui apareciam.108 Esta casa, por sua localização, devera ter seu
quintal com algum terraço ou socalco, para não ser terra inculta, ao contrário, lugar visitado,
com seus parrões. Perto dali, em 1842, no Areal de Baixo, “uma muito boa propriedade, com
muito boa vista de mar, nova, de dous andares, e lojas, que em qualquer das repartições
acommoda uma grande familia”.109

Ao lado, no atual Largo 2 de Julho, na Rua do Fogo, em 1838 alugava-se “uma boa casa de
sobrado com grades de ferro, duas sallas, dez quartos todos claros, com janellas
envidraçadas, cozinha, e mais arranjos; tem vista de mar”.110 Na mesma rua, outra casa se
punha à alugar, no ano seguinte, sobrado, “com muitos commodos, e circulada de janellas
envidraçadas, cocheira e estribaria, e com boa vista de mar”.111 Não eram casas pequenas,
muitas modernas, com vidraças.

Uma solicitação veiculada em jornal era curiosa, destinada para “quem tiver um sobrado na
freguezia de S. Pedro, com vista de mar, e o queira alugar”.112 Nenhum atributo era
requerido além da vista do mar.

Na Estrada da Vitória, evidentemente113, e também na Graça, de cujo alto também se


divisava o mar, e em um raio mais amplo em potencial: “aluga-se a casa da roça que foi do
finado Severo, ao largo da Graça, com grandes commodos, e boa vista de mar”.114

Era atributo mesmo extensivo à Ilha de Itaparica; em troca de uma fazenda à beira-mar,
oferecia-se “uma bellíssima propriedade com tres andares, e sotão, cuja vista he impagavel:
no centro da Cidade, chãos próprios”.115

Mas de todos os anúncios, o mais interessante é este, que saiu da enumeração sucinta e
apresenta algo dos valores já compartilhados na Bahia, na R. Direita das Portas do Carmo,
com dois andares, e no segundo “duas salas de frente, uma de jantar, seis quartos, cosinha
[...] a vista he assás pitoresca, vê-se todos os suburbios da cidade e circunferência desta”.116

A profusão desses anúncios, e mesmo algumas situações mais explícitas, quase sempre
nas alturas, confirmam a hipótese de que o apreço paisagístico, escópico, do litoral
independe da idéia de um contato físico com o oceano.

Esse interesse se manifestou, de alguma forma, como expressão física, arquitetônica? Dois
indícios apontam que algo existiu.

107
O CORREIO MERCANTIL n.556, Sexta-Feira 14 de Setembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1838.
108
Madeiras fincadas que fazem com que as videiras cresçam verticalmente, em vez de horizontais como nas parreiras.
109
O CORREIO MERCANTIL, Sábado 19 de novembro de 1842. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, , de M.L. Velloso e
Comp., 1842.
110
O CORREIO MERCANTIL n.613, Sábado 24 de Novembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
111
O CORREIO MERCANTIL n.48, Sexta-Feira 1º de Março de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
112
O CORREIO MERCANTIL n.23, Quarta-Feira, 29 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
113
O CORREIO MERCANTIL n.38, Sábado 15 de Fevereiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
114
O CORREIO MERCANTIL n.4, Terça-Feira 7 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
115
O CORREIO MERCANTIL n.623, Sexta-Feira 10 de Dezembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
116
O CORREIO MERCANTIL n.275, Terça-Feira 24 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.

222
Figura 124 – Teatro São João com Vista da Baía de Todos os Santos (1855), de Thomas Colman
Dibdin. Fonte: ATHAYDE, 2008. As varandas eram parte de alguns edifícios, na fachada voltada à
baía. Algumas, construções de madeira que avançavam o plano da fachada.

223
Figura 125 – Vista da Cidade de Salvador (c.1860). Fonte: Brasiliana Iconografica. Aqui, aparecem
varandas, e algumas mais próximas a loggias. Aqui, nos sobrados que se desenvolvem ao longo da
Ladeira do Taboão. Apesar dessa multiplicação de visadas possíveis do mar, e da presença
constante em anúncios, tal não se reflete na arquitetura. São dispositivos que aparecem apenas sob
escrutínio da iconografia. Não são majoritários. E, sobretudo, são apostos à estrutura edilícia. Se esta
fosse nossa única fonte, não poderíamos inferir o valor da vista da paisagem, em especial do mar.

224
Diz Von Martius: “em cima, casas altas, tendo do lado do mar compridas varandas de
madeira, denotam ser uma cidade mais industrial e populosa do que belamente
edificada”.117 Algo disso aparece em alguns dos sobrados apontados em duas pinturas: no
Teatro São João com Vista da Baía de Todos os Santos (1855), de Thomas Colman, e na
Vista da Cidade de Salvador (c.1860). Em ambos os casos, são construções de madeira,
apostas ao corpo mais robusto da edificação. Seriam remanescentes daqueles balcões, tão
comuns ainda no começo do século e retirados pelo esforço civilizatório. Estariam nos
fundos das casas, voltados para a encosta, e talvez usufruídos pela valorização crescente
da vista.

4.3. As Áreas Verdes e o Litoral


A paisagem, as dilatadas vistas coloniais, eram apreciadas na medida em que era
modificada pela indústria humana. Perdurava esse valor n´A Engenheida. Tal transformação
se via com mais precisão nas quintas ou casas de recreio, expressões usadas à larga, sem
uma precisão tipológica. Ali se percebe ademais com clareza o que era o ambiente do
encanto luso. Foram fundamentais na ocupação do território, na constituição da paisagem,
como situação aprazível à distância, na adaptação das espécies e suas variantes, além
também de locus do deleite próprio.

As palavras são escassas a respeito da sensibilidade, apenas tocando na superfície.


Sabemos que existiam esses espaços e tentaremos rastrear a sensibilidade a partir da
constância de certos recursos. A estética das áreas verdes mesclava-se com o utilitário, o
fortemente utilitário, o verdadeiramente imprescindível. Vários aspectos na vegetação
antropizada pelo português se confundem e fogem aos modelos europeus, dificultando a
descrição e compreensão pelos visitantes.

Um deles é a amálgama entre o uso mais imediato – como a venda – e o deleite, no uso das
roças, hortos, etc.

A outra é a diferença entre a quinta de recreio e a casa de fazenda, que não é aquela entre
os elementos, mas da importância e do papel da propriedade na vida dos seus donos.
Entrelaçavam-se os deslocamentos estivais: se o descanso se dava na cidade, com a
unidade produtiva (a fazenda, o engenho) como centro, ou nas quintas, chácaras e
fazendas, a partir do sobrado urbano.

Pois a evolução histórica do jardim português não é tanto dos elementos, mas dos fins. As
hortas e pomares se tornaram espaços de recreio, sem mudar as características espaciais,
apenas reforçando este ou aquele elemento.118 O mesmo continuum se manifestava na
transição de ênfase rumo às classes mais altas, que ali instalavam o seu deleite.119 Nos
quintais, roças, e fazendas, mesclavam-se as modalidades de vegetação: as plantações, as
hortas, os jardins, os pomares e arvoredos, as matas e brejos. Os subespaços das áreas
verdes portuguesas eram definidos não necessariamente por um desenho prévio, visível, ou

117
SPIX & MARTIUS, 2016, p.87.
118
Com a “valoração estética, do maximum qualitativo das práticas e técnicas agrícolas” (CARAPINHA, Aurora da Conceição
Parreira. Da Essência do Jardim Português. 2vol. 1995. Tese (Doutorado em Arquitectura Paisagista) – Universidade de
Évora, Évora. 1995).
119
Em contrapartida as hortas e pomares das classes sociais com maiores posses, revelam-se como espaços marcadamente
de recreio, não só por aquelas características, mas sobretudo, pela valoração estética, que as técnicas de jardinagem aí
operam. (CARAPINHA, 1995, p.77).

225
elementos construtivos, mas pelas culturas desenvolvidas, pelas espécies vegetais.120
Orlando Ribeiro chamava cultura promíscua a mistura de ervas, arbustos, árvores.121

Agravado pela ambivalência de conteúdo e escala da palavra “roça”, que abrangia toda
forma de cultivo, de quintais, pequenas fazendas, chácaras, a grandes herdades. Assim
como do termo “quinta”. Como se não bastasse a ambiguidade dos textos portugueses,
também os estrangeiros confundiam-se, tomando uma coisa por outra, ou empregando um
termo unitário, como “jardim”, para o que era uma área verde mais densa em funções.122

E, em outra escala, a amálgama das propriedades, em uma tapeçaria verde confusa,


divididas por muros, muros baixos, cercas, cercas vivas, valados.

Soma-se a topografia da cidade, com seus vales profundos e cumeadas serpenteantes. Os


cultivos penetravam fundo em áreas centrais, ao passo que a urbanização se dava pelo
topo, avançando de modo tentacular sobre áreas rurais. Mesmo as freguesias ditas urbanas
possuíam plantações (Figs. 126 e 127). Ainda nos anos 1850, encontravam-se sítios,
fazendas e até engenhos nas freguesias da Vitória e do Santo Antônio Além do Carmo.123

Salvador era surpreendentemente rural. Se a área urbana defronte das casas era
desguarnecida de árvores e vegetação de qualquer tipo, a partir dos quintais descia-se para
uma mata bastante transformada, que alternava do prado à capoeira densa, que tinha um
caráter híbrido e contínuo. Sequer havia uma distinção de espécies vegetais urbanas e
rurais: o que se plantava em um lado, plantava-se em outro.124

Essa confusão das plantas, e das propriedades nos seus limites, não raro fazia com que os
visitantes vissem como uma mata exuberante o que era uma paisagem profundamente
transformada pela mão humana, inclusive nos espécimes, trazidos de outros continentes,
como as jaqueiras e mangueiras. A floresta tropical, imitada nas estufas, era uma tapeçaria
entretecida no entorno imediato das cidades. A mata de regeneração, de capoeira, das
margens do Dique foi tratada como um Paraíso Terrestre por Maximiliano de Habsburgo. E,
sobretudo, nas pinturas, menos partícipes da educação das classes letradas.

O entorno da cidade desde seus primórdios fora desenhado como um cinturão verde para o
abastecimento125, que fora descrito várias vezes, ora enfatizando-se seu caráter de hortas,
ora como jardins. Quando era ambos.

As campanhas do contorno da cidade se veem fabricadas com


maravilhosas casas de campo, e quintas de rendimento, e recreio,
abundantes de copados, e frutíferos arvoredos, cultivados de várias
hortaliças, ervas, e flores, que rasgam inumeráveis correntes cristalinas,

120
CARAPINHA, 1995, p.61.
121
OLIVEIRA, Marcelo Almeida. Jardins coloniais brasileiros, lugares do útil ao agradável. In: RHAA – Revista de História da
Arte e Arqueologia n.16, Jul/ Dez de 2011, Brasil. CHAA – Centro de História da Arte e Arqueologia. Programa de Pós-
Graduação do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UNICAMP, 2011, p.13. Coincidia com a
prática de alguns povos africanos, como os Asante [Ashanti ou Axante], tal qual descreve Paul Oliver (Learning from Asante.
In: OLIVER, Paul. Built to Meet Needs: cultural issues in vernacular architecture. Oxford, UK: Architectural Press, 2006, p.47):
o que ele entendera de entrada como uma floresta tropical era de fato a área de cultivo em Kumasi, Gana. Permitindo
especular esse aporte convergente dos contingentes africanos.
122
Nota José Newton Coelho Meneses (Pátio cercado por árvores de espinho e outras frutas, sem ordem e sem simetria: o
quintal em vilas e arraiais de Minas Gerais. (séculos XVIII e XIX). In: Anais do Museu Paulista, v. 23 (2), p. 69-92, 2015) que
Auguste de Saint-Hilaire chamava os quintais de Minas Gerais de “jardins”, no original em francês. As citações dos
estrangeiros devem ser vistas, portanto, sob esse prisma: que estão a chamar de jardins o que é esse espaço mesclado e
indistinto, com flores de fato, mas também pomares (incluindo a divisão portuguesa entre os pomares e as árvores de
espinho) e hortas.
123
BARICKMAN, 2003, p.97.
124
DOURADO, G. M. Vegetação e quintais na casa brasileira. In: Paisagem e Ambiente: ensaios. n.19, p. 83-102, 2004.
125
SOUSA, 2010, p.132. Reconhece-se, sim, a prática urbanística de cinturões verdes para o abastecimento. Porém, segundo
Barickman, na prática, era o conjunto do Recôncavo que acabava por alimentar a cidade. A tal ponto que, durante a
Sabinada, a cidade ficou à míngua. E, como mostrou Richard Graham, o mesmo ocorreu durante as guerras de
independência.

226
formando este pênsil um formoso espetáculo aos olhos, e sendo emprego
não só da vista, mas de todos os sentidos. (ROCHA PITA, 2013, p.72).

Estas casas de campo e quintas eram pródigas de frutos e refrescos aos seus moradores e
aos barcos que aportavam. Nesse meio, espécies exóticas e nativas se confundiam.

Os jesuítas criaram tais lugares. No Colégio dos Jesuítas, ao Terreiro de Jesus, em terras
que desciam a encosta da Montanha, havia “uma fonte perene de boa água com seu
tanque, aonde se vão recrear; está cheia de árvores d´espinho, parreiras de Portugal”.126 E
no que se chamou de Quinta do Tanque, e depois Quinta dos Lázaros, por um “tanque mui
formoso, em que andará um bom navio; anda cheio de peixes; junto a ele há muitos
bosques de arvoredos mui frescos; ali se vão recrear os assuetos”.127 Este Tanque não é o
viveiro ou um tanque de alvenaria, comum nas quintas de recreio lusitanas, mas
aparentemente uma represa ou açude (que também se chamava “tanque”). A Quinta era
local de recreação, de um descanso tranqüilo, mesclado com atividade produtiva.

As hortas e pomares particulares eram iniciativas, tanto dos jesuítas como das centenas,
milhares, de pequenas propriedades, onde sementes eram permutadas entre vizinhos, e
mesmo carregadas pelos animais e pelo vento.128 A paisagem em torno da cidade, que já se
iniciava no fundo das casas, nos seus quintais e fundos de vale, era variegada, uma
tessitura verde indistinta em suas formas e espécies.129

As cercas vivas nos terrenos, usuais pelo alto custo dos muros, facilitavam essa visão. Eram
empregadas as tradicionais “árvores de espinho”, da tradição lusitana130, referidas por
testemunhos diversos.131 Era algo afim à jardinagem portuguesa esse uso para os citrinos:
“rodeará pelos extremos, quase servindo de muro, a espinhosa cidreira, colmada dos
belíssimos pomos”.132 Também havia cercas de bromélias, como de cactos.133 Era
expediente análogo aos que Gunter Weimer, encontra na África, embora, como visto por
Simão de Vasconcellos, nos primórdios da Bahia já existisse.134

Tratamos de uma domesticação literal da natureza. Se os quintais eram uma transição


perpendicular às curvas de nível, das ruas e largos, símbolos da urbanidade, para os fundos
de vale, também formavam corredores ecológicos. Assinala Jan Maurício Oliveira Van
Holthe, após exaustivo e detalhado levantamento nos quintais da Salvador colonial e
imperial, as muitas funções que abrigavam.135 Serviam como área livre para oficinas de
todas as classes sociais, como armazém e extensão da cozinha, para os preparos mais
pesados, em telheiros. Eram locais ainda da limpeza em suas várias formas, da lavagem,
secagem e tingimento de roupas, e, com as novas medidas de higiene de meados do século
XIX, das casas de banho ou banheiros; e das excreções, depois dos “tigres”, nas latrinas ou
secretas. Se não no quintal, através dele, aos rios, lagos e fontes públicas atrás das casas.
Acedia-se por ruas de servidão, correndo laterais à casa, para os portões e porteiras nos
muros e cercas dos quintais, criando uma zona intermediária entre a frente e o fundo. Nas
hortas, pomares e jardins se cultivavam alimentos, plantas medicinais, e tintureiras, para

126
CARDIM, 2014, p.315.
127
CARDIM, 2014, p.315.
128
OLIVEIRA, Marcelo Almeida. As roças brasileiras, do período colonial à atualidade caracterização histórica e formal de uma
categoria tipológica. In: VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol.28, no 48, p.755-780: jul/dez 2012, p.766.
129
DAMPIER, 1703, p.52; PYRARD DE LAVAL, 1890, p.316; AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.24; MAXIMILIANO DE HABSBURGO,
1982, p.71; LISLE, J.G. Semple. The Life of Major J.G. Semple Lisle... 2ed. London: W. Stewart, 1800, p.293.
130
OLIVEIRA, 2011, p.8; CARAPINHA, 1995.
131
TOLLENARE, 1956, p.297; KIDDER, 1845b, p.23.
132
DIÁLOGOS..., 1966, p.142.
133
Das bromélias, temos: SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865b, p.127; HUELL, 2009, p.187; WETHERELL, s/d, p.35, p.126;
MAXIMILIANO, 1958, p.81. Dos cactos, WETHERELL, s/d, p.123; p.126.
134
WEIMER, 2014.
135
HOLTHE, 2002.

227
simpatias e proteção profilática, para enfeites domésticos e decoração nas festas, para o
perfume e combate aos maus odores.136

Figura 126 – Geografica Topografica da Cidade Capital de S. Salvador (1785). Fonte: REIS FILHO,
2001. Esta planta da cidade é interessante por inverter a relação figura-fundo, e acabar enfatizando
as áreas verdes, ou seja, os vales na prática, em detrimento da massa edificada. Assim, vemos o
caráter de hortas, de campos de hortaliças, nos alagadiços dos fundos de vale. Á esquerda, o vale do
Rio das Tripas no trecho da Baixa dos Sapateiros, sendo urbanizado com caminhos vencendo as
duas cumeadas. Abaixo, à esquerda, o grotão do Aquidabã, onde se abriria depois o Túnel Américo
Simas. No quadrante superior direito, o vale de Nazaré e, no outro quadrante superior, a continuidade
do Rio das Tripas, na região das Sete Portas.

136
CARAPINHA, 1995, p.58; HOLTHE, 2002; FREYRE, Gilberto. Sobrados & Mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2004, p.320.

228
Figura 127 – Mappa Topographico da Cidade de S. Salvador na Capitania da Bahia Situada...
(c.1785). Fonte: REIS FILHO, 2001.A base é idêntica à anterior, enfatizando a área construída
e outro tipo de cultivo. Abaixo, à esquerda, apenas uma indicação, com árvores
geometricamente plantadas, das roças que seriam transformadas no Passeio Público. Abaixo,
à direita, roças do Noviciado dos Jesuítas.

Os quintais podiam ser ainda abrigo de animais de montaria e de carga, lugar de criação de
animais para subsistência, e ainda preparo de alimentos, como secagem e salga. Em uma
sociedade da escassez, as crises alimentares eram contrabalançadas no sustento
doméstico com o plantio no quintal e nas roças, e a criação de animais. Igualmente era
fundamental o quintal como potencial fonte d´água, ou para o gasto ou para beber, tanto de
poços, como de cisternas e barricões, até para recolher das fontes públicas, rios e lagos.137

137
HOLTHE, 2002, p.230.

229
Os quintais funcionavam como um ambiente aberto de múltiplas funções, atendendo aos
interiores estreitos e relativamente homogêneos entre as famílias, e abrigando a variedade
de atividades entre as mesmas. Entre elas, aquelas ligadas ao convívio, para o
congraçamento da família. John Luccock, para o Rio de Janeiro de 1808, descreve algo
desse quintal para as famílias mais abastadas: voltada para esta área verde, havia uma
varanda corrida. Ali ficavam, ali era seu espaço de descanso, “tão isolados do mundo como
poderiam estar nas profundezas de uma floresta”, e ali mesmo podiam comer, em alguma
mesa antiga.138 Suspeitamos ainda, baseado em como ainda se utilizam os quintais em
pequenas localidades da Bahia, como por ali se estabeleciam relações entre vizinhos.

Dos elementos usuais nesse tipo de ambiente, estavam aquelas estruturas para parreiras e
trepadeiras, como pergolados, caramanchões e latadas (construções mais simples, sem a
robustez das anteriores); caniços (muretas de ripados de galhos) e arrimos; chafarizes,
repuxos, tanques de água perene, para a rega; adornos em pedra (lioz, granito, mármore,
calcário), ferro ou louça (esculturas, vasos, pinhas, obeliscos, balaustradas). Aurora
Carapinha defende que a Arte de Jardinar lusitana, e esses espaços de recreio
desenvolvidos a partir de elementos e espaços produtivos, era pautada não pela
deambulação em alamedas e caminhos outros, mas pela permanência, pelo estar, e um
estar à sombra. Daí aquelas coberturas e bancos, à margem de tanques, herdados por um
lado de uma tradição anterior, continuidade da linguagem hispano muçulmana e, por outro,
resposta ao clima mediterrâneo, com temperatura e luminosidade elevadas.139 O que parece
ser uma casa de prazer, chamada casa de recreio, aparece em anúncio de 1838:

- Vende-se no largo de Nazareth, a casa nobre de 2 andares, que foi do


fallecido Antonio Vaz de Carvalho: tem roça toda murada que deita para o
Dique, com agoa dentro, grande cisterna de pedra e cal, uma bonita casa
de recreio dentro da roça, cavallarice para 6 cavallos [...]140

Em Salvador, temos umas poucas descrições desses lugares. Maria Graham descreve a
Roça onde emergencialmente fizeram uma garden party:

É moda calçar os pátios das casas de campo com seixos escuros, e formar
no piso uma espécie de mosaico com conchas de um branco leitoso. Os
jardins estão dispostos em vielas, algo ao gosto oriental. [...] No jardim da
Roça [sic], cada arbusto importante, seja frutífero ou ornamental, estavam
tão protegidos, e havia assentos, regos de água, e vasos de porcelana, que
quase me fizeram pensar estar no Oriente. (GRAHAM, 1824, p.146 –
tradução nossa).141

E ainda:

Às vezes o jardim é adjacente à casa, e nos arredores é geralmente este o


caso. Na cidade, muito poucas casas têm o luxo de um jardim. Esses
jardins são mais parecidos a vasos de flor orientais, mas eles se adaptam
bem ao clima. As flores dos parterres da Europa crescem ao lado das
plantas e arbustos mais alegres da região, sombreadas pelas laranjas,

138
The family commonly occupy the Varanda at the back of the house; and here are almost as much secluded from the world as
they could be in the depths of a forest. (LUCCOCK, John. Notes on Rio de Janeiro and the southern parts of Brazil; taken
during a residence of ten years in that country, from 1808 to 1818. London: Samuel Leigh, in the Strand, 1820, p.120).
139
CARAPINHA, 1995, p.342.
140
O CORREIO MERCANTIL n.598, Quarta-Feira 7 de Novembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838. Poderia ter alguma relação com o Antônio Vaz de Carvalho que em 1840 (dois anos depois deste
anúncio, de um falecido Antônio Vaz) estava mudando-se para outro distrito, e vendendo fazendas na região de Itapuã.
141
It is the fashion to pave the courts of the country-houses here with dark pebbles, and to form in the pavement a sort of
mosaic with milk-white shells. The gardens are laid out in alleys, something in the oriental taste. [...] In the garden at
Roça, every shrub of value, either for fruit or beauty, was so fenced, and there were seats, and water channels, and
porcelain flowerpots, that made me almost think myself in the East. (GRAHAM, 1824, p.146).

230
bananas, frutas-pão (agora aqui quase naturalizada), e as palmeiras, entre
estreitas ruas de limoeiros, sobre cujas cabeças os cinamomos africanos
balançavam suas flores lilazes; e nos canais de água suspensos, vasos de
porcelana são postos, cheios de babosas e tuberosas, e aqui e ali
mesclados com estátuas. Nestes jardins ocasionalmente há fontes e
assentos sob as árvores, formando locais de descanso não desagradáveis
neste clima quente. (GRAHAM, 1824, p.162 – tradução nossa).142

Aqui identificamos os elementos que Carapinha mencionou, e Graham salientava os


assentos sob as árvores, os locais de descanso, o coração mesmo da jardinagem
portuguesa. Nos anúncios há menções fugazes, mas preciosas, aos jardins e quintais. Em
1812, que se vendia “huma Roça, em bom sitio, com seu pomar de espinho, latada de uvas,
e outras muitas plantas”.143 Num ambiente mais estreito, como se verá, em quintal urbano,
em 1845, o uso de parrões, em casas vendidas “na freguesia da Sé, por preço rasoavel e de
bom rendimento, tendo boa salla feichada, quatro quartos, salla de jantar, cozinha, quintal
murado com parrões”.144

Um elemento na descrição de Graham deve ser resgatado: os canais de água. Além dos
locais de sombra, como casas de regalo, eram bem-vindos tanques e espelhos d´água
construídos e água corrente.145 O revestimento azulejar, inteiriço e em mosaico, foi
incorporado pelos mesmos motivos.146 Nos Diálogos, o personagem Brandônio fala de um
projeto seu: “pois vos tenho já formado as hortas, jardins, latadas com suas fontes, tanques
e esguichos”.147 A água cumpria vários papéis nos jardins, e ainda mais em Salvador. A
sociedade da escassez também se refletia no acesso à água potável, essencial em tempos
de seca. Algumas fontes, como a de Santa Luzia no Solar do Unhão, teriam virtudes
miraculosas. E se água corrente era fonte de deleite, era também fundamental no combate à
centenária ferocidade das formigas.148 Maria Graham fala de pequenos canais que
protegiam as laranjeiras do seu ataque, técnica narrada já por Froger em 1696.149 Uma
modalidade mais simples era plantar árvores no centro de vasos de barros cheios d´água.150
Talvez não se tratasse de vasos cerâmicos propriamente ditos, mas algo apontado por
Wetherell: “cada uma delas [das plantas] tem que ser cercada de uma coroa de barro, que é
constantemente enchida de água e através da qual elas não podem passar”.151 Coincidindo
aproximadamente com a descrição de Graham: “é necessário cercar cada árvore com uma
pequena parede de estuque, ou melhor um canal, onde há água, até estarem fortes o
bastante”.152 Lindley também comentava sobre as árvores plantadas em valas circulares,
com suprimento constante de água por anos até alcançarem a resistência.153 As valas,
canaleta e canos d´água eram elementos ordenadores da forma dos jardins, mesmo depois,

142
Sometimes the garden is immediately close to the house, and in the suburbs this is generally the case. In town, very few
houses have the luxury of a garden at all. These gardens are rather like oriental flower-pots, but they assimilate well
with the climate. The flowers of the parterres of Europe grow by the side of the gayer plants and shrubs of the country,
shaded by the orange, banana, bread-fruit (now nearly naturalised here,) and the palms, between straight alleys of
limes, over whose heads the African melia waves its lilac blossoms; and on the raised water channels, china vases are
placed, filled with aloes and tuberoses, and here and there a statue intermixed. In these gardens there are occasionally
fountains and seats under the trees, forming places of no undelightful rest in this hot climate. (GRAHAM, 1824, p.162).
143
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.45, Sexta-Feira 5 de Junho de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.
144
O GUAYCURU n.139, Sábado 15 de Novembro de 1845. Salvador: Typ. de José da Cosa Villaça, à Ladeira da Praça, n.1,
1845.
145
CARAPINHA, 1995, p.23.
146
CARAPINHA, 1995, p.346.
147
DIÁLOGOS..., 1966, p.142.
148
VILHENA, 1922b, p.730; LINDLEY, 1805, p.134. Em Carta do P. Luiz da Grã a Santo Inácio, da Baía, 27 de Dezembro de
1553, aparece um dos primeiros registros desse problema secular (LEITE, 1940, p.162).
149
[...] ceux qui ont la curiosité d´entretenir des Jardins, sont obligez de faire de chaque quarreau une Isle par le moyen de
plusieurs petis canaux, où les Fourmis se noyent en passant. (FROGER, 1698, p.145).
150
DENIS, 1980, p.95; SPIX & MARTIUS, 2016, p.141.
151
WETHERELL, s/d, p.145.
152
[...] it necessary to surround each tree with a little stucco wall, or rather canal, in which there is water, till they are strong
enough to recover [...] (GRAHAM, 1824, p.146).
153
The trees are therefore generally planted in a circular trench, where water is constantly supplied for the first years, till
the tree attains such a growth as to bid defiance to this puny destroyer. (LINDLEY, 1805, p.134).

231
com a sofisticação dos mecanismos hidráulicos.154 A água era estruturante e se fruíam
mesmo aparatos de ordem utilitária como poços e noras. Se o clima tropical mudava o
aspecto da umidade do ar, as formigas davam novo impulso ao seu uso na Bahia. Porém
sempre a água domesticada.

A sombra, a água corrente, o perfume das flores, o cheiro dos citrinos, eram parte desse
ambiente da predileção luso-brasileira. Maior e mais vistoso, equipado e preparado, nos
quintais e roças de maiores proporções e posses. Rústico e simples, nos menores. Não era
um lugar de passeio público, familiar, para ver e ser visto, ou sítio de exploração estética
(como nas viagens pitorescas) ou científicas (as expedições dos naturalistas). Era local de
afazeres e necessidades múltiplas. E, entrando nos aspectos mais aprazíveis, era também
local íntimo de convívio, e de múltiplas realizações, incluindo o descanso nos tempos
quentes. Esse ambiente mais umbroso era criado e procurado nos quintais próprios, e nas
segundas residências, nas roças suburbanas e rurais, como se verá.

Esse ambiente, fechado em si mesmo, em algum momento se abria para o mar? Em algum
momento aproveitava-se de sua situação no alto da Montanha, ou encostado à praia,
qusando em terras mais baixas?

Algo recorrente na imagem do litoral da cidade, na descrição dos viajantes e estabelecidos


intencionalmente pelos luso-brasileiros, eram as aléias de palmeiras, fundamental nas
propriedades à beira-mar e mesmo de edifícios públicos, fazendo parte indispensável da
paisagem litorânea. O seu plantio sistemático nesse desenho e sem nenhum fim utilitário era
pura expressão estética.

Estherzilda Berenstein de Azevedo defende que, pela escassez de menções coloniais a


jardins nos engenhos durante a Colônia, salvo o período da ocupação holandesa em
Pernambuco, depreende-se que era norma a ausência de jardins e arborização.155 O
começo do século XIX fora a época da introdução de jardins nos engenhos, à maneira
francesa, com resquícios encontrados nos engenhos Paramirim, Subaé, Madruga e Europa,
e entendendo que outros existiram, desfeitos com o passar do tempo.156 Da jardinagem dos
engenhos, e fazenda, o que nos interessa é a prática das alamedas arborizadas, e o uso
mais específico das palmeiras imperiais. Habsburgo, ao visitar ao Engenho Novo, de Tomás
Pedreira Jeremoabo da Costa Vasconcelos, falou de “alguns grupos de palmeiras e
alamedas de jaqueiras erguem-se ao redor da habitação”.157 Ao descrever as redondezas,
mencionava “alameda de árvores de fruta-pão (Artocarpus incisa) verde-escura, de folhas
largas, orlava o caminho íngreme”158, e, em outro lugar da propriedade, fora do portão de um
“jardim sombreado”, as plantações de algodão, cujos “campos e caminhos eram orlados, em
verdadeiras linhas, com laranjeiras e árvores frutíferas europeias e, nas extremidades, com
alamedas de jaqueiras”.159 As alamedas de laranjeiras, formando “ruas”, eram parte da
herança portuguesa160, como também o emprego de outras árvores frutíferas, como as
romãzeiras: “façamos logo uma rua de romeiras com seu coroado fruto, que encerra dentro
em si finíssimos rubis”.161 Na Fazenda Itapipúca, na contracosta da Ilha dos Frades,
anunciava-se em 1850 que tinha, entre outras coisas, “rua dos melhores cajús e mais
medicinais”.162 Mesmo próximo à cidade, em propriedades menores, esse recurso se
repetia, como aléias para chegar-se às casas. Ver Huell descrevia, no seu caminho para a

154
OLIVEIRA, 2011, p.11.
155
AZEVEDO, 2009, p.63.
156
AZEVEDO, 2009, p.63.
157
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.187.
158
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.189.
159
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.192.
160
OLIVEIRA, 2011, p.15.
161
DIÁLOGOS..., 1966, p.142.
162
O GUAYCURU n.68, 29 de Novembro de 1850. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1850.

232
Barra, pela Estrada da Vitória e o que seria a Ladeira da Barra, “inúmeras casas de campo,
na maior parte das vezes situadas a alguma distância do caminho, ao final de alamedas
intensamente sombreadas por laranjeiras que também preenchiam o ar com um agradável
aroma”.163

Figura 128 – Bahia de todos os Santos aufgenommen nach der Natur, de Julius Naeher. Fonte
Fundação Biblioteca Nacional. O encanto dos estrangeiros pelas palmeiras de todo tipo se encontrou
com uma paisagem onde elas apareciam ao longo de todo o litoral. Abaixo, o Engeho Subaé com
suas palmeiras imperiais.

163
VER HUELL, 2009., p.156

233
Ao longo da silhueta da cidade, da Colina do Bonfim (acima da imagem-matriz) até o Outeiro
de Santo Antônio e o Farol da Barra.

234
A palmeira imperial fora obtida do jardim botânico La Pamplemousse, nas ilhas Maurício,
pelo militar português Luiz Abreu Vieira e Silva, aclimatada no Jardim Botânico do Rio de
Janeiro em 1809, e a partir daí suas sementes vendidas.164 O alto preço delas foi um dos
motivos de serem um signo distintivo de nobreza. No século XIX apareceriam com mais
intensidade os jardins murados e as aléias de palmeiras imperiais.165 Gilberto Freyre
apontava que as palmeiras imperiais eram na “ecologia patriarcal” brasileira um sinal de
perenidade, aposta nas casas nobres e até em túmulos monumentais.166 Houve aléias de
palmeiras pelo menos nos engenhos Cabonha, Cajaíba, Mata, Paramirim, Pouco Ponto e
Triunfo (Fig.128). Umas poucas, sem a formação de alamedas, houve nos engenhos Subaé
e São João.167 Anna Bittencourt descreve essas fileiras de palmeiras no engenho Coqueiro
Novo onde viveu: “uma planta daninha não manchava aquela alcatifa de verdura a que
serviam de relevo duas ordens de coqueiros que se estendiam em semicírculo, em frente da
casa”.168 E aparecia em outros lugares do litoral da cidade, como na igreja de Santo Antônio
da Barra, “rodeada de palmeiras e de um imenso pinheiro em forma de guarda-sol”169, ou no
Largo da Vitória (Fig. 129), ambos vistos desde os navios, formando, com outras, a silhueta
variada da cidade. Encontramo-las ainda na Ponta de Humaitá, como aléias nos Jardins de
Nazareth (Figs. 130 e 131). E também em propriedades privadas, “ecologia patriarcal”, nos
seus jardins frontais (Fig.132).

Ainda, o flanco da Montanha é uma parte da cidade fundamental para este tema. Se era um
fundo para os sobrados do topo da crista, e para as roças ao norte e ao sul, era frente para
certos edifícios, como a Igreja da Sé e constituía a fachada da cidade portuária, seu
frontispício. Era das primeiras feições da cidade vistas pelos viajantes, e capturada em
desenhos e pinturas, parte integral de sua paisagem. No sopé estavam os sobrados
valorizados pela vista do mar, nas primeiras décadas do século XIX por conta das atividades
do porto. O seu verde era fundamental para a sensibilidade pictórica dos estrangeiros.
Mesclavam-se ali na encosta da Montanha – tanto fisicamente, quanto na sua apreciação e
descrição por viajantes – os jardins efetivos dos sobrados, como uma vegetação mais livre,
que não necessariamente era acidental, podendo mesmo ser plantio, e aquela que cresciam
onde a declividade não permitia a exploração humana.

Alguns relatos apontavam a construção em terraços, quem sabe em socalcos, na encosta.


Tollenare fala de “várias igrejas e algumas casas particulares bem construídas acham-se
esparsas sobre esta montanha, em meio de jardins e de terraços gigantescos”.170 Em 1889,
Alfred Marc diz que "os jardins estão espalhados em terraços”.171 A investigação na
iconografia não revelou muito nesse sentido. Entre as construções mencionam-se jardins.
Ver Huell, vivendo um tempo no sopé da Montanha, e diante de um ataque repentino de
formigas ao seu estoque de farinha, especulava que deveriam ter vindo “de um dos jardins
inclinados existentes no elevado dorso da montanha que se erguia atrás da nossa casa”.172
Em 1848, Eugène Delessert diz que “as casas são intercaladas com jardins plantados com
árvores perenes, especialmente laranjeiras”.173 Junto com esses jardins construídos havia
uma tapeçaria verde na encosta. Habsburgo observava que entre as casas “jardins e
campos, com altivos grupos de árvores e com elegantes palmeiras, emprestam-lhe o
encanto exótico tropical”.174
164
AZEVEDO, 2009, p.63.
165
AZEVEDO, 2009, p.14.
166
FREYRE, 2004, p.45.
167
AZEVEDO, 2009, p.63.
168
BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. Longos Serões do Campo Vol.2 – Infância e Juventude. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1992b, p.155.
169
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.70.
170
TOLLENARE, 1956, p.280.
171
[...] les jardins s´échelonnent en terrasses, au-dessus desquels apparaissent les clochers et les édificies de la cité
ancienne [...] (MARC, 1889, p.317).
172
HUELL, 2009, p.148.
173
Les maisons son entremèlées de jardins plantés d´arbres toujours verts et notamment d´orangers [...] (DELESSERT,
1848, p.38).
174
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.71.

235
Figura 129 – Porto da Vitória, sem data. Fonte: CEAB. As palmeiras imperiais estavam no Largo da
Vitória, como também foram plantadas no séc. XIX, e cresceram com garbo em contenção sobre o
mar adjacente ao Cemitério dos Ingleses.

236
Figura 130 – Ponta de Monte Serrat, foto de Alice Brill. Fonte: FALCÃO, s/d. Eram um dos marcos da
Ponta do Humaitá, onde estava a Igreja de N. Sra. de Montserrate.

Figura 131 – Bahia, de 1909, da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. A aléia de palmeiras
era recurso urbanístico de embelezamento urbano, como foi um dia nos Jardins de Nazareth.

237
Figura 132 – Campo Grande (c.1890), de Guilherme Gaensly & Rodolpho Lindemann. Fonte:
FERREZ, 1988. Os jardins frontais com palmeiras imperiais confirmavam a afirmação de Gilberto
Freyre, do papel desta árvore como símbolo de status.

Destacava-se o Solar Bandeira, na Soledade: "em um vale, a pouca distância da Soledade,


há um jardim e um jardim de regalo de um rico comerciante [...] eles brilhavam, à distância
desde onde eu os via, com estátuas, etc.”.175 O Solar possuía um terraço relativamente
vasto, com jardins geométricos, e ali aconteciam encontros sociais (Fig.133). Não parece ter
sido esse depoimento e a gravura correspondente uma janela para algo mais usual, e sim
um caso singular. Terraços daquele tipo e envergadura não se repetiam. Domingos Rebello
o marcava: “o mais notável [dos edifícios particulares era] o do Comendador Bandeira, ao
princípio da ladeira da Soledade”.176

Temos duas descrições deste espaço: a escrita por Thomas Lindley, e uma gravura de
Julius Naeher. É singular pelo seu relativo fausto, e por sua orientação: em um terraço na
encosta da Montanha, voltado para a Baía de Todos os Santos. Visitou Lindley com sua
esposa o jardim.

O encanto e orgulho da Bahia: está localizado da maneira mais


encantadora; mas o lugar em si é arranjado e decorado frivolamente no
velho estilo francês; consistindo de pequenos canteiros de flores disposto
em várias formas, e guardado por inúmeras divindades inertes e estátuas,
demarcando cada ângulo dos caminhos, e engastados nas paredes da
entrada, patamares e terraços da casa, &c. &c. Uma pequena fonte está no
centro de um jardim interno, e além dele uma gruta, miseravelmente

175
In a valley, at a small distance from Solidade, are a garden and pleasure garden of a rich merchant [...]They glittered, at
the distance from which I viewed them, with statues, &c. [...] (LINDLEY, 1805, p.112).
Por “vale”, aí entendemos uma baixada, uma falha na Montanha, justamente por onde se construiu um túnel recentemente
para a Via Porto. O solar pertencia originalmente a Pedro Rodrigues Bandeira (1768-1835), dos mais importantes
negociantes da época, e junto com Antônio Pedroso de Albuquerque, os mais notáveis moradores da Freguesia de Santo
Antônio Além do Carmo (NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez Freguesias da Cidade do Salvador: aspectos sociais e
urbanos do século XIX. Salvador: EDUFBA, 2007, p.134). Esse mesmo Antônio Pedroso tem um papel significativo na
história do arrabalde da Barra.
176
REBELLO, 1829, p.176.

238
disposta, e as conchas insignificantes, apesar deste país propiciar uma
variedade tão grande de produtos marinhos valiosos.

Um caramanchão coberto por uma bela trepadeira nativa atraiu minha


atenção; como fez também a variedade de flores, muitas das quais
indescritíveis. Os terrenos ao redor do jardim ainda estavam intocados, e
capazes de serem arranjados em um estilo mais elegante [...] (LINDLEY,
1805, p.132 – tradução nossa).177

Figura 133 – Solar na Soledade (1879), de Julius Naeher. Fonte: ATHAYDE, 2008. Na gravura, o
jardim aparece dividido geometricamente em tabuleiros baixos (não são parterres, e não apresentam
formas variadas). No centro há uma estátua elevada, com jarros. Nas bordas, muros que são bancos
– como aparecem nas fotos atuais –, jarros nos muros (festões) a cada tanto. Nas extremidades
rentes ao solar, duas árvores ainda baixas, com escadarias que descem à encosta. Ao fundo, a
encosta verdejante da montanha, com palmeiras. O subespaço descrito por Lindley, do jardim interno,
caramanchão e fonte, e a gruta, não aparece na gravura. Não encontramos nada remotamente
similar em nenhum dos registros do frontispício da cidade. Os terraços ajardinados ou com quintais
também eram raros, ao menos nas imediações do Porto, de onde temos mais imagens.

O caramanchão e a fonte correspondem àquele tipo de subespaço mais português, de


descanso à sombra, de que falava Carapinha. É digno de nota que já desde o começo do
século um contrabandista, como era Lindley, desgostava da jardinagem no “velho estilo

177
[...] the wonder and pride of Bahia: it is situated most charmingly, but the place itself is frivolously arranged and
decorated in the old French style; consisting of small flower-parterres laid out in various shapes, and guarded by
numberless leaden divinities and statues, which marked each angle of the walks, and were stuck on the walls of
entrance, steps and terrace of the house, &c. &c. A small fountain was in the centre of an inner garden, and beyond that
a grotto, miserably disposed, and the shells paltry, notwithstanding this country affords so great a variety of valuable
marine and concrete productions.
A summer-house covered with a beautiful native running shrub, attracted my attention; as did also the variety of flowers,
several of which are non-descript. The grounds around the garden are yet untouched, and capable of being disposed in
the most elegant style [...] (LINDLEY, 1805, p.132).

239
francês”, dentro da mudança da sensibilidade inglesa, e que fora este estilo, para ele já
anacrônico, que orientava os jardins do Solar. A preferência já se inclinava para formas sem
o menor traço da geometria e da aparente ordem humana, sem os parterres e topiaria,
sequer os elementos físicos de gosto português, como as latadas, os muros e bancos, os
alegretes.

Será que o jardim de Solar Bandeira, como conceito, era uma exceção? Um depoimento
singular de Anna Bittencourt aponta outra possibilidade:

Felizmente, já estávamos perto da roça de Frei Custódio, frade carmelita,


amigo do Monsenhor Silveira [...] O aspecto da roça agradou-me
sumamente, o que era natural para quem não conhecia as magnificências
das habitações da Bahia. Um largo portão de ferro dava para um vasto
jardim também dividido em tabuleiros nos quais, artisticamente plantadas,
viam-se flores variadas. Nas grades que ladeavam o caminho que ia até a
casa, ostentavam-se lindas trepadeiras. O administrador veio com a mulher
receber-nos com agrado, convidando-nos a entrar. Não aceitamos. Para um
descanso de pouco tempo, era preferível repousar nos bancos do jardim.
Havia ali um mirante, e Henriqueta provocou-me:

- Se não estivesses tão cansada, convidar-te-ia para subir ali, donde se


avista toda a cidade.

Prevaleceu a curiosidade, e subimos a longa escada que levava ao mirante.


Valeu a pena o esforço. A vista era admirável!

- Se o sol não estivesse já posto, disse Henriqueta, ainda mais esplêndida


pareceria a cidade!

Na vasta aglomeração de casas, destacavam-se as torres de numerosas


igrejas: espetáculo grandioso e novo para mim. Não demoramos mais
tempo, porque meu pai advertiu-nos serem horas de continuar a viagem.
(BITTENCOURT, 1992b, p.101).

O jardim tinha, seguindo o até agora disposto, os assentos, mas também um mirante. Anna
Bittencourt descreve um maravilhamento: a madura escritora relembrava das sensações de
menina. Como toda descrição brasileira de paisagens, é extremamente concisa. Mas revela
a existência de um espaço desenhado para tanto.

E, além dos engenhos altaneiros pelo Recôncavo, ou dos sobrados na encosta da


Montanha, há um outro caso interessante, na Península de Itapagipe, que aparece com a
urbanização da área, em torno da Calçada do Bonfim. É um dos únicos lugares onde certa
configuração pôde aparecer: de sobrados em contato franco com a praia, ainda que estreita,
sem nenhuma rua ou caminho entre ambos.

Em conto de Xavier Marques, passado em fins do século XIX, descreve-se uma residência
na região, com fundos para o mar, pertencente a um casal de posses.

É uma casa grande, repartida em vastos compartimentos de rico aspecto,


com vista para uma rua larga e calçada, por onde rodam carros troantes, dia
e noite. Os fundos, em vez de simples tapume com porteira, têm um jardim
murado, caramanchões vestidos de trepadeiras, piso de conchas ligadas
em argamassa, um portão de ferro gradeado que deixa ver uma praia muito
limpa, e distante, no mar, imensidade de vapores, barcos, saveiros, lanchas
e escaleres, em contínuo tráfego.

[...]

240
Há mais no jardim, ao longo do muro, uma gaiola-viveiro, com aves de
espécies e cores várias, periquitos, canários, sabiás, uma bela colheireira
de plumagem rósea, negras graúnas constrastando a vestidura branca, tão
singela, de umas garças que os filhos da Madrinha trouxeram da ilha dos
Frades. (MARQUES, 1976a, p.67).

Mais adiante, que nesse quintal havia um “coradouro de cimento ao pé do muro”.178 Sua
constituição é afim à sensibilidade descrita, e abria uma discreta porta, aos fundos, para a
praia, que seria então frequentada.

A situação dos brasileiros na Vitória indica a emulação de uma escolha locacional, a partir
do prestígio dos estrangeiros, mas não o complexo de hábitos que lhe eram correlatos.
Carecia completamente da relação das residências familiares com o veraneio e com os
deslocamentos relacionados ao rico complexo festivo da Bahia. A ocupação das povoações
da Península de Itapagipe, do Rio Vermelho, e em uma medida menor da Barra, estavam
animadas sob essa lógica, que não é a mesma que levou à presença na Vitória e Graça.
Como lugares como o Bonfim e Rio Vermelho tiveram uma vida longa de segundas
residências, que escapavam à malha da rede dos Almanaques, permanece um “silêncio”
que precisa ser preenchido com informações de outra natureza para reconstituir essa
dinâmica social e seus impactos na urbanização da cidade. E sobretudo a expansão para
Itapagipe não se explica pela emulação aos estrangeiros.

No Brasil colonial havia claramente desenvolvido o encanto sensorial com o ambiente


natural, ainda e principalmente quando transformado pela empresa humana. E, em gérmen,
o apreço pela paisagem, ainda não emoldurada sob a estrutura da pintura, sem referência à
idealização do selvagem próprio da jardinagem paisagística romântica, com “vistas
dilatadas”. O código do pitoresco fora absorvido de maneira incompleta, ou podemos pensar
que subserviente aos interesses particulares. Mesclava-se com antigos valores, convivendo,
como visto n´A Engenheida, e sem expressão escrita que fosse pouco mais que indicativa,
como o “pitoresco”.

O termo pitoresco entrou no vocabulário brasileiro no século XIX, sem vir acompanhado do
seu arcabouço pictórico, tanto do ato de desenhar, como da experiência da contemplação
das pinturas. Falar em pitoresco faz sentido quando se há o costume de contemplar pinturas
paisagísticas, e sobretudo quando se há mesmo o costume generalizado de desenhar. De
ter de escolher bons sítios de contemplação, ideais para o desenho – portanto, dignos de
pintura – isto é, pitorescos. O pitoresco torna-se um adjetivo esvaziado de sua experiência
cotidiana. Daí que o termo “pitoresco” se deteriorasse, perdesse toda essa gama de
significados, chegando mesmo a conglomerar-se com outro termo, “arrabalde”, formando
uma espécie de palavra composta, o “pitoresco arrabalde”, tantas vezes repetido nos
documentos escritos da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX.179

Havia o desenho como parte da esquálida formação das mulheres, junto como canto e o
domínio de algum instrumento.

178
MARQUES, 1976a, p.69.
179
A exemplo da edição de 9 de dezembro de 1900 do periódico baiano A Coisa sobre o Rio Vermelho: “este aprazível e
pittoresco arrabalde tem muito caixeiro, muita mocinha bonita e naturalmente muito brêdo”. Ou Afonso Costa, sobre Adelia
Josephina de Castro Rebello, nascida em 1827, no centenário de seu nascimento, citava o que um crítico dissera: “em
confortaveis lares, em pitorescos arrabaldes, no alto do Bonfim, na ponta de Montserrat, nas povoações da Barra, do Rio
Vermelho” (COSTA, Afonso. Poetisas Bahianas. Adelia Fonseca. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, 1927 (1º e 2º semestres) n.53, Bahia: Secção Graphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1927, p.451). Ainda, no
Roteiro Turístico de Salvador de 1958: “Retomando-se a Avenida Presidente Vargas, chega-se ao Rio Vermelho, arrabalde
pitoresco e histórico” (PREFEITURA DE SALVADOR. Roteiro Turístico de Salvador. Salvador: 1958, p.11). E assim,
indefinidamente.

241
Logo que o Monsenhor seguiu para Sergipe, Henriqueta e eu iniciamos o
nosso aprendizado com Emilia. Foi para mim um dia de imenso regozijo
aquele em que recebi a primeira lição de piano. Conhecendo
suficientemente música, não encontrei grande dificuldade. Emilia começara
a estudar desenho no Rio. Minha mãe pediu-lhe que me desse umas lições.
Também iniciei o estudo de francês com bastante gosto. Não aconteceu
assim, porém, com o desenho. Mostrei-me desajeitada, como sempre fora
para a escrita, ficando, por isso, com péssima letra. (BITTENCOURT,
1992b, p.132).

E, ao menos em alguns casos, eram os estrangeiros em circulação pelo país os procurados,


embora sem muito sucesso segundo Tollenare: “as lições dos mestres de desenho que se
encontra aqui levam, quando muito, os discípulos a saber traçar alguns ornamentos para os
decoradores e os moldes para os bordados”.180 Mas essa habilidade não tinha o peso que
em outros países, não se consolidara em hábito e em um debate público sobre a Arte e
sobre as obras individuais. Encontramos anúncio em 1840 vendendo “caixas de charão com
tintas e mais pertences para desenho”, mas entre meio de muitas outras coisas, e pontual
apenas, sem maior presença.181

Assim, vimos que Rebello, Accioli e Patroni, ao descreverem o que seria uma paisagem
deslumbrante aos olhos, e sob a pena, de um estrangeiro, apenas diziam: pitoresco. O fato
de não termos versões convenientes para palavras como richness e o verbo enrich, variety e
o adjetivo varied ou o verbo diversified aplicados à pintura ou às cenas, à paisagem,
demonstra que não houve essa percolação; deteve-se no pitoresco, na cena, no quadro,
mas não na terminologia daquele período. Tanto que veremos o adjetivo, mas não a
estrutura do olhar descrita nos textos.182 Bastava essa palavra para evocar tudo que deveria
ser dito e não foi.

Quando era o mar, era sempre uma “boa (ou excelente) vista do mar”. Quem escrevia não
sentia algo mais detalhado ou a necessidade de realizar essa dissecação do ato de ver,
nem para si mesmo, nem para os leitores.

A sensibilidade não é uma parte autônoma da sociedade. Os debates estéticos radicavam


em uma cosmovisão em transformação na Europa, incluindo a Ciência, a Política e a
Religião. Mesclavam-se, exsudando a cada momento dos documentos dos estrangeiros. Por
outro lado, se cristalizam nas formas simbólicas da Arte (entre elas, da Literatura), como
imagens, lugares-comuns, frases feitas, que, desgarradas, podem ser repetidas, embora
esvaziadas de sua substância original, e preenchidas com outra. Entre elas,
inevitavelmente, o prestígio dado pelas luzes da civilização, por incorporar o que vem da
Europa, daqueles países considerados o ápice do progresso.

Poderíamos considerar que era apenas um floreio retórico, era uma referência indireta a um
tipo de bom gosto. Tudo apontaria para essa interpretação. Porém o que vimos foi o
contrário. Por trás do elogio lacônico, havia um valor inconteste. Valor mesmo pecuniário, na
venda de imóveis, na revalorização de residências ao longo de todo o flanco da Montanha
que abria para a baía. Em um grau menor, para aquelas vistas amplas sobre a cidade.
Houve de alguma maneira a transmissão de valores, e sequer se dera no vazio, mas parece
ancorar-se em apreço anterior, expresso antes e depois de modo compacto.

180
TOLLENARE, 1956, p.363.
181
O CORREIO MERCANTIL n.216, Quinta-Feira 8 de Outubro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
182
PAZ, 2018b.

242
Ainda menos presente nos documentos escritos estava o cuidado dos luso-brasileiros com
suas áreas verdes domésticas.

Em alguns casos elas tornavam-se visíveis, e explodiam à luz no litoral da baía e da cidade.
Se certas palmeiras (coqueiros, dendezeiros, piaçaveiras) eram plantações, e a composição
da paisagem era o resultado inevitável, as palmeiras imperiais eram postas exclusivamente
sob critérios estéticos, em uma tangência com os valores estéticos dos viajantes. A espécie
e sua disposição, e o ganho desse papel simbólico, nos interessa como um arranjo vegetal
que aparecia constantemente à beira-mar, rente às águas ou a cavaleiro, constituindo parte
da paisagem litorânea.

Mas, nas convergências, diferenças. Por exemplo, a água era algo bem-vindo, mas
corrente, na forma de regatos discretos, e invariavelmente domesticada. Criava um
ambiente de outra escala, acionando outras claves da sensibilidade. As áreas verdes eram
bem-vindas no deleite luso-brasileiro, inicialmente não como um espaço público, urbano, e
nem como mote explícito, a razão para ir-se a um lugar, como seria no futuro. Era algo das
residências, um espaço funcional e privado, que podia abrir-se à esfera mais íntima de
convívio, entre amigos e parentes. Isso leva à necessidade de entender, mais adiante, como
essa família baiana iria abrir-se para uma sociedade mais ampla, até sua completa
exposição em espaços públicos.

Houve mudanças significativas nos espaços verdes, em especial das classes altas, ao longo
do século XIX, pela imitação dos europeus. A mais evidente é a aparição dos jardins
frontais, como a separação nítida do que era antes promíscuo, imbricado. Outra foi a
mudança no quadro das espécies.183 Wetherell é testemunha em 1857 dessa mudança na
jardinagem. Acusava que “jardins vêm aparecendo em todos os cantos”184, ou seja, que as
flores se destacaram espacialmente da cultura promíscua dos quintais, privativos, para
áreas frontais e expostas. E que as espécies eram substituídas por aquelas européias, que
possuíam prestígio, como as camélias, feição de um processo de europeização que
colocaremos em questão mais adiante. Dentro da leva de estrangeiros buscando um
emprego na Bahia, como havia pintores, havia aqueles que traziam consigo as sementes
dessa nova jardinagem:

Hum Botanista Francez, chegado há poucos dias a esta Cidade, versado na


arte de formar, e embelecer os jardins, e de edificar casas de recreio,
oferece ao Público seus serviços para dirijir toda a espécie de cultura, tanto
de utilidade como de recreação [...].185

Não temos ciência se o processo imitativo tão intenso como Wetherell o anotara vingou de
alguma maneira. Permanecerá como uma incógnita.

Voltando à primeira metade do século XIX, as quintas e casas de recreio possuíam ainda
uma importância capital para esta história cultural do mar: foram motivo de deslocamento
periódico, anual, das famílias. Foram o mote para a ocupação pioneira, a urbanização, de
arrabaldes litorâneos depois centrais na vilegiatura marítima.

De toda sorte, a contemplação da paisagem aos moldes europeus era uma operação
complexa, que necessariamente envolvia, além do desenho e da pintura, a literatura. Exigia
a escrita como estímulo para a atenção e para as jornadas, como forma de rememorar e
organizar as impressões, como resultado final e transmissão, e como lastro cultural para
suas próprias viagens. E, sobretudo, porque a paisagem não é apenas um movimento
183
A lista mais extensa é desenvolvida por Gilberto Freyre (2004, p.255).
184
WETHERELL, s/d, p.145. Wetherell chama tal jardinagem de “horticultura”, embora o nome fosse impróprio para o que
descreve.
185
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.39, Terça-Feira 20 de Maio de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.

243
centrífugo, para fora de casa, e fora de si. Simultaneamente é centrípeto, na imersão e
busca de correspondências entre a amplitude do horizonte a psique, os estados emocionais,
e depende de um tempo de imersão na privacidade, de ensimesmamento. Depende do ócio
literário, indispensável para a escrita dos diários e rememorações, e para a leitura. As
próprias anotações de Wetherell, como os livros dos viajantes, fazem parte desse hábito
doméstico da leitura, de ensaiar um cosmopolitismo futuro possível, de viagens a serem
realizadas quando adulto, no caso de crianças, ou quando as condições se tornarem
favoráveis, no caso dos adultos. Ou seja, o próprio documento historiográfico – a literatura
dos viajantes – é parte do fenômeno do lazer, doméstico inicialmente, e como estágio
preparatório (como insumo à fantasia e informação técnica) e produto final (como relato
publicado e difundido) da própria viagem, e suas peripécias.

E é isso que veremos a seguir.

244
5
A Recreação das Famílias Baianas

As famílias, particularmente as da classe média, viviam concentradas nos


seus lares, com poucas relações, além das de parentes próximos. Também
os divertimentos públicos eram raros; além do theatro de S. João, e de
alguns theatrinhos particulares, onde os rapazes bonitos e imberbes se
vestiam de damas, anda mais havia que as attrahisse. O Passeio Publico
era tão frequentado como hoje, isto é, quasi sempre deserto. Havia ainda as
festas religiosas na cidade e nos subúrbios, que eram muito concorridas.
(SILVA LIMA, 1909, p.107)

Esse quadro sumário de Silva Lima serve como ponto de partida. A transformação da beira-
mar como um lugar de estar depende da mudança de tal quadro. Depende de uma outra
visão do bem-estar, e do lazer, em áreas públicas, e expostas ao ar livre. Depende mesmo
que haja algo como o lazer moderno. E, sobretudo, que as mulheres se exponham.

Na Sociologia do Lazer, a definição do Lazer é de extrema complexidade, por sua


expressão proteiforme.1 Acabou por se caracterizar como uma oposição ao Trabalho, em
uma polaridade que ganha tal clareza apenas nas sociedades industriais e pós-industriais. O
termo muitas vezes é inadequado para descrever formas aparentemente homólogas nas
sociedades pré-industriais, onde o trabalho confundia-se com as festas e o jogo, sem um
corte nítido entre o trabalho e o repouso. O arranjo binário é francamente inadequado, de
fato, para estudar o Lazer se o entendemos como o Não-trabalho. Joffre Dumazedier
defende, por exemplo, que o otium arcaico, dos gregos e romanos, não era a negação, mas
o substituto ao trabalho, daí não poder ser chamado de “lazer”.2

As formas prontas e acabadas de épocas e sociedades distintas são, de fato, tão diferentes
que não cabe, em muitos casos, designá-las pelo mesmo termo. Porém se a semente é
distinta da árvore, a segunda está contida na primeira. E de alguma maneira, ainda que por
substituições radicais, como ocorre da larva ao imago nos insetos, de uma emerge a outra.
E são essas sementes do tempo que tentaremos identificar em sua germinação.

Trata-se de delinear o que seria esse “lazer” oitocentista e, nele, como se equaciona a
exposição das mulheres. Ainda mais diante da modernização dos hábitos e valores, e com
isso o papel do grande mirante da época, acondicionado para tanto, o Passeio Público, a
cristalização do valor escópico do litoral e o mar. E, por fim, as condições da gênese do
veraneio moderno na cidade, em uma relação mais orgânica com a região rural com fins
recreativos, da brevidade das patuscadas até a permanência mais prolongada, para passar
as festas.

1
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1973.
2
DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia Empírica do Lazer. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979.

245
5.1. O Lazer na Bahia Oitocentista
As classes altas são definidas em inglês como leisure class a partir da obra de Thorstein
Veblen, cujos conceitos podem nos ajudar a entender a situação da Bahia no século XIX.3
Entendiam-se aí como o estrato social que podia ocupar-se do lazer, e que acabava se
caracterizando por tal. O visitante oitocentista, em especial o britânico, tinha claro que suas
classes altas não eram propriamente ociosas. A classe ociosa, tradução do livro e termo
consagrado, não aponta apenas uma tradução, mas uma outra “tradição”. Era o ócio o seu
distintivo, mas de outra natureza.

Kátia Mattoso dividia a sociedade soteropolitana em quatro grandes grupos.4 Na sua elite,
altos funcionários graduados da administração real, oficiais de patentes mais elevadas, o
alto clero secular, grandes negociantes e proprietários de terra. O estrato imediatamente
abaixo seria composto por funcionários e oficiais de nível médio, pelo baixo claro, por
proprietários rurais, profissionais liberais, pessoas que viviam de rendas e mestres-artesãos
em ofícios nobres. No seguinte estariam os oficiais de baixo escalão, profissionais liberais
secundários, artesãos, vendedores de rua (quando homens livres), pescadores e
marinheiros. O quarto seriam os escravos, mais mendigos e vagabundos. Isso como uma
tipologia; numericamente, porém, segundo a mesma autora, 90% da população livre viveria
no limite da pobreza.5 Para este estudo, temos coordenadas sócio-econômicas muito mais
imprecisas, e empregamos apenas termos muito gerais, como classes altas (ou elite),
médias e baixas, que corresponderiam, grosso modo, respectivamente ao estrato superior,
ao secundário, e aos dois últimos de Kátia Mattoso.

Robert Dundas acreditava que, apesar da boa constituição física e da dieta abstêmia, os
baianos eram “indolentes por natureza, e indispostos para esforço ativo ou indústria”.6 O
ativismo, real ou presumido, dos estrangeiros contrastava com a indolência, efetiva ou
enganosa, dos baianos. Os que estavam a rodar o mundo ou tentar a sorte em outro
continente – para a prédica, a investigação científica, a curiosidade – eram talvez os mais
ativos entre os seus. O fundo sobre o qual figuram os baianos não poderia ser mais
contrastante. Porém a diferença não era apenas de grau, mas de gênero.

A sociedade escravagista apresentava uma clivagem entre o escravo e o senhor, com a


conseqüente degradação de status do trabalho. Ao contrário do ativismo em suas várias
modalidades, que caracterizava muito dos estrangeiros e de onde emergiram os esportes
modernos, o tempo livre aqui foi marcado pela negação explícita do trabalho. Tal ócio não
era apenas algo substantivo, mas ganhava sentido e valor pelo que não era e pelo que
conotava: não ser um escravo e poder possuir escravos. A conquista do ócio era parte da
busca pela posse ou sua aparência, os sinais distintivos de um estrato superior e que o
manteriam ali; é o ócio vicário7, umbilicalmente ligado à escravidão. Johan Brelin os vira
dispender “a maior parte do tempo, a jogar e beber, esquivando-se a tudo quanto seja
trabalho, e servidos pelos seus escravos”.8 Os escravos eram o indício de uma situação
social superior, mas também sua condição. Era ociosidade criada. O tempo livre era
possível porque outras pessoas realizavam o trabalho braçal. Em 1845, observava Wetherell
que “o produto do trabalho dos escravos permite ao dono viver na ociosidade e intitular-se
´gentleman’”.9

3
VEBLEN, Thorstein. The Theory of the Leisure Class. New York: Oxford University Press, 2007.
4
MATTOSO, 1992.
5
Apud REIS, 1986, p.21.
6
[...] indolent by nature, and indisposed for active exertion or industry [...] (DUNDAS, 1852, p.209).
7
VEBLEN, 2007.
8
TAUNAY, Affonso de E. Um Sueco na Cidade do Salvador (1756). Publicações do CEB – Centro de Estudos Baianos.
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1960, p.11.
9
WETHERELL, s/d, p.29.

246
Muitos homens livres possuíam escravos. João José Reis estima que pelo menos 40% do
povo livre da cidade, incluindo os pobres.10 Ter um escravo sequer garantia muitas posses.
Em Itaparica e no sul do Recôncavo roceiros de mandioca tinham um a dois escravos,
trabalhando ao seu lado.11 A diferença estava na quantidade.

Aquela era a indolência dos senhores, lastreada no trabalho escravo, tornada sinal da
própria condição senhorial, projeto vital por excelência, aspiração compartilhada por todos,
ou quase todos, que tentavam subir a escala social. Disse o Conde de Sabugosa que à
gente do povo “repugna-lhe o trabalho pelo que sempre vive pobre e sem reservas; o que
também é freqüente na classe média”.12 Entre os forros e estratos mais baixos de homens
livres também se encontrava o desprezo pela condição servil.13 A nódoa do trabalho braçal
também se via entre os escravos pessoais.14

Tollenare em 1818 observou que se “em França, existe o tédio, que aqui é desconhecido”.15
O ócio não era um problema, com toda a crise européia do spleen, o medo ao langor inútil.
Daí sua retumbante ausência nos hábitos e literatura brasileira. A ociosidade era meta, e
não um problema.

O ócio era um dos sinais de posição social, de prestígio e poder, parte de uma sociedade
onde era notável ainda a instabilidade social. Daí a trama de sinais, tanto da ascensão
social e sua demonstração cabal, verdadeira ou falsa, como da manutenção da posição,
ainda que ilusória, pelas famílias importantes. Havia o recurso à ancestralidade, à pretensa
descendência quinhentista das famílias. Porém o fundamental era o fausto, a exibição de
luxo, pompa e circunstância; o que era chamado de consumo conspícuo pelo mesmo
Veblen.16

Estava nas igrejas das ordens religiosas, irmandades e devoções. Mesmo o complexo
arranjo de terras do Recôncavo, segundo Wanderley Pinho, se impregnava desse propósito:
abarcar o máximo de terras possíveis, ainda que desaproveitadas.17 Residia na predileção
pelas jóias, em especial as correntes de ouro, onde a distinção repousava apenas no seu
peso e rebuscamento.18 Os meios de transporte particulares também se amoldavam a tais
exigências. No século XIX eram as cadeiras o veículo de tal exibição. Em si mesmas, pela
inatividade que propiciavam, próprios ou pagos. Pela sua simples posse, exigência de toda
casa senhorial. Pela sua ornamentação, do trabalho em madeira e das cortinas. Pelos
escravos destinados a esse fim: se eles eram a condição da propriedade, eram também
uma cabal demonstração da mesma, ainda mais se ricamente trajados.19 José da Silva
Lisboa diz sobre Salvador:

10
Amostragem levantada por João José Reis, com amostra de 395 pessoas, mostrava que apenas 13% não possuíam um
escravo. Todos os artesãos tinham ao menos um escravo. Dos 25 ex-escravos da população da amostra, 21 tinha escravos.
Estimava mesmo que a maioria dos escravos da cidade estivesse na mão de pequenos proprietários (REIS, 1986, p.24).
11
CASTELUCCI JR, 2008.
12
Comentário de Braz do Amaral na obra de Vilhena (1922a, p.89).
13
SAINT-HILAIRE, 1976, p.150.
14
VILHENA, 1922a, p.186.
15
TOLLENARE, 1956, p.338.
16
Junto com o ócio vicário, o consumo conspícuo é termo de Veblen, da sua teoria das classes ociosas. Caracteriza-se pelo
consumo ostentatório, que esbanja recursos, ao contrário do que seria a racionalidade de custo-benefício do homo
oeconomicus, e contraditando ainda o que seria o “espírito do capitalismo” dentro da “ética protestante” (WEBER, Max. A
Etica Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004). O ócio vicário era aquele descrito
nestas páginas: a demonstração de tempo livre, da liberdade sobre a exigência do trabalho para sobreviver.
17
PINHO, 1982, p.490.
18
FREZIER, 1717, p.304; KINDERSLEY, 1777; MAWE, 1812, p.281; LINDLEY, 1805, p.55.
19
FREZIER, 1717, p.296; SILVA LIMA, 1908, p.105; MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.80; LINDLEY, 1805, p.273;
OUSELEY, 1852, p.15; SILVA LIMA, 1908, p.105; DENIS, 1839, p.236; D´ORBIGNY, Alcide Dessalines. Voyage dans les
deux Amériques. Paris: Furne et Cie, Éditeurs, 45, Rue Saint-André-des-Arts, 1854, p.147. Mesmo com a crescente
obsolescência das cadeiras como meio de transporte, pela introdução dos bondes e gradual melhoria das principais ruas da
cidade, e do transporte mecânico entre a Cidade Alta e Baiza, a cadeira de arruar teve alguma sobrevida, provavelmente por
seu papel no antigo fausto. Agassiz dera por conta delas ainda no transporte da Montanha nos anos 1860 (AGASSIZ,
Professor & Mrs. Louis. A Journey in Brazil. Boston: Ticknor and Fields, 1868, p.128). Nos primeiros anos da década de
1880, Edward Frederick Knight as aponta nas ruas (KNIGHT, 1884, p.59).

247
He prova de mendicidade extrema o não ter hum escravo: ter-se-hão de
todos os incommodos domesticos, mas hum escravo a toda lei. He
indispensavel ter ao menos 2 negros para carregarem, huma cadeira
ricamente ornada, hum creado para acompanhar este trem. Quem sahisse à
rua sem esta côrte de africanos, está seguro de passar por hum homem
abjecto e de economia sordida.

Os cavalos também, relacionados à imagem da equitação e dos aspectos senhoriais de


longeva tradição. O transporte principal era por mar; o caminho por terra era árduo, e os
cavalos não se prestavam para tanto, arruinando-os. Eram criados principalmente para “luxo
e exibição”, nas festas e cavalhadas, ainda que com inusual destreza.20 E os apetrechos
que lhes envolviam eram algo à parte: selas trabalhadas em filigrana, e prata nos estribos,
rédeas, esporas e botas, até no cabo dos facões.21

Nas residências o mais importante era a fartura na provisão, sempre anotada pelos viajantes
nos engenhos e sedes de fazenda, e posta na conta de “generosidade”. Por exemplo, a
família de Anna Bittencourt fazia grandes preparativos para qualquer visita para “mostrar
que passavam com fartura e abundância”.22

O fausto poderia estar em desacordo com a situação real. Essa semiologia social implicava
em uma descontinuidade radical entre as esferas públicas com tais exibições, e a privada,
onde se revelava a penúria real dos indivíduos: “vivendo em sua caza envolvidos na sórdido
mizeria, quando sahem fóra se empavezão”.23 Para o Visconde de Cairú, “a indigencia
muitas vezes se esconde debaixo desta exterioridade de pura fanfarronada”.24 Wetherell via
que os brasileiros eram “capazes de viver miseravelmente a fim de usar uma roupa mais
elegante do que a do vizinho”.25 Há testemunhos de pessoas empobrecidas que dilapidavam
seus parcos recursos nos elementos exteriores. Ver Huell dizia que nos domingos e dias
festivos “o nosso alfaiate surgia como um verdadeiro petit maitre, de modo que, dificilmente,
reconhecia-se nele o morador de uma miserável cabana da aldeia de Santo Antônio da
Barra”.26

Os senhores de engenho foram um caso extremo. Herdando no século XIX o prestígio e


poder político de outrora, mesmo com o declínio econômico a longo prazo27, nada mais
tinham “que a aparencia de ricos”.28 Anna Bittencourt conta que no casamento de seu avô
Pedro Ribeiro, nos anos 1790, o tio Pedro Caetano gastou fortuna em dote e enxovais,
afinal era “conhecido o luxo que ostentavam os burgueses ricos, imitando os fidalgos
portugueses”.29 O avô não escapava: sempre com dívidas, comprou ricos vestidos para as
filhas, em 1833, porque nunca abandonara o “luxo dos antigos colonos brasileiros”.30 Os
senhores de engenho foram um substituto singular para a aristocracia portuguesa. Faltavam
no Brasil, até a vinda da Família Real, títulos nobiliárquicos verdadeiros, dados pela Coroa.
Tampouco tinha as tradições familiares das linhagens, até pelo contínuo fluxo de
colonizadores. No começo do século XIX, a proporção de senhores de engenho de
imigração recente era grande.31 Era uma oligarquia calcada na posse de riqueza,

20
PINHO, 1982, p.337.
21
MAXIMILIANO, 1958, p.38; TOLLENARE, 1956, p.95; WETHERELL, s/d, p.117; SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à
Província de Goiás. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/ São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975, p.102.
22
BITTENCOURT, 1992b, p.151.
23
VILHENA, 1922a, p.44.
24
ATHAYDE, 2006, p.121.
25
WETHERELL, s/d, p.80.
26
HUELL, 2009, p.177.
27
BARICKMAN, 2003.
28
VILHENA, 1922b, p.927.
29
BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. Longos Serões do Campo Vol.1 – O Major Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1992a, p.41.
30
BITTENCOURT, 1992a, p.157.
31
MATTOSO, 1997, p.154.

248
especialmente terras, e poder. Wanderley Pinho percebeu que era uma lógica de classes,
advindas da colônia, abalada pela abolição da escravidão e a modernização da lavoura
açucareira, com as usinas, cristalizada no tipo do “senhor do engenho”, ápice e aspiração da
sociedade colonial. Estariam presos a uma “lei de gastos excessivos”, sem poderem fugir às
“obrigações de fausto e mando”, a ser mantido a qualquer custo.32 Ter um engenho de cana-
de-açúcar e ser um Senhor de Engenho era uma aspiração geral a ser conquistada ou
recuperada em caso de decadência familiar.33 Podia ser obtida, por exemplo, por meio de
casamentos. Sua situação era modelar inclusive porque essa elite e parte da sociedade
deslocava-se entre campo e cidade anualmente, em contato constante.

A mobilidade social, antes a volatilidade, tinha outros efeitos. O luxo pesado e grosseiro de
que tanto se falava não era somente sintoma da falta de refinamento das classes mais altas
(o que não era equivocado) mas também não havia um capital cultural tão robusto e
complexo que separasse os patrícios dos plebeus.34 Basta lembrar do concubinato, as
amásias, e o favor conquistado das jóias, pelas exigências da mulher, e pelo enobrecimento
exterior da companheira. Kátia Mattoso argumentava que no Brasil se transpôs e adaptou a
estrutura social portuguesa, onde a oposição nobre/ plebeu foi substituída pela de homens
brancos livres/ escravos negros. A mestiçagem, porém, criou categorias novas e borrou as
fronteiras definidas.35 O luxo tornara-se era um meio de mulatos de todas as gamas
demonstrarem sua posição social, ou reivindicarem-na para si.

A tese mais interessante sobre esse assunto é da mesma Kátia Mattoso: não haveria uma
distinção real entre a opulência e a sua aparência. Uma seria a outra, de uma certa maneira.
A simplicidade ou penúria interior seria indispensável ao fausto exterior, em vez de ser um
estranho contraste. Não apenas havia a exibição de certos elementos como sinais de uma
riqueza ausente, como a penúria ou austeridade interior seriam a maneira de direcionar os
escassos recursos pessoais ou familiares para aqueles sinais. Se todos estavam no jogo
das aparências, simulando posses fantasmagóricas, e se havia redes de solidariedade de
todos os tipos, construídas por tais sinais exteriores, estes eram o patrimônio real naquela
sociedade e não o bem físico em si.36

5.2. A Metade Reclusa


Precisamos enfrentar o “problema” do papel da mulher na sociedade oitocentista, de sua
reclusão, dado o seu caráter crucial para a emergência do litoral.

As mulheres mais pobres não apenas se expunham, como a cidade estava tomada por elas,
pelas ganhadeiras. Ocupavam a rua (Figs. 134 e 135). Estavam nas feiras livres, chamadas
“quitandas”37, estabelecidas formalmente a cada tanto, como em 1831, defronte ao Forte de
Santo Antônio, no largo da Saúde e até no Largo da Vitória.38 Percorrendo extensas áreas
da cidade algumas, outras com sua clientela cativa.39 Em locais avulsos, em seus pontos

32
PINHO, 1982, p.502.
33
Evaldo Cabral de Mello (O Fim das Casas-Grandes. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida Privada no
Brasil vol.2. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.395) fala de João de
Medeiros Raposo, capitão português de origem modesta que ascendeu socialmente no século XVIII, principiando como
criador de gado no agreste, para quem o engenho na Zona-da-Mata era uma “residência de gozo”, melhor dito, de
“ostentação social”; e que para sua esposa era reclamar status perdido.
34
Como dissera Tollenare, e Dénis, talvez inspirado no mesmo, com ligeira alteração: “o luxo é sólido e grosseiro” (DENIS,
1980, p.139).
35
MATTOSO, 1997, p.143.
36
MATTOSO, 1997, p.177.
37
REIS, 1986, p.198.
38
SOARES, Cecília Moreira. As Ganhadeiras: Mulher e Resistência Negra em Salvador no Século XIX. In: Afro-Asia n.17
(1996). Salvador: CEAO-UFBA, 1996, p.62.
39
GRAHAM, 2013, p.66. Uma nota curiosa sobre esse trânsito das mulheres e o atendimento a domicílio está na relação de
Ver Huell com uma jovem mulata de nome Isidora (HUELL, 2009, p.211). Apareceu-lhe na porta um dia, dizendo substituir

249
informais, como em anúncio sobre escrava moça que “vendia hortaliça, e frutas da rossa do
annunciante [...] sempre assentada com o filho defronte do convento das Mercês”.40
Tollenare em tons pastorais narrou os encontros amorosos nas encostas nas moitas da
angra da Vitória, na hora das mulheres buscarem água em fonte ali situada.41 Elas estavam
na cidade, nas ruas, nos espelhos d´agua e córregos, nos fundos de vale, pelos arredores
da cidade, por todos os cantos, com sua prole.42 Essas famílias estavam nas ruas, sendo a
casa mero abrigo.

Figura 134 – Ganhadeiras desenhadas por Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. À
esquerda, Market woman, com variedade de frutas. E à sua direita, Seller of sweetmeats (Doces),
levando quitutes, numa estrutura que depois iria ao chão com as baianas do acarajé.

Aquela mulher reclusa era outra, das classes mais altas. Ela progressivamente entrou na
cena pública, com permissões por geração e por classe social. Essa mulher não
corresponde a todas, nem àquela imagem mais monolítica descrita pelos viajantes. A
situação é mais intrincada, com nuances que permitiram uma transição cadenciada. Não se
tratava de uma reclusão familiar total, estilhaçando a sociedade em um conjunto de partes
incomunicáveis, coerida apenas pelos contatos masculinos, em acordos e acertos
patriarcais. As casas rurais, mundos com uma forte gravidade, não eram reclusões plenas,
mas uma trama cuja abertura ocorria por relações parentais, renovadas a cada casamento.

uma senhora mais velha que lhe lavava as roupas, com uma condição sui generis: fazê-lo de graça, sem nenhuma sorte de
paga. O holandês relata um envolvimento amoroso temperado com um fascínio pelo “exótico” de ambas as partes. Cogitava
o estrangeiro que a mulata ganhava alguma distinção em sua própria visão envolvendo-se com ele. Quando outra pessoa
quis regalo análogo (as roupas lavadas e a companhia), ela respondeu, altiva, que não era lavadeira, e que suas escravas
poderiam lavar-lhe a roupa (HUELL, 2009, p. 218). Ou a mulata blefava, ou, com posses, aproveitado do contato da lavadeira
anterior com o jovem estrangeiro e criado ali sua chance de intimidade.
40
O CORREIO MERCANTIL n.621, Quinta-Feira 6 de Dezembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1838.
41
TOLLENARE, 1956, p.299.
42
Kátia Mattoso (1992, p.173) ainda argumentava que as mulheres africanas tinham maior proeminência na Bahia que na sua
terra natal.

250
Salvador não era mourisca como tanto se disse. Se a fachada das casas tinha seus
diafragmas árabes, o mesmo não correspondia ao restante. Elas não logravam se
ensimesmar em pátios particulares, e esconder seu tamanho e importância. Não nas áreas
mais apinhadas da cidade, lugar de seresteiros e invasões. As casas, mesmo as mais
dispersas, se abriam para trás, para quintais e roças. E se abriam, em outro sentido, em
certos momentos do ano, e para certas pessoas. O visitante não se via como um intruso nas
esferas de intimidade das famílias baianas. As cartas de recomendação abriam-lhes as
portas para um teto e a mesa de jantar, mas não para a intimidade da família, daí sua
constante frustração.

Figura 135 – Vista da Cidade Baixa – a partir do


Forte de St. Alberto para a Península de
Itapagipe (1849), de Emil Bauch. Fonte:
ATHAYDE, 2008. Nas pinturas era recorrente a
figura da ganhadeira, povoando a cena. Por um
lado, era o pitoresco para o pintor. Por outro,
estavam de fato por toda a cidade.

251
Em vez da transição de uma casa fechada para uma casa aberta, encontramos uma espécie
de reconfiguração. Pois as casas se abriam, de acordo com o calendário e sua situação, na
cidade ou nos sertões.

Das mais pobres às sedes de grandes fazendas, as casas recebiam visitantes. Em um


extremo de simplicidade, nos ranchos, telheiros rústicos, construídos pelo tesouro real ou
particulares, alguns com vendas orientadas aos tropeiros.43 Mas havia o “arranchar-se”,
pernoitar em uma varanda, telheiro ou outro lugar qualquer, para os viandantes, que muitas
vezes eram fazendeiros de posses. Aqui entramos na circulação da dádiva, clássica
mecânica descrita por Marcel Mauss.44 Pois os fazendeiros hospedavam para depois serem
retribuídos, ainda que nos ranchos.45 Era uma formalidade, e não uma recepção real no seio
familiar, o que os estrangeiros de passagem, com suas cartas de recomendação em mãos,
não compreendiam. Os terratenentes cumpriam sua obrigação de civilidade, de bem
receber, atender às cartas e mostrarem-se grão-senhores, prósperos e poderosos. Mas não
abriam sua intimidade real a um desconhecido, por melhor recomendado que fosse.
Wetherell observou que os brasileiros se punham sempre “às ordens” e empregavam “muito
esse oferecimento da casa para convidar alguém a ir lá fazer uma visita”.46 O convite não
era falso, apenas concedia permissão à primeira camada da residência. Denis, a partir da
Nouvelles Annales des Voyages, esclarecia a diferença entre os tipos de visitantes. Se
amigo da família, seria prontamente recebido pelo dono da casa e levado à sala, com uma
miríade de cumprimentos e vênias. Se visita de cerimônia, era conduzido à sala, “donde
muitas vezes vê pessoas que ali estavam evadirem-se por outra parte”47, até ser recebido
pelo dono, arrumado, após meia hora de espera.

Era recorrente fuga das mulheres à presença do visitante estrangeiro. Tollenare, em 1816,
chegando após o almoço de surpresa à casa de alguém em Recife, vira um bordado
abandonado às pressas.48 O mesmo comportamento vira na casa de campo de um lisboeta,
nos arredores da mesma cidade, e em sítio de comerciante para o qual fora convidado: o
convite para a visita da casa obviamente não incluía a visita à família.49 Já para amigos e
parentes, as casas estavam inteiramente abertas, em uma aparente sem-cerimônia, porém
com um senso de ordem profundo.50

Existiam camadas espaciais. Disse Saint-Hilaire, nas províncias visitadas eram “o quintal e o
interior das casas [...] reservado às mulheres”.51 Eram os quintais o local de congraçamento
da família, às escondidas: onde estavam varandas frescas, áreas umbrosas sob as árvores,
onde as mulheres podiam circular em seus trajes domésticos e as crianças podiam brincar.52
Embora hipótese sem muitos dados mais concretos, seria outra função fundamental desse
recesso íntimo dos quintais. Era espaço devassado pelos vizinhos: afinal, havia janelas nos
sobrados laterais. Por alto que fossem os muros, isso de dava com alguns quintais, e não
com todos. Pelos fundos, abrindo-se para os vales e talvegues da cidade, as guardas
estavam desguarnecidas. Bittencourt conta episódio que ocorrera em colégio no Engenho
Jacuípe, no Recôncavo de Santo Amaro, no começo dos 1780, no colégio do Padre Xavier,
vizinho de uma casa por cujo quintal os alunos tinham encontros amorosos com as mucanas
de sua proprietária, D. Josepha, “quase todas mulatas bonitas e bem tratadas”.53 Não era
43
DIAS, Olívia Biasin. Falla-se Todas as Línguas: hospedagem, serviços e atrativos para os viajantes estrangeiros na Bahia
oitocentista. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador – Bahia, 2007, p.115.
44
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas. In: MAUSS, Marcel. Sociologia
e Antropologia Vol.2. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1974b.
45
BITTENCOURT, 1992b, p.96.
46
WETHERELL, s/d, p.46.
47
DENIS, 1980, p.137.
48
No texto, “jantar”, que deve entender-se como o almoço atual. O jantar era chamado de ceia, no livro.
49
TOLLENARE, 1956, p.86; 130.
50
BITTENCOURT, 1992b, p.40.
51
SAINT-HILAIRE, 1976, p.96.
52
HOLTHE, 2002, p.237.
53
BITTENCOURT, 1992a, p.27.

252
apenas local de aventuras libertinas dos jovens, já que ali, dissera aos gritos o padre, seu
irmão, que a senhora tinha “às vezes costume [de] passear à noite no seu quintal”.54 No
romance A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela, ambientado em Recife, consuma-
se um adultério no quintal do sobrado, situado na dita rua, com o amante pulando o muro, e
passando pela latada, ao encontro da adúltera.55 O que pode ter havido é uma sociabilidade
pelo fundo das casas, ao menos entre as famílias mais pobres, com menos reserva, pelas
passagens e áreas verdes, como existe até hoje em municípios baianos, enquanto as ruas
ardem abandonadas ao sol do dia.

A cozinha e o quintal, complementares, eram refúgios das mulheres, “recintos sagrados” nas
palavras de Suzannet, invioláveis a todos os estrangeiros, de onde “presidem às fainas
domésticas, dando ordens às negras ou preparando elas mesmas os petiscos”.56 Nesses
bastidores as mulheres dominavam, comandando a escravaria. Tais camadas de
permeabilidade se apresentariam na “mais modesta choupana”, com uma sala frontal para
receber e reter os estranhos. Porém os mais pobres não compartilhavam de toda essa
engenharia. Em 1816 Tollenare entrara na casa de lavradores e nelas “as mulheres não
desapareciam como em casa dos senhores”.57

A reserva das mulheres era facilitada por dispositivos físicos. O mais evidente é o muxarabi,
o balcão treliçado. Não tão convincente no clima úmido dos trópicos, mas adequado ao
ofício de ver sem ser visto. O mesmo raciocínio aparecia nas capelas de engenho, com
espaços reservados para as iaiás rezarem sem que o público na nave as visse, e garantisse
sorte de comunicação privada entre os padres e as mulheres.58 Esterzilda Berenstein de
Azevedo enumerou outros recursos como os quartos sem janelas, os pátios internos, as
varandas periféricas.59 As mulheres se escondiam, mas elas viam as visitas. Pelos
rendilhados de madeira, pelas frestas, pelos desvãos, espiavam. Na Fazenda de Tiririca,
segundo Maximiliano de Wied-Neuwied: “as mulheres da casa [...] ficaram espiando, pelas
frestas das portas e das janelas, os estranhos hóspedes”.60 Nessa barreira física, a
vantagem visual cabia às mulheres.

Não eram esposas isoladas do mundo, mas famílias expandidas, que se relacionavam entre
si: as irmãs, as mucamas, as primas. As famílias se visitavam, as crianças cresciam junto
umas às outras, recebiam “as visitas dos parentes e amigos”61 e saíam para visitar. Incluídos
os agregados, naquela família ampliada do sistema patriarcal de antanho: “por esse tempo,
as meninas também davam o seu passeio, acompanhadas por uma afilhada de minha avó
que lhe merecia toda a confiança”.62

As casas se abriam de distintas maneiras no campo e na cidade, a depender do perfil do


festejo e do ritual religioso. A começar de celebrações de ordem familiar, como os
casamentos e os enterros. No interior e arrabaldes galvanizavam o entorno imediato, de
agregados, escravos, parentes próximos e até vizinhos. Missas periódicas e festas dos
oragos familiares nas capelas privadas atraíam a população das redondezas.

54
BITTENCOURT, 1992a, p.29.
55
(1984, apud AMORIM, Luiz. Casa: Espaços e narrativas. In: LEITÃO, Lúcia & AMORIM, Luiz (org.). A Casa Nossa de Cada
Dia. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. 85-112pp.)). Amorim analisa a configuração espacial dos sobrados
urbanos, daquelas camadas físicas que resguardavam a intimidade, e como os arranjos físicos correspondiam a exigências
sócio-funcionais próprias, invocando o caso ficcional como exemplo de que tais arranjos criavam possibilidades, e não
determinações. O quintal, sendo uma proximidade inevitável dos sobrados urbanos, fazia parte desse sistema de convívio,
onde o adultério era uma das alternativas. Como no caso anterior, no Engenho Jacuípe.
56
SUZANNET, 1957, p.78.
57
TOLLENARE, 1956, p.95.
58
PINHO, 1982, p.431.
59
AZEVEDO, 2009, p.19.
60
MAXIMILIANO, 1958, p.60.
61
BITTENCOURT, 1992a, p.146.
62
BITTENCOURT, 1992a, p.145.

253
Na capital havia encontros de famílias, mais formais, entre as classes mais altas, “grandes
banquetes, nos quais o dono da casa ostenta o esplendor real, muitas vezes antigo, de sua
mobília e louça”.63 Os convidados também mostravam suas posses, “com dourados
espadins à cinta”.64 Maria Graham alertava que não eram freqüentes, daí a pompa com que
se revestiam, sendo “grande ocasião para justificar um banquete esplêndido”.65 Já entre as
classes mais baixas havia mais liberalidade: “bastava o influente encontrar um camarada,
batia-lhe no ombro”66 e chamá-lo sem maiores cerimônias.

Porém as mulheres saíam. Acontecia de dada maneira e em certas ocasiões, que se


alteraram com o passar do tempo; fora dessas ocasiões seria algo anômalo. A Sra. Lindley
queria fazer um passeio, uma country walk, e os moradores estavam curiosos por ver a
cena surpreendente; o casal estivera “exposto à curiosidade impertinente de inúmeros que
neste dia (Domingo) foram às suas casas de campo, e olharam com espanto ao ver uma
mulher sem o apoio de uma cadeira”.67 Silva Lima dizia que apenas estrangeiras
caminhavam às ruas nos anos 1840, como as “desembarcadas dos paquetes ingleses à
vela, que faziam viagens rápidas mensais [...] e os caixeiros, às vezes, saltavam o balcão,
para verem da porta essas raridades”.68

As mulheres de boa condição evitavam sair sozinhas (Fig.136). Saindo, iam acompanhadas
de um cavalheiro. A exposição era própria das classes mais baixas, uma desonra para as
moças de boa família. Por isso para minimizá-la, viúvas ou “solteironas” saíam cobertas de
cabeça aos pés com a capona: “capa da fazenda preta, guarnecida de pelúcia, que descia
quase aos pés. Um capuz cobria a cabeça, prolongando-se numa aba larga que envolvia os
ombros”. Silva Lima completava que traziam “na cabeça um lenço branco bordado”69 (Figs.
137 e 138).

Os jogos de sinais ficam muito mais sutis, quase invisíveis aos estrangeiros, em uma
sociedade em que a mulher é reclusa. Ao contrário, cresceu sua fama de ardilosas, como
ocorria no mundo árabe e se expressava na sua literatura. Crescia a desconfiança crônica,
paranóica, que sói acontecer quando as precauções falham.

Durante um certo período as mulheres usavam véus, ao menos nas igrejas e teatros. Estes
véus já constavam no início do século XVIII.70 Na primeira década do século XIX, Ver Huell
testemunhava que no Theatro Guadalupe “a maior parte do público feminino exibia-se com
véus brancos sobre a face, de modo que somente os olhos eram visíveis”71. Sir Robert
Wilson, seguramente na Casa da Ópera, assinalava uma diversidade maior de meios de
ocultação das damas na plateia: “vestem máscaras ou enrolavam um lenço branco ao redor
de suas bocas e gargantas”72, à maneira dos westerns, sem acreditar que fossem da elite da
cidade.

63
SPIX & MARTIUS, 2016, p.113.
64
SPIX & MARTIUS, 2016, p.113.
65
[...] the Portuguese seldom dine with each other; when they do, it is on some great occasion, to justify a splendid feast
[...] (GRAHAM, 1824, p.147).
66
QUERINO, 1955a, p.238.
67
[...] exposed to the impertinent curiosity of numbers who on this day (Sunday) [...] had strolled to their Casas de Campo,
and stared with astonishment to see a female without the appendage of a chair. (LINDLEY, 1805, p.111).
68
SILVA LIMA, 1908, p.105.
69
SILVA LIMA, 1909, p.109.
70
FREZIER, 1717, p.303.
71
HUELL, 2009, p.149.
72
[...] wore masks, or wound a white handkerchief round their mouths and throats [...] (WILSON, 1852, p.345).

254
Figura 136 – A Brazilian Family (1819-20), de Lt. Henry Chamberlain. Fonte: CHAMBERLAIN, 1822.
Apesar do desenho referir-se ao Rio de Janeiro, acreditamos válido. Uma família à rua, com sua
hierarquia patriarcal interna, incluindo seus escravos pessoais.

Figura 137 – Going to Mass, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Registro
do vestuário das mulheres indo à missa. As mais velhas cobriam-se mais, provavelmente por uma
diferença geracional – como revelado por Anna Binttecourt, em seu próprio caso – em uma mudança
de hábitos.

255
Figura 138 – Vista de Rua das Mercês e do Rosário (1859). Fonte: ATHAYDE, 2008. Nela
identificamos as mulheres de capona.

As cadeirinhas de arruar tinham suas cortinas para o transporte das mulheres de respeito
(Fig.139). Tollenare confere nuances à situação, em 1817, quando na Igreja da Vitória em
dias de festa: “a curiosidade ou o desejo de agradar fazem-nas muitas vezes afastar as
cortinas douradas que as cobrem”.73 A própria existência do véu e das cortinas atiçava a
curiosidade e permitia uma série de jogos galantes ou lascivos no entreabrir e pela
comunicação nesses lampejos fugazes (Fig. 140).

73
TOLLENARE, 1956, p.298.

256
Figura 139 – Cadeira, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Uma das
melhores representações da conhecida cadeira de arruar. Estes escravos carregadores não tinham
trajes vistosos, como em outros casos.

Figura 140 – Huma Historia (1819-20), de Lt. Henry Chamberlain. Fonte: CHAMBERLAIN, 1822. Além
de vendedores ambulantes, uma nota picaresca: a infidelidade, por trás da rótula. A cena passava-se
no Rio de Janeiro.

257
Mais importante, havia uma barreira invisível.

Ver Huell, na primeira década do século XIX, na residência de um comerciante português,


ao cumprimentar educadamente a esposa foi imediatamente bloqueado pelo dono da casa,
que, servindo de barreira física efetiva. Foi esclarecido depois que era “de bom tom entre os
moradores mais importantes não cumprimentar as senhoras na presença dos homens, nem
lançar um furtivo olhar sobre elas!”.74 Sequer a menção ao nome. Segundo Denis,
perguntar-se sobre “uma senhora com quem se jantou [...] é quase uma incivilidade”.75
Apenas em certas ocasiões era dada a chave dessa intimidade.

Ainda que entre conhecidos, a separação era nítida: “nas reuniões brasileiras as senhoras
sempre se sentam entre elas, em geral ao redor da sala e, em vez de conversar, parecem
somente olhar umas para as outras”. Os sexos se separavam de maneira explícita, com
conversas animadas em ambos os setores, sem que os olhares se cruzassem, e com
poucas palavras dirigidas de um grupo a outro.76 Anna Bittencourt assumia que nem sempre
a mulher sentia-se à vontade para conversar com um homem, ainda mais se jovem.77 As
mulheres separavam-se dos homens, mesmo as de mais idade, como dito por Wetherell, em
que os homens se reuniram em grupos nas varandas e sala de visitas, e as senhoras, por
sua vez, nas salas mais internas e nos quartos. Conquanto parentes fariam isso porque “as
senhoras sentiam-se acanhadas em presença dos homens”.78 Tratavam de seus assuntos,
sem precisar se envolver, e envolverem, a ala masculina. Se a garota apresentava muita
desenvoltura, era recriminada pelas mães e tias, chamadas de “saída entre as graves
senhoras da família”.79 Os avanços masculinos também eram vigiados por aquela coorte.80

Parte da barreira invisível era o medo do possível amante à reação do marido, irmão ou pai
da pretendida. Foram comuns as descrições do ciúme como um traço comportamental
baiano.81 Implicava na tensão da missa como obrigação espiritual e social, porém como
risco da exposição pública das mulheres; as escapadas femininas da severa vigilância; os
assassinatos e punições decorrentes.82

Tal barreira invisível fora um dispositivo civilizatório, à maneira daqueles narrados por
Norbert Elias, para substituir, no plano motor do olhar, as barreiras físicas das grossas
paredes das residências.83 As mulheres estavam no espaço em comum, físico, mas ainda
não no espaço social. Ou melhor, estavam no seu próprio espaço, com divisões
relacionados ao gênero e esferas de intimidade. A reclusão das mulheres implicava em sua
inexistência na esfera pública, e não na falta de contatos reais com outras pessoas. Apenas
eram contatos mais discretos. No recato do grupo de famílias e amigos ou nas relações
extraconjugais, onde os mesmos aparatos de ocultamento operavam a seu favor. As
mulheres de caponas, as mais velhas, “comerciantes de bentinhos e rosários, conhecidas
por – Devotas – e que exerciam a profissão lucrativa de mensageiras de cartas amorosas”84,
rompiam aquela barreira.

Mas o ponto central não é o espaço real de ação das mulheres, mas o espaço social. A
família é que na segunda metade do Oitocentos foi à rua.

74
HUELL, 2009, p.126.
75
DENIS, 1980, p.138.
76
WETHERELL, s/d, p.134.
77
BITTENCOURT, 1992a, p.77.
78
BITTENCOURT, 1992b, p.42
79
BITTENCOURT, 1992b, p.38.
80
BITTENCOURT, 1992b, p.43.
81
PYRARD DE LAVAL, 1890, p.325; FROGER, 1698, g.136; DURRET. Voyage de Marseille à Lima, et dans les Autres Lieux
des Indes Occidentales. Paris: Chez Jean-Baptiste Coignard, rue S. Jacques, 1720, p.131.
82
FREZIER, 1717, p.300.
83
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. 2v. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
84
QUERINO, 1955a, p.119.

258
Para uma vida encerrada e com pouca variedade, as saídas eram um movimento no
cotidiano com facetas de um entretenimento, de um certo prazer. Uma de suas modalidades
era ir para as fontes de água. Querino dizia que “o homem do povo, em tempo de verão,
acompanhava, à noite, a família [...] às fontes públicas para as ablusões diárias”.85

Ao final da tarde, no Largo do Teatro, havia uma movimentação humana incomum, espécie
de sociabilidade urbana in nuce, que não podemos explorar aqui. O Príncipe Maximiliano de
Wieu-Neuwieud descreve algo singular: “durante o dia não se vê nenhuma mulher nas ruas;
só ao cair da tarde é que a sociedade elegante sai de suas casas, para gozar o fresco da
tarde; ouvem-se então cantos e o som das violas”.86 E isso entre 1815 e 1817. O mesmo era
descrito por Silva Lima, para os anos 1840: “fora das portas, ao ar livre, assentavam-se, à
noite, os moradores, a ouvir modinhas, acompanhadas pelo tradicional violão”.87 Não se
trata de uma ocasião festiva, e o príncipe é claro em afirmar que se tratava da “sociedade
elegante”. Provavelmente nas regiões centrais da cidade, de um traço generalizado, que
contrasta frontalmente com a atmosfera de reclusão da maioria dos depoimentos. Essa
afirmação encaixa com a economia biológica daquela sociedade: da sesta, e da reserva
quanto à exposição aos raios solares tropicais. Também coaduna com o que nas memórias
sobre a vida nas localidades de veraneio e nos arrabaldes da cidade décadas depois. E,
igualmente, se explicaria por aquela afirmação de Wetherell: que os estrangeiros
costumavam andar durante o dia apenas, encontrando apenas a feição laboral da cidade.

De qualquer forma, os principais motivos de saída da família os eventos. Havia exercícios


militares, como no Campo de São Pedro, e jogos eqüestres, e mesmo touradas.

Jogos taurinos datavam de tempos coloniais; Gabriel Soares afirmava que que “se correm
touros quando convém”88 onde era a atual Praça Municipal. Dois séculos depois, o hábito
existia em Salvador, sem implicar em necessária continuidade. Como observa Tollenare,
ainda em 1817, quando do casamento de D. Pedro I com arquiduquesa Leopoldina da
Áustria, houve festas.

O mais curioso dos espetáculos foi uma tourada no gênero espanhol, coisa
inteiramente nova para mim.

O recinto reservado para este fim era assas belo; consistia em um longo
quadrado, guarnecido de palanques e camarotes, capaz de conter dez mil
espectadores.

As pessoas de consideração, os próprios fidalgos não desenhavam figurar


entre os atores, o que dá a este espetáculo um realce de que necessita.
Vimos um desembargador, grave magistrado maior de 60 anos, na arena
dos exercícios de equitação e de lança em punho, esperar o touro. O pai do
governador, o Conde dos Arcos, comprazia-se tanto nestes jogos que neles
encontrou a morte; o seu filho testemunhava o seu desprazer pelo fato da
importância da sua posição o constituir juiz e ator destas festas. Não as
achei muito divertidas. (TOLLENARE, 1956, p.320).

Entrava dentro da rotina das festas, estas de caráter cívico. Ancorava-se, como todas, em
alguns ritos religiosos, como o Te-Deum. E o espetáculo taurino. Na platéia estavam as
mulheres das classes mais altas, em seu lugar privilegiado. Ao contrário das touradas em

85
QUERINO, 1955a, p.117.
86
MAXIMILIANO, 1958, p.469.
87
SILVA LIMA, 1908, p.107. Por “viola” ou “violão” nos relatos que temos dos viajantes, e também aqui o de Silva Lima, não se
deve entender a viola e o violão atuais. Usamos tais palavras de maneira intercambiáveis, até porque designam sem grande
precisão os instrumentos vistos. Como escreve Anna Maria Kieffer: “em geral, os viajantes chamam de guitarra a todos os
representantes desta grande família de instrumentos de cordas dedilhadas que inclui a viola de arame, a guitarra portuguesa
e a guitarra romântica, o ancestral mais próximo do violão atual” (KIEFFER, 1996, pag. 140).
88
SOUSA, 2010, p.127.

259
tempos antigos, no Terreiro de Jesus, ocorreu no atual Campo Grande: “os Administradores
da nova Praça dos Touros, sita no Forte de S. Pedro, pelo desejo que tem de
appresentarem ao Público hum espectaculo satisfactorio, oferecem 50$000 réis por cada
hum Touro, que este envista ao cavaleiro, e mereça o aplauso geral”.89 A Praça de Touros
era uma estrutura física, seguramente as arquibancadas, necessárias, e custosas de serem
reconstruídas para cada evento. Com seus camarotes, vendidas com suas chaves. A
iniciativa era contemporânea ao Campo de Santana, no Rio de Janeiro, onde em 1810
construiu-se anfiteatro para cavalhadas e corridas de touros.90

Os touros correram em festejos cívicos: “Domingo 12 do corrente por ocasião dos


Faustissimos Annos do Serenissimo Principe Real [...] Repetio se à tarde o espectaculo dos
Touros”91. Denis rematava que para “celebrar algum aniversário importante, era a antiga
corrida de touros que se renovava, a que assistiam, como atores, graves figuras da classe
dos magistrados”.92 A estrutura recebeu, no ano seguinte, espetáculos.

He chegada a esta Cidade huma Companhia Ingleza de Dançarinos em


cavallos, e de corda, que dão principio ao seu divertimento Domingo 2 de
Agosto na Praça do Forte de S. Pedro, as chaves dos Camarotes se
vendem na mesma Praça, e na Loja de Fazenda da esquina de Palacio, e
na Cidade baixa na de José da Silva Dias; e quem tiver alguma chave em
seu puder a pode entregar, que não tem valimento para os divertimentos
que se seguem.93

Não eram cavalhadas, mas dançarinos em cavalos, acrobacias equestres, mais aos moldes
do circo. Em 9 de outubro de 1818 avisava que tinha sua casa “M. Southby, da Companhia
de Equilibristas [...] ao Forte de S. Pedro”.94

Domingo 4 de Outubro, na Praça dos Touros há hum brilhante divertimento,


a beneficio da Companhia de Dançarinos Inglezes, os quaes pertendem
fazer o seguinte (além do mais que também se dará à luz em noticias);
subirá ao ar huma maquina com hum homem equilibrado em cima, com a
cabeça para baixo, e dous mais por baixo da mesma, a Madame dançará o
landum na corda forte com castanholas, seguir-se-há o divertimento
intitulado o desastre do Alfaiate, e o cavallo rabioso; e hum admirável fogo
artificial que mostrará por fim as Armas Reaes, e o dístico Viva D. JOÃO
VI.95

A Praça de Touros não perdurou. Após os espetáculos da companhia inglesa, foi vendida
“para qualquer fim que a pertenderem”.96 E ainda em 1818, “Francisco José de Mores
vendeo metade da parte que tinha na Praça dos Touros, a Manoel Fontaine Berton, e cedeu
gratuitamente a José da Silva Dias a outra metade”.97 Não encontramos as tauromaquias
nas décadas subsequentes.98

89
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.80, Sexta-Feira 10 de Outubro de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.
90
SEGAWA, Hugo. Ao Amor do Público – Jardins no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1996, 255p.
91
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.81, Terça-Feira14 de Outubro de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.
92
DENIS, 1980, p.252.
93
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.61, Sexta-Feira 31 de Julho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1818.
94
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.80, Sexta-Feira 9 de Outubro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
95
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.79, Sexta-Feira 2 de Outubro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
96
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.88, Sexta-Feira 6 de Novembro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
97
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.65, Sexta-Feira 14 de Agosto de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
98
Alberto Silva [A Cidade do Salvador (Aspectos Seculares). Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1971] defendeu que as
corridas de touro, junto com as cavalhadas, eram as diversões preferidas até meados do século XIX. No entanto, se das

260
Mas o fundamental eram os eventos religiosos, das missas aos grandes ciclos festivos
anuais, passando por leilões e quermesses.

5.3. A Sociedade em Festa


A aparição da mulher, das iaiás, vista como um problema a ser equacionado, se delineia
mais claramente naqueles momentos em que socialmente a família precisava ir a público:
eventos religiosos.

Anna Bittencourt conta que para celebrações como a Semana Santa de 1813, na Vila de
Inhambupe, elas “saíam de suas moradas – verdadeiros gineceus gregos – as mais
recatadas e, pode-se dizer, invisíveis senhoras, quando os chefes de família se dignavam
fazer-lhes a vontade”.99 A metáfora do gineceu é uma idéia feliz, que nos permite ver sob
outra luz como as mulheres dessas classes agiam.

Os mais corriqueiros de tais eventos, ou de obrigações que ganhavam um cunho


inopinadamente mundano, eram as missas. Em cadeira de arruar ou a pé, na rua e dentro
da igreja, estavam sujeitas à exposição, em um ritmo semanal.100 Sempre que havia “um
serviço especial – isto a fim de ´ver e ser visto´, – constituem o conjunto do que parece ser,
para os homens e as mulheres, a maior fonte de diversões”.101 E também para as mulheres
serem vistas dentro das igrejas, pois era ali que “os rapazes alcançavam contemplar essas
flores tão avaramente guardadas”.102 Ao lado ou nas portas das igrejas, e orbitando sua
atividade, nos dias de festa, ocorriam leilões, vendendo flores, frutas, brinquedos, mais a
música e a iluminação dos templos, com caramanchões com folhas de palmeira, loureiro e
pitanga: “são tão poucos os divertimentos dos brasileiros que esse passa-tempo assaz
insípido, é apreciadíssimo e muito do gosto da parte mais moça da assembléa”.103 Faziam
parte do complexo festivo da cidade, pelas atividades e suas formas, por ocorrerem às suas
vésperas e por e auxiliarem no seu financiamento.

Lindley observara que “as diversões principais dos cidadãos são as festas dos diferentes
santos, procissões de freiras, funerais suntuosos, a Semana Santa ou da paixão, &c.”.104 Os
estrangeiros entendiam os eventos como distração e diversão. Viam em seus termos, e
consideravam essa diversão francamente inadequada para ritos religiosos. A Edward Knight
“na Bahia todo dia do ano parece ser uma fiesta, e dedicada a um santo ou outro”105 e
considerava a Bahia, no final do século XIX, incomparável no mundo por isso. As festas
eram recorrentes nesses relatos. Os motivos são vários. Primeiro, por força de contraste e
mesmo escândalo pela iconolotria brasileira, dos ares “supersticiosos” na crença nos
poderes miraculosos das imagens. Porque, de fato, eram constantes: difícil um viajante não
flagrar algumas delas: “raramente um dia se passa sem que aconteça uma ou mais destas

cavalhadas encontramos reiteradas menções dos tipos mais diversos, desde romances até anúncios de jornal, dos jogos de
touros, nada.
99
BITTENCOURT, 1992a, p.76
100
O raro relato de uma família à rua é o de Chamberlain, no Rio de Janeiro (CHAMBERLAIN, Lieutenant Henry. Views and
Customs of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro, Brazil... London: Howlett and Brimmer, Columbian Press, n.10,
Frith Street, Soho Square, 1822, p.25).
101
WETHERELL, s/d, p.98.
102
BITTENCOURT, 1992a, p.77. Nas cidades, esse papel fundamental das capelas particulares não se repetia. Mas os
oratórios familiares, nas casas, serviam para ofício semanal, todo sábado, a Nossa Senhora (QUERINOa, 1955, p.119). Essa
conexão com o divino pertencia apenas ao âmbito familiar, sem todas as funções e camadas de significado que ganhavam
no interior.
103
WETHERELL, s/d, p.130.
104
The chief amusements of the citizens are the feasts of the different saints, processions of nuns, sumptuous funerals, the
holy or passion-week, &c. (LINDLEY, 1805, p.275).
105
In Bahia every day of the year seems to be a fiesta, and dedicated to some saint or other [...] (KNIGHT, 1884, p.72).

261
festas; e assim se apresenta uma contínua rodada de oportunidades para unir devoção e
prazer”.106 E Lindley foi ao ponto da ambivalência dos eventos, unindo “devoção e prazer”.

Muitas festas eram massivas, como as do Bonfim, e quando não, difícil não notá-las, pois o
alarde era grande, com fogos de artifício e tiros de canhão. Ademais o contraste não poderia
ser maior, do luxo gasto com as festas, e todas as deficiências da vida civilizada, conforme
entendido por eles.

A sociedade baiana girava em torno das festas em geral, e das festas religiosas em
particular.107 Nelas convergia todo o esforço das confrarias. Os artistas dirigiam seus
talentos aos apetrechos litúrgicos, ícones e preparativos das festas o seu talento. Todas as
classes sociais delas participavam, cada qual à sua maneira. No calendário os dias
religiosos não eram exceção, e sim regra. Estavam impressos com uma regularidade e
presença tamanha que seria um equívoco tratá-los como um tempo excepcional, e não parte
indissociável dos ritmos da sociedade. Este não era um tempo livre, mas um tempo liberado,
quando não uma obrigação, em vários níveis, análogo ao luxo, ao desperdício, conforme
definido por Kátia Mattoso.

As confrarias de leigos (Ordens Terceiras, Irmandades, Devoções) desempenhavam um


papel fundamental na economia total da sociedade (pecuniária, orgânica, espiritual),
principais veículos do catolicismo popular, cumprindo muitas funções. Em troca de
anuidades, do bom comportamento e da presença obrigatória nas cerimônias civis e
religiosas da irmandade, o irmão tinha direito à assistência médica e jurídica, socorro em
momentos de crise financeira, ajuda para compra de alforria em algumas confrarias, direito a
enterro decente para si e membros de família na capela da irmandade, e a estrutura para
missas encomendadas velando pelo destino de sua alma no Purgatório. Pelo apoio logístico
e na forma de uma egrégora espiritual, eram também um meio de intermediação com o
divino, na vida e na morte.108 Círculos de solidariedade por nacionalidade, profissão e
grupos étnicos. E expressões do poder e prestígio dos indivíduos e suas famílias. Como
obrigação, como dispêndio necessário para o santo, estava o cuidado com sua imagem e
templo, e a festa. Tinham nos dias do santo de sua devoção a sua data máxima.

Apesar de todos os aspectos envolvidos nestas, a devoção ao Santo era sincera, ainda mais
às portas da morte.109 Por muitos caminhos os baianos se comunicavam com o
transcendente, e as efusões festivas eram um deles. Incluía o apelo aos poderes divinos
diante de pragas e desastres naturais. Santos se trasladavam de igreja a igreja, com toda a
pompa requerida, seja em rituais anuais, seja para a manutenção ou na permuta dos santos,
contra o flagelo da seca, ou mesmo como reação a misteriosos sinais no céu, ou epidemias,
com apelos a São Francisco Xavier.110 As procissões, e celebrações ao redor delas, eram
“atos técnicos” vistos como necessárias para resolver problemas coletivos. Isso implicava
em uma sociedade que voltava seus recursos e talentos ao efêmero: construções
temporárias, adereços e alegorias, queimavam-se nas velas, archotes, fogueiras e fogos de
artifício. Um fausto fugaz e compulsório.111

As deambulações eram constantes, um protocolo de ação consagrado. Dizia Ver Huell, no


começo do século XIX, após descrever a mecânica dos bandos anunciadores, que “eram

106
LINDLEY, 1805, p.275 – tradução nossa.
107
Convertendo-as em algo próximo a um fato social total, no sentido de Marcel Mauss.
108
REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do Século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
109
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida
Privada no Brasil vol.2. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Pp.95-141.
110
A permuta dos santos foi testemunhada por Candler & Burgess (1953, p.49). Dos sinais do céu, Rocha Pita (2013, p.469).
111
Por exemplo, disse Vilhena sobre os custos das festividades, para o Senado da Câmara da cidade, que bancara dez
procissões, e festejos a São Sebastião, Nossa Senhora das Candeias, São Felipe, São Tiago, São Francisco Xavier, Corpus
Christi, São João Batista, Santo Antônio de Arguim e a cívica aclamação do rei D. João IV (VILHENA, 1922a, p.70).

262
principalmente as procissões, no entanto, que conseguiam atrair toda a população, uma vez
que se imprimia toda pompa e esplendor possíveis àquelas apresentações”.112

Procissões se faziam para extrema-unções e enterros113, “muito pitorescas e se esticavam


pelas ruas tortuosas a caminho de várias igrejas”114 e se mantiveram com os novos
cemitérios, com o transporte por veículos, onde se encontrava ainda “certo ar de
divertimento demonstrado pela grande maioria dos que se acham nos carros”.115
Reconhecia Wetherell uma dimensão recreativa, lúdica, mesmo em um rito fúnebre. Mas
emergia certo ar de frivolidade entre os partícipes das festas religiosas, e das classes altas.
E de uma frivolidade moderna em Recife, onde se observava “o madamismo, que o que
quer é um motivo, seja ele qual for, para sair de casa, veste-se com todos os adornos e
louçainhas que tem, e do mesmo teor que se preparasse para ir ao teatro”.116 Se isso ocorria
nas ruas, nas sacadas dos sobrados também havia tal exposição.

Os edifícios se adornavam para aumentar o brilho da festa, tornando-os cenário adequado:


eram caiados e iluminadas, ganhavam decoração e colchas eram penduradas nas
residências, nos balcões, fazendas de damasco.117 E se tornavam arquibancada para as
mulheres luzirem à vista de todos. Em 1847, anota Wetherell: “os balcões do primeiro andar
são os lugares procurados para despreguiçar; em dias de procissão ou de festa importante
[...] e, se tiver alguma coisa para ver, neles se apinham as beldades e as elegantes da
cidade”.118 As damas atiravam flores sobre os andores e os pálios. À noite, acendiam velas
dentro de mangas de vidro para ver as procissões.119 Vendo, as damas também eram vistas,
alvos daqueles janotas namoradores, ao menos em Pernambuco (e por que não na Bahia?),
dado que “a súcia dos gamenhos nem dá fé das imagens que vão na procissão, porque têm
os olhos cravados nas santinhas da terra”.

O interior das casas era o lugar para reunião da família ampliada e de seus amigos. A
continuidade entre a casa e a rua, com seus vários limites e umbrais, e as ocasiões em que
aparecem, são parte integral e necessária das festas. Lindley vira, já no começo do século,
a visita entre amigos e o comensalismo, a fartura nos banquetes, e a música em cena,
provavelmente o lundu.120 Nas festas religiosas, cívicas e mundanas da cidade, no centro de
Salvador, as residências abriam suas portas para amigos, que acompanhavam as festas
dos balcões, e dela participavam, nessa pulsação entre as distintas esferas.

112
HUELL, 2009, p.160.
113
WETHERELL, s/d, p.90; QUERINO, 1955a, p.131; REIS, 1997.
114
WETHERELL, s/d, p.112.
115
WETHERELL, s/d, p.112. O curioso hábito foi visto por outros estrangeiros, como Lindley (1805, p.20) e Maximiliano de
Wied-Neuwied (1958, p.469), e detalhado, em todos os seus nuances e conflitos, no clássico de João José Reis (1991).
116
GAMA, 1996, p.142. Texto de 5 de abril de 1834, chamado As Procissões.
117
WETHERELL, s/d, p.32.
118
WETHERELL, s/d, p.32.
119
CAMPOS, João da Silva. Procissões Tradicionais da Bahia. In: Anaes do Arquivo Público da Bahia Sob a Direção de Alfredo
Vieira Pimentel Vol.XXVII. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1941, p.253.
120
Em grandes ocasiões desse tipo, depois da igreja, eles se visitam, e têm um jantar mais abundante do que o usual sob
o nome “banquete; durante e depois do qual eles bebem quantidades incomuns de vinho; e então, quando elevados a
um nível extraordinário, a viola ou violino é introduzido, e a cantoria começa; mas a canção cedo dá lugar à sedutora
dança negra. (LINDLEY, 1805, p.275 – tradução nossa)
A dança descrita seria uma mescla do fandango ibérico com outras africanas. Como o lundu era sempre comparado com o
fandango, é a alternativa mais verossímil.

263
5.4. Alguns Ensaios de Modernidade
A cidade se modernizava nos hábitos. Convivia com os hábitos tradicionais, e amálgamas
próprias. Mas o processo ocorria.

Thomas Lindley acreditava estar assistindo já em 1803 a uma mudança no vestuário, para
ele um avanço civilizatório: “eu vejo diariamente as roupas européias em geral mais
adotadas entre as senhoras”.121 Pouco tempo depois Maximiliano de Wied-Neuwied vira no
Rio de Janeiro e Salvador “progressos no caminho da civilização”.122 John Mawe na
segunda década do século XIX, relatava que corria a viva voz que nas melhores sociedades
baianas “prevalecem mais alegria e refinamento e as classes mais altas são mais sociáveis
que no Rio de Janeiro”.123 Tratamos de duas leituras contraditórias, a das mulheres
zelosamente trancafiadas em suas casas, atrás de véus, cortinas e treliças, e uma
sociedade mais liberal que a carioca?

Para além da mera coexistência, havia uma transição de fase, uma mudança nos hábitos da
sociedade, pois as damas que ensaiaram uma vida mundana efetiva eram as da elite,
muitas portuguesas. Daí começou a propagação dessa europeização, cujo epicentro era
Paris. Segundo Maria José de Souza Andrade a vida social se expandiu com a vinda da
Corte portuguesa para o Brasil, desdobrando-se em saraus, jantares e bailes.124 Esses
novos hábitos irradiaram também a partir dos estrangeiros sediados na Bahia, organizados
socialmente por seus cônsules e homens importantes. Propagaram-se das classes altas às
mais baixas. Da capital rumo ao interior. E dos salões privados, dos novos solares e das
novas sociedades recreativas e clubes, para o espaço público.

O teatro, que já existia antes na cidade, passou por uma mudança importante com a
construção do Teatro São João. Principal teatro na Bahia oitocentista, nasceu para ser um
entretenimento ilustrado para as classes altas e lhes educar aos novos refinados gostos
europeus, gêmeo do empreendimento civilizatório do Passeio Público. As obras se iniciaram
em 1806, por João Saldanha da Gama Melo Torres, o 8º Conde da Ponte, seguindo o
modelo do Marquês de Pombal, antes mesmo que se cogitasse o insólito, a vinda da Família
Real para o Brasil. Falecendo em 1809, foi seu substituto e sucessor o D. Marcos de
Noronha e Brito, o 8º Conde dos Arcos, governador da Bahia de 1810 a 1818, quem
concluiu e inaugurou o Teatro em 1811.125 Sediava nesse início jantares galantes. Nas
funções recorrentes, o foco não ia para o lírico ou o dramático, e sim para o cômico e
mesmo o burlesco. Sobretudo, seu êxito ocorria com representações sacras ou cívicas,
dentro do cotidiano religioso e festivo da cidade. Porém o Teatro São João acabaria
funcionando para a elite da capital. Não sem tensões, das críticas ao comportamento
“selvagem” da plateia. Como em 1825, onde houve balbúrdia, e se conclamava a que “não
permittão que se finalize hum divertimento Publico, e protegido pelas Leis, vistos termos
ouvido a muitos dizerem que lá não forão com suas familias”.126 Fora da questão da
civilidade, note-se que o que se buscava era algum lugar decente para as famílias. Aquela
presença das classes altas não se dera por sua educação e pelo culto das Belas Artes. Elas
se apoderaram do espaço para fins de socialização e de uma vida galante que nascia. A

121
Bahia is surely advancing in civilization: the European dress I see daily more generally adopted among the ladies [...]
(LINDLEY, 1805, p.138).
122
MAXIMILIANO, 1958, p.470.
123
[...] it is said that in the best societies here, more gaiety and refinement prevail, and the higher classes are more
sociable, than in Rio de Janeiro [...] (MAWE, 1812, p.281.)
124
ANDRADE, Maria José de Souza. A Bahia que Recebeu o Príncipe Regente. In: ATHAYDE, Sylvia Menezes de (org). A
Bahia na Época de D. João. A Chegada da Corte Portuguesa 1808. Salvador: Museu de Arte da Bahia/ Solisluna Design e
Editora, 2008, p.58.
125
MAROCCI, 2011, p.427. Sílio Boccanera Jr. (s/d, p.457) fala da inauguração em 13 de maio de 1812. No entanto,
encontramos uma primeira função no teatro em 1811, porém em 13 de dezembro, a celebração do dia do aniversário da
Rainha (IDADE D´OURO DO BRAZIL n.62, Sexta-Feira 13 de Dezembro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva
Serva, 1811).
126
GRITO DA RAZÃO n.28, Quarta-feira 18 de Maio de 1825. Salvador: Typ. da Viuva Serva, e Carvalho, 1825.

264
peça não era razão da presença: ia-se sabendo quem ocuparia qual cadeira. Os longos
intervalos entre os atos permitiam a conversa, que tinha função estrutural naquela
sociedade. Vale o registro do comportamento da platéia por Maria Graham: “durante as
representações, as damas e cavalheiros portugueses pareciam determinados em esquecer
completamente o palco e a rir, comer doces, e beber café, como se estivessem em casa”.127
Era atividade tida como elegante pelos padrões europeus, com elevado custo de admissão
a selecionar seu público, em especial nos camarotes. A participação era passiva, sem
necessidade de preparo maior. Muitos não sabiam o que estavam ouvindo. Mas sabiam o
que estavam fazendo.128

Junto com o Teatro São João, havia teatros particulares, menores, e grupos de amadores,
parte do escasso lazer da época, “onde os rapazes bonitos e imberbes se vestiam de
damas”.129 Neste momento a novidade estava na formação de Sociedades, de grupos de
amadores, reunidos em torno de um fim. No caso, do Teatro. E que se confundem com
Sociedades Recreativas, uma orientação mais ampla.

Uma dessas sociedades teatrais era a Nova Dramática, operando nos anos 1830, à Rua de
Baixo.130 Havia a Sociedade Dramática, cuja primeira notícia que encontramos é de 1838,
arrendando nesse ano “o seo Theatrinho à rua debaixo com todos os seus utencilios para o
fim de representações dramaticas, e Academias de musica”.131

Esses lugares também organizavam bailes ou alugavam o espaço para esse tipo de função.
Era o caso da Sociedade Recreação Bahiana, ao Largo do Teatro.132 Promovia bailes
mensais, como outros maiores em comemorações cívicas. Em 1840 realizou um baile pela
maioridade do Imperador D. Pedro II, e apesar do tom efusivo do texto publicado após sua
realização, tem-se alguma idéia do que tais entidades representavam naquele momento.

Sabbado 29 de agosto teve lugar um magnifico baile que a sociedade


Recreação Bahiana deo, em applauso à feliz acclamação da maioridade do
Sr. D. Pedro II. Às grandes proporções que a casa da sociedade offerece
para um numeroso ajuntamento, se unirão as da sociedade litteraria que
fica no mesmo pavimento, formando todo o primeiro andar da bella
propriedade do Sr. Rocha, o vasto recinto eu recebeo o numeroso e
distincto concurso de mais de 300 pessoas. [...] Os Excels, presidente da
provincia, commandantes das armas, o Sr. intendente da marinha, diversas
outras authoridades, empregados publicos, officialidade de linha, e da
guarda nacional, e grande numero de pessoas de maior consideração desta
cidade concorrerão a tornar mais luzida a festa, que foi tambem honrada
com a presença dos illustres francezes [...] Perto de vinte officiaes e
pessoas da comunidade de S.A., o Sr. principe de Joinville, assistirão ao
baile; entrando nesse numero os ilustres generaes conde Bertrand e
Gourgaud, o respeitavel visconde Las Casas, e bem assim o venerando
sacerdote que acompanha a expedição. O baile prolongou-se, até depois
das 4 horas da madrugada.133

127
[...] during the representation, the Portuguese ladies and gentlemen seemed determined to forget the stage altogether,
and to laugh, eat sweetmeats, and drink coffee, as if at home. (GRAHAM, 1824, p.139).
128
Não se deve, porém, idealizar o cenário europeu, e julgar que esse tipo de uso ocorria somente nas Américas. As óperas
exibidas em Paris precisavam ter um balé no seu segundo ato por uma exigência nada artística ou civilizada: porque era o
momento em que os membros do Jockey Club chegavam após seu jantar, querendo ver as pernas das bailarinas. Em 1861
tornaram as exibições de Tannhäuser, de Richard Wagner, impossível, porque estese recusara a fazer tão relevante
concessão. (FRIEDRICH, Otto. Olympia: Paris no tempo dos impressionistas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
129
SILVA LIMA, 1908, p.107.
130
DIÁRIO DA BAHIA n.39, Quarta-Feira 18 de Fevereiro de 1835. Salvador: Typ. do Diário, Rua do Tijolo, n.34, 1835.
131
O CORREIO MERCANTIL n.520, Sábado 28 de Julho de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
132
O CORREIO MERCANTIL n.624, Terça-Feira 11 de Dezembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
133
O CORREIO MERCANTIL n.187, Terça-Feira 1º de Setembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1840.

265
Em 1839 estava o União Dramática em conjunto instalado na casa, hoje demolida, no alto
da ladeira da Conceição, esquina da ladeira da Gameleira, onde fora a Marcenaria Bahiana,
no prédio contíguo, onde esteve o Hotel Bahiano.134

E em 1840 se tornava pública a fundação de uma Sociedade Dançaral no dia 10 de maio,


direcionada mais propriamente para esse fim, no 3º andar de sobrado na Rua do Julião.135
Na segunda metade do século XIX aparecem os bailes de máscaras, antepassados dos
clubes carnavalescos.136 Em 1851 em salão na Gameleira, na mesma rua da União
Dramática, houve um baile de máscaras.137 Também os hotéis emprestavam sua estrutura
para o mesmo serviço, como o São João que oferecera “baile mascarado” em fevereiro de
1850138, assim como no ano seguinte.139

No mesmo período apareceram as sociedades musicais, as filarmônicas, que mudaram o


panorama musical da cidade, seguindo o espírito daquelas outras sociedades de teatro e
dança. Há uma menção já em 1833:

O Regedor d´Academia de Muzica desta Cidade João Honorato Francisco


Regis, partecipa a todos os Srs. Socios da mesma Academia, que Domingo
30 de Junho, pelas 7 horas da tarde, haverá Sociedade Philarmonica para
os mesmos Senhores [...]140

Em 1843 vimos anúncio de uma sociedade Philarmonica [sic] que precisava “comprar um
violãocello usado (porém em bom estado)”.141 Silva Lima falava de uma filarmônica, talvez a
mesma, naquele período, sob a batuta de Moura, um maestro português, reunindo mais de
quarenta pessoas, sem contar os sócios que não concertavam. Seus membros eram quase
todos comerciantes, e seu êxito era tal que “nas noites de ensaio geral, ou de festa, enchia-
se de povo a praça do Commercio, onde afluíam muitas famílias da cidade alta”.142 Esta
filarmônica durou por alguns anos, cessando quando o maestro passou a sofrer de cegueira.
O Príncipe de Joinville, François Ferdinand Phillipe Louis Marie de Orléans, estando na Baía
de Todos os Santos em 1840, mencionou em Cachoeira o que era um coreto e os sinais de
uma banda que ali atuara: “no meio da praça estava um quiosque [...] os instrumentos de
uma orquestra ainda estavam lá” 143, o que é de uma precocidade notável.

Mas o espaço público moderno par excellence, com um arranjo radicalmente distinto dos
adros e largos secos da tradição portuguesa, era o Passeio Público.

O Passeio Público
Embora o Passeio Público do Rio de Janeiro, criado entre 1779 e 1783, fora desenhado à
maneira de um belvedere, como as Marines Parades inglesas e seus equivalentes
mediterrâneos, os demais espaços similares ao longo do Brasil foram criados para fins
fisiocráticos, dentro de um projeto imperial setecentista específico.

134
RUY, Affonso. História do Teatro na Bahia: Séculos XVI – XX. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, 1959.
135
O CORREIO MERCANTIL n.112, Quinta-Feira 21 de Maio de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
136
MATTOS, 1992, p.205.
137
O MERCANTIL n.137, Sexta-Feira 18 de Julho de 1851. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1851.
138
DIAS, 2007, p.129.
139
O MERCANTIL n.129, Sexta-Feira 25 de Junho de 1851. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1851.
140
DIÁRIO DA BAHIA n.311, Sexta-Feira 28 de Junho de 1833. Salvador: Typ. do Diário, Rua do Tijolo, n.34, 1833.
141
O CORREIO MERCANTIL n.5, Sábado 7 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1840.
142
SILVA LIMA, 1908, p.100.
143
[...] in the middle of the square stood a kiosk [...] the instruments of an orchestra were still there [...] as if the music had
only been broken off a few minutes previously. (MEMOIRS (VIEUX SOUVENIRS) OF THE PRINCE DE JOINVILLE.
New York: Macmillan and Co., 1895, p.173).

266
Entre 1798 e 1800 instalou-se o Jardim Botânico de São Paulo. Em 1808, o Jardim Botânico
do Rio de Janeiro, criado como um jardim de aclimatação, tornado em 1823 um jardim
botânico propriamente dito. Em 1811, o de Pernambuco, em Olinda. Em 1825, o Jardim
Botânico de Ouro Preto.144 Todos estes jardins eram para adaptação local das espécies
exógenas para o plantio e, no sentido contrário, preparo de espécies nativas para a
metrópole, enviadas para o Real Jardim Botânico da Ajuda. Salvador não foi diferente.145

D. Rodrigo de Sousa Coutinho, da Secretaria de Marinha e Domínio Ultramarinos, instruiu


em novembro de 1798 a D. Fernando José de Portugal, governador da Bahia, a instalar o
horto botânico da Bahia, com a função primordial de cultivar plantas indígenas e exóticas,
com ênfase nas madeiras de construção.146 Foi nomeado em 1799 Ignácio Ferreira da
Câmara Bittencourt, médico formado em Montpellier, para instalar e dirigir o futuro horto.147

Ele identificara dois terrenos propícios: um na baixa da Lapa, o outro entre o Convento das
Mercês e o Forte de São Pedro, que descia até um dos braços do Dique do Tororó,
seguramente o da região de São Raimundo. Seus proprietários, respectivamente João
Francisco da Costa e José Vieira de Araújo, recusaram-se.148 Uma alternativa nos Barris lhe
fora oferecida, e por ele rejeitada.149 Ignacio Bittencourt acabou por escolher a roça do
coronel Caetano Mauricio Machado, situado no campo do Forte de São Pedro, em 20 de
agosto de 1803.150 Imaginava poder ampliar posteriormente, adquirindo a roça Canelas,
vizinha, o que não ocorreu. Para ele, o sítio ideal deveria ser composto de uma bateria de
subespaços particulares: uma área plana para a exibição das plantas e para canteiro de
plantas com raízes na terra; mais um lugar baixo e úmido, expostos aos ventos de nordeste
a sul, para a cultura de plantas de capitanias mais frias; outro um lugar extenso e com fundo
de terras sem pedras para plantio de árvores ao natural; por fim um lugar abrigado dos
ventos de sul, protegido por alguma barreira, natural ou artificial, para sementeiras; mais
uma fonte de água boa, e um lago para plantas aquáticas. Ora, os terrenos cobiçados e não
conseguidos por serem marginais ao Dique teriam todas essas características: do topo
plano, e capaz de colocar as sementeiras, às vertentes expostas ao leste e, ao fundo, o
espelho d´água.151 Já o terreno obtido, na cumeada da Montanha, na borda da falésia, não
lograva nem os ambientes mais frios, muito menos a condição de abrigar plantas aquáticas.
Mas o Jardim não se instalara de vez, por motivos políticos de diversas ordens.152

Começaram a aparecer outras idéias diferentes para o destino da roça comprada. O


desembargador João Rodrigues de Brito, em depoimento ao Senado da Câmara de
Salvador de 1807, defendeu a conveniência de um passeio público.153 Foi o Conde dos
Arcos quem por fim aparelhou o espaço, agora para ser um Passeio Público, com os
elementos de um belvedere: o mirante semicircular, escadarias e gradeamento154 (Figs. 153
a 163). Que alguns daqueles espaços biotécnicos fisiocráticos se tornassem, cedo ou tarde,

144
SEGAWA, 1996.
145
PATACA, Ermelinda Moutinho. Mobilidades e Permanências de Viajantes no Mundo Português: entre práticas e
representações científicas e artísticas. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo. 2015. PEREIRA, Rodrigo Osório. O Império Botânico: as políticas portuguesas para a flora da Bahia Atlântica Colonial
(1768-1808). Junho 2013. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2013.
146
PEREIRA, 2013, p.289. Outros documentos vinculavam o Jardim Botânico a projetos agrícolas mais específicos, como a
exploração da canela, da pimenta, da noz-moscada, açúcar e tabaco (PEREIRA, 2013, p.289). Eram também espécies
visadas por D. Rodrigo de Souza Coutinho o cravo-da-Índia e fruta-pão (SILVA, 1940, p.262).
147
Montpellier foi um dos mais importantes centros de estudos botânicos da Europa, o primeiro dos grandes jardins botânicos
ligados ao ensino médico universitário (MUKERHI, 2007).
148
SILVA, Ignácio Accioli de Cerqueira e. Memórias Histórias e Políticas. Vol.VI. Mandadas reeditar e anotar pelo Governo
deste Estado. Annotador Dr. Braz do Amaral. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1940, p.259.
149
SILVA, 1835, p.267.
150
Interessante é a descrição da propriedade na ocasião: 15 mangueiras, 31 jaqueiras, 55 coqueiros, 4 oitizeiros, 7
dendezeiros, 6 genipapeiros (PEREIRA, 2013, p.300). Isso dá conta da cobertura vegetal da região, se imaginarmos que as
propriedades próximas do mesmo porte fossem similares.
151
PEREIRA, 2013, p.302.
152
PEREIRA, 2013, p.300.
153
SEGAWA, 1996.
154
AMARAL, 1922, p.44.

267
lugares de recreio, era inevitável. Para um Jardim Botânico, aquele terreno à beira da falésia
era inconveniente, por não conseguir ter a variedade mesológica ideal. Para um belvedere
arborizado, era perfeito. Abria-se de uma maneira única sobre a baía, descortinando ampla
vista pelo avanço do mirante principal, vertiginoso para muitos. Os dois maiores atrativos do
Passeio Público para os estrangeiros, o então vasto e belo panorama e a vegetação
exuberante, nunca foram motivo para o deleite público do nativo. Os documentos do
Governo sempre enfatizaram, em palavras sucintas, a localização e a vista, e raramente a
vegetação, o motivo primordial do Horto.

A exuberância da flora local estava disseminada por toda a cidade. Salvador era uma cidade
tomada pela mata, ainda que de regenaração, as capoeiras. A ocupação ao longo da
primeira cumeada era cercada por vegetação luxuriante. Ao contrário, se pensarmos que o
Passeio Público tomara roças preexistentes, com sua vistosa flora própria, e sondara
lugares similares próximos, temos o quadro desse entorno imediato. Para agravar, inexistia
uma série de hábitos que levariam a uma aproximação mais pública ao mundo vegetal,
como os estudos botânicos científicos ou de amadores, ou as jornadas pitorescas. Havia
áreas verdes para o deleite, mas eram domésticas, em um âmbito privado. Eventuais
encontros familiares ali ocorriam às escondidas dos demais.

Quanto à vista, os documentos oficiais são enfáticos no seu valor, assim como anúncios
para imóveis, para a moradia. No entanto, nada comprova que fosse algo que motivasse um
comportamento público ou, pelo menos, em lugares públicos. Apesar do panorama e da
flora não estarem tão distantes como se poderia imaginar das modalidades baianas do
deleite, estas eram mais privadas do que públicas, daí ser o Passeio Público um local vazio
na primeira metade do século XIX.155

A afluência ocorria somente com festas que tinham ali seu espaço. Festas cívicas, e não as
religiosas. A começar por sua inauguração, em 23 de janeiro de 1815, diz José Alvares do
Amaral que houvera “um brilhante concurso de povo”156, ou no tríduo de 19 a 21 de
novembro de 1829.157 Como no dia 2 de dezembro de 1839, quando do aniversário do
imperador D. Pedro II.158

Houve um ciclo de reformas e equipamento do Passeio Público nos anos 1850 e outros nos
1860. Mas o vazio do lugar parecia ser crônico. Daí as políticas de eventos para criar o
usufruto do espaço. Entre 1842 e 1857, começou a iniciativa de bandas, com uma certa
constância: “nos domingos à tarde, uma banda de música toca durante algum tempo, dando
assim motivo para que a gente ali venha se reunir”, no entanto “muito poucas senhoras ali
aparecem”.159 Não é incompatível com o abandono atestado pelo mesmo Wetherell:
aparentemente estava em uma inflexão ou uma tentativa de mudança. Ainda não era local
cotidiano para as famílias. Pelos anos 1860, novamente se apelou ao caráter festivo,
apoiando-se na música, por bandas dispostas pelo Presidente da Província e, depois, por
eventos beneficentes de sociedades diversas. Em 1860, fala-se de lugar no Passeio “onde
costumão tocar as bandas de musica”160, e alguns anos depois, que era “muito freqüentado
pelas famílias, principalmente nas noites de sextas-feiras e domingos, em que alli vão tocar
as musicas militares”.161

155
O ciclo de uso e transformações do Passeio Público está descrito com minúcia em: PAZ, Daniel J. Mellado. Mais Público do
que Passeio – A Vigência do Passeio Público de Salvador (1815-1894). In: PEIXOTO, Elane Ribeiro; DERNTL, Maria
Fernanda; PALAZZO, Pedro Paulo; TREVISAN, Ricardo (Orgs.) Tempos e escalas da cidade e do urbanismo: Anais do XIII
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Brasília, DF: Universidade Brasília – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, 2014. Disponível em: <http://www.shcu2014.com.br> Acesso em: nov. 2019.
156
AMARAL, 1922, p.44.
157
RUY, 1949, p.482.
158
O CORREIO MERCANTIL n.257, Sexta-Feira 29 de Novembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.
159
WETHERELL, s/d, p.144.
160
FALLA... 1860, p.155.
161
RELATÓRIO..., 1863, p.43.

268
A socialização de perfil mais moderno não começou pelos espaços livres, no uso mais
cotidiano, mas sim transformando os antigos encontros de familiares e amigos.

Figura 141 – Panorama do Bonfim vistos dos jardins públicos (1825-26), de Charles Landseer. Fonte:
BETHELL, 2010. Neste desenho não parece existir ainda o patamar inferior, acedido por rampa, que
aparece nas demais imagens, e que é onde está hoje o Teatro Vila Velha,

Figura 142 – Vista da Bahia, de Abraham Louis Buvelot. Fonte: ITAÚ CULTURAL.

269
Figura 143 –The Harbour and Bay of Bahia Brasil, de Lady Maria Callcott. Fonte: Fundação Biblioteca
Nacional. Esta pintura, similar às demais, possui um considerável erro de escala, perceptível no
tamanho por demais reduzido das pessoas, o que torna todo o conjunto muito maior, monumental
até, o que realmente é.

Figura 144 – Obelisco do Passeio Público (1842), de Franz Lané. Fonte: ATHAYDE, 2008.

270
Figura 145 – Passeio Público (1859), de Victor Frond. Fonte: ATHAYDE, 2008. Esta é a
representação mais “realista”. Isto é, o desenho se faz com um observador que efetivamente não está
“voando”, acima dos demais. O porém é que as linhas se confundem. Não é possível ver os planos
sucessivos, a Península de Itapagipe e sua enseada atrás, e o espelho d´água que prossegue ao
fundo da baía. Por isso que os demais pintores escolheram uma linha do horizonte muito acima do
normal, do observador.

Encontramos 5 representações do Passeio Público, todas do mesmo ângulo. Se o Passeio Público é


grande, e um mirante tão privilegiado, com vista ampla, porque os pintores sempre escolhiam o
mesmo ângulo, praticamente a mesma posição, a ponto tal que um desenho parece ser o esboço do
outro? Porque as convenções estéticas eram explícitas no que deveria ser admirado. Neste caso, é o
litoral em sua espessura, em sua substância, e não o mar. O mar, repetimos, é parte fundamental da
cena, coalhado de embarcações, recortando a costa, avançando e recuando, e perdendo-se ao
longe, com ilhas e colinas.

Figura 146 – Desenho do frontispício (1819), do Tenente Robert Pearce. Fonte: Guia Geográfico –
Bahia – Turismo. Brilhando em sua brancura, e contrastando com a massa verdejante da encoseta, o
Passeio Público.

271
Figura 147 – Planta da cidade de São Salvador (1894), de Adolfo Morales de los
Rios. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

272
Figura 148 – Passeio Público (1862), de Castro y Ordoñez. Fonte: Guia Geográfico – Bahia –
Turismo.

Figura 149 – A aléia de palmeiras, aparentemente situadas no terraço inferior. Fonte: CEAB.

273
Figura 150 – Passeio Público. Fonte: CEAB. Nele, chafariz gradeado. Em 1860 instalou-se um
chafariz, e em 1863, outro de caráter mais ornamental, provavelmente o da foto.

Figura 151 – Passeio Público (c.1875), de Guilherme Gaensly. Fonte: FERREZ, 1988. Esta alameda,
com fileiras de distintas árvores nas laterais, corre de norte a sul, levando ao Largo dos Aflitos.

274
Os Salões Privados: de serões, soirées e saraus162

Meu tio Manoel José era o freqüentador mais assíduo de nossa casa. Às
vezes trazia a mulher, Guiomar, senhora sem instrução, como eram naquele
tempo as de nossa terra, porém de gênio alegre e dotada de graça e
espírito trocista. Vinha também uma das filhas mais velhas, Jeronima, de
apelido Sinhazinha; era muito admirada e, com sua viveza e graça,
freqüentemente me fazia sair do sério, que era o meu estado habitual. Pelas
férias, meu tio Pedro Ribeiro também vinha com a mulher, Jesuína, jovial e
espirituosa, que cooperava a animar as palestras. [...]. Pode-se, pois, avaliar
que, com tantas visitas, as horas corriam prazenteiramente naqueles
serões. (BITTENCOURT, 1992b, p.155).

Estes encontros familiares domésticos eram chamados serões. Os serões se transformaram


em eventos ainda mais abertos, com uma circularidade do prestígio, de quem convida e de
quem é convidado.

Fisicamente, era o lar que se abria. Socialmente, o espaço doméstico das classes altas se
desdobrava e se enriquecia em atividades, daí o mobiliário se proliferar. A esfera pública
avançava, multiplicando suas atividades, espaços de recepção, estruturados de modo a
receber visitas. A interface da fachada com o exterior, antes uma membrana que permitia
apenas a vista de dentro para fora, pelas urupemas e muxarabis, com as novas folhas das
janelas e sacadas, tornou-se uma arquibancada em potencial, usufruída plenamente quando
das festas de rua. A articulação entre as moradias e a rua durante as festas populares
prosseguia, sendo o lar aberto para os amigos, agora de modo mais voltado para a cidade.
O espaço privado retrocedia e se recolhia para âmbitos próprios, desdobrando-se por sua
vez em novas formas de intimidade.163 Por outro lado, os espaços coletivos exteriores,
públicos ou privados, ganhavam ares “domésticos”, como mobiliário, por exemplo.

Maria Graham disse que seus compatriotas costumavam jantar juntos, e que as mulheres
gostavam de música e dança. Em certo episódio, narra uma festa ao final da tarde onde
algumas damas jogavam cartas, outras dançavam164; os homens também jogavam cartas,
alguns “tanto quanto os portugueses”165. Talvez a colônia em solo brasileiro tivesse se
aclimatado e absorvido alguns dos hábitos locais. Wetherell faz uma radiografia geral da
situação pouco tempo depois: havia jantares que reuniam os homens e apenas
excecpionalmente as mulheres; reuniões dançantes, com ambos os sexos, com todas as
portas e janelas abertas; receptivos promovidos pelas damas, um dia por semana, para
receber os amigos e dançarem um pouco.166 O Rev. Daniel Parish Kidder reconheceu que
na casa do cônsul norte-americano, Mr. Gillmer, estava-se “sempre seguro de encontrar os
brasileiros mais refinados e melhor educados”.167 Em 1845 Suzannet via naquela pequena
sociedade em ultramar uma versão diminuída e degradada da original onde, unidos pela
situação em comum, em “um convívio agradável, quando as rivalidades políticas não
atrapalham essa entente cordiale”.168 Maximiliano de Habsburgo em 1860 descrevia um
sarau organizado pelo Cônsul Lohmann, que reuniria “todos os alemães na Bahia”169, ao
qual fora a contragosto. Assinalava algo daquela percolação de hábitos na maneira de
apropriarem-se da valsa: “a civilização na Bahia não acompanhava a velocidade da nossa

162
“Serão” e “sarau” possuem a mesma origem remota, do latim seranus, que aludia ao cair da tarde, e começo da noite.
Provavelmente “soirée” tinha a mesma raiz.
163
D´INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das Mulheres no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2012, p.228.
164
GRAHAM, 1824, p.135. Jogavam quadrille, muito popular no século XVIII, e em desuso ao final do século XIX.
165
[...] some of the men gamble as much as the Portuguese [...] (GRAHAM, 1824, p.147).
166
WETHERELL, s/d, p.88.
167
[...] always sure to meet the most refined and well-educated Brazilians [...] (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.484).
168
SUZANNET, 1957, p.30. O termo entente cordiale se empregava no século XIX a partir de 1843, originalmente aplicado ao
convívio pacífico entre França e Inglaterra. O termo será sinônimo, neste caso, do congraçamento entre os estrangeiros de
distintas nacionalidades, como por exemplo por Thomson (1877, p.144).
169
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.222.

275
valsa alemã. Ela é dançada de forma mais balanceada”170, como ocorre até hoje,
transformando uma dança febril em algo de ares nobres e galantes. Tais bailes não eram
festejos efervescentes, não procissões e atos, muito menos o Entrudo, não as músicas
locais. Ambos os sexos compareciam. O espaço público era ocupado, ao menos aquele
território identificado como mais “europeu”, como fora o Campo Grande. Era um ativismo do
convívio, conferindo importância à atividade e negando o ócio, criticado como desleixo e
incúria. Tais eventos foram assimilados pela elite local, que foi assim se educando naquele
savoir faire: abandonando as modinhas e sobretudo o lundu, incorporando as danças de
salão européias, mudando de instrumentos com o abandono das castanholas em prol do
piano. Fazendo parte da educação social, sobretudo das mulheres, criando uma distância
crescente dos gostos da elite baiana para os da população.

J.G. Semple Lisle comentava, no início do século XIX, de constantes fêtes que o
Governador dava, assim como de encontros promovidos por um mercador de nome Lisboa,
“cujas portas estão abertas a todo estranho de aparência decente, e onde em todos os
momentos está uma grande e boa sociedade”.171 Denis considerava os salões locais como
equivalentes dignos dos europeus: “um salão no Rio de Janeiro ou na Bahia, oferece, com
pouca diferença, a aparência de um salão de Paris ou de Londres”, falando-se francês e
com forte influência inglesa. Ou como os de Domingos Borges de Barros, barão e visconde
da Pedra Branca, nascido em 1790 em Salvador, que “costumava reunir, em sua residência,
os amigos e admiradores”.172 Wanderley Pinho apostava que tais encontros eram
frequentes, a partir de uns poucos indícios.173 Isso se intensificou nas décadas seguintes. O
Rev. J.C. Fletcher, entre 1852 e 1855, descrevia que, na casa de um certo Sr. Nobre, o “seu
amplo salão era semanalmente repleto de músicos profissionais e amadores, que dava as
mais charmosas soirées musicales”.174 Pinho apontava uma efervescência social nos anos
1850. Além de colorir o cotidiano, de constituir uma nova maneira de viver, e viver em
sociedade, tais eventos ainda tinham papel político fundamental.175

Os salões se configuravam como sistemas planetários próprios em miniatura para além dos
antigos laços parentais, disputando entre si quais representavam o melhor, o mais fino, da
elite. Repetia-se uma dinâmica usual na Europa.176 Nessa esfera pública nascente tornava-
se importante todo aquele arsenal da vida de corte, “o “anedotário, das réplicas do espírito,
das segundas intenções irônicas nos jogos de palavras e na palestra fina”177 e ainda a
poesia, o canto tão falado, os brindes e recitativos, tudo para ser um bom anfitrião ou um
conviva, sempre requisitado e bem-vindo.

170
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.228.
171
[...] whose doors are open to every stranger of decent appearance, and where there is at all times a large and good
society [...] (LISLE, 1800, p.285).
172
QUERINOa, 1955, p.129.
173
PINHO, 1942, p.43
174
[...] his large salon was weekly filled by amateur and professional musicians, who gave the most charming soirées
musicales. (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 484).
175
PINHO, 1942, p.9.
176
Tão constante que perpassava boa parte da literatura clássica: d´As Ilusões Perdidas, de Balzac, passando por
Dostoiévsky, com Os Demônios, por exemplo, até Marcel Proust, em seu Em Busca do Tempo Perdido, encontramos
sempre, com variações locais, essa estrutura. Wanderley Pinho (1942, p.6) aponta algo interessante: que os cronistas
preservavam as damas, evitando mencioná-las por nomes, ainda que para elogiá-las. Talvez aqui tenhamos um tributo da
mundaneidade à antiga reserva.
177
PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1942, p.7.

276
O Papel da Nova Geração
Naqueles serões, a música reinava no interior das casas, mesmo das senhoriais, naqueles
serões.

Mawe afirmava que havia poucas casas sem um violão.178 Eram presença obrigatória
mesmo nos engenhos e sedes de fazenda, como notara Rugendas179, o sustentáculo das
modinhas e do lundu. Necessários pois, durante as confraternizações no lar. A música
comparecia em eventos familiares em que “o canto e o apreciado champanhe animam estas
sociedades alegres, que só se dispersam, muitas vezes, ao romper do dia”.180 Inclusive saía
à rua, pelo menos à calçada, como Maximiliano de Wied-Neuwied observara.181 Nas várias
expansões familiares, a música não deixava de estar presente. Onde havia encontros
familiares, como jantares, “pediam a uma das senhoras para cantar alguma modinha”.182 Um
pouco antes de uma missa natalina, cantavam.

As cantoras eram Rachel, minha tia Carolina e uma senhora, mulher do


caixeiro do engenho; este tocava violão, e o filho de ambos tocavam flauta.
[...] Meu pai, apaixonadíssimo por modinhas, era um dos que davam palmas
e bravos mais entusiásticos. (BITTENCOURT, 1992b, p.38).

E não era um entretenimento passivo; era ocasião para a dança.

Novas danças chegaram da Europa ao longo do século XIX. Deram o ar de sua graça
nosgrandes bailes, de feição respeitosa, onde espreitam e se controlam as práticas de
espírito africano. Um exemplo ocorreu em dezembro de 1814, ao se colocar a pedra
fundamental do edifício da Associação Comercial, “com um esplêndido baile”183 para o
Conde dos Arcos. Em 7 de setembro de 1817, nesse edifício concluído, fizera-se outro
grande baile em sua homenagem. Apesar do convite a 200 senhoras, foram pouco mais de
40, “quase todas de Lisboa”, munidas com “os objetos da moda e as toiletes” recém-
chegadas de navio francês, e dançaram os novos ritmos da moda: “a senhora que executou
ao piano fê-lo com graça verdadeiramente francesa. Em seguida dançaram uma gavota e
uma alemanda; Mme. B... a, trajando de ninfa, executou lindamente a gavota”.184

Além da gavota e da alemanda, Manuel Querino assegurava que dançava-se o solo inglês.
Anna Bittencourt vira, além da gavota e do solo inglês, a cachucha, o minuto e o
fandango.185 Querino enumerou “a ´Valsa´, a ´Mazurca´, a ´Quadrilha´, o ´Lanceiro´”.186 E o
schottisch, a base do xote atual. Elas conviveram com as modinhas anteriores, sendo uma
ampliação considerável do repertório das classes médias e altas. Aqui vemos outro forte
componente nessa transformação, não presente nas descrições dos viajantes: o entusiasmo
dos jovens, que encontraram ali uma forma de serem cosmopolitas, e também de facilitar o
encontro entre os sexos.

Todos ardiam na impaciência de ver as danças altas – assim eram


chamadas – que iam ser executadas pelos sobrinhos de minha mãe. Estas
danças eram de bem poucos ali conhecidas, e foi tal a aglomeração de
espectadores, que com dificuldade deixaram o espaço, no centro da sala,
para a execução das mesmas. (BITTENCOURT, 1992b, p.52).

178
[...] there are few houses without the guitar [...] (MAWE, 1812, p.281). Aqui não teremos precisão terminológica quanto ao
instrumento, Aparece em inglês como guitar e foi traduzido ora como violão, ora como viola. Não são o mesmo instrumento,
e nem cabe aprofundar nessa diferença, e quais eram usados em detalhe.
179
RUGENDAS, s/d, p.193.
180
SPIX & MARTIUS, 2016, p.113.
181
MAXIMILIANO, 1958, p.469.
182
BITTENCOURT, 1992b, p.44.
183
QUERINO, 1955a, p.286.
184
TOLLENARE, 1956, p.308.
185
QUERINO, 1955a, p.234; BITTENCOURT, 1992b, p.52.
186
QUERINO, 1955a, p.115. Querino, sem ser contemporâneo, pode se confundir em uma série de expressões. O solo-inglês é
tratado como “sizudo” por ele, embora Silva Lima lhe falasse do caráter físico do mesmo, confirmado por Anna Bittencourt.

277
O ambiente das festas domésticas era uma transformação de um hábito anterior, a partir do
seu alargamento, não mais restrito à esfera familiar. Também se modificaram os
instrumentos e as músicas, agravando aquela cisão: as elites tratariam de se atualizar a
cada nova modalidade musical, e coreográfica, européia, deixando aquelas que
compartilhavam até não pouco tempo relegadas às classes mais baixas, na condição de
resquícios bárbaros e de lascívia.

Estamos aqui empregando as teorias mais tradicionais sobre a propagação da moda, que a
entendem como partindo dos estratos mais altos da sociedade, imitada sucessivamente
pelas classes mais baixas.187 Lipovetsky põe isso em dúvida.188 Para termos do que
tratamos aqui, esse modelo simples explica. Para o fenômeno mais geral do litoral, a longo
prazo, há mais nuances. E não sem suas ironias. Muitas das danças européias, aqui
adotadas como sinais distintivos de civilização, foram práticas populares incorporadas e
transformadas pelas classes altas em seus países de nascença. A gavota tinha origem
popular e a valsa fora dança camponesa abraçada no final do século XVIII pela nobreza e
burguesia.189

Havia nessa modernização uma tensão fundamental. As novas danças vinham com todos
os sinais de prestígio: dos países modelares, pelos governantes e classes altas, e da
capital. No entanto violavam as esferas de intimidade, e com isso fascinavam ainda mais os
jovens.

Apesar da acceitação que tiveram as quadrilhas e valsas francezas, não as


viam, a principio, com bons olhos, os mais severos paes de família.

Que queria dizer, pensavam eles, vir ahi um marmanjo qualquer, um


desconhecido, e, sem mais nem menos, levar pelo braço uma moça para o
meio da sala, passear com ella, passar-lhe a mão pela cintura e fazel-a
andar em um corrupio, até a estafar? Isto é uma indecência, uma
imoralidade!... Porém a moda, como sempre, venceu, e esses puritanos
tiveram de se conformar com ella: não havia outro remédio. (SILVA LIMA,
1908, p.107).

Querino confirma que se considerava uma “diversão perniciosa, pois a austera moral do
tempo não podia admitir que um rapaz pudesse com o braço enlaçar a cintura de uma
dama”.190 A desconfiança dos pais não era injustificada: por “civilizadas” que fossem, as
novas danças propiciavam uma proximidade inédita entre homens e mulheres, destruindo
aquela barreira invisível anterior, e franqueando os contatos para além dos círculos mais
imediatos e sob controle.

Por outro lado, os jovens queriam aprender essas novas habilidades: tocar, cantar, e, mais
importante, dançar. Ser partícipe dos eventos; do contrário, estar-se-ia alijado. Quando não
em ser a alma das festas, ou pelo menos agradáveis companhias que avivavam a sessão.
Daí as lições tomadas, de várias maneiras. Assim estimulavam a uma vida mundana dentro
e fora de casa.

Com espaços e profissionais próprios, oferecidos no centro da cidade, professores italianos,


ou pretensamente. Pinho marcava que quase todos os professores eram, ou ao menos
fingiam ser, dessa procedência. Trocando a incerta vida artística pela demanda garantida da

187
Teoria cuja exposição mais elaborada é o clássico de Gabriel Tarde, The Laws of Imitation. New York: Henry Holt and
Company, 1903.
188
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
189
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2010.
190
QUERINO, 1955a, p.234.

278
educação dos filhos das classes altas.191 Como, em 1817, ensinando “todas as danças em
uso nesta cidade”, um certo “Francisco Tago, de Nação Italiana, e Mestre de dança que foi
da Real Família de SS. MM. Sicilianas”.192

Eram as novas gerações que animavam aqueles bailes, as sociedades dramáticas e de


dança. Os anúncios tinham seu alvo: a “amável rapaziada”, os “rapazes” e os “jovens
galantes”. Produtos e serviços apareciam para atender a esse novo mercado. Em um
mesmo anúncio se punham à disposição uma “linda colleção de valsas e contradanças
modernas” recém-chegadas de Lisboa, o método de piano do Conservatório de Paris, uma
“collecção de lindas arias italianas com acompanhamento de violão, extrahidas das
melhores operas italianas modernas” e o Metrônomo de Maelzel.193 O básico eram lições de
canto e de piano em casa: “a moçoila, porém, com os cabelos soltos, estudava a lição de
música, ao piano”.194 Aulas dadas, de preferência, por tais profissionais recém-chegados,
como aquela “pessoa ultimamente chegada da Europa se propõe a dar lições de flauta,
violão, pianno forte, e rabecão, e a afinar piannos”.195

Era parte dos dotes femininos saber cantar as antigas modinhas. O pai de Anna Bittencourt
resolveu pagar por lições de canto à sua filha.196 A vinda do piano e de novos tipos de
música, como as cançonetas italianas, modificaram algo dessa paideia feminina. E não foi
apenas o conteúdo específico, pois entrava uma nova dinâmica, um processo de sucessão
mais veloz dos gostos. Renovava-se a formação das classes médias e altas, e uns
ensinavam aos outros quando possível. Anna Bittencourt relatava: “Henriqueta e eu
iniciamos o nosso aprendizado com Emilia”.197 Amigos e parentes eram mensageiros das
novas canções em moda, dos novos ritmos, dos novos costumes. O sujeito recém-chegado
de lugares de algum prestígio, como a capital da Província, Rio de Janeiro e Paris, se
encarregava também de provocar esse alvoroço. Satiricamente falava o Padre Gama que
“também concorre muito para o predicamento de bom moço o ter-se educado na Europa,
mormente em Paris”.198 Os serões da família de Anna Bittencourt se animaram, sua casa
tornou-se o tal “ponto chic”, “principalmente depois da volta de Emilia do Rio de Janeiro”199,
que mandara buscar seu piano no convento.200 Eram os jovens que se atualizavam nas
novas modas, e que corriam para acompanha-las, sendo valorizados entre os seus o quanto
mais inteirados estivessem. Na nova socialização que se desenvolvia, ao longo de décadas,
um novo savoir vivre ia se instalando, necessitando de novas habilidades, quase todas de
índole social.

Essa juventude podia constituir um mundo próprio, mas igualmente animava a vida dos
adultos – para isso também eram educados. Em uma ocasião, narrava Anna Bittencourt:
“findo o almoço, meu tio pediu a Emilia para tocar” e logo em seguida “pediram ao estudante
para tocar, e ele o fez com graça e expressão. Meu tio rogou-lhe então que cantasse, e
Daniel, tendo-se recusado a princípio, cantou de modo que muito agradou”.201

191
PINHO, Wanderley. Cotegipe e seu Tempo. Primeira Phase – 1815-1867. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.
Pinho descrevia, ainda, que mesmo esses profissionais – como o mestre de danças – gozavam de prestígio no Rio de
Janeiro (PINHO, 1942, p.15)
192
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.19, Terça-Feira, 11 de Março de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.
193
O CORREIO MERCANTIL n.220, Terça-Feira 13 de Outubro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1840.
194
QUERINO, 1955a, p.117.
195
O CORREIO MERCANTIL n.139, Quarta-Feira 1º de Julho de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
196
BITTENCOURT, 1992b, p.61.
197
BITTENCOURT, 1992b, p.132.
198
GAMA, 1996, p.435. Texto de 17 de dezembro de 1842, chamado O que é ser bom moço.
199
BITTENCOURT, 1992b, p.155.
200
BITTENCOURT, 1992b, p.86.
201
BITTENCOURT, 1992b, p.152.

279
Uma das novidades do império da moda, e dos jovens como sua vanguarda, é que, se antes
eram os adultos que enculturavam e incorporavam os recém-ingressos nas suas hostes,
agora eram estes que educavam os mais velhos. Ou simplesmente os sobrepujavam por
força da inevitável substituição geracional. Esse estranhamento se vira quando, no seio
familiar de Anna Bittencourt, Emília trouxera do Rio de Janeiro cançonetas italianas, para
reação do tio Pedro Ribeiro, que chamou-as de “conjunto de gritos sem harmonia!”,
inferiores ao francês para fins de canto, no que “o estudante e a moça entreolharam-se
sorrindo à vista de tal heresia”.202

Embora não como protagonistas, como agentes da mudança, vemos no final da primeira
metade do século XIX os primeiros sinais da criança das classes médias e altas, com uma
infância e seus serviços.

Em 1839, anunciava-se que tinha “no Coberto grande, segunda banca, [...] excellentes
bonecos e differentes outros brinquedos para crianças”.203 Em 1840, na banca de Theotonio
José Antunes, no Coberto Grande, na região do Comércio, “varios brinquedos para crianças
como sejão apparelhos de cosinha todo de folha, espingardinhas, espadas, tambores,
caixinhas com soldados de chumbo, &c.”.204 E em 1845, em loja na Rua Direita do
Comércio, “grande sortimento de brinquedos para meninos, [...] caixas com soldados de
chumbo, e tudo o mais para divertimento dos mesmos meninos”.205 Não eram muitas
ofertas. Em anúncios esparsos, ao longo dos anos, deixavam vislumbrar a infancia. E os
circos, que assumiam as crianças como seu público-alvo. Como em 1848, o anúncio do
Circo Americano:

O circo está colocado no Cabeça nas casas queimadas do Sr. Pedroso,


aonde primeiro trabalhou outra companhia.

O grande pavilhão contem 2600 varas de algodão, o qual permitte bons


commodos para os espectadores.

A quarta representação terá lugar HOJE 21 do corrente às 7 horas da noite:


as portas estarão abertas às 6 da tarde.

[...]

Preços

Camarotes para 5 pessoas 10$ rs.


[ilegível] para 6 pessoas 12$
Assentos superiores do melhor lado 2$ rs.
Platea 1$rs.
Crianças menores de dez anos 500 rs. lugares inferiores, e 1$rs
superiores.206

O evento ocorria já de noite, no centro da cidade. O entorno era fortemente residencial.


Poderia não ter como público as classes mais altas, e sim os estratos médios da cidade.
Aqui a família e o lazer modernos estavam nitidamente delineados.

202
BITTENCOURT, 1992b, p.153.
203
O CORREIO MERCANTIL n.47, Quinta-Feira 28 de Fevereiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
204
O CORREIO MERCANTIL n.3, Quarta-Feira 4 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
205
O MERCANTIL n.268, Quinta-Feira 4 de Dezembro de 1845. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1845.
206
O MERCANTIL n.144, Quarta-Feira 21 de Junho de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1848.

280
Trata-se de definir o que seria esse lazer oitocentista e, nele, como se equaciona a
exposição das mulheres. Ainda mais diante da modernização dos hábitos e valores, e com
isso o papel do grande mirante da época, acondicionado para tanto, o Passeio Público, a
cristalização do valor escópico do litoral e o mar. E, por fim, as condições da gênese do
veraneio moderno na cidade, em uma relação mais orgânica com a região rural com fins
recreativos, da brevidade das patuscadas até a permanência mais prolongada, para passar
as festas.

O lazer oitocentista estava, ao menos na primeira metade do Oitocentos, fortemente


marcada pelo ócio vicário e o consumo conspícuo. Uma série de aspectos vistos com
reserva pelos estrangeiros eram partes de um sistema mais intrincado, como era a sesta e
adaptação aos trópicos. O ócio relacionava-se à escravidão, com a subseqüente
desvalorização do trabalho, e, como a exibição de fausto e outros elementos, tinha sua raiz
na volatilidade social. Mesmo a hospitalidade era uma forma da circulação da dádiva,
relacionada ao dispêndio do potlatch, tal como a exuberância das, e nas, festas. O fausto
impregnou e moldou a natureza da exposição pública das famílias, estruturando, ao menos
naquela primeira metade do século XIX, as modalidades da presença das mulheres. Toda
essa constelação de fatores é crucial para entender o que poderíamos, sob o risco de
anacronismo, entender como o “lazer” daquele período.

Em um grau distinto, a mecânica do fausto baiano, como e onde ele se manifestava,


influenciou as deambulações maiores das famílias, como o veraneio e sua permanência nos
arrabaldes. As festas não eram uma idiossincrasia dos baianos, e dos brasileiros, ou uma
irrupção de um traço mais folgazão. Tinham uma densidade de significados e funções. Uma
mesma celebração, uma mesma procissão, podia ser lugar e momento para penitência e
contrição, para o apelo desesperado por uma intervenção divina diante de calamidades
públicas, para a alegria e a extravasão, a reprodução do status quo e a inversão da ordem
social. Servia para a ostentação dos ricos; mais do que isso, se alimenta, necessita, desse
potlatch, da dádiva, do consumo conspícuo. Era arena para a disputa entre pessoas de
ofício, nacionalidade e raça diferentes, dentro e entre as Irmandades, assim como de reforço
dos laços de solidariedade. Distintos ethos se sucediam em um mesmo evento, ou
partilhavam espaços muito próximos, quando não o mesmo. Esse caráter fortemente
ambivalente das Festas, como tema propriamente sociológico e antropológico, levou a
interpretações muito distintas, embora complementares.

As Festas eram tremendamente ambivalentes. Sobretudo quando pensamos que o termo


designa eventos tão díspares como seriam a Semana Santa e o Entrudo. Cada qual tinha
um ethos geral próprio, com variações significativas a depender do momento do seu
transcurso e do local em que se desenvolve. O termo “Festa”, sacramentado pela
Antropologia e Sociologia, traz esse problema de interpretação, ao ser imediatamente
associado a uma dimensão apenas. Teorias clássicas também investem em uma leitura
unívoca sobre os eventos, em geral, ou um tipo de evento em particular. Tal qual a visão do
Carnaval como um rito de inversão, onde o cotidiano é posto de ponta cabeça.207 No Brasil é
tese desenvolvida por Roberto da Matta.208 De certa maneira restaura a ambiguidade das
festas, mostrando como elas repetiam, embora com outros sinais, a estrutura e hierarquia
social vigente, Maria Isaura Pereira de Queiroz.209 Os eventos são todas essas
interpretações simultaneamente. Mesmo o mais desvairado Carnaval apresenta, ao mesmo
tempo, a inversão da hierarquia e sua repetição.

207
A exemplo da obra clássica de Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo/ Brasília: Ed. Hucitec/ Editora Universidade de Brasília, 1987.
208
A exemplo de sua Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1981.
209
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval Brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1999.

281
A rua era um espaço essencialmente laboral, um lugar do qual as famílias de mais posses
fugiam. Os eventos, no entanto, permitiam a sua conquista. Para isso se mobilizava um
aparato temporário, colonizando-a. As ruas eram “pavimentadas” com folhas ou areia
branca, e, acima, fixavam-se bandeirolas, faziam-se arcos triunfais de canas e bambus, para
além dos palanques, palcos e arquibancadas efêmeros. Mesmo as praças eram
transformadas, com seus mastros, luminárias, coretos e palanques de madeira, etc.

Mas essas festas não se limitavam aos centros urbanos mais densos. Para aquela
sociedade tradicional, nos anos 1840, havia “as festas religiosas na cidade e nos subúrbios,
que eram muito concorridas”.210 As procissões, movendo-se entre templos, oratórios e
estruturas temporárias, as estações, eram uma parte apenas do redesenho da topografia
real, da sua sobreescrita por outra simbólica, e aludindo ao reino mais permanente do
divino. Havia romarias para outros templos, para outras festas, no Recôncavo ou arrabaldes
mais próximos, com cortejos por terra ou procissões navais, quando não meras travessias
náuticas. Como as demais procissões, serviam como ocasião para exposição das classes
médias e altas, das famílias que não iriam às ruas fora destes momentos. Quanto mais
distante ou mais árduo o traslado, maior o estímulo para uma estadia prolongada.
Movimento importante, que se relacionava com o veraneio oitocentista, e que não seguia os
rumos da modernização dos hábitos.

Esse era o conjunto que, foi se transformando ao longo do século XIX. Esses novos hábitos
eram mais próximos do lazer moderno, partindo da base do antigo ócio do escravagismo.

Os cônsules foram importantes nessa mudança. Por mais que fossem somente
comerciantes, e não exatamente a fina flor da aristocracia de seus países de origem,
traziam as “novidades”, na condição de gatekeepers da Civilização, ao promoverem esse
tipo de evento mundano, com pleno interesse em socializar-se com as classes altas locais,
com o poder político, e fazer pessoas se conhecerem.

A formação dessa esfera pública mundana induziu, por um lado, a uma transformação dos
lares, dos seus espaços de representação; à criação de lugares privados de uso coletivo
(como os salões de tais sociedades) ou a adaptação de alguns análogos (como o Teatro
São João); e a transformação dos espaços públicos propriamente ditos, mais à segunda
metade do século.

Dos espaços privados no centro da cidade, nota-se que iniciam durante a mesma década,
antes do que se costuma creditá-los, nas várias sociedades recreativas, ora focadas no
teatro, ora na dança, e das primeiras filarmônicas, atualizando as maneiras de fazer música,
sem que necessariamente fossem êxitos. Houve iniciativas prematuras que não tiveram a
devida acolhida, como fora o Passeio Público.

Ali não havia o quê fazer, especificamente. Sair ao ar livre, praticar competições e jogos
amigáveis, estar juntos para um entretempo agradável, era característico da sociedade
inglesa. Para os baianos, significava ter um repertório de atividades coletivas e recreativas,
como a que os britânicos faziam ao lado, no Campo Grande. As mulheres baianas
lentamente entraram em cena nos espaços públicos, mas a partir de características próprias
da cultura local, dentro daquele complexo festivo, que se adaptava aos ares europeus, mas
não pelos modos mais tranqüilos dos passeios botânicos ou da contemplação da paisagem.
Neste caso singular, o deleite da vista e das áreas verdes, como vimos, existia na cultura
local, porém era mais discreto e doméstico. Não havia os ritos, as usanças, coletivas e
expostas dessa natureza. Apenas as mais festivas, daí que o apelo para esse recurso para
atrair gente ao Passeio Público.

210
SILVA LIMA, 1908, p. 107.

282
Em verdade, havia uma forma de entretenimento, mesmo familiar, em áreas verdes. Mas
rumo à direção oposta, aos arrabaldes campestres, nas patuscadas. Era mais “natural”,
mesclando com a caça a passarinhos, a pesca ocasional, o banho em fontes e lagos, a
coleta de frutas, o convescote, com comida, bebida e cantoria, no lugar e a caminho. Era
típico das classes médias e, se Querino estava certo em assinalar que um dia fora costume
das classes mais altas, perdera a respeitabilidade.

Nas residências, primeiro da elite portuguesa e dos estrangeiros, depois dos estratos sociais
imediatamente adjacentes, reconfigurou-se o espaço e as relações sociais. A esfera pública
entrou na casa, nos espaços intermediários, modelando-os. E a mulher da família entrou ali,
ainda dentro de sua casa, mas agora com outras pessoas, saindo dos bastidores onde
comandava, da cozinha e dos quintais. Podemos cogitar que não foi apenas uma figura
lateral nesse novo ambiente.

Nos salões as damas ganhavam um protagonismo inédito. Eugen Rosenstock-Huessy


notara isso para a França oitocentista: que seus salões eram o verdadeiro poder, a parte
não-escrita da Constituição francesa.211 Qualquer um que almejasse algum grau de
notoriedade, seja nas Artes, seja na Política, deveria fazê-lo através dos salões. E estes
eram comandados essencialmente pelas grandes senhoras. Sem que a transposição seja
literal, vale como alerta para esse novo arranjo. Suzannet considerava que a mulher tinha
mais espaço em Salvador, ainda mais que no Rio de Janeiro, tomando parte nas conversas,
presente nos teatros, etc.

A sociedade da Bahia não se assemelha em nada à do Rio de Janeiro. Lá,


não se vêem a arrogância e a dureza das grandes damas que compõe, no
Rio, o que se convenciona chamar “a Corte”. As relações sociais são mais
agradáveis: há mais franqueza e cordialidade. As mulheres gozam de
grande liberdade; não são contrafeitas nem tímidas, como em geral aquela
espécie de escravatura doméstica torna as brasileiras. Reúnem-se nos
teatros, tomam parte nas conversas, e os maridos, apesar de muito
ciumentos, permitem que a gente se aproxime delas. [...] É preciso
reconhecer os esforços que elas fazem para animar os salões do Brasil e
para vencer a inferioridade social a que o seu sexo está reduzido nas outras
províncias. Graças à sua influência benéfica, a Bahia conserva fielmente os
hábitos europeus. (SUZANNET, 1957, p.185).212

Wetherell apontava que em 1856 as mulheres estrangeiras eram poucas, razão de serem
muito bem tratadas: “na Inglaterra não são nunca objeto de tanta atenção, mas, aqui, podem
tornar-se pequenas rainhas”, embora fizessem por merecer essa deferência.213 Se os salões
dos estrangeiros, na Vitória e vizinhanças, tinham um papel pedagógico nas classes altas
baianas, não seria arriscado conjeturar que esse papel das damas, desproporcional mesmo
ao seu país de origem por uma contingência local, tenha também exercido sua influência.

Aquela dinâmica mundana do centro da cidade, nos salões dos sobrados, nas sedes de
fazenda, repetia-se também naquela cidade efêmera que eram os arrabaldes durante as
festas de verão. Em Pernambuco, “hoje os nossos campos de recreio quase em nada se
diferenciam da cidade. Agora até os bailes emigram para os subúrbios e quase que com as

211
ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. Out of Revolution: autobiography of Western man. New York: William Morrow and
Company, 1938.
212
O Conde de Suzannet acabou por ter uma possibilidade de comparação interessante. Em Fortaleza, por exemplo, diz as
mulheres “são menos selvagens do que nas outras cidades do Brasil, tomavam parte ativa nestas conversas ao ar livre, que
alegravam um pouco a triste fisionomia da cidade” (SUZANNET, 1957, p.211). Em São Luís do Maranhão havia “bailes e
soirées que animam a cidade, onde as famílias portuguesas e os negociantes ingleses vivem em relações íntimas”, fazendo
o “viajante esquecer que está no Brasil” (SUZANNET, 1957, p.214.). E em Belém do Pará, que havia cordialidade e alegria, e
em “cada semana é um dos negociantes que dá um baile” (SUZANNET, 1957, p.221).
213
WETHERELL, s/d, p.117.

283
mesmas formalidades e etiquetas”.214 Em tais períodos de festas, a recreação tradicional se
manteve e se atualizou em alguma medida, porém veremos a presença de serviços ligados
ao lazer moderno. As crianças entraram na vida pública, no centro da cidade, mas também
estarão nos arrabaldes litorâneos. Os jogos, as diversões, estarão lá. Como os jovens, a
nova geração, fundamental na propagação das novas modas vindas da Europa.

Aqui entra algo crucial, relacionado à pretensa disparidade radical entre o lazer moderno
dos divertimentos das sociedades pré-industriais, como seria a da Bahia oitocentista. Se as
férias são uma inovação relacionada à regulamentação do trabalho, tempo livre conquistado
para as massas para seu descanso, distração, auto-educação, e quaisquer outros fins que
tenha em mente, como lidar com o veraneio? Haroldo Leitão Camargo, por exemplo, recaía
naquela distinção e ruptura historiográfica, ao considerar que o tempo de recreação do
aristocrata era indivisível, ao contrário daquele do burguês, pautado pelas férias.215 Ora,
aqui a aristocracia da terra estava ancorada no cultivo, e a seus ciclos. Por outro lado, a
sociedade não tinha um tempo de trabalho rigoroso, nem estava calcada na exploração
indefinida, a tal ponto que havia não apenas aquele calendário intenso de festas, como tinha
um período em que se podia abandonar a cidade e ir para os arrabaldes ou outros lugares.
O veraneio antecede a existência das férias. E era conhecido como passar as festas não por
acaso.

214
GAMA, 1996, p.442. Texto de 24 de dezembro de 1842, chamado os Os passatempos do Natal.
215
CAMARGO, Haroldo Leitão. Uma Pré-História do Turismo: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850). São
Paulo: Ed. Aleph, 2007, p.176.

284
6
As Famílias Baianas Vão ao Campo

O veraneio se consolidou no final do século XIX e no começo do seguinte em localidades


litorâneas exemplares, como Bonfim e Ribeira, Barra e Rio Vermelho e, depois, Amaralina,
Pituba e Itapuã, assim como Itaparica e lugares do Recôncavo, a exemplo de São Tomé de
Paripe.Isso se desenvolveu a partir de uma prática anterior de deslocamento estival. A
vilegiatura marítima nasceu da vilegiatura, da prática de passar uma temporada do ano em
uma segunda residência. Por isso o veraneio se nos configura um enigma: como e porque a
sociedade deu-se tal ritmo?

Ao que tudo indica, a vilegiatura emergiu do deslocamento estival relacionado ao ciclo


geobotânico, dentro das modalidades de cultivo em solo local. Essa pulsação vinculava-se
com o calendário religioso (e muito de suas datas eram expressões daquela, com solstícios,
equinócios e primícias), caracterizada pela ebulição das festas. Por sua vez, as festas
desempenhavam uma série de funções simultaneamente, envolvendo todas as classes
sociais. Daí vinha a expressão que veremos ao longo do século XIX denominarem esse
afastamento do cotidiano de “passar as festas”.

Na Baía de Todos os Santos, onde o poder gravitava ao redor do cultivo da cana-de-açúcar,


esse ritmo era ditado pelas chuvas, pela diferença quase que apenas pluviométrica entre o
inverno e o verão na região. Porém não basta isso para explicar o fenômeno histórico da
capital, a compreensão do papel das festas e do veraneio, e sua aproximação ao mar.
Salvador não era propriamente uma cidade “esvaziada” no verão, e nem esse ritmo ditava a
totalidade do que lhe acontecia.

Na capital, alguns de tais festejos eram até ligados ao Centro da cidade, ao seu porto, como
o de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Santa Bárbara, e parte do Bom Jesus dos
Navegantes, retendo parte da população na cidade até o ciclo Natalino, depois do qual
partiam para os arrabaldes. Por outro lado, havia um caso de festas de origem agrária em
um pequeno ciclo próprio, o junino, que se desenvolvia à perfeição nos arrabaldes, tal seu
formato, sem o apelo a edifícios e monumentos religiosos ou cívicos centrais, com
procissões, e equivalentes.

A movimentação estival era regra para as zonas mais ermas, para aquelas próximas de
pequenos núcleos urbanos e para as capitais. No geral o deslocamento, e este era o das
famílias, em bloco, variava de acordo com a freqüência e estadia das famílias, e sobretudo
das distâncias.

No mundo rural, a população dispersa se reunia nas festas das cidades; na capital, a
população reunida se dispersaria pelos arrabaldes, concentrando-se em um ou outro festejo
de maior prestígio. Tal movimentação implicava, na zona rural, na ativação dos núcleos
urbanos, na criação de uma urbanidade ausente durante o resto do ano. Na cidade, na
urbanização do seu entorno, trasladando os hábitos crescentemente cosmopolitas, a rede
de comércio e serviços que lhes alimentava e transformando fisicamente o território, com
sua expansão demográfica e conexão com o cuore da cidade, induzindo à instalação de
mais e melhores meios de transporte.

De fato veremos o análogo a villas nas transformações que as fazendas, em especial os


engenhos, passaram. Porém a vilegiatura marítima de Salvador se instalou, em um primeiro

285
momento, em localidades mais próximas das populações urbanas. E nestas sempre estarão
presentes as festas.

E como estes locais eram escolhidos? Ao redor da capital umas poucas hierofanias foram
“bem-sucedidas”, realizaram milagres, exigindo como contrapartida o cumprimento de
promessas, de romarias e cortejos, presentes e devoções formalizadas. Por outro lado, tais
festas de arrabalde também foram incrementadas e propelidas por aquela população
flutuante ociosa em sua estadia estival, ainda que para lá mobilizada pela predileção pelas
roças ou para os banhos de mar. Em alguns casos, apoderando-se de festejos rústicos
anteriores, em especial no Rio Vermelho. O famoso ciclo de verão baiano se consolidou
pelo próprio veraneio.

E ao longo do século XIX soma-se a mudança das centralidades, com o crescente peso da
capital como centro da vida provincial, e ponto de partida dos deslocamentos.

Este conjunto de fenômenos nos permite ver por outro ângulo essa “fuga” da cidade em
dada época do ano.

6.1. Campo e Cidade


Havia uma movimentação polarizada de início pelas fazendas e núcleos urbanos, em muitos
casos com uma hierarquia espacial mais complexa. Wanderley Pinho, a partir de
documentação primária, apontava que ter mais de uma casa era regra, e não exceção, já no
início do século XVII.1 Tomemos como ponto de partida a reunião nos núcleos urbanos, na
confluência da população dispersa, nos perguntando primeiro sobre seu ritmo, em que
freqüência tais encontros ocorriam.

Variava o ritmo e o porte. Um ritmo mais intenso, e de alcance restrito, era marcado pela
missa dos domingos. Existiam vilas praticamente vazias durante a semana, ocupando-as
somente nos domingos e dias santos, quando não estavam em suas roças, lavrando.

Para o alcance maior, havia uma ou duas festas principais por ano, em geral a Semana
Santa e os festejos natalinas, quando não um santo padroeiro importante na região, com
“variado programa das festividades”2, com fogos de artifício e torneios, que sempre se
mesclavam com as solenidades sacras. Diz Rugendas, com afiado senso sociológico e
pendor literário: “a importância destas [festas religiosas] aumenta ainda pelo fato de se
tornarem uma oportunidade para a reunião de todos os colonos da região; eles surgem a fim
de terminar seus negócios ou iniciar outros”.3 A mesma lógica geral se replicava no
Recôncavo. Adriano Bittencourt Andrade, em pesquisa sobre sua rede de assentamentos,
assinala alguns aspectos dessa dinâmica. Primeiro, que não eram apenas os senhores de
engenho, mas as grandes fortunas rurais: pecuaristas e grandes lavradores, todos tinham
moradias nas sedes das vilas.4

Os mais ricos fazendeiros financiavam as festas nos núcleos urbanos, momento em que
comunidades virtuais, em potência, tornavam-se efetivas, em ato.5 Eram fundamentais para
o mundo rural, reunindo todas as classes. Naquelas mais altas, servia para acordos da
política, desde os rumos do Império até os negócios mais paroquiais e os necessários

1
PINHO, 1982, p.57.
2
SAINT-HILAIRE, 1975, p.105.
3
RUGENDAS, s/d, p.193.
4
ANDRADE, 2013, p.201.
5
Adriano Bittencourt Andrade argumentava que mesmo nas áreas mais povoadas do Recôncavo a população era rural
(ANDRADE, 2013, p.183). O termo “núcleo urbano”, nesse sentido, não deve ser entendido tal como hoje em dia.

286
acertos de casamentos. Para a exibição do fausto e da glória. Para a penitência real e
sincera, como para a efusão e extravazão.

As casas da cidade dos mais ricos fazendeiros ficavam fechadas, abrindo quando as
famílias chegavam. Em torno das principais igrejas, criavam essa estranha situação de um
centro geométrico e político que operava plenamente apenas durante as festas, inerte no
restante do ano: “desde o começo da semana as melhores casas da praça e da rua Direita
da Matriz, ordinariamente fechadas, estavam abertas, lavadas e arrumadas”.6 O centro real
só se realizava nas festas. Xavier Marques, em um romance ambientado em uma fictícia
cidade no Recôncavo baiano, Nossa Senhora do Amparo do Itaípe, escrita à imagem e
semelhança de Santo Amaro da Purificação, retrata esse ritmo estival. A cidade ficcional nas
festas ganhava uma nova vida. O comércio se nutria do influxo de dinheiro circulante. Os
locais de encontro (boticas, vendas, quitandas) enchiam-se de gente. Banquetes,
cavalgadas, a música nos pianos das casas e filarmônicas. Os senhores de engenho de
poder e prestígio recebiam ininterruptamente visitas em seus sobrados urbanos:
“autoridades, juízes, vereadores, funcionários, quase todos prepostos de sua confiança e
dos demais membros da classe, que com ele partilhavam a direção política da comarca”7,
que iam prestar-lhe homenagem. Havia uma intensa atividade do receptivo, que mesclava
os vários níveis da sociedade, e os papéis da família. O senhor de engenho, como líder
político, receberá gente de todos os naipes. Precisava recebê-los. Por sua vez, a rotina
intensa da recepção estava ancorada no comensalismo. Marques retratava a tese
(posterior) de Katia Mattoso sobre a real “opulência” da sociedade. A elite dos senhores de
engenho não era definida apenas pela riqueza. Ilustrando uma constelação de
comportamentos diferentes, de tipos humanos distintos, mostrava que o poder se ancorava
em um prestígio que precisava ser empregado continuamente, estabelecendo e renovando
os laços com os vários elos da cadeia social. A reclusão retirava o poder possível de um
senhor rico. Para haver a vassalagem se fazia necessária não apenas a condição, mas a
vontade de exercer a suserania.

Se o verão era campestre, também era sinônimo de trabalho. E aqui mostra a contraparte
do sistema, que o tensionava quanto ao centro de gravidade. A temporada nas fazendas
não implicava em pleno isolamento e na pura cadência do trabalho: as fortunas faziam suas
festas próprias, atraindo gente em número proporcional à sua prosperidade e prestígio.
Montava-se uma constelação mais dispersa, onde os centros eram as festas naquelas
casas-grandes. Nas mais distantes de igrejas em pequenos núcleos urbanos, suas capelas
funcionavam para as missas e como centro das festas, como as dedicadas aos santos
patronos das famílias.

Uma das principais festas dos engenhos, sinal e condição da fartura dos mesmos, era a da
botada, no dia de início da moagem anual da safra de cana, com a benção da aparelhagem
e o usufruto do primeiro sumo extraído. No Recôncavo baiano, a etapa da moagem coincidia
com o verão, principiando em setembro (algumas vezes em agosto) e estendendo-se no
máximo até abril.8 Dizia o Dr. Ferrari em seu poema Engenheida que para essa festa
convidava o Senhor a quem pudesse: “o bom Senhor d´Engenho, he generoso/ cem de
convites cartas, a cem partes,/ invia a amigos delle”.9 Festa que tinha todos os sinais da
fartura, da opulência: “vitellas, carneiros e capados,/ Perús, gallinhas com capões e patos”10.
Falava-se de licores, vinho, champanhe, ponches e sangrias, e “até caouim, garapas e
aloá”, bebidas mais populares. A mesma variedade se via na alimentação, que chegava a
ter “Muito sarapatel e carurú,/ Com óleo de dendê, hum vatapá,” assim como variada carne

6
MARQUES, 1982, p.10.
7
MARQUES, 1982, p.17.
8
Existe uma excelente descrição de uma botada na obra de Melo Morais Filho (Festas e Tradições Populares do Brasil. Rio de
Janeiro: Ediouro, s/d, p.139), nos engenhos do Rio de Janeiro, porém em outra época do ano, em maio.
9
FERRARI, 1853, p.56.
10
FERRARI, 1853, p.57

287
de caça: tatus, quatis, catitus, cágados.11 Os homens, talvez os mais jovens, iam para
exibições eqüestres, orgulhosos de seus cavalos que afinal prestavam-se exatamente para
estas ocasiões:

Alguns apaixonados por cavallos,


Vão logo ter, de chibatinha e esporas,
À recheiada de corseis briosos,
Melhor cavalharice. [...]
(FERRARI, 1853, p.77)

Mensuravam os corcéis no tamanho, feição, idade, cor, passo, porte, e os examinavam


cavalgando. Exercitavam ainda a caça, como veremos logo a seguir. Outros passeavam
pelos arredores, “vagando incertos e ligeiros, outros/ Vão discorrendo alegres toda parte”.12
Um desses lugares eram os jardins da propriedade, onde “logo as Damas todas/ talvez, por
força magica attrahidas,/ junto das flores, n´ellas se embellezam”.13 Não faltavam os fogos
de artifício, na alvorada, como no encerramento”.14

O centro daquele sistema, ou pelo menos das unidades territoriais definidas pelas
propriedades, era o Senhor de Engenho, e a mesma trama de responsabilidades que vimos
estabelecer-se nas festas urbanas repetia-se nessa temporada nos engenhos.

Essa alegria que o Senhor d´Engenho,


De si, a vasto circulo diffunde;
Os artezãos que delle obeem trabalhos,
Os que vender-lhe, os que a comprar aspiram
Objectos de commercio; os que patrono
Ou bom compadre, dando-lhe afilhados,
Ou por Juiz de festas o desejam;
E cem pessoas outras que favores
Teem a pedir-lhe [...]
(FERRARI, 1853, p.47).

A Engenheida, ainda que apresente com riqueza o que era uma botada, aparentemente já o
fazia sob outra égide, de uma diversão campestre para os citadinos, mais além de ser um
dos grandes eventos do ecossistema sucareiro.

Mas tal movimentação não se restringia a esses dois pólos. Em primeiro lugar, as famílias
prósperas tinham várias propriedades, mais de uma fazenda e engenho, sem contar os
sobrados urbanos.

Anna Bittencourt descreve algo que se encaixa nesse ritmo: com o pai adquirindo um novo
sítio, chamado Api, a uma légua da anterior fazenda Coqueiro Novo, à qual ela e a mãe
devotavam especial afeto.15 Era algo crucial a predileção pessoal, o carinho por uma casa
em especial, ou o desejo de viver em algum rincão por mais tempo. Ou no sobrado, na
agitação da cidade, ou no sossego e labor da vida agrária. E isso variava de família a
família.

As temporadas tampouco eram monolíticas: as festas familiares poderiam ocorrer ao longo


do ano, como casamentos e enterros, aniversários e a festa do santo patrono. Assim como
as festas de santo de maior ou menor prestígio na região e na província, e sobretudo das
“dívidas” contraídas com os mesmos, a serem pagas por ex-votos a qualquer momento do
ano, ou nas festas principais.
11
FERRARI, 1853, p.123.
12
FERRARI, 1853, p.78.
13
FERRARI, 1853, p.85.
14
FERRARI, 1853, p.102.
15
BITTENCOURT, 1992b, p.174.

288
O sistema ademais tinha outras escalas, outros núcleos urbanos em níveis superiores. No
caso do Recôncavo, para além de Santo Amaro, São Francisco do Conde, Cachoeira,
estava a capital da Província, Salvador. Os filhos daquela nobreza vinculavam-se ainda a
outros lugares: “os moços ricos que iam bacharelar-se a S. Paulo e Recife, educar-se na
Bahia e no Rio”16 retornando ao lazer nas férias e nas festas principais. A corte no Rio de
Janeiro absorvia figuras baianas importantes, como Miguel Calmon du Pin e Almeida, o
Marquês de Abrantes (1796-1865) e João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe (1815-
1889). Circulavam na capital esses potentados nordestinos que eram chamados de leões do
norte.17 Algumas destas figuras mesmo chegaram a andar pela Europa, a Condessa de
Barral, Luísa Margarida de Barros Portugal (1816-1891), em Paris.

Dois bons exemplo desse conjunto de propriedades estão em Pernambuco. Um deles é


João Joaquim da Cunha Rego Barros, terceiro Barão de Goiana (1797-1874), que com os
recursos advindos de sua industriosidade comprara não apenas engenhos e outras
fazendas, como prédios em Goiana e um sobrado apalaçado no Recife.18 Esses lugares se
tornavam centros de animação a depender do temperamento do chefe de família. Rego
Barros seria gregário, em todas as suas residências, sendo que na casa-grande, até 1858,
recebia vizinhos e amigos nos domingos e dias santos, por ocasião das missas, ficando
para o almoço e jantar, e jogando cartas. Outro é Sebastião Antônio de Acióli Lins, o Barão
de Goicana (1829-91), que adquiriu várias propriedades agrícolas, um sobrado em Rio
Formoso, uma casa de veraneio na praia dos Carneiros (barra de Rio Formoso) e um
sobrado no Recife.19 Ao contrário de Rego Barros, era apegado ao seu engenho, e
transferiu-se para a capital somente por pressão da esposa.20 Além da diferença de
temperamento entre os dois patriarcas, e de suas decisões locacionais, note-se a vontade
da cônjuge em ir a um lugar mais cosmopolita.

Ao mesmo tempo em que se amalgamavam completamente à cidade, sem aparentar sua


origem rural, indicando que não eram visitantes, nem seu hábito uma excentricidade
particular.

Os ricos proprietários dessas plantações têm herdades muito bonitas (com


capelas adjacentes) onde geralmente residem, exceto durante os meses de
chuva; quando eles partem com suas famílias às suas casas na cidade, e
por essa relação seus hábitos e costumes absorveram tanto os dos
citadinos que acabaram por possuir a mesma feição. (LINDLEY, 1805,
p.266 – tradução nossa).21

Se aquela aristocracia rural, vindo às cidades e distintos centros culturais, se embebia de


novos valores e hábitos, também sua exposição, ao menos na Bahia, como conjectura Kátia
Mattoso, reforçava sua imagem e seu papel de condição modelar, de prestígio e poder a ser
alcançado.22

A partir desse complexo de deslocamentos, encabeçados pelas famílias de posses mas


seguidos pelos demais, animados pela “alegria” difundida em “vasto círculo” pelo poderoso
terraetenente, mas também insuflados pela fé sincera no santo, que se imiscui a dinâmica
do veraneio.

16
MARQUES, 1982, p.15.
17
PINHO, 1942, p.104.
18
MELLO, 1997, p.406.
19
MELLO, 1997, p.408.
20
MELLO, 1997, p.415.
21
The rich owner of these plantations have very handsome seats (with chapels adjoining), where they generally reside,
except during the winter rains; when they repair with their families to their houses in the city, and by this intercourse their
manners and habits assimilate so much with those of the citizens as to form the same character. (LINDLEY, 1805,
p.266).
22
MATTOSO, 1997, p.156.

289
6.2. Saindo de Salvador
Para compreender a movimentação sazonal para os arredores da cidade é preciso
compreender o papel das casas de campo, ou o que se entendia então sob esse nome. Tais
casas de campo emergiram das “roças”, mais abrangentes e ambivalentes, que tiveram um
papel fundamental no sustento da cidade, na transformação da natureza local e
conseqüente metamorfose da paisagem, mas também como locus do deleite luso-brasileiro
e, em certos aspectos, como precursores do veraneio moderno, a base material para que
ele ocorresse.

Haroldo Leitão Camargo, investigando o que chama de “pré-história” do turismo no Brasil,


combate a idéia da continuidade de processos e instituições coloniais ou aristocráticas para
aquelas do lazer burguês. Distinguia, por exemplo, as villas propriamente ditas, as segundas
residências (alpinas, campestres, marítimas) do que lhe pareciam ser mais unidades
produtivas. Não acreditava haver igualdade, e mesmo continuidade, entre as casas de
campo e as casas no campo.23 A precaução é bem-vinda. Porém, ao traçar tese tão
panorâmica, e ao restringir muito de suas informações ao Rio de Janeiro, acabou
descuidando de aspectos que neste caso são fundamentais.

Em primeiro lugar, das muitas ambivalências das áreas verdes produtivas e de recreio na
tradição luso-brasileira. Depois, da condição dos terratenentes, e no Recôncavo dos
Senhores de Engenho, como substituto da aristocracia (e da legítima corte lusitana), como
“próceres da terra” (no dizer de Xavier Marques), condição capaz de ser alcançada por uma
família ambiciosa. E que suas propriedades e tipo de vida eram alvo de emulação tanto de
homens do sertão como daqueles da capital, preenchendo cada vez mais aquelas herdades
com a função de uma villa. Em terceiro lugar, do domínio do Sobrado urbano sobre a Casa-
Grande, transformando esta em lugar de deleite. Ainda do uso explícito das roças e suas
casas, conquanto produtivas fossem, como segundas residências no verão. E do papel das
festas como combustível para esse uso, em áreas próximas dos centros urbanos.

Vejamos estas diferenças ponto a ponto.

Em outro momento lidamos com áreas verdes em propriedades que tinham também uma
função de deleite. O crucial para este raciocínio é a dinâmica do deslocamento estival e, ao
longo do tempo, sua relação com a urbanização.

Rocha Pita descreve o termo da cidade com “com maravilhosas casas de campo, e quintas
de rendimento, e recreio”, distinguindo três tipos de propriedade.24 Porém não há rigor
terminológico ao longo das décadas (e séculos) e ao longo do país que nos auxilie. Vilhena,
décadas depois, descreveu a paisagem da Enseada dos Tainheiros a partir da atual Ribeira,
como deleitável, entre outras coisas, “pelas muitas Fazendas e Cazas de Recreyo que o
bordão”.25 Cedo vemos outros termos, designando um tipo de propriedade que, mesmo
produtiva, tem um fim recreativo, de descanso, adjacente. Em 1832, falava D´Orbigny dos
vales “com suas hortas ou casas de recreio, uma vegetação sempre verde”.26 Talvez se
confundindo entre as palavras portuguesas aprendidas e o cenário visto, entendeu por
"hortas” tais lugares de desfrute ao redor da cidade.

O termo português mais tradicional, quinta, também comparecia. Rebello, por exemplo, fala
da “Quinta, hoje, do Coronel Joaquim Bento Pires junto a este campo, no sitio Bom Gosto”
do Canela.27 E, sobre a Barra, de modo revelador, que “ha grandes quintas, ou roças, e

23
CAMARGO, 2007.
24
ROCHA PITA, 2013, p.72.
25
VILHENA, 1922a, p.229.
26
[...] avec ses hortas ou maisons de plaisance, une végétation toujours verte [...] (D´ORBIGNY, 1854, p.147).
27
REBELLO, 1829, p.169.

290
optimas cazas de morar”.28 As quintas são também roças, termo tremendamente
polissêmico.

Porém destaquemos as casas de campo. Em 1811, em descrição do Passeio Público, fala-


se de um vizinho seu, da “casa de campo de Negociante Manoel Joaquim Alvares Ribeiro”.29
O termo designa também roças mais simples, ou ao menos a casa na roça, como neste
anúncio de 1845: “vende-se uma roça com bela casa de campo, toda assoalhada, com
senzalas, tendo pomar, mangueiras, jaqueiras, coqueiros, cajueiros, e pasto”.30

Anúncios já no começo do século assinalavam casas de campo: vendia-se em 1811 uma


“casa de campo, de pedra e cal, nova, e moderna com beiramar da parte do Papagaio, em
Itapagipe, sitas no lugar mais agradavel denominado Porto dos Tainheiros”, com “bastantes
larangeiras, e alguns coqueiros”31, e em 1818 “huma roça na rua direita de N.S. dos Mares,
sahindo aos mangues que vai para Itapagipe, porteira azul, hombreiras vermelhas, com
huma boa casa de campo”.32 Poderíamos pensar, que o termo designava uma mera casa de
vivenda com roças. Mas não era o caso. No mesmo período se anunciava a venda de
“huma boa casa de campo de pedra e cal com seu quintal grande”33 e em 1817, “huma casa
de campo no Poço de Itapagipe, de pedra e cal, com cisterna, e grande quintal murado”34,
ou seja, sem extensão de terreno para caracterizar como roça, ainda que pequena, mas sim
com uma área menor, um quintal.

Uma casa de campo de maior porte aparecia em anúncio de 1831:

Vende-se huma Casa de Campo com seu eirado na Estrada que vai para
Itapagipe chamado Papagaio, com cinco quartos, e huma Cavalharice,
independentes da dita; com hum grande poço e casas para banhos, e hum
grande quintal com vários pés de larangeiras de embigo, parreiras, e outros
arvoredos, toda murada de pedra e cal, e huma frente de treze braças que
faz frente para a Massaranduba [...]35

Ou, em 1838, “uma grande casa de campo, no sitio do Papagaio em Itapagipe, com todos
os pertences de oratorio de missa.36

Apesar da grande maioria dos anúncios apontar para as tais “casas de campo” em Itapagipe
– talvez assinalando sua função de “passar as festas”, muito afamadas –, havia em outros
lugares. Como expressamente nos Barris, em 1851: “aluga-se uma boa casa de campo [...]
com commodo separado para hospedes ou caixeiros, e sua rocinha anexa com arvoredo de
espinhos e agua de beber dentro”.37

Uma das complicações da expressão “casa de campo” é que ela designa um ambiente
campestre, e não a condição de uma zona rural, que dirá de primeira ou segunda

28
REBELLO, 1829, p.171.
29
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.45, Terça-Feira 15 de Outubro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811.
30
O MERCANTIL n.268, Quinta-Feira 4 de Dezembro de 1845. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1845.
31
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.44. Sexta-Feira 11 de Outubro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811;
32
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.85, Terça-Feira 27 de Outubro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
33
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.10, Sexta-Feira 14 de Junho de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811.
34
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.87, Terça-Feira 4 de Novembro de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.
35
GAZETA DA BAHIA n.87, Quarta-Feira 16 de Novembro de 1831. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, por cima dos
Arcos de S. Barbara, 1831.
36
O CORREIO MERCANTIL n.585, Segunda-Feira 22 de Outubro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
37
O MERCANTIL n.65, Quarta-Feira 26 de Março de 1851. Salvador: Typ. de E. Jorge Estrella, 1851.

291
residência. Ver Huell considerava que o Campo Grande – antes de sua urbanização pelos
ingleses, bem entendido, e nos primórdios de sua colonização pelos estrangeiros – estava
“cercada de casas de campo”.38

O anúncio seguinte é interessante não apenas pelo lugar da dita casa de campo, no
Desterro, como pelo anunciante espraiar-se no elogio de sua propriedade:

- O abaixo assignado arrenda pelo modico preço de 400$ rs. a sua roça sita
por detraz do muro do convento do Desterro, com boa casa de campo,
reedificada e pintada de novo, com sete quartos, tres salas, boa cosinha
com forno de assados, bella fonte de excellente agua de beber, com quatro
bicas e dous quartos para banho, bom brejo, muitas differentes fructas
como sejão mangas, jacas, laranjas, maracujás, romã, araçá, muito bellos
cajús, bastantes bananeiras de todas as qualidades, pitangueiras, muito
capim para animaes, flores, e finalmente outras muitas cousas que só
vendo se, cujo lugar he assas pitoresco e sadio; tendo a notar que estamos
no bello tempo da primavera, e que todas as arvores estão carregadas de
fructos [...]39

A primavera tornava ainda mais agradável o lugar “assas pitoresco e sadio”.

Apesar do foco na Casa-Grande e no Sobrado, Gilberto Freyre percebe essa transição no


que os pernambucanos chamavam de casa de sítio, que ao mesmo tempo trazia para a
cidade elementos das fazendas, tanto na casa quanto nas áreas verdes, um híbrido da
casa-grande e do sobrado, e reconheceu que eram estas casas de sítio, as roças com suas
casas de vivenda como apareciam quase sempre nos anúncios dos periódicos baianos, que
formavam a tessitura do entorno das cidades: “floresceram menos como residência do ano
inteiro do que como casas de verão, onde os moradores mais ricos, sem se afastarem
muitos dos seus sobrados da cidade, iam passar a festa”.40 Casas de campo, quintas, casas
de sítio (como dizem os pernambucanos), chácaras (termo mais afim aos cariocas), todas
essas propriedades fazem parte de uma transição entre a cidade e o campo. Tanto em uma
continuidade física, da cidade para o interior, como em um processo histórico, da
urbanização do solo.

Nestor Goulart Reis Filho também reconhecia algo do fenômeno, mas o situava, de um moto
geral, como “um outro tipo característico de habitação do período colonial era a chácara”,
que reunia em si as vantagens da proximidade da cidade, com a possibilidade plena da
auto-suficiência para o abastecimento de víveres.41 Porém o que vimos é que não era um
tipo edilício, mas uma função, um papel na sociedade, em toda sua ambivalência. Não
necessariamente seriam quintas mais sólidas, e sóbrias: um professor podia ter uma roça
centrada em uma casa simples com cobertura de palha como segunda residência. E
pessoas mais simples poderia ter a sua roça própria vizinha, na condição de primeira
residência. Assim, tais casas de campo poderiam ser sedes de fazenda, térreas.42 Outras,
quintas. Em sentido contrário, casas com teto de palha e seu alpendre. No caso de
Salvador, nunca é demais ressaltar, a face rural da cidade estava mais próxima, por
penetrar fundo pelos seus vales.

Tal papel, ambivalente em vários níveis, na economia geral da sociedade estava, ademais,
em transformação. Van Holthe observa uma transformação dos arrabaldes da cidade, da
construção de casas térreas maiores e mais aparelhadas nas roças do Cabula, Brotas, entre

38
HUELL, 2009, p.156.
39
O CORREIO MERCANTIL n.250, Quarta-Feira 18 de Novembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
40
FREYRE, 2004, p.308.
41
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978, p.28.
42
Como aquela no Morro do Gavazza, que depois se tornaria um palacete com dois pavimentos, de Antônio Pedroso de
Albuquerque (1798-1878), e mais tarde sediaria o Hospital Espanhol.

292
outras.43 Como vimos no caso da Vitória, os sobrados nos anúncios de jornal indicam uma
mudança no solo, um grau de urbanização crescente, ainda que sutilmente.

Figura 152 – Vue prise à Bom-fim (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco, Bahia
e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Esta propriedade não estava tão distante, nem era tão
posterior, da casa mais simples do Prof. Ferreira, visitada por Ver Huell. Fonte: Fundação Biblioteca
Nacional.

Mas a urbanização também se dava de maneira descontínua, e um dos fatores essenciais


era aquela movimentação de verão para “passar as festas”.

6.2.1. De Patuscadas e Travessias Náuticas


Havia interesse em circular pelos arredores da cidade e pela baía. Em certos casos, por
uma estadia rápida, às vezes de um turno apenas, sem implicar em estrutura de recepção
ou condição de antropização.

A excursão podia ser a um sítio, ou mesmo a uma área campestre mais rústica, pela região
verdejante formada pelas roças. Como a um lugar já urbanizado, um bairro em
consolidação. Outro aspecto importante é o quê se faz ali. De certa maneira, é uma versão
local dos eventos campestres de inspiração européia, dos picnics – embora, na própria
Inglaterra, apresentem uma variedade surpreendente.44

Entrar nos matos para caçar era algo habitual.

Entre os proprietários rurais a educação que se imaginava para os herdeiros era


basicamente ler, escrever e as quatro operações da matemática. Aquilo a que Pedro Ribeiro
se dedicava era parte fundamental da formação de um terratenente, que tinha ademais uma
função “bélica”, na medida em que servia de proteção contra ameaças diversas, de animais

43
HOLTHE, 2002.
44
GURNEY, Jackie. The National Trust Book of Picnics. North Pomfret, Vermont: David & Charles Inc., 1982.

293
a outros seres humanos. Wetherell, em 1849, descreveu a caça de patos em Matoim, não
muito distante de Salvdor.45 Anna Bittencourt, falando de seu avô, Pedro Ribeiro, quando
menino no último quartel do século XVIII, escreveu que “entregou-se à pesca e à caça,
acompanhado por um agregado de confiança de seu tio e alguns moleques, o que também
era usual”.46 No interior, parecia ser hábito disseminado, entre os homens, de todas as
idades, de todas as classes.

Ocorria nos arredores imediatos de uma cidade que tinha seus bosques no fundo dos vales,
como Salvador, tal qual notara Lindley, que encontraram, nas profundas da floresta, um
velho índio com um mosquete, que o assustara: “estava esperando tatus [...] que raramente
aparecem antes do anoitecer”47, uma refeição muito estimada. Wetherell vira outra
modalidade de caça, que deixava seus sinais pelos arredores de Salvador, em 1855: os
“amadores de caça” punham pássaros falsos, “efígies” “nas árvores mais altas dos
arredores da cidade”48, que atraíam os pássaros, expostos aos tiros. Ver Huell também vira
estas armadilhas.49 Como também se punham armadilhas nas árvores para o parariz,
pássaro que afluía à cidade em bandos de modo estival, voando baixo e era capturado com
armadilhas postas na copa das árvores, onde repousavam.50 Mas, quem realizava tais
caçadas? Nas botadas dos engenhos, era dos passatempos presentes, “da caça amantes,
outros convidados” iam caçar uma “colheita de brilhantes aves/ De pennas mais garridas”51,
parte do passatempo dos convivas. Contudo, nos arredores da cidade, não encontramos ser
uma atividade das classes. Suspeitamos que não era bem-vinda ali, pelo que ocorria nas
patuscadas, onde sua feição utilitária mesclava-se com a recreativa.

No final do século XVIII, dizia Anna Bittencourt, sobre passatempo das mulheres no
Itapicuru:

Na estação das frutas, as moças das fazendas próximas, quase sempre


aparentadas, combinavam um dia para a colheita das frutas. Marcando o
ponto de encontro, erguiam-se pela madrugada e partiam acompanhadas
das mães e irmãos e de mucamas que levavam em cestas o farnel para o
almoço. Encetavam logo a tarefa. As moças colhiam nas ramas mais baixas
e os rapazes nas mais altas. Quando os raios de sol tornavam-se
insuportáveis, reuniam-se sob uma árvore copada e tratavam do almoço.
Estendiam esteiras no chão e, sobre estas, toalhas onde colocavam os
pratos. Os convivas sentavam-se ao redor da improvisada mesa. A dança e
as refeições, somente, estabeleciam alguma familiaridade entre os rapazes
e raparigas, que viviam, pode-se assim dizer, trancadas a sete chaves,
porque nas igrejas avistavam-nas, mas sem terem ocasião de trocar uma
palavra. (BITTENCOURT, 1992a, p.35).

Aproveitava-se um aspecto botânico para realizar uma espécie de convescote. Talvez fosse
mais fácil de ocorrer no interior. Mas havia similares, na mesma época, em Salvador. O
melhor relato, talvez o único, é o de Silva Lima, o primeiro memorialista a abordar a
Salvador da primeira metade do século XIX – os anos 1840 – e alude a um cotidiano de uma
classe média invisível aos visitantes.

45
WETHERELL, s/d, p.51. Tratava-se de acostumar os patos das lagoas com uma “cabeça” oca, com dois furos para os olhos,
por dias, até os pássaros se acostumarem; passado esse tempo, o caçador punha sua própria cabeça dentro da casca e
conseguia aproximar-se para apanhá-los.
46
BITTENCOURT, 1992a, p.24.
47
He was waiting for tatoos [...] which seldom appear before dusk [...] (LINDLEY, 1805, p.133).
48
WETHERELL, s/d, p.93.
49
HUELL, 2009, p.168
50
WETHERELL, s/d, p.147. O parariz seria um tipo de rola, segundo literatura da própria época (GIRALDES, Joaquim Pedro
Cardoso Casado. Tratado Completo de Cosmographia, Geographia-Historica, Physica e Commercial, Antiga e Moderna.
Volume Primeiro. Paris: Fantin, Rue de Seine-St.-Germain, n.12, 1825, p.157).
51
FERRARI, 1853, p.79.

294
Eram muito de moda as patuscadas, hoje chrismadas pic-nics, nas roças, à
sombra dos arvoredos, sobre esteiras, estendidas na relva. Nos grandes
jantares collectivos viam-se na mesa montanhas de iguarias. Ao toste, não
ao champagne, que ainda não estava em voga, mas com o Lisboa e o Porto
velho, eram saudadas individualmente, sem escapar uma só, as pessoas
presentes, e esgotada a lista vinha a dos ausentes. (SILVA LIMA, 1908,
p.107).

O aspecto das libações e saudações era recorrente. Este testemunho converge com o relato
ficcional de Xavier Marques, do seu O Feiticeiro, que se passaria na segunda metade do
século XIX, por volta de 1878, em passeio até o distante Matatu de Brotas, quando a
atividade se realizava com maior liberalidade. Caminhavam com vagar pela estrada, e “já
reviam os pomares do Sangradouro, longe das visas da cidade. Faziam paradas. Cheiravam
tanto os laranjais à orla do caminho!...”.52 O grupo, passeando, ouvia de quando em quando
as armas dos passarinheiros, gente caçando passarinhos nos arrabaldes. Colhiam frutas e
flores pelo caminho e, ao encontrarem um bom lugar, abriram a cesta e estenderam “sobre
umas folhas secas a toalha” e dispuseram “melhor ordem possível os assados e as
garrafas”.53 Conversaram e riram animadamente e foram econômicos no que era usual em
encontros comensais de famílias: fizeram apenas um brinde. Por fim, chegaram numa fonte,
onde “tentaram pescar camarões de água doce e fizeram outros folguedos e traquinadas”.54

Nos dias de estio, a excursão aos subúrbios, de preferência ao campo, era


um prazer salutar de que raramente se privava a mediania da população
urbana. E o subúrbio convidava, porque ainda vivia na simplicidade
campestre, confinando com as roças, emaranhado em capoeiras e
plantações.

- À roça! à roça! – era o toque de alvorada, ao despontar das manhãs


estivas e feriadas, na quentura dos ninhos que a classe média pendurava
nos primeiros andares dos prédios maciços e mal arejados. As janelas se
abriam ao bafejo matinal. Os galos ainda cantavam. Ouvia-se o repicar de
sinos, e ao longe o rodar das carroças da limpeza pública. Já os rapazes
sôfregos, a família aforçurada, em satisfeita balbúrdia, tinham atado o
fardel, e iam-se esgueirando ao desluzir da estrela-d´alva, através do pó
que os varredores da rua lançavam aos ares da cidade estremunhada.

Depressa, antes que amanhecesse, corriam para o Cabula, o Matatu e São


Lázaro, para o Garcia, as margens do Dique e Brotas adentro. A liberdade
dos prazeres honestos aí lhes sorria com o benefício não encontrado nos
bailaricos fatigantes, nos concursos de luxo em festas de igreja, nem
mesmo nos oitavários estrondosos do Bonfim. O ar sedativo daqueles sítios
ensombrados, onde bracejavam as fecundas jaqueiras e recendiam os
laranjais em flor, aquela bafagem dos matos saturados de resinas de
aroeira e cajueiro, dos perfumes silvestres da angélica e do bete cheiroso,
eram o bálsamo que essa gente preferia para lenir os pulmões e o espírito.
Uns inconscientemente, outros avisados da virtude sanativa dessas fugas
para o campo, gozavam todos, sem cerimônia, as doze horas de folga,
espenejando-se ao ar livre como aves que logram fugir à morrinha do
viveiro. Banhos nas fontes emboscadas, libações por folia nas bodegas da
roça, lapidação e fuzilamento de pássaros entre os ramos das árvores altas,
tudo isso entrava no programa dos rapazes, enquanto as moças,
cachinando e namoricando, devoravam o creme espesso dos abacates e a
polpa quente das mangas caídas, ou chupavam as laranjas seletas de que
os generosos donos das roças lhe davam mão cheias.

52
MARQUES, 2017, p.91.
53
MARQUES, 2017, p.119.
54
MARQUES, 2017, p.120.

295
[...]

Só as desaproveitavam, com efeito, ou as classes terra a terra nos deveres


e preocupações do ganha-pão, a gente pobre que tinha muitos filhos e
nenhum feriado, ou as famílias abastadas, vítimas da meia aristocracia de
últimas modas e lautos almoços a hora certa, senhoras devotíssimas da
missa das onze à Piedade, obrigada a seda e jóias [...] (MARQUES, 2017,
p.84).

Eram os “dias de estio”, os dias mais quentes do ano, e neles se dava uma jornada ao
campo, em geral, ao cinturão verde da cidade, sem nenhuma preferência pelo litoral.
Enumerava o Cabula, Matatu, Garcia, Dique, Brotas, ou seja, justamente a ampla área a
leste da cidade. Nada de Itapagipe, ou da Barra. Falava no São Lázaro, mas não no Rio
Vermelho. Kátia Mattoso mencionava piqueniques também ao Bonfim, ao Dique do Tororó
e, a São Lázaro e Rio Vermelho.55

“Roça”, aí, ganha mais um sentido, metonímico, da zona rural, das capoeiras e plantações.
Marques registrava como uma procura essencialmente da classe média, em uma relação
mais ambiental com o ciclo geobotânico, os “dourados dias de verão”, quando o novembro,
“a trescalar cheiros de fruta sazonada, atraía passeadores para os subúrbios cobertos de
pomares”.56 É fascinante pensar que esta forma mais livre de deambulação era uma
diversão familiar lícita para os estratos médios, mas não para a elite da cidade. Se era uma
imitação dos estrangeiros, esse processo saltou uma camada, por assim dizer.

Manuel Querino descreve algo similar pelos anos 1850 e 1860:

As jornadas para o campo, quase sempre, se faziam aos primeiros albores


da madrugada, pois não havia ainda os bondes de tração animal. O
arrabalde preferido era o do Bonfim, talvez por ser o único que oferecia
locomoção fácil, pois havia as gôndolas de três seções e os pequenos
vapores da Companhia Baiana.

[...]

O aroma das flores, a alegria dos campos, as doces cantilenas de moçoilas


morenas, com acompanhamento de violão, flauta, cavaquinho e
castanholas, não deixavam margem para reflexão das necesidades da vida
e suas incertezas. Mesmo porque desgostos não pagam dívidas.
(QUERINO, 1955a, p.196).

No local ceavam. Com direito a brindes e muita música após a refeição, primeiro modinhas,
e por fim o lundu.57 Os brindes, e a necessária presença da bebida, do vinho, não deve ser
menosprezado. Em 1840 havia anúncio singular, de “borraxas chegadas de Lisboa de todos
os tamanhos, muito proprias para a commoda conducção de vinho e mais liquidos”, e a
chamada era clara: “Aos amantes da patusca” [sic].58

Os ânimos ainda eram maiores se mais de um grupo de passeantes se encontrava


“senhoritas e matronas respeitáveis tocavam pandeiros, dansavam lundú de modo
arrebatador. Os rapazes se exibiam na roda com certa elegância; assim também graves
chefes de família”.59 Esses grupos descritos por Querino ainda não se tinham afastado

55
Apud ARAÚJO, Heloísa Oliveira de. Inventário da Legislação Urbanística de Salvador 1920-1866 as novas regras do jogo
para o uso e abuso do solo urbano. 1992. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU, Universidade
Federal da Bahia, Salvador. 1992, p.157.
56
MARQUES, 2017, p.433.
57
QUERINO, 1955a, p.196
58
O CORREIO MERCANTIL n.261, Sexta-Feira 4 de Dezembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1840.
59
QUERINO, 1955a, p.199.

296
completamente do lundu como dança bárbara. E descreve famílias que iam acompanhadas
de suas escravas, que podiam fazer sua festa ligeiramente em separado: “mais adiante um
pouco, em reserva, as mucamas, por sua vez, divertiam-se fora da vista do senhorio; e
então, no samba arrojado, lá vai chula”. Todos sambariam, “desde o mais humilde homem
do povo, até ao mais abastado figurão”60.

Uma correspondência, em uma reclamação, falava da obra da Rua da Valla. Pronto o trecho
que ia até a “baixa do rio Camorogipe”, na Estrada do Cabula, estaria apta para

Os amadores do passeio por sitios pitorescos; os de imaginação poetica e


romantica, que se enthusiasmão com o murmurio das aguas e brandos
zephiros, que sussurra entre as variadas folhagens dos bosques e das
moitas; os amigos da equitação e da gynastica, dos cabriolés, e sociaveis,
que gostão de correr a redea solta; os enfermos, que precisão de passeios
moderados [...]61

A rua facilitava o acesso justamente a toda a área rural a leste da cidade, até o Cabula, e
parece ser esta a região preferida para as patuscadas. Correspondia a um gozo que, se
antes era limitado pelo recinto do quintal doméstico, íntimo e cerrado, agora se abria para a
variedade rural, das fontes e cursos d´águas, dos passarinhos e das carroças das granjas.
Implicava um apreço expandido, em vários sentidos, levando a essa movimentação.

Pela baía para as ilhas e o seu outro lado também havia passeios, de tônica similar.

Ao lidarmos com as distâncias, o acesso mais fácil ao hinterland baiano do seu Recôncavo
era por mar. Já nas primeiras décadas do século XVIII, temos a descrição de que “haverá
mais de cincoenta annos partiu do porto da cidade da Bahia uma lancha para o reconcavo
della com musicos e comediantes a irem fazer uma festa”62 onde, no entusiasmo da viagem,
os tiros de alguma arma de fogo atingiram uma quantia de pólvora e provocou um acidente.
Lindley viu tais passeios, a partir do Forte de São Marcelo, barcos animados com as
músicas de barbeiro: “bandas de música freqüentemente passam em grandes lanchas,
tocando em seu caminho às vilas próximas na baía, para comemorar o aniversário de algum
santo ou outra festa particular”.63 Para as botadas, iam os convivas de Salvador para o
engenho anfitrião em “prospera viagem de horas quatro teve”64, vendo aldeias pitorescas, e
toda a variedade dos templos e conventos, casas e pomares, mar e colinas.

Poupava-se da lamentável jornada por carros de boi, agravadas pelo plástico e inviável solo
do massapê. A travessia, tempo inevitável, acaba dando ensejo a um festejo, a uma
diversão, em pleno curso. Ver Huell testemunhou um episódio interessante:

De fato, em certa ocasião, eu participava de um passeio à vela com alguns


dos meus amigos ingleses, quando uma Lancha (um tipo particular de
embarcação) veio navegando ao nosso encontro. No convés, sentava certo
número de senhores e damas, divertindo-se com comidas, bebidas e
música. Os senhores usavam chapéus de palha com abas largas; as
senhoras, nos leves trajes da terra, com camisolas bordadas que pendiam
soltas sobre um dos ombros. O grupo estava ruidosamente alegre.

O timoneiro da nossa embarcação assegurou-nos que aqueles senhores


eram todos padres de São Bento que, acompanhados de algumas damas,

60
QUERINO, 1955a, p.200.
61
O CORREIO MERCANTIL n.213, Segunda-Feira 5 de Outubro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1840.
62
PEREIRA, 1939, p.103
63
Bands of music frequently pass in large launches, playing in their way to the neighbouring villages on the bay, to
commemorate the anniversary of some saint, or other particular festivity. (LINDLEY, 1805, p.170).
64
FERRARI, 1853, p.42.

297
faziam uma prazerosa viagem a uma das suas plantações de açúcar. Para
nos convencer disso, eles nos propôs que seguíssemos em curso na
direção da Lancha e, descobrindo a cabeça, saudássemos o grupo: “Como
vão os senhores?” Certamente, um ou outro passageiro acabaria também
tirando o chapéu, revelando a sua calva coroa raspada.

De fato, a cortesia de um grupo de estrangeiros impressionou bastante os


jovens religiosos. A maior parte deles tirou o chapéu e, com isso, as calvas
coroas expostas ao sol provaram que o nosso timoneiro tinha razão. Nós
todos gritamos: “Bravo, senhores padres! Bravo!” As jovens senhoritas logo
se esconderam. Os alegres irmãos, no entanto, que aqui, livres e
imperturbados, favorecidos pelo mais delicioso clima, esqueciam a solitária
vida monástica na presença das belezas mundanas, retribuíram o nosso
“Bravo!” e beberam à nossa saúde. (HUELL, 2009, p.164).

Os beneditinos possuíam “muitas propriedades tanto Urbanas, como Rusticas, bem como
Engenho de fazer assucar, e fazendas”65, e circulavam na cidade orgulhosamente,
mostrando suas posses, com bengalas elegantes, sapatos com fivelas douradas e outros
acessórios às suas batinas.66 Gilberto Freyre acreditava que aqueles padres, oriundos das
principais famílias da província, repetiam os hábitos e o ethos patriarcal dos senhores de
engenho. Mais: eles eram as famílias tradicionais, filhos dela, e com mais compromissos
com sua família de origem e aquela oligarquia que com qualquer ultramontanismo.
Divertiam-se, como grãos-senhores, no percurso necessário, como naquelas propriedades
ao longo do Recôncavo, visitadas periodicamente para “pôr em ordem os seus negócios ou
mesmo para se divertir”.67

Existem menções a excursões, a ponto de serem concebidas como mercado potencial para
a nova Navegação a Vapor, tal como estava em seu prospecto de 183968:

Na Bahia há a mesma predilecção como no Rio, para as excurções por mar


e o calor do clima tem induzido esta sorte de recreação como mais facil e
saudavel; além de que a falta de caminhos e portos, mesmo na sua
immediata visinhança obriga os moradores da Cidade, a servirem-se quase
exclusivamente de sua espaçosa bahia, tanto para sua recreação, como
para os transitos do commercio. Daqui se conclue que esta Companhia
póde facilmente contar com os mesmos lucros que a do Rio, quanto aos
passageiros que só viajão por prazer, em addicção à mais solidas
vantagens que a do Rio não possue [...]69

Podemos conjecturar também que existe um excessivo otimismo no prospecto. Essa


demanda procurou ser capitalizada pela Companhia Bahiana de Navegação a Vapor, na
forma de passeios de recreio.70

Recreio.

A pedido de varias pessoas, e para corresponder aos desejos manifestados


em consequencia da excursão de 3 do corrente, a barca de vapor Bahia
largará no domingo 15 do corrente, às 9 horas da manhã, do seu
ancoradouro da cidade, e seguirá pela barra de Jaguaripe para Caixa

65
REBELLO, 1829, p.168.
66
HUELL, 2009, p.163.
67
HUELL, 2009, p.164.
68
Junto com o mercado de pessoas e mercadorias, assinalando Cachoeira e suas duas feiras semanais; Nazaré das Farinhas,
com suas duas feiras semanais; Santo Amaro da Purificação, e a costa da província, a norte e a sul, e mesmo o escoamento
da produção de Sergipe. Os festejos do Bonfim merecerão um tópico à parte.
69
O CORREIO MERCANTIL n.23, Segunda-Feira 28 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
70
A primeira companhia da Província, e a primeira a usar esse nome, que começou a funcionar em 1839, falindo em 1847
(SAMPAIO, 2014). Depois outra companhia com o mesmo nome operaria, desta vez com mais êxito.

298
Pregos e Santo Amaro do Catú, aonde se demorará o tempo que for
necessario para os Srs. passageiros gosarem d´algum pestico; e de tarde
regressará para a cidade pelo outro lado da ilha de Itaparica. Passagens de
hida e volta 2$rs. por pessoa.71

Outra “viagem de recreio”, em julho de 1940, agora para Valença, foi cancelada.72 Sempre
aos domingos, outro anúncio, no mês seguinte, agora se dirigia às ilhas da baía: “para as
ilhas dos Frades, Bom Jesus, no domingo 30 de agosto”73, saindo às 9 h da manhã e
retornando às 17 h. Ao que tudo indica eram iniciativas da própria companhia. Em alguns
casos, os anúncios apontavam um reclame de alguma localidade específica, de uma
demanda potencial. Os eventos eram momentos de tais solicitações e ofertas. Como na
aclamação do Imperador D. Pedro II, a 23 de agosto de 1840, onde oferecia o serviço aos
moradores de Itaparica: “para a commodidade das pessoas desejosas de assistir a tão
solemne acto, a barca do vapor Bahia largará do seu ancoradouro ao mesmo dia às 8 horas
da manhã, para a dita villa, donde voltará às 5 horas da tarde para esta cidade”.74 Para outra
festa cívica, a coroação de D.Pedro II, a Companhia adaptava seus serviços: modificava o
horário, em função dessa festa que ocorreria em Cachoeira, no dia 12 de setembro.75
Ofereceram ainda viagem para Valença e São Jorge dos Ilhéus no dia 24 de dezembro,
decerto atendendo aos festejos natalinos. Porém foi um fracasso: até o dia 19 só se tinham
vendido 5 passagens.76

A Companhia se oferecerá, nem sempre com êxito, para o traslado a festividades pelo
Recôncavo, e sobretudo, e estas bem-sucedidas, para as festas na Península de Itapagipe,
de que trataremos nos próximos capítulos.

6.2.2. A Hipótese Itaparica


O caso mais temporão e singular é o narrado por Rocha Pita na primeira metade do século
XVIII,

72. Os moradores da cidade atravessando o golfo em curiosas


embarcações, vão a ela [Itaparica] não só na monção das baleias, a verem
a sua pescaria, mas a lograrem a amenidade daquele país, tão habitado e
assistido de gente inumerável, que não havendo na ilha fundações de vilas,
é toda ela uma povoação continuada, sem ter porção alguma menos culta
ou mais áspera. (ROCHA PITA, 1976, p.148).

A afirmação de Rocha Pita soa muito extemporânea. Não só pela movimentação em um


veraneio muito prematuro, como pela predileção visual que não faria sentido. Se alguma
etapa de todo o processo da indústria baleeira fosse digna de admiração, seria a pesca, o
arrojo dos baleeiros e seu risco de vida, que ocorria nas águas da baía, e mesmo em mar
aberto, podendo ser vista de qualquer canto à beira-mar, em especial a cavaleiro, da cidade.
O desmanche da baleia era tudo, menos poético: não apenas a carnificina do abatimento,
como a sujidade do processo, dos restos deixados na praia e dos urubus, dos tachos de
óleo e da fumaça regurgitando dos fornos.

71
O CORREIO MERCANTIL n.268, Sábado 14 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. so Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
72
O CORREIO MERCANTIL n.158, Sexta-Feira 24 de Julho de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
73
O CORREIO MERCANTIL n.185, Sábado 29 de Agosto de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
74
O CORREIO MERCANTIL n.180, Sábado 22 de Agosto de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
75
O CORREIO MERCANTIL n.211, Quinta-Feira 7 de Setembro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1841.
76
O CORREIO MERCANTIL n.274, Quinta-Feira 17 de Dezembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.

299
Tampouco seria verossímil pela época do ano: a movimentação para o veraneio posterior,
para os campos agradáveis ou para os risonhos canaviais dos engenhos, ocorria no verão,
e não no período de chuvas, que era a temporada das baleias. Um poema, uma menção
geral, e um documento, dão outra explicação: a enormidade do afluxo de gente para a tarefa
estival da caça da baleia.

A população de Itaparica sofria mudança demográfica expressiva. O vigário Christovão dos


Santos, cônego de Vera Cruz, em documento de 1757, aponta que a freguesia tinha cerca
de 400 pessoas por oito meses, saltando para 2.000 pessoas no período da pesca da baleia
(!), vindos decerto de todo o Recôncavo para aproveitar a bonança sazonal.77 Poema
publicado em 1769 alude ao fenômeno.

XXXVII
O povo que se ajunta é infinito
E ali tem muitos sua dignidade,
Os outros vêm do Comarcão distrito,
E despovoam parte da Cidade;
(ITAPARICA, 2011, p.45).

A temporada de caça às baleias absorveria mão-de-obra do entorno da ilha, e de Salvador.


Que isso “esvaziasse” a cidade é algo para ser levado ao pé da letra. Mas que seu impacto
era significativo, sim.

William Dampier, tratando da virada do século XVII ao XVIII, em contexto de fartura pela
baía que não se repetiria mais um século depois, comenta da dedicação da população a
essa caça, no mar e nos baixios, porém a situa, curiosamente, no período natalino, o que
contradiz todos os outros registros sobre a temporada dos cetáceos.78 A economia
soteropolitana era profundamente dependente de sua limitada mão-de-obra. Variações
sazonais, e mesmo ciclos específicos, deslocavam-na de modo a escassear aqui e ali.
Como se deu com o ciclo da mineração. Invariavelmente, a produção que sofria era a de
gêneros alimentícios. Tudo indica que a temporada das baleias absorvia essa população
flutuante, que ia para Itaparica não por um imperativo de lazer ou deleite, e sim para as
armações e contratos ali fundeados.

De qualquer modo a afirmação de Rocha Pita abre uma dúvida, e uma hipótese de veraneio
no Setecentos, até porque ele distingue a “amenidade daquele país” como um motivo
diferente das pescarias.

6.2.3. Passar as Festas na Roça


Em 1817, Tollenare apontava que as principais diversões pernambucanas eram as festas
religiosas. Mas não as da cidade; as de fora, onde “cada igreja, cada capela tem a sua festa
solene a que o povo concorre em multidão”79, destacando as duas mais importantes, e já
com uma estratificação: ao Poço da Panela iria “a sociedade elegante” e a Olinda, para a
festa de Nossa Senhora do Monte, havia “um pouco mais de mistura”.80 Mas a
movimentação era geral. Recife, um “forno” nesses meses, neles se esvaziava, com a
população partindo para lugares diversos.81 O Padre Lopes Gama satirizava essa
compulsão por deslocar-se, quando o poder do santo deveria valer em seu próprio lar: “as
mulheres ordinariamente só têm por prodigiosos os santos que não estão nos seus

77
ANDRADE, 2013, p.113.
78
[...] they are failed chiefly with Negro-Slaves; and about Christmas there are mostly imployed in Whale-killing [...]
(DAMPIER, 1703, p.57).
79
TOLLENARE, 1956, p.133.
80
TOLLENARE, 1956, p.172.
81
GAMA, 1996, p.99. Texto de 24 de novembro de 1832, chamado Despedida por este ano aos meus respeitáveis assinantes
e leitores.

300
oratórios, ou que residem em igrejas bem distantes de suas casas, o que tudo é por causa
do passeio da romaria”.82 Que fossem as mulheres, por devoção e interesse em sair, as
principais impulsoras do movimento, não deve ser visto como anedótico. Lindley notara que
as festas, aquelas oportunidades para “devoção e prazer” eram avidamente abraçadas “em
particular pelas damas”.83 Quanto ao argumento de Lopes Gama, conquanto lógico, era
falaz dentro do catolicismo da época: os ícones, físicos, não eram representações, mas
expressões do próprio santo, singulares, e cujo traslado e manutenção requeriam cuidados
especiais. No entanto sair do lar, ir para outro lugar, adicionava animação e variedade a um
cotidiano um tanto insípido para as classes médias e altas.

Repetia-se na Bahia, já do começo do século XIX, tal como visto por Lindley: “eles fazem
festas nos povoados vizinhos, e continuam por alguns dias; abolindo a reserva geral com a
música, dança, cartas, intriga, etc.”.84 Dois aspectos se entrelaçavam: a saída do centro da
cidade para áreas campestres, ainda que próximas, durante a canicular; e a participação em
festejos. Lindley ainda reconhecia uma espécie de “tempo das festas”, nesse período, em
que as reservas habituais eram postas de lado, onde se instaurava um outro cotidiano.

Estes fatores se relacionavam, sem uma necessária causalidade. Os festejos, a importância


dada a um santo específico, poderia levar à ocupação temporária do arrabalde, e sua
transformação. Ou, no sentido inverso, a ida a um arrabalde mais ermo e o incremento na
organização de um calendário festivo próprio poderia atrair contingentes maiores, para
estadias longas ou pontuais.

Em capítulo anterior explicamos as ambivalências embutidas na palavra “roça”. Os


exemplos a seguir mostram esse caráter, de áreas de cultivo que serviam ou como
primeiras residências adjacentes ao núcleo urbano, ou como segundas residências para as
festas. Ver Huell descreve três propriedades distintas na Península de Itapagipe.

Havia a roça de Dona Maria Violante Telles de Menezes e Mattos, que era uma propriedade
maior, com sua casa de vivenda, e nenhuma indicação de ser sua segunda residência, às
margens de uma cidade que a englobaria, em vias de urbanizar-se.

Existia a roça do Professor Ferreira, à beira-mar, com alpendre generoso, e teto de palha.
Definitivamente rústica. E, de fato, usada como segunda residência no veraneio, elevada à
condição de primeira residência por algo fortuito.

E por fim a roça de Fanchette, usada para as festas do Bonfim.

Olhemos a propriedade de D. Violante, à Calçada. Ver Huell conhecera aquela senhora nas
noites que passava com o Almirante de Castro e, após ridicularizar o rosário de nomes
ilustres que ela possuía, registrava que era aparentada “com a fina flor da nobreza
portuguesa” e que essa era a razão de ser tão bem tratada por todos, “muito mais à
importância dos seus nomes do que, propriamente, a alguma extraordinária qualidade
sua”85. Convidara naquela ocasião, e nos encontros subsequentes, a dar-lhe “a honra de
poder receber-nos em sua roça”86, ou, como ela denominava, “ses terres”. Por ter, entre
outras coisas, iniciado sua coleção de borboletas, resolveu aceitar o convite por amor à
História Natural a despeito de sua rejeição à mulher. Ali chegou em uma “casa de campo

82
GAMA, 1996, p.38. Texto de 7 de maio de 1832, chamado A Religião.
83
LINDLEY, 1805, p.275 – tradução nossa.
Scarcely a day passes that some one or other of these festivals does not occur; and thus is presented a continued
round of opportunities for uniting devotion and pleasure, which is eagerly embraced, particularly by the ladies.
(LINDLEY, 1805, p.275).
84
[...] they make parties to the neighbouring villages, and continue some days; banishing the general reserve with music,
dancing, cards, intrigue, &c. (LINDLEY, 1805, p.120).
85
HUELL, 2009. p.131.
86
HUELL, 2009, p.131.

301
bem grande”87 onde, depois de ser entediado com uma longa exposição de cada membro da
família, com nomes e títulos, cujos retratos estavam dependurados nas paredes, ganhou
acesso livre e irrestrito para passar o quanto quisesse ali.88

Sob todos os aspectos, aquela era certamente uma região selvagem, porém
uma região selvagem no Brasil, soberba e pitoresca. Laranjeiras,
carregadas com flores e frutos ao mesmo tempo, espalhavam-se entre
umbrosas e altivas mangueiras. Vegetais exuberantes cobriam o chão;
coqueiros e tamareiras, os seus troncos ornados com plantas trepadeiras,
elevavam as suas férteis coroas acima das outras árvores. Brilhantes
colibris e borboletas competiam entre si, lutando ao redor dos cálices
desabrochados para roubar o néctar. (HUELL, 2009, p.142).

Esse paraíso estava situado na região da Calçada. Na verdade, era a Calçada, antes da
mesma ter sido construída, e brindar com seu nome o atual bairro. “Roça” aí designava o
que era mais um sítio, de extensão maior que uma pequena propriedade.

Nas suas jornadas para banho de mar para Montserrate, acabou conhecendo o Prof.
Ferreira, e sua “roça – ou casa de campo – localizada debaixo da sombra de inúmeras
árvores frutíferas: laranjeiras, mangueiras, coqueiros e bananeiras”.89

Logo em seguida, deparamo-nos com uma modesta casa de campo de um


só pavimento, coberta com folhas de palmeiras, rodeada de uma espaçosa
varanda e situada debaixo de uma sombra bastante aprazível.
[...]

Fomos obrigados a concordar com o bom homem que a vida neste local
devia ser realmente feliz: debaixo da sombra das laranjeiras e mangueiras
floridas, escutando o fremir dos coqueiros misturando-se ao tenro marilho
das ondas na beira da praia e ainda por cima, completamos, indicando as
jovens damas, em tal companhia! (HUELL, 2009, p.127).

Esse professor catedrático de Retórica, liberal em seus costumes – a ponto de apresentar


as mulheres da sua família a um desconhecido... a um estrangeiro, melhor dizendo, que ele
decerto sabia não compartilhar das reservas dos luso-brasileiros –, descansava em uma
casa bastante rústica. Mas vivia em uma casa sólida e respeitável no centro da cidade.
Tanto era que a perdeu quando da chegada da Família Real na cidade, pois o governador,
para abrigar a corte, “resolveu simplesmente selecionar de forma arbitrária algumas das
suas melhores casas (ou seja, aquelas pertencentes aos seus principais habitantes)”90,
incluindo a casa do professor. Talvez os novos moradores fossem do segundo ou terceiro
escalão, dado o tamanho da corte, e a residência de Ferreira não fosse de primeiro nível. O
fato é que ele passou a ter sua roça como primeira residência, deixando a anterior, com
móveis e tudo, para o séquito real. Roça ou casa de campo eram termos comutáveis,
observe-se.

A terceira roça visitada é a de Fanchette, relojoeiro francês, desgarrado da tripulação de


Jerome Bonaparte, casado com uma “crioula”, que lhe fora apresentado sem grandes
pretensões.

Passávamos muitos dias agradáveis na roça de Fanchette. A península de


Montserrat, coberta com casas de campo e deliciosas áreas sombreadas, é
o local de lazer preferido dos habitantes de São Salvador, que para lá
migram aos domingos e dias de festa, para se divertir. Era com um imenso

87
HUELL, 2009, p.142.
88
HUELL, 2009, p.142.
89
HUELL, 2009. p.127.
90
HUELL, 2009, p.136.

302
prazer que realizávamos freqüentes passeios até aquelas casas de campo,
tomando o caminho à esquerda da nossa residência, seguindo ao longo da
praia arejada, passando pela propriedade de Dona Maria Violante e em
seguida por uma alameda larga e bastante sombreada por mangueiras,
laranjeiras, coqueiros, palmeiras e outras árvores. Em toda parte, as casas
de campo erguiam-se em meio à aprazível folhagem (dentre as quais, por
sinal, aquela do nosso estimado amigo, o Professor Ferreira). Após uma
caminhada de meia hora, avistava-se por cima do arvoredo as elegantes
extremidades das duas torres da igreja de Nosso Senhor do Bonfim.
Situado em um morro e cercado por um lugarejo, erguia-se este templo
grande e formoso. À esquerda desta edificação, tomando-se um outro
caminho sombreado, chegava-se, enfim, à casa de campo do senhor
Fanchette.

É difícil expressar a emoção produzida pela contemplação da soberba


paisagem que, como um panorama, se descortinava da varanda daquela
adorável casa, ainda mais tendo em vista que se localizava quase no final
da península, numa posição elevada e deliciosamente sombreada por toda
espécie de árvores tropicais. (HUELL, 2009, p.151).

Como se percebe as roças nos arrabaldes também eram um interesse das classes médias.
Vimos em outra ocasião a produção de gêneros alimentícios para a própria subsistência, em
especial com suas repetidas carências. Outra razão talvez esteja pois, na ausência de um
sistema bancário como o atual, era o bem imóvel a forma mais eficaz de preservar o
patrimônio, que era bem-vindo para a estrutura da rotina daquela sociedade, com o “passar
as festas”. E mesmo para capitalizar-se, seja pela produção do solo, seja pela sua
transformação, como veremos no caso da propriedade de D. Violante.

O termo “roça” aqui designava propriedades de tamanhos diferentes, residências primárias e


secundárias, áreas na fronteira da urbanização e outras mais distantes, e sobretudo uma
gradual mudança de ênfase, entre uma unidade essencialmente produtiva e um local de
vilegiatura. A localização destes três exemplos, na Península de Itapagipe, tampouco é um
detalhe menor.

Vimos a ambiguidade do deleite e do utilitário nas propriedades do entorno da cidade.

Outro fator de confusão está na mudança da polaridade entre o campo e a cidade,


decorrente de profundas mudanças sociais e econômicas e, com isso, do conteúdo e da
forma das sedes de fazenda.

Vilhena reconheceu a duplicidade de propriedade entre o campo e a cidade – em princípio,


porque um mesmo senhor de engenho teria mais de uma fazenda, herdadas ou adquiridas –
ainda assentando o centro diário no Recôncavo imediato, pois “esta hé a gloria dos
Senhores de Engenho e para mayor auge della, tem na cidade cazas próprias, ou
alugadas”.91 No começo do século XVIII, o Frei Agostinho de Santa Maria, ao descrever a
cidade e seu Recôncavo, e dizia que as suas várias enseadas se viam “enrequecidas de
muyto grossas, & deliciosas fazendas dos moradores da sua Cidade”.92 Diz Mrs. Kindersley,
em carta de setembro de 1764, que ao longo da baía “estão grandes plantações de açúcar e
tabaco, que pertencem aos portugueses, que residem em Salvador”.93 Se levarmos a sério
sua afirmação, o pólo do cotidiano desses proprietários já começara a se deslocar para a
capital.

91
VILHENA, 1922a, p.186.
92
SANTA MARIA, 1722, p.4.
93
[...] further distant in the country, chiefly along the sea coast, are large plantations of sugar and tobacco, which belong to
the Portuguese, who reside at St. Salvador [...] (KINDERSLEY, 1777).

303
Paulo Ormindo David de Azevedo nota que, se os senhores de engenho transitavam de um
a outro, ao longo do século XIX prefeririam a cidade como seu locus.94 Houve uma mudança
do engenho ser o centro da vida familiar, e a cidade, local de visitação, para o seu contrário.
Um dos motes é a migração da família, a rigor do centro de influência, para a cidade. Dos
herdeiros que não querem passar a vida na fazenda. Das fortunas urbanas ascendentes que
contraíram matrimônios com terratenentes empobrecidos com fins de participar do prestígio
de outrora, da linhagem e das herdades tradicionais.

Wanderley Pinho, ao falar sobre Antônio Bernardino da Rocha Pita e Argolo (1793-1877), o
Conde de Passé, dá detalhes ilustradores. Primeiro que, como outros, possuía mais de uma
casa inteiramente montada, aparelhada. Muitas nunca se tornaram residência, apenas
recebendo visitas ocasionais. Passé possuía, além de suas casas nobres no Largo do
Teatro, na Mangueira e no Bonfim, mais três sedes de fazenda, nos engenhos Freguesia,
Matoim e Pindoba.95 Se por um lado, confirma-se aquela rede de moradias antes
mencionada, por outro temos uma novidade: casas nobres na periferia da cidade.
Detenhamo-nos por ora nas suas propriedades rurais e a do Largo do Teatro, onde veremos
uma diferença crucial.

Prontas, aquelas casas rurais não apenas recebiam seus donos durante as festas, como as
muitas visitas. Essas propriedades, longe de serem os antigos solares daqueles senhores
feudais de outrora, eram casas de verão, para passeios e festas. Passé em 1848 adquiriu o
Engenho Freguesia e o quis transformar “num centro de vida mundano-rural, e ponto de
irradiação de várias e extensas atividades agrícolas”, onde ocorreriam as botadas e “missas
da Piedade e da Conceição, “fins de ano” de grupos de amigos que vinham nos vapores da
Companhia Bonfim, da linha de Passé”.96 Teriam sido famosas as festas de Santo Antônio,
em Pindoba, como os aniversários passados em Matoim, período que durara de 1857 a
1862, brevíssimo tempo, quando se deu a morte da filha, jogando Passé em luto.

Freyre faz essa contraposição entre o Sobrado e a Casa-Grande, ambos não tanto como
tipos edilícios, mas como símbolos sociológicos mais amplos, traduzindo uma transformação
que também se revelava, para não dizer que se realimentava, pelo arcabouço físico das
residências.97 Mesmo o percurso tinha suas idas e vindas, mostrando que a própria
dinâmica da sociedade é mais intrincada. Se o Sobrado espoliava a Casa-Grande, a Casa-
Grande defraudava o Sobrado. A Casa-Grande construía seus Sobrados, coevos. Os filhos
da Casa-Grande iam ao Sobrado, e a esvaziavam, enquanto os filhos da Casa-Grande nos
Sobrados socorriam a Casa-Grande, casando-se com os herdeiros da Casa-Grande, para
fins nobiliárquicos. Apontava um deslocamento mais global, do prestígio crescente das
cidades, com modalidades de fortuna e poder como a do comércio (os mascates, os
banqueiros, os negreiros), que mantinham as fazendas em situação de dependência. Mas
sobretudo de tipos humanos novos, e enfatizava os bacharéis e médicos, e de um tipo de
vida mais cosmopolita, europeizado, que seduzida os filhos das antigas famílias rurais. Sem
esquecer do poder crescente do Estado, que tinha naqueles seus aliados, e acabava por
resgatar, com seus cargos e prebendas, as famílias arruinadas, efetuando a completa
transição da base social das velhas linhagens.

O Sobrado urbano, assim, tornou-se o centro gravitacional do sistema, à Casa-Grande


restando o papel de veraneio e símbolo de status naquele Oitocentos, resíduos de uma
antiga fidalguia terratenente sucareira. No caso de Passé, somava-se à glória passada da
família, recuperada a muito custo.

94
AZEVEDO, Paulo Ormindo de. Recôncavo: território, urbanização e arquitetura. In: CAROSO, Carlos; TAVARES, Fátima;
PEREIRA, Cláudio (org.). Baía de Todos os Santos: aspectos humanos. Salvador: EDUFBA, 2011, p.245.
95
PINHO, 1937, p.621.
96
PINHO, 1982, p.507.
97
FREYRE, 2004.

304
Na zona rural, fazia o que Pinho chamava de festa campestres. Igualmente, Carlos Alberto
de Carvalho, ao falar sobre as festas do Bonfim e das expansões para Plataforma de “festas
campestres”.98 Ou o sentido da palavra mudou, ou é o mesmo, e, portanto, o que significa o
termo é não apenas as festas nos Engenho, mas toda festa rural. Isto é, fora da cidade.
Entendendo que a descrição de Carvalho do Bonfim e de Plataforma assinalavam algo rural.
Assim se explicaria chamar a área de barracas, onde se vendiam comidas e bebidas, de
arraial, evocando sua origem rural. Importante é que não deve ser confundida com as fête
champetre francesas, provável origem da expressão, e sequer com as garden parties
européias, cujos sucedâneos ocorriam no Brasil feitas pelos imigrantes e visitantes.

A constelação de moradias era um arranjo próprio de cada família, que ia se congregrando,


reunindo, em função das convergências e predileções da própria sociedade. O veraneio nos
arrabaldes se mesclava com os festejos locais. No caso daqueles arrabaldes litorâneos,
invariavelmente com suas comunidades de pescadores prévias. Entrelaçavam-se,
sucedendo-se com ordem e intensidades diferentes de acordo com o local, a visitação
durante o veraneio, a promoção das festas aos santos com devoção na região, e a
urbanização decorrente dessa movimentação.

Em outros arrabaldes distantes as festas exerciam alguma gravidade sobre a população


urbana, aparecendo ou convocatórias nos jornais, ou indicativos de que ali se passavam as
festas, isto é, veraneavam. Como no Cabula, os devotos de Nossa Senhora do Resgate
convidavam “ao publico desta cidade para a trasladação da Santa Imagem da mesma
Senhora para a sua antiga capella do Cabulla, acto que há de ter lugar domingo 1.º de
dezembro proximo vindouro”.99 As convocações se repetiram nos anos subseqüentes.100
Algo de gente afluía para o Cabula, e mesmo no Rio Vermelho, ao menos pelo final dos
anos 1830, já que usada como termo de comparação, em correspondência d´O
Epaminondas, da Gazeta Commercial da Bahia, que um vereador, na Câmara de certa vila,
estava vestido “à imitação dos nossos capadócios nas festas do Cabulla, e Rio Vermelho, e
digão lá que não temos progresso!”101

Em Nazaré, em 1844, anotamos:

O Juiz e mais Mezarios da devoção do Glorioso S. Gonçalo de Nazareth


tem a satisfação de partecipar aos devotos de tão milagroso Santo, que no
dia 6 de abril terá lugar o Bando que tem de annunciar as novenas e festa
do mesmo Santo, e para que convida a todos aquelles, que quierem tornar
mais brilhante o refirido Bando, apresentando-se para um louvavel fim no
Campo de Nazareth às 3 horas da tarde do dia mencionado.102

Notar a movimentação em um lugar que era um arrabalde, lugar de chácaras e fazendas.


Havia um evento, de natureza religiosa, que efetivamente convidada as pessoas da cidade,
circulando seu Bando Anunciador próprio, à qual qualquer um poderia somar-se. Poderia
acabar por arregimentar mais pessoas, levando a esse ciclo pelo entorno da cidade. Se o
festejo “vingasse”, levaria pessoas a alugarem roças e casas ali – como no Bonfim e Rio
Vermelho – para passar ali as festas.

98
CARVALHO, 1915, p.63.
99
O GUAYCURU n.62, 22 de Novembro de 1850. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1850.
100
O GUAYCURU n.115, 15 de Abril de 1851. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1851. E O GUAYCURU n.207, Sexta-Feira 12 de Março de 1852. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do
Pilar, caza n.96, 1852.
101
O CORREIO MERCANTIL n.137, Segunda-Feira 1º de Julho de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839. Capela posterior a 1722, e erigida pelos últimos anos desse mesmo século, ou nos primeiros do seguinte, e
que pertencia em 1821 a Joaquina Santana Lobato, viúva de uma das maiores fortunas da época. Reconstruiu a capela,
dedicando-a a agora a um culto de crescente popularidade, o Sagrado Coração de Jesus (TEIXEIRA, 1986).
102
O GUAYCURU n.87-88, Sábado 29 de Março de 1845. Salvador: Typ. de José da Cosa Villaça, à Ladeira da Praça, n.1,
1844.

305
As celebrações nos arrabaldes são biunívocas. Em cada uma destas localidades se
promovem comemorações aos santos que ali possuem guarida. São tais festas motores
fundamentais para essa pulsação da cidade, tanto dos contingentes que vão ali veranear,
como dos grupos que apenas visitam para o evento pontual, durante aquele dia ou uma
pequena temporada. Até que ambos, veraneio e festejos, fundiram-se metonimicamente.
Em 1844, em Madre de Deus, vendia-se “uma propriedade de caza terrea cita na Madre de
Deos do Boqueirão, beira mar, logo abaixo da Matriz [...] propria para qualquer familia ou
mesmo para passar a festa”103, isto é, para veraneio, sem implicar necessariamente uma
festividade religiosa.

Evaldo Cabral de Mello, e depois Rita de Cássia Barbosa de Araújo, entendem que a
aparição do subúrbio com quintas, as casas de sítio, ao longo dos rios, em especial do
Capibaribe, teve por causa por motivos de saúde.104 Citavam Lewis Mumford, e sua tese de
que os subúrbios tinham sua razão de ser em boa medida como alivio aos defeitos crônicos
da cidade, em especial a insalubridade.105 Fora privilégio de uma elite até os tempos mais
recentes, com a massificação dos transportes. Esse movimento pendular, embora ancestral,
teria se intensificado a partir do século XVIII, com a fuga periódica da peste, e cita o
Decameron de Boccaccio como exemplo, e depois, no século XVIII, com o apinhamento das
grandes cidades, e a Revolução Industrial, tal fuga teria se tornado imperiosa. Em Recife
havia o rol curativo dos banhos de rio, tão importantes naquela cidade, e ser o lugar pioneiro
nessa movimentação o arraial do Poço da Panela, fundado em 1758, com capela dedicada
a Nossas Senhora da Saúde. Ali pareceria que a saúde jogava um papel fundamental. No
entanto era análogo e contemporâneo a outras cidades, como Salvador. Nesta, as devoções
que comandaram as festas, ou realizaram seus milagres e cobravam seus ex-votos e
peregrinações, estavam ligadas a outros perfis que não o das enfermidades. E sobretudo
porque era sempre sazonal, e não por motivos de epidemias pontuais. A fuga a uma doença
se dá em sua eclosão, e não com data marcada. Justamente o exemplo que Mumford dá o
demonstra: os jovens do Decameron não fugiram em uma temporada prevista, mas no ápice
da Peste Negra.

Este tema ainda tem algo interessante. As cidades podem ser insalubres por conta das
crowd diseases, doenças que, sem outros vetores além do ser humano, só podem vigorar
onde eles se reúnem. Os assentamentos humanos são condição necessária para sua
irrupção, como ocorre com a varíola e o sarampo. E são, ainda mais antes das técnicas
modernas de saneamento e dos conhecimentos de higiene, como resultado do
amontoamento. Pelos seus processos excretórios coletivos. Pelo declínio das condições
higiênicas de moradia, como perda da ventilação e iluminação naturais. E pelo contágio
mais fácil de qualquer enfermo, via contato direto ou pelos vetores que se instalam nas
cidades, como ratos e pombos. Mas se essa é uma espécie de tensão crônica, que se
estabelece com a própria cidade, escapa a Mumford, por sua predileção clara por um
ambiente suburbano mais espraiado e menos adensado que as cidades, algo sumamente
importante. Fora o convívio com animais – a domesticação de cachorros, gatos, bois,
carneiros, bodes, porcos, cavalos, burros, galinhas, pombos, etc. – que aumentara
tremendamente o leque de enfermidades, em uma interação complexa e dinâmica, ainda

103
O GUAYCURU n.79, Sábado 8 de Fevereiro de 1845. Salvador: Typ. de José da Cosa Villaça, à Ladeira da Praça, n.1,
1844.
104
ARAÚJO, 2007; MELLO, Evaldo Cabral de. Canoas do Recife: um estudo de microhistória urbana. In: Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Vol.L, Recife, 1978. Publicação em convênio com o Departamento de
Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura, pp 67-103.
105
MUMFORD, Lewis. A Cidade na História. 2vol. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Ltda., 1965.

306
hoje em ação.106 Essa criação ocorria nas áreas rurais, e somente aquelas mais próximas,
nos seus tão elogiados subúrbios, poderiam ter efeito mais pernicioso, ao se propagarem
velozmente na cidade mais próxima. Os arrabaldes rurais eram condição propícia para essa
incubadora de doenças, e não sua solução. Longe desse entorno rural ser uma escapatória
momentânea da insalubridade da cidade, era parte de um sistema que, a médio prazo,
desenvolvia os patógenos e, a longo prazo, criava as soluções para tanto, naturais ou
artificiais, pela imunidade orgânica ou sistemas criados de saneamento, vacinação, etc.

Na historiografia baiana é recorrente a hipóteses das enfermidades, dos surtos de febre


amarela (1849-54) e cólera (1855), como motivo da “fuga” da cidade. Davam ocasião à
reinterpretação dos fatores ambientais, mostrando o quadro enfermiço da cidade
crescente.107 Visão que ganha reforço pelo testemunho de Vilhena:

Em primeiro lugar se arruína a saúde do povo da Bahia pelo ar corrupto,


que se respira das muitas imundícies, que por dentro da cidade se lançam
por diversas paragens, além das que há em quase todos os quintais, em
que percutindo o sol, faz subir aquelas partículas pútridas, de que impregna
a atmosfera, contaminando o ar; e tão contaminado está o desta cidade que
a experiência de todos os dias mostra, que é raro, o que pela primeira vez
vem a ela, não só dos sertões remotos, como ainda do seu recôncavo, e
vizinhança, que não adoeça mortalmente de bexigas, com especialidade,
sendo muito raro o que delas escapa [...] (VILHENA, 1969, p.154).

Parte da cidade era entendida, se não como insalubre, ao menos como desconfortável no
verão. A Cidade Baixa o seria, pelo seu extremo e crescente apinhamento em torno de uma
rua apenas, junto com todos os eflúvios que naturalmente vinham da atividade comercial, do
amontoamento humano abaixo e aos gritos, e dos efluentes domésticos jogados
diretamente nas águas que roçavam a beira do cais.

Confirmava Maximiliano de Wied-Neuwied, para quem a Cidade Baixa tinha “um mau cheiro
de toda espécie torna ainda mais incômoda”108 a canícula do verão. Diz Tollenare, em 1817,
com um tanto de exagero, que as pessoas buscavam fugir dali, mal concluídos os seus
negócios, todos “para a cidade alta ou antes para fora da cidade, porque quase todos os
negociantes só tem à beira-mar os seus escritórios e vivem no campo com as suas
famílias”.109 Não se deve crer em Tollenare tanto quando fala que não se morava lá
embaixo. Muitos dos comerciantes e empresários viviam acima dos seus estabelecimentos,
nos mesmos edifícios. E a fuga da cidade não valeria para a Cidade Alta, em especial a
partir de São Bento, e das muitas roças não tão distantes do centro da cidade, na segunda
cumeada, e já na Piedade, ao sul, e na Lapinha, ao norte.110

Porém o movimento estival precedeu as enfermidades (ao menos as grandes epidemias de


que temos notícia), o medo de seu contágio e, por extensão, a crítica à cidade. Não parece
ser a saúde esse principal motivo do deslocamento, nem para Salvador, nem para cidades
como Recife. Ao menos não o primeiro, sendo um reforço natural. Também a sua
amenidade nos verões, na canicular, seria bem-vinda para tal movimentação. Que
encontrara seu sítio principal na Península de Itapagipe, suas devoções próprias, região que
Vilhena considerava salubre e cujas fortificações achava propícias para prisões,
“Monserratte, ou S. Bartholomeu da Passagem, por ficarem pouco mais de meya legoa fóra

106
CROSBY, Alfrred W. Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras,
1993. DIAMOND, Jared. Guns, Germs, and Steel: the fates of human societies. New York/ London: W.W. Norton & Company,
1999.
107
PINHEIRO, 2002; ARAÚJO, Emanoel. Teatro dos Vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1993.
108
MAXIMILIANO, 1958, p.469.
109
TOLLENARE, 1956, p.281.
110
[...] e são o bairro de S. Bento, o mayor entre todos, e o mais aprazível; todo elle fica ao Sul sobre huma planicie, com
ruas espaçosas, aceadas, templos, e algumas propriedades nobres. (VILHENA, 1922a, p.36).

307
da cidade, em ares puros”.111 As enfermidades reais e presumidas, os prognósticos e os
diagnósticos, coletivamente compartilhados, puderam haver reforçado essa movimentação.
Apenas não as consideramos um fator decisivo, do contrário o fenômeno não seria geral,
independente dos surtos epidêmicos locais. E nem seria a face mais ostensiva, dada a
ausência de registros locais referentes à mesma.

Tampouco devemos esquecer do calor como uma possibilidade, ao menos um fator


agravante: “durante a estação seca, o calor é insuportável, principalmente na cidade
baixa”112, reclamava o príncipe Maximiliano, o que condiz com suas condições físicas:
ademais do apinhamento, instalava-se no sopé de uma falésia que bloqueava
completamente os ventos majoritários da cidade, vindos de leste e sul. Como encontramos
em prospecto da nova Companhia de Navegação a vapor, as excursões pela baía seriam
induzidas pelo “calor do clima”113 nessa época.

Para Freyre o hábito de viver permanentemente nos subúrbios seria de origem inglesa, por
influência dos mesmos, do ideal estético ou romântico da vida suburbana.114 A emulação
dos britânicos poderia concorrer, mas sequer aplicaria aos detalhes dos arrabaldes da
capital baiana. Vitória, sim, fora alvo de imitação, transformando as chácaras e casas de
campo anteriores em moradias, mas para primeira residência. O mesmo para a Graça.
Entretanto, nada disso valia para a Península de Itapagipe, onde não estavam esses
estrangeiros mais ricos. Alguns aculturados, de estratos mais baixos, como Fanchette, sim.

Portanto, a investigação da gênese do veraneio se encontra com algo mais arraigado, antigo
e complexo, o deslocamento estival, da qual emergiu. Se as peregrinações religiosas são
invariavelmente relembradas como o antecessor do turismo, reconhece-se o rol fundamental
das romarias no caso brasileiro. Havia um ritmo, uma pulsação, dada pelo ciclo das
estações e pelas atividades produtivas, e pelas formas de socialização e crenças profundas
que insuflavam os rituais religiosos. As hierofanias, estas irrupções da transcendência no
mundano, formavam centros de gravidade momentâneos.

Uma movimentação que tinha sua complexidade, não se restringindo a apenas dois pólos, o
campo e a cidade, mas um sistema, cambiante no tempo, onde Salvador se constituiu como
centro regional no século XIX. Essa foi a matéria-prima local da qual se apoderou a
vilegiatura e o veraneio moderno. Dentro dessa mudança de ênfase no Oitocentos que
casas-grandes foram revisitadas, revisitadas como quintas, e os arrabaldes foram animados
com essa visita de verão e eventos diversos. A vilegiatura foi literalmente a reinterpretação
de unidades produtivas de portes diversos como villas, ou, como se dizia, casas de campo.
E, como versões menores, mais breves e fugazes, os passeios de recreio ao longo da baía
e as patuscadas pelo entorno da cidade.

Assim começa a fazer sentido aquela investigação sobre as áreas verdes nas residências
dos baianos. Esse apreço e o labor consciente em criar tais espaços, algo que está sendo
revisado há tempos na historiografia brasileira mas ainda com poucos aportes ao caso da
capital da Bahia, é necessário para entender os passos subseqüentes.

Como um cubo de papel que vai se desdobrando, face a face, até estender-se em um plano
por completo, a vida privada das famílias abrir-se-á para constituir o litoral como um tipo
singular de espaço público.

111
VILHENA, 1922a, p.154.
112
MAXIMILIANO, 1958, p.469.
113
O CORREIO MERCANTIL n.23, Segunda-Feira 28 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
114
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil: aspectos da influencia britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. São
Paulo/ Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1948.

308
A circulação pelas áreas adjacentes da cidade e da baía deixará de ser um ativismo entre
homens adultos, como na caça, e passará a passar a envolver esposa e filhos, com um
protagonismo dos jovens.

Primeiro, aqueles quintais e roças não eram espaços criados apenas na envoltória imediata
da cidade, naquela pele estreita dos sobrados que faceavam as ruas e largos, e sequer no
entorno rural. Apareciam mais distantes, demandados para passar os tempos de estio,
ganhando mais e mais a feição de um prazer. Ademais, quando a família sai, em grupos
crescentes, de modo mais explícito, e exposto, será para tais áreas campestres nas
patuscadas. As roças deixam de ser domínios familiares, e tornam-se o conjunto dos sítios e
fazendas. É espírito similar que mobiliza as famílias para travessias náuticas, para visitar
sedes de fazenda ou fazer passeios de recreio. Em todos esses, a animação da bebida, da
comida, da música e a dança.

Um dia, e por outros motivos, mais festivos, o Passeio Público, começaria a cumprir seu
projeto inicial, essa área arborizada, tão encantadora como eram os quintais, mas
francamente pública, e não afim aos modos e costumes dos baianos.

Como dito, as invocações que orientaram a movimentação de verão para os arrabaldes, e


algo pela Baía de Todos os Santos, estavam em boa parte ligadas ao mar. Ao mesmo
tempo, são o próprio conteúdo de uma história cultural do mar na Bahia, como a condição
preliminar que ditou os rumos da vilegiatura marítima e do veraneio. Explica-se assim a
preferência por arrabaldes litorâneos. E, destas, o caso mais expressivo é o do Bonfim, e da
Península de Itapagipe, onde Passé tinha não uma, mas duas casas. E isso que veremos a
seguir.

309
7
Dias de Festa no Mar

Em todos os templos antigos da cidade, erguidos à orla do lagamar de


Todos os Santos, – Monteserrate, Boa Viagem, Bomfim, Mares, São
Francisco de Paula, Corpo Santo, Conceição da Praia e Santo Antônio da
Barra, – são veneradas as imagens dos respectivos oragos e titulares pela
gente do mar; navegantes, pescadores, e remadores do porto, desde os
primórdios da nossa história. [...]

Ajuntem-se àqueles templos as capelas de Sant´Ana do Rio Vermelho, de


Nossa Senhora dos Mares da Lagôa, e de Nossa Senhora da Luz, na
Pituba, situadas na costa atlântica, fora da barra. (CAMPOS, 1941, p.381).

Pela sua história, cidades como Salvador tinham santuários acompanhando o bordo
marítimo, rentes ao mar ou a cavaleiro, independente dos santos abrigados. Ademais, na
Salvador colonial grande era o peso do mar. A começar pelos pescadores: canoeiros nos
rios do complexo estuarino, jangadeiros na costa, caçadores de baleia.1 Mas também havia
o transporte local e regional, na Baía de Todos os Santos com os saveiristas e na
cabotagem, e depois nos vapores.

As hierofanias são imprevisíveis por definição. Podiam acontecer em locais ermos, levando
à construção de ermidas, santuários, etc., atraindo peregrinos e romeiros.2 Estes, para
cumprir promessa ou serem abençoados pelas virtudes miraculosas da visão de um ícone,
das águas de uma fonte, da pegada de um apóstolo, percorriam quilômetros, em condições
precárias, hospedados em casas de conhecidos ou em abrigos muito simples. Esta devoção
se mesclava com festejos, de cunho mais profano, levando a motivos ambivalentes para a
jornada.

Mas estava claro que em uma cidade tão profundamente dependente do mar e dos rios para
a aquisição de seus recursos essenciais, em sua conexão com o seu hinterland e com o
mundo, não seria inaudito que as intervenções divinas ocorressem nesse meio, por santos
ligados ao mar ou que o incorporariam ao seu quinhão de atuação ao realizar milagres,
expandindo sua jurisdição a partir de sua performance.

O dado é que havia uma série de riscos ligados ao mar. Como observara João da Silva
Campos, “os cristãos fervorosos não empreendiam jornada marítima sem muitas preces e
promessas a Deus, a Nossa Senhora e aos de sua devoção”.3 Nas viagens pela baía,
passando-se defronte de templos, demonstrava-se a fé e solicitava-se as boas graças para
essa situação delicada.

Já era o final da tarde, quando velejamos pelo Boqueirão. Uma capela,


situada na paria da ilha pela qual passávamos ao largo, despertou
sentimentos religiosos em todos. Os chapéus foram retirados, orações
foram murmuradas e em seguida foram feitos os sinais da cruz. A esta

1
Evidentemente, existem modalidades as mais diversas, inclusive aquelas que se fazem nos arrecifes. Os riscos correrão para
aqueles que se aventuram a alto-mar. A oferta do pescado será mais geral.
2
Hierofania é conceito empregado largamente por Mircea Eliade em suas obras para designar a irrupção do numinoso no
mundano, do sagrado no não-sagrado, isto é, o puramente mundano (ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões.
São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008). Uma hierofania pode ser um lugar, um ente específico (como uma árvore), uma
categoria de entes (como uma espécie de árvores), uma pessoa, de modo bastante aberto e mesmo imprevisível.
3
CAMPOS, 1941, p.136.

309
edificação religiosa dirigiram-se súplicas pela continuidade de uma viagem
segura. (HUELL, 2009, p.201).4

Mesmo a costa poderia ser fustigada pelas intempéries, daí a necessidade de apelar a
poderes extraterrenos.

Quando as alterações do mar não eram sinais cósmicos da vinda de flagelos, como foram
as marés sobreelevadas, por três dias consecutivos, que para Rocha Pita anunciavam a
epidemia de bexigas que se seguiu.5 Wetherell descreveu os raros, porém imponentes,
temporais que vinham de oeste, fustigando o porto da cidade, e as casas na estreitíssima
Cidade Baixa: “torrentes de água despejam-se sobre a cidade, acompanhados de
incessantes trovoadas e relâmpagos enquanto o vento sopra em furacão”6, afundando
barcos e, às casas, arrancando suas telhas e rompendo suas janelas. Ou o próprio Rocha
Pita, quando falou de “luzente horror de raios e trovões” que acometeu o porto em certa
ocasião.7

Apesar de ser uma preocupação geral da cidade, eram os marítimos os devotos cativos
dessas potestades, e cabe a atenção a suas celebrações, muito longe de serem
circunspectas. Muitas aos pés da Cidade Alta, próximas, no entanto com escassos relatos,
mesmo os mais gerais.

Geraldo J. A. Coelho Dias, abordando a religiosidade dos trabalhadores do mar, identificou


como elementos constitutivos de seus rituais: o templo (igreja ou capela): o romeiro; sua
promessa; a romagem (que chamamos de “romaria”); e a festa.8 Aqui distinguimos as
formas de deambulação, para maior precisão, ao menos nesta tese.

Nas procissões se carregava o andor do santo da devoção de um santuário a outro,


visitando um terceiro em sua homenagem de vez em quando, com ritos e festejos no
embarque e desembarque, e às vezes efusivo acompanhamento, de nautas e espectadores
em terra, com tiros e fogos de artifício. Em alguns casos, o percurso marítimo se
complementava com um percurso por terra.

As romarias, por sua vez, não eram um ponto programático, mas em muitos casos uma
necessidade dada pela distância e pela dificuldade e lentidão da viagem por terra. Mesmo o
Bonfim, hoje compreendido como próximo, era acedido por barcos, até porque o
desembarcadouro ficava no sopé do santuário.9

Havia uma terceira, particular e importante nas festas dos marítimos: as corridas, de canoas,
jangadas e saveiros. Antes da chegada dos esportes já existia como recurso constante entre
aquela população em suas festas. Em Jana e Joel, de Xavier Marques, após uma procissão
que aportara em Itaparica e uma missa, procedeu-se a uma corrida de canoas onde um dos
protagonistas, Joel, mostrou seu valor.10 No romance Mar Morto, de Jorge Amado, o
saveirista Guma aposta uma corrida e vence; não se trata de um rito coletivo, mas a
competição ocorre.11 A literatura de ficção captura sentimentos que decerto existiam, o
carinho do marítimo pela própria embarcação, companheira de jornadas, fortuna e

4
O editor, Jan van Holthe, estima que fosse a capela de Nossa Senhora do Loreto, na Ilha dos Frades.
5
ROCHA PITA, 2013, p.273.
6
WETHERELL, s/d, p.57.
7
ROCHA PITA, 2013, p.467.
8
DIAS, Geraldo J. A. Coelho. O Mar e os Portos como Catalizadores de Religiosidade. In: O Litoral em Perspectiva Histórica
(Séc. XVI a XVIII). Porto, Instituto de História Moderna, 2002, p.275-283, p.280.
9
E o povo subia em chusmas, trazido em vapores ao “Porto do Bonfim”, para encher a praça e as ruas de ruídos e danças.
(PÍNHO, 1937, p.616).
10
MARQUES, 1976a. O escritor fala “romaria”; em nossa terminologia, é uma procissão.
11
AMADO, Jorge. Mar Morto. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, s/d. O livro foi escrito em 1936. Embora sem uma
data que o precise, e narrando uma história com ares míticos, que seria contada e recontada “na beira do cais”, traz
elementos que a ambientam nesse mesmo período, como falar na “feira de Água dos Meninos, a maior da Bahia” (AMADO,
s/d, p.58).

310
infortúnios e, na corrida, o orgulho pela habilidade pessoal e a busca do reconhecimento
pelos pares.

Uma outra era a entrega de presentes, particular ao culto à Mãe d´Água.

Essa movimentação geral – romarias, procissões, corridas, entrega de presentes –


estabelecia a conexão entre uma cidade estabelecida e arrabaldes mais ermos, realizada
por mar, implicando ainda em maneiras peculiares de se relacionarem com o território, neste
caso litorâneo, e mesmo entrelaçando comunidades de pescadores, consolidando-os no
espaço e entre si.

Uma característica comum dos rituais e festejos e de seu caráter híbrido é a Lavagem
propriamente dita (que por antonomásia se tornou o nome dado à festa de largo como um
todo). Era comum a limpeza do edifício, com a caiação das paredes, a pintura das janelas, a
limpeza das alfaias pelos ourives, a lavagem das imagens e do chão pelas mulheres, prática
de origem portuguesa, sempre repetida nas festas. Areia e folhas para atapetar o chão
também eram comuns. E a busca da água nas fontes próximas, da areia e das folhas
tornavam-se, elas mesmas, deambulações rituais incorporadas no conjunto. Por exemplo,
nas festas de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã ocorria essa dupla jornada em busca
de areia e água.12 Por ser Itapuã a parte ocupada do que então eram os Lençóis de Itapuã,
belo conjunto de dunas, a areia se recolhia ali, exatamente no morro do Vigia. No festejo da
padroeira da Pituba, no século XIX, remota vila de pescadores, essa necessidade se
converterá em uma atividade praiana própria.

A compreensão dessas festas no século XIX possui problemas particulares. Um deles é que
os festejos mais humildes, das pequenas povoações de pescadores, e suas procissões de
uma localidade a outra, fundamentais para nossa investigação, têm poucos registros. A
outra é que as festas possuem seus próprios apogeus, daí que a extrapolação das
informações espaçadas deve ser realizada com cautela.

7.1. Os Santos dos Pescadores


Bençãos eram solicitadas para certas atividades marítimas. Antônio Alves Câmara, ao
descrever a pesca no século XIX, dava detalhes curiosos: que a pesca do xaréu começava
na Armação do Gregório no dia 8 de setembro, quando festejavam a Natividade de Nossa
Senhora, com um padre na véspera abençoando, com uma imagem de Jesus Cristo, a rede
e a jangada que, por sua vez, tinha uma bandeira com a figura de São Francisco, o
padroeiro da Armação.13 No dia 8 fazia-se a missa na capela do lugar e se realiava à festa,
análoga àquela das botadas, onde o padre abençoava os instrumentos de trabalho para
uma temporada próspera.

O mesmo se repetia na temporada de caça das baleias. Escolhia-se um dia santo, 13 de


Junho, dedicado a Santo Antônio. As baleeiras, que ficavam encalhadas na praia, com uma
simples cobertura de palha, de repouso durante o verão, eram embandeiradas, fazia-se
romaria e missa.14 Frei Vicente do Salvador dava outros detalhes.

[...] no dia de S. João Batista começam a pescaria, dizendo primeiro uma


missa na ermida de Nossa Senhora de Montserrat, na ponta de Tapuípe, a

12
MEIRELLES, Edison de Palma. Itapuã do Passado. Salvador: s/d b. O mesmo Edison de Palma Meirelles lamenta a perda
dessa inocência. O motivo é relevante: a adoção de outro formato de evento de rua, com outros elementos e, sobretudo,
espírito. Plasmava-se o novo Carnaval da Bahia, com seus trios elétricos, replicado em todas as festas populares.
13
CÂMARA, Antônio Alves. Pescas e Peixes da Bahia. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1911, p.40.
14
CÂMARA, 1911, p.70.

311
qual acabada o padre revestido benze as lanchas, e todos os instrumentos,
que nesta pescaria servem, e com isto se vão em busca das baleias [...]
(VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.318).

E mesmo antes de cada caçada, como vira Ver Huell: assim que avistavam as baleias, as
chalupas “sob uma torrente de orações, eram solenemente aspergidas com água benta por
um religioso”.15

Também a onomástica das embarcações e das tendas nas festas de largo, seria reveladora
do culto.16 Como anúncio de 1839 que mencionava sumaca chamada Bom Jesus dos
Mares, depois renomeada para Bonfim, duas claras invocações de patronos dos
marítimos.17 Apesar destes apontarem para a presença de culto específico, é preciso
cautela: nos anúncios de embarcações que rastreamos foram esses os raros nomes que
podem ser assim interpretados.

Por último cabe citar um festejo específico, de origem medieval: a Chegança, onde se
reproduziam as lutas de reconquista contra os Mouros. Ocorriam em festas diversas, como
as de Reis, no São João, no 2 de Julho; Nossa Senhora da Purificação de Itapuã e
Sant´Anna no Rio Vermelho, além do ciclo do Bonfim.18 Importa a Chegança na medida em
que um dos protagonistas eram os Marujos, espelho evidente das localidades de
pescadores, onde persistiram, quando encenava tais atos em suas próprias festas.

7.1.1. Os Santos Tradicionais


Na tradição portuguesa, Dias observa que a devoção dos marítimos se concentra em “Jesus
como Salvador e a Maria, mãe de Jesus e a Senhora Nossa”.19 Destacaremos os aspectos
que coincidem com os festejos que conhecemos em Salvador. Cristo aparece, aqui pelo
menos, como o Senhor Bom Jesus dos Navegantes. Sem que Dias o mencione, sabemos
que a devoção de Nosso Senhor do Bonfim também tem um apelo a essa população.

Já Nossa Senhora é invocada sob a feição de Senhora da Boa Viagem, Senhora da Guia,
Senhora da Luz, da Penha. E, ausente de sua listagem, tem a evidente Nossa Senhora dos
Mares, a quem era dedicada capela de engenho em Amaralina. Esta invocação era cultuada
em templo próprio em Itapagipe, e também no Rio Vermelho, quando era ainda inteira a
antiga Igreja de São Gonçalo.

Antigamente era o rio Vermelho muyto tromentoso, & se experimentavão


nelle muytas perdiçoens, & naufragios; mas depois, que a Senhora dos
Mares foy collocada naquella Ermida, nunca mais se vio agastado aquelle
rio, temeo sem duvida, offender aquella Senhora, que he a Mãy dos
pescadores, & a Protectora dos navegantees, & como subdito seu a
começou a respeytar tanto, que de todo reprimio as suas iras.

Não tem esta Senhora Irmandade que a sirva, & assim não tem dia
particular, para se celebrar a sua festa; tudo isto naicerá da frieza da sua
devoção daquelles vizinhos, he muyto, que confessando todos, que reprimio
as furias do rio Vermelho, que tanto com ellas os molestava, não acabão de
se mostrar agradecidos, para lhe dedicarem hum dia certo, em que por
agradecidos a festejem. Os que por beneficiados, & agradecidos dos

15
HUELL, 2009, p.172.
16
Sobre as onomásticas das embarcações, Dias (2002, p.283). A atenção antropológica às tendas se fará no século XX,
encontrando sinais vários do culto a Yemanjá.
17
O CORREIO MERCANTIL n.110, Sexta-Feira 24 de Maio de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
18
Sobre o São João, Querino (1955a, p.63); sobre as festas de Itapuã, Meirelles (s/d). E do Rio Vermelho, Garcia (1923, p.283)
e RIO VERMELHO... 1988.
19
DIAS, 2002, p.280.

312
favores que desta Senhora receberão, quando nos perigos a invocarão, são
os que algumas vezes lhe mandão celebrar algumas Missas cantadas,
naquellas occasioens, em que a podem fazer, em final de reconhecimento
de os haver favorecido. (SANTA MARIA, 1722, p.55).

Ao menos em Salvador uma outra feição de Nossa Senhora tinha recorrência entre os
pescadores: a da Conceição. Encontramo-la na Conceição da Praia e em Itapuã, localidade
onde a pesca jogava um forte papel. Apesar de sem irmandade que lhe organizasse a
devoção, a imagem de N. Sra. da Conceição de Itapagipe de Cima, no alto da Montanha
(talvez razão do nome do Engenho da Conceição e do seu tanque homônimo) tinha seus
devotos entre os moradores da península abaixo, ao menos no século XVIII.20 Era a
invocação sob a qual os pescadores de Barra Grande faziam sua festa principal, a 2 de
fevereiro, e os da Penha, Barra do Gil e Barra do Pote, todos em Itaparica, durante o
período do Carnaval, na segunda metade do século XIX.21 E ainda, mais obscura e remota,
um ícone e culto de Nossa Senhora da Conceição da Camboa no Porto da Gamboa.22

Na hagiologia cristã havia santos ligados à faina do mar, e destacamos São Pedro, assim
como São Pedro Gonçalves Telmo ou simplesmente São Telmo ou Sant´Elmo, em especial
pelos castelhanos23, e normalmente cultuado em igrejas chamadas do Corpo Santo.
Salvador não era diferente. Na igreja do Corpo Santo estava a devoção a esse santo, a a
quem “os navegantes em os seus perigos, & tormentas invocão com o nome do Corpo
Santo”.24

São Pedro, o apóstolo pescador de homens, tinha uma pálida presença na distante
localidade de Itapuã. Todos os anos, no dia 29 de junho, na manhã do dia de São Pedro,
pescadores junto com ganhadeiras, mandavam celebrar missa festiva em sua homenagem
na Igreja de N. Sra. da Conceição de Itapuã. Desta missa não podemos assinalar a
antigüidade.25

E havia São Gonçalo.

7.1.2. O Caso de São Gonçalo do Amarante


Um festejo colonial de suma importância aqui é o de São Gonçalo do Amarante. Por conta
dessa devoção havia uma expressiva visita pioneira ao Rio Vermelho, sem continuidade no
Oitocentos, inclusive com o arruinamento de sua igreja e a amnésia toponímica.

Talvez fosse igreja levantada no mesmo sítio, ou muito próxima, de ermida construída pelos
jesuítas, a “igreja do Rio Vermelho”, no primeiro século da cidade.26 João da Silva Campos
diz que a igreja pertenceria aos beneditinos, junto com terras nas redondezas e a armação
de xaréu abaixo, e conjectura que o frei Agostinho de São Gonçalo, padre que legara ao
Mosteiro de São Bento aquelas propriedades, poderia ter sido o seu fundador. Fernando L.

20
[...] a sua festividade se lhe faz em oyto de Dezembro, para o que concorrem os seus devotos; não tem Irmandade, que
a sirva, mas todos aquelles moradores de Itapagipe tem muyta devoção com esta Senhora. (SANTA MARIA, 1722,
p.75).
21
CÂMARA, 1888, p.49.
22
SANTA MARIA, 1722, p.57.
23
CAMPOS, 1941, p.245.
24
SANTA MARIA, 1722, p.99.
25
MEIRELLES, s/d b, p.31.
26
QUADRIMESTRE DE SETEMBRO DE 1556 A JANEIRO DE 1557 PELO IR. ANTÓNIO BLÁZQUEZ
[Baía 1 de janeiro de 1557]
[...]
6. O que em ordem despois disto socedeo, foy a fundação da igreija do Rio Vermelho, pera cujo principio ordenou o
P.e. Antonio Rodriguez que em muy breve com a graça do Senhor e ayuda dos Indios fez huma hermida junto de sua
Aldea, situada em hum outeiro, um tiro do mar, ao pee do qual estava hum rio que os Indios chamão Camarajipe, que
em nosso vulgar chamamos Rio Vermelho. (LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae II (1553-1558). Roma: Monumenta
Historica Societatis Iesu, Via dei Penitenzieri, 20, 1957, p.350).

313
Fonseca estipula a origem do templo entre os séculos XVI e XVII.27 O grande depoimento
que temos é o de Gentil de La Barbinais, que em 1718 foi convidado pelo vice-rei a passar
três dias naquela localidade, distando uma lágua da cidade. Foram à Igreja de São Gonçalo
do Amarante. Mal chegando, e foram tomados por uma multidão que dançava ao som de
violas. Agarraram o vice-rei e o fizeram dançar e saltar com eles, e saudar o santo.

A Igreja de São Gonçalo é construída sobre uma colina que se estende até
a beira-mar; ela é cercada de bosques, onde os portugueses tinham
montado tendas. Todos os cortesãos da cidade se retiraram para lá: tudo
que se ouvia eram gritos de regozijo, e os concertos de harpas e violas. [...]
O vice-rei tinha suas tendas no meio de um pequeno bosque de laranjeiras
a um quarto de légua da igreja. Tivemos boa comida por três dias [...] (LA
BARBINAIS, 1728, p.155 – tradução nossa).28

A festividade ocorria dentro e fora da igreja, com teatro montado defronte do templo, no Alto
de São Gonçalo, toponímia extinta, alcançado pelas cumeadas, provavelmente vindo por
Brotas, pelo Caminho Grande (Figs.168 e 169). Os visitantes ali – e Barbinais estimava
entre 500 e 600 “compatriotas portugueses, que haviam abandonado suas casas para
participar da festa” – montavam tendas, provavelmente telheiros improvisados com folhas e
palha, como nos demais eventos. Não comenta em nenhum momento a vila abaixo, e
sequer teria aposentos e condição de receber aquele público. Podemos pensar que acima
se instalava o que depois se chamaria arraial, o arranjo de tendas e barracas em
assentamento efêmero em função do evento. O Vice-Rei Vasco Fernandes Cesar de
Menezes ficou em meio a laranjais, decerto na casa de vivenda de alguma fazenda. Foram
três dias de festejos, com uma multidão – em dado momento, estimados entre 500 e 600 –
que, sem caber no templo, fariam suas festas fora.29 Embora houvesse efusões no interior
da igreja (Fig.155). É um exemplo antigo, e que mobilizava todos os estratos da sociedade,
de uma festa religiosa em um povoado pequeno, distante da cidade mas ao alcance sem
maiores dificuldades. Tudo indica que ocorria independente da sua situação portuária,
embora pudesse auxiliar na chegada dos festeiros: Gregório de Mattos, com ao menos três
poemas tratando daquelas festas, fora por terra.30

Ocorria em um dos templos que se postavam altaneiros sobre o mar, como aconteceria no
Alto de São Lázaro. À diferença desta, com extrema popularidade. E o motivo estava no seu
conteúdo: São Gonçalo do Amarante era um dos santos casamenteiros, e incorporava
elementos e rituais derivados das antigas festas pagãs da fertilidade. Em uma sociedade
onde o casamento era o único caminho de uma vida a realizar-se por parte das mulheres, e
a única chance de continuidade da família no caso desta só possuir herdeiras. Daí o caráter
fortemente lúbrico de algumas de suas manifestações.31 O culto setecentista, especula João
da Silva Campos, deveria seguir os rituais e a mecânica usuais do santo casamenteiro: os

27
FONSECA, Fernando L. Algumas Igrejas Bahianas. Salvador: s/d, 1961, p.26.
28
L´Eglise de San Gonzalés est bâtie sur une Coline que s´étend jusque sur le bord de la mer: elle est entourée de
Bosquets, où les Portugais avoient dresté des Tentes. Toutes les Cortisannes de la Ville s´y étoient retirées: on
n´entendoit par tout que des cris de réjouissance, & des concerts de Harpes & de Guitarres. [...] Le Viceroi avoit fait
dresser ses Tentes au milieu d´um petit Bois d´Oranges à um quart de ligue de l´Eglise. On y fit bonne chere pendant
trois jours [...] (LA BARBINAIS, Gentil de. Nouveau Voyage au Tour du Monde. Tome 3, Paris: Chez Briasson, rue Saint
Jacques, à la Science, 1728, p.155).
29
Existe uma confusão habitual quanto às festas daquela igreja, baseado no depoimento de Gentil de La Barbinais. Interpreta-
se o termo Loudun como forma arcaica, e entendida por um francês, de lundu. Por exemplo, Cid Teixeira recai nesse erro
(TEIXEIRA, 1986, p.99). Na verdade, referia-se o autor a outra coisa, a um famoso episódio do que se acreditava ter sido
possessão demoníaca das freiras ursulinas em Loudun, no ano de 1634.
30
Deste, o único que menciona algo é intitulado/ descrito como Descreve o poeta huma jornada que fez ao Rio Vermelho com
huns amigos e todos os acontecimentos (GREGÓRIO DE MATTOS, p.583, s/d) é literal, fazendo burla de episódios no
trajeto, e com uma fugaz menção apenas à “missa do Santinho”, descendo em seguida para “o porto das jangadas”, no Rio
Vermelho. A missa fora apenas um pretexto para uma aventura. Por isso não é uma testemunha fecunda sobre as festas.
31
Acreditamos que outros motivos convergiram para sua importância na cidade, que serão vistos em maior profundidade no
próximo capítulo.

314
cortejos de pastorinhas esmolando, recolhendo dinheiro para custear as festas, e outras
procissões com a bandeira do santo, acompanhando com bandos de músicos.32

Figura 153 – Planta da cidade de São Salvador (1894), de Adolfo Morales de los Rios. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. Embora a planta mostre o núcleo mais consolidado da cidade, aparece
um caminho para o Rio Vermelho. Entroncava um caminho vindo do Largo das Sete Portas,
urbanizado por conta da Rua da Valla; um caminho que descia da Igreja de Nossa Senhora de
Nazareth e Ladeira da Fonte Nova das Pedras, no fundo de um vale, subindo rumo a Brotas.

32
CAMPOS, João da Silva. Tradições Bahianas. In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia, n.56, 1930.
Salvador: Secção Graphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1930, p.396.

315
Figura 154 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de
Carlos Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. Os antigos caminhos ao Rio Vermelho estão
marcados em vermelho, antes do advento do bonde.

O povoado ser marítimo não deve, porém, ser inteiramente descartado. A ermida ainda
guardava outras imagens e o seu culto. Um deles era o de N. Sra. dos Mares.33 A imagem
seria muito antiga e, encontrada nas praias, foi reconhecida por essa invocação.
Responsável por acudir aos marítimos de lá, era de sua lavra mudanças mais permanentes,
como apontava Frei Agostinho de Santa Maria. E ainda a de Nossa Senhora do Livramento,
imagem trazida por marítimos por seus milagres. Guardemos por ora essas devoções
ligadas aos trabalhadores do mar, e a coincidência aparente de estarem sediadas na capela
de São Gonçalo.

33
SANTA MARIA, 1722, p.54. As informações deste parágrafo têm este autor como fonte.

316
Figura 155 – Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Aqui aparecem: o caminho de Brotas; aquele que, da Boa Vista
de Brotas entronca com a Estrada da Federação; a Estrada da Federação e o caminho do São
Lázaro, percorrendo a beira-mar.

317
Figura 156 – Gravura da obra de Gentil de La Barbinais. Fonte: LA BARBINAIS, 1728. Aqui se
mostram as efusões no interior da Capela de São Gonçalo do Amarante

O culto no Rio Vermelho desapareceu no século XVIII, sob a investida do governo, que
coibiu o que tomou por excessos:

Por isso o Conde de Sabugosa, Vasco Fernandes Cesar de Menezes,


estando governando a cidade da Bahia, por umas festas, que se
costumavam fazer pelas ruas publicas em dia de São Gonçalo, de homens
brancos, mulheres e meninos, e negros com violas, pandeiros, e adufes,
com vivas e revivas São Gonçalinho, trazendo o santo pelos ares, que mais
pareciam abusos, e superstições, que louvores ao santo, as mandou
prohibir por um bando, ao som de caixas militares com graves penas
contras aquelles que se achassem em semelhantes festas tão
desordenadas. (PEREIRA, 1939, p.114).

Não foi a causa única, já que o mesmo Conde tentou igualmente coibir as efusões do
Entrudo e das festas juninas, sem aparente resultado.34 Se estes se mantiveram ao passo

34
E da mesma sorte evitou as demasias do entrudo, e os excessos das festas de São João Baptista, tanto pelo grande
gasto de polvora, que se fazia nos tiros das espingardas, e foguetes, desde as vesperas até o dia do santo, que já não
havia quem se atrevesse andar pelas ruas, pelo risco do fogo, e mortes, que tinham acontecido [...] (PEREIRA, Nuno
Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Vol II. 6ed. Completada com a 2ª parte, até agora inédita,

318
que o culto a São Gonçalo não, é sinal de que minguavam as forças que lhes estavam por
trás, ao menos dessa feição mais intensa.

Os ícones não eram meras representações, mas eram quase como uma pessoa, a
expressão do próprio santo, daí seu culto poder migrar de uma área a outra da cidade,
dependendo do deslocamento físico da figura. Foi o que ocorreu com o santo, cujo culto se
trasladou para outros templos.

Enquanto isso, a capela de São Gonçalo no Rio Vermelho seguiu sua lenta dissolução
física. Mencionado por Vilhena entre as filiais da igreja matriz da Vitória, já estava ausente
na Corographia de Domingos Rebello, de 1826, localizando Campos nesse interregno o
momento do abandono definitivo da igreja.35 Antonio Garcia asseverava que suas ruínas
existiam em 188136 (Figs. 157 e 158). Campos testemunhou no início do século XX ainda
seus alicerces e que escavações no outeiro, na gestão do prefeito Pacheco Mendes, no
intuito de nivelar a área, encontraram-se ossadas no que seria o interior e o adro da igreja,
que permaneceram ainda ali, aflorando ao solo, por “muito tempo”.37

Há dois trabalhos de importância na historiografia baiana sobre esse culto e seus templos
posteriores: o de João da Silva Campos, de 1930, intitulado Tradições Bahianas, e o de
Fernando L. Fonseca, de 1961, Algumas Igrejas Bahianas. Ambos lidam com o antigo
templo, com devoção ao mesmo na Basílica do Bonfim já como parte do seu ciclo de festas,
e com a capela de São Gonçalo do Retiro, abandonada quando Fonseca a visitou, datada
do século XVIII pelo que estimava João da Silva Campos, e que teria pertencido à antiga
fazenda São Gonçalo, parte da Casa de Niza, depois comprada pela Companhia do
Queimado, e por cujas terras corria estrada que ia à Boca do Rio38. No entanto,
encontramos mais vezes, embora por menções ligeiras, sinais da devoção em outros sítios.
E alguns documentos antigos.

Na Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem estava a imagem do santo, e se fazia festa de
porte, talvez a maior dentre as que eram sediadas ali:

[...] e a terceyra, que he a do gloriozo S. Gonçallo; e nesta há procissão,


em que vay a Imagem do Santo, para a qual, (que he no seo dia de tarde)
vay da cidade hum grande concurso de povo, e tem o Santo obrado varios
prodigios a favor dos seus devotos, e pelos quaes logo desde os principios
que alli se collocou a sua Imagem foi buscado, e servido com grande
devoção. Fazem-se estas festas todas a esmollas, e concurrencia dos
devotos, e com muita especialidade dos navegantes a da Senhora da Boa
Viagem. (JABOATAM, 1859, p.298).

Guardemos para logo adiante a invocação da capela onde está o ícone: N. Sra. da Boa
Viagem. Chama a atenção que ainda atraísse devotos, em procissão, em “grande concurso
de povo”, realizando lá seus milagres, destacando-se do orago do templo e a Nossa
Senhora das Necessidades.

Havia menções que não costeiras. Em 1844, como vimos, anunciava em jornal uma
Devoção ao Glorioso São Gonçalo de Nazareth, no arrabalde homônimo, fazendo as

acompanhada de notas e estudos de Varnhagen, Leite de Vasconcelos, Afrânio Peixoto, Rodolfo Garcia e Pedro
Calmon, em dois volumes. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1939, p.114).
35
VILHENA, 1922a, p.36.
36
GARCIA, Antonio. A Festa dos Jangadeiros. In: Revista do Instituto Geographico e Histórico da Bahia, n.48, 1923. Salvador:
Imprensa Official do Estado, Rua da Misericórdia, n.1, 1923, p.283.
37
CAMPOS, 1930, p.398.
38
FONSECA, 1961, p.23. CAMPOS, 1930, p.532. Normalmente a Festa de São Gonçalo ocorria a 28 de janeiro. Porém nem
sempre isso acontecia.

319
tratativas da organização das novenas e festas do santo.39 Porém as demais eram
claramente relacionadas ao labor do mar.

Ubaldo Osório falava pelo menos de dois rituais distintos em Itaparica.40 Um deles, em fins
do século XVIII, em São João de Manguinhos, onde os devotos cantavam e festejavam nas
praias quinze dias antes da festa. E em Pirapitingas, as jornadas de São Gonçalo, levando-
se o santo na nau da frente, até a praia de Armação do Tairu, onde se realizava uma pesca
afamada, para retornar a Pirapitingas. A procissão relacionava-se abertamente com a fartura
do mar. Também em Itaparica os canoeiros de Baiacú faziam sua festa principal na data
desse mesmo santo, na segunda metade do século XIX.41

E Manuel Querino que nas festas do Rio Vermelho era conduzida, junto com as imagens de
Nossa Senhora da Luz, do Deus Menino e de São Benedito, uma de São Gonçalo.42 Ou
este anúncio de 1840, na Barra:

– Os festeiros do glorioso S. Gonçalo da Barra, convidão os devotos do


mesmo Santo para assistirem ao fogo artificial, que ali deve ter lugar na
noite de hoje 29 do corrente, no largo aonde se está construindo a memoria;
e fazem sciente aos mesmos devotos, que nessa noite devem acabar os
leilões, que com tanto explendor se tem feito no presente anno.43

Essa pluralidade de expressões escapara da diminuta historiografia local sobre o santo. A


abordagem majoritária, no Brasil, sobre a devoção a esse santo o identifica como um culto
popular e rústico que se recolheu ao interior, tal como no Nordeste.44 Albino Gonçalves
Fernandes observava que era um culto do interior de Pernambuco, com uma notável
exceção: um aglomerado de pescadores, em Itapissuma, perto de Itamaracá, que venerava
o santo em procissão de jangadas, acompanhado devidamente da decoração e foguetório.45

Beatriz Catão Cruz Santos notava também essa presença difusa do culto ao santo entre
pescadores. Rastreando a história de sua devoção, encontrou que após a intercessão
miraculosa salvando o filho de D. João III, teve sua canonização solicitada à Santa Sé pela
Coroa, recusada. Até hoje ele é apenas Beato, mas o povo e a tradição o canonizaram por
sua conta. A recusa em reconhecê-lo como santo não arrefeceu o culto. No século XVII,
depois de Santo Antônio, ambos portugueses de origem, era profundamente identificado
com a nação e querido pela população, difundido pelo Império por meio dos dominicanos,
franciscanos e jesuítas.46

A presença colonial disseminada do santo poderia ser entendida já por esse prisma. Porém,
e os homens do mar?

Dias mencionava, de passagem e sem mais detalhes, São Gonçalo como um dos santos
próprios dos pescadores.47 Santos defende que havia a correspondência, e confusão, com

39
O GUAYCURU n.87-88, Sábado 29 de Março de 1845. Salvador: Typ. de José da Cosa Villaça, à Ladeira da Praça, n.1,
1844.
40
OSÓRIO, Ubaldo. A Ilha de Itaparica – história e tradição. 4ed. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1979.
41
CÂMARA, 1888, p.49.
42
QUERINO, 1955a, p.137.
43
O CORREIO MERCANTIL n.49, Sábado 29 de Fevereiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
44
FERNANDES, Albino Gonçalves. O Culto a São Gonçalo do Amarante, seu Culto entre Portugueses e Luso-Descendentes
do Nordeste Brasileiro. In: Ciência & Trópico, Recife, vol.7, n2: 201-236, jul/dez, 1979. Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
1979. Disponível em: <https://periodicos.fundaj.gov.br/CIC/article/view/217/0>. ATTA, Dilza. A Roda de São Gonçalo na
Região do Médio São Francisco, na Bahia. In: Sitientibus – Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana, n2,
jan/jun 1983. Feira de Santana, 1983. Pp79-89.
45
FERNANDES, 1979.
46
SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Santos e Devotos no Império Ultramarino Português. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro,
29(1): 146-178, 2009.
47
DIAS, 2002.

320
São Pedro (Pero) Gonçalves Telmo, com referências etnográficas e convergência de suas
manifestações.48

Fernandes levanta uma outra possibilidade. Havia, de fato, um outro São Gonçalo, também
português de nascimento, beato da Ordem de Santo Agostinho, nascido em Santa Maria de
Lagos, no Algarve, em 1360 e falecido em Torres Vedras em 1422, canonizado em 1778.
Cultuado em sua vila de nascimento, e padroeiro da vila em que faleceu, é culto
essencialmente de pescadores.49 No Brasil, os dois santos homônimos se teriam mesclado,
o padroeiro dos pescadores absorvido pelo culto anterior do santo casamenteiro.

À luz dessa reiteração entre os pescadores baianos e de tais explicações, não é


coincidência que as outras duas devoções abrigadas na capela de São Gonçalo do
Amarante, no Rio Vermelho, fossem de santos ligados ao mar, pela sua história pregressa e
pelos seus milagres efetivos àquela comunidade: N. Sra. dos Mares e N. Sra. do
Livramento. Assim como a guarda do santo na capela de N. Sra. da Boa Viagem. Tampouco
seria coincidência ter sido incorporado ao ciclo do Bonfim, junto com outros cultos, o do
Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora da Guia, igualmente vinculados aos marítimos.

Figura 157 – Ruined Chapel of San Gonçalo (1852), de William M. Gore Ouseley. Fonte: OUSELEY,
1854. O pintor regalou-se com o que lhe era caro: a visão das ruínas, e da vegetação cercando-a, por
dentro e por fora. Cada espécimen é claramente delineado, e escolheu ângulo que permitia, ao fundo,
mostrar a vila do Rio Vermelho e o mar.

48
SANTOS, 2009.
49
FERNANDES, 1979.

321
Figura 158 – Chapel of San Gonçalo (1852), de William M. Gore Ouseley. Fonte: OUSELEY, 1852.
Interior da mesma capela, porém em completas ruínas no séc. XIX

Figura 159 – Trecho de Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de
Carlos Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. Aqui aparece claramente a antiga Igreja de São
Gonçalo. Se a pintura de Ouseley é fiel a esta situação, então o caminho que delineia não aparece
nesta planta, embora mostrasse a vila abaixo exatamente como seria, com as edificações, o mar, e
nenhum vislumbre do Morro do Conselho.

322
7.1.3. Assim na Terra como no Céu
Se acaso houvesse a intercessão de um santo, em alguma situação específica da história
da comunidade, ainda que a hagiografia não lhe vinculasse com o mar, pronto se criava um
laço entre aquelas pessoas e o santo. A história de um santo não se cristalizava in illo
tempore, no breve decurso de sua vida biológica. Ela prossegue pelos séculos dos séculos.
Em muitos casos, ele é reconhecido como santo justamente após sua vida terrena, por meio
das manifestações visíveis da sua condição abençoada. Assim, o santo terá uma história
ininterrupta, ademais de íntima, enquanto interceder pelos homens, até a consumação dos
tempos e o fim da História. Essa história ainda se multiplica para cada comunidade terrena
que lhe faz culto e onde ele age, em um mosaico, um caleidoscópio, que nunca se
consegue apreender de uma só vez.

A história urbana soteropolitana lidou com tais crônicas estritamente locais. Eram patronos
todos os santos que auxiliavam o povo do mar, dentre os quais alguns se desacaram ao
largo do tempo como devoções extremamente populares de toda a cidade e região, como o
Senhor do Bonfim e N. Sra. Sant´Anna.

Em um caso menor desta história local, o culto a São José, santo sediado na Capela de São
Pedro Gonsalves, surgiu de sua intercessão diante de uma tempestade que atacara o bairro
do Comércio com chuvas, relâmpagos e a investida das ondas do mar, de acordo com
Teixeira Barros.50

O culto ao Senhor do Bonfim também nasceu de uma intervenção miraculosa no mar, e


havia uma forma específica de romaria ligada a esse tipo de milagre. O mesmo vale para
São Tomé, em Itapuã, hoje Piatã.

Na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, na Cidade Baixa, estava a “milagrosa imagem de N.


Senhora do Pilar da Marinha”, não apenas curando os enfermos,

mas aos que se vião em os grandes perigos do mar; & oprimidos das
grandes tormentas, quando nellas se vião já sem esperanças de poderem
livrar de naufragarem, então ella os socorria, & livrava, trazendo-os
felizmente ao porto. Tudo isto estão testemunhando os muytos quadros em
que se vem os enfermos favorecidos do favor, e visita daquella benigna
Senhora. (SANTA MARIA, 1722, p.61).

Tornando-se, assim, ao menos no Setecentos, lugar de romaria e peregrinação, dentre


outros, desse perfil de devoto.

50
AMARAL, 1922.

323
Figura 160 – Localização dos templos e devoções católicas, a partir do Mappa Topographica da Cidade
de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll. Edição do autor. 1 – Igreja de N. Sr. do
Bonfim; 2 – Igreja de N. Sra. de Montserrate; 3 – Igreja de N. Sra. da Boa Viagem; 4 – Capela ou Ermida
(?) de N. Sra. da Conceição de Itapagipe de Cima; 5 – Igreja de N. Sra. dos Mares; 6 – Igreja de S.
Francisco de Paula; 7 – Igreja de N. Sra. do Pilar; 8 – Igreja do Corpo Santo; 9 – Igreja de N. Sra. da
Conceição da Praia; 10 – Ermida (?) de N. Sra. da Conceição da Camboa; 11 – Igreja de S. Antônio da
Barra; 12 – Igreja de S. Lázaro; 13 – Igreja de S. Gonçalo; 14 – Igreja de N. Sra. de Sant´Anna; 15 –
Capela de N. Sra. dos Mares. Fora do mapa estava, na longínqua Pituba, a Ermida de N. Sra. da Luz e,
em Itapuã, a Igreja de N. Sra. da Conceição de Itapuã.

7.2. As Festas dos Marítimos


Havia uma série de celebrações feitas pelos trabalhadores do mar, do porto aos pescadores
distribuídos pela cidade e região. Aquelas situadas no que seriam os bairros de veraneio
veremos logo adiante.

7.2.1. No Porto de Salvador


Celebração tradicional dos portuários era a Festa das Escadas, relacionada às várias
escadas que existiam no porto, antes de sua ampliação e aterro (Figs. 161 e 162). Os
trabalhadores e amigos de cada escada participavam da festa e da romaria náutica. O
período festivo ia da primeira sexta-feira de agosto à primeira de novembro.51 Interessante o
percurso da romaria relacionada: iam os saveiros para a Igreja do Bonfim, pelo Porto da
Lenha, ou para a Igreja de Nossa Senhora de Montserrate onde assistiam à missa; depois
divertiam-se durante o dia na Ribeira (como era usual na própria festa de Nosso Senhor do
Bonfim, como se verá); retornavam em uma corrida de saveiros. O mais antigo registro que
encontramos foi de 1857, porém sua origem é determinada, com data precisa, por Antônio
Alves Câmara. Desde 1º de novembro de 1850, brasileiros livres podiam operar os saveiros
no Porto, serviço antes dominado por “estrangeiros e senhores de escravos”, o que foi
“muito festejado, e ainda é actualmente com grande pompa para elles, durante tres dias nos

51
Encontramos correspondência dos organizadores dos festejos ao Presidente da Província, que ocorriam no dia 1º de
Novembro (dos anos de 1857, 1870 e 1879), convidando-o e solicitando o empréstimo de alguma banda de música militar.
Em 1879, é dito claramente tratar-se das escadas de ferro. (Arquivo Público do Estado da Bahia, Maço 1570).

324
cáes da cidade, em que armam coretos com musica, illuminação e embandeiramento”.52 Foi
a Lei Provincial nº344, de 1848, aprovada dois anos depois.

Figura 161 – Um Trecho do Caes, Bahia (Brazil), cartão-postal da J. Mello, de 1904, da Coleção
Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. Nele vemos duas das escadas, coladas uma a outra.

52
CÂMARA, 1888, p.144.

325
Figura 162 – Cais das Amarras (c.1885) de Rodolpho Lindemann. Fonte: FERREZ, 1988.

João José Reis apresenta o outro lado do que claramente fora uma das muitas lutas por
reserva de mercado na cidade.53 Aqueles serviços do porto eram reservados para brasileiros
livres; não apenas para escravos libertos, mas retirando-os das mãos dos escravos. Ao
retirar os escravos, prejudicavam os seus senhores, que poderiam formar ali uma forma de

53
REIS, 2019, p.128

326
cartel, mas a ênfase fora aos africanos como tais, ainda que livres. Era parte de uma política
anti-africana, especialmente exercida por Francisco Gonçalves Martins quando Presidente
da Província, que visava expulsar os africanos da cidade, até pelo medo de insurreições,
forçando-os de toda forma ou a irem à lavoura, ou a retornarem para a África. Com o
argumento da “nacionalização” dos serviços urbanos, cogitou-se ainda expulsar os africanos
dos serviços de alvarengas, da baldeação dos passageiros dos barcos até terra firme. Por
outro, os africanos também tratavam de reservar para si, e talvez em aliança com os
portugueses na cidade, o trabalho dos saveiros.54 Era, portanto, a gênese da Festa das
Escadas algo profundamente ligado ao mundo do trabalho, à legislação trabalhista, a rigor à
própria condição de trabalhar ali, para além do meramente folclórico, além de mostrar as
transformações radicais pela qual a atividade poderia passar, e dar uma gênese claramente
definida para tão singular comemoração.

De todos os festejos náuticos relacionados com santos afins aos trabalhadores do mar, o
Bom Jesus dos Navegantes é o único que sobreviveu, ganhando vulto extraordinário. Na
véspera do ano-novo a imagem do santo era trazida da igreja de N. Sra. da Boa Viagem e
levada até o cais da Alfândega, conduzida em pequena procissão até a igreja da Conceição
da Praia e lá pernoitando para retornar na manhã do dia seguinte. Nesse primeiro dia do
ano a procissão náutica faz o percurso inverso, não sem antes descer a sul, passando na
altura da igreja de Santo Antônio da Barra, e aí sim singrando rumo a Boa Viagem.55 Na
chegada, a imagem era disputada pela multidão, que se lançava à água antes do seu
desembarque56 (Figs. 163 a 165). Aqui e ali, na Praia e na Boa Viagem, estendia-se a festa
de largo. João da Silva Campos assinala que a encosta da Montanha propiciava uma
situação excepcional de arquibancada, com espectadores por todo o trajeto, debruçados
nas janelas, e soltando fogos de artifício. O mesmo Campos descrevia que antes, e não se
diz quando, a viagem de ida ocorria à noite, com grandes folguedos, desembarcando no
Cais de Santa Bárbara, com batuques, sambas, rodas de capoeira, alarido e muita bebida.
Assim, o cortejo do dia seguinte não era a festa, mas continuidade de algo que se iniciara à
noite, e tinha seu pernoite festivo na região do Porto. Já no século XX isso se havia alterado.
Campos não conseguiu rastrear a origem da festa e da procissão. Parecia-lhe não recuar
tanto no tempo, não mencionado por Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, por exemplo,
encontrando o primeiro registro de 1869.57 No entanto, em 1840 havia este anúncio em
jornal:

– O Religioso assistente do Hospício da Senhora da Boa Viagem, pretende


no dia 12 do corrente, às 7 horas da manhã, embarcar no Cáes do
Commercio a Veneranda Imagem de Christo Crucificado, para ir ser
collocada na Igreja da mesma Senhora, com o louvavel título de Senhor
Bom Jesus dos Navegantes. Roga, pois, a todos os devotos, especialmente
os homens do mar, queirão acompanhar a sobredita Santa Imagem,
solemnisando este acto Religioso o melhor possivel.58

A mecânica da procissão entre os dois templos aparece, embora a data, o segundo domingo
do ano de 1840, não fosse nem a que se consagrou, nem sua alternativa, o primeiro
domingo do ano.59

54
REIS, 2019, p.138.
55
CAMPOS, 1941, p.133; TORRES, Carlos. Vultos, Fatos e Coisas da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1959, p.56;
TAVARES, 1961, p.15.
56
TAVARES, 1961, p.18.
57
CAMPOS, 1941, p.136.
58
O CORREIO MERCANTIL n.5, Quarta-Feira 8 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
59
CAMPOS, 1941, p.136.

327
Nesse mesmo ano se começou a organizar, com antecedência, a mesma festa, agora para
o dia 1º de janeiro.60 Na ocasião se conclamava os capitães a colaborarem com a glória
dessa procissão.
AVISO AOS NAVEGANTES.

Um devoto do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, pede à todos Srs.


Capitães de navios, tanto nacionaes, como estrangeiros, para que
compareçao com suas respectivas tripulações, ao melhor aceio possivel, no
arsenal da marinha, às 9 horas da manhã no dia 1.º de janeiro, afim de
acompanharem a procissão maritima, que tem de percorrer os
ancoradouros, e seguir té a capella da Boa Viagem; a Santa Imagem será
depositada na vespera na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia,
d´onde sahirá a procissão. Principião os leilões a 22 do corrente: no dia da
festa, haverá um lindo fogo de arteficio.61

Figura 163 – Bom Jesus dos Navegantes, foto do Serviço Fotográfico e Fotostático. Fonte: FALCÃO,
s/d. Foto da procissão náutica, rumo a Boa Viagem.

60
O CORREIO MERCANTIL n.274, Quinta-Feira 17 de Dezembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
61
O CORREIO MERCANTIL n.274, Quinta-Feira 17 de Dezembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.

328
Figura 164 – Chegada da imagem sagrada à praia da Boa Viagem. Fonte: CEAB.

Figura 165 – Chegada da imagem sagrada à própria Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem. Fonte:
CEAB.

Nesta festa, como na das Escadas, novamente encontramos aquela costura entre os portos,
e os santuários caros aos marítimos. Não era acidental que fosse essa capela de Boa
Viagem que, como observara João da Silva Campos, “foi do número das igrejas outrora
escolhidas pelos viajantes e pelos marujos para as suas visitas de agradecimento aos
poderes celestiais”.62

62
CAMPOS, 1941, p.386.

329
O mesmo Campos menciona rapidamente festa com procissão náutica feita ao mesmo
santo, a partir da capela de São Francisco de Paula, em Água de Meninos, parte da área
portuária tradicional da cidade.63

Na Igreja do Corpo Santo havia procissão marítima em devoção a São Pedro Gonçalves,
realizada pela última vez em 21 de novembro de 1897.64

7.2.2. As Festas dos Canoeiros


Evaldo Cabral de Mello mencionava que os canoeiros do Recife tinham uma organização
própria, com hierarquia copiada da Marinha, com suas patentes e saudações necessárias, e
devoções particulares, em especial N. Sra. da Conceição dos Canoeiros.65 Haveria para
Salvador algo análogo? Em alguma medida, sim.

Antônio Alves Câmara, em 1888, escreveu sobre os canoeiros da Baía de Todos os Santos:

Todos os canoeiros têm suas invocações, e o seu dia de festa no anno; e


em geral não há povoação nas ilhas do interior, ou enseadas mesmo, a que
pertença um certo grupo de canôas, ou de saveiros, e em que haja um
capataz, que não faça uma vez no anno a sua romaria, como chamam.
(CÂMARA, 1888. p.45).

Afirmava haver uma estrutura geral com variações locais: a praia era embandeirada na
véspera da festa, elegendo-se quem seria o Chefe do Ano, dali por diante, às vezes na areia
da praia, ao som de uma banda de música contratada, chamada Santo Zabumba.66 A
consecução da eleição levava à queima de fogos e fanfarra, e na noite daquele dia havia
oração ou ladainha na igreja, e se procedia a um leilão, “onde se expoem as dadivas dos
moradores influentes do logar, e é uma cerimonia tradicional, e quasi obrigatoria das festas
dos pobres na Bahia”67, que é a “alma da véspera da festa”, com muitas brincadeiras e
congraçamento, e namoro entre os mais jovens, prosseguindo até tarde da noite, enquanto
o samba se desenvolvia ao lado. No dia seguinte partiam as canoas à vela, embandeiradas,
para o santuário do santo da devoção. Em embarcações maiores se tocava música.
Levavam uma bandeira principal que é benzida pelo padre, depois da missa a que assistiam
descalços, e entregue ao novo Chefe do Ano. As bandeiras menores, trazidas pelas canoas,
estavam na praia, unidas, e eram igualmente benzidas pelo padre, e daí retornavam todos
para sua localidade de origem (Figs. 166 e 167). O dia terminava com um grande jantar
dado pelo Chefe do Ano anterior, “acompanhado de sambas, musica, lundus e modinhas”.68

Na festa da Gamboa e Pedreiras havia uma variante, que reforça a dinâmica de transformar
qualquer deambulação em um festejo: dias antes o Chefe ia à igreja acertar detalhes da
festa, e no trajeto de ida e volta, a tripulação da canoa solta foguetes, e tocava-se música,
no que chamavam de embaixada da romaria.

Outro aspecto recorrente alude à relação entre as comunidades de pescadores, que se


comunicam durante seus percursos com foguetes como saudação. Quando os pescadores
das Pedreiras iam cultuar ao Santo Antônio da Barra, no Domingo da Páscoa, os moradores

63
CAMPOS, 1941, p.135.
64
CAMPOS, 1941, p.245.
65
MELLO, 1978.
66
Esse “chefe” seria apenas para termos da festa, e de algumas despesas da mesma, pelo que se pode deduzir do relato de
Alves Câmara. Veremos “chefes”, ou “capitães”, sem uma função clara nos relatos, para a romaria dos jangadeiros, no Rio
Vermelho, como com um papel crucial na coordenação dos esforços coletivos na pesca de arrasto da orla atlântica, em
particular do xaréu.
67
CÂMARA, 1888. p.45.
68
CÂMARA, 1888. p.45.

330
da Gamboa soltavam foguetes. Quando estes iam a Boa Viagem, eram por sua vez
saudados pelos pescadores das Pedreiras.

Figuras 166 e 167 – Jangadas embandeiradas na Ponta de São Tomé. Fonte: Instituto Feminino da
Bahia. Aqui é a inflexão de Piatã à praia de Placaford, e atrás se desenvolve Itapuã com seus antigos
conqueirais. Nas jangadas, rústicas e simples como apontara Antônio Alves Câmara, as bandeiras de
algum santo. Podemos estar vendo os preparativos para uma corrida de jangadas.

Os pescadores da Barra cultuavam a Santo Antônio, tendo nele sua festa principal, mas o
faziam no 2 de fevereiro. Esta data coincide muitos festejos caros aos pescadores: N. Sra.
da Purificação, N. Sra. das Candeias, este Santo Antônio, N. Sra. da Conceição para os
pescadores de Barra Grande, Itaparica.

331
Os pescadores da Ribeira cultuavam a Bom Jesus da Pedra, em Montserrate, no dia 6 de
janeiro, e nas suas festas o trajeto das embarcações ganhava a forma de uma corrida do
Porto dos Tainheiros até a Ponta da Sapoca, em Paripe, para alcançar primeiro a bandeira
do evento, situada em uma canoa.

7.3. O Culto da Mãe d´Água


Para os africanos que vieram escravizados ao Brasil, os elementos da natureza eram
animados por divindades. Entre eles o mar. A devoção às entidades ligadas à água ganhou
uma importância extraordinária em torno do culto da Mãe d´Água, denso em ramificações e
significados.

A figura da Mãe d´Água era de procedência ameríndia, anterior e disseminada pelo Brasil.
Luís da Câmara Cascudo defende que a entidade indígena não tinha nada de materno, o
que dirá da beleza e da sedução dos séculos vindouros. “Mãe”, ou seja, Ci, é a origem, a
fonte, o archai do elemento, como na expressão Mãe do Fogo. Daí que até tempos recentes
o termo designava criaturas serpentiformes, com nada de mulher. As criaturas aquáticas
primevas eram monstruosas. A sua conversão em uma figura feminina seria da segunda
metade do século XIX, e a Uiara/ Iara, uma figura meramente convencional e literária. O
substrato da náiade/ ondina bela e sedutora teria origem européia, da longínqua sereia. O
seu reflexo masculino, o boto amazônico, também aparece apenas a partir do Oitocentos.

Charles Expilly descreve o papel da Mãe d´Água em um mito indígena na Lagoa do Patipe.69
Nela aparece como uma belíssima rainha, a apaixonar-se por jovens formosos e chamá-los
a seus braços, afogando-os e mantendo-os em seu reino submerso. A mesma estrutura,
embora com desfecho diferente, tem a Lenda do Abaeté narrada por Adroaldo Ribeiro
Costa, em tempo muito posterior.70 O tempo inteiro estava a comparar com paralelos
europeus clássicos.71 Destaquemos a complexa metamorfose e fusão de elementos em
certa obscuridade. Ainda não era a orixá africana, mas ganhara conotações européias.

Já no século XIX, antigos moradores de Itapuã, quando não vinculados a terreiros, referiam-
se à Dona do Abaeté, Dona das Águas e Mãe d´Água, não empregando os nomes de
origem africana: “Dona Francisquinha recusou-se a utilizar nomes como Iemanjá e Oxum
porque, segundo ela, esses não são nomes antigos, próprios às tradições locais”.72

Governam as águas, no rito nagô, junto com Yemanjá, responsável pelo mar, Nanã Buruku,
ligada aos pântanos, charcos e águas paradas em geral, e Oxum, das fontes e rios. Mas foi
a figura da primeira cresceu e abarcou na imaginação popular as demais do panteão iorubá
estabelecido no Brasil.73 E a que se tornou, de fato, a Mãe d´Água.

Apenas um registro, o de Manuel Querino, por sua vez baseado em testemunho não
revelado, dá conta de grande festejo do que então chamavam de “africanos” em devoção à
Mãe d´Água, na Ribeira.74 Se não fosse por ele, sequer teríamos ciência de sua existência e
importância.

69
EXPILLY, 1977. O texto original é de 1863.
70
COSTA, Adroaldo Ribeiro. Páginas Escolhidas: 200 crônicas e dois contos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo,
Conselho Estadual de Cultura, 1999. A crônica, A Lenda do Abaeté, é de 1970.
71
Com exceção da narração de Charles Expilly, todos os outros elementos deste parágrafo vêm de Luís da Câmara Cascudo
(Dicionário do Folclore Brasileiro. 12ed. rev. São Paulo: Global Ed., 2012.).
72
GANDON, 2008, p.206.
73
Isto é, do panteão que acabou surgindo com a concentração dos africanos nas cidades, reunindo em uma mesma partilha do
Universo o que eram divindades separadas, tutelares de cidades e lugares distintos na África.
74
QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco – Editora Massangana, 1988.

332
Décadas depois identificou-se o culto à Mãe d´Água permeando mesmo o labor mais
imediato dos pescadores. Segundo Roger Bastide, os pescadores de Itapuã do século XX,
antes da pesca, pediam à sua maneira, sem os preceitos do terreiro, a permissão e auxílio
de Yemanjá. Faziam o que chamava de “candomblé de brincadeira”: “Dê-me licença, ai/ dê-
me licença, ai/ âlo de Iemanjá – i/ âlo de Iemanjá – i”.75 Odorico Tavares fala das canções de
trabalho daqueles pescadores, que cadenciavam o esforço coletivo da gente à praia e à
água na puxada de rede. Um dos temas era Yemanjá: “Viva a Rainha do Mar/ Inaê/
Princesa de Aioká/ Inaê ô/ Viva a Rainha do Mar”.76 E ainda: “Que é que me dão/ Para levar/
A Dona Janaína/ No fundo do mar?”77, seguindo-se outros versos. A puxada de rede
necessitava de canções de trabalho. Assim como, lembrando o depoimento de Wetherell, o
trabalho dos remadores de canoas.78 Que elas tivessem como tema a Mãe d´Água, é
provável. Que fosse já com a alcunha de Janaína ou as feições africanas, é uma
possibilidade, pois esses nomes aparecem apenas no século seguinte. São escassos os
registros do culto dos pescadores, ou melhor, da relação do culto de origem africana com
sua atividade laboral. Câmara aponta com o ritual a Santo Antônio no começo da temporada
de caça às baleias, coexistia o apelo a outras forças.

O arpoador consultava o “seu oraculo, africano feiticeiro”, para garantir o êxito na caçada, e
o faz seguindo preceitos, e comprometendo-se a uma paga pelo benefício, “o que não
sendo satisfeito, o oraculo amarra o arpoador, como dizem, e elle perde a felicidade no anno
seguinte”.79 Não identifica algo específico da Mãe d´Água, mas o apelo aos poderes do
babalorixá, intermediário com forças que podiam lhes ajudar. De toda sorte, é difícil separar
a imagem de Yemanjá do seu culto, que se mescla com os rituais católicos de diversas
maneiras, desde táticas de ocultamento, até um politeísmo laico sincero, onde todas as
potestades, heterogêneas, convivem, ou, no pior dos casos, o frágil ser humano apela por
vida das dúvidas a todas. Não para pedir uma intercessão, e sim para aplacar as forças
naturais, o que deve ser feito com oferendas votivas, os ebós, alimento destinado ao orixá e
presentes, a chamada entrega dos presentes.80

Estas forças aquáticas a cativar são representadas por mulheres, com interesse particular
nos homens. Fundia-se a condição laboral essencial – o trabalho em alto-mar, e o
verdadeiramente arriscado, era encargo masculino – com a explicação mitopoética, de uma
entidade feminina, um arquétipo da mulher, apaixonada pelos homens. Reginaldo Prandi,
em lenda que intitula Iemanjá afoga seus amantes no mar, relata essa sua característica,
importante porque vincula a orixá com as antigas lendas das sereias e da Lorelei germânica,
e “explica” os pescadores mortos, seduzidos pelas orixás aquáticas e levados para o fundo
das águas, e sua relação com as esposas mortais.81 Por isso em certas vilas de pescadores
as mulheres faziam oferendas a Yemanjá à noite ou no raiar do dia para o regresso dos
maridos.82

O que se entregava de presente? Histórias de terror falavam de sacrifícios para a deusa.83


No século XIX, “comidas preparadas com azeite de dendê, e carneiros e galináceos
préviamente sacrificados, e tambem vivos”.84 No romance Mar Morto, um cavalo vivo, cego,
fora lançado ao mar nas imediações de Montserrate. Em tempos mais recentes eram itens
75
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001.
76
TAVARES, 1961, p.74
77
TAVARES, 1961, p.75. Wilson Rocha repete os cânticos (CARYBÉ, 1951.) A reiteração do cântico, de autor a autor, é
significativa. Ou a imaginação popular era extremamente mesquinha, incapaz de criar mais que um par de cânticos, ou os
autores recorriam a uma fonte única.
78
WETHERELL, s/d, p.101.
79
CÂMARA, 1911, p.70.
80
Com paralelo notável ao holocausto de Yahvé e hecatombes aos deuses gregos homéricos. Os deuses mostram certo apego
aos prazeres mundanos.
81
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Ed. Schwarcz Ltda, 2005.
82
Agradeço ao meu colega, o professor Fábio Macedo Velame, por essas informações.
83
CAMPOS, 1930; CARNEIRO, Edison. Religiões Negras: notas de Etnografia Religiosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1936.
84
CAMPOS, 1930, p.413

333
inanimados, alinhados com a vaidade mundana das divindades a se agradar: frascos de
perfumes, sabonetes, talcos, pós-de-arroz, fitas, brincos, anéis, sandálias, pequenos
espelhos, pentes, etc.. Cartas, “suplicando favores”.85 E flores. Muitas flores.

Muito do que sabemos é do século XX, sendo difícil atestar que repetissem o século
anterior. Os presentes eram algo essencial, e estabeleciam uma modalidade específica de
relacionar-se com os corpos d´água, e com o mar. A oferenda era feita em dias específicos:
8 de dezembro, 2 de fevereiro, nos sábados da primeira semana de cada mês, já que nessa
semana se faziam as oferendas às divindades e o dia de Yemanjá era no sábado.
Hildegardes Vianna fala do dia 26 de julho para as oferendas no Dique.86

Os cultos de origem africana e católica mesclam-se em vários níveis. As orixás das águas
em muitos casos são amalgamadas entre si, especialmente Oxum com Yemanjá.87 Dentro
de um conhecido rito católico pode se fundir a ação ligada ao culto dos orixás, nem sempre
visível, como era com os arpoadores de baleia. Jurema Penna nos revela que em 31 de
dezembro, na Festa de N. Sra. da Boa Viagem, costumava-se depositar perto dali, na Loca
da Sereia, uma oferenda.88

Yemanjá se relacionava com Nossa Senhora de maneiras diversas. Edison Carneiro


menciona o quadro de associações das orixás das águas: Nanã com N. Sra. Sant´Anna,
Yemanjá com N. Sra. da Conceição, e Oxum com N. Sra. das Candeias.89

João da Silva Campos vincula N. Sra. das Candeias com Yemanjá, pelo dia de seu festejo
na Ponta de Areia, Itaparica, ser o mesmo do da santa, 2 de fevereiro, afinidade que
Fernanda Reis dos Santos acredita ser fortuita.90 José Alberione dos Reis e Ivone Maria
Ávila da Fonseca relacionam Yemanjá com N. Sra. da Conceição91, endossado por José de
Barros Martins & Jorge Amado a partir dos festejos de N. Sra. da Conceição da Praia e dos
nomes das barracas.92 Manuel Querino vincula com Nossa Senhora do Rosário. As datas
das festas, e o sincretismo prático, do culto de santa e orixá no mesmo dia, apontavam a
Edison Carneiro N. Sra. das Candeias e N. Sra. da Piedade. Pois no 2 de fevereiro, dia da
primeira, se entregavam presentes no Dique, no Rio Vermelho e em Amorreira, Itaparica,
assim como no dia da segunda, 20 de outubro, havia oferendas em Montserrate.93

A transfusão de qualidades ocorreu em mais de um sentido. A orixá tornou-se mais


“maternal”, como também a Mãe d´Água ameríndia, na medida em que foi associada à
madona católica, se não possuísse características análogas. Por sua vez, aproximou-se de
invocações que já eram propensas aos pescadores em solo europeu, em Portugal. Outras,
como N. Sra. da Conceição, comum em Salvador entre os pescadores, talvez fossem
reforçadas por tal sincretismo.

85
AMADO, 1945, p.131.
86
VIANNA, Hildegardes. Folclore Brasileiro: Bahia. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ Secretaria de Assuntos
Culturais/ FUNARTE, 1981.
87
Contam muitos casos e milagres feitos por Iemanjá e Dona Oxum, que é a rainha das águas doces, governa os rios, os
lagos, as fontes, enfim todos os lugares onde existe água doce. Parece que Dona Oxum é filha de Iemanjá, enfim só os
entendidos podem dizer. A fé nas duas é tanta que é muito difícil uma pessoa ir consultar outra pessoa entendida em matéria
de candomblé e espiritismo que, depois de consultar os orixás, olhar a vida das pessoas e consultar os espíritos, não mande
botar uma coisa nas águas para agradar Iemanjá e Dona Oxum. (LOPES, 1984, p.65).
88
PENNA, Jurema. Festas Tradicionais de Salvador – Ciclo de Verão. Salvador: Prefeitura da Cidade do Salvador,
Departamento de Assuntos Culturais, mar 1978.
89
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 7ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1986.
90
CAMPOS, 1930; SANTOS, Fernanda Reis dos. Mãe d´Água a Yemanjá: uma perspectiva de análise. In: Anais dos
Simpósios da ABHR. São Luís: ABHR, Vol13. 2012b. Disponível em:
<http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/article/view/383>
91
REIS, José Alberione dos & FONSECA, Maria Ávila da. Salvador História e Imagens. Salvador: Projeto Abraxas/ Bigraf,
1987. Querino diz que Nossa Senhora da Conceição se sincretiza com Oxum.
92
MARTINS & AMADO, s/d.
93
CARNEIRO, 1936, p.58.Odorico Tavares (1961) também vincula Yemanjá a Nossa Senhora do Rosário.

334
Se pensarmos que os ritos e hibridismos variam com o tempo, o quadro geral se torna ainda
mais impreciso. É muito difícil delinear o evento sem que saibamos a magnitude, a
participação, que raramente comparece nos documentos, e sobretudo as crenças interiores
dos devotos. O sincretismo na Bahia pode assumir as formas distintas de coexistência e
fusão; de entidades diferentes que convivem como patronos das forças naturais ou como
faces de uma mesma divindade. Edison Carneiro conjeturou, começando como um
subterfúgio, um jogo de aparências para ocultar a real substância do culto, em sua pureza
africana, tais correspondências tornaram-se uma “segunda natureza”.94 Licídio Lopes,
homem simples, pensando de maneira bifronte, é exemplo.

[...] acredito que a Rainha dos Mares é uma santa, porém diferente das que
existem na Igreja Católica, que eles também têm muita fé e respeito. Tanto
que, quando os pescadores começavam a festa, pela manhã mandavam
rezar uma missa na igreja de Senhora Santana, que continua sendo a
padroeira deles, e à tarde ofereciam o presente a Iemanjá, assim
agradavam as duas santas da sua devoção. [...] As mesmas pessoas que
botam as flores e presentes nas águas não deixam de cumprir suas
obrigações com a religião que encontraram desde a infância, não deixam de
batizar seus filhos, casam-se na Igreja Católica, vão a missa e a todos os
atos religiosos: procissões, mês de Maria, novenas e missas. (LOPES,
1984, p.65).

Em princípio, todos os corpos d´água são sagrados. Havia na cidade e na baía pontos
notáveis, hierofanias mais intensas no interior e à beira-mar, onde aconteciam os rituais em
homenagem à Mãe d´Água. É uma constelação de rituais e celebrações, com centros com
maior gravidade em cada momento e em rearranjo ao longo dos anos. Mas é história de
difícil reconstituição. Soma-se o caráter polimorfo dos eventos, agravado pelo sincretismo
em suas múltiplas faces.

Tais hierofanias ocorriam em fontes, como a Fonte da Vovó, na antiga Rua da Valla,
provavelmente associada a Nanã Buruku.95 E a fonte da roça do Beco dos Nagôs, não muito
distante, na Saúde.96 Havia outra, apontada nas Posturas do Senado da Câmara de 1787,
relacionada, ao Cemitério dos Africanos (no atual Campo da Pólvora), onde “se enterrão os
cadáveres dos pretos e outras pessoas necessitadas, ficando próxima a Mãi d´agoa, que
expede pela fonte do gravatá”.97 Não eram lugares onde as águas se prestavam a engolir os
presentes, mas devem ser entendidas como irrupção do sagrado.

Também estavam em rios e cachoeiras, como as de Nanã e Oxum no Parque de São


Bartolomeu.98

Em espelhos d´água internos como a Lagoa da Vovó, na Fazenda Grande do Retiro.99 Dois
destes se destacam.

94
CARNEIRO, 1986, p.54.
95
CAMPOS, 1930. A associação repete-se em outros lugares, e se dá pelo caráter específico desse tipo de águas. Campos a
localiza defronte ao Beco do Funil. Referia-se à Ladeira do Funil, já que, do outro lado da avenida, está hoje justamente a
Rua Fonte da Vovó. Edson de Palma Meirelles a localiza: “logo após o arco da Baixa dos Sapateiros, junto a um grande
sobrado que foi por muitos anos fábrica de móveis, destruiído há tempos, por um grande incêndio” (MEIRELLES, s/d a, p.15).
96
A localização precisa da Fonte e do Beco dos Nagôs não deixa de ser um problema. Edison Carneiro (2019, p.86) fala do
Beco mais em geral, situando-o na Saúde. João Varella (Da Bahia que eu Vi. Salvador: Typ. de O Povo, 1935) o faz na Rua
Dr. Campos. Provavelmente seria essa Rua General Senna Campos. Carlos Torres (1959) identifica o Beco como sendo a
Rua da Glória, que se entronca com aquela R. Gen. Campos. Jorge Amado (Bahia de Todos os Santos. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1958, p.178) localiza o Beco dos Nagôs na Rua do Godinho, pouco mais ao norte, continuação da Rua da
Glória. Até aqui temos os depoimentos de contemporâneos. Texto intitulado Geografia dos Orixás, sem autoria, que
encontra-se em alguns sites da internet relacionados ao tema (a exemplo deste: http://oluaie.blogspot.com/2008/05/) – e em
alguns que foram descontinuados, e hoje estão inacessíveis –, situa o Beco no logradouro atrás da Rua do Godinho, na Rua
Constância Alves.
97
A BAHIA..., 1897, p.69. Ser chamada de Fonte da Mãe d´Água converge com tais associações, embora pudesse ser uma
denominação mais ampla naquele momento, relacionada à própria irrupção das águas, sem um vínculo mais concreto com a
orixá, embora a situação física, e o ponto de referência, indiquem essa correlação.
98
VIANNA, 1981, p.36.

335
Um é a Lagoa do Abaeté, que se tornou um cartão-postal da cidade, não sem antes se
incorporar ao imaginário como local de mistérios e lendas, algumas de origem indígena.
Ainda que sem barcos (a lagoa situa-se encravada em meio às brancas dunas), nela se
entregavam presentes.100 Odorico Tavares fala de imersões no Abaeté (Fig.168),
provavelmente de filhas-de-santo.101

Figura 168 – Lagoa do Abaeté. Fonte: CEAB. Maior dos espelhos d´água da região, era local de
entrega de oferendas pelos moradores das redondezas, para a Dona do Abaeté ou Mãe d´Agua.

Embora não tenha transcendido os limites da cidade nas asas da canção e da literatura,
havia outro espelho d´água na cidade onde vivia Yemanjá. Menos famoso, era mais
importante para o povo-de-santo: o Dique, depois chamado Dique do Tororó. Se este
oscilava entre a imagem de um pântano e de um lago, nos vários documentos oitocentistas,
apenas no século XX veio à tona que para as comunidades circunvizinhas era a irrupção
hierofânica da orixá das águas, cercado de mistério. Disse João da Silva Campos que
depositavam os presentes ali “os candomblezeiros do Gantois, da Mata Escura, do Engenho
Velho, do Bôgum, do Pauzerré, e outros lugares cercãos”.102 Edison Carneiro lhe confere
uma grande importância, para ele a própria morada de Yemanjá na cidade, narrando com
pormenores uma animada entrega dos presentes no Dique da qual participou em 1934.103

Nos corpos d´água maiores, fazia-se no seu meio, na meia-travessa. Era bem-vindo que os
presentes não retornassem, do contrário significaria que não caíram no seu agrado. Por isso
na Baía de Todos os Santos eram lançados onde a corrente para mar aberto reflui, ou em

99
CARNEIRO, 1986. Se a cachoeira em São Bartolomeu era claramente de Nanã, a Lagoa é “da Vovó, remetendo-lhe de
novo. A Lagoa da Vovó parece não existir mais. Permaneceu como o nome de dois logadouros, que se cruzam: a Ladeira
Lagoa da Vovó e a Travessa Lagoa da Vovó, no atual bairro do Retiro. A Lagoa da Vovó aparece com esse nome já no
Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e Sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll.
100
CARNEIRO, 1936; CARNEIRO, 1986; QUERINO. M. A Raça Africana. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955b.
101
TAVARES, 1961.
102
CAMPOS, 1930, p.413. Repete a mesma informação Afrânio Peixoto (1946), com a mesma enumeração de terreiros.
Provavelmente, Campos é sua fonte.
103
CARNEIRO, 1936; 1986.

336
peraus, na baía ou no mar aberto, pontos que sorvem o que está na superfície. Afrânio
Peixoto fala de perau em Montserrate.104

Muito disto era religiosidade popular, sem seguir à risca os rituais dos terreiros de
candomblé. Em especial das vilas de pescadores, que tanto dependiam das intercessões da
Mãe d´Água. Destas comunidades partiam embarcações para a entrega dos presentes.
Lugares como Itapagipe, Barra, Rio Vermelho, Amaralina, Pituba, Armação, Itapuã. Mesmo
no Recôncavo Baiano, como Ponta de Areia, Amoreiras e Gameleira, na ilha de Itaparica;
Cachoeira e Santo Amaro da Purificação.105 E não por coincidência identificam no seu
entorno imediato, nos acidentes geográficos da beira-mar, singularidades, verdadeiras
hierofanias.

Em Montserrate existe a Loca da Mãe d´Água ou Loca da Sereia.106 Odorico Tavares a


localiza explicitamente no outeiro onde está o Forte de São Felipe ou de Montserrate.107
Afrânio Peixoto falava da Pedra Furada.108

Singularíssima, e apesar disso pouco mencionada, era a Gruta da Sereia, no morro


homônimo, Rio Vermelho. Tomemos o testemunho de Dona Diana:

Era um lajedo de pedra, agora com aquela entrada assim como uma porta.
Então tinha uma bacia e em cima servia como uma cadeira pras pessoas se
sentarem. Adiante tinha um pilão, se via mesmo a boca do pilão, uma obra
da natureza. Embaixo a bacia. A gente ia pra lavar, levava lá embaixo. Eu
lavava, a finada da Damiana lavava e outra pessoas iam pra lá. Era um
pocinho assim, quanto mais a gente tirava, mais a água minava. Então a
gente carregava de cá pra beber, pro gasto da casa, deixava tudo em casa
cheio e descia pra lavar. (RIO VERMELHO..., 1988, p.22).109

Aquela faixa de praia próxima, a oeste, era chamada pelos pescadores do Rio Vermelho de
Canzuá ou Canzuarte. Edison Carneiro aponta que canzuá é uma das corruptelas de
Gantois, nome que acabava por servir para denominar outros terreiros de candomblé.110 Em
1944, Jorge Amado assinala que havia o candomblé de Maria Amélia Xavier, no alto da
Sereia (n. 22, na posterior Av. Oceânica).111 Poderia ser toponímia do século XX, assim
como o próprio terreiro, quase seguramente atuando na Gruta e Fonte da Mãe d´Água, que
poderiam reforçar o nome, e associação com o Gantois, como reconhecimento do poder
sagrado que emanava da região.

Na Gameleira, em Itaparica, há outra gruta. Os terreiros nas margens do Rio Paraguaçu


deixam suas oferendas na Pedra da Baleia. E os da região de Santo Amaro da Purificação,
em São Bento das Lages.112

No século XIX, porém, o que temos claro são os festejos na Ribeira, aqueles descritos por
Querino. No Oitocentos a maior cerimônia da então chamada Festa da Mãe d´Água
acontecia em Itapagipe, defronte ao antigo Forte de São Bartolomeu da Passagem, no
terceiro domingo de dezembro, chegando a atrair 2.000 “africanos”.113 Infelizmente, Querino

104
PEIXOTO, 1946.
105
QUERINO, 1955a; CARNEIRO, 1936; CARNEIRO, 1986; PEIXOTO, 1946; CAMPOS, 1930; LOPES, 1984; PREFEITURA..,
1958; MACHADO, Ana Rita Araújo. Bembé do largo do mercado: memória sobre o 13 de Maio. 2009. Dissertação (Mestrado
em Estudos Étnicos e Africanos) – CEAO, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009. João da Silva Campos (1930;
1942) narra episódio semi-lendário ligado ao culto à Mãe d´Água entre Amaralina e Armação.
106
CARNEIRO, 1936; CARNEIRO, 1986; VIANNA, 1981.
107
TAVARES, 1961, p.218.
108
PEIXOTO, 1946.
109
Também era descrita por Licídio Lopes (1984, p.58).
110
CARNEIRO, 1986, p.56
111
AMADO, 1958, p.166.
112
PAIM, Zilda. Relicário Popular. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo/ Empresa Gráfica da Bahia, 1999.
113
QUERINO, 1988, pag 210.

337
não precisa a data. É a grande, e exclusiva, fonte que atesta a existência do culto a Iemanjá
nessa envergadura naquela região114.

Figura 169 – Localização das hierofanias aquáticas dos cultos afro-brasileiros, a partir do Mappa
Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll. Edição do
autor. 1 – Cachoeiras de Nanã e Oxum; 2 – Cabeceiras da Ponte; 3 – Local da Festa da Mãe d´Água
no Oitocentos; 4 – Loca (sic) da Mãe d´Água ou da Sereia, em Montserrate; 5 – Lagoa da Vovó; 6 –
Fonte da Vovó, nas Sete Portas; 7 – Fonte da roça do Beco dos Nagôs; 8 – Fonte da Mãe d´Água; 9
– Dique (depois, “do Tororó”); 10 – Gruta e Fonte da Sereia, no Morro homônimo; 11 – Fonte da Mãe
d´Água na Barra.

Há menções vagas a terreiros de candomblé na contracosta da península, em


Massaranduba. Edison Carneiro revela que no começo do século XX em área dos
Tainheiros ainda ocorria entrega de presentes. No caso, em local chamado Cabeceiras da
Ponte, próximo do Cabrito, sem precisar a data, onde também localiza um terreiro, pelos
idos de 1930.115 Poderíamos imaginar que aquela região, toda a costa em torno da enseada
dos Tainheiros e do Cabrito, fossem um território africano em seus tons, e ali se fizessem os
cultos aquáticos da cidade?

A região de Itapagipe tinha ainda um ritual de que temos menção apenas por Edison
Carneiro: a Festa das Máscaras, dos geledés, que “antigamente se realizava, a 8 de
dezembro, na Boa Viagem, exatamente no local em que está hoje a Vila Militar”116. O
“antigamente” corresponderia à segunda metade do século XIX. Essa festa relacionava-se à
associação Gueledé, de origem africana, cuja festa homenageava Iyá Nlá, a “Mãe de Todos”
– uma expressão da Grande Deusa117 – o que explicaria a data, o dia da festa de N. Sra. da
Conceição da Praia. Waldeloir Rego, dando alguns detalhes a mais da festa, afirmava que
mobilizava toda a cidade, e aqui devemos entender todo o povo-de-santo, atraindo os mais

114
Sendo a base para tudo o mais que versa sobre o assunto das oferendas na Ribeira, a exemplo de João da Silva Campos
(1930, p.413) e Odorico Tavares (1961, p.56).
115
CARNEIRO, 1936, p.63; 1986, p.76.
116
CARNEIRO, 1986, p.56.
117
RIBEIRO JUNIOR, Ademir. Parafernália das Mães-Ancestrais: as másaras gueledé, os edan ogboni e a construção do
imaginário sobre as “sociedades secretas” africanas no Recôncavo Baiano. 2008. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) –
Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade do Estado de São
Paulo, São Paulo. 2008.

338
importantes sacerdotes dos terreiros.118 A coincidência da data talvez ainda fosse a razão de
passar desapercebida, as atenções voltadas para a festa na Praia, central à cidade, ainda
quando boa parte das famílias não haviam ainda partido para os arrabaldes.

7.4. Passar as Festas no Litoral


Algumas das localidades de pescadores, depois bairros de veraneio e, por fim, bairros
litorâneos incorporados à cidade, tinham festejos que devem ser vistos em conjunto pelo
antigo entrelaçamento entre os devotos, com romarias, e procissões que iam de um lado a
outro fazer vênias aos santos, por mar e por terra. Essas devoções dos marinheiros foram
engolfadas pelas classes altas a partir da aparição do veraneio, não sem conflitos. Os rituais
se modificaram com o deslocamento desse novo contingente, para segunda residência, e a
seguir para primeira.

Entre as localidades de pescadores havia várias modalidades de relação.119 O culto e as


festas implicavam em outra manifestação dessa solidariedade, expressa até na forma do
evento, nos rumos das procissões e nos seus rituais. Depois haverá conexões entre os
veranistas.

Apresentaremos essas localidades, em uma ordem geográfica, do litoral mais distante até
aquele mais próximo. Não temos todas as datas, e certos interregnos podem ser apenas
inferidos.

Mas antes vejamos aquelas celebrações que levavam a travessias náuticas e romarias.

Viagens pela Baía


O percurso pela Baía de Todos os Santos poderia induzir a romarias náuticas ou pelo
menos à forçosa travessia para o culto e os festejos.

Na primeira metade do século XIX, a festa no Recôncavo que chamava romeiros da capital
era a de Nossa Senhora da Purificação. Algo do peso deste evento é dado por oferta de
medidas em 1843: “Buchere Chalopin e C. tem para vender medidas douradas, para as
festas de N. Senhor do Bomfim, S. Gonçalo, Guia e Purificação”.120 As medidas eram as
famosas “fitas” ou “fitinhas”, das quais as do Bonfim se consagraram na Bahia. Além das
três primeiras, festas que formavam o Ciclo do Bonfim e tinham grande popularidade, estava
a festa sediada em Santo Amaro. E para atender a esta devoção que navios a vapor se
ofereciam a transportar “em conseguencia da proxima festa de N. S. da Purificação na
cidade de Santo Amaro”, partindo nos dias 30 de janeiro, 1º, 2 e 4 de fevereiro, e no dia 5
desse mesmo mês, oferecendo “uma boa occasião para a volta dos festeiros”121. Repetiu o
serviço no ano seguinte, marcando que a jornada era de ida e volta, em horários
ligeiramente distintos, do dia 31 de janeiro ao 2 de fevereiro.122

Festa tradicional, e que implicava em importante romaria, era a de Nossa Senhora das
Candeias, que ocorria no então distrito de Passé, com novenas a partir de 24 de janeiro, e
festa principal no dia 2 de fevereiro: “eram famosas as romarias de dezenas de barcos, com

118
1980, p.271, apud RIBEIRO JR., 2008, p.115.
119
Como visto no Cap. 2.
120
O CORREIO MERCANTIL n.6, Segunda-Feira 9 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
121
O CORREIO MERCANTIL n.25, Sexta-Feira 31 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
122
O CORREIO MERCANTIL n.19, Segunda-Feira 26 de Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1841.

339
pessoas que iam buscar cura dos males numa fonte que devolvera visão a uma cega. A sua
festa, no dia 2 de fevereiro, atraía gente de cidades limítrofes, que pagava promessa ou
apenas festejava a santa.123 Não temos descrições que falem da primeira metade do século
XIX. Sabemos apenas que depois seu ritual incluiria que os romeiros dessem três voltas na
capela (fundada pelos jesuítas no antigo engenho Pitanga), e três banhos na Fonte dos
Milagres.124

Porém na primeira metade do século XIX não vimos uma menção sequer a esse culto.
Parece ter crescido de importância na segunda metade do Oitocentos. Foi a partir de certo
momento essa procissão secundada apenas pela de Bom Jesus da Lapa.125 O afluxo
aumentava no verão, de novembro a fevereiro, com seu pico no dia 2 de Fevereiro.126
Poderia existir no período que tentamos compreender neste capítulo, mas seu apogeu se
deu depois. Xavier Marques acredita que seu culto, assim como outros regionais, na Bahia,
concorreu para diminuir o prestígio do culto do Bonfim, ou pelo menos suas peregrinações.

Já estamos, é verdade, um pouco longe dos pomposos outavarios em que o


bairro do Bonfim, e toda a península por elle dominada, se povoavam de
caravanas vindas do Reconcavo, dos altos Sertões da província e d´além
do S. Francisco, para tomarem parte na representação do estupendo
martyrio que tinha por theatro a airosa collina de Itapagipe. [...]

Hoje o sertanejo contenta a fé, indo mais perto dos seus campos geraes e
das suas serras, à gruta do Bom Jesus da Lapa. O habitante da matta e dos
Engenhos vae ao santuário de Nossa Senhora das Candeias, a Lourdes
bahiana. (MARQUES, 1920).

Itapuã e as Festas de São Tomé


Itapuã não era apenas distante da capital, mas difícil de se chegar. O caminho mais usado
em tempos coloniais era intenro ao invés de seguir pelo cordão dunar da orla. Este tinha o
inconveniente do rio Jaguaribe, que era mais largo do que se tornou depois, enchendo
bastante nas marés cheias, com suas correntezas próprias.127 Atravessavam o rio perto do
mar, onde o encontro com as águas do mar criava momentos de travessia mais fácil, na
maré baixa. Nesse momento vinham os cargueiros, homens que iam a burro com carvão,
lenhas, e alimentos (como iam alimentos no sentido contrário, rumo a Salvador). Os
alimentos podiam ir por mar, por saveiros. Mas quando o tempo encrespava, os burros eram
o meio mais seguro do suprimento.128 Essa era a situação no Oitocentos.

O apóstolo São Tomé, sendo peripatético e também protagonista de feitos inacreditáveis,


correspondeu a um topos planetário em termos de aparição miraculosa. Responsável por ter
propagado maravilhosamente as Boas Novas por todo o globo, era maneira de resolver um
ecúmeno que subitamente se expandira, e o problema conceitual e prático dos católicos e
suas ordens religiosas lidarem com populações que não viveram o advento de Cristo, e de
reinterpretarem figuras míticas prévias. Marcas de pegadas nas pedras foram atribuídas ao
apóstolo em sua missão por todo o orbe, bastando para assinalar a presença ancestral do
evangelizador. Teve presença na América, e foram encontradas em vários locais do
Brasil.129 Em Salvador, em duas localidades: em São Tomé de Paripe, e na região da atual
Piatã chamada de Ponta de São Tomé.

123
VIANNA, 1981, p.35.
124
BARROS, F. Borges de. À Margem da História da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1934; REVISTA
TRIMESTRAL DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DA BAHIA, Salvador, n.47, 1921-22. Bahia: Imprensa Official
do Estado, n.47.
125
BARROS, 1934.
126
REVISTA..., 1921-22, p.117
127
MEIRELLES, s/d b, p.13.
128
GANDON, 2008, p.278.
129
SILVA, 1971.

340
O primeiro relato que temos é o do Padre Manoel da Nóbrega, de 1549: “dizem ellos que
Santo Thomás, a quien llaman Zomé, passó por aquí. Esto les quedó por dicho de sus
antepassados. Y que sus pisadas están señaladas cabo un rio”130, marcas que depois
visitou, cobertas quando o rio enchia. Simão de Vasconcellos também o testemunhara, na
região já chamada Itapuã, e “tem-na os Indios em grande veneração, e nenhum passa, que
a não visite, se póde: e tem pera si que pondo-lhe o pé, fica melhorado seu corpo todo”.131
Muito distantes do núcleo colonizador, as marcas do apóstolo levaram a longas romarias
para venerar as relíquias. Não temos a menor descrição de festejos que não fossem dentro
do ritual católico. Ponta de São Tomé, a toponímia decorrente, hoje está praticamente
extinta. Embora as romarias tenham se desvanecido, encontramos ainda no século XX
festas ligadas às pegadas fantásticas de São Tomé.132

As pegadas de São Tomé permaneceram no litoral atlântico, assim como a toponímia. O


festejo ao santo persistiu e se transformou obscuramente, completamente à margem da
história conhecida e da organização eclesiástica, distante o bastante para ter sua autonomia
e para não merecer nenhuma menção ao longo do Oitocentos. A reconstituição do evento
só pode ser conjectural, a partir de descrições do século XX, que tampouco são datadas.

Edison de Palma Meirelles fala de uma cruz pintada de branco sobre pedestal azulado em
meio ao coqueiral. 133 As pegadas de São Tomé eram referidas nas crenças dos “mais
velhos moradores do local”, descobertas a cada 7 anos. Teria havido ali uma simples igreja,
coberta por palha de coqueiro, com festas nos dias 20 e 21 de dezembro. A imagem de São
Tomé era levada em procissão até ali a partir de seu lugar habitual na Igreja de N. Sra. da
Conceição de Itapuã. No caminho, os fiéis cantavam músicas populares, com pandeiros, o
bater de pequenas pedras lisas e o raspar de facas em pratos de louça. A imagem
pernoitava, alvo de devoção, com ladainhas e outros cantos. Nessa noite, altas fogueiras
eram armadas. O samba não cessava, no pequeno arraial montado ao redor, com barracas
vendendo bebida e comida. Na manhã do dia seguinte, retornaria à igreja, com missa
dedicada ao santo, paga pelos pescadores. Encerrando-se, por fim, com fogos de artifício.134

A existência no Oitocentos das fogueiras, feitas e alimentadas com as partes dos coqueiros,
era provável. Assim como do templo rústico; capelinha similar era a de N. Sra. da Luz, na
Pituba. Os sambas e chulas, evoluindo junto com os da cidade, do ponto de vista estilístico
e mesmo material, como os pratos de louça a custo acessível a simples pescadores. Não
era mais uma romaria, e nem as pegadas demonstravam poderes miraculosos. Era apenas
uma festa local, que durava cerca de oito dias por volta dos anos 1910. João da Silva
Campos recuperou uma reportagem, de 14 de fevereiro de 1816 do jornal A Tarde, com um
depoimento interessante de um homem chamado Pedro de Jesus: “muito menino, lembro-
me que, uma vez pescadores surpreendidos por tremenda borrasca chegaram à praia são e
salvos, anunciando que, na hora do perigo, o santo lhes aparecera, abrandando as

130
LEITE, 1956, p.153.
131
SIMÃO DE VASCONCELLOS, 1865, p.103.
132
Sua localização e mesmo unicidade são sequer certezas. Disse Theodoro Sampaio, em texto transcrito da Bahia Illustrada
de abril de 1918, ainda tê-las visto “numa praia das visinhanças de Itapoan” (SAMPAIO, Theodoro. A Itapitanga do Gentio. In:
A Luva 1928 fev 29, Ano 3, n.68-69. Salvador, 1928.). Alberto Silva, coligindo os depoimentos, defendia que ao longo dos
séculos se viram três diferentes marcas na pedra (SILVA, 1971, p.90). A primeira, descrita por Nóbrega em 1549, com quatro
pegadas vizinhas a um rio, provavelmente o Jaguaribe (ilva escreve Jacuípe. Mas, dada a distância disparatada, temos por
erro de grafia). A segunda, descoberta por um pescador em 1602, depois vista por Simão de Vasconcellos, e conhecida no
começo do século XX, defronte ao cruzeiro posto na Ponta de São Tomé, com uma marca apenas; segundo José Alvares do
Amaral, fora descoberto, em 21 de dezembro de 1602 “por um pescador, à beira-mar, no logar denominado S. Thomé,
caminho das Armações, Freguezia de Brotas, desta Cidade, o signal de um pé humano bem gravado n´uma pedra,
attribuindo-se ser o do glorio Aposotlo S. Thomé” (AMARAL, 1922, p.490). E uma terceira mais adiante, descrita por João da
Silva Campos em 1930 e fotografada pelo próprio Alberto Silva em 1953, ambas últimas com uma pegada apenas.
133
MEIRELLES, s/d b, p.28. As mesmas informações repete em outro momento (MEIRELES, 1978, p.149). Pedro Calmon, em
nota à obra de Sebastião da Rocha Pita, anotava que ali “uma palhoça esconde velho cruzeiro” (ROCHA PITA, 2013, p. 44).
134
MEIRELLES, Edison de Palma. Festa de São Tomé de Itapuã. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia n.87, 1978, p.149.

341
ondas”.135 E, de novo, em algo relacionado aos pescadores locais. A memória coletiva
atribuía agora a São Tomé milagres na faina do mar, resgatando os marítimos.

As outras festas importantes em Itapuã também guardavam relação com patronos dos
marítimos.

No século XX, havia a festa de N. Sra. da Conceição de Itapuã, por nove dias, nos fins de
janeiro e começo de fevereiro. O ápice, com missa festiva e procissão era o 2 de fevereiro,
como ocorria em outros lugares. Havia aqueles leilões para angariar recursos, e uma grande
Lavagem da igreja, buscando água de fontes próximas: do Boi, da Cacimba, Dendezeiros,
da Praia, da Ingazeira, da Pedra. Areia branca era espalhada no interior da capela e nas
suas escadarias, recolhida no Morro da Vigia.136

Na manhã do dia 29 de junho, no dia de São Pedro, fazia-se missa festiva importante para a
localidade.

Edison da Palma Meirelles mencionava ainda outra ermida, no cemitério do povoado, e


outra festa daquela comunidade, em desaparição no século XX: de São Francisco de Assis,
no mês de Outubro. No dia 3, à noite, faziam a procissão descalços, os pescadores e as
ganhadeiras, donos daquelas festas, até o cemitério onde estava a imagem, rezando ali
uma ladainha. Depois regressavam para suas casas, sambando durante todo o percurso.
No dia seguinte, o 4 de outubro, dia do santo, rezava-se a missa, sucedida de foguetório e
procissão com os andores de São Francisco e N. Sra. da Conceição, daquela ermida rumo à
igreja do povoado.137

Houve uma antiquíssima ermida de São Francisco na região. Mencionada já por Gabriel
Soares de Sousa: “para o sertão, duas léguas, está uma grossa fazenda de Garcia d´Ávila
com outra ermida de São Francisco, mui concertada e limpa”.138 Aparece na Carta
hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira, uma outra ermida de S.
Francisco, não muito distante do curso do rio Jaguaribe, talvez aquela ainda visitada pela
população de Itapuã (Fig.170). Talvez fosse aquela na fazenda São Francisco do Quadrado,
constando no Arquivo Público do Estado da Bahia, “cita na costa de Itapoan com seu
coqueiral e huma capela do dito Santo já muito arruinada cujas faz frente com o mar
salgado”.139 Notar o coqueiral e a capela arruinada. Destes empreendimentos de
colonização, a marca humana mais longeva aparentemente são os coqueirais. No entanto,
não é provável que se trate da mesma, dada a distância em que se encontrava da beira-
mar; talvez o culto permanecesse, se não a imagem do santo.

A esse santo era dedicada também a capela do solar do Visconde de Rio Vermelho, na
Armação, padroeiro da Armação do Gregório, onde se celebravam festas como dito.140 Seria
a origem da curiosa toponímia do Outeiro de São Francisco, na foz do Rio das Pedras,
próximo à dita armação (Fig.171). Podemos ainda especular que o culto a S. Francisco
pelos pescadores, que João da Silva Campos anotara na cidade, tenha se fundido com o
santo de Assis, já que a confusão entre santos homônimos era usual, em especial pelos
homens mais simples.

135
CAMPOS, 1930, p.520.
136
MEIRELLES, s/d b, p. 17.
137
MEIRELLES, s/d b, p.35.
138
SOUSA, 2010, p.67.
139
PEREIRA, Irlan Celestino. Breve Histórico do Instituto da Sesmaria e a Evolução das Principais Áreas da Cidade do
Salvador. In: Revista Direito UNIFACS – Debate Virtual, n.128, 2011. Salvador: Unifacs, 2011. Disponível em:
<https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/index> Acesso em: nov. 2019.
140
NEESER, W. & TEIXEIRA, Cid. Memória Histórica da Armação. Salvador: Empresa Gráfica Limitada, 1 jul 1944, p.14.

342
Figura 170 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. Em vermelho, a indicação do povoado de Itapuã, da capela a Nossa
Senhora da Conceição, que no mapa está terra adentro mas situa-se, ao menos em tempos recentes,
muito próxima à praia, e, adentrando, a ermida dedicada a São Francisco.

343
Figura 171 – Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes Portugal.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Nele, vemos claramente o Outeiro de São Francisco elevar-se,
entre a praia de Carimbamba e o Rio Santo Antônio das Pedras.

Pituba
A Pituba era antiga localidade de pescadores. No regimento para os oficiais da Câmara e da
Alfgândega, aprovado em 29 de julho de 1704, já se dizia que “levará da arrematação da
balança da praya quatro mil reis e pela da Pituba e Itapoãm dous mil reis”141. A rigor nada
distinguia o local das armações que existiam ao longo da costa. Exceto por algo
fundamental: a pequena capela de N. Sra. da Luz.

141
RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal do Salvador, 1953, p.50.

344
Figura 172 – Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1831-49). Fonte: Fundação Biblioteca
Nacional. Não apenas se indica a ermida dedicada a Nossa Senhora da Luz, como a situa antes de
uma lagoa e um afluente do rio Camurugipe (na época menor, e chamado de rio Chega-Negro).
Existe um rio ainda hoje correndo de norte a sul; e uma de suas margens corre a R. Miguel Navarro y
Cañizares. Se houve tal lagoa e curso d´água apontado no desenho, partiria da área entre a R.
Território do Guaporé e a Praça Nossa Senhora da Luz.

345
Figura 173 – Ermida de Nossa Senhora da Luz. Fonte: A LUVA #100, 1929. Atrás de choças de
pescadores, vê-se a capela. Esta versão do edifício estava próxima ao mar.

Encontrara Alves no Livro I de Acordãos da Santa Casa que em 1663 não apenas já existia
uma capela, como que se ordenava reedificá-la.142 Frei Agostinho de Santa Maria atestava a
antigüidade e mencionava extensas romarias nos seus primórdios, das quais se contavam
logo no começo do século XVIII.

142
ALVES, Marieta. História, Arte e Tradição da Bahia. 1ed. Salvador: Prefeitura Municipal do Salvador/ Departamento de
Cultura, Museu da Cidade, 1974, p.61.

346
He esta casa antiga, porque dizem ter mais de oytenta annos de principios,
& assim se entende ser reedificada pelos annos de 1680 & tantos: em seus
principios se fundou aquella casa de taypa, faltar-lhe-hião naquelle sitio os
materiaes para se fazer de pedra. Foy o seu Fundador o Capitão Felippe
Correa; passados depois alguns quarenta annos, crescendo mais a
devoção para com a Senhora da Luz, reedificou esta sua casa o Capitão
Manoel Gonçalves Sarayva, & sua mulher Francisca Ferreyra [...]

He tradição constante, que naquelles primeyros tempos fora muyto


frequentado aquelle Santuario, & que erão mutyo grandes os concursos, &
as romagens dos muytos, que hião a visitar a Senhora da Luz, & a valerse
de sua poderosa intercessão, o que ella augmentava com as grandes
maravilhas, que obrava a favor dos seus devotos. Mas faltou a curiosidade
de se fazer lembranças dellas, para agora as não podermos referir. Erão
tambem muytas as offertas, & as esmollas, & talvez, que seria muyto
necessario o tempo para as recolher, & assim faltou este para escrever a
causa que obrigava a fazer aquellas offertas, que para os interesses da vida
se applica todo o tempo; já hoje está mais fria a devoção [...] (SANTA
MARIA, 1722, p.103).

A capela é mencionada por Vilhena e aparece em mapas oitocentistas.143 A localização da


antiga capela nos parece incerta. Edson da Palma Meirelles dizia que “estava situada à
beira da praia, dando a frente para o pequeno povoado, e os fundos para o mar”144, pequena
a ponto de não caber mais do que 50 pessoas no seu interior. A localização não confere
nem com os mapas antigos (Fig.172), nem com Manuel Querino, que afirma que estava “no
Alto dos Coqueiros, um pouco antes do lugar denominado – Chega Negro”.145 Meirelles
falava de uma de suas últimas localizações, antes da atual (Fig.173).

Com base em informações do século XX, não se pode atestar que tinha já o mesmo formato
no século anterior, ainda mais nos primeiros quartéis. De qualquer maneira, vale o registro
das suas três etapas. A primeira seriam as novenas na capela. A última, a festa
propriamente dita, com comida, música e dança, no dia 2 de fevereiro. A intermediária seria
interessante, com uma passeata da areia, procissão para pegar a areia branca nas
imediações do Costa Azul a fim de espalhá-la em torno da igreja, mais uma procissão
náutica com as jangadas.146

Edison de Palma Meirelles ainda menciona uma fonte de água dedicada a N. Sra. da Luz,
que desapareceu no século XX.147

No seu trabalho exemplar, Nelson Varón Cadena considera que a festa de N. Sra. da Luz
era moderna, sem registro antes de 1898.148 Ele não consultou, porém, os documentos
coloniais. Era festa antiquíssima, e muito afamada em seus primórdios. Poderia não ser a
mesma festa, sem continuidade, mas é improvável. O mais seguro é que a festa se
mantivesse, ainda que de maneira rústica, com parcos recursos, dizendo respeito somente
aos moradores da vila, e seguramente ao conjunto dos pescadores da orla atlântica. Dado
até que os pescadores sempre festejavam. O ano de 1898 marcaria então algo da própria
urbanização, em um sentido mais amplo, quando a pena dos escritores da capital finalmente
alcançou aquela distante povoação.

143
VILHENA, 1922a, p.39.
144
MEIRELLES, s/d a, p.13.
145
QUERINO, 1955a, p.137.
146
LIMA, Herman. Roteiro da Bahia. 2ed aumentada. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1969, p.104.
147
MEIRELLES, s/d a, p.15.
148
CADENA, Nelson Varón. Festas Populares da Bahia: Fé e Folia. Salvador: Edição do Autor, 2015.

347
Amaralina
A futura Amaralina, então Armação da Lagoa e o trecho de praia seguinte, chamado
Ubarana ou Porto de Ubarana, orbitava em torno daquela armação, da fazenda Alagoa.
Nome por sua vez relacionado ao tanque represado para alimentar o engenho em 1768 por
Dom Domingos da Gama, marquês da extinta Casa de Nisa. Esta tivera domínio útil
adquirido em 1797 por Alexandre Teotonio de Souza, tenente-coronel de granadeiros, da
tropa miliciana da guarnição de Salvador, e a partir de 1854, passado para José Alvares do
Amaral, o que seria motivo de litígio pelas décadas seguintes.149

O engenho tinha ermida dedicada a N. Sra. dos Mares e ainda existente, onde ocorriam as
festas desta santa. João da Silva Campos fala dela em janeiro, “com arraial, visita de ternos
e ranchos de Reis, e procissão marítima. Tudo promovido por uma ´devoção´”150. No século
XX, este era o quadro: a imagem saía em procissão dali para a Pituba na noite de sábado, e
ficava hospedada na Igreja de Nossa Senhora da Luz. Na manhã de domingo, partia dalia
uma procissão náutica com embarcações diversas (saveiros, jangadas, entre outras),
apinhadas de gente, até o Rio Vermelho, desambarcando ali, com direito a música. Em
procissão terrestre, davam a volta no Largo de Sant´Anna, entravam na sua igreja, faziam a
missa, e dali retornavam para a capela de N. Sra. dos Mares.151 A procissão rendia
homenagem a outra comunidade, na Pituba, e desembarcavam em uma terceira, para uma
parte por terra, o que reforça nossa hipótese da relação entre tais localidades de
pescadores.

Figura 174 – Amaralina, vista a partir do outeiro onde situa-se a capela de N. Sra. dos Mares, sem
data. Fonte: AHM-FGM. A colina que se vê ainda é parte do regime de colinas mais suaves do litoral
atlântico, com praias mais extensas. Do centro à direita, a Ponta de Itapuãzinho, onde a linha da
costa faz uma inflexão.

149
CAMPOS, 1942.
150
CAMPOS, 1942, p.120.
151
LOPES, 1984, p.59.

348
O Rio Vermelho
As festas N. Sra. Sant´Anna, do Rio Vermelho, como sabemos teleologicamente, no último
quarto do século XIX eram prévias do Carnaval, marcando o final da temporada nos
arrabaldes e o retorno à cidade, finalizando com a folia momesca o ciclo de verão,. Era
talvez o mais afamado arrabalde de veraneio da cidade. E no século XX, emergirá a Entrega
dos Presentes à Mãe d´Água, a Yemanjá. Porém na primeira metade do Oitocentos, a Mãe
d´Água era presenteada em outros lugares da cidade. E a festa a Sant´Anna também não
era tão importante. Sua entrada no calendário e cotidiano da cidade merece um certo
cuidado.

Diz Louis François de Tollenare que o Rio Vermelho nas primeiras décadas do Oitocentos
era “um povoado de pescadores de umas 100 cabanas na foz de um pequeno rio”.152 O
cônsul inglês William Pennell passara em 1827 alguns dias no Rio Vermelho, afirmando ali
viverem cerca de 50 brancos, 40 mulatos e cabras, e 900 negros libertos, essencialmente
vila de negros pescadores, morando em palhoças sem mobília153 (Figs. 175 a 178).
Ironicamente, a ida do cônsul já indicava uma visitação ao pitoresco lugar, dinâmica em
crescimento discreto.

Rebello, cerca de uma década depois, considerava que era “grande povoação”, comparado
com as demais ao longo da borda atlântica. Para ele também Itapuã era grande povoação, o
que nos dá um termo de comparação. Já dava conta da “ponte de pedra na estrada que vai
da Cidade para Itapoan”154, que seria tratada depois como Ponte da Mariquita, sobre o que
era originalmente o Rio Vermelho, ou rio Camurugipe.

No Rio Vermelho, ao contrário da Península de Itapagipe, os sinais da organização de tais


festas, da procura da região para veraneio, e da importância, discreta mas decisiva, dos
banhos de mar, são pontuais, mas constantes, e alguns temporões.

Figura 175 – Cabane de negre jus la route de Rio-Vº (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Apesar das excursões ao distante Rio Vermelho, há escassos desenhos desta, como de vilas
similares. Estas, que servem como documentos preciosos, foram feitos por um autor sem a formação
artística das demais representações. Isso se revela pela composição, que se desenvolve em um
plano apenas, sem as convenções consolidadas de então.

152
TOLLENARE, 1956, p.317.
153
REIS, 1991.
154
REBELLO, 1829, p.136.

349
Figura 176 – Route de Rio-vermeillo (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil (Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

Figura 177 – Cabanes de pêcheurs à Rio-vermeillo (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Naquele momento, umas poucas rústicas casas. Tipologicamente são interessantes. A do meio
mostra as feições de um mocambo, com abertura de porta e janela na fachada do oitão do telhado de
duas águas. A casa da direita, ademais, com quatro águas, mostra alvenaria muito rebaixada, em
feição mais africana.

350
Figura 178 – Vue dessinée à Rio-vermeilho (1836-9), de Vistas, usos e costumes do Brasil
(Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e da Ilha de Ténériffe. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Se o desenho anterior parecia mostrar as cabanas de pescadores mais rústicos, aqui são
construções maiores, ainda que térreas, mais consolidadas.

Vejamos a festa.

Sua origem lendária teria sido um milagre atribuído a Nossa Senhora que, durante as
guerras de Independência, apareceu repentinamente aos pescadores sob a forma de uma
velha e avisou-lhes da vinda dos inimigos portugueses, permitindo a fuga. Acontecendo em
13 de fevereiro, seria razão da comemoração nessa data.155

Pelo relato de Licídio Lopes, que fora pescador e filho de pescadores dali, tal episódio se
transmutara na memória coletiva. Conforme lhe fora contado pelos mais velhos, o caso
ganhara mais detalhes, mas datava da Guerra de Canudos, da campanha para
recrutamento forçado.156 Ademais da plasticidade da memória popular, aponta-se aqui uma
certa abertura do tempo cotidiano para ser marcado pelo pensamento mítico, por assim
dizer.157 Para comemorar irrupções do transcendente sob a forma de milagres, reconhecidos
como tais por uma comunidade, inscrevendo-os no tempo cíclico. Comenta ainda Lopes
sobre um milagre ocorrido em 29 de setembro de 1905, que tornara, ao menos para aquela
pequena comunidade de pescadores, um feriado particular: nesse dia não saíam para
pescar. Nesse mesmo episódio, ademais, as famílias dos pescadores, que estavam em alto
mar em dia de temporal, solicitaram a intervenção miraculosa não apenas de Nossa
Senhora Sant´Anna como do Senhor do Bonfim. Os ex-votos foram então entregues nos
templos dos dois santos, no do Rio Vermelho, e no do Bonfim. O que nos mostra que o
vínculo do santo com os trabalhadores do mar não dependia de sua história pregressa, mas
de uma espécie de história em conjunto, particular. Os dois episódios anteriores, das
guerras de Independência e Canudos, são atribuídos como causa da festa da santa

155
QUERINO, 1955a, p.137.
156
LOPES, 1984, p.47. Não se deve minimizar o medo às guerras. Os marítimos eram recrutados compulsoriamente. Antônio
Alves Câmara (1890) mostra que na segunda metade do século XIX a Bahia tinha em alguns anos mais embarcações e
marítmos que a capital do Império, Rio de Janeiro. Em 1864, tinha 20.528 tripulantes, contra os 14.867 do Rio de Janeiro.
Porém, após a Guerra do Paraguay, seu número cai vertiginosamente, para 14.669. Em compensação, dos marítimos do Rio
de Janeiro reduziu quase nada: para 14.828. Ou seja, os conflitos tinham um impacto muito concreto na economia da
Província, e na vida dos marujos.
157
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.

351
acontecer no Rio Vermelho no domingo anterior ao Carnaval, não no seu dia oficial, 26 de
julho.

Antonio Garcia, em texto clássico sobre o assunto, fala do tempo em que só havia
“casuchas de palha, cobertas de palmas, dispostas em ângulo diedro mui fechado, cujas
extremas pareciam varrer o solo”. Na véspera da festa de Sant´Anna, as pobres casas do
vilarejo se arrumavam – faziam alpendres de palha, velas iluminando globos de papel,
varria-se e areava-se o terreiro – e circulava cortejo, com fogos de artifício e música.
Passavam a imagem da santa de casa em casa, fazendo-a beijar eventuais enfermos e
pedindo esmolas para o culto. Ao raiar do dia, e repicando os sinos para a primeira missa,
dava-se a corrida de jangadas. Pareceria singular, como soou a Garcia, se não tivéssemos
visto que era um modus operandi contumaz entre pescadores. Vejamos a descrição e como
ela coincide, ao menos em linhas gerais, com o que Alves Câmara apontara.

Corriam os pescadores às jangadas, deitavam-nas sobre rolos, fincavam o


mastro cujo topo se embebia em enorme ramalhete e donde partiam cordas
de bandeiras, apparelhavam-nas em summa para a romaria marítima.

A esse tempo elevava-se na praia da Mariquita, ponto de partida da


romagem, arcaria singular e typica, muito abatida, de palmas entrançadas
em esteios de colmo e pelo areal alastrava-se subita e estranha vegetação;
palmeiras e ananazes silvestres, gravatás, patyobas e ouricurys, bambus
enfolhados e sussurrantes ao sopro do terral.

A bizarra esquadrilha de jangadas, pompeando vistosas descortivas, em


que eram aproveitados até lenços de rapé e grandes chales de ramagens,
movimentava-se ao se aproximarem os “chefes de terra e de mar”
entrajados de branco, largas faixas a tiracollo – insignias de seu posto.

Precedidos de um terno de “barbeiros” e mais tarde da banda da


“Chapadista”, estes figurantes obrigados pela tradição, passavam
envaidecidos sob os arcos triumphaes em direcção à capitanea da flotilha
indigena.

Os músicos de oitiva, muito espigados dentro das blusas de brim pardo,


bordadas a suttacho, eram distribuidos pelas jangadas maiores.

Os “chefes” embarcavam logo e por entre o vozear ensurdecedor de


mulatas e crioulas, de saias farfalhantes, camisas de crivo e pannos
listrados que, entrando pelo mar salteavam as embarcações,
desequilibrando-as e fazendo-as virar, de que resultavam incidentes ultra-
comicos, dava-se o signal de partida.

Largados os traquetes, as jangadas deslisam à flor das aguas, qual mais


preste em vencer primeiro a distancia que vae do porto da Mariquita ao de
Sant´Anna. (GARCIA, 1923, p.283).

Chegando no destino, ao som da música e foguetes em terra iam à capela para, concluída a
liturgia, retornarem à Mariquita “erguendo os ´chefes´ os tradicionais ramos e gritando
victores fervorosos à Senhora Sant´Anna, sua protectora”158. Antonio Garcia não explica o
que eram os “chefes de terra e de mar”, e a corrida parecia mais um folguedo que uma
competição. À tarde se encenavam as Cheganças e, enquanto isso, “sob os toldos e tectos
de palha serviam-se lautas ceias e, à luz das estrellas, ouviam-se as melodiosas
modinhas”.159

158
GARCIA, 1923, p.283.
159
GARCIA, 1923, p.283.

352
O percurso apontado pela corrida é pequeno, de uma parte a outra do Rio Vermelho. No
entanto, outra versão permite uma interpretação mais rica. Repetia a procissão na véspera,
com músicos e arrecadando donativos, dispersando-se apenas à madrugada.

No dia aprazado, as jangadas empavezadas e repletas de gente tomam


rumo da Pituba em saudação à Nossa Senhora da Luz, que aí se venera,
sendo recebidas festivamente pelos moradores do lugar.

O chefe do mar vai com seu pessoal cumprimentar o chefe de terra. Feito
isto, voltam ao porto de Santana e assistem à festa da Padroeira.

Antigamente iam os grupos por terra a encontrarem-se no antigo – Contrato


– unindo-se aos pescadores vindos da Armação conduzindo as imagens de
S. Benedito e S. Gonçalo para acompanharem, em procissão, a Nossa
Senhora da Luz e ao Deus Menino. (QUERINO, 1955a, p.137).160

A lavagem da Matriz de Senhora Sant´Anna repete parte da mecânica exposta para a Igreja
de N. Sra. da Luz: água trazida de fontes próximas (Cabuçu, Casa Branca e do Pinheiro) e
areia recolhida da praia de Ondina (então chamada de São Lázaro) para pôr dentro da
igreja, e areia do outro extremo, de Amaralina, para espalhar nos passeios.161 Reforça
ademais a tese do entrelaçamento entre as comunidades pesqueiras, ao menos as da borda
atlântica, onde santos ligados ao mar se trasladavam de uma localidade a outra: N. Sra. dos
Mares, N. Sra. da Luz e São Gonçalo.

Aqui cabe se perguntar se o rito não era repetido nas outras localidades atlânticas de
pescadores, como Pituba e Itapuã. Seria inverossímil que não, já que o mesmo ocorria com
os trabalhadores do porto e com os canoeiros da baía. O exclusivo do litoral aberto eram as
jangadas, como eram as canoas mais presentes no mar interior. De resto, o formato do
evento seria o mesmo.

A diferença estava em um aspecto usualmente inadvertido. Em uma fotografia, quem está


oculto é o fotógrafo. Na descrição cheia de colorido pitoresco, a testemunha não se faz
presente na cena, isto é, Antonio Garcia. A festa do Rio Vermelho ganhava a atenção
porque havia escritores por testemunha, gente que se preocupava em anotar a cena, em
apreciar-lhe o folguedo rústico, as tradições populares em um marco de interesse folclórico.

A descrição de Antonio Garcia refere-se a vagos tempos de antanho. Porém em 1841


encontramos o primeiro registro sobre essa procissão das jangadas.162

- Os encarregados da romaria das jangadas na povoação do Rio Vermelho,


fazem publico que em o dia 2 do vindouro mez de fevereiro às 3 horas da
tarde, sahirá do largo da capella da mesma povoação, o bando de
mascarados, anunciando a festividade solemne que ali terá lugar em o dia 7
do próximo mez de fevereiro, bando esse que circulará a freguesia da
Victoria, para o que se tem obtido a competente autorização, o uniforme
será branco, e fitas, admitindo-se também emmascarados de qualquer
vestimenta que seja.163

160
Não tentamos interpretar o litoral sob a clave étnica. Mas não deve passar desapercebido que, se São Benedito não era um
santo relacionado ao mundo do mar, era considerado na Bahia como padroeiro dos negros, ele mesmo negro, que, ao
contrário dos demais, bebia cachaça com seus devotos (CALASANS, José. Cachaça, Moça Branca: um estudo do folclore
[1951]. Salvador: Edufba, 2014, p.65). Poderia não ser esse o motivo. Entretando, pode não ser consciência seu culto ali, nas
mesmas armações onde houve levantes de escravos, em 1814 e 1828.
161
LOPES, 1984.
162
Chamada sempre “romaria” na literatura da época.
163
O CORREIO MERCANTIL n.20, Terça-Feira 26 de Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.

353
O Bando Anunciador era algo importante. Se naquele momento era o Bando de São
Gonçalo no Bonfim o mais importante da cidade, na segunda metade do século tal se
reverteria, mantendo-se como uma parte marcante do culto a Sant´Anna, que surpreende
por ser tão temporão. Ainda pelo seu caráter “carnavalesco”, mais próprio do Entrudo, com
direito a mascarados. E o seu alcance: não se restringia ao Rio Vermelho e suas
redondezas, de habitações esparsas e humildes, e sim se espraiava pela freguesia,
provavelmente avançando para onde havia gente de mais posses. Outros elementos nos
fazem olhar com certa desconfiança do lírico retrato de Antonio Garcia, apontando para um
complexo festivo de porte insuspeito.

- Os juizes e mesarios da Senhora Santa Anna do Rio Vermelho fazem


sciente ao respeitavel publico, que no domingo 29 do corrente mez celebrar
se há impreterivelmente a festa e romaria das jangadas, com grande leilão
na vespera, e no dia rica e bem uniformisada cavalhada, graciosa
chegança, e excellente fogo de planta; pelo que sendo tão variados os
festejos do referido dia, esperão a concurrencia dos devotos e dos
amadores do aprazível sitio do Rio Vermelho.164

Já existe uma Devoção, e uma programação que, apesar de lançar mão de atividades
costumeiras, mostrava uma organização emergente. Em 1844, encontramos um aviso de
que “a sociedade Religiosa do R.º Vermelho quer contractar um Capellão”.165

Quando Antônio Alves Câmara escreveu sobre as embarcações tradicionais baianas, era a
romaria das jangadas algo singular: “os pescadores dos portos de Sant´Anna e Mariquita
n´aquella localidade fazem uma romaria n´ellas, partindo de um para outro porto, com
musica no mar”, para festa então já “muito concorrida”.166

Como observara Cadena, se a Chegança era um folguedo relativamente simples, realizado


pelos mais pobres, o mesmo não era o caso das cavalhadas, ocasião de exibição das
montarias – em uma cidade onde eram essencialmente utilizadas para tais momentos – e da
habilidade eqüestre, igualmente sintomática de condições para tanto.167 O “fogo de planta”
eram fogos de artifício que queimavam em mastros, e a pirotecnia também indicava alguma
abundância.

E os anúncios em jornal marcavam outra diferença. As muitas festas de canoeiros não


apareciam em periódico. Ocorriam em uma faixa de gastos muito pequena. As festas do Rio
Vermelho contavam com apoio pecuniário de algum vulto. Ou de veranistas que se
afeiçoaram aos moradores locais e à santa, ou de pescadores mais prósperos (e vimos que
era uma atividade que permitia essa situação no século XIX).168

Montava-se um esboço de um ciclo próprio no arrabalde. No dia 6 de janeiro de 1841


aparecia um outro culto, em anúncio em jornalo que convidava “a todos os devotos do Sr.
Bom Jesus dos Necessitados e Naufragantes, para assistirem a festa em sua capella do Rio
Vermelho à 6 do corrente”.169 O ícone do Bom Jesus dos Necessitados e Naufragantes,
obviamente outra devoção ligada às agruras do mar, estava na capelinha de N. Sra.
Sant´Anna.

164
O CORREIO MERCANTIL n.21, Sábado 25 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
165
O GUAYCURU n.85, Sábado 15 de Março de 1845. Salvador: Typ. de José da Cosa Villaça, à Ladeira da Praça, n.1, 1844.
166
CÂMARA, 1888, p.15.
167
CADENA, 2015.
168
No Cap. 2.
169
O CORREIO MERCANTIL n.3, Quarta-Feira 4 de Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.

354
Como dito em capítulo anterior, em 1839 falava-se em “capadócios” nas festas do Cabula,
decerto de N. Sra. do Resgate, e do Rio Vermelho.170 Outra festa indica o peso que o lugar
ganhava no verão. Em 1843, o Entrudo começa a aparecer em notícias como algo
relevante, exigindo medidas públicas, conforme ditara o Desembargador João Joaquim da
Silva, chefe interino da Polícia da Província:

Faço saber que terminantes ordens tem sido dadas para repressão do
perigoso divertimento e uso intoleravel de se expôr em lojas e ruas nos tres
dias de entrudo gamellas, ou quaesquer outras vasilhas cheias d´agoa, do
que tem resultado desordens e molestias graves, que cumpre evitar.171

Nesse ano enviaram “durante os tres dias de entrudo uma patrulha de cavallaria para o sitio
do Rio Vermelho, à disposição do subdelegado da Victoria”. O Entrudo era visto como algo a
ser controlado, e no longínquo Rio Vermelho havia uma pândega digna de crédito.

O Rev. Parish Kidder visitou o lugar onde, “nas margens do Rio Vermelho, fomos a uma
pequena casa ocupada por meu amigo [o Rev. Edward Parker] e sua família na estação
quente do ano”172 retornando pela praia. Nesse mesmo período encontramos
expressamente o aluguel de uma casa para o veraneio: ”he muito fresca, proxima à praia, e
decente para uma familia passar a festa”.173

São Lázaro
É incerto o momento de construção da primeira capela, que antecedeu à Igreja de São
Lázaro (Figs. 179 a 181). O Padre Marcos Marian Piatek, a partir de depoimentos, especula
ter sido dedicada a São Roque e, com base em documentos escritos, ser anterior a 1737. A
construção de uma nova igreja, agora dedicada a São Lázaro174, se fez a partir da doação
de Jorge Fernandes da Rocha e Francisca Xavier, proprietários do terreno no Outeiro do
Camarão, em 1737.175

A Irmandade de São Lázaro construiu ao lado da igreja um pequeno hospital de isolamento,


o Lazareto, após 27 de março de 1762, quando foi concedida a permissão para o mesmo
pelo Governador D. Rodrigo José de Menezes e Castro. A função do Lazareto, do
isolamento dos hanseníacos, foi transferida em 1787 para a antiga Quinta do Tanque.176
Próximo, também sem clara data de origem, estava o noviciado das Ursulinas, que João da
Silva Campos denomina Vila Santa Angela, e onde Vilhena indicava pequena capela
dedicada a Nossa Senhora das Mercês.177 Robert Dundas comentara sobre as casas no
Outeiro de São Lázaro, com apenas uma efetivamente boa em sua opinião, justamente a
generosamente emprestada para visitantes, e algumas outras bem menores no seu sopé.178

A igreja de São Lázaro recebia seus romeiros. No Livro de Tombo da paróquia do Rio
Vermelho contava que “o bairro de São Lázaro ou Areia Preta é constituído de gente

170
O CORREIO MERCANTIL n.137, Segunda-Feira 1º de Julho de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
171
O CORREIO MERCANTIL n.44, Quinta-Feira 23 de Fevereiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1843.
172
[...] on the banks of the Rio Vermelho, we called at a small house occupied by my friend and his family in the hot season
of the year, and thence returned by the sea beach [...] (KIDDER, 1845a, p.23).
173
O GUAYCURU n.61, 21 de Novembro de 1850. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1850.
174
Essa mudança da invocação do mesmo templo, ou do mesmo sítio, haja em vista a substituição dos edifícios, talvez seja um
dos responsáveis por aquilo que Waldir Oliveira notara, que “São Roque e São Lázaro, ao menos na Bahia, identificados
como um só, de tal modo que se torna, hoje, impossível dissociá-los, na tradição popular” (OLIVEIRA, Waldir Freitas. Santos
e Festas de Santos na Bahia. Secretaria de Cultura e Turismo/ Conselho Estadual de Cultura, 2005, p.69).
175
PIATEK, Marcos Marian. Santuário de São Lázaro. História e Fé, Cultura e Missão. Salvador: Legal Editora Gráfica Ltda.,
2005, p.17.
176
Conforme Braz do Amaral (VILHENA, 1922a, p.171).
177
CAMPOS, 1930, p.479; VILHENA, 1922a, p.36.
178
DUNDAS, 1852, p.219.

355
paupérrima. No entanto para lá afluem muitos romeiros...”.179 Em 1838 encontramos o
seguinte anúncio: “o Provedor, e Mesários de S. Lazaro, do Oiteiro do Camarão, arrendão a
roça, e casa de morar pertencente ao mesmo Santo, com muito arvoredo, capim, e outras
muitas plantações”.180 E no ano seguinte, repetiu-se, com direito a “festa solemne, e lindo
fogo de vista à noite” e, importante, a arranjos na localidade: “a mesa incansavel esmerou-
se no reparo da capella, e mesmo da estada, para o que muito concorreo os proprietarios de
seus predios, à fim de facilitar o ingresso e aprazível citio”181. Isso não seria incomum, e o
caso mais abrangente, melhor sucedido, dessa transformação do meio seria o Bonfim.

Figura 179 – Capela de São Lázaro. Fonte: FALCÃO, 1941.

179
PIATEK, 2005, p.20.
180
O CORREIO MERCANTIL n.473, Sexta-Feira 25 de Maio de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
181
O CORREIO MERCANTIL n.10, Sábado 12 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.

356
Figura 180 – Capela de São Lázaro, sem data. Fonte: CEAB. Se aqui a fachada tinha cunhais e
ombreiras aparentemente mais demarcadas – talvez recém caiadas – a vegetação ao redor parece
indicar que se passara antes – em dia de festa, pelo visto – que a imagem anterior.

Figura 181 – Outeiro de São Lázaro. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Abaixo vemos as instalações
de campo de exposições agropecuárias.

Em 1839, a 13 de janeiro e em 1840, 27 de dezembro, fez-se nova convocatória, com um


adendo: “no dia immediato (28) tambem se faz festa solemne à antiga imagem do Sr. Bom

357
Jesus dos Navegantes, erecto na mesma capella”.182 Tal qual na antiga capela a S.
Gonçalo, no Rio Vermelho, esta também guardava o ícone de um santo ligado diretamente
ao labor do mar, para proteger os pescadores da localidade, dos muitos pescadores das
regiões adjacentes.

Abaixo, no sopé do outeiro, em algum momento se iniciou um outro festejo relacionado.


Hierofania de perfil popular que escapou por completo aos principais estudiosos do tema,
cultuada pela população pobre da Areia Preta (atual Ondina) e Rio Vermelho (em especial,
Morro da Sereia e Paciência), estava dentro do raio de visão de Licídio Lopes, que deu o
relato mais completo do assunto. Falava de uma gruta denominada milagre de São Lázaro,
com águas curativas.183 Ali os fiéis banhavam-se, depositando muletas e tudo que usavam
quando doentes, acendiam velas e agradeciam-lhe o milagre. Quase certo é aquela
identificada como Casa de Omolu e Obaluaê, no costão rochoso onde se construiu o Othon
Palace Hotel, com acesso discreto por trás deste, rente ao mar. Depois iam à praia,
banhavam-se no mar, festejavam, tocavam sambas, com comida e bebida que levavam, em
um piquenique à beira-mar, e só retornavam à noite. Dava lugar a festejos profanos e
socialização, porque os rapazes iam assistir e tomar parte, e ali observavam as moças. Seu
público era originalmente os pescadores do Camarão e do Rio Vermelho.184 Na praia de São
Lázaro, onde depois ficou o Circo Troca de Segredos e hoje há quadras esportivas, estava a
tal gruta e a fonte de águas miraculosas. Estas segundas-feiras concluíam com festas.
Hildegardes Vianna confirmava uma loca, à beira-mar, embora sem a presença da água
corrente, “onde os crédulos vão acender velas e pedir milagres”.185 Carlos Torres apontava
algo mais geral, do clima festivo nas adjacências nas festas do santo, “com folguedos
populares pelos bairros de Areia Preta e Ondina”.186

A Barra
A Barra, como outros arrabaldes, era local de roças nas primeiras décadas do século XIX.
Vendiam-se propriedades de todos os tamanhos.187 Em maio de 1814, anunciava-se:

Quem quizer comprar huma roça defronte de Santo Antonio da Barra, com
perto de duzentos pés de arvoredo novos de excellente qualidade; boa casa
térrea, mas nova, e de madeiras de muita duração; além disto perto de tres
mil pés de annanazes muito bons, com muita terra, e principalmente com
mato para armar às pombas quatro ou cinco barracas, e que compete com
o mato da Barra, e talvez melhor por estar fexado e entranhado nas terras
da roça, sendo livre de lá irem caçar, por ser tudo pertencente à dita roça,
que he cercada [...]188

Propriedades menores, como “rocinha sita na Barra, com bastante arvoredo de espinho,
agoa dentro, casa de morar, e boa vista de mar”.189 Casas com quintais, ainda que sólidas,
“de pedra e cal, paredes dobradas, sobre si, quintal murado de tijolo, com quartos, para

182
O CORREIO MERCANTIL n.276, Quinta-Feira 24 de Dezembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
183
LOPES, 1984.
184
Hildegardes Vianna descrevia, na segunda metade do século XX, que “à beira-mar, existe uma loca, onde os crédulos vão
acender velas e pedir milagres” nos dias da festa de São Lázaro, sincretizado com Omolu (VIANNA, 1981). Talvez esta loca
tenha algo que ver com aquelas águas miraculosas.
185
VIANNA, 1981.
186
TORRES, Carlos. Bahia Cidade-Feitiço. 2 ed. revista e aumentada. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1961, p.158.
187
Antônio Risério (2004, p.481), sem dar-se conta que “arvoredo” era um sinônimo para “pomar”, e atributo essencial de
qualquer boa roça em qualquer canto da cidade, a partir de anúncios de jornal achou que a Barra estava sendo procurada
pelas suas árvores.
188
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.42, Sexta-Feira 27 de Maio de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
189
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.51, Sexta-Feira 26 de Junho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.

358
escravos no dito”.190 Havia a construção de pequenas moradas, por certo para os que ali
trabalhavam, como duas moradas de casas “ambas com frentes de tijolo, divididos com
pilares do mesmo, e repartimentos de adobos”191 de 1814. Ou estas, de 1818, “morada de
casas de pedra e cal, com seu quintal, na Barra, defronte do Forte de S. Maria, que forão do
Arpuador Manoel Ferreira Santiago”192, de alguém central na caça de baleias.

Em 1819, algo singular, para comprar ou arrendar “hum grande Armazem de pedra e cal,
coberto de telhas, sito na praia da Barra desta Cidade”.193 Existiam instalações produtivas
na Barra, como alambique, a fábrica de vinagre e as armações de baleias, na primeira
metade do século XIX.

Nesse ínterim, o lugar fora se transformando. As indicações que temos são esparsas,
apontando para essa mudança gradual mas certa. Se as roças continuavam, o fim
produtivo, ligado ao extrativismo e a manufaturas cedia espaço às segundas residências.
Nesse sentido podemos interpretar Rebello, quando afirmava que havia lá “grandes quintas,
ou roças, e optimas cazas de morar, entre ellas nota-se a caza de Cirqueira muito grande, e
feita com a maior riqueza, e gosto em architectura, e escultura, e dourados”.194

Um dado isolado aponta um perfil para as construções do local: “vende-se uma roça com
boa casa de campo com grande varanda ladrilhada de pedra marmore, sanzallas para
escravos, grande brejo e mais bemfeitorias, sita na povoação da Barra”.195 O detalhe está no
uso do mármore, provavelmente no acesso principal, indicando um material mais luxuoso
para o que seria uma mera fazenda. Ou este anúncio, falando de um sobrado já na
“povoação da Barra”
com sotão, bom quintal com brejo, agua dentro, estribaria separada, tendo a
casa bastante commodo para grande familia e toda envidraçada, com
varanda no fundo; he toda feita de pedra e cal, faltando unicamente ferro e
pintura [...]196

Notável é o aluguel, em dezembro de 1840 de “uma grande casa de sobrado na barra, por 2
ou 3 meses, e por modico preço à vista do que valle; e até serve para duas familias”.197
Provavelmente sendo posta à disposição para o verão. Nesse tempo já era a Barra sítio de
veraneio. Antonio Joaquim de Magalhães Castro, Comandante Geral do Corpo Policial,
buscando tranquilizar a população sobre um boato de nova ação de malês na cidade, nos
primeiros dias de janeiro de 1839, informou aos redatores do periódico Correio Mercantil que
“Vv. Ss podem ficar certos, que as Authoridades primarias nem do centro da cidade se ainda
retirarão para os passatempos”.198 No que estes responderam:

Certificando-nos o illustre correspondente, que as authoridades primarias


nem ainda no centro da cidade se retirarão para os passatempos da festa, e
entendendo nós, por authoridades primarias, os Ex.mos Presidente da

190
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.83, Terça-Feira 18 de Outubro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
191
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.4, Sexta-Feira 14 de Janeiro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
192
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.48, Terça-Feira 16 de Junho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
193
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.11, Sexta-Feira 5 de Fevereiro de 1819. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1819.
194
REBELLO, 1829, p.171.
195
O CORREIO MERCANTIL n.40, Sábado 18 de Fevereiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
196
O CORREIO MERCANTIL n.247, Terça-Feira 19 de Novembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.
197
O CORREIO MERCANTIL n.271, Quinta-Feira 17 de Dezembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
198
O CORREIO MERCANTIL n.5, Segunda-Feira 7 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp.,1839.

359
Província, Commandante das Armas, e Intendente da Marinha, sentimos ter
noticia certa de que o Exm. Sr. Commandantes das Armas se acha
actualmente na Barra, conjunctamente com o Illm. Sr. Intendente da
Marinha, e consta-nos tambem, que o Exm. Sr. Presidente da Província fôra
para sua roça do Bomfim, em um d´estes ultimos dias. Apezar d´isto, não
são tão longinquos esses lugares, que não venhão á cidade diariamente
essas authoridades, para o desempenho de seos deveres, que dignamente
preenchem.199

O Presidente da Província, Tomás Xavier de Almeida, tinha roça no Bonfim e para ela ia no
verão. Os outros dois funcionários, no topo da cadeia de comando da Província, para a
Barra.

Figura 182 – View of the entrance of the Bay of Bahia. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Ao
fundo, a Igreja de Santo Antônio da Barra, dominando o entorno.

A primeira menção a festejo mais organizado que temos na Barra foi aquela dedicado a São
Gonçalo em 1840. Cadena encontrou referência em edição d´O Correio Mercantil do ano
1847, com fogo de planta, romaria dos pescadores, procissão com andor de santo.

Um século depois, escreveu João da Silva Campos que os pescadores da Barra no dia da
festa de Nosso Senhor dos Navegantes, mandavam – isto é, custeavam – uma missa em
seu louvor, depois faziam “curta procissão por mar, com sua imagem, do sopé da colina da
igreja de Santo Antônio até a ponta do farol, donde voltava”.200 Aqui aparecem os
pescadores, para uma invocação eminentemente dos marítimos. E que vinham de outros
rincões, em romaria náutica, em outra ocasião.

199
O CORREIO MERCANTIL n.5, Segunda-Feira 7 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp.,1839.
200
CAMPOS, 1941, p.135.

360
Eu ainda me lembro que o pessoal de Mar Grande, da Ilha de Itaparica,
tinha a devoção de todos os anos fazer uma romaria a Sto. Antônio da
Barra no dia 1º de novembro. Chamavam a “Festa das Tabaroas”. Vinham
muitas embarcações, muita gente acompanhava e se acampava no Porto
da Barra, era uma espécie de piquinique. Faziam muitas festas com samba,
capoeira e batuque, pois em Mar Grande havia muitos batuqueiros. Muitos
rapazes do Rio Vermelho eram convidados para fazer parte na festa do
batuque. (LOPES, 1984, p.47)201.

Esta foi uma investida ao âmago do que nos parece ser uma necessária Heortologia
Urbana, o estudo das Festas em suas implicações urbanas. Isto pode e deve ser visto em
vários níveis.

O reconhecimento dos lugares sagrados, e sua consagração, por rituais diversos – as


pegadas de apóstolos marcadas nas pedras, os ícones encontrados na areia da praia,
ermidas levantadas, o axé assentado – fixa o homem no lugar. Organiza o que é caótico, na
forma de um Cosmos, ou cria singularidades na isotropia do espaço. Não é acidental que
fosse uma constante dos primeiros escritos sobre a Bahia enumerar não apenas os
engenhos e fortificações, mas também toda e qualquer ermida e igreja levantada.

Figura 183 – Localização das procissões, cortejos e corridas náuticas do Oitocentos, a partir do
Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll.
Edição do Autor.

201
O mesmo Licídio Lopes, em 1969 (seu livro foi escrito então, e publicado em 1984) já tinha a festa da Barra como extinta
naquele momento.

361
As festas e as suas várias deambulações marcam descontinuidades, e percursos
específicos, dentro do que é a continuidade do território, em uma sobreescrita, trechos
sublinhados em um texto corrido ao longo de uma página. Se estabelece uma forma de
paisagem, uma outra topografia, que não a do campo visual, ou do relevo do sítio.

Os eventos reiterados, obrigações dos homens com os poderes divinos, cria uma
experiência comum, compartilhada, nos lugares tidos como importantes, e tornados
importantes por ser palco constante de suas vivências. Sulcam o território e a memória
individual e coletiva.

Figura 184 – Localização das procissões, cortejos e corridas náuticas na Baía dxe Todos os Santos
durante o Oitocentos, a partir do Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José
Fernandes Portugal. Fundação Biblioteca Nacional. Edição do Autor.

362
Eram experiências coletivas de categorias profissionais ou análogos (como os trabalhadores
do porto), de uma comunidade em pequena localidade (na Gamboa, em Amaralina, e
outros) ou da cidade, do Recôncavo e de uma região mais ampla.

Por outro lado, para o pesquisador, as festas e a localização de suas partes – os percursos,
as paradas – denunciam tais lugares, como singulares para um agrupamento humano.

No centro da cidade, a somatória de percursos de suas procissões, de rituais, sulcavam


mais e mais uma área tão densa, tão rica em tramas e significados.202

Nas festas elencadas aqui, as corridas, romarias e procissões náuticas enlaçam locais
distantes ao nexo do centro, partindo de sua área portuária, como ocorria na Festa das
Escadas ou ainda hoje com a de Bom Jesus dos Navegantes. Ou ainda entrelaça as
comunidades de pescadores à beira-mar, denunciando um sistema próprio, uma rede
particular de tais vilarejos. Por isso enfatizamos as deambulações, e principalmente seu
papel articulador, incluindo aquelas que iam a fontes específicas buscar a água das
lavagens e a areia branca para o piso. De uma necessidade, transformaram-se em rituais
com conteúdo próprio, e em alguns momentos com força bastante para obter autonomia.

Figura 185 – Localização das procissões, cortejos e corridas náuticas do litoral atlântico no
Oitocentos, a partir da Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1831-49). Fonte: Fundação
Biblioteca Nacional. Edição do Autor. O mapa também localiza, em Itapuã, a ermida a São Francisco
(1) e a N. Sra. da Conceição (2)

202
Como se depreende da obra de João da Silva Campos (Procissões Tradicionais da Bahia. Salvador: Secretaria de Cultura e
Turismo, Conselho Estadual de Cultura, 2001) que justamente ilustra como as procissões e seus percursos se sobrepunham
em certas áreas da cidade.

363
As entregas de presentes para a Mãe d´Água revelavam singularidades na hidrografia da
cidade, com irrupções hierofânicas em espelhos d´água e fontes; no extenso litoral da Baía
de Todos os Santos, em locas específicas; e na ainda mais extensa superfície do oceano,
em rochas e peraus.

Igualmente interessante para uma história de maior extensão, na cidade, é a localização ao


longo do tempo dos festejos para a Mãe d´Água. Das várias expressões pontuais e daquela
que congrega o maior número de devotos. Querino nos mostra que era, no século XIX, na
Ribeira. Sabemos que ganhou um vulto descomunal, na segunda metade do século XX, no
Rio Vermelho. Antes de haver a entrega de presentes no mar, estes eram, de forma mais
discreta, depositados na Pedra da Sereia, na Fonte da Mãe d´Água, na gruta que foi
destruída por pedreira, como dizia Licídio Lopes:

Já havia presente à Mãe d´Água muito antes de haver a festa, mas não
como é agora. Porque ali onde chamam a Pedra da Sereia, ali existiu uma
gruta, parecia uma casa, chamavam casa da Mãe d´Água, o pessoal então
botava presente ali... Não era festa não, era devoção. (RIO VERMELHO...,
1988, p.107).

De um para outro, houve um local intermediário.

Hoje é dia da festa de Iemanjá. No Dique, onde ela passa uns tempos
durante o ano, sua festa é a 2 de fevereiro. Também nas Cabeceiras da
Ponta, em Mar Grande, em Gameleira, em Bom Despacho, na Amoreira,
seu dia é a 2 de fevereiro, e nessa data a festejam. Porém, em Monte
Serrat, é onde a sua festa é ainda maior, pois é feita na sua própria morada
na Loca da Mãe d´Água, ela é festejada a 20 de outubro. E vêm os pais-de-
santo do Dique, de Amoreira, de Bom Despacho, de Gameleira, de toda a
ilha de Itaparica. E nesse ano até o pai Deusdedit veio da Cabeceira da
Ponte assistir à iniciação das festas de Iemanjá.

A areia, alva, está agora preta, de pés que a pisam. É o povo do mar que
chega, chamando pela sua rainha. [...]

É uma imensa massa humana que se movimenta na areia. A igreja de


Monte Serrat aparece no alto, mas não é para ela que se dirigem esses
braços cheios de tatuagens. É para o mar, esse mar de onde virá Iemanjá, a
dona daquelas vidas. (AMADO, s/d, p.60).

Montserrate foi um dia o que antes fora a Ribeira, e depois o Rio Vermelho. Esse
deslocamento das águas interiores para as oceânicas dos grandes rituais a Iemanjá é
paralelo ao de toda a cidade, ao da atenção dada ao mar aberto, em Salvador como em
outras cidades.

E “a caminho” do Rio Vermelho, houve ainda outra expressão desse culto, na Barra.

Esta festa da Mãe d´Água ou simplesmente Janaína ou Naná, era primeira


acontecida próximo à fonte da dita “no sopé do montinho sobre cujo dorso
está o forte de Santo Antônio da Barra, com seu centenário farol, e à borda
do mar, do lado de dentro da baía, onde ergue-se esbranquiçada e
esborcinada edícula de alvenaria de pedra, que abriga fraco manancial
conhecido dos pescadores daquele arrabalde (Barra), pescadores
costumados a levar, anualmente, presentes à Seria do Mar... depois de
realizada votiva romaria marítima, vinham sambar e batucar, horas a fio,
com mulherio de “santo”, junto à dita fonte, hoje abandonada e esquecida
dos crentes, achando-se o local, naquela ocasião, profusamente
ornamentado de cordas de bandeirinhas de papel multicor e de palmas de
dendezeiros. Caindo a noite ascendiam-se “bibianos” e a orgia rolava até

364
tarde, ao som de atabaques e de outros instrumentos de candomblé...
(SOUZA, 1961, p.29).203

Figura 186 – Forte de Santo Antônio da


Barra (1860), de Benjamin Mulock. Fonte:
FERREZ, 1988. No detalhe, a antiga Fonte
da Mãe d´Água.

203
SOUZA, Aurélio Ângelo de. Nas Bandas do Rio Vermelho. Salvador: Associação Atlética do Rio Vermelho/ Divisão de
Cultura, 1961. A fonte – outra Fonte da Mãe d´Água – não é mencionada pelo Imperador D. Pedro II que, em visita ao forte
em 1859, afirmava: “não há água perto, e apanham a da chuva dentro de umas pipas que vi dentro do forte” (D. PEDRO II,
1959, p.154). O curioso não é a ausência da edícula, mas da própria insurgência de água, que ao menos para gasto serviria.

365
Figura 187 – Forte de Santo Antônio da Barra, sem
data. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Mesmo com
encosta limpa e aparada, ainda estava ali a fonte,
embora aparentemente arruinando-se.

366
Figura 188 – Fonte da Mãe d´Água.
Fonte: FALCÃO, 1941. Dos poucos
registros que mostram em detalhes a
fonte, já arruinada.

Figura 189 – Fonte da Mãe d´Água,


de Sascha Harnisch. Fonte:
FALCÃO, s/d. Em avançado estado
de arruinamento, a composição
obviamente mostra o contraste entre
o Antigo e o Novo, com o Edf.
Oceania emoldurada pelos arcos da
construção em pedra.

367
Era a Fonte da Mãe d´Água, na encosta do promontório (Figs. 186 a 189). Quando Aurélio
Ângelo de Souza escreveu este livro, assumia que havia muito tempo que não ocorria mais
ali. O que nos parece sintomático é o deslocamento da Ribeira a Montserrate e Barra, e dali
para o Rio Vermelho, para o mar aberto, ao longo de um século, da expressão mais popular
e chamativa desse culto.

Visitando o lugar, e o promontório especificamente, em 1859, o Imperador D. Pedro II é


taxativo sobre a fortaleza: “não há água perto, e apanham a da chuva dentro de umas pipas
que vi dentro do forte”.204 E em 1944 Jorge Amado assinalava seu arruinamento progressivo
(como as fotos demonstram), porém ainda minando água, e com uso discreto:
No farol da Barra está a Fonte de Iemanjá ou a Fonte da Mãe d´Água. Fica
em meio às pedras da praia, quase dentro d´água e quase em ruínas. No
entanto ainda vem gente, de pote à cabeça, buscar água ali, naquela
guarida de pedra onde dizem que também habita Inaê nos dias que se
cansa do mar. (AMADO, 1958, p.251).

Ainda, sobre essa Heortologia, os percursos próprios dos grupos, em rituais bem
delineados, em cada evento nos arrabaldes, estabelece uma espécie de topografia interna,
consolidando aquela ocupação, como veremos no caso do Bando Anunciador no cilco do
Bonfim, em Itapagipe.

O imaginário dos homens do mar, seus medos e esperanças, seus cultos, permanece
obscuro. Ao lidarmos a partir de material do século XX, o risco de anacronismo é
considerável. Mas para a história cultural do litoral importa esse silêncio. Que não
necessariamente é a ausência do culto, e sim de sua visibilidade. E, sobretudo, que a fusão
de elementos de procedência diversa ocorreu nessa espécie de obscuridade, longe dos
registros, sob a superfície do debate público.

Tais festas, ligadas aos riscos e à fartura do mar, eram um aspecto fundamental da
maritimidade da cidade. Alguns ganharam importância municipal, e mesmo regional,
tornando-se, inclusive, parte essencial da sua imagem. Os rituais que ocorriam por sobre as
águas reforçavam ainda mais esse vínculo sui generis com o mar, invariavelmente nesse
trânsito de curta cabotagem.

Para os pescadores, e marítimos em geral, tais festas eram ritos centrais, uma contraparte
do próprio eixo de suas vidas, um sinal da profunda dependência que tinham o mar,
realizado naquela franja do oceano e continente, em terra e nas águas. A entrega dos
presentes a Iemanjá revela ainda uma modalidade vertical de conexão, em profundidade.
Não celestial, num impulso ascendente, e tampouco um rito ctônico, às entranhas da terra,
mas às profundezas das águas, e sua extensão imensurável, à misteriosa continuidade que
une todas as águas às míticas terras de Aioká.205

Já para os visitantes, vindos de outros cantos da cidade ou de outras partes da província


para passar as festas do verão, eram estas justamente um mote, um dos motivos, se não o
principal, para o deslocamento. É deste conjugado de atividades que emergirá o lazer
balnear atual, e modalidades contíguas, que tiveram sua vigência, como as regatas.

Note-se que muitas das jornadas para santuários distantes à beira-mar vinham dos
primeiros séculos da colônia, como as ligadas a São Tomé e a N. Sra. da Luz. Ambas
retrocederam para festas estritamente locais, e depois voltaram a ter novo fulgor, nova
glória, quando Itapuã e Pituba se tornaram locais de veraneio balnear. Também a São

204
D. PEDRO II, 1959, p.154.
205
Quem explora poeticamente é Jorge Amado. Não temos como afiançar se era uma crença assim estruturada no século XIX,
quanto mais se era algo difundido entre os marítimos.

368
Gonçalo do Amarante, que demonstramos ser não apenas um santo casamenteiro, ligado à
reprodução social no sentido mais literal, como alguém ligado aos homens do mar.

Os rituais dos pescadores, saveiristas e canoeiros, seguia uma partitura razoavelmente


estável. A romaria das jangadas do Rio Vermelho, tão afamadas como evento folclórico da
pitoresca localidade, mais revelava o olhar dos seus pioneiros veranistas. Que não
avançavam para praias mais distantes e encontravam as mesmas jangadas em corrida no
mar aberto, e sequer olhavam para os pés da Montanha, ou na Península de Itapagipe,
onde análogo ocorria com as canoas dos pescadores, inadvertidamente.

O Rio Vermelho só ganhou importância na segunda metade do século XIX. Ele não parece
se tornar local de veraneio por conta dos festejos, mas ao contrário: estes serão propelidos
pela afluência de uma classe média e alta solvente, ganhando porte e complexidade, com
uma série de procissões e deambulações intrincadas. Mas surpreende o quão cedo se
iniciara a afluência de veranistas, ainda que discretos.

Itapuã, ao contrário, se retraiu desde tempos coloniais, quando São Tomé era celebrado por
gente da cidade. Suas festas e rituais tornaram-se estritamente locais, e somente voltaria a
se articular com a cidade no final do século XIX, a partir das Festas de Reis, com seus
ternos e ranchos.

Quanto aos cultos religiosos e suas festas em sua relação com o mar em Salvador, a
Península de Itapagipe assumiu um papel predominante, como se verá a seguir.

369
8
O Destino da Península de Itapagipe

Em capítulos anteriores vimos o que cabia à Península de Itapagipe. Nas primeiras décadas
da colonização, currais de gado vacum. Depois e por mais tempo, olarias, alambiques e
importantes estaleiros, complementando aqueles da Ribeira das Naus, no Porto. Ali estavam
localizados pescadores que abasteciam a cidade, além de um Contrato de baleias na Pedra
Furada.

Ceila Cardoso a partir do histórico da península argumentou a favor de sua “proficuidade”1,


quando era o contrário: teve o mesmo destino de outras regiões da baía cujos solos eram
“pobres”, inviáveis para a cana-de-açúcar. As terras que se prestavam para tanto apareciam
perto, no sopé da Montanha e dali em diante, percorrendo o esteiro de Pirajá rumo ao fundo
da baía, onde instalaram-se engenhos e canaviais. A Península de Itapagipe como um todo
fora complemento do dinamismo do Porto e da cidade. Havia inclusive um tipo específico de
saveiro de carga para o tráfego do Porto até Itapagipe, adaptado a peculiaridades
climáticas:

Outros maiores, que se empregam no trafego do porto para Itapagipe, usam


uma vela latina quadrangular como as grandes dos barcos e lanchas,
naturalmente com o fim de diminuir o trabalho, e apresentar maior superficie
aos ventos, que sopram por cima das colinas, que margem a bahia.
(CÂMARA, 1888. p.143).2

Seus alambiques beneficiavam-se da entrada de insumo e saída de produto pela linha


costeira em uma franja que não era tão disputada como no Porto, daí a aparição dos
alambiques ao norte mas também ao sul, no Porto das Pedreiras e Barra. Os estaleiros da
Ribeira estavam mais próximos que os de Aratu. E a relativa proximidade tornava possível
tal uso da área para moradia suburbana, conectada por mar, e depois urbana, por extensão
da fiada de residências, estabelecimentos comerciais e manufatureiros, da rua que corria ao
pé da Montanha.

Pequenas ilhas, depois incorporadas ao bloco de terra da península, perfaziam fazendas


unitárias, com esse perfil agrário. Como a ilha de Santa Luzia, arrendada ou vendida por
inteiro “com muita boa casa de morada e sansalas para pretos, bastantes coqueiros,
manguezais, larangeiras, e outras arvores, e plantações uteis”3 (Fig.190). E a ilha de Joana,
depois chamada Joanes, arrendada por Ignacio Gomes Lisboa em 1840.4

Pobre, houve tentativa de aproveitar-se o solo para um cultivo singular: amoreiras. Com um
fim ainda mais singular: o bicho da seda. Plantaram amoreiras ao longo das duas margens

1
CARDOSO, Ceila Rosana Carneiro. Arquitetura e indústria: a península de Itapagipe como sítio industrial da Salvador
Moderna 1891-1947. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – FAU-USP, São Paulo. 2004, p.22.
2
Em outro momento, ao falar de embarcações, os barcos, com ajustes especiais às “fortes rajadas, que costumam soprar por
cima das collinas e suas quebradas perto da cidade da Bahia, as quaes augmentam a força do vento, e mudam às vezes até
de tres quartas a sua direcção” (CÂMARA, 1888, p.107), assim como aguaceiros repentinos, os pirajás, também
responsáveis por ventos bruscos e intensos. Assim, as falhas na Montanha – como a da Água Brusca ou do Largo do
Tanque, seriam responsáveis por afunilar e reorientar os ventos do quadrante leste, com efeitos sensíveis nos barcos. Daí
que embarcações de cabotagem tão específica, tais saveiros de carga do Porto à Ribeira, precisarem de um desenho
adaptado a tais virações.
3
O CORREIO MERCANTIL n.22, Terça-Feira 28 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
4
O CORREIO MERCANTIL n.59, Quinta-Feira 12 de Março de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.

370
da “nova estrada do Senhor do Bom fim”5, aberta entre 1792 e 1798, e prometeu-se garantir
a fácil aquisição das suas sementes aos fazendeiros. Podemos ver o intento dentro do
quadro recorrente de testar novas culturas a cada tanto, para aumentar a rentabilidade de
solos de outra maneira subaproveitados, e abrir uma nova fonte de receita para a Província.
Itapagipe seria um laboratório para a aclimação dessa cultura, o que não vingou.6

Figura 190 – Bahia – Vista Panoramica, cartão-postal de Wessel, sem data, da Coleção Ewald
Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. Em primeiro plano, a Ilha de Santa Luzia. Um dos escassos
registros que mostra a contra-costa da Península de Itapagipe.

Porém a península era especial na realidade baiana por outro motivo: as devoções
religiosas. Nessa região da Península de Itapagipe havia cultos ligados aos marítimos,
alguns coloniais, levando a romarias de toda sorte.

A Nossa Senhora de Montserrate era culto de origem catalã, cuja capela na Ponta de
Humaitá fora fundada pela Casa da Torre, e doada aos beneditinos7. Festa colonial,
implicava em romarias, quase certo que náuticas pelo perfil dos devotos, pela localização do
santuário e a dificuldade de seu acesso.
[...] que a festeja [a santa] em o dia de sua Natividade, em oyto de
Setembro; & neste dia he muyto grande o concurso da gente que vay a
venerar a Senhora, & nelle vão também a cumprir os seus votos, & a
pagarlhe as suas promessas, & a darlhe as graças pelos favores, & mercés
qu della tem recebido.

5
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.20, Sexta-Feira 19 de Julho de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva. 1811.
6
Não deve ser vista como um arroubo acidental, mas parte de um raciocínio que vigorou com mais intensidade décadas antes,
dentro do projeto fisiocrático colonial, de explorar comercialmente ou a flora nativa (como se ensaiou com o tucum e com a
macaúba) ou flora exótica, aclimatada aqui, como seria o tamarindo, a pimena-do-reino e o cacau, este a longo prazo
extremamente bem-sucedido (PEREIRA, 2013).
7
SANTA MARIA, 1722, p.64.

371
Não só neste dia, mas em todo o discurso do anno he frequentado o
Santuario desta Senhora com romagens, & novenas, porque todas as
vezes, que a invocão em seus trabalhos, & tribulaçoens, sempre a achão
propicia para os livrar, & para lhes acudir a tudo com a sua costumada
liberalidade; tudo estão confirmado, & testemunhando os innumeraveis
signaes, & memorias das suas maravilhas, q se vem pender das paredes da
sua casa [...] (SANTA MARIA, 1722, p.65).

A benção das lanchas baleeiras, no dia de S. João Batista, se fazia nessa ermida.8

Os canoeiros da Gamboa cultuavam Nossa Senhora da Boa Viagem, na sua capela em


Itapagipe, e faziam dessa sua festa principal durante o Carnaval.9 Era santuário agraciado
pela população já em tempos coloniais, mesmo distante, com altares dedicados à titular da
casa, à Nossa Senhora das Necessidades e a São Gonçalo.

A todos se fazem annualmente as suas festas com Senhor Exposto, e


pregração. A da Senhora titular, que he a primeyra, se solemniza na
Dominga seguinte à festa dos Reys, na outra Dominga a da Senhora das
Necessidades, e a terceyra, que he a do gloriozo S. Gonçallo; e nesta há
procissão, em que vay a Imagem do Santo, para a qual, (que he no seo
dia de tarde) vay da cidade hum grande concurso de povo, e tem o Santo
obrado varios prodigios a favor dos seus devotos, e pelos quaes logo
desde os principios que alli se collocou a sua Imagem foi buscado, e
servido com grande devoção. (JABOATAM, 1859, p.298).

Mas o sítio preferido para se passar as festas, já desde o século XVIII, era o Bonfim.

O subúrbio do Bonfim desfruta da reputação de ser, e é na realidade, em


certas estações um dos distritos mais salubres do Brasil. Os habitantes das
classes mais altas da Bahia repousam lá [...] durante os quatro meses mais
quentes do ano – Dezembro, Janeiro, Fevereiro e Março. (DUNDAS, 1852,
p.243 – tradução nossa).10

Os motivos possíveis são vários. Isso implicou em um papel proeminente da Península de


Itapagipe na história do litoral, e veremos como esse deslocamento estival fora um fator
fundamental para a urbanização da área.

8.1. A Devoção do Bonfim


A imagem do Senhor do Bonfim chegou em Salvador em 1745, trazida de Portugal pelo
Capitão de Mar e Guerra, Theodózio Rodrigues de Faria, quando formou-se a Mesa
Administrativa da Devoção do Senhor do Bonfim. Nos primeiros anos o culto acontecia na
igreja de Nossa Senhora da Penha e Senhor da Pedra de Itapagipe de Baixo, construída em
1743 pelo bispo D. Botelho de Matos como capela privativa de seu palácio de verão. A
capela do Nosso Senhor do Bonfim foi construída por volta de 1750, antes mesmo da
doação do terreno em 1753, por Dona Joanna Tereza de Oliveira, menor de idade, que tinha
como tutor seu tio, o Reverendo licenciado Joseph de Oliveira Serpa.11 Morando no centro

8
VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.318.
9
CÂMARA, 1888, p.49.
10
The suburb of Bomfim enjoys the reputation of being, and is in reality, at certain seasons, one of the most healthy
districts in Brazil. The higher classes of the inhabitants of Bahia resort to it [...] during the four hottest months of the year
– December, January, February, and March. (DUNDAS, 1852, p.243).
11
Segundo Carlos Ott (apud SANTANA, Mariely Cabral de. Alma e Festa de uma Cidade: devoção e construção na Colina do
Bonfim. Salvador: EDUFBA, 2009).

372
da cidade, Theodózio, mudou-se para o alto do Bonfim após 1752, na atual Rua do Faria,
falecendo lá em 1757: era um pioneiro nesse deslocamento.

Na segunda metade do século XVIII cresceram o número de fiéis e a fama por todo o
Estado, como as doenças e esmolas que, junto com a venda de artigos ligados ao culto,
bancavam a Devoção.12 Os festejos se ampliaram, formando um ciclo próprio, firmando-se
no verão, no tempo de se “passarem as festas”.

Inicialmente as festas ocorriam em um só dia e em data móvel. Por exemplo, em 1771


aconteceu em 20 de setembro. A partir de 1778 começou a ser celebrada no segundo
domingo depois da Epifania, e assim se firmou.13 Mariely Santana levantou hipóteses
distintas, embora não excludentes, para essa mudança de data: proibição pela Igreja da
concorrência com o período de Páscoa, em especial com a procissão do Cristo morto, da
Ordem Terceira do Carmo, e a procissão do Fogaréu, da Ordem Terceira de São Francisco,
ambas irmandades muito poderosas; evitar o período de chuvas, de março a agosto, que
inviabilizariam o acesso por terra e dificultariam por mar; a coincidência intencional com o
período do veraneio e a adequação ao calendário religioso da cidade.14 Com isso não só se
acomodava ao calendário anterior, como atuou na sua consolidação. Em todos os casos,
facilitou o afluxo de gente, o aumento do brilho da festa, o êxito da Devoção, e o
consequente incremento nos seus cofres15. Também foi efeito das sucessivas melhoras no
acesso à colina, por suas ladeiras, e mesmo à região, que veremos adiante.

O ciclo do Bonfim por inteiro constava ao final do século XIX de um complexo de eventos.
Das novenas do Bonfim, da Lavagem da igreja na quinta-feira e do Cortejo da Lavagem, na
pândega que ocorria no arraial ao largo na noite de sábado até o dia posterior, o domingo,
dia santo propriamente dito, e seu prolongamento pela região pelo mesmo dia. No domingo
subseqüente seria a festa de Nossa Senhora da Guia, e, no final de semana seguinte, o
tríduo de São Gonçalo do Amarante.

Marcante foi sua primeira década. Já em 1803 as novenas foram incorporadas pelo
Tesoureiro João Pires Gomes.16 Da mesma época fora a introdução das festas de N. Sra. da
Guia, no domingo seguinte à festa do Senhor do Bonfim, com solenidade, cantochão e
orquestra à noite. Na véspera e no dia da festa o largo era embandeirado, com iluminação,
música e fogos de artifício. Von Martius relatara efusão em tais festas, que Pirajá da Silva
atribuía especificamente à festa de N. Sra. da Guia17: “o barulho e a alegria desenfreada, de
muitos negros, reunidos, imprimem a essa festa popular um cunho especial”.18

E teria sido em 1804 a incorporação do culto a São Gonçalo do Amarante, com a guarda de
sua imagem na capela. Era festa realizada com grande pompa, tendo decaído ao final do
século XIX. Carvalho Filho descreve o Bando Anunciador do santo, hábito que perdurara até
pouco mais de 1858, composto por “grupo de rapazes com uma bandeira em que estava
estampada a Imagem de S. Gonçalo, e precedidos de um tambor saírem a tirar esmolas
para a festa”19, quase sempre saindo no domingo da festa de N. Sra. da Guia, partindo do
Largo do Bonfim até o Largo da Penha, ou dispersando, ou retornando para o Largo do
Papagaio. A descrição geral era o que Carvalho Filho conhecia. Havia suas variações.

12
SANTANA, 2009.
13
CARVALHO FILHO, José Eduardo Freire de. A Devoção do Senhor Bom Jesus do Bonfim e Sua História. 2ed. Salvador:
Imprensa Oficial, 1945, p.14.
14
SANTANA, 2009, p.120.
15
SANTANA, 2009.
16
As informações deste parágrafo provém de Carvalho Filho (1945).
17
PIRAJÁ DA SILVA. Notas. In: SPIX, Johann Baptist von & MARTIUS, Carl F.P. von. Através da Bahia. 3ed. Salvador:
Assembléia Legislativa, 2016, p.114.
18
SPIX & MARTIUS, 2016, p.114.
19
CARVALHO FILHO, 1945, p.110.

373
Mas podia ocorrer em outros dias, como na quinta-feira, dia 24 de janeiro, em 1839.20 No
ano seguinte, era fundamental a trupe retornar ao Largo: “hoje sahirá do largo do Bomfim o
bando de S. Gonçalo, para cujo acompanhamento se convida os devotos, começando o
leilão na volta do mesmo bando”21, leilão habitual para arrecadar fundos para a festa, e um
atrativo à parte. Nesse ano foi içada a bandeira no domingo da festa de N. Sra. da Guia.22
Com aparato festivo e pirotécnico alguns anos depois, como “lindo fogo de vistas, tendo
igualmente na vespera illuminação e maquina aerostatica”23. Os mesmos “festeiros do Sr. S.
Gonçalo” convidadam o público para, na noite de sexta-feira do dia 27 de janeiro, “ver a
fantasmagoria, que deverão ser as vistas todas jocosas; na noite de 28 haverá machina, e
na de 29 fogo de vistas, e leilão todas as noites”.24 Nessa festa, e talvez nas outras, havia
espaço para o espetacular, para o insólito, como neste caso:

- Faz-se ciente aos amantes das curiosidades, que no domingo depois do


grande fogo de S. Gonçalo tem de subir no largo do Sr. do Bomfim duas
grandiosas machinas, especialmente uma que subirá com força de
suspender até 12 arrobas de peso.25

Esse aparato é único às festas do Bonfim. Todos os rituais estavam ligados ao aspecto
casamenteiro do santo. Nas chamadas falava-se no içamento da bandeira do santo, onde
estava pintada sua efígie, levada em procissão composta basicamente por mulheres
solteiras. Quatro senhoritas sustentavam a bandeira e as demais seguiam com tochas e
velas acesas. Chegando com a bandeira ao adro, soltavam-se os fogos, davam a volta no
largo e então erguiam-na no mastaréu de S. Gonçalo, que permaneceu fixo lá por muito
tempo, renovado quando necessário. Como havia a crença de que a seu casamento futuro
dependia da constância da chama das velas, era usual a peraltice de rapazes tentando
apagá-las, para desespero das “senhoritas e solteironas” durante o curto trajeto.26 Carvalho
Filho anotava o lado moleque dos rapazes. O Padre Lopes Gama, em Pernambuco, a faceta
mais crescida, dos galanteadores: “onde há adjunto de moçoila é infalível a atração da
rapaziada, que desabelha de todas as partes para assistir muito devotamente ao
levantamento da bandeira. Os mais famosos conquistadores e gamenhos acompanham por
fora o círculo do rebanho feminino”.27 Provavelmente o mesmo se repetia aqui. Mas não
havia as efusões maiores na Bahia oitocentista. Nem da relação com a imagem, nem com o
mastaréu de S. Gonçalo – cuja associação com o tema, como análogos de Santo Antônio, é
evidente –, e tampouco com a bandeira. Em Pernambuco ainda perduraram um tanto: “não
há também muitos anos que, conforme um antigo costume do Século XVI, os rapazes e
moça dançavam toda a noite, em certa época, na igreja de São Gonçalo de Olinda”28.

20
O CORREIO MERCANTIL, n.19, Quarta-Feira 23 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
21
O CORREIO MERCANTIL n.20, Sábado 25 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
22
O CORREIO MERCANTIL n.18, Sábado 24 de Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.
23
O CORREIO MERCANTIL n.16, Sexta-Feira 18 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
24
O CORREIO MERCANTIL n.21, Sábado 25 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
25
O CORREIO MERCANTIL n.22, Segunda-Feira 27 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1843.
26
CARVALHO FILHO, 1945, p.110. A mecânica se repetia a tal ponto, e era preenchida de tal maneira de significado pela
sociedade oitocentista, que Lopes Gama, descrevendo Recife, no texto As nossas festas de campo de 17 de fevereiro de
1838, parecia aludir a Salvador:
Não faltam igrejas e capelas pelos arrabaldes do nosso Recife, e desde o Natal até pouco antes da Quaresma
sucedem-se as festas aos santos da invocação de cada uma. O pretexto é o culto religioso, mas na realidade essas
festividades, parece, foram inventadas para dar azo a folgares, a pagodes, a rega-bofes, etc. etc. Estréia-se o festejo
por novena, à qual precede o levantamento de uma bandeira, levantamento que por via de regra tem lugar pela
madrugada. Ordinariamente saí a tal bandeira da casa do juiz, ou juiza, da festa, e é carregada, já se sabe, pelo
madamismo do arraial, convidando ad hoc [...] (GAMA, 1996, p.278).
27
GAMA, 1996, p.279. Texto de 17 de fevereiro de 1838, chamado As nossas festas de campo.
28
DENIS, 1980, p.274.

374
Ademais dessas festas, no Bonfim havia missas de padres vindos da cidade, algumas
encomendadas por devotos ou romeiros.29 Eram as de sexta-feira as mais visadas, e já
desde o começo do século XIX, prática antiga e que durou por décadas a fio, “sempre mui
concorrida”.30 Seria mais um motivo de convergência entre os diferentes cultos da cidade.
Se era a sexta-feira de importância capital para o católico devoto, por ser o dia da morte de
Jesus Cristo no Calvário, também era o dia do culto a Oxalá, o que facilitava sua
identificação com o Senhor do Bonfim, e reforçava os motivos para a romaria, ou os
contingentes de romeiros.31

A Igreja do Bonfim tinha ainda outra importância para os devotos das divindades iorubás. A
colina, cercada de águas, era imagem terrena do mito da criação do mundo.32 A fonte
imediata, na Baixa do Bonfim, talvez se prestasse ainda a reforçar esse poder. Ganhara um
papel fundamental: no processo de iniciação das iaôs, as filhas-de-santo, a etapa de
encerramento passava por dirigir-se em uma sexta-feira, dia de Oxalá, em romaria àquela
igreja.33

A devoção, como várias outras à beira-mar, em especial na Península de Itapagipe,


relacionava-se com a vida no mar e com a intervenção divina nesse meio. Como em outros
casos, a atuação terrena do Senhor do Bonfim incorporava-se em sua história celeste.
Carvalho apontava a intervenção divina “no furioso temporal no dia 29 de Setembro de
1905”, ou no caso do resgato no “naufrágio de commerciante da Praça da Bahia, José
Tolentino Alvares e seu companheiro de embarcação”.34 Essa ajuda divina parecia acudir
também um tipo singular de trabalhador do mar: os traficantes de escravos.35

Votos feitos nos apuros em pleno mar levavam a uma forma curiosa de promessa: marujos
descalços, em romaria do cais do Porto até a igreja, levando as velas rotas da sua
embarcação e esmolando entre cânticos e ladainhas. No adro do Bonfim faziam um “leilão”
do pano e se as esmolas recolhidas no caminho não alcançassem o lance dado, cobriam a
diferença, e garantiam esse mínimo para doar à Devoção (no caso das esmolas excederem,
também eram doadas por inteiro).36 Como testemunhou Ver Huell:

Estando em casa numa determinada manhã, recordo-me de poder ouvir um


cântico monótono que se aproxima devagar. Uma tropa de marujos
descalços carregava uma vela, enquanto um dos seus, de porta em porta,
recolhia doações para a igreja do Bonfim. A salvação de uma embarcação
em apuros havia dependido da vela não ter se rasgado: no momento de
maior aflição, clamou-se ao Nosso Senhor do Bonfim e, com isso, ela
manteve-se intacta. Em função disto, aquele imponente cortejo seguia
agora justamente com aquela peça até a referida igreja, para ser depositada
naquela mesma capela onde tantos milagres eram guardados. (HUELL,
2009, p.154).

Também N. Sra. da Guia e S. Gonçalo salvavam das agruras no mar.

Para além do desempenho terreno dos poderes divinos, Santana levanta, ademais de
decisões mundanas que facilitaram o crescimento daquelas festas, que uma das razões do

29
CARVALHO FILHO, 1945, p.20.
30
CARVALHO FILHO, 1945, p.18.
31
A convergência com o Calvário foi anotada Carvalho (1915, p.39), a com Oxalá, por Edison Carneiro (1936, p.36).
32
SANTANA, 2009.
33
CARNEIRO, 1986, p.98.
34
CARVALHO, 1915, p.111.
35
João José Reis (2019, p.37) interpreta uma descrição de Forth-Rouen, de 1847, como sendo a de um ex-voto na igreja do
Bonfim, uma pintura mostrando um navio negreiro escapando de um navio francês e outro inglês no seu encalço. Seria, junto
com o Santo Antônio, em particular no seu templo na Barra, um patrono daquela atividade.
36
CARVALHO FILHO, 1945, p.18. O que é confirmado por Manuel Querino: “os navegantes, que, em hora de perigo, faziam
promessas, lá iam, conduzindo fragmentos de panos rotos pela refrega dos temporais, depositá-los na sacristia dos milagres,
recolhendo avultadas somas, no cofre das esmolas” (QUERINO, 1955a, p.143).

375
êxito era ter uma matriz mais “aberta” que outros.37 A Mesa diretora da Devoção era
composta por grandes negociantes e funcionários públicos, com representantes dos
marítimos. Já os devotos eram moradores da região (pescadores, negros livres e brancos),
pequenos comerciantes, pessoas da sociedade baiana, com grande número de marinheiros.
Não respondia, como outras Irmandades, a um nicho específico, um estrato étnico, social ou
classista. Nascera originalmente das classes médias e cresceu agregando maior
complexidade social, tanto membros da elite, como do povo mais simples. E ganhando
também diversidade nas suas expressões, etapas, rituais, santos de devoção e ocasiões de
encontro e diversão.

Entre 1807 e 1809 introduziu o uso das medidas do Bonfim que ganharam também
importância com o tempo. Um exemplo da crença já nesse início de século, poucos anos
depois, foi dado por Ver Huell. Ferido pelo seu antigo animal de estimação, o sagüi
Moleque, ele foi “tratado” por uma negra que lhe amarrara uma medida do Bonfim na
perna,38 comprada na própria igreja, e não apenas por dinheiro: ela fora, pela manhã,
descalça até o templo, rezando para o santo pela sua melhora, e daí adquirido a fita. Dos
artigos à venda nas barracas durante as festas, “os mais procurados são fitas de todas as
cores, sobre as quais se acham impressos em letras douradas ou prateadas as iniciais “N.S.
do B.F.”, ou o nome completo do templo”.39 Permitiram angariar mais recursos para a
Devoção e suas realizações, e espalharam ainda mais a influência do Senhor do Bonfim,
tornando-se veículo fungível para seus milagres. Para a grave ferida de Ver Huell, a fitinha
teria poder curativo ou era parte indispensável em uma operação terapêutica miraculosa.

Qual seria o porte da festa? Em 1856, diz Wetherell: que para as festas “mais de vinte mil
pretos se reuniam e se espalhavam na colina sobre a qual a igreja é construída”.40 O
número, porém, que se sacramentou na literatura foi o de 30 mil pessoas, como dizia José
Álvares do Amaral, em obra publicada originalmente em 1881: “acodem à importante festa
do Senhor do Bonfim, a primeira da Bahia e talvez de todo o Brazil, mais de 30 mil pessoas
de todas as classes da Sociedade e de toda a parte”.41 O Almanak da Província da Bahia do
mesmo ano repete a mesma frase, ipsi literis e Carlos Alberto de Carvalho, anos depois,
estimaria tal quantitativo como correto.42 William Scully apelou à hipérbole e disse que
aquelas festas eram “assistidas por toda a população da cidade”.43 O Prospecto da
Companhia Bahiana de Navegação a Vapor, publicado em 1839, falava que 140.000
pessoas se iam passar as festas do Bonfim.44 Não ficando claro se era um conjunto único,
ou um público estimado em jornadas de ida e volta, ao longo da temporada ou ao menos do
ciclo de festas.

O alcance regional do Bonfim era algo notável. Diz Anna Bittencourt que “raramente iam as
senhoras à Capital. Algumas o conseguiam, fazendo, em ocasião de grande moléstia, a
promessa de uma romaria ao Senhor do Bonfim”.45 Era motivo forte o suficiente para vencer
a inércia, e levá-las à Salvador. Como de fato ocorreu com sua família: “esta ida tinha duplo
fim: cumprir minha mãe uma romaria ao Senhor do Bonfim, promessa feita por ocasião do
meu nascimento, e fazer uma consulta médica sobre minha moléstia de olhos”. Aproveitara
ainda outro desejo, da Semana Santa na cidade, “o desideratum das senhoras daquele
tempo que moravam no campo”46, escolhendo essa data para a viagem. Não foi ao ciclo de

37
SANTANA, 2009.
38
HUELL, 2009, p.247.
39
WETHERELL, s/d, p.121.
40
WETHERELL, s/d, p.121.
41
AMARAL, 1922, p.29.
42
FREIRE, 1881, p.14; CARVALHO, 1915, p.70.
43
[...] attended by the whole population of the city [...] SCULLY, 1868, p.349.
44
O CORREIO MERCANTIL n.23, Segunda-Feira 28 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
45
BITTENCOURT, 1992b, p.68.
46
BITTENCOURT, 1992b, p.93.

376
festas do Bonfim. Para se pagar uma promessa, qualquer dia era válido. Porém, note-se que
aqui se inicia uma transição.

O feriado começou a ganhar importância tal que outros compromissos eram desmarcados
em função de sua realização. Como de processos judiciais, tal como no dia 16 de janeiro de
1840, quando “não houve sessão do jury, como bem sabe S.S., foi feriado o dia da lavagem
da igreja do Senhor do Bomfim, portanto, tendo sido pedida a prisão do administrador no dia
17”.47 Loteria a ocorrer no dia 19 de janeiro de 1841, teve a conferência de seus cartões
realizada no dia 18 “no salão da Misericordia, por ser o dia 17 o da festa do Sr. Do
Bomfim”.48 Sem ser as férias modernas, era uma exigência cultural tão importante a ponto
de sustar o cotidiano da cidade, mesmo o judicial.

A Revolta dos Malês, de 1836, ocorreu a propósito no dia 25 de janeiro, na Festa de N. Sra.
da Guia, aproveitavando-se insurrectos que a cidade se esvaziava, durante o verão, e em
especial com o ciclo das festas no Bonfim. E, por outro lado, as famílias hospedadas em
Itapagipe mereceram alguma atenção: o chefe de polícia, Francisco Gonçalves Martins,
entre as medidas tomadas para debelar a rebelião em andamento, destacou uma tropa de
cavalaria ao Bonfim, para proteger as famílias, temendo ainda a sublevação dos escravos
das roças e engenhocas da região.49

Havia uma movimentação humana nítida rumo ao arrabalde. Embora o trajeto por mar fosse
o mais usual, pela sua facilidade, e perfil original da devoção, os escassos testemunhos dão
por conta caminhadas por terra. Não havia ainda assumida a forma coordenada de um
cortejo, embora os grupos mais vistosos saíssem das áreas centrais da cidade.

Pois, justamente as festas desta igreja são consideradas pelos habitantes


de São Salvador as mais importantes dentre as inúmeras que se sucedem
ininterruptamente por aqui. Nestas ocasiões, todos seguem em direção ao
Bonfim e os caminhos ficam tomados pelos grupos que se dirigem às casas
de campo com a finalidade de celebrar – tanto espiritual quanto
mundanamente – estes festejos. (HUELL, 2009, p.228).

O depoimento do holandês é fundamental. É o único que revela a festa “por dentro”, a partir
do cotidiano de uma família assentada na Bahia, e nos mostra também algo da estrutura
das esferas de intimidade dos locais.50

Fanchette, o amigo que convidara a passar as festas com sua família, lhe dera poucas e
claras instruções: juntar-se ao grupo em sua casa, no centro da cidade, às 20 h, coberto
com um manto, como os demais homens estariam. As mulheres, também envoltas assim,
“tinham sobre as faces aqueles curiosos véus, de forma que somente os olhos eram
visíveis”.51

Um determinado número de cadeiras permanecia em prontidão ao lado dos


denominados lacaios, que seguravam tochas ardentes. O meu amigo
Fanchette não me apresentou a nenhuma das senhoras, pois aqui não é o
costume ser apresentado às damas (somente entre as altas classes segue-
se esta cortesia européia). (HUELL, 2009, p.228).

47
O CORREIO MERCANTIL n.30, Quinta-Feira 6 de Fevereiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
48
O CORREIO MERCANTIL n.6, Sábado 7 Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1841.
49
REIS, 1986.
50
E ele, jovem porém lúcido, sabia dessa singularidade mas tinha uma hipótese para explicar o acesso inaudito que teve:
[...] convenci-me de que elas estavam muito mais interessados na presença de um estrangeiro do que, propriamente,
na minha pessoa. Sim, pois raramente – ou mesmo jamais – um morador da cidade, ligado a algumas famílias pelos
laços de sangue, havia depositado tanta confiança em um forasteiro em sinal de amizade como fizeram comigo
naquele momento. (HUELL, 2009, p.240).
51
HUELL, 2009, p.228.

377
Evitara cumprimentar as senhoras e tratara de ignorá-las, como havia aprendido a fazer,
dentro dos códigos locais. A barreira invisível estava ali também armada. Caminharam à luz
de tochas, os homens a pé e as damas nas cadeiras de arruar, descendo até a Cidade
Baixa por uma das ladeiras na Montanha, e dali em diante, pela rua única até a “bela e larga
alameda que desembocava na igreja do Bonfim”.52 Agora em ambiente que lhe parecia um
tanto idílico: a noite estrelada em céu limpo, a brisa balançando os coqueiros da praia
adjacente e correndo por entre as pesadas copas das mangueiras, o ar carregado do
perfume das mangas e das flores de laranjeiro, o murmúrio do vento e do marulho próximo.
As damas desceram de suas cadeiras e tiraram seus véus não em um ambiente fechado,
mas na alameda que conduzia ao templo, ainda a céu aberto. Quando apareceu a lua cheia,
as tochas foram apagadas.

Guitarras, violas e bandolins apareceram por debaixo das mantas. Após


alguns acordes introdutórios, começaram (em coro) as modinhas, com as
tilintantes castanholas acompanhando estas cantigas sensuais. As vozes
macias das senhoras e as mais profundas dos homens ecoavam
prazerosamente pelos frondosos caminhos de Montserrat. Enquanto isto, o
som da cantoria e dos instrumentos de cordas dos demais celebrantes nas
casas de campo sob a densa folhagem ao nosso redor, unia-se à música do
nosso próprio grupo. (HUELL, 2009, p.228).

Cruzavam-se com outros grupos, igualmente animados, e reconhecemos aqui o espírito das
patuscadas. Nesse momento, a alameda do Bonfim era uma transição, um espaço próprio
onde os grupos podiam desfazer-se de algumas de suas reservas, e, cada qual divertindo-
se, formavam uma atmosfera conjunta. Essa região geográfica específica já apontava para
uma espécie de regime excepcional, de um tempo e local da festa, onde certa liberalidade
maior era permitida.

Se a jornada da família de Fanchette e das demais se dera em uma hora cômoda, e de


maneira discreta, protegendo ao máximo as mulheres da exposição, sob a tríplice proteção
do véu, das cortinas das cadeiras de arruar e da noite, havia formas de transformar essa
viagem em uma exibição. No começo do século XIX, Pedro Ribeiro, avô de Anna
Bittencourt, vira outra coisa.

- É Ritta Sebola que vai a uma romaria no Bonfim e está, com suas lacaias,
perfumando-se.

Movido pela curiosidade, Pedro Ribeiro entrou em uma loja de onde podia
observar a cena em, daí a pouco, viu sair Ritta acompanhada de três grupos
de lacaias, constando cada um de dez mulheres. As do primeiro eram
brancas, alugadas por alto preço.

[...]

O segundo grupo era de mulatas e o terceiro de negras jejes. Vinha Ritta


vestida com uma magnificência que, dizia Pedro Ribeiro, jamais vira mesmo
nas princesas que depois estiveram na Salvador: vestido de seda de
primeira ordem bordado a ouro e pérolas, sapatos igualmente bordados e
toucado riquíssimo. As lacais brancas também traziam ricos vestidos de
seda. As escravas, mulatas e negras jejes, usavam o pitoresco traje das
negras baianas, hoje tão raro: saia, camisa bordada e becas, tudo de
grande luxo. (BITTENCOURT, 1992a, p.49)

Reconhecia na ação da mulata o desejo de mostrar-se superior às brancas, a partir do


poder que o dinheiro lhe dava. Ritta Sebola, antes escrava de uma senhora branca, solteira,

52
HUELL, 2009, p.228.

378
que a quis bem e a alforriou, arranjando um casamento. Suas segundas núpcias foram com
Innocencio Sebola, português rico, que bancava seus atavios de riqueza53. Como ela
falecera no começo do século XIX, não fora essa procissão vistosa tão distante no tempo
daquela que Ver Huell percorrera; quiçá se dera antes. A diferença estava no horário
escolhido para fazer a jornada, e no propósito que lhe alimentara. Estava tudo ali: a
ascensão social vertiginosa por um casamento, a exibição de posses nos perfumes, jóias,
cadeira de arruar e escravos.

Nos anos 1840, as cadeirinhas ainda eram usadas, como pela então criança Anna
Bittencourt, que fora de dia, “em cadeira, as cortinas pregadas de alfinetes”.54

Mas o acesso por mar era o mais provável, soltando em Roma, Boa Viagem, Montserrate,
Porto do Bonfim ou da Penha. Falando já a partir do século XX, diz Carlos Alberto de
Carvalho sobre as antigas viagens por mar, “frotas cujos barcos embandeirados, cheios de
gente, de mantimentos e dádivas, aportavam nas visinhanças do Bomfim, por dois, tres e
até oito dias”.55 Festejavam no próprio barco, cantando quadras. Antes da pavimentação dos
principais caminhos da península, era o expediente mais fácil. Ademais, entroncava-se com
a tradição dos festejos nas travessias náuticas, explicando ademais a relação com os
festejos de Nossa Senhora das Candeias: “é hábito dos romeiros de Candeias, quando de
torna-viagem, virem ao Bomfim, sendo esta romaria apenas um passeio ou patuscada”.56

Por mar vinha a lenha para as fogueiras, ao porto que passou a chamar-se Porto da Lenha,
usando parte dela no sábado do Bonfim e o restante na festa de S. Gonçalo.57 Vinha nas
mais variadas embarcações desde a véspera, amanhecendo no porto abaixo à quinta-feira,
e se transformava em outro evento, carregando-se “achas ou feixes de lenha, outros ramos
de folhas, vassouras e potes que haviam servido na lavagem”58 ao som da música de
barbeiros ou da banda Chapadista. Depois da entrega, aquela população se dispersava
pelas casas, tendas e árvores, bebendo, comendo e cantando.

A Lavagem depois se destacaria como um evento à parte, ancorada em uma necessidade


funcional: a limpeza do templo preliminar aos rituais, e a tarefa de levar água para a mesma.
Esta tinha um aspecto ritual em si, assimilada e transformada pelas cerimônias de origem
africana. Não houve um momento marcante, uma origem clara. E pela escassez dos
registros mais específicos é difícil assegurar quando esta transformação ganhou tal vulto
que passou a ser percebida como algo distinto. A limpeza do templo teria começado
primeiro com uns poucos devotos das redondezas, depois crescendo em abrangência e
número de pessoas, inclusive romeiros que chegavam na véspera para tomar parte na
cerimônia e festas do mesmo dia, trazendo o farnel, vassouras de piaçava, potes e barris
com água. Muitas vezes em rancho, animando a jornada com música. A água, antes obtida
da fonte na Baixa do Bonfim, começou a vir da cidade, como um ato de penitência,
humildade e agradecimento. Os aguadeiros iam na quinta-feira, e Mariely Santana arrisca
que vinham da ladeira da Jequitaia, com a fonte do Muganga; da ladeira da Água Brusca,
com a do Baluarte; da ladeira do Taboão, com a fonte dos Padres, e da Conceição da Praia,
com das Pedreiras. Acreditamos que os barris de Massaranduba, menos conhecidos
historiograficamente, fossem também fonte empregada, até pela população que dispunha
deles.59

53
BITTENCOURT, 1992a, p.49.
54
BITTENCOURT, 1992b, p.120.
55
CARVALHO, 1915, p.34.
56
CARVALHO, 1915, p.38.
57
CARVALHO, 1915, p.32.
58
CARVALHO FILHO, 1945, p.105. As informações subsequentes sobre a Lavagem são deste autor.
59
Era a região de Massaranduba que abastecia com água, ao menos de gasto, a península, por meio do recurso dos barris
enterrados, como se fazia nos Barris:
Ou seja assim ou não, o certo he, que temos aqui apenas no lugar denominado – Massaranduba uns barris enterrados,
que alem de não chegarem para o consummo dos habitantes, cauza nôjo beber tal agoa; não porque seja má, e nem o

379
Os visitantes, os chamados romeiros, chegavam com antecedência. Alguns dormiam “ao
relento nos degráos do adro e no banco corrido da antiga muralha do Largo e Ladeira do
Bonfim”60, um degrau atijolado do parapeito que corria por toda sua extensão e usado por
todos como assento. Dos anos 1770 eram varandas laterais à nave da capela, construídas
para esse abrigo. Em 1818, a Devoção fechou esses alpendres da igreja, desvinculando o
templo de seu entorno.61 Ficavam também “debaixo das árvores das roças e quintais das
cercanias da Capela”.62 Era parte usual das festas a construção de telheiros de palha,
alojando-se “em cabanas ou palhoças improvisadas”.63 Esses estranhos eram ainda
“acomodados em várias casas de liqueur [sic] nas vizinhanças”.64 A região possuía muitos
alambiques e parece que ali, no que poderiam ser meros telheiros – como eram as
manufaturas simples da época –, a hospitalidade se oferecia aos desconhecidos. Repetia-se
o que vimos em outra ocasião, de oferecer “rancho”, a cobertura de um telheiro, de um
alpendre, ao visitante. No caso de romeiros, a boa-vontade seria maior pelo espírito da
concórdia necessário ao momento.

Outros hospedavam-se nas “casas de amigos ou conhecidos”.65 Lindley, em 1803, descreve


algo interessante, do lugar que era “cercado por casas de campo onde os proprietários
hospedam seus amigos”. Cedo, portanto, vemos esse afluxo de gente. Dos que possuem
casas ou roças ali recebendo os amigos. Kidder, falando dos anos 1840, relata a mudança
demográfica do lugar:

Estava em processo de pintura e reparos, em preparação para as férias de


Natal e Ano Novo, quando, assim como durante todo o verão, a vizinhança
é uma estância favorita. Casas ficam em grande procura então, e até a
cabana mais pobre é densamente ocupada pelas pessoas da cidade, que
alegremente abandona suas residências mais permanentes a fim de mudar
de ares, e as delícias de uma casa de campo [...] (KIDDER, 1845, p.87 –
tradução nossa)66

Como parte inicial das ações da Devoção, estava a construção de casas específicas para os
romeiros situadas no Largo do Bonfim. 67 Mas não qualquer um. Foram pensadas para as
famílias dos Mesários e Devotos do Bonfim e que, em contrapartida, davam esmola de
maior importância. Era “sempre a melhor sociedade que ocupa esses dois lotes de casinhas
de romaria”.68

O adro da igreja era decorado, e passava por transformações de um comércio efêmero,


dedicado ao ciclo do Bonfim, na conformação do que se costumava chamar de arraial. Em
1812 já se falava das barracas, que era novidade então, ao que parece, iniciativa do Conde
dos Arcos, para o que se chamava de Feira, realizada pela segunda fez: “o brilhante do dia,

local deixe de ser abundante; mas por que não havendo fonte, e sim os taes barris, soffrem estes, martyrios cruéis... e
posso fallar de cadeira, por que tenho lá ido de passeio, e – occuli mei viderunt – Primeiramente existe ahi uma turba
de negras lavadeiras, que fazem as maiores porcarias, como sejão, lavarem as mãos e pés dentro dos barris, e ainda
isso não he tudo, porém que lavão tambem as pernas, barrigas e seos suburbios: depois lá de vez em quando aparece
um cão ou um gato morto d´entro d´agoa. A MARMOTA n.270, Quarta-Feira 29 de Agosto de 1849. Salvador: Typ. de
Epifanio Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A, 1849)
Os barris provavelmente repetiam a lógica das cacimbas, isto é, com barris de fundo aberto, permitindo que a água
percolasse e o preenchesse, sem que o solo desmoronasse, inviabilizando o “poço”, assim criado com paredes artificiais.
60
CARVALHO FILHO, 1945, p.95.
61
SANTANA, 2009, p.146.
62
CARVALHO FILHO, 1945, p.95.
63
CARVALHO FILHO, 1945, p.95.
64
[...] surrounded with country-seats where the owners receive their friends, while strangers are accommodated from
several casas de liqueur in the neighbourhood [...] (LINDLEY, 1805, p.190).
65
CARVALHO FILHO, 1945, p.95.
66
It was under process of painting and repairs, in preparation for the holidays of Christmas and New Year, at which, as
well as during the entire hot season, the vicinity is a favorite resort. Houses are then in great demand, and down to the
poorest cabin are densely occupíed by the people of the town, who gladly abandon their more permanent residences for
the sake of a change of air, and the delights of a country residence [...] (KIDDER, 1845b, p.87).
67
CARVALHO FILHO, 1945.
68
CARVALHO, 1915, p.30.

380
a amenidade do sitio, o luzimento e ordem das barracas, a abundancia, e riqueza dos
gêneros, que as abastecião, o innumeravel, e lustroso Concurso de ambos os sexos”.69 Em
1856, diz Wetherell que “toda sorte de divertimentos é encontrada nas barracas armadas em
redor da igreja e perto dela”70, ao redor do adro, vendendo artigos diversos. As medidas do
Bonfim eram vendidas nessas barracas, de todas as cores, propelindo a sua existência. Do
comércio efêmero, havia a venda de brinquedos para as crianças, no que era chamado de
feira, e outra parte dedicada a comida e bebida, denominadas botequins. E longe de serem
exatamente espontâneas, eram empreendimento de comerciantes específicos, que se
dedicavam a isso.71

8.2. As Festas do Bonfim e a Urbanização da Península


Um dos aspectos mais importantes para o que estamos aqui vendo é que a Devoção foi
responsável diretamente pela transformação do seu entorno imediato.

O adro, como extensão natural da igreja, foi transformado pela ação diligente da Devoção,
aumentando sua extensão, eliminando seus acidentes, mobiliando-o, na segunda metade do
século XIX.

A Devoção interferiu ainda ativamente na provisão de água, com obras em 1809 na antiga
fonte do Travasso, que era de propriedade sua.72 Construiu outras três fontes: a Fonte Nova
(que Carvalho Filho acredita ser a da Baixa do Bonfim), e, em 1810, a Fonte da Mangueira
(também chamada do Gama) e a Fonte da Calçada. Carta satírica de 1849 criticava tais
fontes. Que o lugar carecia de fontes com boa água de beber, e as mais próximas eram
distantes e sem grande qualidade.

[...] e isto falando somente de Itapagipe, por que na calçada ha duas, a


saber, uma que se appellidada do – Gama – e padece retenção d´ourinas, e
outra intitulada da – Alegria – mas que bem lhe poderião trocar as bolas,
chamando-a da tristeza. E dar-se-há um caso, que metessem em cabeça
dessa gente Municipal, que o povo de Itapagipe vá à meia légoa de
distancia matar a sêde nas agoas da Alegria?73

A única fonte que abasteceria de fato a península eram os barris que estavam em
Massaranduba. Com água de gasto em maior volume, sendo que sua água era da mesma
qualidade que a das outras fontes. A população crescente da península se via ainda “na
obrigação de beber agoas, que os negros vão buscar, em canôas, nos Fiaes, S. João,
Cabrito e outros lugares, pare vender”.74

Depois, os quatro acessos à colina: a Estrada de Montserrate (Fig.191), e as Ladeira do


Porto da Lenha, do Porto do Bonfim e do Bonfim. Destas, apenas a primeira não teve
ingerência direta da Devoção do Senhor do Bonfim. A ladeira do Porto da Lenha foi
construída e mantida pela mesma. Da ladeira do Porto do Bonfim, ela fez reparos e

69
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.6, Sexta-Feira 21 de Janeiro de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.
70
WETHERELL, s/d, p.121.
71
Havia um certo número de negociantes como Teotônio José Antunes, João do Prado Carvalho, Manoel José Rodrigues,
Victor Sobral e um Angelo, muito rusguento, que eram assíduos armadores de feiras. Com o falecimento desses homens
foram desaparecendo as feiras, substituindo-as de tempo para cá pelas quermesses, denominação esta que não tenho como
mui cabida ou apropriada. (CARVALHO FILHO, 1945, p.98).
72
Que escreve “Traveço” (CARVALHO FILHO, 1945, p.89).
73
A MARMOTA n.270, Quarta-Feira 29 de Agosto de 1849. Salvador: Typ. de Epifanio Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A,
1849.
74
A MARMOTA n.270, Quarta-Feira 29 de Agosto de 1849. Salvador: Typ. de Epifanio Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A,
1849.

381
pavimentação em pedra comum em 1812, e realizou a ladeira do Bonfim, com obras
concluídas em 1810.75 Mas sobretudo o principal caminho ao Bonfim, conhecido por
Calçada do Bonfim, obra que durou de 1791 a 1818, que veremos melhor depois.76

Figura 191 – Isolamento Monte Serrat, cartão-postal da Litho-Typ. Joaquim Ribeiro & Cia., de 1928,
da Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. O antigo Hospital de Isolamento, atual Couto Maia.
Aqui vemos trecho da estrada que unia o Alto do Bonfim com Montserrate.

Figura 192 – Calçada do Bonfim (1860), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988. O trecho,
altamente fotogênico, propriamente chamado de Dendezeiros, por motivos evidentes.

75
CARVALHO FILHO, 1945, p.60. Este autor é a fonte destes dados sobre as ladeiras.
76
CARVALHO FILHO, 1945, p.62.

382
As festas mobilizaram serviços ligados à ampliação do rol de diversões dos visitantes. Como
o deslocamento de um circo especialmente para o Bonfim:

- João Bernabó, Director da Companhia Gymnastica e Equestra,


documentado por varios Reinos da Europa, sobre a Equitação de picaria
como um dos primeiros Artistas deste genero, avisa ao Respeitavel Publico
desta Capital, que tem formado no Bonfim um círculo para apresentar no
tempo da Festa, dando principio no dia 25 do corrente, os espectáculos
seguintes – Manejo d´Equitação a cavallo, onde se apresentarão os
maiores, e difficultosos exercicios desta. Arte executados por M. e Md.
Barnabó, e os Artistas Mrs. Livréro e Masseratta como tambem dança de
corda, e o grande Trampolim Espanhol ainda não executado nesta Cidade
pela Companhia, e mais divertimento que será annunciado pelos Cartases.
O Director tem apropriado o local com camarotes decentemente
guarnecidos, e lugares de 1. E 2. Ordem na Platéa para comodidade dos
espectadores.77

Nesse período, iniciava as funções às 16 h.78 Depois, com o fim do período, voltou para a
cidade, para São Raimundo.79 Trasladar-se ao Bonfim era uma necessidade. O centro de
Salvador se esvaziava, em especial do seu perfil de público. Ademais, teria no clima festivo
dos arrabaldes a melhor oportunidade para realizar suas funções. E o encerramento do ciclo
festivo não era apenas o seu apagar, mas a severa barreira da Quaresma.

Reclamava publicamente em março de 1839 o Arcebispo Romualdo Seixas do necessário


respeito aos Mistérios da Paixão de Cristo, à Quaresma. Este tempo, em vez de ser da
necessária constrição, se mesclava mais e mais com o restante do ano, “não se fazendo
diferença alguma [...] na frequencia de Bailes, Theatrinhos, e ou tros divertimentos”. 80 Neste
caso, dos espetáculos circenses no Campo Grande.

O interessante era a tensão entre o que pareceria à primeira vista ser a estrutura de valores
passadas contra a modernidade. Mas cabe lembrar que havia a romanização, a investida da
Santa Sé pelo controle direto do catolicismo em solo brasileiro.81 Então era uma força ativa,
presente, e não mera inércia. A rotina mesma das procissões religiosas comprometia o
funcionamento do circo. Aquele João Bernabó avisou que teria de cancelar a função prevista
para o dia 19 de março de 1839, pois fora “vedado por ordem do Illm. Sr. Juiz de Paz,
opondo por obstáculo à procissão que havia nesse dia”82, adiando para o final do mês, dia
31, e os dois primeiros dias de abril.

Também deve se considerar a pressão pela crescente melhoria do transporte para aquela
região, sendo um dos motores da introdução das tecnologias mecânicas, paleotécnicas, na
cidade. Atender aquele público, massivo e pontual nos festejos, porém cada vez mais
assentados permanentemente na área, levou à chegada de técnicas de transporte por terra
e por mar.

Haroldo Leitão Camargo, dentro do que seria uma descontinuidade prática entre os
estabelecimentos turísticos modernos e os que lhe precederam, argumenta que os hotéis

77
O CORREIO MERCANTIL n.634, Segunda-Feira 24 de Dezembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
78
O CORREIO MERCANTIL n.4, Sábado 5 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1839.
79
[...] na rocinha do Sr. Evaristo, para o que o director não se tem poupado a fazer lugares decentes para se
acocommodar os expectadores, sendo todos os lugares em sombra [...] (O CORREIO MERCANTIL n.53, Quinta-Feira
7 de Março de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp., 1839).
80
O CORREIO MERCANTIL n.67, Terça-Feira 26 de Março de 1839, Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
81
SANTANA, 2009.
82
O CORREIO MERCANTIL n.64, Quinta-Feira 21 de Março de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.

383
não haviam surgido como aperfeiçoamento dos albergues. Nem os restaurantes, das
tabernas, e tampouco os cafés dos botequins.83 Não foi o que encontramos. Nas cidades, os
“cafés” tinham outro perfil do público trabalhador mas, por sua vez, o mundo dos adultos do
centro frequentava esses espaços. Não eram dois sistemas radicalmente opostos, mas uma
malha de serviços que se ampliou e diversificou, abrindo espaço e possibilidade para as
mulheres, por exemplo. O mesmo com os hotéis, que se confundiam com o serviço de oferta
de refeições, as casas de pasto, que vemos que, por toscos que fossem, lidavam com a
demanda por um tipo de abrigo com traços modernos.

Interessante é a abertura de uma casa de pasto em 1816: “Frutuoso José de Oliveira, faz
sciente ao Público, que no dia 21 de Dezembro, abre a sua casa de pasto no largo do Bom-
fim”.84 Não faz sentido ser um estabelecimento constante, já que a urbanização ainda era
incipiente, e é o tipo de estabelecimento direcionado aos trabalhadores, daí sua presença
constante no Comércio. Porém, isso se explica com o ciclo de festas do verão. Este anúncio
aparece isolado, só voltando a repetir-se, com mais vigor, do ano 1840 em diante. Nesse
ano:

- Acha-se aberta no Bom-fim uma casa de divertimento d´argolinhas a


cavallo, e casa de pasto denominada Recreio do Bom fim, no sitio por
detraz das casas dos Romeiros, onde terá bons petiscos, excellentes
quartos para hospedes, e juntamente estribaria para depositos de
cavallos.85

O Hotel Campestre, situado no Campo Grande, nesse ano alugava “o jogo de argollinhas a
cavallo para o tempo das festas do Sr. Do Bomfim”86 do ano seguinte. Isso nos diz algo
sobre o lazer da época e das festas – o jogo de argolinhas, onde se exibia a destreza
eqüestre, de herança medieval – mas da oferta desse serviço, direta ou indiretamente, por
estabelecimentos relacionados à hospedaria e refeições. No ano de 1841, deslocava-se
outro estabelecimento para o evento: “a propriedade do Hotel de França avisa ao respeitável
publico desta capital, que tem aberto uma casa de comidas ao largo do Sr. do Bom fim”.87
Como era um ciclo, o estabelecimento permaneceu até seu final: “M.me Douvigneau
partecipa ao respeitável publico desta capital, que continua com seo hotel ao largo do Bom-
fim, até depois da festa de S. Gonçalo”.88 Em 1843, havia um serviço análogo: “na casa de
pasto ao lado superior do campo do Bomfim, no correr das casas do Sr. Faria, se achão
todas as qualidades de comidas, massas, fructas, refrescos, &c.”.89 Em 1847 ficou clara a
relação das casas de pasto com os festejos:

Pello tempo das festas que se fazem no Bomfim, acharão refrescos e bons
petiscos na caza de Pasto e hospedaria com todos os commodos, tanto de
comida como de bons quartos para dormir e arranjos de seus cavallos; e
recebem-se assignantes de seus cavallos; e recebem-se assignantes pelo
tempo que durarem as ditas festas; cita em frente de Roma, hum dos
melhorese lugares da Calçada, onde se goza o melhor fresco e delicioso
descanso.90

83
CAMARGO, 2007, p.172.
84
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.101, Terça-Feira 17 de Dezembro de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1816.
85
O CORREIO MERCANTIL n.4, Terça-Feira 7 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
86
O CORREIO MERCANTIL n.251. Quinta-Feira 19 de Novembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.
87
O CORREIO MERCANTIL n.10, Quinta-Feira 14 Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.
88
O CORREIO MERCANTIL n.19, Segunda-Feira 26 de Janeiro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1841.
89
O CORREIO MERCANTIL n.8, Quarta-Feira 11 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
90
O GUAYCURU n.518, Quarta-Feira 12 de Janeiro de 1848, Salvador: Typ. de Domingos Guedes Cabral, à rua do Bispo,
n.45, 1847.

384
E, importante, fica claro que funcionava como hospedaria. Outra informação importante é a
do primeiro hotel no adro do Bonfim, em 1852:

O proprietario do hotel do Commercio, João Pereira de Castro, tem a honra


de scientificar ao respeitavel publico, que abrio um hotel filial, no adro do
Bom-Fim, aonde dará jantares todos os domingos e dias santos, (meza
redonda às 4 horas da tarde) pelo modico preço de 2$rs, comprehendendo
a passagem da gondola da cidade, para o referido Bom-Fim às 2 horas da
tarde, e regresso às 7 horas em ponto, não se apresentando porem as
horas do regresso, perderá esta regalia: bem como tão bem dá jantares às
pessoas que forem a cavallo, cadeira, ou apé por 1$200 – tendo para os
que forem a cavallo, estribaria para guardarem. As pessoas que quizerem
hir de manhã tão bem há gondola à sua desposição: quem se quizer
aproveitar, deverá munir-se do seo bilhete nos sabbados até ao domingo às
11 horas, os quaes se vendem na casa do sr. Ariani.91

Serve não apenas para hospedagem, como para refeições, nos finais de semana e feriados
e, importante, oferecendo o serviço de transporte de gôndola, que veremos a seguir. Assim,
entendia que o seu serviço se articulava necessariamente com aquele outro, recente, do
transporte. Encontramos já a partir da segunda década do século XIX uma estrutura de
serviços, ainda que em seus inícios, voltada à hospedagem dos visitantes, para além das
casas de romeiros, do improviso do pernoite em condições precárias ou telheiros de palha,
ou na casa de amigos.

No local ou em função da festa aparecia um comércio específico. Em 1843 encontramos


uma série de anúncios de produtos voltados para a festa. Como as “fitinhas do Bonfim”:
“Buchere Chalopin e C. tem para vender medidas douradas, para as festas de N. Senhor do
Bomfim, S. Gonçalo, Guia e Purificação”92, atendendo ao conjunto das festas do ciclo. Perto
do local, em região que estava se caracterizando por ter depósitos e escritórios comerciais.
Vendia-se na Calçada do Bonfim “ao pé da ponte do Canal”, cera em velas, que tinha por
comodidade não apenas o preço presumidamente baixo, como “tambem quem a queira
levar de mais perto ao Senhor Bomfim”.93

E um mesmo feirante, dono de barraca, Theotono José Antunes, no que parecia já ser o
arraial defronte à igreja, anunciava seus produtos no jornal, para ocasião das festas. Para os
homens adultos, “sortimento de charutos Napoleão, Fama, Regalia, e China”.94 E para a
outra parte da família, em idade e gênero: “rico sortimento de brinquedos proprios para
crianças, e tambem varias galanterias para senhoras se vendem na barraca de Theotonio
José Antunes, defronte do adro da igreja do Sr. do Bomfim”.95 O vendedor atendia a toda a
família, em uma ocasião em que comparecia como tal, e as crianças, como dito antes,
começavam a aparecer na esfera pública.

Para eles também um outro atrativo, um outro espetáculo ou entretenimento óptico, como
fora o Theatro Panorama. Era o Cosmorama, que na época só foi montado no Bonfim,
diretamente no largo, ao invés de no centro.

Partecipa-se ao respeitavel publico, que no dia 12 do corrente, ao lado


superior do campo do Bomfim, na casa do Sr. Farias, haverá um rico

91
O GUAYCURU n.191, Quinta-Feira 5 de Fevereiro de 1852. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar,
caza n.96, 1852.
92
O CORREIO MERCANTIL n.6, Segunda-Feira 9 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
93
O CORREIO MERCANTIL n.5, Sábado 7 de Janeiro de 1843. Salvadoir: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1840.
94
O CORREIO MERCANTIL n.11, Sábado 14 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
95
O CORREIO MERCANTIL n.15, Quinta-Feira 17 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.

385
Cosmorama, aonde se representará com vidros opticos lindos pontos de
vista de combates terrestres, e marítimos de diversas nações, Napoleão nas
pyramides do Egipto, o principe Chinez no bosque americano, pesca da
balêa, e suas furias causando naufragio &c. este interessante divertimendo
he a primeira vez que apparece nesta provincia, e foi representado na côrte
com applusos do publico. De dia e de noite será patente.96

Anúncio subsequente acrescentava outras cenas – a Vênus de Tiziano, uma batalha de D.


Pedro I contra D. Miguel, e a barra do Rio de Janeiro – e especificava os preços: “de dia, ou
de noite a entrada he de 320 e para as crianças a 160”.97 No que diz respeito às imagens,
quadros famosos, cenas de grandes batalhas e concepções paisagísticas usuais, como a
entrada do Rio de Janeiro, seguindo a lógica do Theatro Panorama. Aí entrava o público
infantil, previsto, que ora se estimulava, ora se facilitava o ingresso da família por inteiro,
que estaria ali de veraneio. O anúncio final daquela temporada ainda abria outra
possibilidade: “as famílias que desejarem gozar deste divertimento independente de outras
pessoas tratarão com o dono da casa”.98

Também pelos anos 1840 aparecem os primeiros registros em periódico de reforço no


policiamento. Ora pelo aumento da festa, ora pela preocupação do Poder Público, refletindo
uma mudança de sensibilidade. Coetânea era a preocupação com o Entrudo. Em 21 de
fevereiro de 1843 firmou-se resolução da Repartição da Polícia: para evitar os hábitos do
Entrudo, como lançar água sobre os demais de “gamellas, ou quaesquer outras vasilhas
cheias d´agoa”.99 As forças de segurança pública eram chamadas para apaziguar possíveis
conflitos no traslado, como no expediente da Repartição da Polícia de 10 de janeiro:

- Ao commandante do corpo policial, para mandar as 6 horas da manhã do


dia 15 dous guardas nacionaes de notoria capacidade para receberem as
necessarias instrucções do administrador da companhia Bahiana de
navegação por vapor, afim de prevenir desordens que possão apparecer na
barca que no mesmo dia tem de fazer differentes viagens ao porto do
Bomfim.100

E na própria festa. Partiu nesse ano um destacamento, que estava antes estimado entre 12
a 20 praças, mais um oficial comandante, hospedada em casa no Largo do Bonfim, de
responsabilidade da Devoção.101

As Gôndolas
Os primeiros veículos coletivos da cidade seriam aquelas gôndolas, também chamadas de
omnibus. Em 3 de Maio de 1845 a Lei n.223 concedia privilégio por 10 anos para quem
quisesse instituir uma companhia de gôndolas, com linha da Cidade Alta (Centro) até a
Barra, e outra das Pedreiras até o Bonfim.102 Apresentava-se o que será uma tônica na
segunda metade do século XIX: a articulação norte e sul da cidade. Ou melhor: a conexão
do centro com o norte e do centro com o sul, lidando com essa expansão. Expansão
solvente, capaz de arcar com os custos, e sobretudo de mobilizar os governos a tomarem a
iniciativa.

96
O CORREIO MERCANTIL n.7, Terça-Feira 10 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
97
O CORREIO MERCANTIL n.17, Sábado 21 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
98
O CORREIO MERCANTIL n.22, Segunda-Feira 27 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1843.
99
O CORREIO MERCANTIL n.44, Quinta-Feira 23 de Fevereiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1843.
100
O CORREIO MERCANTIL n.14, Quarta-Feira 16 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
101
O CORREIO MERCANTIL n.7, Terça-Feira 10 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1843.
102
BARROS, 1934, p.284.

386
As gôndolas eram carros altos, puxados por quatro burros, em um dos quais ia o cocheiro,
percorrendo as irregulares ruas da cidade (Fig.193).103 A Carlos Alberto de Carvalho não
escapou que o primeiro lugar atendido fora o “bairro aristocrático do Bomfim”104, o que nos
diz duas coisas. A primeira que o serviço tinha como direção o que seria um público
pagante. A segunda, que Carvalho concebia que ali era um bairro aristocrático. Lembremos
que o serviço das gôndolas podiam vir articulados com o das refeições, como aquele de
1852 nas festas do Bonfim.

Anna Bittencourt tomara uma dessas gôndolas, da casa alugada no Bonfim até um
estabelecimento comercial, e aponta que lhe fora assentido viajar por ser uma menina, visto
que nelas “só andavam homens e crianças”.105 Querino detalhava, os cavalheiros tinham de
ir bem vestidos, de cartola, e por certo tempo as senhoras evitavam, sentindo
“repugnância”.106 A mudança cultural teria ocorrido por iniciativa da Condessa de Barral –
Luísa Margarida de Barros Portugal (1816-91), filha do Visconde de Pedra Branca – usando
de seu prestígio, sendo “a primeira mulher que se serviu desse meio de condução; e
fazendo propaganda entre pessoas de sua amizade”.107 A mudança cultural era tremenda:
implicava no abandono das cadeiras e análogos, da mulher oculta em luxuoso aparato
conduzido por custosa força de trabalho humana, para uma mulher exposta em veículo
coletivo por todo um trajeto.

Quais foram as primeiras companhias de gôndolas? As mais famosas foram as de Rafael


Ariani. Carvalho dizia haver quem afirmasse ter havido gôndolas antes das de Ariani, sem
ter achado documento que o fundamentasse. Porém encontramos alguns registros.

Samuel Greene Arnold disse que em 1847 “na cidade alta corre um omnibus a partir do
teatro e outro na cidade baixa do extremo da rua que conduz ao suburbio da Vitoria”.108
Indicava, em texto confuso, duas linhas, na cidade alta e baixa. Ainda encontramos mais de
uma menção a estabelecimento de gôndolas (pensamos em estrebarias para os cavalos) na
Vitória, talvez no mesmo terreno depois das estrebarias da Veículos Econômicos, conforme
anúncio de 1848: “na estrada da Victoria junto ao estabelecimento das gondolas, vende-se
bom capim, e barato”.109 E em anúncio da venda de uma “parelha de bestas”, “para ver e
tratar na estrada da Victoria, junto ao estabelecimento das gondolas”.110 Estas menções são
importantes, porque não são cobertas pelo melhor trabalho atual no tema, de Consuelo
Novais Sampaio.111 Indicam uma “pré-história” das gôndolas, antes daquelas de Rafael
Ariani, em breve interregno entre a abertura da licitação e o empreendimento dele.
Encontramos em 25 de maio de 1848 uma chamada da “Directoria da companhia de
Gondolas da Bahia convida aos Srs. sócios para uma sessão extraordinária, que terá lugar
às 2 horas da tarde de 29 do corrente mez em uma das sallas da praça do Commercio”112
pelo seu secretário, José Joaquim do Reis Lessa. Ou diz respeito a essa empresa
transitória, ou ao futuro empreendimento de Rafael, em vias de realizar-se.

103
CARVALHO, Carlos Alberto de. A Locomoção da Cidade Através dos Tempos. Salvador: Escola de Aprendizes Artífices,
1940, p.13.
104
CARVALHO, 1940, p.13.
105
BITTENCOURT, 1992b, p.122.
106
QUERINO, 1955a, p.123.
107
QUERINO, 1955a, p.123.
108
SILVA, 1952, p.5.
109
O MERCANTIL n.151, Quinta-Feira 29 de Junho de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1848.
110
O MERCANTIL n.169. Domingo 18 de Julho de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa n.78,
1848.
111
SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 Anos de Urbanização: Salvador da Bahia no Século XIX. Rio de Janeiro: Versal: 2005. O
recente trabalho Cybèle Santiago e Karina Cerqueira (2019) sobre o tema reconhecia que, antes do serviço de 1849, o
privilégio previsto pela Lei n.244, de 4 de maio de 1845, fora concedido antes a outro – não-nomeado -, que não
conseguira manter o serviço após alguns anos.
112
O MERCANTIL n.119, Sexta-Feira 26 de Maio de 1848. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1848.

387
Figura 193 – Largo de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro (1865), foto de Georges Leuzinger.
Fonte: Brasiliana Fotografica. Um exemplo de como eram as gôndolas, na falta de registro visual dos
seus análogos em Salvador.

Ariani havia arrematado em leilão a linha de omnibus (gôndolas) da Cidade Baixa até o
Bonfim. Com grande custo comprara terrenos na povoação do Bonfim para depósitos de
coches e cavalariças. Na Baixa do Bonfim ficava sua fábrica de carros. Em 1854:

Na fabrica de carros de R. Ariani sita a baixa do Senhor do Bomfim, acha-se


constantemente à venda carros promptos e novos, do ultimo gosto e muito
bem acabados, assim como aceitão-se encomendas, consertão-se uzados
reduzindo-os a novos pintando-os e tornando-os tudo com a maior perfeição
e aceio, existem tambem carroças para condução de quaesquer objectos
novas e fortes muito bem construidas; vende-se igualmente na mesma caza
rodas velhas e novas tanto para carrinhos como para carroças, mollas,
eixos, e tudo mais que comprehendesse em uma fabrica de carros tudo por
preços muito razoaveis.113

Os carros de aluguel não estariam disponíveis em certos dias, como o 1º de janeiro, Senhor
do Bonfim, festas de S. Gonçalo e N. Sra. da Guia, cedendo espaço para as gôndolas da
linha do Bonfim.114 Importante notar que a concorrência a esses arrabaldes dizia respeito ao
ciclo festivo-religioso da cidade. E seu papel propelindo os avanços técnicos: Salvador fora

113
CORREIO MERCANTIL, Quinta-Feira 28 de abril de 1854. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, 1854.
114
SAMPAIO, 2005, p.138.

388
das primeiras cidades brasileiras a ter transporte coletivo115, aparato em muito insuflado
pelas festas do Bonfim, e depois do Rio Vermelho.

Sampaio diz que Rafael Ariani adquirira carros usados em leilão em 1849, e começou a
fabricar novos veículos, para frota que circulava entre Comércio e Bonfim. Seus carros
fabricados começaram a rodar em fins de 1850.116

Em 1851 o major Francisco Antônio Filgueiras estabeleceu uma linha de gôndolas entre o
largo do Teatro e o largo da Vitória, nos dois sentidos.117 Em 1851 aponta Wetherell que
havia “duas linhas de bondes e muitos carros de aluguel; bandos de mulas são usados para
carregar cal, pedras, terra, etc.”.118 Importante essa polaridade entre norte e sul, que depois
se irradiou para mais além da Vitória, lutando para alcançar a Barra e o Rio Vermelho.
Porém em 1859, o major vendeu a linha e a cocheira que possuía no Largo do Teatro para
Rafael Ariani, na recém-criada Companhia Posta Baiana.119 Os filhos continuaram a firma do
pai, após sua morte, mas conservaram a razão social.120

Carvalho fala das gôndolas de um outro major, de nome Guimarães, em número de quatro,
igual ao número de carros originais de Ariani, embora sem especificar o trajeto Largo do
Teatro/ Vitória.

Mesmo com essas oito gôndolas – as 4 dos Ariani e as outras 4 do Major Guimarães – não
se teria atendido à demanda do lugar, em especial durantes as festas, daí que os Ariani
trouxeram do Rio de Janeiro mais cinco, de nome Tejo, Piapitinga, Riachuelo, Paraguassú e
Amazonas.121 Provavelmente, a soma das gôndolas (as quatro de Ariani, mais as quatro do
major, e as novas cinco) correspondiam à Companhia Posta Baiana já, após 1859,
atendendo ao Bonfim.

A Companhia Bahiana de Navegação a Vapor


Quando se iniciou a Navegação a Vapor na Bahia, aludiu-se às festas do Bonfim.

Estamos falando da Companhia Bahiana de Navegação a Vapor, a primeira com esse


nome, firma a cargo de João Diogo Sturz, que obtivera a concessão provincial em 1836 e
lançara seus primeiros barcos ao mar em 1939, com permissão para atuar com
exclusividade, a partir de 1840, por não menos que 35 anos, e que operou até 1847.122 No
Prospecto dessa nova companhia, tornado público em 1839, entre as demandas levantadas
para a oferta do serviço estavam as festas no Bonfim

[...] teremos mais tres dias para a navegação d´outros lugares na Bahia,
como sejão ao Bomfim [...] que em todo o tempo são frequentados por seos
habitantes; sobretudo nos Domingos, e Dias Santos, que são numerosos, e
milhares de pessoas os frequentão. Calcula-se que somente em Dezembro,
e Janeiro, perto de um terço da população da Bahia, que anda por 140.000

115
SAMPAIO, 2005, p.138.
116
SAMPAIO, 2005.
117
Na Falla de 1860, registra-se que o serviço de gôndolas (omnibus ou carros para transporte de passageiros) fora contratado
pela Presidência da Província a Francisco Antônio Filgueiras em 14 de julho de 1851, a certas e determinadas horas, do
Largo do Theatro ao da Victoria e vice-versa, com privilégio por 10 anos.
118
WETHERELL, s/d, p.61. O termo “bondes” é da tradução brasileira; no original ele escreve omnibus, cuja tradução correta
seria “gôndolas”.
119
A mesma Falla de 1860 aponta algo ligeiramente diferente, porém aceitável: que a 5 de janeiro de 1860, Raphael Ariani
obtivera a empresa de Filgueiras.
120
Motivo de muitos historiadores lhe atribuem, mesmo depois de morto, outros feitos – como a criação da Veículos
Econômicos, em 1866 – posteriores à sua morte, em 11 de abril de 1864. (SAMPAIO,2005).
121
CARVALHO, 1915, p.152.
122
Houve uma primeira tentativa, em 1819, feita por Felisberto Caldeira Brant, com maquinário trazido da Inglaterra e casco de
madeira feito no estaleiro da Preguiça, sem êxito porém (SAMPAIO, Marcos Guedes Vaz. Navegação a Vapor na Bahia
Oitocentista (1839-1894). Salvador: Edufba, 2014).

389
pessoas se retira para passar a festa no Bonfim: quando houver a
facilidade, e conveniencia que os vapores offerecem, hade sem duvida
induzir a maior parte daquelle numero a adoptar o transporte por vapôres
por causa do calor uniforme do clima.123

Diogo Sturz convidou as autoridades, incluindo aquelas do Correio Mercantil, para essa
viagem inaugural, tornada grande celebração. No dia 1º de janeiro de 1839 fez-se a viagem,
com grande festa, com música do Batalhão Municipal e “grande concurso de Brasileiros, e
d´Estrangeiros, notando-se, nestes, quasi todos os negociantes que residem na Bahia”.124
Batizaram os navios e fizeram sua excursão náutica, com os vapores Todos os Santos e
Catharina de Paraguassú.

Pela uma hora e meia da tarde chegarão os vapôres defronte da heroica


villa de Itaparica, cujos habitantes pressurosos corrião às praias, para
verem tão brilhante espectaculo, qual o de dous barcos de vapôr,
magnificamente adornados com bandeiras, e fetões de flores pela parte
exterior e interior, trazendo à seo bordo centenares de pessoas, que,
acenando seos lenços, davão vivas de alegria e de prazer, sendo
acompanhados pelas muzicas que, em ambos os barcos, existião.

Defronte da fazenda do Mocambo, na villa de Itaparica, parárão, por pouco


tempo, ambos os vapôres, e d´ahi seguirão em direcção ao boqueirão,
d´onde se dirigirão depois ao porto do Bomfim, pequena enseada que fica
ao NN.O. da cidade. Faltavão 10 minutos para as 4 horas da tarde, quando
saltárão em terra todas as Senhoras e grande numero de passageiros de
ambos os barcos, depois de uma digressão de mais de 10 leguas. As praias
do porto do Bomfim estavão cheias de expectadores que affluirão para
observarem scena tão curiosa, quanto nova para muitos delles. As
Senhoras, acompanhadas dos seos esposos, do Excel. Sr. Commandante
das Armas, e de muitos passageiros forão assistir ao Circo Olympico no
Bomfim, e o vapôr Catharina partio para cidade, trazendo à seo bordo os
passageiros que quizerão logo voltar.125

Retornaram às 18h30min, concluindo com lauto jantar e brindes ao imperador. Notar a


presença da banda do batalhão municipal, e que a música os acompanhava em todo o
percurso. Durante o ciclo do Bonfim, os vapores eram postos à disposição: “o Barco de
Vapor “Todos os Santos” andará Domingo 6 do corrente, da Cidade para o Bom-fim,
principiando às 9 horas da manhã até as 6 horas da tarde”.126 O fluxo era de tal natureza, o
seu público tinha tal perfil, e tal era o interesse de dar-lhes comodidade, que já em 1839
fizera-se algo para melhorar o transbordo dos passageiros do barco para terra firme, por
parte de Henrique Samuel Marback, que

[...] mandou construir uma embarcação raza, q´possa contar 70 a 80


pessoas, para desembarque dos passageiros, com toda segurança e
presteza, puchada por cabos do Vapor para terra, e na volta pela mesma
maneira, sendo isto feito pelo modico preço de 80 rs. cada pessoa.127

O barco Catharina Paraguassu, da companhia, circulava especialmente para o Bonfim no


domingo, “desde as 8 horas da manhã até depois do fogo”. A passagem era 400 réis, mas

123
O CORREIO MERCANTIL n.23, Segunda-Feira 28 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
124
O CORREIO MERCANTIL n.3, Sexta-Feira 4 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
125
O CORREIO MERCANTIL n.3, Sexta-Feira 4 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
126
O CORREIO MERCANTIL n.4, Sabbado 5 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
127
O CORREIO MERCANTIL n.11, Segunda-Feira 14 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.

390
tinha “Camara 540 sendo esta reservada unicamente para as Sras.”.128 O vapor, tudo indica,
garantia às damas a reserva da exposição.

Não eram viagens regulares, mas serviços acionados para eventos e situações em que se
presumiam que haveria público. Destas, era o ciclo do Bonfim que correspondia a uma
demanda proveitosa e constante.

Em 1847 o cenário da navegação mudou. A Companhia Bahiana vinha apresentando


rendimentos decrescentes e, falida, teve seus bens adquiridos pela nova Companhia
Bonfim.129

Os Hábitos Cosmopolitas
As descrições das festas populares tendem a ser externas, das áreas abertas e franqueadas
ao público, pela própria condição da visitação: as ruas e o caminho, o arraial em torno do
templo, dentro do templo. A contraparte necessária, mas sempre minimizada, nas
descrições dos eventos, é o espaço doméstico. Que, apesar de privativo, é coletivo em
alguma medida, abarcando as famílias e seus amigos, e, multiplicado por centenas, para
todos os visitantes que ali pernoitam, criam uma experiência compartilhada por todas,
apesar de não ser unitária. Tais eventos são “de rua” apenas na sua feição visível, sendo
mais propriamente eventos “coletivos”, porque conectam e requerem ambientes mais
reservados.

Nestas circunstâncias, novas fronteiras, são desenhadas. As casas podem se abrir para
grupos de conhecidos ou mesmo de estranhos. As casas são o suporte das temporadas
mais longas, onde os visitantes descansam, ainda que dormindo por todos os lados, em
condições mais precárias. Anna Bittencourt, falando das festas e da recepção familiar,
marcava que “nos outros quartos e salas, arranjavam-se como podiam os mais: em camas,
lastros de esteiras, arcas e até sobre as mesas [...] a própria falta de comodidade era um
motivo de riso e galhofa para todos”.130 O que aqui se repetia. Onde os visitantes se
confraternizavam, no comensalismo, e em festejos e diversões próprios. A compreensão da
urbanização do Bonfim requer essa atenção. Essa estrutura de apoio aumentava, e
acompanhava não apenas os ritmos do festejo, mas as mudanças na socialização
doméstica da cidade.

Voltemos à experiência de Ver Huell na festa do Bonfim. Chegando na roça de Fanchette,


as mulheres foram preparar o jantar, servido como um piquenique, toalha de mesa posta
sobre a grama, junto com sangria.131 A seguir, cantaram uma modinha, para depois caírem
no lundu, para entusiasmo de todos os presentes.132 Seguiram o lundu, enquanto bebiam, o
entusiasmo crescendo, “até que, afinal, degenerou em uma Bachanalia”.133 No dia seguinte,
o holandês descobriu que a família acordara antes e fora para a chamada Missa da
Madrugada. De retorno, permaneceram todos em casa, conversando e jogando cartas, até a
hora de voltarem à igreja, para a festa, no dia que seria a festa do Bonfim propriamente dita,
talvez o sábado pelo aparato que viu a seguir. Curiosamente não houve muito da festa
exterior para descrever. À noite haveria fogos de artifício, que tomou como ocasião para

128
O CORREIO MERCANTIL n.14, Quinta-Feira 17 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
129
SAMPAIO, 2014.
130
BITTENCOURT, 1992b, p.40.
131
HUELL, 2009, p.230.
132
A descrição minuciosa de Ver Huell, que não exploramos aqui, é preciosa. José Ramos Tinhorão (Pequena História da
Música Popular. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.) não encontrou nada desse quilate quando escreveu sobre o lundo,
precisando muito especular sobre o que acontecia.
133
HUELL, 2009, p.232.

391
evadir-se, escapando dos riscos do crescente envolvimento com Naninha, a sobrinha da
esposa do anfitrião, Fanchette, e principalmente da afiada faca de ponta do irmão dela...

Nas décadas que se seguiram os salões domésticos se expandiram e se transformaram.


Nos sobrados e palacetes mais abastados ganharam maior tamanho, decoração e
mobiliário, e foram se animando com convivas não mais em serões eventuais, mais comuns
no interior, mas em saraus ilustrados. Querino anota tal movimentação durante os festejos
do Bonfim, igualmente complementar à atividade na rua, no adro e na igreja: “nos salões
aristocráticos a orquestra executava trechos escolhidos; nos intervalos, porém, apreciavam-
se as belas modinhas de Chico Magalhães, Tito Lívio e Aragão, da Cachoeira”.134 Em outro
momento acompanhava o piano “outro cantor [...] ou elegante senhorinha”135, ou se
recitavam poemas, sérios ou paródias. Nas “modestas vivendas aplaudiam os cantores e
tocadores de violão, flauta e cavaquinho”136, tocando o samba e cantando a chula, e
dançando o corta-jaca, “difícil sapateado popular, que requer enorme agilidade nos
movimentos dos pés”.137

Havia outra faceta na urbanização dos arrabaldes. Esta não era apenas a transformação
física da região, com o parcelamento do solo; a criação de caminhos pavimentados,
alinhados nas margens e nivelado; o aumento do número de imóveis, de seus pavimentos, e
diminuição das áreas verdes de mangues, roças e terrenos baldios; da conquista do solo,
fundamental nessa península arenosa e alagadiça, e da dotação da infra-estrutura de
drenagem ou iluminação. A urbanização era também a mudança dos hábitos e do espírito
dos seus ocupantes transitórios, que exigiam as comodidades da cidade, estas, por sua vez,
crescentes e mais intrincadas. Que se dava concomitante com aquela mudança da vida
doméstica e o peso crescente dos salões, com músicas e ritmos da moda, muitos (mas não
todos) de origem européia. Lopes Gama a aponta na mesma época em Pernambuco, e
pode nos servir como termo de comparação.

Em uma série de textos enfocou aspectos diferentes das festas nos arrabaldes no verão.
Aqui destacamos a mudança dos hábitos, no seu Os passatempos do Natal, de 24 de
dezembro de 1842. Cotejava os hábitos de seus avós, setecentistas, mais simples e
singelos. Contavam os divertimentos de jogos de prendas, de modinhas, chulas e lundus,
com cítara e viola, e fazia ênfase no flerte entre os jovens de família.138 Nos batizados e
casamentos, somavam-se os minuetos, cotilhões e concluíam com o “baiano”, dança que
não era então tida como imoral, como nos 1840.139 Nas noites de luar, nos areais daqueles
arrabaldes circulavam ranchos, cantando e tocando, enquanto outros brincavam o “jogo de
limãozinho”. No entanto, tudo aquilo se modificara: “hoje os nossos campos de recreio
quase em nada se diferenciam da cidade. Agora até os bailes emigram para os subúrbios e
quase que com as mesmas formalidades e etiquetas”.140 Não apenas os hábitos seguiam as
ondas da moda, como emigravam de tal maneira que apagavam as distinções entre o
campo e a cidade, e mesmo entre os tempos, se as formas de diversão eram as mesmas.
Enquanto os presépios de Natal se tornaram uma moda nas casas dos arrabaldes, como
também se firmara na Bahia, eram “de ordinário a partilha da gente menos elevada. À de
ordem superior pertencem as partidas, os soirées e os bailes”.141 Enfatizava os gamenhos,
os namoradores, que viam aí oportunidade para impressionar e seduzir as senhoritas:

134
QUERINO, 1955a, p.143
135
QUERINO, 1955a, p.147.
136
QUERINO, 1955a, p.153.
137
QUERINO, 1955a, p.153. Aqui há algo estranho. O autor, tendo vivido de 1851 a 1923, menciona o corta-jaca como uma
modalidade de dança de antanho, embora José Ramos Tinhorão (s/d) aponte que tenha se popularizado nos últimos anos do
século XIX, de quando são os primeiros registros. A diferença é por demais significativa.
138
GAMA, 1996, p.439.
139
Para Tinhorão, o baiano seria a forma original da palavra baião, chamada assim por referir-se ao lundu, vindo da Bahia.
Porém nesse mesmo texto Lopes Gama se referia ao lundu como algo distinto do baiano, e o mesmo repetiria em outros
textos.
140
GAMA, 1996, p.442.
141
GAMA, 1996, p.446.

392
namoravam contando vantagem, circulando com seus cavalos (quando não alugados, em
ostentação teatral), tocando violão. Não temos nenhum depoimento que penetre nesses
hábitos de verão. Apenas não seria inusual que fosse análogo em alguma medida, ainda
que não se desse em simultâneo. Vide o jogo de argolinhas que havia no Bonfim,
oportunidade privilegiada para o uso ostentatório dos cavalos. Da mesma maneira, os
elementos que temos sobre a presença crescente dos jovens nessa mudança de hábitos
também converge com o que Lopes Gama comenta, afinal era “esta quadra do ano a grande
safra dos jovens”.142 A urbanização da área pode ser vista de maneiras diferentes. Mesmo a
mudança sutil no meio: Lopes Gama denunciava o aumento do número de pessoas, de
casa, e mesmo da desaparição dos passarinhos, caçados em maior quantidade pelos que
afluíam no verão. Mas, para o que nos interessa aqui, apontava para o transporte dos
hábitos modernos para aqueles arrabaldes: “hoje os nossos campos de recreio quase em
nada se diferenciam da cidade. Agora até os bailes emigram para os subúrbios e quase que
com as mesmas formalidades e etiquetas”.143 Urbanizava-se os arrabaldes porque seus
visitantes de verão traziam os hábitos próprios do centro da cidade.

8.3. A Longa Calçada do Bonfim


Diante logo do Noviciado começa a vargem e alagadiços de Itapagipe;
continuando tres differentes caminhos; hum pela Praya chamada da
Jequitaia athé a Ponta de Monserrate; outro para o Bonfim, ou Itapagipe
debaixo; e o terceiro para Itapagipe de cima, indo procurar a Praya do
Papagaio que fica pela parte posterior do Noviciado de forma que o torrão a
que chamão de Itapagipe hé huma verdadeira península e não tardando
muito há de ficar perfeita ilha, visto que já em agoas grandes a maré se
communica de huma para outra parte, a pouca distancia do Noviciado.
(VILHENA, 1922a, p.101).

Os caminhos principais da península já existiam. Apenas seriam depois consolidados. Na


face sul da ponta da Ribeira “ficão muitas rossas e outras fazendas, terras todas planas e de
areyas com os alagadiços de que já falle”.144 Esta era a situação no século XVIII. No começo
do século seguinte o que vemos é que praticamente todos os anúncios de venda de casas
de campo as localizavam na Ribeira, então chamada Itapagipe.

Está para se vender, ou rifar huma casa de campo, de pedra e cal, nova, e
moderna com beiramar da parte do Papagaio, em Itapagipe, sitas no lugar
mais agradavel denominado Porto dos Tainheiros; tem seu sitio com
bastantes larangeiras, e alguns coqueiros [...]145

Em 1817, vendia-se “huma casa de campo no Poço de Itapagipe, de pedra e cal, com
cisterna, e grande quintal murado”.146 Em 1818, onde seria o futuro Caminho de Areia:
“huma roça na rua direita de N.S. dos Mares, sahindo aos mangues que vai para Itapagipe
[...] com huma boa casa de campo, não havendo outra por ali”.147 Em 1831:

Vende-se huma Casa de Campo com seu eirado na Estrada que vai para
Itapagipe chamado Papagaio, com cinco quartos, e huma Cavalharice,
independentes da dita; com hum grande poço e casas para banhos, e hum

142
GAMA, 1996, p.448.
143
GAMA, 1996, p.442.
144
VILHENA, 1922a, p.229.
145
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.44. Sexta-Feira 11 de Outubro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva
146
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.87, Terça-Feira 4 de Novembro de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.
147
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.85, Terça-Feira 27 de Outubro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.

393
grande quintal com vários pés de larangeiras de embigo, parreiras, e outros
arvoredos, toda murada de pedra e cal, e huma frente de treze braças que
faz frente para a Massaranduba, cuja frente está marcada para cinco Casas
terrias [...]148

O aluguel também se tornara usual. Mas estas casas de campo na Ribeira e adjacências
não se vinculavam ao ciclo do Bonfim. Nenhum dos anúncios lhes apresentava como algum
tipo de vantagem sua proximidade às capelas e suas festas, nem aluguel temporário.

Havia ainda um outro processo imobiliário, partindo da área consolidada do Porto. Seria
uma expansão “natural” da estreita faixa portuária, rumo a norte, mesclando o comércio, a
manufatura e a moradia de gente vinculada a tais atividades.

Na Freguesia do Pilar estavam os maiores comerciantes da cidade, em especial os


portugueses, que fizeram fortuna durante o Império. Se muitos viviam no mesmo edifício
onde tinham negócios, outros preferiram “na Calçada do Bonfim, quarteirão pertencente à
mesma freguesia [do Pilar], [onde] residiam os mais ricos desses lusitanos”.149 Não
guardavam a mesma distância em relação ao trabalho que os ingleses tinham. E podem ter
trazido consigo seus empreendimentos, que veremos a região ao redor da futura Estação de
Trem, toda a área do Noviciado, repetidamente ter estabelecimentos comerciais e edifícios
de apoio.

Esta foi simultânea com outro processo, ligado à movimentação humana das festas do
Bonfim. A Devoção, ao estruturar o acesso à colina pelas ladeiras aos seus portos e com a
construção da Dendezeiros e da Calçada do Bonfim, criou a espinha dorsal da ocupação da
área. Transformava-se paulatinamente as atividades produtivas mais propriamente rurais,
embora não tão pujantes, no veraneio, orbitando em torno da colina do Bonfim.
Depoimentos que, ora enfatizando um aspecto, ora outro, apontavam, em simultâneo, um
perfil agrário para a área, e uma urbanização que ocorria, convivendo, também sobrados de
maior porte com casas térreas em moradas contíguas.

Do que hoje perfaz um percurso linear, fez-se em duas etapas. A primeira, da Avenida dos
Dendezeiros, toponímia que até persiste. De 1792 a 1798 a Devoção construiu a rua que ia
do Largo de Roma até a Ladeira do Bonfim, chamada Dendezeiros pelas aléias dessa
árvore de ambos os lados, aquela alameda descrita por Ver Huell (Fig.194). O caminho
arenoso era até então intransitável com as águas das chuvas e a maré alta, assim como de
difícil percurso sob o sol, daí que não apenas fora pavimentado, como orlada com árvores,
para dar-lhe sombra. Dada a natureza do terreno e de toda a península, a drenagem da via
e das suas margens seria um problema recorrente.

O segundo trecho foi realizado pouco depois, então chamado Calçada do Bonfim. Esse
nome também foi aplicado à extensão completa, da Jequitaia ao Bonfim, até que se
coagulou em uma de suas extremidades, nomeando um bairro, em torno da Estação de
Trem. Comprou a Devoção os terrenos daquela D. Violante antes mencionada, terras que
iam dos Mares até a Jequitaia.150 A regularização do terreno, drenagem e pavimentação,
feita às suas expensas, iniciaram-se em 1792 e somente foram concluídas em 1818.151

148
GAZETA DA BAHIA n.87, Quarta-Feira 16 de Novembro de 1831. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, por cima dos
Arcos de S. Barbara, 1831.
149
NASCIMENTO, 2007, p.50.
150
Como está no Livro de Receitas e Despesas – 1810 a 1815 da própria Devoção:
Para esta obra, a Devoção, de comprar por 500$000, em 1815, parte das terras pertencentes à Dona Maria Violante,
que partia dos Mares e chegava até a Jequitaia. Assim fez a rua, que partindo de Roma chega até os Mares,
denominada de Calçada do Bom-Fim, e a que d´ahi chega até o Noviciado. (SANTANA, 2009, p.141, apud LIVRO...,
1815).
151
CARVALHO FILHO, 1945, p.62. O mesmo Carvalho Filho marcava as toponímias ao longo da via. A região do Noviciado
passou a chamar-se Jequitaia (escreveu Jiquitaia). Depois vinha a Roda da Fortuna, depois a Estrada de Ferro, onde

394
Notar que foi antes da visita de Ver Huell àquele sítio, que ainda desfalcado, possuía
alguma extensão e soava paradisíaco ao holandês. Essas terras apareciam em anúncio
poucos antes, em 1814: “quem quizer aforar terras de D. Maria Violante Telles de Menezes
e Mattos; dirija-se à mesma Senhora na sua Fazenda do Noviciado”.152 Era conhecida, a
propriedade e a proprietária, usada como referência: “Manoel Antonio Palacios vende duas
moradas de casas por acabar [...] sitas ao pé de D. Maria Violante ao Noviciado”153. Aquela
propriedade foi urbanizada. Parte se transformou na Calçada do Bonfim. E ao que parece
parte foi incorporada depois transformando-se em casas, bens imóveis. Em testamento de
1833 aparece: “arremattão-se as casas do Noviciado, pertencentes ao Casal da falecida D.
Maria Violante Telles de Menezes, a requerimento do seu Testamenteiro”.154

Figura 194 – Trecho do Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de
Carlos Augusto Weyll. Fonte: ALMEIDA, 2014. Vemos os cursos d´água que cortavam a península e
algo de seus charcos. O nome Calçada do Bom-Fim era dado a todo o percurso, a seus dois trechos
retilíneos – aquele que partida Jequitaia até Roma, e daí até a Colina do Bonfim. Se o nome era
unitário, não era o mesmo a urbanização. O primeiro trecho estava muito mais construído e
consolidado, extensão urbana do Noviciado e Jequitaia, que o segundo, pontilhado com construções
esparsas. Em ambos os casos, lindeiras à via.

A rua congregou propriedades ao seu redor, e parece prontamente valorizar o solo ao redor.
Chamberlain disse que os portugueses gostavam de construir suas casas perto das ruas e
estradas; quando casas de campo, ao longo das estradas, para apreciar a passagem,
circulação humana.155 Não haveria o ímpeto isolacionista das análogas inglesas.

estava a estação de trem. A seguir a Mangueira, e por fim o Gasômetro, onde se instalou a usina de produção de gás para
a iluminação pública.
152
IDADE D´OURO DO BRAZIL Supplemento Extraordinario n.23, Quarta-Feira 22 de Março de 1814. Salvador: Typ. de
Manoel Antonio da Silva Serva, 1814.
153
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.65, Sexta-Feira 14 de Agosto de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.
154
GAZETA COMMERCIAL DA BAHIA n.86, Quarta-Feira 27 de Novembro de 1833. Salvador: Typ. da Viuva Serva, à Santa
Barbara, 1833.
155
CHAMBERLAIN, 1822.

395
Figura 195 – Calçada do Bonfim, em cartão-postal de Almeida & Irmão, de 1918, da Coleção Ewald
Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. A Calçada do Bonfim, logo antes da alameda de dendezeiros.

Figura 196 – Bahia - Avenida Dendezeiros, em cartão-postal da Litho-Typ. Almeida, de 1906, da


Coleção Ewald Hackler. Fonte: VIANNA, 2004. Aqui podemos ver melhor a pavimentação da estrada
e os trilhos dos bondes.

396
Figura 197 – Vista da Bahia, de Abraham Louis Buvelot. Fonte: ITAÚ CULTURAL. Vista a partir do
topo da Montanha do que seria a Calçada do Bonfim. Deste ângulo vemos a área mais urbanizada –
os sobrados e palacetes, as roças e áreas verdes, os alagadiços da península e sua feição.

Figura 198 – Calçada (1860-65), de Camillo Vedani. Fonte: FERREZ, 1988. Foto tirada quase do
mesmo lugar que a pintura de Buvelot. Note-se a cobertura vegetal, tanto de um lado quanto de
outro, da Calçada do Bonfim. Ela se destaca, ao contrário, como faixa construída, e com sobrados de
porte, ao contrário da Rua do Fogo, em primeiro plano, atual R. Nilo Peçanha, que sobe por meia-
encosta até o Tanque da Conceição, hoje Largo do Tanque. A cobertura do vegetal é de árvores,
cobrindo parte dos terrenos que foram de Dona Violante, de sua roça, como também incluindo outras
roças e quintais. Pode-se entender Ver Huell.

397
Figura 199 – Vista da Calçada, sem data. Fonte: CEAB. Foco na cobertura vegetal das propriedades
na Península de Itapagipe, e como era a Calçada do Bonfim.

398
Figura 200 – Église de Bomfim a Bahia,
de Hubert Clerget, em Brazil Pittoreco,
de Charles Ribeyrolles. Fonte:
Fundação Biblioteca Nacional. Embora
em primeiro plano vemos barracões
feitos de tábuas, o segundo plano
revela um sobrado de outras
características. De toda sorte, a região
era eminentemente rural, em contraste
com o outro extremo da Calçada do
Bonfim.

399
Figura 201 – Calçada do Bonfim (1861), de Benjamin R. Mulock. Fonte: FERREZ, 1988. Na área mais
densamente ocupada, vista a partir de uma rua árida. Aquela tapeçaria verde que existia no fundo
das propriedades, e que correspondia à substituição das biotas, à terraformação dos manguezais, era
visível somente pelas imagens tomadas a partir da Montanha.

Figura 202 – Remodelação da Ladeira do Bomfim. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Aqui vemos
o Solar Marback e algo do entorno do Bonfim.

400
Soma-se a que a estrada em questão, além de facilitar a conexão com o Bonfim e com a
cidade (e, por exemplo, com as fontes de água potável adjacentes ao caminho), também
servia como uma consolidação do solo, e uma maneira de esgotar-lhe as águas: do mar,
freáticas e, depois, servidas.

Domingos Rebello é claro no reconhecimento do papel da Calçada do Bonfim.

He notavel a grande rua da alegría, desde a Capella do Bomfim até junto ao


Collegio de Orphãos de S. Joaquim toda calçada com mais de hum 4º de
legoa de extensão, na qual existem muitas propriedades grandes e
pequenas, e continuão a edificar-se outras muitas. Com o decurso do tempo
necessariamente ha de ser a cidade nova; pois a dez annos, que tem feito
considerável differença a vista do que era; tendo grandes ruas, que
atravesão da principal para Itapagipe, e entre ellas huma em linha recta em
direção do sitio do Papagaio, tendo quase hum 4º de legoa, denominada
Rua Formosa. (REBELLO, 1829, p.177).

O interessante é que também assinalava que nos Mares as novas ruas do Imperador e do
Bom Gosto já tinham “muita povoação”.

Na península há uma lenta transformação da paisagem em um sentido inaudito. Havia dois


istmos: um, na região da Calçada, e a outra, que conduzia à Ribeira e Penha. O solo era
arenoso, como repetidas vezes se dizia, com a exceção de duas elevações: uma no Bonfim,
e colinas próximas, e outra na região de Alagados. De resto, as menções são de pântanos,
que podem ser entendidos de duas maneiras, complementares: de charcos, terrenos baixos,
alagadiços, como charcos, e de mangues, que seria por certo a vegetação da sua
contracosta. No entanto, as roças vão se instalando. Ensaiando, por particulares, uma flora
particular: coqueiros, dendezeiros, árvores de espinho. Os dendezeiros eram mais comuns
na região, assim revelam os anúncios. Por exemplo, em sítios maiores, como o de Antônio
José Correia, encontramos laranjeiras, bananeiras, limoeiros, cacaueiros, oliveiras,
algodoeiros, roseirais e cafezais156, ensaios de aclimação de espécies e aproveitamento de
outras nativas. Nas colinas, como a do Bonfim, crescia vegetação similar ao do restante da
cidade.157 A mudança da vegetação – dos alagadiços aterrados, dos mangues retirados, ao
cultivo – modificou o perfil da região. A urbanização subsequente a desfez.

E a Calçada do Bonfim foi a coluna vertebral dessa urbanização, conectando aqueles dois
processos distintos, porém convergentes: da expansão rumo a norte dos comerciantes, e
das segundas residências em torno das festas do Bonfim, transformando o que antes eram
roças e modestas casas de campo. Daí a constância do aluguel para as festas: “aluga-se
uma casa de campo, nova, em um dos melhores lugares do Bomfim, propria para passar a
festa podendo servir para duas familias, com agoa de beber dentro e algum arvoredo”.158
Mas esta era explícita. No período do verão aparece com maior frequência o aluguel para
famílias. Em 1839, se vendia ou alugava “uma casa no porto do Bomfim, n.123, com
commodos para uma mediana família”159. Esta ao menos também se vendia; no ano
seguinte, também em novembro, temos esta oferta de aluguel: “no Porto do Bonfim, uma
casa de sobrado com muito bons commodos, para familia numerosa”.160 “Famílias
numerosas” como um público a ser atendido se repetia. Em 1851, “no porto do Bomfim se

156
SARGENT, Rev. John. A Memoir of Rev. Henry Martyn... New York: American Tract Society, s/d, p.127.
157
José Lemos Sant´Anna, vivendo em roça que fazia parte da Beneficência Portuguesa, enumera jaqueiras, cajazeiras,
araçazeiras, videiras, mamoeiros, abacateiros, mangueiras de todos os tipos, româzeiras, tamarindeiros, entre outras.
(SANT´ANNA, José Lemos de. Outros Bambangas. 3ed. Petrópolis: Vozes, 1980b, p.41).
158
O CORREIO MERCANTIL n.259, Quarta-Feira 4 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.
159
O CORREIO MERCANTIL n.237, Quarta-Feira 6 de Novembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.
160
O CORREIO MERCANTIL n.256, Quarta-Feira 25 de Novembro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1840.

401
acha uma casa n. 248, de 2 andares, de varanda de ferro e pedra, com todos os commodos
precisos para grande familia”161.

A família de Anna Bittencourt alugou uma casa na Ladeira do Porto da Lenha: “a casa não
era má; todas as outras, porém, ordinárias e habitadas pela ínfima plebe, o que tornava
triste o local”.162 Havia uma hierarquia social distribuída no espaço, e por alguma
circunstância a família da autora situou-se onde não gostariam.

A região do Bonfim, da colina e entorno, passou por transformações.

No Porto do Bonfim e na ladeira que de lá ascendia à igreja, estavam propriedades


menores, casas com quintais murados ou sem quintal. Com quintal, como esta de 1812,
onde se vendia “huma casa térrea de pedra e cal, cháos proprios, com seu quintal murado
no porto do Bom fim”.163 Térreas, em moradas contíguas, à venda como “tres moradas de
casas térreas no Porto do Bom-fim”.164 Ou maiores: “huma morada de casas de dous
sobrados”.165 Havia propriedades maiores, mas seus anúncios eram mais raros. Aparecem
desde muito cedo casas novas, e a incorporação na área. Em 1821:

Vende-se huma morada de casas por acabar, no Porto do Bom-fim, com


paredes de pedra e cal, seis braças de frente, muito grandes fundos, bom
quintal, e caes na frente até a beira do mar, havendo alguma telha de
sobrecellente, tijolo, e pedra, tudo novo para quem as quizer poder
continuar a obra [...]166

No alto e na ladeira do Bonfim havia mais espaço, roças e rocinhas. Mesmo ali, na colina,
havia ainda roças, também com nítido processo de incorporação. Já em 1814 “vende-se
huma roça no sitio do Bom-fim, defronte da Igreja, com casas de morada feita de novo de
pedra e cal, e agoa de beber dentro”.167 Ou, em 1816, na cumeada que vai da colina até o
Montserrate, atual R. Rio São Francisco, roça “com muito boa morada de casa, e fonta
d´agoa de beber”.168 Seguia-se essa transformação em 1836, da venda de “huma roça, sita
por detraz da Igreja do Senhor do Bomfim, da parte do mar, com bastante arvoredo, e hum
poço d´agua nativa, chãos próprios, e própria para se edificar, e bastantemente grande”169.
Em 1840 havia ainda propriedades pequenas no largo: “uma rocinha, em frente da igreja do
Sr. do Bomfim, em terras proprias, casa de morada, e fonte d´agoa de beber”.170 Em 1824,
temos menção a uma roça do Padre Joaquim, capelão da Igreja do Bonfim: “quem quizer
comprar huma morada de casas nobres, sitas no fim da calçada do Bom-fim, defronte da
rossa do Reverendo Padre Joaquim”.171 Pois nessa propriedade, décadas depois, em julho
de 1849, houve queixa quanto a “batuques, e sambas que ultimamente se tem feito na
rocinha de sua rezidencia com incommodo da vizinhança”.172

161
O MERCANTIL n.129. Sexta-Feira 25 de Junho de 1851. Salvador: Bahia: Typ. de E. Jorge E Thella, 1851.
162
BITTENCOURT, 1992b, p.120.
163
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.57, Sexta-Feira 17 de Julho de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.
164
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.11, Terça-Feira 8 de Fevereiro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1814.
165
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.85, Terça-Feira 28 de Outubro de 1817. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1817.
166
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.24, Terça-Feira 27 de Fevereiro de 1821. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, 1821.
167
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.103, Terça-Feira 27 de Dezembro de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva
Serva, 1814.
168
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.74, Sexta-Feira 13 de Setembro de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1816.
169
GAZETA DA BAHIA n.289, Terça-Feira 9 de Fevereiro de 1836. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, por cima dos
Arcos de S. Barbara, 1836.
170
O CORREIO MERCANTIL n.144, Quarta-Feira 8 de Julho de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
171
GRITO DA RAZÃO n.16, Terça-Feira 6 de Abril de 1824. Salvador: Typ. da Viuva Serva, e Carvalho, 1824.
172
A MARMOTA n.254, Quarta-Feira 4 de Julho de 1849. Salvador: Typ. de Epifanio Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A,
1849.

402
Das casas do Bonfim, temos uma informação sobre seu aparato interno móvel, apto para
ser... furtado. Tratava-se de roubo feito na roça e casa de João Victor Moreira, no Bonfim,
que constava de

uma grande porção de louça branca franceza de beira dourada, que


compunha dous apparelhos, de mesa, constando de terrinas, pratos
travessa sgrandes e pequenos, molheiros, bacias redondas para escaldado,
pratos para frutas, &c.; dous apparelhos de chá, e café, muito finos,
pintados e dourados, sendo um delles esmaltado; um apparelho de vidro
lapidado e lavrado, constando de grande porção de copos para agua,
cerveja e Champagne, calix para vinho, e 10 garrafas para o mesmo [...]173

Não quer dizer que a casa carecesse de outros itens de valor; apenas estes eram mais
fáceis de serem retirados. E converge com a importância dada aos sinais de prosperidade
no aparato ligado ao comensalismo, à recepção de visitas.

Vendia-se no mesmo 1812 “huma Rocinha [...] defronte da Capella de N. Senhora dos
Mares”174, como algo maior em 1814, “huma roça na estrada do Bom-Fim com boa casa de
vivenda, Oratorio para dizer Missa, e tambem com sua casa de banhos”.175 Era uma
chácara, uma herdade maior, com boa casa de vivenda, com benfeitorias e edículas raras
nos anúncios de casas.

Quem quizer arrendar huma Roça à calçada do Bom fim, com boa casa de
sobrado envidraçada, com 2 fontes feitas de pedra, e cal, senzalas para
escravos, brejo, e terreno suficiente para plantações, com arvores frutíferas
[...]176

Aqui, a roça era comandada por um sobrado, apontando uma verticalização, e uma
mudança do perfil urbano, como na venda de “huma roça na calçada do Bom-fim, com boas
casas de sobrado, com suas vidraças, boa fonte de agoa de beber, muitas mangueiras,
cajueiros, dendezeiros, e coqueiros”.177

Repetidamente vemos indicar-se o potencial de incorporação. Deixava de ser uma renda


extraída do solo pelo cultivo, e tornava-se característica da urbanização. Em 1832, vendia-
se na Calçada do Bonfim “huma porção de terra, própria para se fazer propriedades”178 e em
1835, na mesma rua, “onze braças de terreno [...] em o qual se está edificando trez moradas
de cazas”.179

No Recife, a formação daqueles sítios e chácaras nobres para as festas de final de ano e
verão, às margens do Capibaribe, se ancorava na divisão fundiária dos antigos engenhos, o
que chamaram de “arrabaldização”.180 Sem um estudo análogo aqui dessa natureza, cabe
destacar que o solo da Península de Itapagipe nunca fora tão rentável como aquele dos
arredores da capital pernambucana um dia foram. Encontramos sinais de um parcelamento
mais fino, em moradas de casas, não raro de lotes estreitos, com e mesmo sem quintais. A
divisão fundiária da península ao século XIX parece provável.

173
O CORREIO MERCANTIL n.226, Terça-Feira 20 de Outubro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1840.
174
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.19. Sexta-Feira 6 de Março de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.
175
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.53, Terça-Feira 5 de Julho de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1814.
176
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.61, Terça-Feira 30 de Julho de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1816.
177
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.53, Sexta-Feira 3 de Julho de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1818.
178
GAZETA COMMERCIAL DA BAHIA n.69, Segunda-Feira 14 de Outubro de 1833. Salvador: Typ. da Viuva Serva, à Santa
Barbara, 1833.
179
DIÁRIO DA BAHIA n.244, Sábado 14 de Novembro de 1835. Salvador: Typ. do Diário, Rua do Tijolo, n.34, 1835.
180
Era processo conhecido e documentado, primeiro no texto de F.A. Pereira da Costa, Os Arredores de Recife, na Revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1923 (apud MELLO, 1978).

403
A rigor, a iniciativa da Devoção do Bonfim diante da propriedade de D. Violante beneficiava-
se do processo: era a benfeitoria (a via) que lhes facilitava a vida, mas também as terras
vizinhas, que eles exploraram.

Qual era o perfil dessa ocupação? A estrada era longa; as indicações de local das fontes
que temos, imprecisas; e era comum a mescla de perfis tipológicos e sociais de moradia. A
renda pela urbanização se dava, em sua maioria, com propriedades menores. Mas havia
algo singular em ação.

A Calçada do Bonfim é fenômeno urbano notável, que deveria ter recebido maior atenção.
Geralmente a historiografia baiana, talvez com certo anacronismo, influenciada pela
situação vigente da Primeira República e do século XX, concebe como bairros
“aristocráticos” aqueles que se formaram a partir do Campo Grande, rumo ao sul: Vitória,
Graça e Barra. Mas encontramos sinais inequívocos de que, convivendo moradas simples
com sobrados de pessoas de posse, houve um período áureo em torno da Calçada do
Bonfim. Pelas características da cidade, pela extensão da própria via e tamanho da área,
fora uma urbanização heterogênea em alguma medida. Porém vemos também propriedades
maiores, em extensão do terreno e porte da residência. Em 1840:

- Joaquim Carvalho da Fonseca arrenda a sua grande roça com o magnífico


sobrado que ella tem à calçada do Bomfim, tem grande coqueiral, grande
porção de boas larangeiras e outras arvores fructiferas, e horta, tem optimo
viveiro com abundancia de peixe e mariscos [...]181

O “magnífico sobrado” tinha um viveiro, atributo de luxo raro nos anúncios. Marcamos de
novo essa condição da transformação urbana da longa Calçada do Bonfim. Silva Lima, para
os anos 1840, rememorava que a Calçada do Bonfim “era o logar preferido para passar a
festa. Além de pouco mais de meia dúzia de sobrados, as casas eram terreas”182. Também
na mesma década, Parish Kidder, escrevendo na mesma época, viu algo diferente:

Continuando nossa caminhada, seguimos pela estrada principal para a


cidade, passando pelo calçado [sic], ou rua pavimentada, que é
ornamentada com uma longa e bela fileira de casas perfeitamente
uniformes em tamanho, estrutura e aparência, uma circunstância bastante
nova para o Brasil. (KIDDER, 1845b, p.87 – tradução nossa).183

Podemos entender como ênfases de extremidades diferentes: que Silva Lima estava
pensando na chegada ao Bonfim, e Kidder, quando a rua ganhava ares urbanos, de
sobrados mais constantes, chegando perto da Estação de Trem de construção posterior.

Robert Dundas, alguns anos depois de Silva Lima, falava que “ao longo desa calçada está
intercalada uma quase ininterrupta sucessão de casas e jardins, com pedaços de terreno
cultivado conquistados ao extenso pântano que os rodeia”.184 Em 1846, em Sessão
Extraordinária da Câmara Municipal de 5 de agosto, atendia-se a um reclamo dos
“proprietarios e moradores da calçada do Bomfim”, referentes aos problemas de drenagem e
esgotamento, causa presumida de enfermidades, pedindo:

[...] que a Camara attendendo ser aquella parte da cidade, tão importante,
tão povoada hoje, e tão rica pela sua posição e pelos seos predios, e

181
O CORREIO MERCANTIL n.12, Quinta-Feira 16 de Janeiro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.
182
SILVA LIMA, 1908, p.107.
183
Continuing our walk, we procceded on the principal road to the city, passing through the calçado, or paved street, which
is ornamented with a long and beautiful row of houses perfectly uniform in size, structure, and appearance, a
circumstance quite novel for Brazil. (KIDDER, 1845b, p.87).
184
[...] along this causeway is interspersed an almost uninterrupted sucession of houses and gardens, with patches of
cultivated ground, gained from the wide-spreading morass wich surrounds them [...] (DUNDAS, 1852, p.243).

404
estabelecimentos de negocios, dê as providencias para que gose ella
igualmente das vantagens que gosão os moradores da cidade, tendo huma
illuminação regular, e ruas concertadas, e calçadas.185

Em 1859, circulou ali o Imperador D. Pedro II. Em 6 de outubro, viu “quarteirões inteiros de
belas casas de 4 andares para o lado do Bonfim”.186 E no dia 28 de outubro do mesmo ano,
saiu cedo para o Bonfim: “o caminho já é muito bonito, tendo belas casas e jardins, e antes
de lá chegar passa-se o Dendêzeiro, bela alameda de palmeiras dendês”.187 Michelene y
Rojas, indo à Igreja do Bonfim, disse que era “bordada à ambos lados de lindas casas de
campo à la inglesa, con jardines de flores al frente, conservadas con tanto gusto como aseo:
digna imitación de lo que se practica en Inglaterra, Holanda y Belgica”.188 E Alfred Marc, já
viajando nos bondes puxados a burro, dizia que “o número de belas casas é
considerável”.189

Porém podia se enfatizar o caráter rural da estrada, possivelmente quanto mais se afastava
da cidade: “nos subúrbios, o coqueiro cresce em grande profusão, e a jaqueira acena sua
folhagem verde e brilhante acima da variedade infinita de vegetação que adorna essa terra
meridional”.190 Maximiliano de Habsburgo escrevia, após saírem das obras da Estação de
Trem:

[...] atravessando uma região encantadora, onde cultura e natureza se dão


as mãos. Ora campos de cana-de-açúcar ou de inhames, de folhas
aveludadas, ora jardinzinhos com flores em profusão, ora grandes
arvoredos misturados a moitas entrelaçadas de ervas orlavam a rua plana,
larga e bem conservada. (MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.127).

Note-se que, sob ângulos diferentes, várias testemunhas assinalavam os jardins das casas,
algo incomum no geral da cidade.

A Calçada do Bonfim era uma urbanização com casas de alto nível, ou pelo menos pôde ser
assim interpretada por um tempo (Figs. 195 a 202). Em 1849, em carta satírica já citada
extensamente, o seu autor, o pseudônimo Pedro Maxixe, diz que

[...] preferi este amável e pitoresco sitio do Papagaio, onde me acho, ao da


Caçada do Bomfim; porque, meu primo, aqui está a gente mais à vontade,
sem o luxo que ali he preciso, que bem se pode chamar a côrte da Bahia.191

E que o peixe obtido pelos pescadores da península era distribuído pelas ganhadeiras para
onde havia público que melhor pagava. Ainda que se tentasse comprar na mão delas, “dão
o áz de copas em resposta, e continuão seo caminho, por que não vendem senão da
Calçada em diante; tanto prova que a gente de Itapagipe, com pequenas excepções, he
pobretona”.192

O Conde de Passé tinha uma casa na Mangueira da Calçada do Bonfim e outra no próprio
Bonfim193, e João Maurício Wanderley (1815-1889), o Barão de Cotegipe, no último quartel
do século XIX tinha “luxuosa casa” no Bonfim, além dos engenhos Sapucaia e

185
O GUAYCURU n.234, Sabbado 29 de Agosto de 1846. Salvador: Typ. do Gaycuru, de D.G. Cabral, à rua do Bispo, n.45,
1846.
186
D. PEDRO II, 1959, p.48.
187
D. PEDRO II, 1959, p.147.
188
MICHELENE Y ROJAS, Francisco. Exploracion Oficial... Bruselas: A. Lacroix, Verboeckhoven y Ca., Impresores y Editores,
1867, p.658.
189
Sour toutes les places, il ya des fontaines, et le nombre des belles maisons est considérable [...] (MARC, 1889, p.317)
190
In the outer suburbs the cocoanut-palm grows in great profusion, and the jaca-tree waves its green, glistening foliage
above the infinite variety of vegetation which adorns this Southern land. (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.488).
191
A MARMOTA n.248, Quarta-Feira 13 de Junho de 1849. Salvador: Typ. de E. Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A, 1849.
192
A MARMOTA n.248, Quarta-Feira 13 de Junho de 1849. Salvador: Typ. de E. Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A, 1849.
193
PINHO, 1942.

405
Jacaracanga.194 Naquela mesma Mangueira, em 1850, avisava “D. Carolina Joaquina de
Souza moradora na rua denominada Mangueira, a calçada do Bomfim casa n.68, na tarde
do dia 18 do corrente desappareceo-lhe um carneiro todo branco, capado, e moxo”.195 O
carneiro aí não tem nenhuma função produtiva, e sim recreativa, para crianças.196 Era mais
um indicativo do perfil que o lugar tinha.

E podemos arrematar com o Palacete Machado, na Estrada da Boa Viagem, uma das mais
luxuosas residências da cidade, construída por Manuel Machado, patriarca de família dona
da fábrica Confecção e Tecidos Paraguaçu, estaleiros e depósitos no Porto, e que por
casamentos se amalgamara com a importante família Martins Catharino, que também tinha
residência na península. O palacete fora comprado em 1879 às mãos de José Antônio
Machado para abrigar o Asilo de Mendicidade, com as devidas ampliações
correspondentes.197

O culto a N. Sra. de Montserrate e a N. Sra. da Boa Viagem, como a S. Gonçalo, já tinham


importância na época colonial. Mas foi a Devoção ao Nosso Senhor do Bonfim que se
despontou como o culto máximo dos baianos no século XIX. A urbanização da Península de
Itapagipe partiu de um uso produtivo agrário que sustentou um discreto usufruto das casas
de campo, animado com o veraneio em torno das festas do ciclo do Bonfim.

Este é um caso rico em possibilidades de uma Heortologia Urbana. Estabelecia-se uma


demanda residencial, para além da hospedagem e dos abrigos temporários, talvez até
estimulando a incorporação imobiliária. A Devoção urbanizou a área, além de liderar a
organização do evento com êxito, atraindo mais e mais gente para suas festas. Também
vimos a provisão de serviços durante o evento, alguns com infra-estrutura mais permanente.
E que o período das festas estabelecia comportamentos mais próprios da vida mundana do
centro da cidade. E, nela, a aproximação da família e sua abertura para círculos de amigos,
e depois mais amplos, na reconfiguração entre as esferas privadas e públicas da província.
Não nos parece menor os itinerários “internos” do entorno da igreja do Bonfim, por conta dos
festejos a S. Gonçalo. Lopes Gama aponta, para os arrabaldes de Recife, aspectos que
poderiam parecer anedóticos no percurso da bandeira dos santos: “este funcionista quer
que a santa bandeira passe por este sitio, porque aí está a sua predileta, a quem prometeu
esse obséquio. Aquele não está por isso e quer que vá por outra parte onde tem a sua
Clóris”198. Seria casuístico o percurso específico, dependendo da influência e, em sua
continuada denúncia dos gamenhos, por interesses de ordem amorosa. Não seria inusual
que o prestígio político, a vontade de ser uma das residências visitadas, de comparecer ao
balcão ou à janela e ver e ser visto, naquela interação entre platéia e cortejo, constituísse
esse jogo de tensões que se manifestava em um aparentemente simples percurso. Em um
campo de forças relativamente moderno, mundano e em desenvolvimento.

A saúde, como um fator importante para o deslocamento para aquela região, não aparece
em documentos daquela primeira metade do século XIX. Depois terá alguma constância
maior.

194
PINHO, 1942.
195
O GUAYCURU n.61, 21 de Novembro de 1850. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1850.
196
Gilberto Freyre assinalava, embora de modo breve: “quase nenhuma [sobrado ou casa de chácara] deixava de ter seu
carneirinho mocho com um laço de fita amarrado no pescoço”, para os meninos passearem de tarde (FREYRE, 2004, p.345).
197
BOCCANERA JR., Sílio. Bahia Cívica e Religiosa – subsídios para a História. Salvador: A Nova Graphica, 1926, p.348;
BERNARDO, Kátia Jane Chaves. Envelhecer em Salvador: uma página da História (1850-1900). Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em História – UFBA. Salvador, 2010.
198
GAMA, 1996, p.283. Em texto de 17 de fevereiro de 1838 intitulado As nossas festas de campo.

406
De uma certa maneira se endossa e se aprofunda a tese de Mariely Santana sobre o papel
da cultura, na forma explícita da Devoção, como fator crucial na modelagem do espaço.
Extrapolando, os valores não se limitam à mera expressão mecânica da economia.

Esse deslocamento estival específico foi um dos elementos centrais na urbanização da


área. Se a localização daquelas instalações produtivas da Península de Itapagipe era uma
inclinação mais clara – de um litoral extenso, recortado e resguardado, de solo pobre para
as formas de cultivo empregadas na época, e próximo da área portuária principal da cidade
– para o veraneio das festas religiosas, não.

O êxito do Bonfim, ou do culto de S. Gonçalo migrar para aquela região, pertence a


aspectos imponderáveis, como à capacidade de mobilização dos membros da Devoção e
suas estratégias para ampliar seus fiéis e influências, e aos milagres atribuídos ao Santo, e
seu impacto na própria Devoção, e a convergência com mitos e cultos de origem africana. O
deslocamento estival é um dado inescapável, que primeiro articula a cidade com seu
Recôncavo imediato, e, em outro grau, com o interior. Estava atrelado originalmente a rituais
religiosos, e a uma visão da transcendência que estava presente em cada momento, em
uma cidade profundamente dependente das viagens por mar, e do que podia extrair-lhe, daí
a presença constante de denominações católicas que intercediam naquelas circunstâncias,
e do peso desproporcional que orixás aquáticas ganharam no coração dos baianos.
Experiência religiosa organizada por meio de confrarias, devoções, irmandades, que
cumpriam vários papéis na sociedade oitocentista. Aquela temporada de verão foi ganhando
conteúdo mais moderno, com as novas modalidades de lazer, por meio de tênues indícios e
do comparativo com o caso do Recife, atualizando continuamente as maneiras de
socialização dos diversos estratos da cidade. Esta foi a força motriz por trás da ocupação
pioneira da Península de Itapagipe. E fator fundamental para a instalação de serviços
temporários e permanentes, e da crescente infra-estrutura urbana assentada ali. O papel
moderno do mar, dos banhos salgados, se imiscuiu de maneira discreta nessa
movimentação, como se verá no próximo capítulo.

E nisso a Calçada do Bonfim assume um papel importante.

A ênfase usual é a da “Vitória aristocrática”, que defendemos que passou por um processo
gradual de urbanização, fortemente marcado pelos comerciantes estrangeiros. Em
contraponto, ao norte, acreditamos ter havido uma época “dourada” para o Bonfim, para sua
Calçada, que deve ser vista, porém, com cautela, pelo tamanho exíguo das classes altas, e
ainda pelo caráter rural, ainda, do Bonfim (como da Vitória, tal como visto). Na Calçada do
Bonfim, como na região do Bonfim, há segundas residências, muitas a partir de roças
anteriores, de não tão fácil identificação. A lateral sudoeste da via poderá abrir para a praia,
e seu quintal conectar-se com a mesma, para os banhos vindouros, como alguns indícios
apontam. Seus registros materiais são escassos, o que não é incomum: dificilmente haverá
algum edifício residencial na própria Vitória remanescente das sedes de chácara
oitocentistas.

Assim, Salvador pode ser entendida, por algum momento, com certas polaridades. Em
termos das festas de maior brilho e importância, serão o Rio Vermelho e o Bonfim. E o
Bonfim tem como contraparte, por um período pelo menos, no que diz respeito a uma
parcela importante da sociedade, a Vitória. Dentro dessa maritimidade particular, manifesta
no veraneio em arrabaldes litorâneos, um “lazer” de caráter festivo. E foi na longa borda da
península que apareceram, tímidos porém persistentes, os banhos de mar, formando, junto
com as águas mais abertas da Barra e sobretudo dali até o Rio Vermelho, um outro binômio,
este bem mais silencioso, de que trataremos a seguir.

407
408
9
A Aurora dos Banhos de Mar

Aqui tentamos compreender a aparição do banho de mar moderno em Salvador, que


corresponde uma aproximação ao litoral sob a modalidade da imersão física, do banho.
Maneira pela qual usualmente se reduz a questão do lazer e do prazer à beira-mar.

Mesmo o banho, porém, se faz nos corpos d´água sob diversos fins, muitos convergentes e
simultâneos. A depender da sociedade ou de sua história, em lugares com perfis físicos
distintos, em horários próprios, por idades e gêneros particulares.

O banho de mar, como o de rio, não é só uma prática social, mas uma técnica corporal, com
todas as suas implicações, como destreza e condicionamento físico. Requer, para sua
difusão maior, que se saiba nadar. No caso dos primeiros britânicos que iam às águas mais
rasas experimentar o choque e a gélida temperatura das águas, se os pacientes do
tratamento não sabiam nadar, os dippers ou curistas que os acompanhavam, sim, sabiam.
Requer ainda uma variedade de cuidados ao se nadar na água corrente dos rios, e, pior,
nas águas mais traiçoeiras do mar, ainda mais do mar aberto. E uma intimidade com o meio
físico e sua fauna característica, e eventuais armadilhas. O banho, no Brasil, e na Bahia,
percorreu uma trajetória onde se mesclaram formas e propósitos diversos.

Como o asseio pessoal, ainda simples, sem o conjunto rebuscado da Higiene médica, muito
do qual se incorporou no cotidiano, quase como reflexo condicionado.

E para o refrigério, igualmente simples, até pela escassez de alternativas e pela sua
convergência, pois as fontes e cursos d´água prestavam-se tanto para a imersão como para
a coleta de água potável.

Para o lazer, em folguedos, ainda que sem registros mais acurados. Não sabemos os jogos
feitos nas águas, quais suas regras, como ocorre com outras brincadeiras em terra.

Como uma terapia rudimentar, quanto ao banho ao ar livre, em cursos d´água, e mais
complexa e própria, na forma dos banhos medicamentosos, na intimidade do lar.

Essa ambivalência é inerente aos atos humanos, e aos comportamentos coletivos, ao


grande agregado de ações de muitas pessoas, que afluem ao mesmo lugar com fins ligeira
ou radicalmente distintos.

Dentro dessas transformações, buscamos encontrar a linha subterrânea do banho popular,


do uso dos corpos d´água pelos mais pobres. Ou diríamos submersa, correntes profundas
que, apesar de poderem ser massivas, não vieram à tona nos registros.

Para investigar os banhos populares, portanto, precisamos distinguir o local da ocorrência, a


sua época, e as pessoas envolvidas, tomando cuidado com discernir o perfil da publicação e
os conceitos em operação. É um tipo de banho que, ainda que fosse ostensivo, por toda a
costa e constante, ainda assim seria invisível aos registros. Seria submersa à História
escrita.1 Existem duas possibilidades. Que esse banho, existindo, terminasse por confluir
com o banho lúdico do século XX, que emerge, por sua vez, de graduais transformações da

1
Mesmo na clássica obra de Alain Corbin (1989) as menções ao banho popular são quase inexistentes.

409
praia terapêutica culta. Ou que esse banho, ou era inexpressivo, ou perdeu pujança a ponto
de ser sobrepassado pela voga moderna, oriunda das classes mais altas.

O problema do banho popular será cindido entre os banhos de rio e os de mar, assim
enfrentado na medida do possível.

9.1. Formas Anteriores do Nado

Encontramos a habilidade do nado, a intimidade com as águas, e mesmo o aspecto


recreativo das imersões, em populações anteriores à colonização. Este conjunto de
destrezas e valores não deve ser ignorado.

Aos índios é invariavelmente atribuída a origem dos hábitos e inclinações brasileiras pela
água e pelo asseio. O problema histórico é duplo: inclinações, preferências, são entes de
difícil rastreio e sempre esquiva definição. E as técnicas corporais são evidentemente
transmitidas de uma geração a outra, embora o como seja ainda mais difícil de identificar.
Isto é, quando não se passa por instâncias formais, como as Escolas de Natação,
necessariamente passa pela imitação e pelo ensino informal.2

Quanto ao nado, é preciso ter ciência que as técnicas de natação, as maneiras do corpo
flutuar e impulsionar-se na água de forma eficiente, variam bastante de uma cultura a outra,
e mesmo ao longo do tempo. Descrições mais específicas das técnicas de natação são
raras. Encontramos uma, e mesmo assim, podemos apenas vagamente imaginá-la, sem
precisar o arranjo dos corpos, o movimento dos membros, a maneira de respirar.

Por indígenas falamos dos tupinambás, o grupo originalmente assentado na Bahia quando
chegaram os europeus. Primeiro, destaca-se a sua destreza. Seriam “grandes remadores”,
como Gabriel Soares disse, além de “grandes nadadores e mergulhadores, e quando lhes
releva, nadam três e quatro léguas”.3 Fernão Cardim o confirma para os índios na região da
Aldeia do Espírito Santo (futura Abrantes), que “por serem grandes nadadores não temem
água nem ondas nem mares”, havendo quem com “grilhões nos pés nada duas e três
léguas”.4 Ainda no século XIX mantinham tais capacidades: Von Martius marcava os
tupiniquins como, ademais de robustos, “bons remadores e nadadores”.5 Não havia
especialização entre os índios. Quando se diz que os “tupinambás eram exímios
pescadores”, temos a parte indispensável do rol de habilidades que se esperava de um
adulto. Diz Fernão Cardim:

Andando caminho, suados, se botam aos rios: os homens, mulheres e


meninos, em se levantando se vão lavar e nadar aos rios, por mais frio que
faça; as mulheres nadam e remam como homens, e quando parem algumas
se vão lavar aos rios. (CARDIM, 2014, p.340).

Essa habilidade era algo generalizado naquela sociedade, entre homens e mulheres,
aprendida no convívio e contato constante, desde menino. Os jogos aquáticos mencionados
em algumas ocasiões indicam isso, como por Fernão Cardim: “no rio fizeram muitos jogos

2
Edward Hall (The Silent Language. New York Premier Book/ Doubleday & Co., 1961) chama de ensino formal aquele onde
existe claramente um professor e um aluno, embora não necessariamente em uma instituição. Pode ser a relação entre um
pai e um filho. No entanto, o mérito ao nosso ver está no que chama de ensino informal, que é o pela imitação do
comportamento, pela presença de um modelo. Importam menos os termos, e mais as modalidades de transmissão cultural
da uma técnica.
3
SOUSA, 2010, p.304.
4
CARDIM, 2014, p.340.
5
SPIX & MARTIUS, 2016, p.160.

410
ainda mais graciosos, e têm eles n´água muita graça em qualquer coisa que fazem”.6 Em
uma jornada à Aldeia de São João, vê que “os meninos da aldeia tinham feito algumas
ciladas no rio, as quais faziam a nado, arrebentando de certos passos com grande grita e
urros, e faziam outros jogos e festas n´água”.7

Era também meio indispensável de asseio, para limpar-se da transpiração e sujeira: “quando
estão mais suados se banharem com água fria, metendo-se nos rios e nas fontes, muitas
vezes ao dia pelo tempo da calma”.8 E os primeiros relatos apontavam a surpresa quanto ao
seu emprego para o imediato pós-parto.9 Jayme de Sá Menezes, no mesmo rumo dos
estudos sobre os hábitos ameríndios no Brasil, aponta que a “balneoterapia” indígena
apelava também para o mar.10 Contudo não encontramos nenhuma menção mais própria ao
mar aberto. Em geral, trata-se dos rios, lembrando a situação particular da Baía de Todos os
Santos.

De modo geral, da forma compacta, o banho servia a todos esses fins.

Essa destreza voltamos a encontrar como elemento imprescindível nos trabalhadores do


mar oitocentistas. Presumimos que uma série de habilidades das populações ribeirinhas
ameríndias foi ensinada a seus descendentes, miscigenados com as novas levas que
vieram àquelas plagas, os europeus empobrecidos e os escravos e forros africanos. Sem
contar que estes, por certo, quando oriundos de regiões similares, também traziam suas
técnicas, amalgamadas com as locais. Isso fica claro em certos artifícios da pesca, como o
timbó e o tingui, e na história da jangada e da canoa em solo brasileiro.

Porém essa destreza parecia ser exclusivamente relacionada com o trabalho naquele
ambiente. Tollenare, chegando em Recife, ao descrever a jangada, impressionou-se com a
destreza dos seus navegadores, que “nadam como peixes”.11 James Wetherell comentou o
mesmo, a partir de Salvador, que, apesar das jangadas emborcarem eventualmente, “sendo
os pescadores ótimos nadadores, os acidentes fatais são raríssimos”.12 Era habilidade
necessária, indispensável, para a pesca do xaréu.13 Chegava a ser um requisito na
especialização do trabalho marinho dos escravos, o escravo “bom mergulhador” que D.
Maria Francisca da Conceição tinha para vender.14 Estes trabalhadores não eram um novo
contingente que simplesmente ocupa aqueles espaços. É o resultado tangível de grupos
que se somam e se fundem, na mestiçagem que deu origem ao país, naquelas populações.
O uso de técnicas materiais aborígenes, onde canoas e jangada eram sua expressão mais
literal, se deu também incorporando as técnicas corporais prévias, como a natação.

Para lidarmos com o banho popular, uma das hipóteses possíveis é o da continuidade e
mescla das formas de banho lúdico, e da relação entre o banho e a natação. Natação que
era necessária, e com incrível desenvoltura como se viu, para águas mais profundas, em
especial da pesca.

Cabe, contudo, uma ressalva. Escravos de ganho, forçados por seus donos a trabalhar no
cais ou nos saveiros, muitas vezes vinham de regiões interiores do continente africano, sem

6
CARDIM, 2014, p.343.
7
CARDIM, 2014, p.372.
8
SOUSA, 2010, p.308.
9
GANDAVO, 2008, p.126. E como tratamento, como entre os botocudos, como relata o Conde de Suzannet, em pleno século
XIX: “os pobres índios foram atacados de rubéola, e não acharam outro remédio senão o banharem-se no rio. Este remédio,
um tanto heróico, fez perecer a maioria deles. (SUZANNET, 1957, p.172).
10
MENEZES, Jayme de Sá. Medicina Indígena (na Bahia). Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, p.44.
11
TOLLENARE, 1956, p.17.
12
WETHERELL, s/d, p.27.
13
No Capítulo 2.
14
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.91, Sexta-Feira 13 de Novembro de 1812. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1812.

411
que soubessem nadar. Não era inusual que morressem afogados, caindo na água.15 Seria,
portanto, conhecimento mais próprio das populações costeiras. E, chegando na Bahia,
podemos especular em uma forma de “crioulização” dessas habilidades, mescladas e
assimiladas com mais profundidade nos que nasciam em solo local, crescendo em meio
daqueles navegadores, pescadores e mergulhadores,

Os hábitos populares teriam continuidade, não sem suas acomodações e modificações, mas
não a supressão, ou substituição in toto.

9.2. Os Banhos de Rio


Os relatos da proficiência na água dos indígenas, e do uso mais versátil da mesma,
invariavelmente se centravam nos rios e lagos. Os mares parecem ser marginais mesmo
nessa ocasião.

O que ocorre em Recife desde o final do século XVIII pode nos iluminar bastante, até pelos
autores dos testemunhos. Tollenare via nas margens do rio Capibaribe casas de campo de
“gente abastada”, e as primeiras “casinhas muito alegres” daqueles cidadãos da classe
média.

Mas, é nas margens do Capiberibe que cumpre ver famílias inteiras


mergulhando no rio e nele passando parte do dia, abrigadas do sol sob
pequenos telheiros de folhas de palmeira; cada casa tem o seu, perto do
qual há um pequeno biombo de folhagem para se vestir e despir.

As senhoras da classe mais elevada banham-se nuas, assim como as


mulheres de cor e os homens.

À aproximação de alguma canoa mergulham até o queixo, por decência;


mas o véu é demasiado transparente!

Vi nestes banhos a mãe amamentando o filho, a avó mergulhando ao lado


dos netos, e as moças da casa, traquinando no meio dos seus negros,
lançarem-se com presteza e atravessarem o rio a nado. (TOLLENARE,
1956, p.130).

Aquelas “náiades sem véus”, as “lindas anfitrites”, eram filhas de importantes negociantes,
como pôde perceber, e protegiam seu pudor mergulhando e habilmente vindo à tona a uma
considerável distância adiante. Aqui temos um fenômeno idiossincrático de Pernambuco, ou
melhor, do entorno de Recife, na miríade de igarapés que depois foram aterrados. Havia um
banho das quintas, das casas de campo, desenvolvimento do banho das fazendas e casas-
grandes, marcado pela nudez de todos os banhistas e pela pluralidade de uso; todas as
idades, classes e ambos os sexos. É interessante a aparição de uma edícula específica, os
telheiros rústicos, primitiva versão das cabines de praia, embora ali não houvesse troca de
trajes. Aquela região, a Várzea do Capibaribe, foi primeiro ocupada pelos canaviais e
engenhos, e no último quartel do século XVIII as herdades vinham sendo desmembradas
para aquelas quintas que Tollenare viu. O rio e seus afluentes, meios de comunicação dali
para Recife, tinham uma relação franca com aquela sociedade e documentos dos anos 1770
apontavam a salubridade.16 O mesmo Vilhena, que tanto esmiuçou da Bahia, escreve:

15
REIS, 2019, p.60.
16
SILVA, 2001, p.131.

412
O que de tal maneira atrahe os moradores da villa que quazi desertão na
estação do verão para hirem habitar nas suas margens por alguns mezes
em infinitas fazendas, e deliciozissimas cazas de recreio, de que ellas estão
bordadas, sendo innumeraveis as pessoas que de hum e outro sexo se
encontrão, já banhando-se no rio já sentadas ou paceando ou navegando
em canoas a sombra de altas, e copadas arvores, que por hum e outro lado
acompanhão o Capivaribe cujas agoas são por longos espaços defendidas
pellas arvores da ardencia dos raios ao Sol. (VILHENA, 1922b, p.818).

Os testemunhos de Tollenare e principalmente o de Vilhena nos interessam pelo contraste,


pela ausência de algo remotamente similar em Salvador e mesmo no Recôncavo.

O que havia em Recife era um subúrbio bucólico, de casas modernas, não mais as sedes de
fazenda, com um hábito de todas as classes. Ocorria em uma cidade cuja malha de rios a
caracterizava, em contraste com os intrincados e fundos vales de Salvador. Lá as quintas se
irradiavam ao longo de rios de algum porte, troncos de circulação essenciais, com suas
canoas.17 Freyre inclusive entende que o rio viera primeiro no hábito dos banhos, porém
exagera o seu papel, e retarda a transição, a partir do caso de Recife.18 Não houve análogo
no Recôncavo e menos ainda na capital: os seus rios, em seus vales estreitos, não foi lugar
do lazer das classes altas, e sim dos mais pobres, incluindo os escravos.

Por trás de todo o elogio ao banho de rio, Freyre levanta as ressalvas. Que as senhoras
recatadas não mergulhavam a cabeça, e que faziam o “pelo-sinal” antes de entrar,
temerosas do que poderia ocorrer. Que os homens bebiam um gole de cachaça para
“fechar” o corpo, e talvez tomar coragem e por força do hábito consagrado.19 Via aí uma
tensão entre a herança indígena ou moura, e o antigo medo cristão ao pecado, ao gozo que
a água poderia sugerir e incentivar, ao menos em um primeiro momento.20

O banho de rio parece ter sido quase uma instituição ao menos por todo o Nordeste, como
uma diversão dos jovens, de todas as classes sociais.

Na Zona da Mata pernambucana, estava claro. Durante sua estadia no Engenho Salgado,
notara Tollenare que os rapazes, antes de atingir a idade do trabalho, “vão cabriolar no meio
dos cavalos ou mergulhar no rio que corre ao pé do engenho”.21 Era uma uma das formas
de ocupar os espaçosos tempos da juventude. O “menino-de-engenho” era o garoto que
crescia naquele ecossistema das fazendas, junto o ioiô com os demais moleques, mesmo
com os escravos. Iniciava-se ali em muitas artimanhas. Incluindo o hábito do banho no rio,
em remansos, e o nado.22 E um registro de jogos aquáticos do começo do século XX, do
testemunho de José Lins do Rego. Jogos que, sabemos, acabam tendo uma longa vida, e
que podem ser considerados, retrospectivamente, como o espelho do que ocorria na
primeira metade do século XIX.23 Passavam horas dentro das águas dos rios, e brincavam:

17
Com tipos próprios, como as canoas de carreira, mais rápidas, para conduzir pessoas; as canoas de condução, para trastes
e materiais, e as canoas d´água, para transportar água (MELLO, 1978), isto é, que o próprio abastecimento de água
naqueles sítios nas margens dos rios, em especial Capibaribe, dependia das canoas. Essa diferenciação – e tal dependência
do metabolismo urbano – estava ausente em Salvador.
18
FREYRE, 2004, p.313.
19
Sem identificar essa virtude, entre outras inúmeras, da cachaça em seu estudo folclórico, José Calasans anota que fecha-
corpo era um dos nomes da bebida alcoólica em geral (CALASANS, 2014, p.172).
20
FREYRE, 2004, p.313.
21
TOLLENARE, 1956, p.56.
22
Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da pele. De fato que para mim, que me criara nos banhos de
chuvisco, aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por uma vegetação ramalhuda, só poderia ser uma coisa
do outro mundo.

Na volta, o tio Juca veio dizendo, rindo-se:

- Agora você já está batizado.


(REGO, José Lins do. Menino de Engenho. 77ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2000, p.40).
23
Curiosamente, os versos desta pequena brincadeira, com alguma menor alteração, eram também parte de jogos infantis em
terra no final do mesmo século.

413
Galinha gorda,
gorda é ela;
vamos comê-la,
vamos a ela

E sacudiam a pedra dentro do poço, mergulhando para pegá-la no fundo.


Espanavam a água com os canga-pés ruidosos, e saía sempre gente
chorando, com enredos para casa. O dia todo passávamos assim, nessa
agitação medonha. (REGO, 2000, p.43).

Daí não ser estranho também para os homens das fazendas e engenhos. Aqueles meninos
eram os pais dos homens feitos: “às sete horas voltava para casa, passava uma revista à
roupa, às caldeiras, e ia tomar um banho no rio em companhia do meu hóspede”.24
Novamente o banho como prática usual. Ao todo, em um dia, três banhos do francês
visitante, alguns com seu anfitrião.25

Foi também uma prática de regiões mais áridas. João Maurício Wanderley, o Barão de
Cotegipe, nascido em 1815, na Vila da Barra do São Francisco, banhava-se com freqüência
nos rios, quando “rapazola”.26 Já no século XX, José Lemos de Sant´Anna detalha os
banhos de rio do interior, em Pojuca, antes dos anos 1930:

Aí pelos meus três ou quatro anos, mamãe deixou que Sinhá Maria me
levasse com ela para tomar banho no rio. No banheiro das mulheres. É,
pois havia banheiro para os homens como o “chupa caroço” e o “poço das
tainhas”, e banheiros para as mulheres a um dos quais se ia pela Rua Nova.
[...] Achava natural tomar banho e ver tanta mulher nua lá no rio e não
prestava atenção especial a essa ou àquela, velha ou nova [...]
(SANT´ANNA, 1980, p.85).

Era um hábito de ambos os sexos, desnudos, mas com distinção locacional entre os
homens e as mulheres. Não parece ser tão diferente do que Tollenare e Vilhena viram na
bacia do Capibaribe, mais de um século antes. Apenas este seria à porta de casa, em meio
a umbrosos pomares e floridos jardins.

Ao sul da Bahia, no Rio Pardo, os viandantes, os que se embrenhavam nas matas,


banhavam-se, não sem precauções, como dizia Avé-Lallemant: “o banho ali é delicioso;
mas, perto dos banhistas, sobre uma rocha enxuta ficam as espingardas carregadas,
porquanto a traição pode estar espreitando por trás de cada árvore”.27 Aqui era o asseio e o
paliativo para a canícula, combatida em vários lugares pelo país.28 Nos rios do Recôncavo,
daqueles que vinham das terras mais altas, há menções, como nos da região de Cachoeira,
que “servem para azenhas, para beber, lavar roupa e banho”.29 Note-se o caráter plural do
rio: força motriz, água potável, lavanderia e o banho, este ambivalente por sua vez. Em
1856, Wetherell descreve o banho de rio.

O luxo de um banho frio pode ser desfrutado de preferência nos rios que
descem das colinas e no curso dois quais existem lagoas formadas pela
violência com que as águas descem na época das chuvas, e onde a água é
ainda mais fria do que nos rios, já que elas se acham abrigadas dos raios

24
TOLLENARE, 1956, p.60.
25
TOLLENARE, 1956, p.67.
26
PINHO, 1937, p.28.
27
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.93.
28
Como anotara Saint-Hilaire no Arraial de Meia-Ponte, na Província de Goiás: “à época do calor mais forte todos os habitantes
do lugar – homens e mulheres – banham-se regularmente no Rio das Almas, o que contribui para mantê-los em boa saúde”
(SAINT-HILAIRE, 1975, p.37).
29
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.64.

414
do sol pelas grandes rochas que as torrentes deixam a limpo.
(WETHERELL, s/d, p.105).

Porém é preciso alguma cautela. Esterzilda Berenstein de Azevedo fala que o banho no
Recôncavo se dava ora no rio, ora em gamela ou vaso de assento.30 No entanto, sua
referência ao banho nos rios pelos donos dos engenhos é a obra de Freyre, por sua vez
baseada na documentação pernambucana, que guarda diferenças profundas quanto a
Salvador, ao menos nos arrabaldes da cidade.

E no cenário dos engenhos de cana-de-açúcar? A documentação local é escassa. Há um


dado interessante, do mais importante historiador do Recôncavo açucareiro: “pela manhã
azafama dos banhos de ´gamela´, de ´coxo´, em ´bacias de arame´. Os homens vão de
manhãzinha aos poéticos banhos de fonte”.31 Os banhos parecem ser privados. Aqueles
que são a céu aberto não são nos rios e suas piscinas naturais, e sim nas fontes e,
sobretudo, seriam dos homens. Provavelmente daqueles muitos meninos-de-engenho. Mas
não se configuram como um deleite das famílias por inteiro, que dirá das mulheres. Em
romance de Xavier Marques, passado nos anos da Abolição, um dos personagens, um
senhor de engenho, tinha esse gosto pelos banhos de rio.

- Já se retira para o engenho? perguntou o visconde.

- Já – respondeu. – Estou passando mal aqui. Faz-me muita falta o meu


banho de rio, de manhã...

Era seu hábito, apenas se levantava da cama, despir-se totalmente e com


um lençol de linho conchegado aos ombros, ir banhar-se no rio, que a
pouca distância movia a roda do engenho. De volta, abanando-se com o
próprio lençol, estendia-se num divã de couro. Várias negrinhas acudiam
pressurosas com toalhas, a escova de cabelo, a roupa e os pantufos.
(MARQUES, 1982, p.50).

Era o hábito de apenas um dentre os muitos senhores que aparecem no romance. E um


homem considerado excêntrico. Nenhum dos viajantes que se hospedou numa casa-grande,
e foram vários, mencionou algo similar. Tollenare o anotou várias vezes em Pernambuco,
mas na Bahia o mesmo não se repetira. Aparecia, em uma fugaz menção, dentro do leque
de atividades galantes, no poema Engenheida.

[...] os frescos banhos


Que as Naiades off´recem, cristalinos,
E cem proveitos, cem vantagens outras
Que, n´este clima sem rival, propicia
A Natureza e as artes apresentam,
Prazeres dão variados e constantes
(FERRARI, 1853, p.43).

Até a figura das náiades é a mesma daquelas do Capibaripe, mas era o de se esperar de
um lugar-comum literário. E era algo menor e mais tímido, seguramente, e de novo
invocamos Tollenare e Vilhena: ambos anotaram o hábito recifense como algo singular, e
nada remotamente similar apareceu para a capital da Bahia e seu Recôncavo. Neste longo
poema, onde os banquetes e passeios pela herdade mereceram longos versos, estes
“frescos banhos” receberam estas exíguas linhas.

Dois depoimentos minuciosos e raros devem ser vistos.

30
AZEVEDO, 2009, p.20.
31
PINHO, 1937, p.631.

415
Passando perto da fazenda Marmota, onde morou, e avistando-a, e o rio Una correndo ao
fundo, Anna Bittencourt rememorou os “ótimos banhos ali tomados”.

Os banhos eram magníficos. Pela manhã, minha tia ia conosco. À tarde,


mandava a irmã, Maria da Gloria, moça de dezenove anos, fazer-nos
companhia. [...] Às vezes era preciso que minha tia nos fizesse buscar para
o jantar porque não nos resolvíamos, voluntariamente, a sair do rio.
(BITTENCOURT, 1992b, p.36).

Aquele gineceu que se deslocava para o piquenique no interior da Bahia, antes mencionado,
também ia para banhos no rio Una.

Entre duas destas cascatas, havia um trecho em que o rio, mais profundo,
era ladeado de árvores e arbustos que davam sombra convidativa ao
banhista, não ficando ele exposto às vistas de alguém que dali se
aproximasse. Era impossível resistir a um regalo tão adequado a fortalecer
o corpo moído de uma longa viagem. Mandamos a rapariga escrava ficar a
alguma distância para deter alguém que dali se avizinhasse. Assim
tomamos o banho mais delicioso que se pode imaginar. (BITTENCOURT,
1992b, p.100).

O banho de rio ocorrera como um prazer e um descanso durante uma viagem cansativa,
porém novamente se repetira a imersão das mulheres. Ou fora algo que existia, porém
escapou a essa rede feita de escassos testemunhos dos hábitos do Recôncavo, ou era uma
liberalidade mais própria do interior da província. Guardemos por ora a “sombra
convidativa”, sumamente importante.

Havia um banho popular nos rios maiores, nos núcleos urbanos, documentado na medida
em que se configurava como um problema para a ordem pública. E isso porque se fazia à
luz do dia, ou em noites de lua, em lugar com outras pessoas. Resolução de 13 de Junho de
1855, da Assembléia Legislativa Provincial, a partir de proposta da Câmara Municipal da
Cidade de Cachoeira, assinada por Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima, então Vice-
Presidente da Província, ditava:

É prohibido qualquer pessoa, o despir-se ou por-se de um modo indecente,


a pretexto de tomar banhos; de dia nos lugares do chafariz, dos rios
Paraguassu, Pitanga, e Caquende, onde costuma concorrer o publico, e
mesmo a noite só poderá despir-se as de escuro, das 9 horas em diante, e
nas de lua, da meia noite em diante; pena de 4$, ou 2 dias de prisão.
(COLECÇÃO..., 1865, p.283).32

O véu da noite tornava o ato aceitável.

Resoluções e proibições análogas se repetiam em Salvador. A Postura nº117 da Câmara


Municipal proibia o banho em “praias povoadas, diques ou qualquer lugar pública”33,
exigindo que usassem roupas evitando o atentando ao pudor, ou seja, a nudez. Em 1854,
aguadeiros que banhavam-se num córrego da Rua da Valla fugiram à mera aproximação de
dois policiais. Em 1857 o liberto africano Antônio José dos Santos fora preso por banhar-se
em uma fonte pública, ainda que à noite.

Recorrente era a figura dos meninos jovens banhando-se. Freyre sentenciava: “o moleque
brasileiro tornou-se célebre pelo seu gosto de banho de rio”.34 Isso valia para a zona rural,

32
COLECÇÃO DAS LEIS E RESOLUÇÕES da Assembléa Legislativa de Regulamentos do Governo da Província da Bahia,
Sanccionadas e publicadas no anno de 1855. Volume VIII, contendo os números 515 a 583. Salvador: Typ. Constitucional de
França Guerra, ao Aljube n.1, 1865.
33
Apud REIS, 2019, p.33. Os dados deste parágrafo são retirados dessa obra, entre as páginas 27 e 33.
34
FREYRE, 2004, p.314.

416
para os meninos de engenho, como para aqueles da cidade, caindo na água inteiramente
nus, razão das constantes reclamações que encontrou nas suas pesquisas, e proibições
legais, como emanada pela Câmara Municipal do Recife em 1831. Seria hábito incorporado
mesmo pelas famílias mais nobres, porém com algumas diferenças: em suas propriedades,
com banheiros de palha onde desnudarem-se, e com uma separação entre os sexos por
horário.35 Não encontramos esse aparato em Salvador ou no seu Recôncavo.

Mas Freyre faz uma observação importante: esses banhos de rio, ainda que realizados
pelas classes mais altas, era um “verdadeiro banho”, atingindo o corpo por inteiro, desnudo
que estava. Os banhos de mar, que não os populares, não. Exigiram vestimentas pesadas,
cobrindo quase todo o corpo, de baeta azul, confeccionados primeiro no âmbito doméstico.

Os cursos e espelhos d´água da cidade não eram lugar dos mais abastados. Em vez da
privacidade britânica, a proteção mourisca: os banhos eram domésticos.

Gregório de Matos em poesia sua faz menção a um banho em fonte: “Dentro na fonte achei
Brites,/ que ali se foi a banhar,/ por dar que entender aos olhos/ um cristal noutro cristal”.36
Fora o laivo marinista – o cristal noutro cristal –, não deu detalhes, com um jeito sardônico,
brincando com as convenções de poesia mais elevada. Pela poesia apenas podemos saber
do uso geral das fontes, e nada mais.

As fontes, abaixo das ruas, eram locais de encontros. Mas eram mais do que isso. Os
fundos de vale eram africanos.

Na região em torno da Vitória, Tollenare dizia irradiarem-se “seis pequenos vales deliciosos,
alguns deles são regados por límpidos riachos e estão animados de belos jardins e
lavanderias”.37 Wetherell o confirmava: “à beira de cada rio dos arredores da cidade sempre
se encontram grandes grupos de lavadeiras”.38

Para o banho, o Dique era um local privilegiado: “algumas pessoas por divertimento no Estio
navegam nelle”.39 O termo é empregado como sinônimo de “nadar”. O Estio aqui é
fundamental. Não apenas pelo calor, sim por ser o estio das chuvas, responsável por cheias
repentinas, águas turbulentas e outros riscos. De toda forma, Amaral reclamava que se
achava abandonado e entregue “às lavadeiras e aos vadios que ali vão banhar-se e
pescar”.40 É um banho de meninos, de jovens, de “vadios”. Eram eles que majoritariamente
caiam à água. Alguns talvez trazidos a tiracolo, sob a tutela das mães. E as meninas, como
de praxe, acompanhando-as na tarefa. A conversa ruidosa, com risos e pândega, se
instalava. Em 1855, esse era o quadro descrito por Wetherell:

Um bairro é tipicamente chamado Barris por causa do grande número de


barris que se acham enterrados nas margens barrosas do rio, a fim de
formar espécies de tanques para lavar. [...] Um terreno de lavagem oferece
uma curiosa cena: as pretas, meio despidas e por vêzes inteiramente nuas
– pois elas não são muito pudicas – cantando ou conversando
estridentemente enquanto batem vigorosamente a roupa ou circulam
aspergindo-a; crianças engatinham à sombra de esteiras amarradas em
varas; numerosas pequenas fogueiras sobre as quais cozinham as
refeições espalham-se pelo terreno, oferecendo este conjunto o aspecto de
um verdadeiro acampamento. (WETHERELL, s/d, p.89).

35
FREYRE, 2004, p.511.
36
GREGÓRIO DE MATOS, s/d, p.192.
37
TOLLENARE, 1956, p.295.
38
WETHERELL, s/d, p.89.
39
REBELLO, 1829, p.137.
40
AMARAL, 1922, p.395.

417
Figura 203 – Dique (Bahia), cartão-postal da Livraria Reis, de 1905, da Coleção Ewald Hackler.
Fonte: VIANNA, 2004. Se a hipótese da setorização do espelho d´água for verdadeira, este seria o
recanto para se lavarem as bestas de carga.

Figura 204 – Dique (1902), da Campagne Duguay-Trouin. Fonte: Acervo digital do autor. Por outro
lado, esta figura, como as demais, apontariam as áreas das lavadeiras.

418
Figura 205 – Dique e Lavandeiras, cartão-postal da Miscellanea, de 1912, da Coleção Ewald Hackler.
Fonte: VIANNA, 2004.

Figura 206 – Dique (1902), da Campagne Duguay-Trouin. Fonte: Acervo digital do autor. Aqui estão
as lavadeiras e todo seu aparato, incluindo os famosos barris. Embora não enterrados ou semi-
enterrados, como se os descrevia.

419
Figura 207 – Dique (1902), da Campagne Duguay-Trouin. Fonte: Acervo digital do autor.

Iam com a família por inteiro, cuidando de suas crianças enquanto trabalhavam. Maximiliano
de Habsburgo também as viu ali, confirmando todos os elementos vistos por Wetherell.
Estavam as lavadeiras imersas na água, muitas vezes, e o príncipe menciona que também
se banhavam lá, o que seria de se esperar: “aí, os negros banhavam os cavalos, e o sexo
frágil da raça negro, parte dentro d´água, parte fora d´água, lava roupa, no meio de terrível
barulho e gritaria”, sempre as mulheres com “seu séquito de soldados fazendo a corte e
moleque de rua negros e vadios”.41 Eram funcionais os vales e seus rios, córregos e riachos
à cidade que se desenvolvia acima.

O Dique era ambiente mais comum pela sua extensão, praticamente limitando o núcleo
urbano a leste, e por ter um local especificamente adaptado para tanto, com os barris
encravados no solo (Figs. 203 a 207). Este uso da malha hídrica, nas cotas mais baixas,
complementava o abastecimento insuficiente dos poços particulares e fontes públicas. Uso
para lavar as roupas, para limpar cavalos e negros (talvez escravos), e para divertirem-se,
os “moleques de rua” e os “banhistas”.

Devemos fazer uma ressalva. Da mesma maneira como aos olhos dos estrangeiros a área
verde do entorno da cidade, dos fundos de vales e margens do Dique, lhes parecia
indiferenciada em sua textura, sem a menor condição de capturar as diferenças territoriais, o
uso dos espelhos d´água poderia ter suas distinções e suas territorialidades particulares.
Algo disso é observado por Silva Lima: “houve um tempo em que a extremidade contigua à
Fonte das Pedras [...] foi o logar de preferência para lavar cavallos e banhar negros
sarnentos”, enquanto outros eram freqüentados por “lavadeiras e banhistas”.42

41
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.99.
42
SILVA LIMA, 1899, p.15.

420
Em trabalho muito mais recente sobre Itapuã, revelava-se que a Lagoa do Abaeté, com uso
análogo aos demais espelhos d´água da cidade, apresentava tais nuances.

Ói, tinha lugar que as mulheres lavava, tinha lugar que os homens tomava
banho – mulher não ia. As mulheres lavava pra cá, os homens não ia lá.
Tinha lugar de dar banho em animal, viu? Tudo ali tinha seu lugar. Areia
muito alva. Tudo ali tinha... lugar de quarar, enxugar a roupa... Tudo ali era
separado. Cada um tinha seu lugar, hoje em dia não tem. [...] (Dona Chica)
(GANDON, 2008, p.315).

Repete-se aqui a separação da área de banho das mulheres – das mães e suas filhas, e
provavelmente filhos menores – e dos homens, que vimos em outras ocasiões. Sendo
distante, e escassamento povoado em suas imediações, é certo que esse tipo de divisão
tácita caberia ao Abaeté e demais lagoas que havia na região, e ao longo das dunas do
litoral norte. Mas não seria descabido pensar nesse tipo de sedimentação de usos, de
pactos de convivência, firmados pelos costumes entre as pessoas. Mesmo a área com a
função da limpeza poderia apresentar uma territorialidade própria.
E as fontes... porque era tudo preto, aí a pessoa chegava, limpava aquele
junco, passava ingaço de coqueiro, limpava, limpava, até a areia ficar
branca. Quando a areia ficava branca, aí você podia lavar roupa ali. Então
botava [os nomes]: “Aquele fonte fui eu que fiz”; “Esta fonte não sei quem
fez”... [...] (Dona Francisquinha) (GANDON, 2008, p.315).

No Abaeté, cada canto preparado para a limpeza, chamado de “fonte”, tinha uma “dona”,
pelo trabalho que exigia a retirada do lodo escuro do seu fundo, que lhe dava a aparência
tão característica. Até o nome “fonte” é significativo: implica em “pedaços”, trechos
recortados da continuidade maior da lagoa, e tornado um análogo de uma fonte, particular
daquela lavadeira. Em linhas gerais podemos conjecturar que comportamento análogo se
repetisse nos cursos e lagos da cidade, dessa divisão territorial das funções e posses, em
acordos tácitos circunstanciais.

Mas há uma nota em contrário do que se encaminharia até o momento, de um banho mais
generalizado nesses lugares. Edison Carneiro, ao apresentar o papel da água nos terreiros,
é taxativos:

As mulheres lavam apenas o rosto pela manhã e algumas vezes, à tarde, às


cinco ou seis horas, tomam banho no mato com uma única lata d´água e
sabão de potassa ou de coco, enxugando o corpo, depois, em panos velhos
ou em vestidos enxovalhados. Não se molha a cabeça. (CARNEIRO, 1986,
p.45)

Isso apesar do uso intenso dos riachos e fontes próximos, para o trabalho de lavandeiras,
isto é, como se dizia, lavar a roupa de ganho, e a extrema importância no candomblé,
incluindo banhos rituais; fora isso, “a água não tem grande importância na vida civil”.43
Tratava-se de uma descrição de alguém que tinha intimidade com essa parte da sociedade,
nas primeiras décadas do século XX. Desenha-se, assim, um banho que é mais folguedo de
moleques e rapazes.

Falando também de um Rio Vermelho primitivo, ainda sem o afluxo de veranistas, João
Varella apontava um banho de rio menos entremesclado com atividades funcionais das
famílias e da cidade. Aos domingos “os rapazes procuravam os banhos do Cabussú, da
Lucaia, da Chapada, da Fontinha, (detraz de um dos montes, pouco antes das rochas)”.44
Nas fontes, e não no mar.

43
CARNEIRO, 1986, p.45.
44
VARELLA, 1935, p.92.

421
Sobre a mesma localidade, Antonio Garcia faz uma longa, e igualmente imprecisa quanto à
época, descrição. Tampouco menciona em momento algum o banho de mar. O que seria
anômalo, pois era um dos locais constantes para a busca discreta do banho salgado, como
virtude possíveis de imóveis para venda e locação. Talvez justamente por isso, por
discrição. Não eram jovens indo às fontes interiores, mas no próprio rio Lucaia.

Ademais, tinha irresistiveis seducções o banho frio, manhãzinha, no Lucaya,


abaixo da calha que faiz mover a lapidadora de diamantes e ao qual se ia
de tamancos, sem collarinho, sob as grandes abas de um chapéo de palha
grossa, vezes sem palitó e tambem sem escandalizar o proximo. (GARCIA,
1923, p.283).45

Outra pergunta é quem seriam estes jovens. A maioria das menções indiretas a esse banho
folgazão dos mais jovens é sob o espectro da vadiagem e dos moleques. Não tem por que
ser, neste caso, algo muito diferente. Seriam os adolescentes de uma localidade de
pescadores e roceiros. Apenas vistos sob as lentes do bucólico, como em todo o relato de
Garcia.

No livro O Feiticeiro, de Xavier Marques, passado no final dos anos 1870, há uma longa
descrição das excursões, e falava, no rol de atividades, do banho nas fontes, sob o dossel
das árvores, ao longo dos arrabaldes (Cabula, Matatu, Brotas, Garcia), no “programa dos
rapazes” estavam os “banhos nas fontes emboscadas”.46

A população da cidade tomava banho, de toda sorte. Vilhena, sem o estranhamento de um


total forasteiro, escreveu: “he raro o que não toma mais de hum banho por dia, e muito
principalmente as mulheres”.47 Em Salvador, e excursionando pelo Recôncavo, disse
Maximiliano de Habsburgo da “limpeza fora do comum” do brasileiro, e seu hábito de tomar
banhos frios, tão arraigados que “ao hóspede que chega, em primeiro lugar se oferece o uso
da casa de banho”.48 Costume que creditava ter origem indígena.

Porém o banho das famílias com suas residências campestres, seja sede de fazenda, seja
casa de campo, se dava no próprio lar. Não havia nada remotamente similar com as náiades
recifenses, com as loreleis nativas, por mais que fosse um hábito arraigado. Não poderia,
portanto, dali partir e se transformar no banho terapêutico de tons modernos. Mas esses
banhos ocorriam em edículas dedicadas a isso, como indica Maximiliano de Habsburgo em
visita ao Engenho Novo, de Tomás Pedreira Jeremoabo da Costa Vasconcelos, alimentada
por uma canalização de água própria, “uma agradável casa de banho, com três amplas
banheiras de mármore, em forma de bacia, um luxo necessário para assegurar o frescor e a
limpeza, e que [...] se encontra em toda Fazenda brasileira.49 A casa de banho era um
recurso possível quando havia rios. Porém a encontramos mesmo em lugares mais
próximos à cidade: “vende-se huma roça na estrada do Bom-Fim com boa casa de vivenda,
Oratorio para dizer Missa, e tambem com sua casa de banhos”.50

A água vinha de fontes, como nesta roça, que estava a arrendar-se, “na estrada do Rio
Vermelho, com muito boa casa de morar para grande familia, optima fonte, e casa de banho
de bica”51. Ou de poços no terreno, como se depreende desta casa de 1831: “vende-se

45
José Alvares do Amaral (1922, p.242) dá conta de dois estabelecimentos do gênero, “uma das fabricas de lapidação de
diamantes, junto ao Dique” e outra, “a lapidação da Conceição da Lucaia, perto do Rio Vermelho”. Era nesta localização que
ocorria esse banho.
46
MARQUES, Xavier. O Feiticeiro. São Paulo: Com-Arte, Edusp, 2017, p.84.
47
VILHENA, 1922a, p.111.
48
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.189.
49
MAXIMILIANO DE HABSBURGO, 1982, p.189
50
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.53, Terça-Feira 5 de Julho de 1814. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1814.
51
O CORREIO MERCANTIL n.266, Quinta-Feira 12 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.

422
huma Casa de Campo com seu eirado na Estrada que vai para Itapagipe chamado
Papagaio, com cinco quartos, e huma Cavalharice [...] com hum grande poço e casas para
banhos”.52 Nas cidades, o banho acontecia em outras circunstâncias: de cuia, de assento e
de gamela. Havia cômodos que se prestavam para essa atividade. Quando ausentes, podia
acontecer na sala de jantar ou na cozinha.53 Freyre apontou, no entanto, a predileção das
classes altas pelo banho de gamela, de assento e de cuia, dentro de seu próprio sobrado,
principalmente morno. Indicativo seria a constância dos anúncios de gamelas em jornais, na
primeira metade do século XIX, o que não encontramos para Salvador. Depois ainda seriam
substituídos por tipos mais sofisticados, banheiras de cobre ou de flandres, e seria ainda
razão do sabão, antes artesanal e feito em casa, ter sido dos primeiros artigos a se
industrializar no Brasil.54 Sendo inacessível aos mais pobres, o sabão teria feito falta, e a
reiterada acusação ao seu mau-cheiro seria menos falta de banho, e mais a limitação em
retirar a sujeira, pela falta de meios específicos para tanto.

Antônio Risério faz uma conjectura de lógica implacável: se o banho era um hábito
generalizado e profundo, e se os mais pobres não tinham espaço para o banho em suas
casas, evidentemente o faziam ao ar livre, nos corpos d´água disponíveis.55 Embora as
casas urbanas mais abastadas também não tivessem, na primeira metade do século XIX,
um cômodo especializado para tanto, o raciocínio é pertinente. Os banhos de rio, além de
lazer e comodidade para o estio, era também uma necessidade.

Esse poderoso motivo empurrando aquela população aos fundos de vale era certeiro.
Porém cabe ainda uma consideração. Às margens do rio Bragança, no Rio de Janeiro,
Maximiliano de Wied-Neuwied percebera algo à parte, em “miseráveis” cabanas de
pescadores: que estes davam banho nas crianças já nas primeiras luzes do dia com água
morna “prática usual entre os portugueses, e, segundo parecia, impacientemente aguardada
pela miuçalha”.56 Saltava-lhe à vista o gosto pelo banho, e destacamos que o banho
doméstico, por elementar que fosse e talvez pelas suas próprias condições, podia ser
interpretado pelas crianças como um gozo próprio. Apesar de ser em outra província, a
mecânica poderia se repetir, do banho de cuia ao ar livre, no entorno da cidade, onde o
adensamento não criava problemas para a decência das classes mais altas.

9.3. O Banho Terapêutico


Consideremos as formas de imersão que visavam a cura, na reclusão do lar ou ao ar livre,
nos espelhos d´água naturais, ou por intervenção humana, captando a água natural, para
esse fim.

O banho terapêutico não apareceu de uma só vez, e acontecia de forma relativamente


discreta, invisível até, enquanto não se instalou como um costume mais disseminado,
vigente de fato.

Tampouco se pode pensar que a idéia de limpeza fosse material, física, como é hoje.

O calor é agora ardentíssimo, e quem pode vai-se retirando para o campo.


Nos tempos de minha avó, que Deus tenha, não havia cristão que fosse
para o banho, ainda que contasse saúde, como um grumete, que se não
predispusesse vomitando-se e purgando-se. Dizia a tal minha avó que era

52
GAZETA DA BAHIA n.87, Quarta-Feira 16 de Novembro de 1831. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, por cima dos
Arcos de S. Barbara, 1831.
53
HOLTHE, 2002, p.177.
54
FREYRE, 2004, p.314.
55
RISÉRIO, 2004, p.475.
56
MAXIMILIANO, 1958, p.94.

423
para limpar o corpo, porque antigamente o corpo humano reputava-se uma
cloaca, e os eméticos e purgantes, alimpiadores mores das porcarias.
(GAMA, 1996, p.236).57

A limpeza da superfície do corpo, para a avó do Padre Lopes Gama, alavancava um


processo purgativo em todo o organismo. E a idéia de uma lavagem espiritual, que
envolvesse outros níveis do ser, era antiga e anterior à Higiene moderna. A lavagem não
implica sequer na aparência de água limpa, vide o caso do rio Ganges em Benares, Índia.

Da mesma maneira, as terapias variavam enormemente: das qualidades exigidas das águas
e do meio, dos fins, e mesmo das teorias que lhe suportam, se e quando efetivamente
importam. São distintas, embora tenham seus pontos de contato, a hidroterapia, a
crenoterapia, e a talassoterapia ou balneoterapia marítima. Igualmente podia haver
convergência de meios e situações, e o deslocamento da ênfase de um a outro aspecto
ambiental de um dado meio. Assim, nas praias, pôde haver a balneoterapia, que deu lugar à
helioterapia. Alguns desses banhos terapêuticos ocorriam em recintos fechados; outros, ao
ar livre. Sequer o banho salgado, por exemplo, seria necessariamente no mar; durante a
estruturação da hidroterapia, na segunda metade do século XIX, acontecia em recintos
próprios.

Aqui também retorna a dificuldade em indicar se havia uma diferença entre o uso do banho
para motivos de saúde pelas classes altas e as baixas.

No que diz respeito a temas relacionados com o assunto, como a farmacopéia caseira e as
águas miraculosas, não se vê essa distância, a não ser que se restrinja bastante o que se
considera como classe letrada, esquecendo que a comunicação entre os estratos era mais
comum do que o que pensamos, dada a convivência na mesma edificação de toda a sorte
de empregados, muitos cuidando da assistência dos infantes.

Talvez a melhor descrição do que seria a vasta farmacopéia doméstica, e não propriamente
popular, tenha sido dada por Hildegardes Vianna, falando das primeiras décadas do século
XX de fomentações, infusões, sinapismos e vesicatórios, suadouros, purgativos e drásticos,
depurativos, xaropes e lambedores, todos feitos em casa. Em todas as casas. Mesmo com a
Medicina bastante institucionalizada, esse era o cotidiano das famílias da cidade. Se
existiam como hábitos, receitas e recurso familiar no século XX, com mais propriedade
ainda operavam no século anterior. E, ainda, a crença profunda das pessoas em
superstições e mesmo nas virtudes mágicas daquela fonte miraculosa ou naquele feitiço
africano.

No entanto, como ficava a recomendação de banhos, privados e ao ar livre, no mar? Eram


seguidos? À risca?

O banho era também uma forma de cura. Mesclando princípios distintos, coexistindo, sem
uma clara delimitação. Seria fácil pensar que o banho com contornos mágicos era próprio
das classes mais baixas, e que aquele de cariz médico, das mais altas. Porém entre esses
andares pessoas, crenças e idéias circulavam.

E uma mesma técnica ou hábito pode ter ênfases diferentes, a depender da procedência,
formação e crença de quem observa. Por exemplo, havia uma transição nebulosa entre os
banhos mágicos e os banhos medicamentosos.

Jaqueline de Andrade Pereira anota práticas mágicas envolvendo banhos. Para a “defesa”,
banho com arruda, alecrim, guiné, santa-bárbara ou juremeira, plantas que deveriam ser

57
Texto de 23 de dezembro de 1837, chamado As constipações e as belas indigestões.

424
cozidas, coadas e aspergidas no corpo inteiro, fazendo cruz, pela direita e pela esquerda.
Para sarna, banho com água misturada a sangue de tatu. Para ter sorte, banho com
alfavaca, capim-santo, hortelã ou cidreira. O registro do Dr. Silva Lima, em 1866, sobre
envenenamento por plantas, é revelador.

Dous pretos africanos, ambos escravos, moradores na mesma casa, Pedro


de 35 a 40 annos, e João de 25 a 30, soffriam de dores rheumaticas, e,
como é freqüente entre elles, em vez de se queixar a seu senhor, consultou
o mais idoso a um curandeiro, também preto, o qual aconselhou banhos
com cosimento de umas folhas, das quaes lhe forneceu abundante
provisão. (SILVA LIMA, 1866, p.67).

Arriscamos o salto cronológico porque, se houve o crescente desencantamento do mundo,


as práticas mágicas de 1860 também existiriam antes.

Silva Lima reconheceu, na análise dos restos da panela, a trombeteira (Datura arborea). E,
fundamental, o uso dessa planta era recomendado na Medicina culta: “o cosimento d´esta e
de outras espécies de Datura é aconselhado externamente em banhos e fomentações, entre
outros médicos, pelo Dr. Chernoviz”.58 Era este o banho medicamentoso, que servia para
infusão de medicamentos, como veículo de transmissão de princípios curativos de
medicamentos, dissolvidos na água. Primeiro, das ervas, como a “xicoria, herva applicada à
certas enfermidades, e para banhos”59, e o “mentrasto, herva, applicada para banhos em
dores de cadeira” e a folha do “Morungú, arvore pequena [...] para banhos nas inchações
das faces por causa de dores de dentes”.60 Procedimento que prosseguiu durante o século
XIX, até por conta de sua facilidade, da maneira como se podia recomendar e repetir por
toda e qualquer pessoa, incorporando-se à farmacopéia geral.

Da mesma maneira, é confusa a fronteira entre os banhos miraculosos e a crenoterapia, isto


é, o uso de águas termo-minerais.

Em Salvador, vimos o caso da Gruta de São Lázaro, atrelada à festa popular, e ao banho de
mar mais expansivo. Existiam águas miraculosas em Salvador que poderiam ser
empregadas em banhos. Em uma apenas, a de São Lázaro, havia imersão, em especial no
dia da festa deste santo.

Depois das obrigações descem a ladeira, vão para a praia de Ondina, que
antigamente chamavam praia de São Lázaro. Ali em cima das pedras há um
lugar que corre uma água que vem de uma gruta que chamam milagre de
São Lázaro. Ali os fiéis banham-se na água, depositam as muletas e tudo
que usavam quando eram doentes, dando graças aos milagres de São
Lázaro, acendem vela e fazem seus agradecimentos. (LOPES, 1984, p.99).

Próxima à praia, havia Santa Luzia no Pilar61, e outra fonte da mesma santa no Solar do
Unhão.62 Além de fontes em São Tomé de Paripe e Candeias, como já visto.

Mas havia um outro banho terapêutico, ou melhor, curativo: o das águas termo-minerais.
Essas águas especiais, singulares, não devem ser entendidas anacronisticamente. A
crenoterapia – a “medicalização” das águas termo-minerais – no mundo lusófono é do
século XIX: as práticas populares antecedem. E como visão aplicada às mesmas fontes, às
mesmas águas. Não requeriam a recomendação médica. A rigor, nem mesmo era uma

58
SILVA LIMA, J.F. Registro Clínico, Envenenamento de duas pessoas pela Trombeteria. In Gazeta Médica da Bahia, n.6, ano
I. Salvador, 25 set 1866, p.68.
59
REBELLO, 1829, p.110.
60
REBELLO, 1829, p.108.
61
VIANNA, 1981; TORRES, Carlos. Vultos, Fatos e Coisas da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1959, pg. 105;
TORRES, 1961, p.186.
62
CAMPOS, 1942, p.125.

425
questão de limpeza: o poder curativo residia na água especial, em si mesma, a ponto do
sujeito, após a imersão, não dever banhar-se em água comum e corrente, para não retirar
da pele as substâncias que estavam a agir.63

Como elucida Maria Manuel Quintela, esse poder curativo estava distante da Medicina
como técnica: era algo santo, miraculoso e misterioso, até por sua origem subterrânea.64 A
cura não era apenas dos problemas físicos do corpo, mas espirituais, como encostos e
problemas no curso da vida. Esse poder benéfico oscilava de acordo com as épocas do ano
e com os dias da semana. Em certos dias santificados, seu poder se multiplicava.

Um exemplo está nas notícias, na Gazeta Médica da Bahia, de curas “milagrosas” por águas
minerais na Província do Ceará, na Fonte do Caldas, na Barbalha: “uma tal senhora Luiza
Pezinho, paralytica das pernas havia três annos, curou-se com três banhos tomados ao
nascer do sol, porque teve fé”.65 Outras curas foram ainda narradas: de dois aleijados, de
uma ciática num tenente, de um “catarrho pulmonar chronico” da mulher de um capitão, das
“sarnas syphilliticas” de “um Sr. Furtado”. Importante a tessitura do milagre, da crença
religiosa, e menção ao barro de Candeias, das quais não temos outro registro, embora sim
às “respectivas águas”.66

Usamos novamente como exemplo algo de época já mais “avançada”, quase em 1870, para
ilustrar a persistência dessa crença.

Quem tinha posses ia às estações de água da Europa. Em 1824, Manuel Antonio Pires que,
conseguiu licença de um ano para “ir à Portugal usar das águas thermicas”.67 Porém até
esse momento o significado dado às águas termais em Portugal ainda era o daquelas curas
miraculosas: o termalismo se institucionaliza naquele país apenas em 1892.68 O paciente
baiano, portanto, foi buscar aquele tipo de poder, e não esta terapia. Na Bahia, a alternativa
se apresentou sob a forma da Mãe d´Água do Cipó.

Ao longo do rio Itapicuru, por mais de 50 km, havia vertentes de águas termo-minerais, de
longa data conhecidas.69 Em 1730, primeira vez que se chamou a atenção do Governo
Colonial “para aquellas aguas disputadas pela gente dos arredores e pelo gado errante das
´caatingas´”.70 Vilhenas as localizava e dizia: “esta notícia me participou hum sujeito cordato
e instruído, que ali tomou banhos, não por molestia mas por costume e regalo que todos os
Brazilianos não podem dispençar”.71 Empregado, portanto, já como recurso terapêutico,
embora não medicalizado, e também como uma forma de deleite.

Rebello dissera que “na Villa de Itapicurú descobre-se agora huma água férrea medicinal,
segundo o que parece; e já o Governo mandou proceder a exame químico”.72 Em 12 de abril
de 1831 as águas já chamavam a atenção do presidente da Província, Joaquim José
Pinheiro de Vasconcellos. Houve um esforço em analisar cientificamente aquelas águas por
parte do Governo Provincial, que também começou a assentar as bases do seu uso,
construindo uma casa para abrigo dos doentes, desta vez em Mãe d´Água do Cipó.73 Dois

63
QUINTELA, Maria Manuel. Banhos que Curam: Práticas Termais em Portugal e no Brasil. In: Etnográfica, Lisboa, vol.VII,
p.171-185, 2003. Lisboa: CEAS – Centro de Estudos de Antropologia Social, 2003. Disponível em:
<http://ceas.iscte.pt/etnografica/> Acesso em: nov. 2019.
64
QUINTELA, 2003.
65
UMA FONTE MILAGROSA NO CEARÁ. In Gazeta Médica da Bahia, n.67, ano III. Salvador, 15 mai 1869, p.225.
66
Como se vê, as virtudes curativas das águas do Caldas excedem ainda as do nosso famozo barro de N.S. das
Candeias, e também das respectivas águas, que tantos milagres por ahi produzem todos os dias. (UMA FONTE...,
1869, p. 225).
67
BRITTO, 2002, p.71.
68
QUINTELA, 2003.
69
MONIZ, Egas. As aguas minerais do Cipó. In: Revista da Bahia, ano III, n32, 1 ago 1923.
70
SILVA, 1940, p.350.
71
VILHENA, 1922b, p.608
72
REBELLO, 1829, p.250.
73
SILVA, 1940.

426
anos antes, em 1829, já se improvisara estabelecimentos de banhos nas fontes de Missão
da Saúde.74 Um pouco depois, em 1834, autorizou-se a Câmara de Itapicurú a ter um
empregado dedicado a cuidar das festas dos banhos do Cipó.75 Em 1843, a Assembléia
Legislativa da Província da Bahia nomeara comissão para estudar as qualidades das águas
de Cipó, para franqueá-las ao público. A comissão as reconheceu como minerais salinas e
termais, com poder tônico e excitante, de efeito purgativo quando aplicadas internamente,
aconselhando-as para enfermidades do tubo digestivo, de pele, paralisias e reumatismos,
atonia e cloroses, entre outras.76 O Dr. Ignacio Moreira Passo foi nomeado médico das
águas do Cipó pelo governo, que mandou construir casas para abrigo e conforto dos
doentes.

O intento de organizar aqueles banhos ocorreu sob os moldes crenoterápicos.


Essencialmente, a crenoterapia é uma outra maneira de ver as águas termo-minerais, em
comparação com a anterior, que, como se percebe pelos exemplos e pelas datas, coexistem
no século XIX. Na época se cogitava um estabelecimento balneário luxuoso, para competir
com aquelas européias, francesas e alemãs.77 Porém em 1843 o vilarejo tinha apenas duas
casas do governo, e alguns casebres de palha nas cercanias, e mesmo as instalações
“crenoterápicas” eram precárias: “o banheiro constitue uma escavação superficial, que mal
acommoda dous indivíduos, coberto por uma palhoça de licoriseiro”78. Seu público era de
estrato mais pobre, pacientes “pardos”, “criolos”, “cabras” – isto é, todos mestiços.79

Ao longo de todo o século XIX não houve a feição elitizada da crenoterapia, o perfil de
estância balnear mais sofisticada, que não se realizou ainda que o governo provincial
repetidamente apontasse para essa necessidade. Porém a articulação com Salvador, com
os banhistas em potencial daqui, não está clara. A jornada para o Cipó era muito difícil, e o
grande gargalo para o deslanche daquele lugar como estância, aos moldes de Poços de
Caldas. Tinha uma atração regional, porém o enlace com Salvador não aconteceu.

9.4. Os Banhos de Mar


O banho de mar surgiu na literatura como banho salgado. O de fontes e poços será
naturalmente o banho doce. E aquele sob o império da saúde. Exploramos aqui a
possibilidade de ter havido um banho popular, este de feição mais lúdica, nas áreas
litorâneas.

Os escravos eram limpos com banhos de mar.

Silva Lima fala em lavagem de negros como de animais em fontes, a Fonte das Pedras,
“logar de preferência para lavar cavallos e banhar negros sarnentos”80, aparentemente
escravos.

Higiene e cura mesclavam-se, dada as doenças de pele e sujeira. O mesmo se vê, com
mais frequência até, nas águas dos portos. Os escravos aportavam bastante maltratados
pela penosa viagem, sem o mínimo asseio, e com as enfermidades correspondente a tais
condições. No Cais do Valongo, Rio de Janeiro, testemunhou Rugendas, da condição

74
SILVA, 1940.
75
AMARAL, Braz do. História da Bahia do Império à República. Salvador: Imprensa Official do Esado, Rua da Misericórdia, n.1,
1923, p.92.
76
MONIZ, 1923.
77
BRITTO, 2002, p.235.
78
AMARAL, Braz do. In: SILVA, Ignácio Accioli de Cerqueira e. Memórias Histórias e Políticas. Vol.VI. Mandadas reeditar e
anotar pelo Governo deste Estado. Annotador Dr. Braz do Amaral. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1940, p.164.
79
BRITTO, 2002.
80
SILVA LIMA, 1899, p.15.

427
miserável com que os escravos chegavam da penosa travessia.81 Em Pernambuco,
Tollenare fala do banho de mar como meio de limpá-los. Rugendas mencionara o mau-
cheiro, o que se repetia no Recife: “empestam o bairro todo, tanto quanto repugnam a vista
pelas pústulas e outras moléstias de pele de que um grande número está afetado”, por isso
que os conduziam aos banhos todas as manhãs.82 As doenças de pele eram recorrentes
entre os negros recém-trazidos. “Sarna” era termo empregado popularmente para toda sorte
de doenças de pele: “os negros trazidos d´África desembarcavam cobertos de uma ´sarna
pustulosa´”.83 E para as sarnas era habitual receitar o banho de mar.

Algo similar é narrado por J.C. Baud na Bahia, em Água de Meninos.

Um dos armazéns, por sinal, situava-se nas proximidades da casa que eu e


o senhor Ver Huell arranjamos defronte a praia, em Água de Meninos. Duas
vezes ao dia testemunhávamos aquelas adoentadas, emaciadas e
torturadas vítimas da violência e da ganância, homens e mulheres
misturados de forma promíscua, serem conduzidas diante de nossa casa
para tomar um purificante banho de mar; a maior parte delas coberta
apenas por escamas de pele esbranquiçada que, com uma faca de
madeira, era raspada enquanto os coitados permaneciam dentro d´água.
(HUELL, 2009, p.290).

Baud reconhecia que o método funcionava, que em duas semanas a cor normal retornava à
pele.

O banho mínimo não se faria com a água potável das fontes da Cidade Baixa, como a de
Água de Meninos, destinadas à aguada dos navios. O uso da água do mar era a medida
mais prática, tanto que também eram lavados nas águas doces do Dique. Contudo podemos
antever uma virtude salutar própria, intrínseca, bem-vinda na situação.

Um banho de mar dos trabalhadores do mar, do Porto e arredores, ocorria. A edição de 13


de maio de 1848 d´O Mercantil o denunciava, e como esses banhistas escapavam à
polícia.84 Por ora, vejamos estes como equivalentes aqueles outros nos lagos e rios da
cidade, como forma de asseio e refrigério. Embora possam ter ganho outra conotação.

9.4.1. Um Banho de Mar Popular


Será possível, no entanto, haver um banho popular marítimo, similar em forma e conteúdo
ao banho dos garotos nos rios da cidade, porém fora do radar, que escapou aos registros
mais consistentes? É plenamente verossímil, até por conta das águas mais tranquilas da
Baía de Todos os Santos, e pelas escassas menções a esse banho nos rios e lagos
soteropolitanos. Mas qualquer dúvida é dirimida com este testemunho de quem viveu na
cidade. Em 1850:

Os pretos, aqui, parecem nadar como se fôssem anfíbios; pode ver nas
praias grande número de crianças brincando e praticando a natação entre
eles, durante horas a fio, e aprendendo rapidamente a cortar as águas
arrojadamente. Uma das maneiras de nadar é deveras original: um braço
atirado para a frente, acha-se sempre fora da água e, alternando com o
outro, levando ou trazendo a água para o nadador; a cada movimento o
corpo sai um pouco da água. Esse método é positivamente mais rápido de

81
RUGENDAS, s/d, p.234.
82
TOLLENARE, 1956, p.141.
83
SANTOS FILHO, Lycurgo dos. História Geral da Medicina Brasileira Vol.1. São Paulo: Editora Hucitec/ Editora da
Universidade de São Paulo, 1991, P.203.
84
Apud REIS, 2019, p.33.

428
que o estilo comum de natação, mas parece ser mais difícil a aprender e,
também, mais cansativo. (WETHERELL, s/d, p.56).

Esta é a mais importante fonte de informação sobre o assunto. Havia um banho lúdico,
popular. Nesse banho, crianças. Crianças, e as mesmas quando adultos, sabem nadar, e
passam-se horas a fio assim. Pelas praias, em grande número. Decerto aquelas do entorno
da área portuária, como Jaqueira e Pedreiras, e na Península de Itapagipe. Descrevia, por
último, a sua técnica do nado, que lhe parecia singular. Naquele então, as classes letradas
da Europa eram versadas no nado de peito. Esta maneira tem similaridades com o nado
crawl, técnica introduzida décadas depois, por inspiração do nado de tribos ameríndias.

Figura 208 – Praia das Pedreiras. Fonte: CEAB.

Figura 209 – Praia das Pedreiras. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Embora no postal apareca como
Praia da Jaqueira, o antigo Cais da Jaqueira era mais adiante, a sul.

429
Figura 210 – Praia das Pedreiras. Fonte: Instituto Feminino da Bahia. Estas pequenas praias, no sopé
da Montanha entre a Gamboa e o Porto, prestavam-se para o banho de mar popular, ligado ao
ambiente de trabalho portuário e aos “moleques” de rua.

Esse banho poderia ser também dos adultos?

Uma sugestão está quando Parish Kidder e J.C. Fletcher falam sobre a temporada de
banhos no Rio de Janeiro, de novembro a março, em torno da Praia do Flamengo, com uma
série rebuscada de procedimentos. Às sete horas da manhã, via as cabeças das senhoras
nas águas, acompanhadas das mucamas, também ao mar.

Em noites de luar o mar está animado com manchas negras, que são as
cabeças dos escravos da vizinhança, que chapinham e gritam e riem para a
alegria de seus corações. Todos eles nadam extraordinariamente bem, e é
um prazer ouvir suas vozes felizes tão alegremente como se não
conhecessem o sofrimento. (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.90).85

As mucamas acompanhavam suas iaiás, mas à noite todos, tinham sua hora e seu espaço
para se divertirem no mar, esbaldando-se e impressionando o viajante por sua habilidade.
Se tal banho ocorresse na Vitória, seria no seu porto, palco de encontros amorosos dos
escravos na fonte. Seria ainda mais fácil que fosse naquelas mesmas praias dos banhos
dos moleques.

Naquela região algo similar é narrado, décadas depois, no romance Jana & Joel. Jana,
menina de Itaparica, é apadrinhada por uma família de posses que, apiedados da penúria
de sua família, a incorporam como parte do serviço doméstico em um sobrado situado à
Calçada do Bonfim. O quintal murado tinha caramanchões, piso de conchas e um portão de
85
On moonlight nights the sea is alive with black specks, which are the capita of the slaves in the vicinity, who splash and
scream and laugh to their heart´s content. They all swim remarkably well, and it is pleasant to hear their cheerful voices
sounding as merrily as if they knew not a sorrow. (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.90).

430
ferro gradeado para a praia atrás, de onde se via o porto ao longe.86 A personagem assiste
aos banhos matinais, que seguramente ocorriam no começo da manhã, antes do sol
levantar-se a pino.

Continuava a passear com o menino pela praia, e vendo as banhistas toda


manhã tinha desejo de ser uma delas. Falou à Madrinha. Disse que se
sentia mal com a água doce, que estava acostumada aos banhos de mar. A
Madrinha permitiu-lhos.

Todas as tardes, ao escurecer, ia atrás do viveiro, despia-se e enfiava os


calções de baeta azul. Uma criada de gomar lhe seguia os passos até à
praia e ficava de plantão, esperando que ela acabasse as demoradas
imersões e natações. (MARQUES, 1976a, p.79).

Ia à noite, por trabalhar ao longo do dia. O trecho recortado insinua que se tratava de
imitação servil, de alguém de um estrato mais baixo aspirando ao conforto de outras
classes. No romance a menina tinha já o costume de banhar-se à noite em Itaparica, entre
os barcos aportados. Xavier Marques entende como normal o banho como um deleite no
mesmo ambiente de trabalho. Jana fazia demoradas imersões e nadava, de um jeito não tão
recolhido como seria dos timoratos banhistas de costume. Sendo ilhoa, e crescendo entre
os trabalhadores do mar, a personagem estaria à vontade naquele meio. Essa tangência e
tensão entre distintos meios sociais é parte da novela. Mas é um banho solitário, e não o
recreio dos serviçais ao final do “expediente” de Botafogo. Até que ponto a descrição
ficcional alude a um banho popular efetivo?

Para ela, que prazer voluptuoso, indefinível, era esconder-se em longos


mergulhos debaixo da bruma líquida, refrigerante e penetrada pelas
refrações maravilhosas do luar, a fugir em sonho para as praias do poço,
em busca de Joel, a quem imaginava transformado em peixe também
sulcando aquelas massas profundas, ao seu encontro!... (MARQUES,
1976a, p.80).

A natação e imersão são uma descrição, ainda que superficial, do que fazia à água. Não era
a busca pelos choques bruscos na água rasa. Até porque ali não havia ondas. O banho era
voluptuoso: Xavier recai nos códigos já denunciados nas poesias. A questão é que a figura
poética não necessariamente coincide com a sensibilidade do banhista real. Pelo menos
não dos iletrados, que não tinham tais poesias em mente quando caíam na água. O
sentimento estaria embrionário, mas não com todas as tintas daquela volúpia.

Uma segunda informação certeira: a morada na Calçada. De onde se via o porto, com seus
vapores e saveiros, uma algaravia de naus, e a vista de Itaparica. E, tão importante quanto:
sem vista para o mar. Naquela direção era o quintal, tratado com esmero comum aos
quintais prósperos, incluindo aviários. Os quintais eram palco de atividade humana: ouviam-
se os seus sons. Ademais, eram abertos à praia.

Assim, quando se tomava banho? O usual e certeiro era o banho matinal, naquela época. O
da personagem, e portanto mais incerto, era noturno. A volúpia da personagem é antes de
tudo liberdade literária.

Tudo deve ser visto cum grano salis. Xavier Marques descreve um tempo posterior, onde os
proprietários dos sobrados se banhavam nas praias vizinhas. Qualquer corrente subterrânea
do banho popular aí se entronca com a imitação das classes altas, e com o uso do mesmo
espaço, embora em horários distintos, e provavelmente de maneira muito diferente.

86
Cuja descrição textual está no Cap. 5.

431
Do mesmo autor, outro episódio envolvendo um banho de mar aparece, no O Sargento
Marques, que se passa nas guerras de independência, em 1823.

Certa manhã caminhava a esmo pelo baixio de noroeste, acolá, na Ponta


das Baleias. Era de vasante a maré e o sol despontava. Uma rapariga em
trajos de banho descia a passos de garça para a praia. Ele viu-a mergulhar
as pernas, tímida e ardilosa, com espasmos de frio, e ir pouco a pouco, se
escondendo n´água, até perder o medo e lançar-se de bruços naquele seio
prateado e líquido que já resplandecia aos clarões matutinos. Seguiu. Mais
adiante parou e volveu os olhos atrás. Ela continuava aos abraços, abraços
violentos com o mar; e o mar, fresco e túmido, lhe sorria como um velho
enganador. Ainda uma vez marchou e tornou a voltar-se para ver. A moça
avançava agora, destemida; avançou e meteu-se n´água até a garganta –
Oh! Temeridade! Quando ele quis avisá-la já ela agitava os braços e gritava.
Estava no perau, atolada, agarrada pelos pés. Certo disso apressou-se,
correu, lançou-se a nado e foi cingi-la fortemente pelos ombros, no
momento em que o perau, sugando-a mais um palmo, lhe fazia beber a
grandes sorvos. Alcançou a praia; mas a banhista, quase sem sentidos,
deixou-se cair mole na areia. Carregou-a até a porta de casa, bem satisfeito
com essa inesperada fortuna de salva-vidas. Viram-no passar, e acudiram
com louvores ao seu ato. A moça era filha de uma ilhoa com um João
Português. (MARQUES, 1976b, p.5).87

A prática de banhos, mencionada apenas uma vez, por uma mulher que morava ali. O
banho solitário, o banho com traje próprio, na água fria, nas primeiras horas da manhã. Um
pescador a salva do perau. Para a época de Xavier Marques, podia ser. Fazia sentido na
Independência? Não seria anacronismo, o traje de banho? Que o pescador tivesse a
habilidade necessária para o resgate, isso era certo. Que uma ilhoa fosse banhar-se, ainda
mais sozinha, era bastante improvável.

João Varella, ao descrever um Rio Vermelho antes do veraneio, fala apenas dos banhos em
fontes, reservando à praia outros usos.88 Conforme dizia Licídio Lopes, ao menos para o
século XX, depois da imersão nas águas milagrosas da gruta de São Lázaro, começava a
parte mais propriamente mundana do evento: “depois vão para a praia, tomam banho,
fazem festas, sambas, levam comidas, bebidas, espécie de um piquenique; passam todo o
dia, só vão para a casa à noite”.89

9.4.2. Os Banhos Salgados


Neste caso, para este hábito mais moderno, do banho oceânico terapêutico, do valor
explícíto das águas salgadas e do choque das ondas, a proveniência é claramente européia,
com epicentro na Inglaterra.

Porém, qual a incidência dos estrangeiros na cidade a esse respeito? Isto é, banhavam-se
nas praias de Salvador, servindo de exemplo franco?

Tollenare, viajante francês, na década de 1810 tinha o costume dos banhos de mar no Porto
da Vitória. Era um banho solitário, um tanto contemplativo, que não era hábito
compartilhado, sequer com conterrâneos ou estrangeiros de qualquer outro lugar, quanto
mais baianos. Tomava banhos também no inverno: as chuvas não eram constantes a ponto
de impedi-lo.90 Perto da fonte, já mencionada, descreve a composição geológica, para poder
explicar a formação, a partir da ação do mar, de

87
MARQUES, Xavier. O Sargento Pedro (tradições da independência). 3ed. São Paulo: GRD/ Brasília, INL, 1976b.
88
VARELLA, 1935, p.92.
89
LOPES, 1984, p.99.
90
TOLLENARE, 1956, p.266.

432
escavações bastante vastas recobertas por abóbadas pouco espessas
ameaçadas da mesma destruição. No entretanto estas abóbadas formam
grutas, ora, secas, ora inundadas segundo o refluxo e o fluxo. São asilos
encantadores contra o calor do sol. Uma destas grutas, muito irregular, sem
dúvida, e mais ou menos embaraçada, tem, entretanto, 25 pés de
profundidade sobre a 10 de largura variante; quando o mar deixa em seco o
seu solo de areia, pura, a altura é de cerca de sete a oito pés.

Aproveito o momento em que tem de 3 a 4 pés d´água, e quando o calor é


asfixiante, para ali gozar do prazer de um banho. O mar vem bater com
ruído de encontro à parede posterior da gruta, quebra-se e, por efeito do
remoinho, penetra por diversas fendas neste novo palácio de “Anfitrite”,
proporcionando ao banhista duchas tão graduadas quanto benéficas aos
músculos, cuja elasticidade a transpiração incessante tende a enfraquecer.
(TOLLENARE, 1956, p.300).

O depoimento dele fala sobre seus hábitos, mas também se silencia sobre outros
estrangeiros e, sobretudo, sobre os baianos. Novamente, vale cotejar com sua descrição de
Recife, onde tomara banhos de mar com gente local, “à beira-mar nas noites claras, e nos
proporcionamos o prazer de entrar e sair da água várias vezes em um quarto de hora”,
inteiramente despidos, e relata, a menos para ele, uma certa sensualidade, onde a “alegria é
sempre intensa e o prazer sempre novo”91. Nada disso retratou na Bahia.

Ver Huell, viajante holandês, em estadia forçada na Bahia, fala do desejo de tomar um
banho de mar em Montserrate:

Quando o serviço nos permitia, aparelhávamos a nossa grande chalupa e


realizávamos passeios à vela na baía, sobretudo no final da tarde,
atravessando a refrescante brisa marinha. Em uma destas ocasiões,
apontamos a proa em direção à península de Montserrat, situada bem à
nossa frente; aquela região, dotada de aprazíveis colinas, inúmeros
coqueiros, casas de campo e uma igreja, cujos elegantes torres
despontavam acima do escuro arvoredo, já há algum tempo havia
despertado a nossa curiosidade. Deslizando por entre as rochas que
existiam ao longo da costa, guiamos a nossa veloz chalupa pelas águas do
mar cristalino que, ao espumar mansamente sobre a areia de uma praia
coberta com soberbos cactos floridos, nos convidava a tomar um banho.
(HUELL, 2009, p.127).

Era o entretenimento de um punhado de colegas, parte de uma tripulação forçada a


permanecer em Salvador por tempo indeterminado. Repetiu a jornada no dia seguinte,
mesmo fim e mesmo lugar, com dois amigos apenas. Em outro momento, numa excursão a
Itaparica, em “praia bastante aprazível, tomamos um refrescante banho de mar e, em
seguida, deitamo-nos para descansar até que o almoço ficasse pronto”.92

No caso destes dois testemunhos, Tollenare e Ver Huell, eram homens que residiam aqui e
com tempo livre. É sintomático que inclusive o relato dos visitantes não abunde no banho de
mar. Ao contrário, são pródigos em excursões, passeios pelas redondezas, subúrbios,
roças, e algumas jornadas distantes específicas, como ao Rio Vermelho e Bonfim. Mas não
ao mar. E, fundamental, não era o banho de Tollenare e o de Ver Huell e companheiros um
banho de enfermos.

91
TOLLENARE, 1956, p.130.
92
HUELL, 2009, p.218.

433
Antônio Risério sustenta seu argumento da influência dos estrangeiros a partir do exemplo
de Tollenare, que é quase único, fazendo par com o de Ver Huell.93 A outra “prova” são os
“piqueniques na beira do mar”94 mencionados por Wetherell. O problema é que não fora à
beira-mar, mas no topo do Outeiro de São Lázaro.95 Robert Dundas fala de um mercador
britânico que pretendia comprar aquela casa com a expectativa, não realizada, de banhar-se
regularmente na praia abaixo.96

De toda sorte, não havia essa articulação entre as excursões e o banho de mar, tampouco
eram excursões comuns as litorâneas. A rigor, não encontramos uma sequer. Mesmo os
estrangeiros se deliciavam passeando nas roças cultivadas, nos seus jardins, vendo a
vegetação tropical, as borboletas, os colibris. Mesmo de propriedades próximas do mar.

Encontramos, em citação explorada em capítulo anterior, a prática do veraneio pelo Rev.


Edward Parker, figura de destaque da comunidade britânica na cidade.97 Provavelmente
outros tantos repetiam o feito. Isso fora nos anos 1840, quando já tínhamos, pelos anúncios
de jornal, consolidada essa atividade, como valor imobiliário, por uma ampla faixa do litoral,
mesmo daquele mais próximo do porto.

O exemplo imediato, portanto, se vê bastante enfraquecido.

Achamos três hipóteses da cadeia histórica e social pela qual o banho de mar, a
hidroterapia culta, se instalou na Bahia.

A primeira é de Gilberto Freyre, que atribui aos ingleses, no rol de profundas mudanças que
induziram no modo de viver brasileiro, por imitação. No caso, do banho de mar, e mesmo de
residências relacionadas com essa prática.98 A hipótese de Freyre é geral, abrangendo
Salvador, a partir do seu interesse pela Civilização do Açúcar, e do uso de dados da própria
Bahia para sustentar suas teses a respeito. Essa teoria é repetida, para o caso exclusivo de
Salvador.

´Estrada do Farol´, como aparece registrado, foi o início do ´arrabalde da


Barra´, local de veraneio para os moradores da ´cidade´, e de banhos de
mar para ingleses que, com tais práticas, ainda mais faziam crescer a fama
de excêntricos. (TEIXEIRA et al, 1978). 99

A segunda é de Thales de Azevedo, em obra clássica sobre o assunto, que incide na


conhecida teoria sociológica da difusão dos hábitos, em círculos concêntricos crescentes, a
partir dos andares superiores da hierarquia social.100 Daí enfatizar as iniciativas da Família
Real. O rei D. João VI tomava banhos na praia do Caju, no Rio de Janeiro, como também
em São Domingos, Niterói.101 Debret fala que Dona Carlota Joaquina habitou o chamado

93
Em publicação não traduzida até a época da obra de Risério, e cujo original, em idioma não tão acessível, foi descoberto por
Van Holthe, em suas próprias pesquisas.
94
RISÉRIO, 2004, p.483.
95
Como fora visto no Cap. 4, a partir de referência de Robert Dundas (1852, p.219).
96
DUNDAS, 1852, p.219.
97
No Cap. 9, o episódio narrado por Parish Kidder (1845a, p.23).
98
FREYRE, 1948, p.217.
99
TEIXEIRA, Cid; TEIXEIRA, Cydelmo & MARCONI, Rino. Memória Fotográfica. In: A Grande Salvador – pose e uso da terra.
Governo do Estado da Bahia/ CEDUR, 1978. Não encontramos nada que endossasse a afirmação aí descrita: de ser banho
de mar de ingleses, e de sua fama de excêntricos, embora esta fosse verossímil.
100
Nesta área específica, quem desenvolveu melhor esta hipótese, refinando-a com uma série de conceitos importantes, foi
Marc Boyer (História do Turismo de Massa. Bauru: EDUSC/ EDUFBA, 2003), a partir da clássica abordagem sociológica de
Gabriel Tarde sobre a Moda.
101
AZEVEDO, Thales. A Praia – Espaço de Socialidade. Salvador: Universidade Federal da Bahia – Centro de Estudos
Baianos, 1988. Pedro Calmon, em seu O Rei do Brasil (apud AZEVEDO, 1988), acha que foi uma tentativa de reproduzir
uma prática que o rei vira na Inglaterra, em Brighton (como visto antes). Não seria de todo estranho. Foi D. João VI quem
introduziu o termalismo no Brasil, promulgado em decreto real em 1818 (QUINTELA, 2003).

434
Paço da Rainha Velha, no Botafogo, para banhos de mar, bairro onde também se banhava
Carlota Joaquina.102 O papel difusor destes exemplos é incontestável.103

Antônio Risério elencou a seguinte cadeia: o Rio de Janeiro imitou a França, a Bahia imitou
o Rio de Janeiro, somada à influência dos estrangeiros residentes, vivendo “quase sempre”
na Estrada da Vitória.104 Sob outro ângulo, a partir da praia, como lugar preenchido de um
conteúdo dado pelos significados e atividades da sociedade de cada momento, diz que
houve primeiro uma praia indígena, seguida de uma praia mestiça. Porém, como espaço
lúdico coletivo, emerge somente a partir da elite local, “no rastro do grupo de estrangeiros
que aqui moravam”.105

A questão de fundo é que os caminhos da imitação e da propagação são muitos, e


simultâneos.

Ainda mais quando não se trata apenas de um pequeno sistema de círculos concêntricos, à
maneira de um sistema solar. Imaginemos um sistema onde cada planeta, por sua vez,
tenha seu conjunto de satélites a lhe orbitar. Onde, ademais, cada lua possa interferir
naquelas de seu próprio subsistema, nas demais de outros planetas, e mesmo no curso
destes. Cada nova esfera de influência interfere nas demais, criando laços próprios.

O contato de cada parte da sociedade com as demais ocorre também de diferentes modos:
pela experiência individual, pela de familiares e amigos, pelas recomendações dos médicos
de família e outros especialistas com autoridade, e mesmo periódicos.

O hábito nasce na Inglaterra, e repete-se, com suas particularidades locais, na França, nos
Países Baixos, na Alemanha, e em outras nações, que viviam seu processo particular de
irradiação e imitação internas. Ou seja, a aristocracia britânica, a alta burguesa e mesmo as
classes médias britânicas; a aristocracia francesa, a alta burguesia e mesmo as classes
médias francesas; tal qual se repete nos principados alemães, e assim sucessivamente

Repetia-se no Brasil na sua capital, o Rio de Janeiro. Que recebera uma aristocracia
diretamente transplantada de Portugal, contando ainda com a sua própria, informada sobre
o que ocorria na Europa, sobretudo nos principais pólos de prestígio.

Repetia-se nas suas principais cidades, onde as classes altas não apenas imitavam a
capital imperial, como também os hábitos europeus. A Europa, Paris, servia como modelo
civilizacional para as capitais provinciais seja pelo filtro fluminense, seja pela experiência
direta. Eustógio Dantas defende que isso ocorrera em Fortaleza: os filhos da elite cearense,
estudando em Paris, trouxeram de lá uma série de hábitos e valores.106 O Rio de Janeiro era
dispensável, nesse caso.

Quadro que se torna ainda mais complexo na medida em que nestas cidades brasileiras se
instalaram estrangeiros ingleses, franceses e alemães.

Quando levam ao mesmo destino, estas influências vão servindo como reforço, em levas
sucessivas, sem que se possa dimensionar a precedência de uma sobre a outra, e com qual
intensidade cada qual joga o seu papel.

102
PEIXOTO, Afrânio. Livro de Horas. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1947.
103
Curiosamente, ao mesmo tempo em que Thales de Azevedo assevera que a praia era um espaço literalmente invisível para
as gerações anteriores, aposta em um fundo universal para a aproximação ao mar, de natureza congênita (AZEVEDO, 1988,
p.32).
104
RISÉRIO, 2004, p.475.
105
RISÉRIO, 2004, p.483.
106
DANTAS, 2009, p.28; 2011, p.31.

435
O exemplo europeu saía inclusive nos jornais, desde sua aparição em solo brasileiro. Em
1818 periódico baiano informou que a realeza europeia tomava banhos: “pela Gazeta de
Paris consta que o Principe Talleyrand havia partido para Napoles para tomar banhos”.107
Não seria impensável sequer a imitação por um “ouvir dizer”, sem transplantar o conjunto
dos hábitos, das técnicas, das instituições. Aqui seria um dos casos daquela
descontinuidade que a História aparentemente apresenta, mas que o registro documental, a
literatura – aqui, a notícia de jornal – permite a comunicação entre os distantes, e aumentar
o horizonte de possibilidades dos brasileiros da época.

O que permite implodir a veracidade dos relatos de Freyre, Azevedo e Risério, e introduzir
uma gama mais intrincada, é um relato específico. E suficientemente rico e paradoxal para
que exija uma reflexão a mais.

Durante as encantadoras noites que passávamos com o generoso Almirante


de Castro, encontrávamos de vez em quando a Condessa da Ponte, a
jovem e graciosa esposa do governador, e também certa Dona solteira, que
nem juventude e nem beleza possuía, mas que nem por isso tinha menos a
altivez e o orgulho característicos de uma donzela de la vieille roche. [...]

Em uma destas ocasiões, ficamos sabendo que uma bela chalupa de toldo
que, eventualmente, de manhã cedo, víamos passar remando ao lado do
nosso brigue, era justamente a chalupa na qual a senhora Condessa da
Ponte dirigia-se com algumas damas para o cabo de Santo Antônio, para ali
tomar um banho de mar. Dali em diante, sempre que notávamos aquela
embarcação aproximando-se, mandávamos os nossos músicos subirem ao
convés em sua homenagem. Uma mão acenando com um lenço branco por
entre as cortinas do toldo era um sinal de que a esposa do governador
sensibilizara-se com aquele nosso gesto atencioso! (HUELL, 2009, p.131).

A Condessa da Ponte era D. Maria Constança de Saldanha Oliveira e Daun, casada desde
1796 com o 6º Conde da Ponte, João de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes de Brito,
governador da Província da Bahia, que veio a falecer pouco depois, em 1809. Ambos
portugueses.

Deve-se notar: damas iam nessa jornada. Poderia Ver Huell referir-se apenas às damas de
companhia da Condessa da Ponte, ou a amigas, a outras senhoras da oligarquia local. Era
um hábito, portanto, ao menos de uma parte da elite da Província. Ver Huell fala em uma
rotina. Inverossímil que tais senhoras fossem para a Barra sem seus escravos e sem suas
damas de companhia. Porém é fundamental apontar que eram mulheres que o realizavam,
que alavancavam a iniciativa. A chalupa ia fechada, com toldo e cortinas. O holandês
conhecera a proprietária antes e soubera por outra fonte de sua presença ali. Apesar do
recato na jornada, forçosamente estaria exposta na praia. Naquele lugarejo os pescadores
também trabalhavam nas primeiras horas da manhã. Talvez fossem considerados parte da
paisagem, talvez lhes fossem indiferentes, como eram os escravos diante de quem se
despiam. Ainda assim, seria uma exposição significativa. A cidade mourisca, de mulheres
trancafiadas, destoa em algo do quadro que emerge dessa cena.

Pode-se conjecturar que era algo tremendamente excepcional. Mas uma elite é,
evidentemente, uma exceção, o topo de um pináculo. E o que temos aqui são as mulheres
da elite, do ápice do poder na província, em jornadas constantes, de um lado a outro da
cidade, para fins do banho de mar e do seu próprio recreio.

107
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.75, Sexta-Feira 18 de Setembro de 1818. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1818.

436
A jornada ocorria nas primeiras horas do dia, em uma cidade que, sem iluminação pública
moderna, e com interiores domésticos esquálidos em termos de vida íntima, punha-se a
dormir muito cedo. Ao menos as classes altas.

A viagem em chalupa a uma localidade de pescadores dificilmente poderia interceptar o


cotidiano de um estrangeiro visitante alojado em um hotel no Largo do Teatro, ou em uma
chácara no alto da Vitória. Caberia a oficiais da Marinha holandesa ociosos em um navio
aportado. Daí a excepcionalidade do relato.

A iniciativa aconteceu bem antes do que se costuma pensar para as praias baianas.
Contudo lembremos que a Condessa vinha do mesmo país que seu rei, D. João VI. De onde
ele trouxera o seu hábito, também ela poderia haver trazido. Seus modelos de
comportamento decerto eram diretamente os europeus. Lá o famoso discurso médico
estava instalado, e era bastante conhecido. Como as novas danças, os bailes galantes, as
damas da elite, portuguesas de origem, traziam para o Brasil os banhos salgados. A
situação descrita por Ver Huell ocorrera no momento mesmo em que D. João VI se instalara
no Brasil. Embora já houvesse ingleses na cidade, não era ainda colônia expressiva. Isto se
daria com a Abertura dos Portos.

No Idade d´Ouro do Brazil de 11 de outubro de 1811, em um dos constantes anúncios de


casa para vender, anunciava-se algo singular:

Está para se vender, ou rifar huma casa de campo, de pedra e cal, nova, e
moderna com beiramar da parte do Papagaio, em Itapagipe, sitas no lugar
mais agradavel denominado Porto dos Tainheiros; tem seu sitio com
bastantes larangeiras, e alguns coqueiros; o porto melhor para banhos
salgados, e para se edificar lambique [...]108

A informação é crucial por vários aspectos. Em primeiro lugar, a casa é chamada


claramente de casa de campo: não é uma tradução de um texto estrangeiro, ou uma
compreensão equivocada. Entende-se como uma segunda residência. Depois, foi o único
anúncio até agora encontrado nesse periódico, embora seja uma constante o anúncio de
casas. O atributo da proximidade ao mar não era tão raro; que o seu vendedor assim a
usasse, ou vislumbrasse um interessado com esse hábito, é algo digno de nota.

A expressão é evidente: “o porto melhor para banhos salgados”. Os banhos salgados


entram em cena. Elemento fundamental para venda – não é bem o popular. Não é um
hábito arraigado expressivo ou singular de uma aristocrata. Tollenare, quando foi, foi
sozinho, e não viu ninguém, em local de estrangeiros e gente abastada. Também
significativo é o lugar, de águas calmas, ao qual retornaremos.

Em 1821, “quem quizer alugar huma roça no caminho da Barra, parte do mar, com boas
proporções para banho salgado, e doce, e casa de morada”.109 Por “caminho da Barra”
poderia ser a atual Ladeira da Barra, sendo a praia a do Porto da Vitória. Esta é uma notícia
importantíssima, porque assinala, pela primeira vez, para a Barra, os banhos salgados.

O banho de mar terapêutico, talassoterápico, é uma corrente de superfície que se inicia com
espantosa precocidade, porém muito tênue. Ganha força e volume, visibilidade, apenas
depois. Era o banho salgado uma iniciativa solitária, essencialmente. Estes anúncios das
primeiras décadas do Oitocentos não são uma amostragem: são os únicos registros que
encontramos, quase doxograficamente. Isto é, se por um lado o banho era um fato que tinha

108
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.44, Sexta-Feira 11 de Outubro de 1811. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1811.
109
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.100, Terça-Feira 14 de Setembro de 1821. Salvador: Typ. da Viuva Serva & Carvalho, 1821.

437
seu público, e merecia a menção como um atributo a mais para o aluguel ou a venda de um
imóvel, por outro não era assim tão frequente.

Basta dizer que não temos uma menção sequer dos estrangeiros que por aqui passaram.
Do memorial de Silva Lima sobre os anos 1840, nada a respeito, em comparação com a
patuscada. Na obra de Xavier Marques, passada nos 1880, tampouco aparecia no quadro
do lazer de uma família de classe média.

Os primeiros registros aconteceram nas praias de Itapagipe e da Barra. No litoral atlântico


aberto propriamente, a primeira notícia que temos é posterior.

Podemos pensar que os anúncios de lugares propícios aos banhos eram uma demanda da
colônia de estrangeiros. Porém não encontramos menções de uma prática usual dos
estrangeiros antes dos moradores locais. Os relatos começam a aparecer, e não em grande
quantidade, quando encontramos consolidado nos anúncios, dos anos 1840 em diante. Da
mesma maneira, há uma reincidência na Península de Itapagipe, em especial do Porto do
Bonfim até a Ribeira, como próprio para banhos, que não era uma região caracterizada pela
predileção dos estrangeiros.

E não seria algo de todo incomum a pessoas de posses. Por exemplo, na segunda década
do sec. XIX, Wied-Neuwied nos fala de um proprietário de terras, o Coronel Falcão que, com
várias fazendas, passava o verão na Barra do Jucu, no Espírito Santo “para tomar banhos
de mar”110, casa que cedeu a contragosto para a comitiva do príncipe em sua jornada a
pedido do Governador.

Devemos levar em conta o quadro da Medicina da época. Farto em problemas de saúde,


escasso em diagnósticos, e com prognósticos ineficientes, o uso de todo e qualquer
expediente pelos desiludidos e desesperados, de todas as classes, era o de se esperar.
Incluindo a farmacopéia domiciliar tradicional, com elementos africanos, e o apelo aos
milagres cristãos e feitiços dos negros. Sendo algo acessível e de fácil realização
autodidata, o banho de mar seria um recurso de verossímil apelo.

Em 1838 em casa no Rio Vermelho aparecia a possibilidade bifronte de banhos de água


salgada e de água doce, a partir de uma fonte própria, além de ser uma casa bem
aparelhada (assoalho, janelas de vidro) e com roça boa, aparentemente no antigo Alto de
São Gonçalo.

- Vende-se duas roças, e uma morada de cazas, sendo as roças na Madre


de Deos, estrada do Rio Vermelho, cujas estão bem plantadas com muito
bom arvoredo; uma com caza assoalhada, 12 janellas de frente,
envidraçadas, boa fonte e banho de bica, ladrilhada de marmore, e muito
bom arvoredo, como sapotis, arvores de pão, abacatis &c. &c. A casa he
sita no alto do Rio Vermelho, optima para banhos, muito fresca, e bem
construida [...]111

Em 1839, alugava-se “uma casa terrea envidraçada, com bons commodos, e propria para
banhos, na povoação do Rio Vermelho junto à igreja, da parte do mar”112. E em 1840
vendia-se uma casa, “a melhor casa que ali tem para banhos de mar, por serem estes no
quintal da mesma casa”.113 Isto é algo interessante: essa configuração se alterou um tanto

110
MAXIMILIANO, 1958, p. 143.
111
O CORREIO MERCANTIL n.540, Sábado 25 de Agosto de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.
112
O CORREIO MERCANTIL n.259, Quarta-Feira 4 de Dezembro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1839.
113
O CORREIO MERCANTIL n.102, Sábado 9 de Maio de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1840.

438
pela abertura da rua atualmente chamada Rua da Paciência. Era mais usual, então, ter
casas com quintais ao mar, o que lhes permitiria um banho mais reservado, quase uma
extensão do recesso privado.

De aqui em diante, vamos identificar estes banhos salgados por local. Continuando com o
Rio Vermelho, em 1847:

- Vende-se uma casa de morada no Rio Vermelho, com commodos para


uma familia – salla fechada, dous quartos grandes, salla de jantar, cosinha e
varanda, com quintal feichado! He casa alta, e bem edificada – com 3
degráos à entrada da salla – e frente para o mar.114

A distância em relação ao mar provavelmente relaciona-se com os banhos nascentes.

Entre a Barra e o Rio Vermelho a ocupação era muito rarefeita. Mais antiga, o outeiro de
São Lázaro e os pescadores no Camarão. Pois ali, em 1839, encontramos este anúncio: “no
Camarão há duas casas grandes de aluguer com muito bons banho de mar, e doce de bica
tudo quase ao pé da porta”.115 E em 1845: “casas por modico preço, com bons commodos
para famílias, alugao-se no sitio do Camarão, entre Barra e Rio Vermelho, onde há banhos
do mar, e d´agoa doce”.116 Ou são a mesma propriedade ou é relevante oferecer uma
variedade de interesses, do banho de água doce (em bica, no caso da primeira chamada) e
do banho salgado, no mar. Entre ambos os anúncios, encontramos ainda um terceiro, sem
esse caráter ambidestro: “no Camarão há uma casa com commodos para uma familia, e
bons banhos de mar”.117 Esta notícia precisa ser esmiuçada. Mostra, naquela região erma,
um processo de transformação do solo, ou ao menos a sua intenção: em vez da renda vir da
produção agrícola ou extrativista, viria da benfeitoria imobiliária, as casas a alugar-se. Como
nada mais dela é anunciado, exceto “bons commodos”, serão simples. Pela estrutura do
texto, os “banhos de mar” e de água doce, uma vantagem bifronte, pode referir-se ao próprio
Camarão, como aos vizinhos Barra e Rio Vermelho. De fato, estes dois eram lugares de
banho àquela altura, exigindo uma certa caminhada. No Camarão seria improvável.

Explicitamente na Barra “vende-se uma boa casa para banhos salgados”.118 E em 1841,
“aluga-se, por um anno, uma boa casa na Barra, para banhos”119, apenas isso, assim eram
as virtudes do imóvel.

Uma ausência nos parece interessante: a Vitória. Justamente o local dos britânicos. A praia
mais próxima era a da angra abaixo, que Tollenare visitava, sem mencionar a mais ninguém
que ali se banhasse. Os moradores locais desciam para pegar água de uma fonte e suas
aventuras amorosas, apenas. Era nessa época de Tollenare, nas primeiras décadas do
século XIX, ainda a Vitória relativamente vazia de estrangeiros e, mais importante, aquela
pequena praia era um abatedouro de baleias, com os seus restos e aves carniceiras
rondando. Mas também eram as praias da Barra, anunciadas repetidamente como local de
banhos. Talvez os fins produtivos, instalados naquele porto da Vitória, que se mantiveram
enquanto cedo retrocederam na Barra, tenham sido obstáculo a esse uso.

114
O GUAYCURU n.18, 27 de Janeiro de 1850. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1850.
115
O CORREIO MERCANTIL n.232, Quarta-Feira 30 de Outubro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1839.
116
O MERCANTIL n.268, Quinta-Feira 4 de Dezembro de 1845. Salvador: Typ. de E.J. Estrella, Rua das Grades de Ferro, casa
n.78, 1845.
117
O CORREIO MERCANTIL n.266, Sexta-Feira 17 de Dezembro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1841.
118
O CORREIO MERCANTIL n.531, Segunda-Feira 13 de Agosto de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
119
O CORREIO MERCANTIL n.271, Sexta-Feira 24 de Dezembro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1841.

439
Em uma das bordas da área portuária e suas funções produtivas também se banhava.

- Aluga-se uma boa casa de sobrado com muitos commodos para uma
grande familia, dentro de uma rocinha, cita à rua do Hospicio de Jeruzalem,
com os fundos para o mar onde tem excellentes banhos salgados, e outras
muitas commodidades; aluga-se com a rocinha, ou sem ella [...]120

Em 1838, um lugar inusitado se anuncia, na face norte daquela zona portuária: “aluga-se
uma casa, pela festa, ou por mais tempo, novamente retocada, e pintada com muito aceio,
situada na rua do Noviciado, defronte do Forte da Lagartixa, optima para banhos de mar”.121
Anúncio provavelmente da mesma casa se repete em 1840, ainda “melhor ainda para
banhos de mar”.122 Apresenta-se como local para festas e para banhos de mar o Noviciado,
local completamente inaudito, como se fosse um prolongamento da Calçada do Bonfim. As
“festas” são sinônimo do veraneio. Na prática, está distante do epicentro dos festejos de
Itapagipe. Parece ser mais um intento audacioso de contrabandear os méritos do Bonfim e
Ribeira (banhos e festas) por vizinhança. Aquelas águas não se prestavam para nenhum
tipo de banho, por um tipo de poluição muito particular.

Fallamos do insalubre uso de lançar-se ao mar as rezes que, ou morrem no


curral, ou que no seto do desembarque expirão, ou ainda, que no curto
transito para o curral, extenuadas e desfallecidas como sempre chegão,
acabão no caminho. Raros são os dias, em que as praças de agua de
meninos deixão de receber alguns desses individuos, os quaes, com o fluxo
e refluxo da maré são carreador por todo o littoral que se estende até a
ponta de Mont-serrate, e ali ordinariamente são depositados em virtude do
saco que com esta Bahia forma a tia ponta, quebrando d´est´arte a força
que os poderia retirar. Entretanto que isso aconteça, permanecem elles
varios dias fluctuando por toda aquella extensão, expostos por um lado aos
ardentes raios do sol, que fazem desenvolver e augmentar diariamente a
corrupção, e por outro, à acção continuada da agua, que os põe em
dissolução; e vai esparzindo por aquellos areias membros [ilegível] e
pestíferos, até que finalmente a carcassa inchada, e com os fragmentos que
mais resistirão, vai embicar ao ponto a que a leva a força da maré que para
ali a rejeita, e onde a esperão famintos cães. Em quanto dura este processo
(que nunca he menos de 6 a 8 dias) ah de quem a sua sorte condemna a
passar por aquelles sitios, se não vai resignado a deixar de respirar, ou
fazel-o com difficuldade por entre o lenço que machinalmente se leva ao
nariz! [...] Não he exagerado este nosso quadro, e não faltará quem, desses
sitios, atteste a veracidade do exposto, e bem assim que no dia 30 do
passado, forão lançados em agoa de meninos, de um mez, 15 bois; muitos
dos quaes ainda se achão em viagem, para a sua ultima mansão, a
hospitaleira plaga de Mont-serrate; além de alguns mais que nos dias
subsequentes tiverão o mesmo destino, e outros, como um que se achava
na baixa da ladeira de S. José no dia 3 do corrente à tarde, e que, já
dividido, era levado em cestos por pretos, naturalmente para ser lançados
ao mar; pois não suppomos, que alguem tão despiedado e sordido, se
anime a impingir semelhante carne ao publico, com quanto algumas vezes a
que apparece nos açougues não possa ser peor.123

120
O CORREIO MERCANTIL n.107, Sábado 22 de Maio de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.
121
O CORREIO MERCANTIL n.612, Sexta-Feira 23 de Novembro de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L.
Velloso e Comp., 1838.
122
O CORREIO MERCANTIL n.102, Sábado 9 de Maio de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp.,
1840. Quem vendia este imóvel, curiosamente, era o mesmo que vendia aquele do Rio Vermelho com quintal à beira-mar, ou
ao menos se indicava o mesmo endereço para tratativas: o n.48 da Rua João de Freitas.
123
O CORREIO MERCANTIL n.501, Quinta-Feira 5 de Julho de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838.

440
Chegavam a retornar, devolvidas pela maré, ao Arsenal da Marinha, o que se resolveu
apenas com o novo Matadouro Público, de 1873.124 Então, ao Noviciado, e tão distante,
banhava-se? Improvável. Porém o vendedor julgava aceitável poder anunciar tal qualidade,
e ser possível que alguém praticasse ali os banhos. Tal maneira o hábito deveria ter se
enraizado, ainda que por um público limitado.

Nas águas calmas de Itapagipe também se banhava. Ou seja, não era algo próprio do mar
batido, da fúria das ondas, como a talassoterapia européia, e como seria no caso da
exclusividade das praias de mar aberto.

Banhava-se em Montserrate, onde não houve propriamente um processo de urbanização tal


como no Bonfim e na Calçada do Bonfim: “aluga-se ou vende-se uma boa casa em
Monserrate, optimos para banhos, ultimamente acabada, e com muitos commodos”.125

Pouco antes, na Boa Viagem, no mesmo período, era hábito também: “arrendão-se, ou
vende-se 10 braças de terreno proprio à Boa Viagem em lugar dos melhores banhos”.126 Ou,
pouco tempo depois, um outro terreno, “sitio de terras proprias ao pé da Boa Viagem, com
quatro braças e meia de frente, e setenta de fundo, muito proprio para se fazer uma
propriedade, tem agua boa dentro, e he perto do mar, que offerece vantagem para os
banhos salgados”.127

Em 1849:

CARTA.

Primo e amigo Dr. Jarreta.

Itapagipe, 31 de Maio de 1849.

Saúde e dinheiro lhe apeteço, por que também he do que careço. Dou-lhe
parte que tendo de tomar uns banhos salgados, que nos receitou o medico
Pitorra, por via da frouxidão que padeço, preferi este amável e pitoresco
sitio do Papagaio, onde me acho, ao da Calçada do Bomfim; porque, meu
primo, aqui está a gente mais à vontade, sem o luxo que ali he preciso, que
bem se pode chamar a côrte da Bahia. [...]

Seu primo e amigo fixe

Pedro Maxixe.128

O texto tem um tom humorístico no remetente e destinatário, mas não no seu conteúdo. O
banho salgado aparece aqui, nos 1840, como clara recomendação médica, a despeito da
sua ausência nas Teses de Medicina. Por certo, a mecânica da Medicina não passava tanto
pela Faculdade, e sim na relação dos médicos de familia. Terceiro, o contraste com a
Calçada do Bonfim. Ali era lugar de banhos salgados. Quarto, ali era lugar de luxo – o que
coincide com Xavier Marques, e, mais, com os relatos dos palacetes, quintas, chácaras, etc.
Ou seja, elas estão na calçada do Bonfim, naquela longa alameda.

124
LOPES, Rodrigo Freitas. Nos Currais do Matadouro Público: o abastecimento de carne verde em Salvador no Século XIX
(1830-1873). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009, p.72.
125
O CORREIO MERCANTIL n.78, Quinta-Feira 15 de Abril de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.
126
O CORREIO MERCANTIL n.225, Sábado 23 de Setembro de 1841. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1841.
127
O CORREIO MERCANTIL n.12, Segunda-Feira 16 de Janeiro de 1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso
e Comp., 1843.
128
A MARMOTA n.248, Quarta-Feira 13 de Junho de 1849. Salvador: Typ. de E. Pedroza, Rua do Pão de Ló, n.21 – A, 1849.

441
Em 1850, “aluga-se a ultima casa da ladeira do Bom fim, com commodos para familia, e
propria para banhos por estar no porto”.129 Por esse período, Robert Dundas definia o local
como principal local balneário da cidade: “as classes altas dos moradores da Bahia servem-
se dele com o propósito do banho de mar, durante os quatro meses mais quentes do ano –
Dezembro, Janeiro, Fevereiro e Março”.130

Mais adiante, no Poço de Itapagipe em 1838 se anuncia: “quem quizer alugar ou comprar
uma casa terrea, sita em Itapagipe no lugar denominado – Posso –, com frente para o mar,
própria para banhos”.131

O banho no mar como forma de manter a saúde, tonificar o corpo, em algum momento se
incorporou como possibilidade, e depois como necessidade, das Forças Armadas. Em 1835,
o Forte de São Marcelo serviu de prisão para Bento Gonçalves que, fugiu a partir da licença
que tinha para tomar banhos de mar; em uma das ocasiões, nadou para canoa próxima que,
desfraldando as velas, partiu para a Ponta do Manguinhos, em Itaparica.132 Em 1859, D.
Pedro II entendia como evidente que os banhos de mar eram necessidades dos jovens da
Marinha: “ainda não tomam os aprendizes menores [aquartelados no Arsenal da Marinha]
banhos de mar, como convém, por falta de local”.133

De toda sorte, o aparato teórico, clínico, e mesmo físico, da hidroterapia será posterior, e
será da segunda metade do século XIX.

Há uma exceção notável, porém. Dizia Hildegardes Vianna:

No meado do século passado descobriram que o mar que banhava o


povoado não era apenas bonito e meio bravo. A sua história principiou.
Alguém um dia falou que aquela maré batida tinha virtudes miraculosas.
Operava curas julgadas impossíveis. Os que sofriam de beriberi, fraqueza
nas pernas, moléstia de pele e uma infinidade de males passaram a
experimentar os milagrosos banhos salgados. E foi assim que o pobre
aldeiamento de pescadores ganhou foros de estação balneária. Deu para
prosperar. Os pescadores contaram desde então com uma verba extra, por
vezes polpuda, resultante do trabalho de levar ao colo, para mergulho, os
enfermos que vinham até a praia, trazidos em cadeiras de braços. (RIO
VERMELHO..., 1988, p.70).

Embora na obra citada existam vários depoimentos, cobrindo as primeiras décadas do


século XX, nenhum menciona nada similar. Nesse momento ninguém se banhava assim.
Vemos que Hildegardes Vianna tenta reconstituir o século XIX, e poderia basear-se, por sua
vez, em testemunhos anteriores. Carregar os enfermos seria pertinente pois várias das
moléstias a curar-se afetavam a locomoção, algumas de maneira brutal. Não seria tanto o
dipper, acompanhando a imersão do paciente, garantindo sua segurança contra
afogamentos e outros riscos, inclusive aplicando o tratamento em todos os seus detalhes.

Que o Rio Vermelho fosse já local de balneoterapia, ainda que discreta, antes dos anos
1860, pôde ser revelado apenas por documentos da época. A memória pessoal e a
transmissão oral dos testemunhos, explorado na obra supracitada e outras importantes para
a historiografia baiana do litoral, não alcançavam tal período, e apenas falavam muito
vagamente do beribéri como enfermidade tratada nas águas do Rio Vermelho. E, como

129
O GUAYCURU n.30, 11 de Outubro de 1850. Salvador: Typ. de Manoel Feliciano Sepulveda, ao largo do Pilar, caza n.96,
1850.
130
The higher classes of the inhabitants of Bahia resort to it for the purpose of sea-bathing, during the four hottest
months of the year – December, January, February, and March. (DUNDAS, 1852, p.243).
131
O CORREIO MERCANTIL n.483, Sexta-Feira 8 de Junho de 1838. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1838. O anúncio se repete no dia 11 do mês seguinte.
132
BARROS, 1934.
133
D. PEDRO II, 1959, p.52.

442
veremos, sequer fora esse lugar o preferido, ou ao menos o mais recomendado, para seu
tratamento.

Para entendermos a adoção do banho de mar em Salvador, contrastemos com outras duas
cidades.

Na primeira metade do século XIX, no Rio de Janeiro instalou-se uma empresa chamada
Fluctuante: nada mais, nada menos, tratava-se de uma barca de banhos.134 Situada diante
do Largo do Paço, era uma plataforma flutuante, com camarotes, salas de espera, piscinas
(provavelmente descobertas), e acesso por escaleres, em dois lugares, no Largo do Paço e
na ponte do Arsenal de Marinha. Garantia lugares separados para homens e mulheres, com
exceção para os casados, com banhos por meia hora, a 320 réis em 1811, e diminuindo
para 160 réis em 1815. Em 1850 havia ainda uma Barca de Banhos defronte do Hotel
Pharoux (talvez a mesma), que agora também se abria para o público infantil, com banho
gratuito até 6 anos de idade. Em 1855, ao lado desta Barca de Banhos, situava-se uma
Barca de Natação, para aulas.

Em Recife, em 1844, instalou-se também uma barca de banhos, mas nas águas do rio
Capibaribe, no coração da cidade, entre o bairro do Recife e o de Santo Antônio, com águas
salobras, oscilando ao sabor das marés, mas serena como eram os as dos rios, e protegida
dos tubarões.135

Nada similar apareceu em Salvador.136 No entanto, vimos que a aparição dos banhos
salgados foi gradual e constante, e sempre às margens dos escassos relatos que
penetravam no cotidiano efetivo, nos hábitos e, portanto, nos sentimentos despertados.
Ainda assim não foi algo inteiramente marginal.

Houve um banho de rio e lago, de água doce, dos jovens de classes médias e baixas. Isso é
inquestionável. Seria um banho onde mesclavam-se, os folguedos entre companheiros, o
refrigério do calor, a limpeza, onde um era pretexto para o outro.

Que esse banho envolvia as mulheres – adultas e jovens –, análogo a outros lugares, era
provável.

No Recôncavo e interior da Província, esse banho era mais generalizado, alcançando os


estratos mais altos, mas se valia da reserva das distâncias dos rios, sem ser tão intenso
como na Zona da Mata pernambucana, ao menos entre os terratenentes.

Os banhos de mar seriam em tudo inadequados para aquela convergência de papéis dos
rios e lagos. Na canicular, estavam em áreas hostis, abertas, enquanto o banho de rio não
raro se fazia à sombra das árvores. Se a ida à praia ocorreia nas horas mais amenas, fugia
a esse cotidiano; foram justamente as horas escolhidas para os banhos terapêuticos,
recatados. E o banho salgado não se prestava para limpeza, exceto aquela das doenças de
pele dos escravos.

Também seria quase certo o banho de mar popular diurno das crianças nas praias
adjacentes ao Porto, como na Pedreira e Jaqueira. Suas horas livres eram muitas, o

134
CAMARGO, 2007.
135
ARAÚJO, 2007.
136
Em Salvador, se não encontramos os banhos de rio com essa importância, as menções mais estáveis aos banhos salgados
ocorrem antes de Recife e mesmo do Rio de Janeiro. Porém isso provavelmente decorre mais à peneira mais fina
empregada para esta pesquisa, com um escrutínio detalhado dos periódicos da época, edição por edição, o que não ocorre
com os dois autores supracitados, até pela envergadura das pesquisas que empreenderam.

443
famigerado “menino de rua” circulava pela cidade, e não tinha cerimônias para tanto. Esse
banho popular, porém noturno e dos adultos, com uma diversão fora da jornada diurna de
trabalho, em áreas como Calçada, era provável.

Já os banhos salgados eram claramente “médicos”, com fins de saúde, para uma variedade
de enfermidades que intuímos. Porém isto se passou antes, muito antes, da documentação
mais extensa da Faculdade de Medicina. E mesmo no auge da hidroterapia, com
equipamentos específicos para tanto, não era a talassoterapia algo muito enfatizado.

Portanto, o processo de medicalização aconteceu de outra maneira. Ou pelos livros de


medicina popular, ou por imitação de outros lugares, onde o banho salgado era terapia
conhecida. Ou por um terceiro caminho, da qual temos algumas indicações.

Um exemplo de uma recomendação médica, e que se enraizara como crença difusa, está
no tratamento para a tuberculose:
Socrates julgando conveniente que o Guilhermino usasse de banhos de
mar, auxiliou-o para que fosse a uma praia tomá-los. De fato, no princípio
do ano voltou muito melhorado. Infelizmente, depois de alguns meses, foi
chamado para ver uma irmã que se achava gravemente doente de
tuberculose. Faleceu ela pouco tempo depois, e o irmão voltou
abatidíssimo. Explicou seu estado pelo desgosto e trabalho que lhe dera a
irmã, a ele muito afeiçoada, não o deixando afastar-se dela um instante. Em
poucos meses, declararam-se no Guilhermino os sintomas do terrível mal. E
ainda há quem duvide do contágio de tal moléstia! (BITTENCOURT, 1992b,
p.232).

Esse Sócrates era a versão real do Dr. Pitorra do dito humorístico mencionado. Ambos os
casos, o real e o satírico, apontavam para essa figura de difícil rastreio, que tinha como
espaço de ação a esfera familiar, mais íntima, que era o médico de família.

Sem uma trama mais densa de documentos vindos desta classe de profissionais, ainda não
articulados em torno de uma instituição mais vigorosa de ensino, radicada em solo
brasileiro, como foi a Faculdade de Medicina, e publicações próprias, ainda assim os
Tratados setecentistas apontavam para o banho como um procedimento terapêutico válido.

O Tratado da Educação Fysica dos Meninos, de 1790, de autoria de Francisco de Mello


Franco, reconhecia, no âmbito de uma preocupação com a saúde das crianças, o que
depois ganharia força sob o nome de puericultura, o papel dos banhos de água fria. Para
uma constituição ainda frouxa, a água fria seria fundamental para tonificar seus músculos e
seu reverso, a água quente, lhe seria prejudicial. Invocava-se para isso uma espécie de
experiência acumulada, contemporânea, dos países setentrionais da Europa, e histórica,
milenar, dos antigos Germanos (a partir das obras de Galeno) e Celtas (a partir de
Aristóteles), povos sabidamente robustos e habituados a mergulhar os recém-nascidos nas
águas dos rios. Curiosamente invocava também os repetidos testemunhos, alguns aqui
arrolados, dos ameríndios brasileiros, pois “consta que as mulheres immediatamente
acabão de parir, vão com seus filhos recem-nascidos metter-se na corrente dos rios. Estes
são aquelles homens, cuja força, e vigor admirarão os Europeos, e ainda hoje em dia se
admirão”.137 O tratamento da tuberculose daquele Guilhermino por banhos de mar tinha
origem remota; o mesmo Franco relembra que o Imperador César Augusto fora curado da
tísica (a tuberculose) por meio de banhos frios. O exemplo, por remoto que fosse do ponto

137
FRANCO, Francisco de Mello. Tratado da Educação Fysica dos Meninos, Para uso da Nação Portugueza. Publicado por
ordem da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa: Officina da Academia Real das Sciencias, 1790, p.24. No ano
seguinte foi publicao tratado em muito semelhante, inclusive nas recomendações pontuais, de Francisco José de Almeida, o
Tratado da Educação Fyisica dos Meninos, Para Uso da Nação Portugueza Publicado por ordem da Academia Real das.
Lisboa: Officina da Academia Real das Sciencias, 1791.

444
de vista historiográfico, estava bem presente na mente dos médicos. Fazia parte
indispensável de sua formação, até pelo sabor filológico que possuía. O Tratado ainda
atestava que, ainda que às crianças ainda não era aplicado à larga, em Portugal “milhares
de pessoas adultas, por meio dos banhos do mar, e do rio, recuperão todos os dias huma
saude vigorosa de maneira”.138 Recomendava para a puberdade, dentro de um leque mais
amplo de exercícios físicos, como a esgrima, a equitação, a corrida e a luta, e, para as
mulheres, a tonificação com exercícios, em especial os campestres.

Os que são menos favorecidas da fortuna, bem podem, lidando nas proprias
casas, fazer bastante exercicio, sem perderem todas as occasiões em que
tiverem commodidade de sahir ao campo, ou ao menos para fóra do
coração da Cidade, aonde o ar he sempre menos puro: e as que vivem na
abundancia, e na grandeza, devem variar os seus passeos, fazend-os
humas vezes a pé, outras em sege, e outras em fim a cavallo. Podem ir
commodamente passar parte do Verão no campo, e gozar nelle de toda a
sua liberdade. Com este só remedio, o exercicio, estou persuadido, que se
curaria a maior parte das enfermidades, que tanto reinão entre as senhoras:
mas quão dificil não he persuadir o trabalho a quem vive na indolencia, e
inacção ainda com o poderoso motivo da saude! (FRANCO, 1790, p.98).

Se os banhos frios às crianças era algo muito contrário aos hábitos luso-brasileiros, não era
a vilegiatura, sendo um reforço bem-vindo, uma maneira de ajustar um hábito arraigado a
uma visão terapêutico. E daí ao banho de mar ou de rio, a distância não seria grande.

No Brasil o banho salgado sequer era algo estruturado à maneira dos clássicos banhos de
mar europeus, com seus “banhistas”, os dippers dedicados a proteger o enfermo e mesmo
garantir que as prescrições médicas fossem seguidas de modo tecnicamente competente, e
pela procura do mar selvagem, aberto, com suas ondas e choque mecânico. Nem sombra
das edículas e outros aparatos, para garantir comodidade e privacidade ao banhista.

A tal ponto que vemos com maior constância, e desde muito cedo, a Península de Itapagipe,
em quase todo seu bordo, com exceção dos mangues da contracosta, ser visto como
propício para tais banhos. Itapagipe, a quintessência das águas serenas. Ainda mais se
forem visitados nas primeiras horas da manhã, quando a mudança do regime de ventos
entre mar e terra garantem o espelho d´água mais plácido possível, no Bonfim, Penha e
Ribeira. No entanto, esta atividade é adjacente a uma movimentação àquela região. Soma-
se como uma benesse, e talvez motivasse o aluguel de imóveis na Penha. Mas não seria o
caso do Bonfim.

E precisamos anotar um deslocamento naquela mesma península. O episódio contado em


Jana e Joel acontecia na Calçada do Bonfim. Pela descrição, no trecho que ia da Estração
de Trem ao Largo de Roma. As memórias dos antigos veranistas e moradores de Itapagipe,
tratando dos primórdios do século XIX, obliteraram essa região como próprio para banhos
de uma elite que um dia morou ali. Falavam sempre da Penha e da Ribeira. A Calçada do
Bonfim desapareceria como sítio de verão, e de uso das praias, talvez abarcada cedo pela
cidade, pela atividade produtiva do entorno imediato.

O Rio Vermelho aparenta ter sido primeiro um sítio de banhos, pioneiros e um tanto
solitários, como também o Camarão. E no caso do primeiro, com festas de pescadores, que
foram sendo retratadas e incentivadas pelo número crescente de veranistas ao longo do
século XIX. De toda forma, encontramos um uso pioneiro dessas praias abertas. Assim
como o elogio à vista ao mar, se não fossem os anúncios de jornal, teria passado
completamente inadvertido.

138
FRANCO, 1790, p.26.

445
O Rio Vermelho, distante da cidade, é o limite máximo dos anúncios, da escolha para
segunda residência. Além disso, nada apareceu.

Este anúncio, genérico como é, indica o que era uma propriedade com tal perfil:
- Quem quizer alugar uma rocinha dentro da cidade, com muito boas
commodidades e recreio, grande casa de morada com muitos commodos e
grandes lojas, boa vista de mar, grande pomar de laranjas e de outras
muitas qualidades de fructas de estimação e utilidade, agoa de beber nativa
à porta, e bem assim banhos salgados, e outros arranjos; lugar muito
saudavel [...]139

Mas não cabe dúvida de que o banho salgado, com fins eminentemente medicinais, se
instaurou a partir das classes altas, expresso como valor imobiliário, e foi por longas
décadas algo da esfera privada, embora por todos conhecido. Pertencia a esse âmbito da
família, ou do círculo de conhecidos, de amigos mais próximos. A praia não é um locus de
ostentação social, e a aparição é um problema a ser resolvido, e não uma faceta bem-vinda.
A ruptura ocorreu quando isso se modificou, décadas depois de ser um hábito consolidado,
ainda que bastante discreto.

139
O CORREIO MERCANTIL n.264, Terça-Feira 10 de Dezembro de 1839. Bahia: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.

446
10
Os Médicos Chegam Depois

O que a Medicina tinha a dizer sobre o litoral e os banhos de mar? Essa pergunta, pelo que
encontramos, se converte praticamente em quando a Medicina tem algo a dizer sobre o
assunto.

O material documental oriundo da classe médica nos fornece elementos para lidar com
estratos diferentes da realidade.

Um primeiro mais físico, do ambiente humano e do ecossistema antropizado em que vive, e


sua saúde e enfermidades. Outras são as medidas concretas, recomendadas ou aplicadas
pelos médicos, e tomadas pelos pacientes, e seus efeitos. Esta se dilui em estratos mais
discursivos, ou menos concretos: dos prognósticos dos clínicos a pacientes de carne e osso,
a recomendações gerais para políticas públicas, textos de divulgação, ou um conteúdo
codificado do ensino na Faculdade de Medicina para gente que teria o diploma mas nunca
exerceria a profissão.

O século XX viu uma voga da influência da linguística, da onipresente análise dos discursos
e de outras coisas como tal, e mais especificamente da linguística saussuriana, que isola a
língua da realidade à qual se refere e a considera um sistema coeso e auto-referente.1
Defendemos todo o contrário.2 A Medicina nem é um discurso isolado da realidade, das
enfermidades e dos resultados de seu combate, e tampouco é um sistema coeso. E não é
coeso porque ora não explica a realidade, ora a realidade é mutável, escapando à sua
grelha intelectual.

A Medicina é um sistema fortemente empírico. Suas teorias são intentos de racionalizar num
todo coeso uma gama de fenômenos experimentados como díspares. Por isso não se pode
compreender as teorias médicas ignorando os problemas patológicos enfrentados com a
própria situação concreta vivida, o resultado das medidas adotadas, os instrumentos
disponíveis e o conhecimento global coetâneo. Esta precaução norteará esta nossa breve
exposição, na medida do possível.

Assim, a Medicina reconhecia lugares insalubres que, de fato, eram. Quando o sistema
previa a insalubridade em locais que não eram, precisava de ajustes ad hoc. Empiricamente,

1
Michel Foucault talvez seja quem sempre é reivindicado no Brasil quando tratamos da história social da Medicina. No seu La
Arqueología del Saber (15ed. Mexico, DF: siglo veintiuno editores, 1991) apresenta o seu projeto “saussuriano” de entender
as Ciências, na “espessura” do discurso enquanto tal, autônomo em relação á realidade, aplicando-o a um período da
história francesa em As Palavras e as Coisas (8ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999). N´El Nacimiento de la Clínica (1ed.
Mexico, DF: siglo veintiuno editores, 1966) aplica com poucas diferenças em um período específico da Medicina francesa,
sem nunca relacionar a mudança no “olhar médico” com nada da realidade efetiva, das enfermidades e males e dos efeitos
de seu combate, e com menções escassas mesmo ao estetoscópio e demais instrumentos, que revolucionaram a profissão.
A variação das concepções, tornada absurda sem os fatores expostos, ganha um novo sentido ao ser vinculada à história
política, cuja importância é hipertrofiada, como é em seu Microfísica do Poder (17ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979). A
relação não pode ser negada, porque a ação humana é radicalmente ambígua. Os atos humanos se realizam com fins
sincréticos, cumprindo mais de um papel por vez, de modo tácito ou explícito, consciente e inconsciente; se isso ocorre na
esfera do indivíduo, na esfera das decisões coletivas, é ponto pacífico. Cada nova situação obriga a um novo rearranjo dos
motivos, uma nova conexão dos fatores que se tornam motivos para atos significativos. Assim, cada teoria médica prestará,
também, a uma visão política; não poderia deixar de ser assim. Tais abordagens não explicam, a longo prazo, como surgiu e
se consolidou a Medicina atual de modo tão avassalador. Isto é, como houve um avanço real, tão veloz e abrangente.
2
Esta introdução aparece com mais detalhes obra anterior nossa (PAZ, Daniel J. Mellado. Topoi Nocivos e Salubres: as
recomendações geográficas da medicina baiana e suas transmutações. In: Anais do 2º Seminário Íbero-Americano
Arquitetura e Documentação. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG, 2011), embora não com a extensão que
mereceria ter.

447
ainda, teorias modernas atualizaram a mecânica causal, de certos meios tidos, e mantidos,
como insalubres (tais como os pântanos), ou refinaram a ação humana no sentido de
debelar a enfermidade (tal como na quarentena).

Como campo do conhecimento a Medicina possui uma série de dificuldades intrínsecas ao


seu propósito. Em linhas gerais, se caracteriza como uma investigação do invisível que, por
sua vez, se dá pela opacidade do teatro da ação (o corpo humano) e pela invisibilidade da
maior parte dos agentes patógenos. Contudo esta situação não é estática. São as
enfermidades fenômenos de complexidade organizada, onde um número finito de variáveis
em interação produz resultados complexos.3 A realidade não cabia nas teorias anteriores,
pela grande diversidade tipológica dos agentes patógenos: poeiras inertes, bactérias,
protozoários, vírus, helmintos, etc. E, destes, a diversidade de eficiência e mecanismos
próprios: veículo condutor, meios propícios, acesso ao organismo, imunidades, etc. Na
investigação da saúde dos homens tais fatores não somente interagem de forma rebuscada,
como se modificam ao longo do tempo, da mudança acidental e intencional do meio, à
evolução e adaptação das espécies envolvidas.4 Por causa dessa trama os médicos
oitocentistas analisavam a etiologia das doenças a partir de uma tipificação das causas:
predisponentes, ocasionais e determinantes, lidando com as atordoantes variáveis em cena.

Modificava-se o meio, espécies se adaptavam ou novas entravam em cena, equipamentos e


métodos se modificavam, em uma escalada intrincada. Vê-se, nas Proposições, enunciados
sobre todas as Cadeiras da Faculdade de Medicina com que os alunos a se formar
encerravam suas teses, que a área de estudos adjacente é proteiforme. Variava ao sabor do
considerado relevante à saúde, como patogênico e terapêutico, e para a instrumentação do
ofício. Por isso se estudou química orgânica e inorgânica, eletricidade, pneumática,
radiologia e mesmo atomística.

Entre o século XVIII e XIX, a Medicina ocidental assistiu a uma profusão de doutrinas
médicas, em rápida sucessão e às vezes conflitante coexistência. Partia-se da base
clássica, de Hipócrates e Galeno, e se acrescentava certos fenômenos, como a fermentação
e a decomposição, e mecanismos de transmissão do poder patogênico, como os miasmas e
vírus (que não tinham o mesmo significado atual). Além das águas e dos ares (e sua
constelação de efeitos atmosféricos), os dois fatores mesológicos hipocráticos clássicos, os
solos contribuíam na forma do telurismo.5 Ademais desta multiplicação de fatores
extrínsecos, seus efeitos no organismo humano podiam ser díspares. A teoria hipocrática
fundava-se na expressão latina contraria contrariis curantur porque os elementos ao que o
corpo humano se expunha surtiam efeito correspondente, sendo necessário um equilíbrio
por exposição ao contrário. A reação corporal, gerando um equilíbrio interno que se opunha
ao princípio exterior, abria a possibilidade do seu oposto, o similia similibus curantur, a cura
pelo similar. Este era o quadro que permitia que diferentes doutrinas reagrupassem tais
componentes, disputando a atenção dos médicos. Estes sistemas eram tão diversos como o
animismo de Georg Ernst Stahl (1660-1734), o mecanicismo de Friedrich Hoffmann (1660-
1742), a homeopatia, de Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), o vitalismo,
de Théophile Bordeu (1722-76) e Paul Joseph Barthez (1734-1806), e aquelas de John
Brown (1735-88), Franz Anton Mesmer (1734-1815) e de François Victor Broussais (1772-
1838).6 No quadro da Medicina baiana, esses diferentes escopos teóricos podiam

3
WEAVER, Warren. A Quarter Century in The Natural Sciences. In: Public Health Report, Vol.76, n.1, January, 1961.
4
Como por exemplo Crosby (1993) consegue realizar, com certa dificuldade. Sua obra é exatamente essa relação intrincada
entre os seres humanos, os micro-organismos e uma biota intermediária, da flora e fauna domesticada, trazida a tiracolo
durante a expansão colonial, e depois imperial, européia, de modo intencional ou acidental. Nem sempre o historiador tem
recursos para investigar tais fenômenos. Que o historiador não tenha condições, ou foco, em resolver esse enigma, é parte
de seu ofício. Que ignore os impactos que isso tem, como é o caso dessa historiografia específica, é questionável em todos
os graus.
5
Este tripé de investigação mesológica – solo, ares e água – encontramos, por exemplo, em mais de uma tese.
6
SANTOS FILHO, 1991; BRAGA RIOS, Venétia Durando. O Asylo de São João de Deos – as faces da loucura. 2006. Tese
(Doutorado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2006.

448
comparecer simultaneamente.7 Por meio de ênfases distintas, o conjunto das doutrinas
formava uma Medicina que nada previa e tudo explicava, com ajustes ad hoc e a posteriori.8

Os avanços e o emprego da microscopia trouxeram aqueles agentes microscópicos


finalmente à luz. Aparece então sob esse duplo inquérito, as autópsias e a microscopia, uma
pletora de agentes patógenos: micróbios, hematozoários, helmintos de toda ordem, fungos.
Um ecossistema que era, ao mesmo tempo, minúsculo e onipresente. Aquela fauna mais
graúda que convivia com os homens há séculos, como ratos, pulgões e mosquitos, torna-se
também objeto de estudos, na medida em que as doenças se reconfiguram em uma cadeia
ecológica, da qual o homem é etapa. Os alimentos são discriminados em seus componentes
e poder nutritivo. A potabilização da água ganha mecanismos mais refinados, deixando ela
própria de ser um veículo condutor de doenças – o que se tornara dramático, em alguns
casos, pela própria eficiência na distribuição de água.9

A primeira metade do século XIX assistiu a uma mudança central na etiologia das
enfermidades. Se a elefantíase era entendida em 1841 por Felipe da Silva Baraúna como
tendo causas morais, e em 1845 por Tito Régis pelo consumo exagerado de carne de baleia
– daí suas vítimas virem de Itapuã, Itaparica e Armação, vilas de pescadores –, Otto
Wucherer encontrou a causa num verme.10 Se a opilação era atribuída em 1849 por J. J.
Gaiozo Sá Barreto, à carne seca e farinha de guerra, Wucherer culpou o Ancylostoma
duodenale, entozoário descoberto em 1838.11 Se a obra de Louis Pasteur (1822-95) marca a
chegada da teoria microbiológica, o conjunto das teorias anteriores, principalmente quanto
às questões urbanísticas (saneamento, traçado urbano, construções) tem sido chamado de
teoria mesológica. Se a primeira considerava o principal motor das doenças os
microorganismos, a segunda dava-lhes como causa aspectos do meio.12

A ruptura epistemológica se deu no plano dos mecanismos causais e nos métodos


empregados e questões lançadas para se proceder à erradicação das moléstias. Mas não
automaticamente nos topoi, nas recomendações de lugares para se ocupar. A incoerência
do sistema lhe conferia plasticidade, permitindo que médicos praticantes pudessem fazer
ajustes ad hoc, sem abandonarem o arcabouço geral das teorias da época. A mudança
profunda de paradigmas pode inclusive conviver no mesmo profissional ou na mesma
literatura especializada. Não encontramos rigor na pretensa oposição entre uma teoria
contagiosa e uma teoria miasmática, ou seja, entre a propagação a partir do enfermo ou
provocada por características do meio, na forma de exalações, os miasmas. Destes
miasmas arcanos aos novos micróbios, ao longo dos séculos especularam-se formas de
mobilidade para explicar a atuação do princípio infeccioso miasmático que atendesse à
realidade empírica do contágio, seja pelas exalações dos corpos enfermos, seja por um
provável elemento microscópico que Girolamo Fracastoro (1478-1553) denominou de virus.
Ao contrário, há um vertiginoso ecletismo no emprego das justificativas para cada problema

7
BRAGA RIOS, 2006.
8
O hipocratismo, se hoje nos soa absurdo, provavelmente era bastante pertinente, dadas as circunstâncias de vida quando de
sua formulação. A multiplicação de teorias médicas tem relação forte com uma crescente diferenciação das enfermidades – e
mesmo uma hipersensibilidade a alguns distúrbios, reais ou imaginários, como a melancolia – e ao próprio processo de
urbanização do continente. O fenômeno urbano, ainda mais sob aquelas condições sanitárias e convívios com animais,
maximiza a transmissão de doenças. Diante de uma realidade patogênica tremendamente complexa, não é de admirar a
disparidade de interpretações.
9
O exame da água, num primeiro momento, baseava-se num levantamento químico. A teoria microbiológica trouxe técnicas
para o reconhecimento de microorganismos. A água passou a ser submetido a um escrutínio a mais.
10
CONI, Antônio Caldas. A Escola Tropicalista Bahiana. Salvador: Livraria Progresso Editora/ Tipographia Beneditina Ltda.,
1952. À mesma carne era atribuída a elefantíase, agora em 1871, por Manuel Gomes d´Argolo Ferrão (Elephantíase dos
Gregos. These que sustenta em novembro de 1871 para obter o grão de Doutor em Medicina pela Faculdade da Bahia.
Manuel Gomes d´Argolo Ferrão. Salvador: Typ. do “Diario”, 1871).
11
O que é confirmado por Afrânio Peixoto (1946). Embora tenha sido, num primeiro momento, contestado pela maioria da
classe médica brasileira (FALCÃO, Edgard de Cerqueira. As Contribuições Originais da “Escola Tropicalista Baiana”.
Publicação da Universidade Federal da Bahia, 1976).
12
E assim, as causas decorrentes do clima tropical, tais como as vicissitudes atmosféricas, os graus de calor e
humildade, o quente e o frio, foram sendo substituídos, na nomenclatura da medicina bahiana e brasileira, pelos termos
ancilostomose, filariose, etc. [...] (CONI, 1952, p.38).

449
patológico, com exceção de ramos laterais da doutrina médica.13 Temos uma mescla
heterogênea, aglutinada em torno de situações entendidas como problemáticas.

Se por um lado as enfermidades se tornavam políticas públicas em explícita correlação com


a importância das suas vítimas14, por outro precisa-se reconhecer que, em um tempo onde a
Saúde Pública não se institucionalizara, o avanço da Medicina devia bastante ao papel
missionário auto-imbuído por alguns profissionais.15 O beribéri, por exemplo, teve seus
paladinos, a começar pelo Dr. José Francisco da Silva Lima, ao passo que a tuberculose,
ainda que atingindo as classes mais altas, somente encontrará quem lhe abrisse fogo nos
últimos anos do século XIX, com Alfredo Brito, a despeito de suas elevadas taxas de
mortalidade.

A despeito da abundância de fontes documentais, as teorias médicas não possuem


necessária vigência na sociedade. A medicalização da sociedade foi lenta, sendo bastante
incipiente no século XIX e operando ao longo de todo o século seguinte. No geral, o
comportamento da sociedade frente às questões médicas não pode ser analisado a partir
dos médicos, ainda mais dos médicos estrangeiros. É preciso uma série de precauções.
Quais as teorias médicas globais na classe, quais aquelas defendidas nos profissionais de
saúde locais. O respaldo que tais profissionais, coletiva e individualmente, têm, e o quanto a
população absorve tais predicados.

As práticas reais não coincidem com suas prescrições: não somente as populares, como as
das classes letradas, o que pode ser atestado por uma farmacopéia artesanal presente até a
primeira metade do século XX.16 A medicina leiga não se distinguia tanto entre as camadas
sociais. Uso extenso de medicamentos de fabricação caseira; desconfiança de muitos
fármacos vendidos (ao passo que outros são adotados, na medida em que se relacionam
com práticas consagradas, como os purgantes); confiança na palavra de alguns médicos. E,
para contrapor-se a isso, veiculação dos dicionários de medicina e almanaques, financiados
por empresas farmacêuticas, com dicas, passatempos e informações de utilidade geral,
como calendários com dias santos e tábuas de marés. A abundância de anúncios de
produtos médicos nos periódicos de época, como as sucessivas campanhas para este ou
aquele hábito, correspondem na maioria dos casos a um devir desejado: uma prescrição em
vez de uma descrição. Hábitos corriqueiros e generalizados, justamente por serem óbvios,
não são matéria de tais meios de comunicação. Algumas recomendações geográficas
podem ter se difundido, a partir de sua publicação em almanaques e dicionários que
visavam, justamente, a popularização do saber médico, feitos por outros médicos ou para
propaganda de produtos.17

Ao lado da literatura fundamental sobre a Medicina baiana, de livros de médicos a


dissertações mais recentes, nos debruçamos sobre as publicações da classe: das teses
defendidas na Faculdade de Medicina às revistas especializadas locais, como a Gazeta
Médica da Bahia e O Petiz, passando pelos boletins demógrafo-sanitários.

13
Como, por exemplo, no texto do Dr. Jousset, traduzido para o português, Elementos de Medicina Prática, que saiu na
Revista da Sociedade Homeopathica da Bahia. Tomo I, Bahia: Escriptório no Laboratório Homeopathico, 1884. Nele aparece
o curioso anacronismo da defesa do que Foucault chama de medicina das espécies, que entendia as enfermidades como
análogas às espécies animais, e sua abordagem semiótica do corpo. Como dito antes, era uma concepção marginal à
classe.
14
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
15
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
16
PEREIRA, Jaqueline de Andrade. Práticas Mágicas e Cura Popular na Bahia (1890-1940). 1998. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. 1998; BRAGA RIOS, Venétia Durando. Entre a Vida e a Morte:
médicos, medicina e medicalização na cidade do Salvador 1860-1880. Setembro 2001. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2001.
17
GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Civilizando as Artes de Curar: Chernoviz e os Manuais de Medicina Popular no Império.
Agosto 2003. Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde) – Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz, Rio de Janeiro. 2003.

450
Das fontes, nas Teses Inaugurais, aquelas defendidas para a obtenção do título na
Faculdade de Medicina, destacamos as Proposições, espécie de sabatina sobre aspectos
gerais da profissão que, mais do que a própria tese, revelavam os lugares comuns do
ensino de então. Vale distinguir ainda o que são as teses de formação do aluno, daquelas
que são concursos para novos professores.18 Usamos um punhado destas como fonte, e as
assinalamos quando tanto. As primeiras são, por definição, pura literatura, a repetição de
um estado da arte. Aos últimos cabe algum aporte da trajetória como clínico, embora nem
sempre isso acontecesse.

Se Saúde já comandava as primeiras décadas do banho de mar, aqui veremos como a


Medicina formal avançou rumo à beira-mar, e não só às praias, na segunda metade do
século. Em muitos casos, reforçando práticas já existentes. No caso dos documentos mais
propriamente escolares, da graduação dos doutores, mais um retrato do que a Faculdade de
Medicina considerava válido do que o resultado da prática profissional, inexistente em um
aluno, e sequer um futuro comum a todos.

Enfatizamos os documentos locais, correspondendo a um microclima daquele ambiente, não


da sociedade. Mesmo a classe letrada não lia as teses da Faculdade de Medicina, nem
dependia delas para suas recomendações práticas. Muitas teses de pessoas que nunca
clinicaram depois, que seguiram outras carreiras, dado o papel simbólico importante de um
curso superior. Os efeitos na cultura geral podem apenas ser inferidos, a partir de um
aparato de discurso que, em um extremo, é meramente escolar (as Teses e suas
Proposições), ora é o reflexo de uma prática clínica e do debate interno de seus
profissionais (como na Gazeta Médica da Bahia). Isto não quer dizer que o ensino da
Faculdade de Medicina, quanto mais os debates dos clínicos, não se fiavam em problemas
sentidos como prementes. Se não como soluções práticas, ao menos como quadros
teóricos, que explicavam e resolviam, gnoseologicamente, o que estava ocorrendo.

Assim, nesse material está a codificação do ensino da Faculdade de Medicina, assim os


prognósticos de clínicos, com descrições de tentativas, suas ou da automedicação dos
pacientes, assim como instituições efetivamente instaladas, com seus equipamentos.

Para todos os efeitos, os médicos, e seu aparato institucional, pedagógico, terapêutico e


científico, chegaram depois.

10.1. O Problema de Itapagipe


Houve uma série de recomendações da Medicina local detratando o litoral como local
insalubre. No entanto, com pouca ênfase e ainda menor resultado. Em Salvador algo da
interpretação do litoral se atrelou a problemas concretos, ao impaludismo ou sezões,
atualmente conhecido como malária, e à febre amarela. Entre os vários topoi considerados
propensos para a manifestação de tais moléstias estava o litoral. Nessa acusação, quais os
seus aspectos que o tornavam, potencialmente, como lugar malsão?

O ambiente à beira-mar poderia ser compreendido como um tipo de pântano, recaindo em


um milenar topoi insalubre, elemento crucial para a compreensão das enfermidades mais
letais. Daí a necessidade de defini-los, de reconhecer no seu interior os fenômenos
propriamente morbígenos, e onde se repetiam, de maneira oculta. O que é, pois, um
pântano?

18
A grafia de época foi vertida para a linguagem atual em seu conteúdo, mas não em seu título.

451
Gustavo Xavier da Silva Capanema elencava definições. Uma delas, de Fleury, do seu
Traité d´hygiene publice et privée, de 1869, definia como “uma porção d´agua estagnada,
cobrindo uma terra lodosa, carregada de matéria vegetal”. Outra, mais abrangente, de
Tardieu, do Dictionnaire d´hygiène publique, afirmava que era "toda a porção do solo,
alternativamente coberta e abandonada pelas águas, e, dando lugar, debaixo da influencia
do dessecamento e do calor à desenvolução dos miasmas que geram febres”.19 E assim
sucessivamente. Interessante aqui não apenas a sucessão de interpretações, mas sua
própria existência, problema central na Medicina ocidental, revisto na íntegra ao se lidar com
pântanos ou com doenças a eles associados. Assim, seriam pântanos ambientes como
“tujuco, lodoçal, charco, mangue, paul, brejo, tremedal, banhado, vasante, estero, lago,
lagôa, laguna, albufeira, igarapé, poço, tanque, açude, fosso”, onde se mesclavam a
umidade, a matéria orgânica, e o calor, que acentuava o processo de geração das
emanações nocivas. Por isso era comum assinalar os pântanos tropicais como os mais
perigosos. Dentre as várias modalidades deles, aparecem os estuários e as
desembocaduras de rios, onde aterros se formavam com material terroso trazido pelos rios
e retido pela força das ondas do mar, e “comsigo resíduos vegeto-animaes varridos das
montanhas”, formando “pântanos celebérrimos pelos seus effeitos singulares”.20

Identificava-se neste ambiente uma variante singular: depois dos pântanos de água doce e
salgada, havia os pântanos salobros, de água “mixta”.21 Autores diversos atestavam que
seriam mais insalubres que os demais.22 Um dos motivos aduzidos é que “a mistura de
aguas doces e salgadas, determinando a morte dos seres destinados a viverem em um
ambiente peculiar, produz os elementos primitivos geradores dos miasmas”23, como escreve
José Luiz de Almeida Couto em sua Tese de Concurso, explicando porque algumas
doenças de cunho palustre incidiriam mais no litoral que em outros lugares. Estava na
literatura internacional essa consideração sobre o litoral.24 Muitas cidades sul-americanas se
instalavam na foz de rios, vítimas de tal atmosfera palustre, como se conjecturava de
Buenos Aires, sofrendo de epidemia causada por “emanações do infeccioso marítimo e pela
mistura das águas do rio com as do mar”.25 Esse seria o caso de Salvador.

Anotava-se a coincidência entre a incidência de certas doenças e o litoral, em especial a


febre amarela e a malária. Como na Falla Provincial de 1850, sobre o flagelo de uma febre,
iniciada em outubro de 1849, que assolara “a população desta Cidade, e de uma parte do
seu litoral”.26 Ou, anos depois, em tese inaugural sobre a febre amarela: “a observação
ainda mostra que uma epidemia de febre amarella nunca se manifesta em um paiz cercado
de terra firme por todos os lados”.27 Tanto eram algumas doenças tidas como de áreas
ribeirinhas e marítimas, que o problema residia em explicar como se manifestaram no

19
CAPANEMA, Gustavo Xavier da Silva. Dos Pântanos considerados como causa de mollestia. These apresenada à
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1870 e perante ella sustentada à 3 de dezembro do mesmo
anno por Gustavo Xavier da Silva Capanema. Salvador: 1870, p.5.
20
CAPANEMA, 1870, p.8.
21
BAHIA, Thomaz Coelho. Considerações acerca das Indicações da Ovariotomia. Theses para o Doutoramento em Medicina
apresentadas a esta Faculdade em 2 de Dezembro de 1885. Salvador: Litho-Typoliguori, Miranda & C., 5, Rua Nova das
Princezas, 1885, p.34.
22
CAPANEMA, 1870, p.10.
23
COUTO, José Luiz de Almeida. Quaes são os melhores meios therapeuticos de combater o beriberi? Concurso para a
Secção Médica. These apresentada e publicamente sustenta em fevereiro de 1871 na Faculdade de Medicina da Bahia pelo
Doutor José Luiz de Almeida Couto. Salvador: Typ. do Diário, 1871, p.27.
24
Como na obra de O. Saint Vel. de seu Maladies des regions intertropicales, citada por Guilherme Pereira Rebello
(Semelhanças e diferenças entre a febre amarella especifica e a febre remittente biliosa: deducções therapeuticas. THESE
sustentada em junho de 1872. Concurso para Oppositor da Secção Medica. Salvador: Typ. do “Diario”, 1872, p.46).
25
Relatório sobre a epidemia que reinou na cidade de Buenos Ayres em 1871, apresentado a Sr. Ex. o ministro e secretário
dos negócios do império, o Sr. Conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira, pelo Dr. Luiz Alvares dos Santos, professor de
botânica e zoologia do lyceu da Bahia e da matéria medica e therapeutica da faculdade de medicina da mesma província. In:
Gazeta Médica da Bahia, n.129-130, ano VI. Salvador, 15 e 31 dez 1872, p.143.
26
FALLA..., 1850, p.10.
27
GOMES, Joaquim da Silva. Qual o melhor tratamento da febre amarella? These para o Doutorado em Medicina sustentada
em novembro de 1875 por Joaquim da Silva Gomes. Salvador: Typ. do Diario, Largo do Theatro, 101, 1875, p.5.

452
interior da Província: “se é ella com effeito que se transportou àquelles logares centraes,
porque modo e por onde”.28

Na Bahia de Todos os Santos muitos eram os lugares onde os manguezais, vistos como
pântanos, ocorriam. Na capital da Província, a Enseada dos Tainheiros, conjunto mais
consolidado de tal bioma foi pouco citado. Também se apontava como um meio insalubre,
justamente por tais características, a contracosta da ilha de Itaparica:

[...] começando pela Bôa Vista, [...] comprehende os povoados da Vera


Cruz, séde da freguezia, Baiacú, Ponta Grossa e Campinas circulados de
mangues e aipicuns. É notável ahi a intensidade com que reinam as febres
palustres, tanto no inverno como no verão, o que talvez explique-se pela
mistura da água doce com a salgada por occasião das marés e
subseqüente estagnação nos apicuns além das vasas e detritos
accumulados nos mangues [...] (BRANDÃO, 1898, p.3).

Pela geologia da cidade, aqueles portos naturais do litoral oceânico, onde o arranjo rochoso
propicia o ancoradouro seguro, atraindo para si desde a época colonial os pescadores, era o
mesmo que permitia o desagüe dos rios, resguardando-os do acúmulo de sedimento
arenoso trazido pelas ondas do mar. Curiosamente a ocupação primitiva do litoral oceânico,
a semente da vilegiatura marítima, acontecia em áreas de água salobra: “a epidemia [de
febre amarela] começa sempre nas cidades à beira-mar, e de ordinário ahi fica limitada. Na
cidade da Bahia occasiões há em que a febre amarella circumscreve-se ao ancoradouro”.29
No entanto, tais teorias que conferem ao oceano, e ao litoral, um papel potencialmente
malévolo, não encontraram guarida na Bahia. Pois os problemas da malária e da febre
amarela não demonstravam preferência pelo litoral da cidade como um meio insalubre.

No tocante à cidade, era considerado daninho o Dique pois, além da evaporação intensa
das chuvas recentes, havia “as exhalações miasmáticas do Dique e dos numerosos paúes
que cercam a cidade pelo lado de leste”.30 O “bellíssimo lago” era responsável pela
propagação da malária nas suas vizinhanças. E, no geral, pelo mesmo médico, os subúrbios
como um todo:

Contribue também poderosamente para a producção da malaria a falta de


cultura methodica dos terrenos próximos da cidade, a agricultura suburbana
que em toda a parte paga melhor o trabalho, é aqui quase nulla pode-se
dizer, não se arroteam as terras baldias e os campos incultos, não se
enchugam os paúes, não se canalisam os regatos, não se dá franco esgoto
às águas pluviaes, que o sol ardente do estio eleva para a atmosphera com
os miasmas que nos vem envenenar o ambiente que respiramos. (SILVA
LIMA, 1877, p.107).

Pela acusação geral aos rios e seus pântanos, em uma cidade que é um arquipélago de
morros em um mar de vales estreitos, o que teríamos seria uma Salvador cercada pelo
inimigo, infiltrada por ele em cada desvão.

No entanto, a região que deveria ser a mais insalubre da cidade não se apresentava assim.
Pelo contrário.
Estes são os meses em que o sol, quase a prumo, exerce seu maior poder
– quando o pântano está parcialmente seco, mas ainda um pântano,
exposto ao ir e vir da maré, e superabundando, como já dito, em todos os
elementos necessários à geração dos miasmas mais deletérios e
abundantes [sic]. Esta é a estação em que o Bonfim está repleto de

28
SILVA LIMA. J.F. Meteorologia; molestias predominante: febres paludosas, febre amarela, beriberi; o Asylo de Mendicidade;
a Enfermaria de Partos. In: Gazeta Médica da Bahia, n.3, ano IX. Salvador, mar 1877, p.111.
29
CUNHA, Manoel José Ribeiro da Cunha. Estudo sobre a Pathogenia do Beriberi. Salvador: Typ. Americana, 1874, p.154.
30
SILVA LIMA, 1877, p.106.

453
visitantes; e estes, ademais, de acordo com o costume do país, passam
uma grande parte da noite a céu aberto, expostos à influência dos miasmas
venenosos – se existirem. (DUNDAS, 1852, p.243 – tradução nossa).31

Esse era o problema. O corpo teórico, consolidado ao longo de séculos, era flagrantemente
desmentido pelo estentóreo caso de Itapagipe.

Como a região, cercada por pântanos, podia não apenas não ser insalubre, como ainda ser
sítio escolhido desde data remota como lugar de refúgio e regeneração? Ao passo que
outras localidades, que deveriam ser salubres, apresentavam alto índice malárico.

Apresentamos a teoria de apenas um médico. Importante, porém, por seu papel na


comunidade britânica, e na cidade por conseguinte, e por ser um esforço gnoseológico em
adequar o quadro teórico à realidade da saúde da cidade. O médico inglês Robert Dundas,
apontado em 1819 para o Hospital Britânico (British Hospital) da Bahia, elaborou uma teoria
que explicaria a incidência da malária em lugares tidos como salubres e, por sua vez, a
inocuidade de lugares que, pelas doutrinas tradicionais, deveriam ser nocivos.32

Sua solução foi atribuir a malária aos poderosos ventos frios do oceano, os ventos alísios
que sopram sobre Salvador, contrariando a tese dos miasmas palustres. Se daria ao expor-
se um organismo debilitado pela exaustão prévia ou doença, e mesmo depressões morais,
ao poderoso vento marinho, em especial os de sul-sudeste, úmidos. Isso por estar, em
especial nos climas tropicais, o corpo e seu sistema cutâneo relaxados e a força nervosa,
deprimida, vulneráveis ao súbito ataque do frio e da umidade. Este construto de Dundas era
mais sofisticado que o usual. De qualquer sorte, os ventos reinantes em Salvador, do
quadrante do Leste a Sul, vinham carregados de umidade, sendo fonte permanente de
insalubridade. A tal ponto que recomendam aos edifícios orientações opostas ao que hoje
entendemos como preferíveis.

Saturados da humidade, de que se impregnam no vasto oceano atlântico


que atravessam, estes ventos, além de entreterem a atmosphera n´um alto
gráo hygrometrico, constituindo assim uma origem d´insalubridade
permanente, são causas de resfriamentos, que podem determinar affecções
agudas àquelles que residem em habitações expostas à sua acção directa.
A exposição ao quadrante de sul a leste é portanto a menos conveniente
para o edifício d´uma escola.33

Havia quem entendesse ainda que os ventos oceânicos eram perversos. Eles poderiam
carregar, além de sua umidade, as “exhalações infectas de terrenos pantanosos, ou dos
miasmas d´um solo infiltrado de águas impuras e matérias excrementícias”.34 Porém essa
abordagem não foi adotada, nem a teoria de Dundas parece ter tido repercussão para além
da comunidade inglesa, e seus possíveis interlocutores fora do Brasil.

O importante é o evidente desajuste empírico.

31
These are the months when the sun, nearly vertical, exerts its greatest power – when the swamp is partially dried up –
but still a swamp; exposed to the ebb and flow of the tide, and superabounding, as already stated, in all the elements
necessary to the generation of the most abundand and deleterious miasmata. Such is the season at which Bomfim is
thronged with visitors; and these, moreover, in accordance with the custom of the country, pass a large portion of the
night in the open air, exposed to the influence of the poisonous miasms – if such there be. (DUNDAS, 1852, p.243).
32
DUNDAS, 1852.
33
HYGIENE NAS ESCOLAS. In: Gazeta Médica da Bahia, n.6, ano X. Salvador, jun 1878, p.249.
34
HYGIENE... 1878, p.249.

454
10.2. O Beribéri e a Vilegiatura
O reconhecimento do papel dos banhos de mar, e das virtudes terapêuticas inigualáveis dos
arrabaldes litorâneos, se deu no bojo do que se entendeu, na segunda metade do século
XIX, como uma verdadeira epidemia: o beribéri.

Foi Silva Lima, a quem recorremos algumas linhas atrás, quem identificou numa série de
sintomas recorrentes em seus pacientes uma única moléstia específica, e que esta moléstia
era a mesma que ocorria nas Índias Orientais com aquele nome.35 Ele escreveu uma série
de artigos; ou melhor, um longo texto subdividido em várias partes publicadas
sucessivamente ao longo de 1866 e 1867. A primeira parte aparece no número 10, de 25 de
Novembro de 1865, Ano I, da revista Gazeta Médica da Bahia.36

Silva Lima teve protagonismo não apenas como pioneiro nos estudos do beribéri no Brasil,
mas como a maior autoridade reconhecida no assunto na Província, e no Império.37 Ele foi
também mentor, junto com John Lidgertwood Paterson e Otto Edward Henry Wucherer, da
chamada Escola Tropicalista Baiana38, que introduziu a medicina experimental na Bahia,
avançando especialmente em endemias intertropicais.39 Uma de suas inovações foi
incorporar a autópsia, a abertura daquela caixa preta, como método fundamental da
investigação clínica, criticado pelos médicos da Faculdade de Medicina como “medicina dos
mortos”.40 Esse núcleo de profissionais formado entre 1865 e 1869 era responsável pelo
lançamento da Gazeta Médica da Bahia, que operava como porta-voz das exigências da
classe médica.41 Até então a classe não teria nem produção própria, autonomia e prestígio;
com a revista, as idéias e trabalhos médicos ganharam difusão.

Pois foi pela Gazeta Médica que os artigos de Silva Lima sobre o beribéri primeiro
veicularam e se acompanhou a produção nacional e internacional referente à enfermidade.
A obra de Silva Lima foi leitura obrigatória para os trabalhos nacionais posteriores, em
especial a classificação das “formas” com que a epidemia se manifestava, adotada
incontinenti a partir daí, a ponto de ser tópico sistemático de avaliação dos recém-formados
na Faculdade de Medicina da Bahia. Os sintomas gerais não se apresentavam na mesma
ordem e intensidade. Havia a forma paralítica, com dormência, fraqueza e paralisia dos
músculos; a forma edematosa, com cansaço na respiração, aumento da parte média das
pernas, e edemas; e uma terceira forma, mista, mesclando os sintomas. Todas estas
concluíam com a asfixia. Cada qual com modalidades próprias de tratamento; o que era
adequado e eficiente para uma das formas revelava-se prejudicial para outra, em especial
as duas primeiras.

35
A história dessa epidemia, seu reconhecimento, e sua relação com a vilegiatura marítima em Itaparica e Salvador foi
aprofundada em artigo de 2012 (PAZ, Daniel J. Mellado. A Europa dos Pobres: a ilha de Itaparica como sanatório do beribéri.
In: Anais do XII SHCU – Seminário da História da Cidade e do Urbanismo. CD-ROM. Porto Alegre: PROPUR-UFRGS/
PROPAR-UFRGS, 2012b).
36
Com o título Contribuição para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia sob a forma epidêmica, e
caracterizada por paralysia, edema, e fraqueza geral. Narrava, ali, os sintomas de pacientes que lhe apareceram em 1863 e
1864, em artigos que são publicados ao longo de 1866 e 1867. Tais artigos foram reunidos em livro, acrescido de apêndice,
chamado Ensaio sobre o Beriberi no Brazil, que sai em 1872. A primeira menção a tal doença aparece na Gazeta Médica da
Bahia, ano I, n.6, de 25 de Setembro de 1866, em nota intitulada Paralysias epidêmicas, que descreve uma “epidemia de
paralysias” observadas em asilo de órfãos em Lisboa, pelo Sr. Bernardino Antonio Gomes. Nessa cobertura, nega-se que a
epidemia detectada em Lisboa seja a mesma da Bahia, a ser descrita nos números seguintes por Silva Lima, pelo caráter
não-letal da primeira.
37
Esclarece, porém, que não fora o autor da denominação. Teria sido o Dr. Paterson a encontrar, casualmente, a descrição e
nome da enfermidade no Medical Dictionary, de Copland, e sugerindo-lhe a identificação (SILVA LIMA. J.F. Contribuição
para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia sob a forma epidêmica, e caracterizada por paralysia,
edema, e fraqueza geral. In: Gazeta Médica da Bahia, n.29, ano II. Salvador, 15 set 1867b, p.29).
38
O nome parece ter sido criado por Pedro Nava, e difundido pela obra de Antônio Caldas Coni (JACOBINA, Ronaldo Ribeiro;
CHAVES, Leandra & BARROS, Rodolfo. A “Escola Tropicalista” e a Faculdade de Medicina da Bahia. In: Gazeta Médica da
Bahia, n.2. Salvador, jul-dez 2008.).
39
FALCÃO, 1976.
40
CONI, 1952.
41
BRAGA RIOS, 2006.

455
Aqui temos um fenômeno capital, na atuação médica na modelagem de uma representação
coletiva42: a caracterização dessa moléstia nova como uma epidemia. Na época, faltava um
inventário sistemático sobre as doenças na capital, e sequer dados confiáveis. O que levou
ao primeiro conflito no assunto, explícito nas páginas da Gazeta Médica da Bahia, e
registrado subsequentemente nas teses inaugurais sobre o beribéri, em Salvador e no Rio
de Janeiro.43 Para lidar com tal epidemia, que se caracterizara como nacional, primeiro
começaram os clínicos a atuar. No caso da Bahia, a associação de médicos que fundou e
conduziu a Gazeta Médica da Bahia congregava clínicos e docentes da Faculdade de
Medicina da Bahia.44 Depois, as Faculdades de Medicina a incorporaram como ponto para
as teses inaugurais, tanto para o conteúdo da dissertação em si, como parte da sabatina
das Proposições, explicando o surto repentino nesse perfil de publicação. A seguir o
governo tomou ciência do problema: os Presidentes das Províncias buscaram enfrentar os
surtos beribéricos em suas instalações (asilos, penitenciárias, quartéis) e fazer enfermarias
para tanto, provisórias ou permanentes, como veremos na Bahia. E mesmo o Império
assumiu o problema: por meio de premiações aos trabalhos que avançassem no assunto,
por meio de sua Academia de Medicina, e nomeando comissões provinciais para o estudo
da enfermidade. Para a Bahia, em aviso do Ministro do Império ao Presidente da Província
da Bahia, de 21 de novembro de 1879, nomeou comissão formada por José Luiz de Almeida
Couto, Ramiro Affonso Monteiro, Demétrio Cyriaco Tourinho, José Francisco da Silva Lima e
J.L. Paterson: “os estudos mais importantes que no Brazil se teem feito até agora sobre o
beriberi, são exclusivamente devidos à iniciativa particular, a esforços isolados de alguns
dos nossos collegas desta e de outras províncias!”45

Na Bahia, a aceitação oficial do beribéri como problema de saúde pública se deu por um
motivo um tanto prosaico. Se os relatórios de Saúde Pública não faziam menção ao beribéri,
a partir daquele publicado em 1876 o quadro muda, com o primeiro relatório do novo
Inspetor de Sade Pública: o Dr. Silva Lima. Se os relatórios anteriores ignoravam o beribéri,
este agora o inclui como algo importante, inclusive menosprezando as estatísticas oficiais;
que na verdade inexistem. É o conhecimento empírico dos clínicos, reunidos informalmente
pelo inspetor, que alimentam esta parte de seus relatórios.

Porém, o que era o beribéri? E como as teorias e recomendações ligadas à sua causa, à
sua etiologia, influenciam a jornada ao litoral?

Sabemos hoje que o beribéri é uma avitaminose: a carência da vitamina B1. Segundo
Carlos Alberto Oliveira, em seu Medicina e Estado46, o beribéri fora causado pelas crises
alimentares na cidade, falta de farinha e carne verde, a partir de 1860, como teria apontado
Otto Wucherer.47 Carne fresca, bacalhau, pão e farinha de trigo eram meios pela qual a
população obtinha a vitamina B1. Ademais, a perda de água e salga da carne seca
retiravam a vitamina B1. Da mesma maneira que o álcool, ingerido em aguardente, vinho e
cerveja, a destruía. Outros alimentos com o nutriente eram inacessíveis pelo alto preço. Não
se pode assegurar que os casos identificados como “beribéri” correspondiam fielmente à
avitaminose presente. No entanto, não é nosso propósito desvelar a história de uma doença,

42
No sentido da Sociologia de Émile Durkheim.
43
Cunha (1874); AMARAL, Augusto César. Beriberi. These apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 22 de
setembro de 1879 para ser sustentada por Augusto Cesar do Amaral. Rio de Janeiro, 1879; OTTONI, David Benedicto.
Beriberi.THESE apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 30 de junho de 1879, e defendida perante a
Faculdade de Medicina da Bahia em 24 de dezembro do mesmo ano. Rio de Janeiro, 1879; FIGUEIREDO FILHO, Bernardo
José de. Beriberi. These apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 6 de setembro de 1879 e sustentada
perante a Faculdade de Medicina da Bahia em 2 de janeiro de 1880. Rio de Janeiro, Imprensa Industrial – de João Paulo
Ferreira Dias, Rua da Ajuda, 75, 1880; MORETZSOHN, Luiz Carlos. Beriberi. Bahia, 1880; PEREIRA, Francisco Braulio.
Beriberi no Brazil. THESE para o Doutorado em Medicina sustentada por Francisco Braulio Pereira. Salvador: Litho-
typographia de João Gonçalves Tourinho, Arcos de Santa Barbara, n.83, 1881a; entre outras.
44
JACOBINA et al, 2008.
45
COMMISSÕES MÉDICAS PARA O ESTUDO DO BERIBÉRI. In: Gazeta Médica da Bahia, n.11, ano XI. Salvador, nov. 1879,
p.526.
46
Apud BRAGA RIOS, 2001.
47
In: Gazeta Médica da Bahia, 15 de julho de 1868.

456
mas compreender a representação social dela, por parte da classe médica e principalmente
da população, a ponto de ser um agente fundamental para a jornada ao litoral.

O primeiro fato a tornar a etiologia um enigma era a diversidade das vítimas. A análise
médica de então tentava por meio de distintos itens encontrar constâncias: hábitos e
profissões, idades, gênero, raças, temperamentos e constituições. Moretzsohn observa que,
quanto à idade, preferia a idade adulta à senectude e principalmente à infância, enquanto
João Pereira de Mello Moraes, fala que a faixa etária mais atacada ia de 15 a 40 anos;
quanto ao gênero, preferia o masculino; que não tinha predileção por raça, mas atacava
principalmente os residentes; quanto às profissões e condição social, a preferência pela vida
sedentária ou desregrada, e pelos lugares úmidos e mal arejados, explicando a ocorrência
em presídios, quartéis e asilos; quanto aos hábitos, recai na cantilena higienista; não
apresenta preferência por um temperamento ou constituição determinados.48 Porém, e
quanto à classe social?

Silva Lima falava da eqüidade do flagelo, atacando desde o escravo e presidiário, até aos
“favorecidos da fortuna, que vivem nas melhores condições hygienicas”49, afetando
mulheres e homens de todas as classes da sociedade, na capital e interior, “sobre tudo nas
suas cidades e villas marítimas; e não obstante o serem por demais notórios os estragos
que esta formidável endemia tem feito em todas as classes da sociedade”.50 Não obstante,
Amaral registra que o beribéri preferia o pobre ao rico, o que não está de acordo com outras
descrições.51 Era exceção. O provável é que fosse o contrário, ou pelo menos a
amostragem relevante. Moraes, por exemplo, usa a constatação de que os ricos eram mais
afetados para descartar a teoria da carência nutricional, já que se alimentariam melhor.52
Edgar de Cerqueira Falcão, décadas depois, reforça essa que os mais abastados eram as
principais vítimas.53 Os dados são extraídos das classes mais altas, até porque provêm dos
clínicos; pela confiança na Medicina formal, e pelos custos do tratamento, seus pacientes
não eram dos estratos mais baixos da sociedade, que precisavam recorrer a outros meios.

Já Manoel José Ribeiro da Cunha observa diferença na incidência nas raças, sendo o
beribéri uma doença tropical.54 Os brancos seriam mais vulneráveis; os portugueses já
aclimatados sofreriam menos, e ainda menos os negros. Isso explicaria ser raro observar o
beribéri em africanos. De qualquer jeito, aos médicos soava como um mistério.

[...] os primeiros três casos por mim observados eram de pessoas que
habitavam três localidades muitas léguas distantes umas das outras, sendo
uma do recôncavo, uma da Matta de S. João, e a terceira d´esta cidade.
Tive depois doentes que vieram de Itaparica, da Feira de S. Anna e de S.
Amaro, e vi outros que vieram da Chapada Diamantina, e de outros pontos
do interior d´esta província; mas a grande maioria dos casos occorreu em
pessoas desde muitos annos residentes n´esta cidade, aonde também a
moléstia não mostrou predilecção por nenhum bairro em particular, nem
pareceu attacar de preferência os indivíduos cercados de peiores condições
hygienicas. (SILVA LIMA, 1867a, p.244).

Essa diversidade dos meios foi um dos responsáveis pelo enigma etiológico. Era consenso
que o mal não era contagioso. Se não era algo que se propagava de indivíduo a indivíduo, o

48
MORETZSOHN, 1880; MORAES, João Pereira de Mello. Do Beriberi e seu Tratamento. THESE apresentada à Faculdade de
Medicina da Bahia em 30 de setembro de 1880 e a ser sustentada em novembro. Salvador: Typ. do “Diário da Bahia”, Largo
do Teatro, 101, 1880.
49
SILVA LIMA, José Francisco da. Ensaio sobre o Beriberi no Brazil. Salvador: Livrarias de J.B. Martin, Catilina e C. e Viúva
Lemos, 1872, p.1.
50
COMMISSÕES... 1879, p.526.
51
AMARAL, 1879.
52
MORAES, 1880
53
FALCÃO, 1976, p.7.
54
CUNHA, 1874.

457
que o causava? Na literatura internacional, as propostas gravitavam em torno de três
abordagens principais, com algumas derivações: a alimentar, a infecciosa e a climatérica.

A teoria alimentar atribuía à dieta a origem do mal, que tanto podia ser por algo a menos,
como por algo a mais. A outra vertente de interpretação etiológica do beribéri era a
infecciosa; que primeiro dirige-se aos miasmas palustres e, depois, aos microorganismos. A
teoria climatérica foi a que teve maior aceitação na Bahia, e importância extrema para o
fenômeno da vilegiatura terapêutica. Foi a que resistiu menos ao tempo; os discípulos locais
da pioneira abordagem de Silva Lima inclinaram-se para a teoria infecciosa, de cunho
microbiológico, mas sem renegarem o mestre, na medida em que as descrições globais
poderiam ser adaptadas ao novo quadro conceitual da Medicina. No jogo entre causas
predisponentes e eficientes, algo se conseguia transigir; o que era causa eficiente em uma
abordagem, facilmente se absorvia como causa predisponente em outra.

Silva Lima observara que a doença era intertropical. Esse era o ponto de partida, o
invariante. Presente em Malabar, Ceilão, Índia e Java, e agora na Bahia, sem dúvida as
condições climatéricas de umidade e altas temperaturas que causariam ou ao menos
favoreceriam, a sua aparição, o que seria repetido por outros nos anos subsequentes. A
doutrina exposta por Silva Lima apresentava um quadro relativamente sofisticado: o calor
causaria excesso de secreção cutânea e pulmonar; porém, esse mesmo calor causava
excesso de vapores, com menor volume de oxigênio de ar, e ao mesmo tempo prejudicando
a eficiência da transpiração. O resultado seria o prejuízo da oxigenação do sangue. Eis a
cadeia causal climatérica. A umidade seria mais grave em Salvador pela posição topográfica
e a natureza do solo: a situação em parte na encosta, o solo argiloso, e o vento leste,
carregado da umidade oceânica, tornam o ambiente mais saturado.55

Sua teoria conseguia, entre outras coisas, explicar o beribéri nos navios, como na corveta
brasileira Vital d´Oliveira. Pela descrição das condições higiênicas dos navios, concluiu pelo
calor ardente do sol tropical no convés, e o ar quente, abafado e úmido na coberta e
alojamentos inferiores, onde ademais haveria a aglomeração de pessoas.56 O ar estaria
pobre de oxigênio acima, pelo calor, e abaixo, pela aglomeração e falta de ventilação. O
mesmo se repetiria em outros lugares de constantes surtos beribéricos, geralmente
apinhados de gente, sem ventilação e muito úmidos, como o Quartel da Palma.57

A tese de Silva Lima foi apoiada por concluintes na Faculdade de Medicina da Bahia, nas
Proposições de suas Teses. Pacífico Pereira, anos depois e já incorporando os métodos da
teoria microbiológica, estudou o sangue dos beribéricos e cogitou uma possível bactéria
anaeróbica, uma “fome de oxigênio”, observada em experimentos com animais. O raciocínio
climatérico poderia assim concatenar-se com as análises hematológicas, e a idéia
bacteriológica. Foi por meio da teoria climatérica que se compreendeu o principal recurso
para a cura do beribéri na Bahia, com implicações diretas e intensas na vilegiatura marítima.

A Procura do Litoral
O receituário para o combate ao beribéri era bastante eclético.

Como medicação interna, falavam-se em tônicos amargos, diuréticos, diaforéticos


(sudoríficos), drásticos (purgantes), evacuantes, alterantes, reconstituintes, excitantes, como
se dizia na nomenclatura de então. Produtos como vinhos medicinais, substâncias tais como
o mercúrio e o iodo, fosfato de zinco e nitrato de prata, arsênico e amoníaco. Plantas, como
o “tapa-buraco”, o centeio espigado e o jaborandi. Havia a chamada medicação externa:

55
A situação seria similar a São Luís do Maranhão, que igualmente padece da moléstia.
56
PEREIRA, Francisco Bráulio. Histórico-pathologia e therapeutica do beribéri. These para o Doutorado em Medicina.
Salvador: Litho-typographia de João Gonçaves Tourinho, Arcos de Santa Bárbara, n83, 1881b.
57
PEREIRA, 1881b, p.62.

458
fomentações, linimentos, pedilúvios, vesicatórios, pomadas, tinturas, sangrias (por ventosas
e flebotomias). Fricções de diversos tipos eram empregadas, lembrando que a doença se
manifestava como uma paralisia muscular. Banhos salgados, banhos galvânicos, banhos
medicamentosos, duchas. De um modo geral, se tratava o beribéri com recursos diversos.
Sempre com desempenho variado, para as três formas da doença. Muito se experimentava,
então. Os médicos ensaiavam procedimentos, e comunicavam seus resultados. Ou
começavam por tais abordagens, para por fim recorrerem àquela que todos julgavam de
efeito certeiro, ou concluíam com elas, uma vez que esta última não poderia ser empregada.
O primeiro método em eficácia, e o último da vasta gama disponível para o caso de todos os
demais falharem, era a emigração.

A remoção do individuo affectado para a Europa ou outra qualquer região,


onde se não encontrem condições favoraveis ao desenvolvimento de
semelhante mal, e antes que elle tenha produzido desordens profundas no
organismo, deve ser feita sempre que isso seja possivel [...] (GOUVÊA,
1879, p.91).

Era a emigração o único meio consensual, aquele de maior eficácia, o último recurso, a
lamentar-se na impossibilidade do enfermo de dispor. Mesmo na década de 1920, ainda se
falava na remoção como meio eficaz, com resultados imediatos, e mesmo surpreendentes.
58
Lançava-se mão da emigração por todo o país: “de todos os meios [...] o único que
aproveita, e este sempre que o doente recorre a elle em tempo, é a mudança do logar”.59 De
modo dramático, e retórico, disse o Dr. Domingos Carlos da Silva, que a epidemia na Bahia
dera “lugar a uma verdadeira corrente de emigração para Europa”.60 No caso da emigração
não ser possível, o que restava era seguir os preceitos da Higiene.61

Os fármacos merecem uma nota. Da extraordinária variedade de produtos oferecidos, raros


eram os que se promoviam pelo combate ao beribéri. Nos periódicos e almanaques,
apareciam fortificantes, linimentos, xaropes, sandalos, licores, injeções, emulsões, óleos,
cafés quinados, tônicos, colas, cigarros, pílulas, cânforas, alcatrões, elixires, sabões, vinhos,
grânulos, peitorais, glóbulos, águas específicas (minerais, purgativas), digestivos. E para as
mais para as mais variadas enfermidades, das quais a principal era a tuberculose, com forte
presença ainda de doenças pulmonares, da pele e do sistema nervoso, com difícil
delimitação entre os males reais, dados pelas condições insalubres, e aqueles oriundos de
algum tipo de hipersensibilidade. Nesse emaranhado de problemas e soluções – que
incluíam produtos terapêuticos como o chocolate e o tabaco, e mesmo terapias sui generis,
como a galvanoterapia – encontramos um e apenas um remédio que atacava o beribéri: o
linimento anti-beribérico de Floriano Serpa, que permitia ao paciente curar-se “sem as
tormentosas mudanças e os inconvinientes banhos salgados”, em propagada do
medicamento, depoimento do Dr. Aristides Americo de Magalhães, diretor-interino do
Hospital Militar da Bahia, dado em 29 de novembro de 1897, Bahia. Os produtos que se
anunciavam como antiberibéricos eram condenados: “não tem dado resultados satisfactorios
58
GONDIM, Edmundo Monteiro. A Novarsenotherapia no Beriberi. Cadeira de Therapeuta Clinica e Experimental These
apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 30 de outubro de 1921 a fim de obter o gráo de Doutor em Sciencias
Medico-Cirurgicas. Salvador: Livraria Econômica, Rua da Longa, 21, 1921, p.23.
59
BRITTO, João Paulo da Silva. Carta dirigida pelo Dr. João Paulo da Silva Britto, da cidade de Caxias, província do
Maranhão, ao estudante da Faculdade de Medicina da Bahia, Domingos Pedro dos Santos. In: Gazeta Médica da Bahia, n.4,
ano XV. Salvador, out 1883, p.176.
60
SILVA, Domingos Carlos da. Prólogo. In: CUNHA, Manoel José Ribeiro da. Estudo sobre a Pathogenia do Beriberi. Salvador:
Typ. Americana, 1874.
61
Quando a retirada dos doentes não pode ter logar, por qualquer circunstancia, elles devem cumprir o mais possível, os
preceitos aconselhados pela hygiene, assim devem ter uma alimentação sufficiente e variada, usar e não abusar do
vinho, do café, da pimenta, etc., que concorrendo para a facilidade de digestão o seu abuso deve ser mantido pela
acção deprimente que exerce sobre o organismo, principalmente nos climas quentes, onde esta molestia quasi sempre
é observada.
A residencia em logares seccos e arejados, é aconselhada, evitando-se porém os logares pantanosos, onde reinam
febres intermittentes; as mudanças bruscas de temperatura, e os resfriamentos; assim tambem os exercicios
immoderados, os excessos da mesa, principalmente o abuso dos alcoolicos; o abuso dos prazeres venereos e toas as
causas que podem concorrer para o apparecimento do beriberi devem ser evitadas. (FIGUEIREDO FILHO, 1880, p.70).

459
taes como: Elixir de Linimento anti-beribérico de Floreano Serpa; Elixir de jurubeba e
pegapinto do Dr. Carlos de Bittencourt”.62

Aqui cabe uma explicação mais geral. A farmacoterapia, junto com recursos como vacinas e
soros, de certa maneira estabeleciam a possibilidade da saúde “a domicílio”, ou em edifícios
especialmente preparados, portas para dentro, como aparato terapêutico. Amputavam a
antiquíssima relação com o meio ambiente exterior – com os ares, águas e lugares, do
conhecido e milenar tratado de Hipócrates. Até então a localização dos hospitais era
essencial; no século XX veremos que eles ganharam autonomia, podendo situar-se em
sítios antes considerados francamente inadequados. A autonomia geográfica da saúde foi
um fator crucial para desmontar o complexo terapêutico de estações de cura (alpinas,
litorâneas, rurais). A descoberta da mesma como avitaminose – portanto, tema da dietética
– fez esse papel de cancelar a importância do meio. Com isto, o que apontamos é que não
se encontrara ainda um sucedâneo fungível, como um fármaco qualquer, para a cura do
beribéri. Ainda era necessário mudar de lugares, de águas e de ares. Ainda era a época dos
sanatórios naturais. E não estava à vista nada que mitigasse a doença que não fosse isso.

Dentro das possibilidades, o mais importante era meramente sair do lugar onde se
manifestara a doença no paciente: “a mudança para fora da localidade onde o doente
adquiriu a doença, sobretudo para a beira mar, e melhor ainda para fora da zona
intertropical, mormente se é emprehendida em período pouco adiantado da moléstia”63. Sair
da zona intertropical era, “em summa uma viagem à Europa”.64 As estações terapêuticas
européias de águas, por exemplo, eram fartamente enumeradas nos guias do Dr. Chernoviz,
com descrições de suas propriedades medicinais, instalações e serviços oferecidos, e
mesmo mapas do continente com as principais estâncias.65 Europa era um destino habitual
para quem tinha posses. Também se recomendavam países vizinhos, como o Uruguay, e
mesmo as Províncias do sul do Império.66 Tais procedimentos eram inacessíveis à maioria.
Haveria paliativos para a viagens tão distantes?

Em cada localidade a providência mais imediata era a simples remoção do paciente. No


geral, o importante era simplesmente a fuga do local onde se manifestou a enfermidade no
paciente. E o quanto antes. O que era constante dos lugares ao qual se refugiava é que
eram outros. Sua virtude era não ser apenas o mesmo onde a doença se manifestava do
indivíduo. Nesse sentido a emigração era para alguns forte argumento a favor da teoria
mesológica.67 Diante das enfermidades e da ineficiência dos prognósticos, a emigração era
recurso inescapável. Anna Bittencourt narrara casos de tuberculosos cuja primeira
providência fora sair do seu ambiente, e buscar os ares do campo, tal como sua mãe
quando diagnosticada com pneumonia.68 Na Bahia, a recomendação que mais se ouviu foi
aquela pronunciada por Silva Lima, e levada a sério por todo o país: a beira-mar.

Raro é o paquete que não leva para a Europa algum beriberico, e em


algumas estações do anno, como succede presentemente, a emigração
d´estes doentes é muito numerosa. Felizmente para estes, se não
embarcam já tarde, a cura é certa, e às vezes muito rápida. [...]

62
GONDIM, 1921, p.31.
63
SILVA LIMA, 1869, p.145.
64
MORAES, 1880, p.54.
65
Tratava-se de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz (1812-1882), médico polonês autor dos manuais de Medicina popular mais
difundidos no Brasil dos tempos do Império.
66
SARAIVA, Manuel Joaquim. Quaes são os melhores meios therapeuticos de combate o beriberi? Concurso para um dos
logares de oppositor à Secção de Sciencias Medicas... Salvador: Typ. do “Diario”, 1871, p.36.
67
Parece-nos que o gérmen d´essa tão grave, quão traidora moléstia, existe plantada em nosso solo; pois parecendo
rebelde a todas as prescripções therapeuticas, desaparece, como por encanto, alguns grãos distante da nossa costa,
tornando-se o seu melhor remédio uma viagem a Europa. (VELLOZO, Ignacio Alcibiades. Breves considerações sobre
as condições climatérias, prophylaticas e statísticas da cidade do Recife. In: Gazeta Médica da Bahia, n.136. Salvador,
31 mar 1873, p.245).
68
BITTENCOURT, 1992b, p.71; p.212; p.198.

460
É fácil imaginar a sorte dos que não podem dispor a tempo d´este
efficacíssimo recurso; transportarem-se para a beira mar, ou para
localidades ao alcance de suas posses, ou submetterem-se a uma
therapeutica ainda muito incerta para inspirar confiança ao medico e ao
doente [...] (SILVA LIMA, 1876a, p.198).69

Para o ambiente litorâneo e o beribéri, não encontramos justificativa teórica compartilhada,


ou mesmo desenvolvida com maior extensão. Poderíamos tomar por auto-evidente, se não
vissemos antes que, em certas abordagens, a salubridade do litoral era posta em cheque.

De todos os modos, os baianos encontraram um sucedâneo específico mais acessível à


Europa, dentro do quadro genérico da recomendação de Silva Lima. E este lugar era uma
velha conhecida da população da capital: a ilha de Itaparica.

Itaparica, a Europa dos Pobres


Em 1876 apareceu uma nota reconhecendo a Itaparica como refúgio dos beribéricos e
sanatório natural:

Itaparica, refugio para beribericos – A notória salubridade de muitos lugares


da ilha de Itaparica induziu a alguns médicos d´esta cidade a mandarem
para lá aquelles dos seus doentes de beribéri, que não podiam, ou não
queriam viajar para fora dos trópicos.

[...]

Itaparica é, pois, sem contestação, excellente refugio para sanatorium


contra o beribéri para as pessoas que não podem emigrar para a Europa ou
para o Sul do Império, e como tal deve merecer a confiança da classe
medica, e também a attenção do governo provincial, que pode facilitar aos
doentes pobres este beneficio.

Estas informações referem-se à villa; mas há diversas localidades da costa


do Mar Grande e de outras ilhas da nossa bahia de não menos notória
salubridade, que podem ser aproveitados talvez com iguaes vantagens.70

A prova da salubridade do meio era a ausência de um caso sequer da moléstia nos


residentes da ilha. Até então aproximadamente 50 beribéricos foram a tal cidade, de 1874 a
1875, e se curaram. Quando da visita de Silva Lima e Pacífico Pereira, em 1876, para
averiguar a situação, havia cerca de 20 doentes em tratamento, alguns pela segunda vez.
Em dezembro do mesmo ano, já falavam em mais de 60 beribéricos em tratamento, quase
todos soteropolitanos.71

O próprio governo reconheceu as vantagens da ilha. Em 1876, quando houve surto de


beribéri no Quartel da Palma, seus enfermos foram enviados para Itaparica.72 Em 1877, o
jornal Correio da Bahia de 19 de janeiro anunciava que os soldados do 14º Batalhão,
mesmo aqueles que chegaram à ilha em estado grave, carregados em padiolas, estavam já
restabelecidos. Nesse mesmo ano, nos Annaes Brazilienses de Medicina, o Dr. Domingos
Carlos mostrava os animadores resultados: de 200 casos observados por ele, apenas 9
vítimas fatais.73

69
SILVA LIMA, José Francisco de. Estado sanitário da cidade durante os últimos quatro mezes; moléstias reinantes. In: Gazeta
Médica da Bahia, Salvador, n.5, ano VIII, mai 1876a.
70
Gazeta Médica da Bahia, n.10 do ano VIII, de outubro de 1876.
71
SILVA LIMA, 1876b.
72
BERIBERI NO QUARTEL DE PALMA. In: Gazeta Médica da Bahia, n.3, ano XII. Salvador, set 1880.
73
AMARAL, 1879, p.50.

461
Por ser um substituto da viagem para locais mais distantes, a ilha foi chamada de Europa
dos Pobres, alcunha recorrente usada pela primeira vez pelo Dr. Luís Alves dos Santos, em
1877.74 O papel de Itaparica como sanatório natural sobreviveu à virada do século, como se
observa no caso dos beribéricos do Asilo João de Deus.75 Não somente era um lugar
benfazejo, como os poucos casos letais não seriam propriamente beribéri, mas outras
doenças.

Aqui se registra um fenômeno urbano: acompanha-se Itaparica, como extensão dos


problemas da capital com o beribéri. Para isso, teria a ilha uma enfermaria militar provisória
para beribéricos, aberta em dezembro de 1876, dados os constantes surtos epidêmicos em
várias guarnições.

A enfermaria da Ilha de Itaparica, aberta em Dezembro de 1876, recebeu


até Junho de 1877 oitenta beribéricos, dos quaes succumbiram sómente
sete, segundo faz notar o Dr. Domingos Carlos, e nos domicílios, sobre 200
casos observados por este pratico, falleceram apenas 9 individuos.

D´onde se vê que para aquella enfermaria tem-se uma mortandade de 4 por


100 e para os domicílios 2 1/2 por 100, entretanto a mortalidade na capital
sobre de 62 por 100. (AMARAL, 1879, p.39).

Pirajá da Silva acrescenta: estes 80 beribéricos em sua maioria estavam na enfermaria do


Hospital Militar de Salvador, até a medida emergencial. Dos sete falecidos, dois morreram
logo após a chegada, e outros dois nas primeiras 24 horas. Entre os curados em domicílio, o
desempenho fora ainda mais surpreendente; dos curados, alguns que sem sucesso
estiveram na Europa; dos 9 óbitos, quatro haviam falecido horas depois da chegada.
Entusiasmava-se: “agora só me cabe proclamar bem alto que a efficiencia do clima de
Itaparica, na cura do beriberi, não permite a minima duvida perante as estatisticas e em face
das provas incontestes dos factos”, daí sua justa fama de “sanatório ideal, para o beriberi, e
algumas doenças outras que affligem a humanidade”.76 Continua com os dados abonadores:

No anno de 1878, o Dr. Euclides Alves Requião teve sob sua competente
direcção, na enfermaria de beribericos em Itaparica, 53 doentes, sendo 27
homens e 26 mulheres; falleceram 19 e sahiram curados 34. Convem notar
que dos fallecidos, uns entraram em estado grave, devido a doenças outras,
concomitantes; um entrou agonizante e um outro contraiu a febre typhica,
de que succumbiu. (PIRAJÁ DA SILVA, 1923, p.XXXVI).

No entanto, essa enfermaria fechou.77 Talvez pela própria extinção da epidemia entre a sua
tropa, como observado por Silva Lima. Porém outra enfermaria foi estabelecida em
Itaparica, agora não mais provisória.

A [Enfermaria] de Beribericos – Esta enfermaria, collocada na fortaleza de


S. Lourenço, na ilha e cidade de Itaparica, recebe militares affectados de
beribéri e de outras moléstias intercorrentes. Está ao cargo do Dr. Augusto
Flávio Gommes Villaça, director da Casa de Saúde na mesma cidade, que
tem contracto lavrado com o ministério da guerra para esse serviço.
(VIANNA, 1893, p.359).

74
RELATÓRIO..., 1877, p.33.
75
CIRCUNDES DE CARVALHO, Anísio. O Asylo João de Deus. In: Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina, 1904.
Salvador, 1904, p.379.
76
PIRAJÁ DA SILVA. Notas. Memória Histórica sobre as victorias alcançadas pelos Itaparicanos no decurso da Campanha da
Bahia, quando o Brasil proclamou sua independência... Edição facsimilar da primeira e única edição. Nova Edição Annotada
por Pirajá da Silva. Typ. Social – Cine Theatro São Jeronymo. Bahia, 1923, p.XXXVI.
77
OS BERIBERICOS DO HOSPITAL DA CARIDADE. In: Gazeta Médica da Bahia, n.2, ano XI. Salvador, fev 1879.

462
O mesmo Dr. Augusto Villaça, responsável pela enfermaria e pela casa de saúde, foi o
delegado de Hygiene da Cidade de Itaparica.

Naquele então o hospital era uma instituição temida e evitada; recorria-se quando o enfermo
se encontrava em estado avançado da doença ou mesmo terminal, para obter os
sacramentos da morte cristã, inclusive o sepultamento, nos hospitais de ordens religiosas.78
Quando a doença ainda não avançara tanto é que se buscava o apoio de outras instituições
terapêuticas. Entre estas, as casas de saúde, estabelecimentos particulares de propriedade
de médicos. As casas de saúde não recebiam pacientes moribundos, como os hospitais, daí
a cautela em considerar seus bons resultados.79

A casa de saúde do Dr. Villaça foi inaugurada em 18 de janeiro de 1882. Dos 541 pacientes
que recebeu nesse interim, uns poucos morreram80, lembrando-se das características desse
perfil de estabelecimento. Situava-se “no poente da cidade próxima do mar e em um edifício
de grandes dimensões com proporções para 30 doentes em aposentos amplos e
arejados”.81 E recebia, além dos beribéricos, operandos e convalescentes de doenças não-
contagiosas.82 Segundo Lycurgo Santos Filho, o estabelecimento durou 10 anos; porém
encontramos um anúncio do mesmo, talvez em outro sobrado, de 1908 (Fig.211).
Prosseguindo, segundo o próprio Villaça, recebia

por ordem do ministro respectivo, funccionarios da marinha de diversas


cathegorias e todos restituídos à saúde; assim como paisanos d´este e de
outros Estados que continuam a procurar este estabelecimento para allivio
de seus males physicos, sendo raros os casos de óbitos contados durante o
anno que finda-se hoje, à excepção dos que falleceram de moléstias
intercorrentes ou por terem chegado quasi moribundos (VILLAÇA, 1897,
p.7).

Em 1909 o estabelecimento ainda funcionava, e foi nele que o afamado Dr. Alfredo de Britto
faleceu, aos 43 anos de idade, no dia 13 de maio, onde se encontrava em tratamento contra
infecção paratífica, complicada por beribéri.83

Itaparica era vista como um lugar benfazejo para enfermos de outras moléstias,
“principalmente as affecções nervosas, engorgitamentos hepathicos, soffrimentos de
estomago e febre rebeldes, devidas ao impaludismo”.84 A afluência de visitantes por
motivações climatéricas, em especial como resposta à suposta epidemia de beribéri, foi
responsável pela vilegiatura na Ilha de Itaparica, ou por nova onda.

Depois que se descobriu serem os ares e a água da cidade (fonte da bica)


proveitosos aos doentes de beribéri, é que a sorte da Villa, já bem
decadente, muito se melhorou, pela grande affluencia de doentes que alli
procuravam melhorar, construindo-se novos quarteirões com casas
elegantes e alegres, nem só n´uma rua do lado de N.E., a que seu o
pomposo nome de Boulevard, como, ao S. da cidade, n´um campo, que
tomou o título de Campo Formoso. (VIANNA, 1893, p.445).

78
BRAGA RIOS, 2001.
79
BRAGA RIOS, 2001, p.167.
80
Em 1882, inaugurou-se uma casa de saúde na então Vila de Itaparica, e propriedade do facultativo Augusto Flávio
Gomes Vilaça. Em 10 anos de funcionamento, informa-nos Lycurgo Santos Filho, este estabelecimento internou 541
pacientes, com ínfimo índice letal. Mas, é bom lembrar, que as casas de saúde não recebiam doentes “gravíssimos”,
sendo, assim, difícil conferir a esses resultados estatísticos favoráveis, a qualidade do tratamento e dos médicos
responsáveis. (BRAGA RIOS, 2001, p.167).
81
VIANNA, 1893, p.359.
82
A Casa de Saúde de Itaparica foi apresentada aos pacientes como o “espaço perfeito para receber doentes de beribéri,
de febres miasmáticas, moléstias crônicas e nervosas e aos convalescentes de qualquer moléstia não contagiosa [...]”.
A ilha tinha, para aquela época, um perfil ideal para tratamento de saúde. (BRAGA RIOS, 2001, p.69).
83
BRITTO, 2002, p.329.
84
VILLAÇA, Augusto Flavio Gomes. Relatório apresentado à Inspectoria Geral de Hygiene, 31 dez 1897. In: DIAS, Satyro de
Oliveira Dias. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Cons. Luiz Vianna, 7 mar 1898, p.5.

463
Figura 211 – Casa de Saúde do Dr. Augusto Villaça, em Itaparica. Fonte: REVISTA CÍVICA n.1, 7 set
1908.

464
A mesma Memória de Francisco Vicente Vianna, ao descrever a situação física da ilha, deu
sinais das antigas atividades econômicas, minguantes, como os resquícios da antiga
indústria caieira, dos alambiques, dos estaleiros. E mesmo extintas, como a cordoaria e a
caça e beneficiamento das baleias. Notícia de 1877 já mostrava esse fenômeno em seu
início: “muitas das pessoas que para aqui vieram, ou por doentes ou para passar a festa,
agradaram-se tanto da localidade que teem comprado casas para retirarem-se para aqui
durante a estação quente”.85 O que não temos registros é do veraneio em Itaparica sem fins
terapêuticos nessa época.

Outros Sanatórios Naturais: os lugares de sempre


As características do meio em Itaparica deveriam ser similares, pelo menos ao olhar dos
médicos, às de outros sítios também reputados como salubres, embora sem o mesmo
desempenho.

No final do século XIX, Itapagipe era local de veraneio e convalescença de enfermos, tanto
pessoas comuns quanto de médicos, como o Dr. Monteiro de Carvalho, “convalescendo em
Itapagipe”86, em certa feita. Se, como defendemos, os banhos salgados aparecem como
benesse adjacente a um veraneio de tons festivos, a Medicina baiana endossava as virtudes
ambientais, mais gerais, desse mesmo lugar, no último quarto do século.

N´esta cidade tem-se curado alguns em estado muito grave na península


d´Itapagipe e especialmente na Penha; esta localidade, quasi inteiramente
cercada de mar, com um solo arenoso e enxuto, offerece um refugio
vantajoso para os beribericos que não podem ou não querem ir para a
Europa ou para Itaparica, porém muito menos seguro. (SILVA LIMA, 1878,
p.257).

A Penha parecia ter virtudes terapêuticas mesmo em época já avançada. Quando da crise
de beribéri entre os presos da Penitenciária do Estado, em 1933, o médico da instituição, o
Dr. João I de Mendonça, observava que, retirados do lugar, iam para Penha, onde se
restabeleciam mal chegando. Assim como outra parte da mesma península de Itapagipe, a
região de Montserrate, para onde fora o próprio Dr. Silva Lima, também ele vítima do
beriberi, e que se curou “emquanto esperava o paquete, que o devia transportar para a
Europa”.87 Entendia-se como sítio adequado para sanatório.

Depois de diversos exames, escolheu S. Ex. [o Governado do Estado] a


parte de Mont-Serrat justamente reputada como um ótimo sanatório para o
beribéri e ali fez instalar nas dependências de um convento uma enfermaria
de ocasião [...] (CIRCUNDES DE CARVALHO, 1904, p.381).

E, no outro extremo da expansão litorânea da cidade, Barra e Rio Vermelho, também


tradicionais lugares de veraneio: “os logares para onde são mandados os beribericos, são: o
Rio Vermelho, a Barra e a ilha de Itaparica; nessa ilha os resultados têm sido muito
vantajosos e da mesma maneira na povoação do Rio Vermelho”.88 Repete-se na Tese
Inaugural de Francisco Bráulio Pereira: “ouvimos noticiar [...] de innumeros affectados de
beriberi, que, de vezes, pela simples remoção para Itapagipe, Rio-Vermelho, Itaparica,
etc.”.89 E em Relatório oficial: “a remoção de doentes para Itaparica, Rio Vermelho e outros

85
OS BERIBERICOS EM ITAPARICA. In: Gazeta Médica da Bahia, n.1, ano IX. Salvador, jan 1877.
86
BRITTO, Alfredo. Endo-epidemia de abastia choreiforme na Bahia. In: Gazeta Médica da Bahia, n.3, ano XXIII. Salvador, set
1891.
87
PIRAJÁ DA SILVA, 1923, p.XXXI.
88
SANTOS, 1899, p.369.
89
PEREIRA, Francisco Braulio. Beriberi no Brazil. These para o Doutorado em Medicina sustentada por Francisco Braulio
Pereira. Salvador: Litho-typographia de João Gonçalves Tourinho, Arcos de Santa Barbara, n.83, 1881a, p.200.

465
logares beira-mar, foi o meio mais poderoso de cura para esta enfermidade”.90 Silva Lima
conta caso passado no Rio Vermelho.

[...] ao contrario de outro observado há cerca de 16 annos pelo meu amigo


Dr. Santos Pereira, em um nosso collega, que tendo ido para o Rio
Vermelho, attacado de beribéri, foi ali accommettido de varíola, e
simultaneamente se restabeleceu de ambas as moléstias, sem que desde
então o beribéri, como frequentemente succede, tenha reincidido. (SILVA
LIMA, 1890, p.57).

Na biografia de José Alvares do Amaral, a quem tanto citamos, diz-se que fora
“accommettido de insidioso beriberi, veio a fallecer no arrabalde do Rio Vermelho, aos tres
dias do mez de novembro de 1882”.91 Com beribéri faleceu no Rio Vermelho: provavelmente
lugar aonde foi para curar-se.

O litoral era entendido como virtuoso, a ponto de aparecer como sanatorium um lugar
inaudito: “ultimamente tem se apreciado uma localidade maravilhosa para o tratamento do
beriberi; é a Fortaleza de S. Marcello, vulgarmente chamada – Fórte do Mar”.92

Vejamos com mais atenção o papel dos banhos de mar dentro do quadro da Medicina local.

10.4. A Consolidaçao dos Banhos Salgados


Os banhos salgados, como vimos, foram adotados pelas classes altas. E cresceram de
importância na segunda metade do século XIX, até por conta do beribéri. No que diz
respeito às recomendações médicas, não tinham exclusividade, porém: vinham sempre num
conjunto de preceitos balneoterápicos, como um todo, incluindo os banhos
medicamentosos.

Banhos de mar, banhos galvânicos e duchas frias (devemos, porem, notar


que na forma paralytica produzem melhores resultados), banhos tambem
com o cosimento de certas plantas, e.g., o betys, a herva de bicho ou
polygonum anti-hemorrhoidale (Dr. Remedios Monteiro), o juá de capote,
Physalis pubescens (Dr. Miranda Azevedo), a fava d´anta ou Tataperirica da
família das Leguminosas, o páu pereira, o eucalyptus globalus [...]
(PEREIRA, 1881, p.220).

No caso do beribéri, o tratamento com os banhos salgados, ainda mais in natura, não
deveria ser indiscriminado. Silva Lima distinguia a eficiência dos banhos salgados para as
formas do beribéri, recomendações seguidas pela grande maioria dos médicos locais.
Extremamente adequado para a forma paralítica, era inútil, e mesmo prejudicial, para a
forma edematosa:

Os banhos de mar foram também de grande utilidade, mas quase


exclusivamente na forma paralytica; na edematosa, pelo contrario, ou não
approveitaram, ou foram positivamente prejudiciaes, como tive occasião de
observar em numerosos exemplos, e nomeadamente em um individuo que
não poude supportar mais do que três ou quatro banhos; augmentou-se-lhe
por tal modo a inchação geral e a dyspnea que voltou logo da Barra para a

90
RELATÓRIO..., 1882, p.9.
91
AMARAL, 1922, p.5
92
AMARAL, 1879, p.50.

466
cidade, onde falleceu poucos dias depois asphyxiado. (SILVA LIMA, 1869,
p.145).93

O mesmo Silva Lima narra em 1867 o caso do Sr. M.F., de 50 anos, morador de Feira de
Santa Anna, que “tomou banhos salgados na Barra, vindo a restabelecer-se lentamente, em
cerca de nove mezes de tratamento, mais hygienico do que pharmaceutico”.94 Também era
o Rio Vermelho, em que “ali, em uma outra localidade, à beira-mar, os doentes fazem uso
quasi exclusivamente dos banhos de mar e quasi sempre com os melhores resultados”.95

Já em 1876, era prescrição comum o banho de mar: “a quina e seus derivados, a noz-
vomica, a strychnica, o arsênico, especialmente a solução de Fowler, o arseniato de ferrro,
os banhos frios de choque, os banhos de mar têm sido usados com vantagens, na forma
paralytica”.96 Tal enunciado, assim de longo, muito provavelmente era fórmula consagrada
na Faculdade porque dois anos depois, nas Proposições de outra Tese Inaugural, texto
similar foi defendido.97 Os banhos de mar sempre apareciam junto com a hidroterapia, ou
complementares, ou alternando-se para as duas formas do beribéri: “os banhos de mar são
considerados de immensa utilidade quando o Beriberi apresenta-se sob a forma
paralytica”98, ou “os banhos de mar não são empregados na forma edematosa. A
hydrotherapia é indicada, e com alguma vantagem”.99

Em 1883, Antônio Militão de Bragança também recomendava os banhos salgados, mas


lança uma explicação, inusual no conjunto da literatura pesquisada:

Na forma paralytica são preconisados os meios estimulantes: o linimento


terebinthinado, opiado, os sinapsismos, as cantharidas, fricções com iodo,
com oleo de croton, e finalmente os banhos salgados, cujo effeito salutar
explica-se não só pelo estímulo que levam à innervação pelo seu gráo de
temperatura, como ainda pelas correntes de diffusão gazoza que se
estabelecem entre o oxygeneo puro dissolvido nas aguas do mar e o acido
carbonico accumulado no sangue. (BRAGANÇA, 1883, p.96).100

Não seria apenas a temperatura, daí as duchas frias serem análogas, estimulando a reação
corporal, a sua vitalidade interna, mas o oxigênio contido na água.

No geral, o banho salgado, simples e acessível, não dependia de recomendação médica.


Silva Lima fala de paciente, português, de cerca de 30 anos, de nome A.G. da Costa, que
em 1866, com dores no peito, tomara seus banhos salgados.101 Seria técnica versátil para
vários males. Silva Lima narra sobre o paciente Sr. F., natural da Bahia, de 33 anos de
idade, o uso de banhos salgados, dentre outros métodos, para combater a atrofia muscular.

O próprio doente lembrou-se ainda de ensaiar conjunctamente os banhos


salgados, ao que eu annui; foi, por isso, no princípio de Maio, para o Rio

93
SILVA LIMA, José Francisco de. Contribuição para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia sob a forma
epidêmica, e caracterizada por paralysia, edema, e fraqueza geral. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.61, ano III, 15
fev 1869.
94
SILVA LIMA. J.F. Contribuição para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia sob a forma epidêmica, e
caracterizada por paralysia, edema, e fraqueza geral. In: Gazeta Médica da Bahia, n.16, ano I. Salvador, 25 fev 1867a, p.184.
95
SANTOS, 1899, p.369.
96
TEIXEIRA, Diógenes José. Qual o melhor tratamento da febre amarella? These para o Doutoramento de Diógenes José
Teixeira. Salvador: Typ. Constitucional, 1876, p.53.
97
DELLA CELLA, Symphronio F. Da Pustula Maligna, Sua Curabilidade, Indicar as Bases de um Tratamento Racional. These
apresentada e publicamente sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia em novembro de 1878 a fim de obter o
gráo de Doutor por Symphronio F. Della Cella. Salvador: Typ. de Affonso Ramos & C., 2, Rua de St. Barbara, 1878, p.46.
98
SILVA, Eduardo Ribeiro da. Beriberi. THESE para o Doutorado em Medicina apresentada para ser publicamente sustentada
por Eduardo Ribeiro da Silva. Salvador: Imprensa Economica, Rua dos Algibebes, 22, 1878, p.63.
99
CAMARA, 1883, p.48.
100
BRAGANÇA, Antonio Militão de. Paralysias Consecutivas às Molestias Agudas. These apresentada à Faculdade de
Medicina da Bahia em 30 de agosto de 1883 para o Doutoramento de Antonio Militão de Bragança. Salvador: Imprensa
Econômica, Rua Nova das Princezas, 18, 1883.
101
SILVA LIMA, 1867, p.219.

467
Vermelho, de onde vinha depois à cidade uma ou duas vezes por mez, para
me consultar. (SILVA LIMA, 1869, p.231).

Para a clorose (um tipo de anemia), paralisias e doenças musculares, ataxia locomotriz
progressiva, males de mês natureza.102 O Dr. Pedro S. de Magalhães recomendou os
banhos de mar, junto com outras técnicas, para um paciente acometido de filaríase.103 Em
1884, uma indicação de banho de mar, porém de preferência o de rio, para a hematuria
gordurosa.104 Também para a angina diftérica, “as locaes rápidas na água fria, sobretudo as
affusões frias e os banhos de mar”.105 E para escrófulas.106

Curiosamente, encontramos uma ênfase muito maior na hidroterapia.

A hidroterapia tem um peso expressivo na produção da Faculdade de Medicina. Aparece de


maneira mais estruturada, com uma literatura científica internacional consultada e citada, e
estabelecimentos hidroterápicos propriamente ditos, com utensilagem particular,
responsável pela domesticação da água. Pela sua mecanização, com duchas e aparelhos
de toda sorte, e o controle científico da força dos jatos (pela distância mensurada da fonte e
do paciente), da temperatura e qualidade (se pura, salgada, com medicamentos) da água,
tempo de exposição, área do corpo exposta, e tipificação dos males enfrentados e curados.
A diferença entre esta forma de usar a água, totalmente mensurada, e os banhos de mar a
céu aberto, é surpreendente.

Em Salvador houve dois estabelecimentos hidroterápicos, na região central da cidade. O


primeiro, que teria começado a funcionar em 9 de fevereiro de 1880, pertencia ao
Conselheiro Salutiano Ferreira Souto.

60. Principiou a funccionar o Estabelecimento Hydropathico instituído nesta


Capital, à rua do Hospicio, Freguezia de S. Pedro, pelo illustrado Lente
aposentado da Faculdade de Medicina desta Provincia, o Conselheiro Dr.
Salustiano Ferreira Souto, onde os doentes encontram douches moveis e
variados de força, banhos circulares e de chuva, frios, mornos etc., e um
bom apparelho filiforme com 72 fios d´água, próprio para o curativo dos
nervos, e de moléstias da columna vertebral. (ALMANAK..., 1881, p.30).

Houve outro estabelecimento no Largo da Ajuda, mencionado já em 1882, na Tese


Inaugural de Manoel de Sá Gordilho.107 Em 1883 aparece sua propaganda.

Grande estabelecimento hydrotherapico ao Largo d´Ajuda

N´este importante estabelecimento, montado segundo todas as exigencias


da hydrotherapia moderna, existem variadas especies de banhos, como
sejam

102
FERREIRA JÚNIOR, José Duarte. Chlorose. These apresentada para ser sustentada perante a Faculdade de Medicina em
novembro de 1869 por José Duarte Ferreira Júnior. Salvador: Typ. de J.G. Tourinho, 1869, p.24; BRAGANÇA, 1883, p.79;
LEITE, João José de Oliveira. Ataxia Locomotriz Progressiva. These apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia e
publicamente sustentada durante a mesma afim de obter o gráo de Doutor em Medicina por João José de Oliveira Leite.
Salvador: Typ. Bibliotheca dos Dous Mundos, 1882, p.48.
103
MAGALHÃES, Pedro S. de. Ainda algumas palavras sobre filariose de Wucherer. In: Gazeta Médica da Bahia, n.12, ano XI.
Salvador, dez 1879, p.539.
104
SANTOS, Domingos Pedro dos. Hemato-Chyluria dos Paizes Quentes. These Inaugural apresentada em 30 de maio de
1884 Faculdade de Medicina da Bahia para ser publicamente defendida em novembro do mesmo anno afim de obter o grau
de Doutor em Medicina por Domingos Pedro dos Santos. Salvador: Typ. dos Dous Mundos, Rua Conselheiro Saraiva, 41,
1884, p.62.
105
FEBRE REMITTENTE DAS REGIÕES TROPICAES. Salvador: s/d, 1874, p.47.
106
REDIG, Joaquim Marques. Hydrotherapia. These para o Doutorado em Medicina apresentada à Faculdade da Bahia a 27 de
fevereiro de 1884 para ser perante ella sustenta por Joaquim Marques Redig. Salvador: Imprensa Economica, Rua Nova das
Princesas, 15, 1883,, p.87
107
GORDILHO, Manoel de Sá. Considerações acerca das Operações Obstetricas mais Preconisadas. These Inaugural
apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia por Manoel de Sá Gordilho. Salvador: Litho-typographia de João Gonçalves
Tourinho, Arcos de Santa Barbara, n.83, 1882.

468
Banhos galvanisados, russos, escocezes, quentes e frios, banhos de
vapor, medicinaes, alcalinos, sulfurosos, duchas, filiformes, uterinas,
perineaes, etc., etc.

[...]

Preço de cada ducha – 500 reis.


(ALMANACH..., 1883, p.9)108.

Esse banho medicinal era propiciado por especialistas, fora do domicílio do paciente, em um
local preparado para tanto, em local central. De toda sorte, é uma das únicas menções a
estabelecimento do tipo, privado e fora da praia. Nos anos subseqüentes, repetiu-se a
propaganda, com variação mínima. Aparentemente era o beribéri a enfermidade que servia
como demanda para a hidroterapia e seus aparatos, prescrição constante em todos os
documentos médicos:

Dias depois [o Dr. Souto] foi chamado para examinar o Dr. Coelho Moreira,
medico, que tinha sido affectado de beribéri galopante.

[...]

Tendo o Dr. Coelho Moreira conhecimento da cura obtida pela doente já


citada, quiz submetter-se ao tratamento electro-hydrotherapico, emquanto
não encontrava casa em Itaparica.

Foi ao estabelecimento subindo e descendo as escadas auxiliado por duas


pessoas e precisando de quatro pessoas para entrar no banho galvanisado.

Depois de 12 dias este collega subia e descia as escadas e entrava e sahia


do banho sem auxilio de pessoa alguma. (LIMA, 1881, p.501).

No entanto, comenta que eram poucos pacientes que se submetiam a esse tratamento,
embora todos saíssem curados. Para essa enfermidade, nas recomendações aparecem
mescladas, junto ao banho de mar, ou seja, o uso específico da praia, o elogio geral do ar
marítimo, e a recomendação para passeios na praia ou pelo mar.

Não houve entusiasmo da classe médica baiana pelos banhos salgados, mesmo durante
seu êxito social, sua expansão, e a consolidação como hábito. Por outro lado, malgrado todo
o entusiasmo pela hidroterapia em estabelecimentos centrais, e pagos, o banho nos
“sanatórios naturais”, gratuito e convergente com outras vantagens, foi o que vingou.

Os médicos chegaram depois. Como classe, como instituição, pesquisas, clínicos, para mais
além dos médicos de família.

De toda sorte, encontramos que os sítios de veraneio continentais – Barra, Rio Vermelho e
Itapagipe (Penha e Montserrate) – se viram reforçados pelas vantagens terapêuticas
reconhecidas pela classe médica, e aparentemente aceitas pela população, para
considerado surto, e depois endemia, de beribéri. E que Itaparica, pelos indícios que temos,
viu a sua vilegiatura propelida pela sua fama de salubridade, que a tornava a Europa dos
Pobres, razão do estabelecimento de instituições de saúde para o combate à avitaminose.

108
ALMANACH DO DIARIO DE NOTICIAS PARA 1883. 3º Ano. Salvador, s/d a.

469
Das teorias etiológicas do beribéri, aquela capitaneada por Silva Lima, e depois mantida por
Pacífico Pereira, que atribuía ao clima (à umidade e calor) encontrava uma explicação
coerente para as qualidades dos sítios litorâneos de veraneio.

Não apareceram intentos a partir da teoria alimentar e da miasmática para interpretar o êxito
empírico desses lugares. Pacífico Pereira, que cogita a dieta das localidades litorâneas, não
desenvolve a hipótese. Mas no século XIX a alimentação das antigas comunidades de
pescadores não era tida como saudável. Ao contrário, seria responsável, ela própria, por
moléstias que, por isso, incidiam no litoral. E justamente nos lugares tidos como salubres.

A partir do momento em que a única solução, consensual e comprovada, para enfrentar o


que se entendeu inicialmente como uma epidemia – e depois se tornou uma endemia – era
um lugar salubre, criou-se um reforço no deslocamento das pessoas da Salvador da virada
do século XIX ao XX. Esse sítio saudável era à beira-mar, e sem sucedâneo eficiente na
forma de tratamento ou fármaco, o efeito parece ter sido a ativação da vilegiatura litorânea
na ilha de Itaparica, limitada pelas dificuldades de acesso, e o reforço da vilegiatura em
arrabaldes em franco dinamismo – na Península de Itapagipe, na Barra e no Rio Vermelho.
Precisamos destacar que não era algo intencional, mas acidental. Algo que fugia
completamente ao controle dos médicos. No máximo, aproveitado por profissionais como o
Dr. Villaça.

A produção da Medicina orbita sobretudo em função de situações-problemas de uma dada


sociedade; no caso de Salvador, muito em torno do beribéri, da tuberculose e da malária.109
E nisso há um certo império do empírico: aquilo que se demonstra como efetivo tem um
poder avassalador, a despeito da total ignorância teorética, ou mesmo de operar a
contrapelo das doutrinas em vigor. E, no caso do beribéri, enfermidade crucial para a
retomada de Itaparica, por conta das investigações, prática médica e proselitismo, científico
e político, do Dr. Silva Lima.

Os banhos de mar medicalizados não necessariamente estão ligados à rica sinestesia e


rituais complexos, do confronto com o mar aberto que vigorou na Europa, com o choque na
frente de ondas, e o mergulho, auxiliado por curistas, em períodos cronometrados. Até
porque os balneários eram em lugares de águas mais serenas, com exceção do Rio
Vermelho.

A aproximação registrada e defendida pela classe médica não é genérica. Está centrada no
que se entende por uma epidemia, o beribéri, cuja melhor solução era a mera mudança de
ares, e cujo paliativo para a população local era a mudança para arrabaldes, para sanatórios
naturais paliativos, com prioridade para Itaparica. Os banhos de mar quase não
comparecem nas recomendações das Teses da Faculdade de Medicina, e sequer é alvo de
um estudo mais aprofundado. Se é constante para o beribéri, aparece de maneira menor,
muito menor, para outras patologias.

Ensaia-se uma alternativa à talassoterapia: a hidroterapia em estabelecimentos. Com maior


constância, e mesmo sendo objeto de estudo, e de descrições maiores. A Medicina formal,
ensinada, chegou depois dos banhos salgados se consolidarem como hábito, e dos sítios de
veraneio, que já eram de antes, em muitos casos à revelia das teorias mais gerais. Se a
preocupação com a saúde foi a origem dos banhos salgados, e de alguns arrabaldes serem
visitados, não aconteceu por ação do ensino formal da Medicina e por campanhas em suas
publicações.

109
PAZ, 2011.

470
471
Epílogo
AO CAMPO!
Achamo-nos em plena festa.

Dezembro já vai quase em meio; a Conceição deixou-nos o seu cartão de


visita, promettendo voltar para o anno do mesmo dia com suas procissões,
missas, forrobodós, etc.

Todos preparam-se para descansar do labor quotidiano lá pelo campo, nas


vastas roças, nos pittorescos arrabaldes.

A cidade vai sendo desprezada pelo Rio Vermelho, Itapagipe, Barra, Cabula
e por outros tantos excellentes pontos de recreio.

É preciso ar – e só na roça, orlada de frondosos arvoredos, em cujas


tranças cicia livremente a brisa, onde canta alegre e doida a passarada, é
que nos podemos furtar ao terrível calor que torna a cidade, nesta quadra
do anno, immensamente insupportavel.

É preciso descanço – e só na roça, à sombra da copa da mangueira,


deliciando-nos com as magníficas fructas da temporada, é que nos
podemos reanimar para a lucta de novos longos meses.

E o povo vai deixando a cidade, num como que rancho de Reis, ao


alborecer da madrugada, precedido de sonoros pinhos, harmonicas,
castanholas, etc.

Os arrabaldes recebem prasenteniros os patuscos hospedes que vão à


verde mesa de relva saborear a classica feijoada.

E como é bella a vida no campo!

Moços e velhos todos affluem aos mais saudaveis arrabaldes. Os velhos


contentam-se com a saudosa recordação dos tempos em que eram boas
pernas, que desperta-lhes a garrulice do rebusto rapazio, regando-a com a
água dos cajús, abacaxis e cocos molles.

Os moços dançam, cantam, pulam, gritam, desesperadamente, cada qual


com a sua prima do lado.

É mesmo um gosto ver-se fervilhar a panella da feijoada – uma lata de gaz -


, esgotarem-se as garrafas e garrafões da canninha, e se esvasiarem
cestos e cestos de cajús e mangas!

Ao campo! Ao campo!1

Esta longa citação nos serve para ilustrar o que foi nossa primeira hipótese, ponto de partida
para esta história do litoral. Iniciaria da Primeira República, quando a praia era mais visível,
ostensiva em certo momento, nas publicações que começavam a enfatizar a vida mundana,
no centro da cidade e nas festas de verão. Era o que denominamos Ciclo dos Arrabaldes.

Em um sentido, é um arranjo geográfico, um entorno rural da cidade, de clima mais ameno


diante da canícula do verão, distante o bastante para brindar a sensação de estar no campo
e próximo o suficiente para ser uma jornada breve, à qual se ia sem grandes despesas.

1
A COISA – crítica, satyrica e humorística. 12 dez 1897. Salvador: s/d.

472
Era também um cotidiano, repetido em cada arrabalde, com muitos aspectos em comum. As
famílias em veraneio deslocavam-se por inteiro, com tempo ocioso, em especial para os
jovens. Sua fé se manifestava na colaboração com as devoções locais, organizando seus
festejos, leilões, quermesses. Os jovens tinham seus afazeres particulares, seus meios e
locais de encontro. Servia como uma incubadora de uma série de atividades, algumas
rurais, outras mais urbanas; algumas tradicionais, outras modernas. Falamos do teatro
amador, das serenatas e das filarmônicas, do começo dos esportes modernos na cidade,
como o futebol e as regatas.

E, em outra escala, era um calendário festivo urbano, coletivo, onde as festas no centro da
cidade e nestes arrabaldes marcavam uma pauta e uma movimentação global. Como era a
Festa de Reis na Lapinha, o Ciclo do Bonfim, e a de N. Sra. de Sant´Anna, no Rio Vermelho,
com seu Bando Anunciador, que prenunciava o Carnaval, a apoteose daquele ciclo e o
encerramento da temporada de verão. Os arrabaldes competiam entre si, com suas festas,
com seus Ternos e Ranchos, e outras associações e agremiações, mas também acabavam
formando um sistema em desenvolvimento.

Mas, o que eram os arrabaldes? O termo no Brasil ganhou a conotação da periferia da


cidade.2 No entanto, temos, ao menos em Salvador, algo ainda mais interessante.
Invariavelmente apareciam denominados por uma única e constante expressão: o pitoresco
arrabalde. Isso nos diz algo sobre tais lugares, como algo rústico e encantador. Algumas
construções mais nobres, entremeadas daquelas mais simples, e mesmo as de pau-a-pique,
cercadas por roças e quintais. Atributo de praticamente toda a área suburbana, não tinha
ainda conotação negativa, nem era tamanha a discrepância da urbanização entre um e
outro. Não era o subúrbio como conhecemos hoje, em nenhuma de suas acepções. Não era
mais a zona rural inerme, tampouco a urbe de pleno direito. Nem a discrepância entre a
capital e o interior era expressiva: “os costumes, o nível de civilização, por aqueles tempos,
pouco diferiam entre o sertão e o litoral [...] As comodidades urbanas por sua vez – a água
encanada, o gás, o calçamento, a iluminação, os transportes rápidos – ainda estavam por
vir”.3 E quais eram os arrabaldes significativos para a cidade?

No texto satírico com que abrimos este capítulo, era o Rio Vermelho, Barra, Itapagipe (talvez
aqui não mais a Ribeira, mas a península como um todo) e Cabula. Enumerou Dr. Francisco
Vicente Vianna no final do século XIX:

Entre os arrabaldes mais estimados da Bahia notam-se o Rio-Vermelho, a


Barra, a Boa-Viagem, o Monte-Serrate, Itapagipe e Plataforma, todos
marítimos; Pitangueiras, Castro-Neves, Cabula, Brotas e Cidade de Palha,
de caracter campestre. (VIANNA, 1893, p.418).4

Muito está aqui. Distinguia os litorâneos dos campestres, mas essa diferença não é
substantiva, apenas de uma feição a mais dos primeiros, já que estes também tinham feição
rural – ainda chácaras e roças, ainda animais apascentando (e mesmo atrapalhando os
intentos de arborização), ainda rios e córregos próximos. Nesse momento a “boa sociedade”
procurava o Rio Vermelho e a Barra para os banhos salgados. Sabemos também que os
banhos eram hábito em Itapagipe; a diferença estava na “boa sociedade”.

2
Ao contrário, por exemplo, da Argentina, onde arrabal, a versão em castelhano do vocábulo de origem árabe, está
relacionado ao bas-fond.
3
PINHO, 1937, p.35
4
VIANNA, 1893

473
Por exemplo, o Dr. Luís Anselmo da Fonseca, Lente catedrático de Higiene na Faculdade de
Medicina, em texto seu de 1907 sobre o tema, enumera como arrabaldes a Barra, o Rio
Vermelho, Ribeira, não cumpre se olvidar, São Lázaro e Brotas, por exemplo.5 E ponderou.

Os nossos principais arrabaldes, Barra e Rio Vermelho, ambos situados à


beira do monótono oceano e ambos circunscritos, já pelas colinas, já pelos
areais, em espaços muito acanhados, são ordinariamente incômodos ou
pela aspereza dos ventos ou pelo calor excessivo.

O primeiro deles tem, em certa extensão, algumas dezenas de árvores,


posto que na maioria sejam das mais impróprias e condenáveis para o fim
que se destinaram: no último, apenas se vêem duas, na pequena praça de
S. Anna e menos e uma dúzia, na praça Colombo, que é muito maior do
que a outra; de forma que ali, em não se estando dentro de alguma
habitação, é raríssimo achar-se abrigo contra os raios do sol. (FONSECA,
1908, p.116).

No periódico satírico A Coisa, fazia-se piada com o Santo Antônio Além do Carmo

Santo Antônio é considerada por todos um arrabalde, até mesmo pelos


seus próprios habitantes, a principiar por mim, que quando têm de sair della,
costumam dizer “vamos à cidade”, como os tabaréos quando saem como
destino à esta capital: “vamos à Bahia”.6

Apesar da troça, não estava tão distante da realidade. A região da Lapinha e da Soledade
tinha ares campestres, até pela topografia da cidade, com fundos de vale cultivados.

O texto de 1897 d´A Coisa dava motivos que conhecemos. A fuga do calor. O descanso.
Para os mais velhos, a saúde, com uma dieta campestre. Mas os “patuscos hóspedes”
viveriam patuscadas diariamente, divertindo-se à fresca, sob a copa das árvores, e os
jovens se divertiriam. O cosmopolitismo que suspeitamos já existir em meados do século
XIX era plenamente assumido nas décadas posteriores.

Afonso Costa, sobre Adelia Josephina de Castro Rebello, nascida em 1827, no centenário
de seu nascimento, reportou o que escrevera outrem em 1885:

“Eram bem outros os torneios literários da Bahia, engrinaldados por


senhoras duplamente bellas, emparaisados de harmonias, luzes e flores,
em sociabilidade morigeradora, irresistível à criatura mais excentrica; em
confortaveis lares, em pitorescos arrabaldes, no alto do Bonfim, na ponta de
Montserrat, nas povoações da Barra, do Rio Vermelho, em noites quaes as
da véspera de Natal, de Reis, de Pascoa e de S. João, em convívios até
romper a madrugada, em dias festivos à sombra das mangueiras, em
calorosas palestras à beira-mar, ao sol posto, entre cantilenas e anjos da
terra, em longos embevecimentos, ao clarão do plenilúnio que prateava aos
areiaes da praia requestada pelos soluços do oceano.” (COSTA, 1927,
p.451).7

Aqui temos os elementos que perfazem esse ciclo dos arrabaldes no final do Oitocentos, o
calendário festivo da cidade, que se estruturara distribuído entre o centro da cidade e
localidades como o Bonfim e Montserrate, Barra e o Rio Vermelho.

5
FONSECA, L. Anselmo da. Hygiene Pública aplicada à Cidade da Bahia. In: Revista dos Cursos da Faculdae de Medicina.
Bahia: Typ. Bahiana, de Cincinnatto Melchiades, Rua do Arsenal da Marinha, 25, 1908.
6
A COISA – crítica, satyrica e humorística. 25 mar 1900. Salvador: s/d.
7
COSTA, 1927

474
Mostrava também parte de um longo percurso nas modalidades de socialização, dos salões
a áreas abertas, e, nelas, lugares de encontro litorâneos. Todos integrados a um sistema
que se desdobrara de um núcleo urbano pequeno e consolidado, e tateava por aqueles
arrabaldes. Alberto Silva, ao falar sobre a vida de Castro Alves, nos mostra algo disso:

Conheceu, assim, Castro Alves vários pontos desta Capital, como Barra,
Rio Vermelho, Itapagipe, onde fazia serenatas no adro da Igreja do Rosário.
Bonfim onde freqüentava um improvisado teatrinho, localizado na sua
Baixa. Brotas, onde parava sempre a contemplar o solar do velho pai,
finalmente, Mapele, onde compartia dos convescotes da família Argolo.
Mas, de todos estes sítios de seus passeios, a Barra, melhor o Farol da
Barra, devia ter sido o da sua predileção, pelo numero de vezes visitado.
(SILVA, 1953, p.188).8

Este era um quadro impensável na primeira metade do Oitcentos.

Tais arrabaldes eram visitados pela população urbana, que tinha ali uma segunda
residência, alugava por temporada ou ainda se hospedava na casa de parentes e amigos. O
veraneio pode ser um retiro solitário ou em família, como uma socialização deslocada, fora
da cidade, com todas as pessoas com quem é bom encontrar-se.

Atividades que ocorriam e que permaneciam discretas vinham à luz pública pouco a pouco.
A esfera pública se modificava. Isto pode se perceber no conteúdo dos periódicos ao longo
da segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do subseqüente. De assuntos
políticos, aparecem mais e mais temas cotidianos e familiares, com presença maior das
mulheres. Tampouco foi algo veloz, explodindo mais abertamente a partir dos anos 1920.

Entre 1890 e 1900 quase não vimos menção ao litoral, especificamente. Em uma sociedade
hipocondríaca, são apenas referências laterais. Somente depois que o veraneio e os banhos
salgados se tornaram assunto dignos de notícia, de presença nesse espelho em que uma
sociedade se vê e fala com si mesma. Passou a ter atividades que mereciam divulgação, e
estes meios começaram a ser lidos por gente que se interessava conversar de tais
assuntos. Se tomados como fonte única, não pareceria haver um veraneio significativo,
muito menos os banhos salgados naquela mudança de século, quando vimos que era algo
arraigado por muitas décadas.

Itaparica tivera seu papel na dinâmica do veraneio da capital incrementado com a epidemia
de beriberi. No conto Jana e Joel, publicado no livro Os Praieiros, primeira edição de 1899,
descrevia-se “uma família em vilegiatura”9. Outros lugares da grande baía também seriam
sítio de veraneio, como era Saubara. Mas os principais estavam na costa mais imediata da
cidade.

O Rio-Vermelho como tal tomou incremento depois que, dos annos de 1870
em diante, se construíram duas linhas de bonde para alli. Desde este tempo
a pobre povoação de pescadores, resto da antiga missão jesuítica de S.
Paulo, transformou-se em elegante arrabalde, com hotéis, bellas chácaras,
boas edificações, hypodromo etc.; muito procurado pela boa sociedade
pelos seus banhos salgados. Pela mesma razão é procurado o arrabalde da
Barra. (VIANNA, 1893, p.418).10

O risco é o da historiografia mais elaborada sobre o Rio Vermelho e em alguma medida de


Itapagipe, com surpreendente silêncio da Barra, quanto mais de outras áreas.

8
SILVA, 1953.
9
MARQUES, 1976, p.3
10
VIANNA, 1893.

475
O veraneio dos arrabaldes tinha um cotidiano, uma constância própria, relativamente
estabilizado. Para os veranistas, era uma ocasião do convívio em família, do convívio com
outras famílias, e da necessidade de lidar com o tempo ocioso.

Tinha um calendário festivo que animava cada localidade, cada arrabalde. Concorriam entre
si, serviam como ocasião para brilho dos veranistas, dos músicos, do espetáculo em suas
várias manifestações. Algumas ganharam importância urbana.

Para os moradores, os roceiros e pescadores, esse tempo tinha outra feição. A atividade de
verão implicava em forças que modelaram as localidades litorâneas, com uma intrincada
relação entre os moradores e visitantes.

Mas este arranjo é o de um capítulo que não cabe nesta Tese.

476
Conclusão

Esta tese, que aqui vai se encerrando, foi meramente a ante-sala para o que esboçamos
nas páginas anteriores.

A meta era compreender como foi possível chegar a essa feição mais efervescente da vida
urbana e do uso do litoral.

Pois o banho de mar, o coração mesmo de como se entende a moderna apreciação do mar,
se instalou na cidade de maneira obscura. A primeira menção é da aristocracia portuguesa,
sem aparente imitação dos hábitos dos estrangeiros residentes. Vemos seus sinais por meio
de anúncios paulatinos, mas constantes, das virtudes. No mar aberto (Barra, Camarão, Rio
Vermelho) e na Península de Itapagipe (num princípio, no Bonfim e Montserrate) e próximo
mesmo ao porto – Jaqueira, Pedreira, Lagartixa.

Esse banho de mar se instalou ademais sem uma retórica médica mais clara. Ao contrário,
encontramos um flagrante descompasso entre os hábitos e a Medicina, na sua feição mais
visível. A difusão desse hábito, como técnica terapêutica, foi algo discreto, ocorrido na
intimidade das famílias, de modo oral, pelos médicos de família. Papel importante que deve
ser investigado, se dúvida que possa algum dia ser dirimida. Por outro lado, quando todo o
dispositivo médico em torno da hidroterapia se desenvolveu, não foi para o banho de mar, a
talassoterapia. Desenvolve-se uma literatura hidroterápica na segunda metade do séc. XIX,
extremamente codificada, em estabelecimentos e aparelhos, onde o banho salgado apenas
era mencionado.

A Medicina nessa história teve um papel muito menor que o esperado, ganhando apenas
destaque quando da identificação da epidemia de beribéri. Mesmo neste caso, com a
multiplicação de documentos produzidos pelos clínicos e sua experiência adquirida na
prática, a Medicina acompanhava a realidade, e formulava explicações a posteriori para os
“sanatórios naturais” de Itaparica, Itapagipe, Barra e Rio Vermelho. A talassoterapia informal
era o costume disseminado, reforçando a visitação a lugares que já eram procurados, com
digna a exceção de Itaparica, onde efetivamente dinamizou seu veraneio.

O apreço dos estrangeiros tinha uma constituição complexa que não se transplantou por
inteiro, nem em seus fundamentos distantes, nem em sua prática específica, apenas de
modo superficial.

Em contraposição, havia um apreço luso-brasileiro pelo mundo natural e pelas vistas


dilatadas que, reforçado pela imitação ligeira da maneira europeia, era invariavelmente
lacônico e não implicava em ritos coletivos sociais, no máximo domésticos e de círculos
mais íntimos. Porém existia e, por mais lacônico que fossem os comentários em textos, e foi
fundamental na valorização de imóveis. O importante é que não guardava direta e física com
o contato com a água, e o banho. De houve o reconhecimento da contemplação mais geral
da paisagem, era o mar o grande protagonista, divisado desde a Cidade Alta.

O veraneio teve motivos convergentes. Os aspectos de saúde, sempre enfatizados, embora


existentes, não condizem com a estabilidade da procura em Salvador e cidades como
Recife e com outros elementos. E sobretudo despontaram os banhos de mar, timidamente,
sem uma correspondência com os grandes surtos epidêmicos oitocentistas, embora estes
alimentassem novas jornadas.

477
Por outro lado, acreditamos que veio a reforçar algo que já existia, e em transformação, que
era a rotina do deslocamento estival dado pelo ciclo da lavoura em sua amálgama com o
calendário religioso e social, fundido e consolidado ao longo de séculos. Nisso, defendemos
o papel de hierofanias ligadas ao mar, e a uma cidade que dependia do mesmo, para um
ciclo de festas à beira-mar, com santos com milagres relacionados, com uma série de rituais
condizentes, tais como procissões náuticas.

O tema das festas, de uma Heortologia Urbana, se impôs à força, inevitável. Demoramos
em perceber que sua constância anormal na historiografia baiana e na literatura apologética
não eram uma deformação, mas o próprio fenômeno a ser compreendido.

Era central para a formação da cidade, de seus hábitos e sua urbanização. As festas
propeliram os seus habitantes para o Recôncavo e em algumas jornadas crescentes para o
litoral atlântico, como também as travessias náuticas. As festas ainda coordenavam a
estadia no veraneio, então “passar as festas”.

As festas, em toda sua rica ambivalência social, tiveram um papel pioneiro na eleição dos
arrabaldes para visitação estival, na sua urbanização e na instauração de um movimento
pendular de verão. O caso das festas do Bonfim na Península de Itapagipe são o mais
ostensivo e o melhor documentado. Primeiro, o papel da Devoção do Bonfim na urbanização
da região em torno de seu santuário. Depois, das festas em si mesmas, com sua grade de
serviços, temporários e estáveis, e a constante demanda por um transporte de um
expressivo público temporário.

Os festejos explicariam uma aproximação mais hierofânica ao mar, e da rica tradição


náutica, que era tanto do comércio internacional como cada vez mais local. Com o ocaso de
Salvador como porto interoceânico e da tecnologia naval brasileira, obsoleta, como daqueles
muitos rituais náuticos ou à beira-mar, dessa tradição restou muito pouco. Houve um eclipse
da presença do mar. Não desembocou em uma tradição náutica recreativa moderna
expressiva, sempre como eterna promessa a realizar.

Tal foi a importância, por exemplo, da festa de Nosso Senhor do Bonfim, que acabou por
engolir os demais cultos do ciclo e, crescendo sua semana em importância, se irradiou da
Colina do Bonfim para adjacências. A expansão acontecia na chamada Segunda-Feira do
Bonfim que, apesar deste nome, ocorria em direção da Ribeira, caracterizada por um clima
geral de festa de largo, de festividade amorfa, sem uma programação própria. Depois,
extravazões mais populares que atravessavam a entrada da enseada e se distribuíam em
arraiais montados em Plataforma e São Brás.

Esse veraneio criou o tempo ocioso que precisava ser preenchido com atividades várias. A
partir dessa ocupação pioneira de certas áreas litorâneas, invariavelmente antigas
localidades de pescadores, com seus modestos rituais, se instalaram as futuras praias de
banho, e o banho de mar foi durante décadas apenas mais uma das atividades daquela
população flutuante.

Na Península de Itapagipe principalmente o ciclo de festejos impulsionaram a visitação,


onde o banho de mar se agregou como parte do cotidiano, como qualidade ambiental bem-
vinda. Enquanto na Barra e Rio Vermelho, os primeiros sinais da visitação relacionavam-se
com o solitário banho de mar, mas cedo se entrelaçou com os rituais religiosos,
incrementando aqueles mais próprios dos pescadores que, apesar dos súbitos ares
pitorescos para os visitantes, seguiam uma lógica razoavelmente constante em todas as
comunidades de pescadores, jangadeiros e canoeiros, ao longo de toda a cidade. Essa
circularidade, o reforço mútuo da realimentação, é estrutural nesse veraneio oitocentista.

478
No deslocamento estival está o elo perdido que buscávamos, a transição daquela sociedade
colonial para a moderna no tópico do veraneio balnear. Os arrabaldes litorâneos foram
primeiro ocupados pelo veraneio estival. Veraneio que nascera em alguma medida litorâneo
por que o acesso era mais fácil por ali, e porque a grande maioria das devoções e santos
milagreiros de fato relacionavam-se ao mar, às gentes do mar, ou às demais pessoas,
gratas por uma intervenção miraculosa, em algum momento de viagem, imprescindível a
todo mundo. Em Recife, a modo de contraste, esse deslocamento se deu para arrabaldes
fluviais, às margens do Capibaribe. Dali, a mudança de interesse, dos aspectos ambientais
valorizados, levou à redescoberta de Olinda e ao avanço para Boa Viagem. Em Salvador, a
ida ao mar foi em boa medida uma atividade lateral do leque realizado no veraneio,
sobrepondo-se a lugares já visitados.

Havia ainda o apreço pelos ares campestres dos arrabaldes, presente nas patuscadas
(depois, excursões e passeios) e no elogio, que pareceria tardio, persistindo ainda na
primeira metade do século XX, do veraneio “na roça”, nas matas do Cabula e Matatu.

Este não era apenas o deslocamento físico, mas ensaios de sociabilidade, que se permitia
liberdades que não existiam no centro urbano, no restante do ano, assim como a
experimentação de hábitos modernos, em convívio com aqueles tradicionais, urbanizando
assim a área em termos de costumes.

Por isso foi preciso investigar como esses meses do ano eram concebidos, na aparente
digressão da pesquisa sobre o lazer das famílias. Visou-se resolver a pergunta: o que se
fazia com o tempo livre? Ou melhor, com o tempo de não-trabalho. Que não era um
remanescente, mas algo efetivamente criado, uma brecha aberta e assim mantida em uma
sociedade pré-industrial para diversos fins.

Nisso, como seria nos primeiros banhos de mar, o papel da mulher das classes altas e
médias fora fundamental. Daí a necessidade de entender como era o seu papel naquela
sociedade, seus espaços e momentos, para além da imagem caricatural da mulher
trancafiada. Sua exposição pública, na forma do gineceu ambulante, também tivera uma
preparação, condições prévias, também não desprovidas de suas tensões. O banho
terapêutico, imediatamente anterior àquele mais gregário e desportivo, era uma terapia
discreta, onde o mais delicado era a presença das mulheres, exigindo toda sorte de
cuidados nas primeiras horas da manhã. Para aparecer este primeiro mergulho tímido fora
necessário que as mulheres das classes médias e altas saíssem da reclusão doméstica de
que tanto se fala. Nessa modernização gradual, também destaque teve a figura do “jovem”,
de ambos os sexos, de uma juventude que forçava uma forma mais mundana de vida, mais
liberal. O banho de mar oitocentista, de sabor moderno, deve ser entendido dentro dessa
estrutura anterior e coetânea. Foram as mulheres que saíram primeiro, e saíram como tal
gineceu, como em outras ocasiões. Fora não uma iniciativa masculina, mas feminina. Daí
um dos motivos, não o único, para acontecer nas primeiras horas da manhã. E atrairá os
olhares dos homens – dos jovens, na verdade, cada vez mais intrépidos. Claro que não
pelas matronas, mas por suas filhas, como em outras ocasiões da gradual e valorizada
exposição pública. Com os esportes, invertem-se os papéis. Os jovens que irão à areia e à
água (atletismo, remo, natação) com um público agora que vai, cada vez mais, fazer dali seu
espaço de encontro.

Na mudança da sociedade, Maria do Carmo Baltar Almeida aponta que se dera no final do
Oitocentos, com maior presença no “mundo das representações”: teatro, salões e saraus,
etc.11 Kátia Mattoso, porém, apontava sociedades recreativas nos anos 1860. Encontramo-
las nos anos 1830. Não se trata de recuar o relógio e buscar pioneirismo, mas assumir que
11
ALMEIDA, Maria do Carmo Baltar Essaty de. A Victória na Renascença Bahiana: a ocupação do distrito e sua arquitetura na
Primeira República (1890-1930). Novembro 1997. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – PPGAU,
Universidade Federal da Bahia, Salvador. 1997, p.61.

479
aquela mudança que Almeida vira com toda a clareza no final do século XIX fora gestada
gradualmente por sete décadas, e continuara na centúria seguinte. Eram ensaios dos novos
hábitos, onde a circulação de estrangeiros na cidade a partir da Abertura dos Portos foi fator
relevante. As filarmônicas, por exemplo, se tornariam molde, espaço, das pulsões da época.
Da juventude, que ali tinham seu espaço de formação e aparição. Deram lugar a amigáveis
confrontos, como outras formas de agremiação, da mesma época e perfil social, na capital e
cidades menores. O que estudamos foram os primórdios desse arranjo, o tatear em busca
de localidades onde passar as festas, a montagem de um arquipélago de arrabaldes, em
delicada comunicação e relação, onde se destacaria o componente agonístico, que se
repetia nas filarmônicas, nos ternos e ranchos, nas festas de cada arrabalde, nos clubes
carnavalescos, nas equipes de regatas.

Vimos as gôndolas, o que era o primeiro ensaio do transporte coletivo terrestre, assim como
o intento falido da primeira Companhia Bahiana de Navegação. O período que cobrimos
indicava uma tensão crescente em torno da articulação norte-sul da cidade, do seu núcleo
urbano com seus extremos a norte e a sul, ou melhor, para o público solvente que vivia na
Península de Itapagipe e no Campo Grande e Vitória, depois Barra e Rio Vermelho. Nos
anos 1860 em diante, a mecanização da infra-estrutura vingaria e a tensão norte-sul se
desenrolaria com pleno vigor. Exatamente por isso que, além de investigar os motivos da
eleição da Vitória, desse lugar “aristocrático”, defendemos a importância da Calçada do
Bonfim como forma pioneira de expansão para além dos limites imediatos da cidade, não
necessariamente exclusiva, cabendo ser uma residência de muitas de um mesmo dono.
Papel histórico que desapareceu pela mudança do perfil urbano da área, já no século XIX. A
literatura apologética de Itapagipe, que não é escassa, simplesmente ignora esse período.
Confiando-se muito na história oral, esse passado se tornou inacessível.

E que se formara o que chamamos de ciclo dos arrabaldes, o arranjo geográfico do entorno
rural da cidade, que compartilhava um cotidiano de veraneio e se organizava em torno de
um calendário festivo coletivo, com seus grandes momentos. Nesse contexto é que deve ser
compreendido o lazer litorâneo, e especialmente o balnear. E mesmo assim ele se imiscuiu
lentamente, ao contrário do que anacronisticamente se concebe.

Durante meio século (1880-1930), o primeiro balneário turístico da Bahia


constituiu-se num sofisticado centro de veraneio. Foram construídos
inúmeros palacetes e casarões, surgiram dois hotéis, um cinema,
restaurantes, armazéns de secos e molhados, lojas de tecidos e miudezas e
uma fábrica de cerveja [...] (PORTO FILHO, 2010).12

Mas o Rio Vermelho, como outros, não era um balneário, mas um arrabalde litorâneo. O que
acontecia em suas terras era distinto de uma prática balneária, onde toda se consolidaria
serviços, e seus respectivos edifícios, para uma vida mundana dentro e fora da água. Das
poucas estruturas construídas para o uso balnear, nenhuma fora duradoura. Os intentos de
formas mais vistosas de uso balnear não vingariam. Dentro do veraneio ao final do
Oitocentos, poucas práticas voltavam-se para esse tópico, nem eram centrais no cotidiano.
Eram arrabaldes onde ocorria o banho, adjacente a uma gama de outras atividades de
verão. Foram fundamentais para jornadas discretas, na primeira metade do século XIX. Isto
pôde ser revelado apenas por documentos da época. A memória pessoal e a transmissão
oral dos testemunhos, explorado à larga na bibiografia do Rio Vermelho, não alcançavam tal
período, e apenas falavam muito vagamente do beribéri como enfermidade tratada nas suas
águas. É seu piso, o episódio mais antigo da qual se tem notícia em tal literatura. Mas as
jornadas antecederam a identificação desta como “epidemia”, e sequer fora esse lugar o
preferido para seu tratamento. De qualquer modo, cedo aqueles veranistas se engajaram
nas festas locais, em um reforço do atrativo do lugar. Porém, se o banho fora motor da

12
PORTO FILHO, Ubaldo Marques. Rio Vermelho, o Montparnasse Baiano. In: Encontro com o Escritor. Salvador: Secretaria de
Cultura do Estado da Bahia/ Fundação Pedro Calmon, 2010. Disponível em: <http://www.ubaldomarquesportofilho.com.br>

480
ocupação, ocupava um tempo pequeno do dia, deixando o restante disponível para a
repetição da dinâmica dos demais arrabaldes.

Houve, depois, uma transformação desse banho recatado para o efusivo banho de mar.
Detectar essa transformação é essencial. Nada é tão diferente como estes entre si: quem ia
(as mulheres num, a meninada noutro); como ia (trajes pesados num, colados noutro); as
horas frequentadas (primeiras horas do dia num, outras noutro); o que se fazia (ocultação
num, exibição noutro). No entanto, a mesma oligarquia, no mesmo lugar, deu expressão aos
dois. Quando e como ocorre essa mudança? Parece-nos que no século XX, primeiro na
Barra, pois no Rio Vermelho e Itapagipe os testemunhos nos falam ainda do reservado
banho das mães com seus filhos. Mas, como dito, estes seriam capítulos para outro
momento.

Encerramos com essa sinopse dos capítulos seguintes. Esta tese surgiu “equivocada”
porque apostou na polifonia de que tanto falamos. Por serem linhas melódicas
independentes, não há um corte tão claro, rupturas que não sejam arbitrárias, quando
olhadas em conjunto. Ademais, ao lidar com uma variedade de percursos diferentes, de
linhas e planos simultâneos e com alguma autonomia, o panorama nasce ambicioso e
forçosamente incompleto. Mesmo errado. Esperamos que nos detalhes, e não no conjunto.
Porém é a sua proposta, de um novo encadeamento dos acontecimentos, que abre as
interpretações e hipóteses para outras pesquisas monográficas que porventura venham.

481
APÊNDICE 1
Os Caminhos das Armações

Uma série de elementos nos indicam que existiam percursos antigos, coloniais, daquela orla
atlântico até a cidade. O nome do rio Passa-Vaca é sintomático desse percurso. Assim
como a Estrada do Curralinho.

Alguns mapas e depoimentos nos darão os alicerces para esta reconstituição.

Nossa hipótese é que muitos caminhos coloniais da cidade são análogos à Broadway em
Nova Iorque: são percursos que se incorporaram, com seu traçado adaptado às condições
antigas (cumeadas, curvas de nível mais suaves, vaus de rio mais fáceis), de modo modesto
na maioria das vezes, ao arranjo moderno. Eles não desapareceram; estão aí ainda, apenas
esvaziados do seu peso. Muito fica invisível pela abertura das grandes avenidas de vale,
rompendo o que o mapa revela ser uma continuidade óbvia.

O Mappa do Reconcavo da Bahia de Todos os Santos, de Von Busch (1836), tem o mérito
de mostrar, em linhas muitas gerais, uma rota que descia paralelo ao bordo marítimo,
coletando os produtos daquelas propriedades, até a capital da província. Esta era uma das
quatro estradas que uniam Salvador aos demais espaços coloniais, chamado Estrada da
Torre, Sergipe e Pernambuco pela beira mar, conforme a Planta do porto e comarca da
Bahia de Todos os Santos, posterior a 1808.1

A Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan, de Henrique de Beaurepere (1839), nos


revela alguns caminhos.

Vejamos os depoimentos.

E, para a Cidade, nós íamos a pé, descalço, sapato na mão, veestido


bonito, né? Então esperava a maré vazar para passar o rio. Por exemplo, a
gente ficava na beira do rio esperando a maré vazar [...] E quem ia pelo
Centro, para a Cidade Baixa, para a Feira de São Joaquim, vender folhas
do campo, vender vassoura de pedreira, vender beiju, peixe assado, a
gente entrava na Boca do Rio, pela Bolandeira, ia pelo Saboeiro, chegava
nos Dois Leões, lavava os pés e calçava os sapatos. [...] E os gêneros
alimentícios vinham ou pelos burros de carga ou pelos saveiros, pelo mar.
Quando o mar estava grosso era nos burros, que carregava. Porque Itapuã
a população era muito pequena, era um ovo e não tinha lá essas coisas
para vender. (Dona Helena). (GANDON, 2008, p.278)

O outro é de Dona Francisquinha:

O trajeto era assim: saía daqui de Itapuã, ia por aqui, deixava a Ponte do
Império secar a maré – que [o mar] encontrava com o rio ali onde tem essa
ponte hoje nova, Jaguaripe – e daí pra lá ia a pé. Passava nas Três
Árvores, passava na Boca do Rio, passava na Bolandeira, passava na Duna
– hoje é a Nona – passava na Água do Xaréu – que é atrás do Centro de
Convenções, depois eu explico por que Água do Xaréu -, e passava nos
Penambués, Cabula, descia a ladeira, pegava o bagageiro na Baixa do
Cabula pra vender esse peixe. Porque não tomava bonde com balaio, só

1
ANDRADE, Adriano Bittencourt. O Outro Lado da Baía: a gênese de uma rede urbana colonial. Salvador: Edufba, 2013.

482
bagageiro, pra ir vender esse peixe no mercado de Santa Bárbara. Outras
iam vender no Retiro, porque vendiam o peixe e traziam carne, porque aqui
não tinha, como disse, matava um boi duas vezes no ano. E as
ganhadeiras... era essa a vida delas. (GANDON, 2008, p.267).

Note-se que a primeira menciona o Saboeiro e a outra, Pernambués, como modos de


aceder ao Cabula. A Duna, a que ela se refere, onde está a 9ª Delegacia de Polícia,
também é chamada de Duna Grande em outros documentos.2

A identificação dos elementos mais internalizados a partir deste mapa é difícil. Mas pode ser
complementado pelo Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e Sus Suburbios
(1845), de Carlos Augusto Weyll (Fig.212), que não alcança tais lonjuras, mas apresenta as
rotas mais precisas no entroncamento daqueles caminhos até o centro da cidade.

Nele, vemos que as áreas das quais partiam caminhos para as Armações eram o Cabula e
Brotas, e deste descia por uma ladeira que até hoje existe, estreita e discreta, a R. Teixeira
Barros. Curiosamente, desse mesmo Brotas descia a atual Ladeira da Cruz da Redenção,
que atravessava o Camurugipe e alçava-se novamente pela hoje tímida R. Onze de
Novembro, que seguia pelas cumeadas do atual Nordeste de Amaralina e alcançava a
Armação da Lagoa.

Comecemos a descrição dos caminhos de oeste a leste.

Esse caminho percorria, de leste a oeste, a partir das lagoas que repousavam nas dunas da
região do Centro de Convenções, recentemente arruinado, pela R. Dr. Augusto Lopes
Pontes, atravessava-se o então pequeno rio Chega-Negro e corria pela R. Aristides Fraga
Lima. Seguia pela Av. Paulo VI, no seu trecho que ia de leste a oeste e, cruzando o rio
Camurugipe, subia a ladeira formada pela R. Teixeira Barros, subindo por meia-encosta, até
a cumeada de Brotas, e daí rumo à cidade (Fig.213). Os outros dois caminhos alcançam o
Cabula, descendo por sua ladeira, rua extremamente importante para o abastecimento da
cidade, coletando toda a produção das redondezas (Fig.214).

O que era então o Cabula desenvolvia-se pelas cumeadas, uma rumo ao Pernambués, e
outra seguindo o Cabula atual e descendo pelo Saboeiro. Do Pernambués se iria à chamada
Estrada das Armações, enquanto o outro caminho era a Estrada do Saboeiro.

- Por execução de Almeida & Costa, anda em praça na 2. vara do civel,


todas as quartas-feiras e sabbados, pelas 10 horas, uma roça ao Cabulla,
no lugar da Cruz das Almas, chamada a Roça do Patricio, parte por um lado
com a roça chamada Remedio, e pelo outro com a estrada do Saboeiro, o
fundo com a roça de Jorge, e a frente com a estrada das Armações, em
terras foreiras, com arvoredo [...].3

A roça estava na bifurcação entre estas duas estradas. Essa Cruz das Almas aparece no
Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan, de Henrique de Beaurepere.

O segundo caminho, partindo também da Armação do Saraiva, se distribuía a partir


daquelas lagoas antes mencionadas. Este seguiria pela Av. Prof. Manoel Ribeiro e seguindo
por uma parte da atual Av. Tancredo Neves.

O terceiro caminho tangenciaria perto em dado momento

2
BRITTO, 1944.
3
O CORREIO MERCANTIL n.235, Sábado, 31 de Outubro de 1840. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1840.

483
Entrava muito antes, do cordão litorâneo, a partir de um ponto chamado Ponta das Três
Árvores, passava pela Fazenda Bolandeira (toponímia que ainda existe, e que coincide com
a atual Estação da EMBASA), atravessava-se o rio Santo Antônio das Pedras, e assim
seguia pela atual R. Prof. Pinto de Aguiar e depois pela Estrada do Curralinho. Esta Estrada
do Curralinho e aquele anterior, vindo pela Av. Tancredo Neves, subiriam enfim a
Pernambués pela R. Thomaz Gonzaga.

A antigüidade da Estrada do Curralinho não é algo inferido apenas pelo tipo de nome.

Bahia e Subdelegacia do Rio Vermelho, 28 de setembro de 1883.

Extensão e limites do distrito do Rio Vermelho subúrbio desta cidade, cujo


território foi desmembrado das atuais subdelegacias da Victória e Brotas.

Principia do mar no limite da Fazenda Paciência com a Fazenda Areia Preta


do lado da Vitória estrada geral do mesmo nome, até a Baixa da Ladeira do
Quebra Bunda na embocadura desta, para a fazenda denominada Garcia e
ponto em que está construída a via férrea, ficando o lado do Sul da dita
estrada pertencendo ao novo distrito, e daí pelo Caminho do Inferno
compreendendo ambos os lados desse caminho, em linha reta até a estrada
Dois de Julho, exclusive a fazenda Garcia, margeando a dita estrada Dois
de Julho até a ponte da Lucaia, e daí pelo rio até o encontro do Rio
Camorogipe, e seguindo por este acima até a ponte de pedra, que fica em
caminho de Brotas para as armações, em seguida até a estrada do
Curralinho, dividindo com os terrenos do engenho Campinas
exclusivamente, daí até o mar onde deságua o rio das Pedras e margem da
fazenda Bolandeira. Bahia e Subdelegacia do Rio Vermelho, 28 de
setembro de 1883. Subdelegado em exercício, Felix de Valois Garcia.4

Esta estrada bifurca em algum momento e vai rumo à Estrada do Saboeiro, que
identificamos como sendo atual R. Silveira Martins. Desta não temos por ora hipóteses mais
seguras, o que, na verdade, serve como um empecilho importante para este sistema geo-
histórico aqui formulado.

4
Bahia e Subdelegacia do Rio Vermelho, 20 de setembro de 1883. Subdelegado em exercício, Felix de Valois Garcia. Fonte:
Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção colonial – Série Polícia. Correspondência recebida de subdelegados. Maço:
6248. Fonte: https://uranohistoria.blogspot.com.br/2014/04/divisao-de-quarteiroes-rio-vermelho-e.html

484
Figura 212 – Caminhos antigos às Armações. Edição do autor sobre Mappa Topographica da Cidade
de S. Salvador e sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll (ALMEIDA, 2014). Neste, marcamos
os caminhos principais que partiam da cidade – ou que podiam chegar das Armações, e do litoral
atlântico, ao núcleo urbano. Mais a norte, os caminhos que chegavam ao Cabula – imediatamente
abaixo, a nova Rua da Valla, em obra quando o mapa foi feito. Acima, o caminho mais antigo, já em
vias de ocupação (nossa marcação não permite ver) que ia ao Queimado e entroncava com a
Estrada das Boiadas. O outro é o Brotas. Vemos aqui um ramo que, descendo pela Ladeira da Cruz
da Redenção, vai, cruzando o atual Nordeste de Amaralina, até a Armação da Lagoa. O outro
caminho segue até as Armações.

485
Figura 213 – Caminhos antigos às Armações. Edição do autor a partir da Planta do accampamento
de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere (Fonte: Fundação Biblioteca Nacional). Aqui
apresentamos a hipótese, a partir do Google Maps, do caminho que atravessaria o antigo rio Chega-
Negro e alcançaria as lagoas que existiam nas dunas de Armação (o bairro atual), como a Àgua de
Xaréu.

486
Figura 214 – Caminhos antigos às Armações. Edição do autor a partir da Planta do accampamento
de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere (Fonte: Fundação Biblioteca Nacional). Aqui
apresentamos a hipótese, a partir do Google Maps, dos outros caminhos, alcançando o Cabula, pelo
Pernambués e pelo Saboeiro

487
APÊNDICE 2
Itapagipe de Baixo e de Cima

Diante logo do Noviciado começa a vargem e alagadiços de Itapagipe;


continuando três diferentes caminhos; um pela praia chamada Jequitaia até
a ponta de Monserrrate; outro para o Bonfim, ou Itapagipe de Baixo; e o
terceiro para Itapagipe de Cima, indo procurar a Praia do Papagaio, que fica
pela parte posterior do Noviciado, de forma que o torrão a que chamam
Itapagipe, é uma verdadeira península, e não tardando muito há de ficar
perfeita ilha, visto que já em águas grandes, a maré se comunica de uma
para outra parte, a pouca distância do Noviciado. (VILHENA, 1922a, p.101).

Não se poderia ser mais claro. Itapagipe de Cima era a parte norte da península, após o
istmo do Papagaio, onde estavam Ribeira e Penha. Itapagipe de Baixo, o sul imediato, onde
estava o Bonfim.1

Essa visão é distinta de outras, que entendem a separação entre Cima e Baixo no sentido
leste-oeste, e altimetricamente.

ITAPAGIPE DE CIMA
Da milagrosa Imagem de nossa Senhora da Conceyção de Itapagipe de
cima.

Do Santuario de nossa Senhora da Soledade pela estrada, que vai para o


Certão, em distancia de meya legoa se vê o lugar a quem dão o nome de
Itapagipe de cima, & nelle se vé situado em hum monte o Santuario, & casa
da milagrosa Imagem de nossa Senhora da Conceyção [...] (SANTA
MARIA, 1722, p.74).

Frei Agostinho de Santa Maria reconhecia como se chamava o lugar, e nos conta que a
toponímia se incorporara ao culto, identificando-o como no cimo da Montanha, articulado
com as terras abaixo, da península.

Essa mesma interpretação foi dada por Manoel Aquino Barbosa, com uma série de
inferências engenhosas. Primeiro, além de Santa Maria, a quem cita, também referia-se
como Itapagipe de Cima e de Baixo aquelas partes no flanco e cume da Montanha, e na
península, o Vigário Balthazar Rodrigues dos Reis, em 1757, em sua Notícia sobre a
Freguezia de Santo Antônio Além do Carmo da Cidade, e a partir de obra de Theodoro
Sampaio:

Teodoro Sampaio, no precioso trabalho “O Tupi na Geografia Nacional”, dá-


nos a definição do vocábulo Itapagipe, que é “no rio da lage”,
acrescentando: “nome de principio aplicado ao riacho que, proximo do
engenho da Conceição, se despenha do penedio, na encosta da montanha,
e vai ter ao mar, ao norte da Cidade do Salvador. É o riacho que, em
outrora, se chamava de Itapagipe de Cima” (68).

Este riacho deve ser o que atualmente serve a Fábrica da Conceição.


Represado forma o Tanque da Conceição. Continua descendo a encosta e
indo ter ao mar, embora atualmente escondido e canalisado em todo seu
curso.

1
Por exemplo, Aline de Carvalho Luther, em trabalho recente, adota essa interpretação (LUTHER, 2012).
[...]

O pequeno regato nasce, de fato, na antiga Freguezia de S. Antônio, um


pouco acima do Largo do Tanque, no sítio por onde passa a Avenida Brejal,
atravessa a estrada do sertão (hoje rodovia Bahia-Feira) em direção a
Oeste e, descendo pela ladeira dos Fiais, vai desaguar no mar, depois de
servir à Fábrica dos Fiais que canalisou o seu leito e fez uma barragem no
sítio da nascente. (BARBOSA, 1952, p.102).2

A toponímia assim era derivada de um córrego, que mantinha uma relação perpendicular às
curvas de nível, e alude àquilo que tratamos no Capítulo 1: o represamento e uso dos
mananciais no topo da Montanha e sua canalização como força motriz na vertente voltada
para a Baía de Todos os Santos, onde tinham porto fácil, e podiam implantar as suas
unidades produtivas.

Esse curso d´água e sua força motriz aparece na obra de Tollenare:

Bahia – Domingo, 23 de novembro de 1817. – O acontecimentos que me


interessam pessoalmente não têm hoje importância para serem
consignados nestas notas. O que dizer de uma excursão que fiz ao rio
Matuim e a Itapagipe, para avaliar a força de uma queda d´água que se
queria utilizar, senão que fui assaltado por carrapatos e que vi quão pouco
aqui se entende da arte de utilizar os motores hidráulicos. Encontrei
vestígios de trabalhos holandeses muito engenhosos, oiteiros despojados,
de matas para os engenhos que não souberam aproveitá-los e um ensaio
malogrado de laminador para folhas de cobre. (TOLLENARE, 1956, p.359).

Deve ser Itapagipe de Cima, a região de Largo do Tanque, para poder haver queda d´água,
e alguma ação dos holandeses.

Para arrematar, o Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José


Fernandes Portugal (Fig.215) apresenta, no topo da Montanha, claramente expresso
Tapagipe de Sima.

Essa ambivalência é um problema historiográfico, e aceita mesmo uma terceira


compreensão.

Por maiores que fossem os nossos esforços não logramos descobrir nos
nossos historiadores referências que situassem, com precisão, o Itapagipe
de Cime e o Itapagipe de Baixo.

Nem mesmo Silva Campos, sempre minucioso o amante dos detalhes,


poude precisá-los e confessa numa de suas notas manuscritas: “Já li, eu
ouvi, que a península de Itapagipe era chamada antigamente de Itapagipe
de Baixo e o bairro de Plataforma, Itapagipe de Cima”. (BARBOSA, 1952,
p.102).

Ou seja, João da Silva Campos já tinha visto uma interpretação de norte a sul, porém nas
duas barras da entrada do esteiro de Pirajá.

2
BARBOSA, Manoel Aquino. O Sítio do Arraial e da Sepultura de D. Marcos Teixeira – o Bispo Soldado. In: Revista Trimestral
do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Salvador, n.77, 1952.

489
Figura 215 – Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes Portugal.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional. Neste mapa aparece claramente Tapagipe de Sima, pela
maneira como foi desenhado, aparece quase como frontal à Tapagipe, que seria “de Baixo”, na
região da atual Ribeira.

490
Nem a localização do Engenho da Conceição é um dado certo.

Carece de qualquer fundamento histórico a indicação da Capela do antigo


Engenho da Conceição, situada outrora no local onde atualmente se ergue
a Penitenciária do Estado.

“A casa de prisão com trabalho” foi construída na “vargem ou alagadiços de


Itapagipe” ou, com mais precisão do sítio, “nos pântanos da Conceição”. As
obras tiveram início em 1839 e custaram grandes sacrifícios aos cofres
públicos por causa do local escolhido, pois sendo pantanoso, exigiu muito
serviço para tornar salubre, seja por meio de aterros, seja por meio de
vallas, seja de um e outro modo (54).

[...]

Nos documentos oficiais que tratam do local onde se construiu a “casa de


prisão com trabalho”, não há qualquer alusão ao Engenho da Conceição,
mas sim aos “pantanos da Conceição”. (BARBOSA, 1952, p.100).

De fato, a capela estava acima, na Montanha. Como visitada pelo Imperador D. Pedro II, a 9
de outubro de 1859, no caminho para Pirajá: “a Capela da Conceição de um engenho
particular está em completa ruína”.3 No entanto, documento da época marcava o que seria
de conhecimento público: que o Engenho da Conceição estaria no sopé da Montanha:
“continua a construção da casa de Correcção, sita ao Engenho da Conceição”4. Seria
inclusive, mais lógico que estivesse ali, para usar das águas canalizadas do Tanque da
Conceição, e tivesse escoamento fácil da produção. Nesse caso, o mais provável é que as
edificações estivessem separadas, e as funções, cindidas: acima, capela, tanque e
seguramente a casa-grande. Abaixo, o engenho, com suas moendas e maquinários, assim
como porto. Como estava expresso no Mappa Topographica da Cidade de S. Salvador e
sus Suburbios (1845), de Carlos Augusto Weyll.

De toda maneira, não se trata de “resolver” onde ficavam Itapagipe de Baixo e de Cima, mas
sim de reconhecer e enfrentar essa dubiedade em cada documento, visto que ao mesmo
tempo em que Vilhena considerava aquele binômio como partes a norte e a sul dentro da
península, havia uma outra interpretação, radicalmente distinta, vigente.

3
D. PEDRO II, 1959, p.72.
4
ALMANACH..., 1844, p.255.

491
APÊNDICE 3
Os Contratos de Baleias

Foi em Itaparica onde surgiram os primeiros Contratos. Porém existiram Contratos em


outros lugares, também chamados de Armações, e não encontramos distinção de ordem
prática na localização das Armações de Baleia e dos Contratos.

J. Teixeira de Barros lista os Contratos: Itapuã, Pituba, Rio Vermelho (Paciência), Barra
(junto ao forte de Santo Antônio da Barra), Gamboa, Pedra Furada, Caravellas e Itaparica
(Manguinhos, Porto dos Santos e Barra do Gil)1, o que é repetido por Ellis.2 Hildegardes
Vianna, com uma lista ligeiramente diferente, acrescenta Amoreiras, em Itaparica também.3
Tais enumerações não são convalidadas por outros testemunhos, talvez por terem os
Contratos sido fechados antes.

Antônio Alves Câmara enumera-as em 1888:

Na provincia da Bahia houve na costa, em Caravellas, Itapuan, Pituba,


Paciencia, povoação do Rio Vermelho, e Barra junto ao forte de
Sant´Antonio, onde funcciona o pharol; e em sua bahia na Gambôa junto à
fortaleza de S. Paulo, Pedra furada, perto da ponta de Montserrate, e na ilha
de Itaparica na villa, ponta do Manguinho, Porto dos Santos, e barra do Gil.

Actualmente só funccionam as de Caravellas, Itapuan, Manguinho e Porto


dos Santos.
(CÂMARA, 1888, p.156)

Vejamos local por local com os dados de que dispomos.

Itapuã
Ellis diz que o Contrato em Itapuã havia se encerrado em 1767, desfavorecido que seria
pela dificuldade da atracação das baleeiras por estar em mar aberto.4 O que é estranho,
porque Itapuã, em especial próximo ao farol, é dos maiores portos naturais da orla atlântica.

Entretanto encontramos confirmações posteriores à existência ali de estabelecimento


baleeiro. James Henderson assinala o Contrato de Itapuã: “oito milhas a nordeste do Rio
Vermelho está a enseada de Itapuã, com uma armação de baleias”.5 Rebello relata
armações de baleias em Itapuã, já uma “grande povoação”. E também anuncia outras
armações entre o Rio Vermelho e Itapuã, sem precisar quantas e onde: “duas legoas e meia
ao Nordeste do Rio Vermelho está a Enseada de Itapoán, e nella boa armação de balêas”.6
Segundo Alves Câmara, estava em operação ainda em 1888.7 Ubaldo Marques Porto Filho
fala algo da Itapuã dos anos 1950, de suas memórias de menino de 7 anos de idade, de
brincar “com os ossos de baleia desleixadamente abandonados na praia”.8 Ossadas de
baleia remanesciam ali e em Itaparica. Em nenhum outro lugar encontramos relato análogo.
Porém não devemos desconsiderar que as ossadas em outros sítios tivessem sido
aproveitadas ou mais simplesmente que o ritmo natural das águas as reduzisse a pó, ou
1
BARROS, 1900, p.332. Myriam Ellis (1969, p.42) repete literalmente essa listagem.
2
ELLIS, 1969, p.42.
3
VIANNA, 1994.
4
ELLIS, 1969, p.42.
5
[...] eight miles to the north-east of the river Vermelho is the bay of Itapuan, with a whale fishery. (HENDERSON, 1821, p.329).
6
REBELLO, 1829, p.136.
7
CÂMARA, 1888, p.156.
8
PORTO FILHO, s/d.

492
melhor, à areia da praia, de composição oolítica, de conchas e ossos triturados pelo
martelar das ondas.

Em Itapuã, testemunhos assinalavam dois Contratos, o Contrato de Cima e o Contrato de


Baixo, próximos um do outro. O Contrato de Baixo ficaria imediatamente defronte da Igreja
de Nossa Senhora da Conceição, pertencendo a um Lourenço, de cujos herdeiros comprara
um homem chamado Jubiabá com seu sócio Faustino. O Contrato de Cima se situaria onde
depois se instalou o Quiosque de Janaína – apesar do nome, uma construção de porte, uma
galeria comercial, na R. Aristides Milton – pertencendo a Inácio Amaral, proprietário também
dos terrenos de Amaralina.9

Orla Atlântica
O intervalo entre Itapuã e o Rio Vermelho é tratado de modo difuso, sem elementos que
permitam facilmente situar o que é descrito. Por exemplo, diz Rebello que “entre a Enseada
da Itapoán, e o dito Rio Vermelho tem armações de Balêas”.10 Robert Ave-Lallemant
menciona antigos estabelecimentos para pesca de baleia desativados nesse longo trecho de
praias, partindo da Barra, “veio depois a linda Rio Vermelho, entre coqueiros e, a seguir,
alguns estabelecimentos que dantes serviam à pesca da baleia”.11 As menções a um
possível Contrato em Armação são tardias, de historiadores do séc. XX, como José
Valladares.12 E Antônio Risério dá um depoimento de sua adolescência, em que teria
sentado ali “em bancos de osso de baleia”.13 No entanto a descrição não é a de ossadas na
praia, como usual em Itaparica e Itapuã, e sim de mobiliário que, por definição, é levado de
um lado a outro. Não implica que naquela região chegasse a ter existido um Contrato. É de
todo inverossímil por não haver condição alguma de baleeiras aportarem ali.

Pituba
Barros e Ellis, apontavam que Pituba sediava um Contrato. Novamente, não temos
referências mais antigas. E confirmada a existência lá por Alves Câmara, inexistente em
1888.14

Amaralina
Quanto à Amaralina, a única referência que encontramos foi a de que “Alexandre Teotonio
possuía uma armação de xaréus e de baleias”.15

Rio Vermelho
Nos relatos do litoral atlântico, falam-se nas armações de pescado, no Contrato de Itapuã,
mas nada de um Contrato no Rio Vermelho, como Henderson e Rebello:

[...] se descemos através das cercas de limeiras para o Rio Vermelho,


podemos ter a oportunidade (ademais de ver os estabelecimentos para
extração do óleo) de testemunhar a chegada triunfal do leviatã morto [...]
(KIDDER & FLETCHER, 1857, p.485 – tradução nossa).16

9
GANDON, 2008.
10
REBELLO, 1829, p.136.
11
AVÉ-LALLEMANT, 1961, p.274.
12
VALLADARES, 1951, p.101.
13
RISÉRIO, 2004, p.363.
14
CÂMARA, 1888, p.156.
15
CAMPOS, 1942, p.120.
16
[...] if we descend through lime-tree hedges to the Rio Vermelho, we may have an opportunity (besides seeing the fixtures for
extracting oil) of witnessing the triumphant arrival of the dead leviathan [...] (KIDDER & FLETCHER, 1857, p.485).

493
Mas parece um erro na transposição de outro texto, de obra anterior de Kidder. Porque ele
fala do Rio Vermelho, onde um amigo dele passa o verão. E na frase seguinte, em outra
obra, de um Contrato sob a colina de Santo Antônio.17 Ou essa versão omitia que Kidder
fora do Rio Vermelho à Barra, como se verá. Embora o Rio Vermelho reunisse condições
físicas para ter uma armação de baleias, não encontramos nenhum documento de época
que a assinalasse.

No entanto, Alves Câmara especifica: havia na Paciência, mas sem funcionar em 1888.18

Ondina
Em 1816 há uma menção a uma “armação de baleias” na Fazenda Areia Preta, conhecida
nossa. Ela vale como afirmação, anúncio de venda que era: “quem quizer comprar a
fazenda denominada: Areia Preta, com proporções, alambique, armação de Balea”.19

Barra e Gamboa
Quanto à Barra, os dois locais mais propícios seriam o próprio Porto da Barra e o Porto da
Vitória.20 Tollenare dizia que para ver-se de perto as baleias, cumpria ir rumo “à praia que
separa a cidade do cabo de Santo Antônio. É ali, em diversas angras e do outro lado da ilha
de Itaparica, que estão situados os estabelecimentos em que os animais são
desmembrados”.21 A fala seria ambígua se em outro momento não fosse mais específico.

Bahia – Domingo, 26 de outubro de 1817. – A minha formosa baiasinha da


Vitória vai cessar por algum tempo de me oferecer os seus banhos
deliciosos. Os pescadores trouxeram para lá uma soberba baleia de 70 a 80
pés de comprimento. (TOLLENARE, 1956, p.339).

É o Porto da Vitória. É uma localização precisa, situada em lugar que costumava frequentar.

Depois de passar pelo Cabo e Forte de Santo Antônio, que estão à direita
ao entrar o porto da Bahia, os próximos objetos proeminentes são a igreja e
as villas nas terras altas, chamadas Vitória, dominando o porto. É um
subúrbio da cidade pitoresco e preferido, e é o local escolhido de muitas
“chacras” [chácaras] ou quase casas de campo. [...] Na praia há muitas
“Armaçaos” [Armações] ou lugares onde as baleeiras são mantidadas e as
baleias retalhadas. Eles são providos de cabrestantes e equipamentos para
transportar a carcaça e a banha para serem reduzidos a azeite. (OUSELEY,
1852, p.13 – tradução nossa).22

Anúncio de 1839 é explícito: “vende-se uma propriedade de casa, propria para armação de
baleia, e padaria, por ter os arranjos necessarios [...] no sitio do porto da Victoria”.23

17
KIDDER, 1845b, p.23.
18
CÂMARA, 1888, p.156.
19
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.45, Terça-Feira 4 de Junho de 1816. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1816.
20
Este, hoje completamente tomado pelo Yacht Club, era um porto em todo sentido, apesar de simples. Tanto era que se
anunciava, em 1840, um pequeno serviço de aguada para navios: “no porto da Victoria no sobradinho que ahi tem, se vende
agoa para embarque com muita abundancia, tem bom fundiador” (O CORREIO MERCANTIL n.5, Sábado, 7 de Janeiro de
1843. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e Comp., 1840).
21
TOLLENARE, 1956, p.291.
22
After passing the Cape and Fort of St. Antonio, which are on the right in entering the harbor of Bahia, the next prominent
objects are the church and villas on the high land, called Victoria, overlooking the harbor. It is a favourite and
picturesque suburb of Bahia, and is the chosen site of several “chacras” or quasi country residences. [...] On the beach
are several “Armaçaos”, or places where whale-boats are kept and whales cut up. They are provided with capstans and
tackle, for hauling up the carcase and blubber to be reduced to oil. (OUSELEY, 1852, p.13).
23
O CORREIO MERCANTIL n.22, Sábado, 26 de Janeiro de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.

494
Kidder menciona o Contrato no pé do Outeiro de Santo Antônio. O retalhamento ocorria na
areia: “perto do sopé da colina de Santo Antônio nós visitamos o principal estabelecimento
relacionado às armações do porto”.24 Quirijn Maurits Rudolph Ver Huell fala que nas
proximidades do cabo de Santo Antônio (o promontório onde hoje está o Farol da Barra)
haveria um Contrato: “um dos principais centros processadores de óleo de baleia, mas, além
deste, havia também inúmeros outros espalhados pelas ilhas da baía”25. Poderia referir-se
tanto ao Contrato do Porto da Vitória, um dado certeiro, como algum possível
estabelecimento no outro lado do mesmo outeiro, no Porto da Barra. Até porque William
Gore Ouseley fala em “muitas armações”; Kidder, em um “estabelecimento principal”;
Tollenare, em unidades situadas em “diversas angras”. Havendo vários galpões de porte
razoável (por “vários” entenda-se 3 ou mais), seguramente se espraiavam pelo Porto da
Barra. Para testemunhar ao vivo a operação do desmanche da baleia, Ver Huell parece ter
descido a Ladeira da Barra, rumo à praia.

[...] apressei-me em descer correndo pelo dorso da montanha. Posicionado


sobre um dos rochedos da praia, passei a observar aquela cena com
extrema atenção, receoso de que alguma coisa pudesse acidentalmente
escapar de minha percepção. (HUELL, 2009, p.172).

E outro anúncio aponta armação de baleias na Barra: “andão em praça [...] os bens de raiz,
como sejão armação de baleias, casa de morar com roça, casinhas contiguas e mais outros,
(ao sitio da Barra) que forão do finado Guerra”.26

Alves Câmara assinala que havia na Barra, junto ao Forte de Santo Antônio.27

George Gardner menciona uma vila que parecia viver disso. Pelo número de menções à
Barra, e escassez quanto ao Rio Vermelho, acreditamos referir-se àquela: “em nosso
retorno à cidade passamos por uma pequena vila próxima ao mar, cujos habitantes, em sua
maioria negros, estão ocupados principalmente na pesca da baleia”.28 Outra menção a um
Contrato na Barra é de Carl Friedrich Philipp von Martius. No entanto, não apenas a
infomação é vaga, como tem uma baliza estranha, a “capela de São Bento”: “refinam o óleo
nas fábricas (armações) da Bahia (onde se acham contratos na Barra, entre o mar e a
Capela de São Bento), em Itaparica”.29 A não ser que considerasse, de fato, o Mosteiro de
São Bento, e estivesse contando entre as armações eventuais instalações na base do flanco
da atual Ladeira da Montanha, e a Gamboa, onde, de fato, pelo menos havia armação de
pescadores.

O que parece ser uma dedução justa; Alves Câmara assinala que houvera na Gamboa,
inoperante no final do século.30

Rocha Pita, descrevendo a Vila Velha, diz que “todo aquele terreno se acha ocupado de
fazendas de arvoredos; as suas ribeiras de fábricas de pescarias”.31 Na primeira metade do
séc. XVIII, estava a Vitória e a Barra repleta de instalações, de baleia e xaréus
provavelmente. A escassez das menções e estas serem pontuais indicam um declínio da
atividade e da região como locus da mesma, que foi sobrevivendo em Itaparica (baleias) e
no litoral atlântico (os xaréus).

24
[...] close under the brow of the Antonio hill, we visited the principal establishment connected with the whale-fisheries of the
harbor [...] (KIDDER, 1845b, p.23)
25
HUELL, 2009, p.172.
26
O CORREIO MERCANTIL n.176, Quinta Feira, 22 de Agosto de 1839. Salvador: Typ. do Correio Mercantil, de M.L. Velloso e
Comp., 1839.
27
CÂMARA, 1888, p.156.
28
[...] on our return to the city, we passed a small village close by the sea, the inhabitants of which, principally blacks, are mostly
occupied in whale fishing [...] (GARDNER, 1846, p.77).
29
SPIX & MARTIUS, 2016 p.78.
30
CÂMARA, 1888, p.156.
31
ROCHA PITA, 2013, p.119.

495
Itapagipe
Em obra da segunda década do séc. XIX, Wilhelm Christian Gotthelf von Feldner fala de
armação para pesca de baleia em Itapagipe.32 Anúncio confirma sua localização:

O Proprietario d´Armação denominada Pedra Furada, faz saber a todas as


Pessoas que pescão Balêas, e as quizerem beneficiar na dista Armação, de
acharem nella todo o necessario para o dito fim, dando a meação do seu
producto.33

Confirma Alves Câmara, na mesma Pedra Furada, inoperante em 1888.34

Itaparica
Como dito antes por Ellis, os primeiros Contratos são mencionados na Ponta da Cruz e na
Ponta de Itaparica, também chamada Ponta das Baleias.35 Fala-se sempre em Contratos em
Itaparica, como um todo, sem situá-los.36 Tollenare cita as “várias fábricas de azeite do lado
de leste e do norte”.37 Fabiana Comerlato especifica esse desdobramento da atividade:
depois das armações de Ponta de Itaparica e Ponta da Cruz, construíram-se as de
Manguinho, Porto Santo, Gamboa e Barra do Gil.38 Nos séc. XVII e XVIII não encontrou
documentação sobre Manguinho e Corpo Santo. Porém ela não assinala Amoreiras,
próximo de Manguinhos, e nem Ponta de Areia, pouco mais a norte, que são repetidamente
citados como locais de Contratos.39 Castelucci Jr. assinalava que, com exceção das
armações da Gameleira e da Barra do Gil, todas estavam ao norte da ilha. Ao final do século
XIX, poucas armações operavam, em penúria.40 As da Ponta de Itaparica estavam
desativadas, e funcionavam as de Manguinho e Porto Santo e, mais afastadas da vila de
Itaparica, da Gamboa e Barra do Gil. Todas de pequeno porte.

32
AUGEL, 1980.
33
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.5, Sexta feira 15 de Janeiro de 1819. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1819.
34
CÂMARA, 1888, p.156.
35
FREI VICENTE DO SALVADOR, 2013, p.402; ROCHA PITA, 2013, p.241; VILHENA, 1922a, p.42.
36
CARTA..., 1950-51, p.120; WILSON, 1852, p.347; DÉNIS, 1839, p.233; REBELLO, 1829, p.133; HENDERSON, 1821, p.328.
37
TOLLENARE, 1956, p.342.
38
COMERLATO, 2011. P.4. Edgard de Cerqueira Falcão (1943) afirmava que a armação se transferira, em 1850, para
Manguinhos. Não é exatamente o que se depreende da literatura mais especializada no tema.
39
PEIXOTO, 1946, p.69; RISÉRIO, 2004, p.360.
40
CASTELUCCI JR., 2008, p.73.

496
APÊNDICE 4
As Armações de Xaréu e a Pesca de Arrasto

As Armações de Baleia confundem-se com aquelas outras chamadas Armações de Xaréu,


e, em alguns casos, de outros pescados, como cavala.

Onde estavam as Armações? Haverá, aqui também, uma confusão entre as Armações (o
agrupamento de pescadores e seu vínculo com o proprietário da terra, muitas vezes com
sua vistosa casa de vivenda próxima) com o seu símbolo visual mais evidente e
característico, elevado à condição de topos da Bahia no séc. XX: a pesca de arrasto. Que é
identificada com a do xaréu e esta, com as Armações.

Como estas perduravam no cenário bucólico da orla atlântica no séc. XX, as menções desse
período tenderão a retroativamente considerar ali o locus privilegiado da pesca do xaréu. E,
também retroativamente, considerar aquela a condição intemporal da mesma.

Em Chega Negro, em Carimbamba e no Saraiva cumprem os mesmos


trabalhos dos seus antepassados, trabalhos que vêm dos tempos da
Colônia, do Império, da República até nossos dias. (TAVARES, 1961, p.66).

A seguir, veremos a localização novecentistas da pesca de arrasto.

O cômputo mais fiel e completo é o de Antônio Alves Câmara:

Data de muito esta pesca, e sabe-se que outr´ora foi feita em diversos
logares, e entre elles: Parapatingas na parte SE da ilha de Itaparica;
Cantagallo, dentro do porto perto da fortaleza da Jequitaia; Barra, entre os
fortes de S. Diogo e de Santa Maria; na costa, entre a barra e Itapuan, nos
logares denominados Lagôa, Saraiva e Carimbamba; e ao norte de Itapuan
em Catassaba.

Tambem em Itapuan tentou-se na pedra de S. Thomé fundar-se uma


armação de xaréo, que é o nome, que dão a esses estabelecimentos de
pescaria, o qual não deu bom resultado por descobrir muito a praia com a
baixa mar, e ficar-se sujeito à hora do preamar, o que muitas vezes era
incompativel com a da venda. (CÂMARA, 1911, p.39).

José Geraldo Vieira enumera as praias de Carimbamba, Chega-Negro e Saraiva.1 Carlos


Torres, Armação, Chega-Nego, Sarave (sic) e Carimbamba.2 Anísio Félix cita o Chega Nego
(sic) e Armação.3

Talvez não exclusivamente ali, é certo que já nas primeiras décadas do séc. XIX era aquela
costa sítio para armações desse tipo: “entre a Enseada da Itapoán, e o dito Rio Vermelho
tem armações de Balêas, outras de cavalla e charéos, e todas de muita importancia”.4 Na
mesma época, James Henderson diz algo similar: “oito milhas a nordeste do Rio Vermelho
está a enseada de Itapuã, com um Contrato de baleias. Entre esta enseada e o dito rio
existem armações que abastecem a cidade com pescado”.5

1
VIEIRA, José Geraldo. Introdução. In: KANTOR, Manuel. Bahia. Edições Melhoramentos, s/d, p.45.
2
TORRES, 1961, p.194.
3
FÉLIX, Anísio. Bahia Prá Começo de Conversa. Salvador: Edição do Autor, 1982.
4
REBELLO, 1829, p.136.
5
Eight miles to the north-east of the river Vermelho is the bay of Itapuan, with a whale fishery. Between this bay and the
said river there are fisheries which furnish the capital with fish. (HENDERSON, 1821, p.329).

497
Porém, vejamos lugar a lugar.

Itaparica
Em Itaparica, onde abundavam as armações de baleias, conhecemos a menção apenas
uma armação de xaréus, na Parapatingas.6

Jequitaia
Na região da Jequitaia também, pelo relato de Câmara, o que explicaria porque Água de
Meninos aparecia nas Posturas do Senado de 1785 como fornecedor de peixe fresco para a
cidade.7

Barra
Na Barra um dia houve. Luiz Monteiro da Costa fala de petição feita em 1715, ao rei D. João
V, para construir armação de xaréu, por Francisco de Souza Salgado, no Porto da Barra8.
Em 1716, houve solicitação idêntica, porém de outra pessoa, de Antônio de S. Antas,
capitão do forte de Santa Maria.9 E, de fato, uma armação de xaréus foi posta ali, por
Francisco Pereira Ferraz.10 Câmara a localiza na praia do Porto da Barra.

Ondina
Em Ondina, há algumas menções. Licídio Lopes fala de Areia Preta, como toponímia, assim
como Júlio Braga, que também assinala pesca no Camarão, na foz do riacho homônimo.11
Se a pequena praia na parte oeste do Morro da Sereia é o Canzuá, e mais a oeste é
Camarão, o que se chamava de Areia Preta é a área das proximidades da saída da Av.
Adhemar de Barros à praia.

Rio Vermelho
No Rio Vermelho, Porto Filho afirma que até os anos 1960 havia puxada de rede na Praia
de Sant´Anna. Júlio Braga fala na Paciência.12

Amaralina
Em uma parte de Amaralina, onde está a capela de N. Sra. dos Mares, estava a antiga
Armação da Lagoa (e a própria lagoa). Como, por exemplo, se assinala na Carta
hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira (Fig.67). De pouco
depois é este testemunho:

A dos y media millas al E. algunos grados S. del faro, se ve otra punta en la


que hay un vijia ó torre de señales, que transmite à Bahía la
correspondencia semafórica de la costa del N.: esta punta es la mas
meridional del promontorio, y forma con la de Itapuanzinho que está una
milla mas al E., una pequeña bahía ocupada por un armação y guarnecida
de rocas como casi la totalidad de esta costa. (ROUSSIN, 1844, p.98).

6
REBELLO, 1829, p.133; CÂMARA, 1911, p.39. O que é repetido por Júlio Santana Braga (Notas sobre a Pesca do Xaréu:
folclore e compromisso religioso. In: Afro-Ásia, Salvador, n10-11. Salvador: CEAO-UFBA, 1970).
7
A BAHIA DE OUTROS TEMPOS..., 1897, p.55.
8
COSTA, Luiz Monteiro da. Nugas Históricas. Salvador, 1953. In: Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, Salvador, n.83, 1961-67, p.37.
9
COSTA, 1961-67, p.41.
10
COSTA, 1961-67, p.43.
11
LOPES, 1984; BRAGA, 1970.
12
BRAGA, 1970.

498
Uma série de autores confirmam a existência da armação13, como depois da persistência da
puxada de rede.14

Pituba
A Planta do accampamento de Pirajá e Itapoan (1839), de Henrique de Beaurepere (Fig.44),
assinalava uma Armação a sudoeste imediato do rio Chega-Negro (que veremos adiante),
aparentemente na formação de recifes que hoje serve como porto para pequena colônia de
pescadores, quase defronte à Praça Nossa Senhora da Luz. Dessa armação não temos
documentação alguma posterior.

De toda sorte, no século XX Ivan Pedro Martins assistiu a puxadas de rede.15

Chega-Negro
Chega-Negro é a foz de rio que no século XIX tinha bacia de captação menor, e possuía o
mesmo nome, com pescadores aportados em ambas as margens, porém com maior
desenvoltura na margem oeste.

Chega-Negro é toponímia imprecisa que ora designa a praia de Armação, ora a foz do rio
Camurugipe, ora a praia imediatamente a sudoeste dela, onde hoje está colônia de
pescadores. Houve documentos estatais que inclusive lhe apontavam como onde estava a
Casa de Pedra16, onde as muitas lendas do folclore popular lhe relacionavam com o sentido
sugerido pelo nome “Chega-Negro”, e associando com as mais diversas possibilidades da
escravidão e seu tráfico ilegal.

Faz sentido que esta seja alinhada com as demais, se observarmos que os relatos
novecentistas enfocam a pesca de arrasto, e não ser esta feita no âmbito de uma Armação.
Por exemplo, Kantor distingue Chega Negro, Carimbamba e Saraiva.17 Reconhece José de
Barros Martins “Chega Negro, Carimbamba, Armação”.18 Wilson Rocha, o arrastão “em
Chega Negro, em Armação e em Carimbamba”.19 José Valadares, “no Chega Negro e em
Armação”.20 Os locais se desdobram de dois a três, e sequer em uma ordem constante.
Para estas pessoas, no século XX, era uma continuidade.

A pesca de arrasto, pelo menos, perdurou.

Armação e Boca do Rio, Saraiva e Carimbamba


As dificuldades de localizar mais especificamente as Armações ocorrem daí até Itapuã. Os
relatos antigos padecem de pontos de referência fáceis. Como vimos antes, Tollenare situa
uma cordoaria e um coqueiral em um “estabelecimento de pesca que ocupa 200 negros”.21

E Rebello, armações próximas à foz do Rio Santo Antônio das Pedras – atual Rio das
Pedras.

13
CÂMARA, 1911, p.39; MEIRELLES, 1977, p.49; VARELLA, 1935, p.94; CAMPOS, 1942, p.120.
14
LOPES, 1984; BRAGA, 1970.
15
MARTINS, 1955, p.3
16
SEPLAM-RENURB, 1988. Local de polêmica recente já que tal área próxima ao antigo Aeroclube é tombada desde a
década de 1940 por seu valor paisagístico. PRAIA CHEGA-NEGO É TOMBADA, Jornal A Tarde, Salvador. 19 out. 2006. Ali
também se creditava a esse trecho da orla o nome de Chega-Negro. Que é equivocado de toda sorte: tanto historicamente,
quando pelo seu uso corrente, que inexiste: ali é chamado popularmente de Armação.
17
KANTOR, 1947, p.45.
18
CARYBÉ, s/d, p.25.
19
CARYBÉ, 1951.
20
VALLADARES, 1951, p.101.
21
TOLLENARE, 1956, p.317.

499
Rio S. Antonio das Pedras tem a sua nascença nas terras dos Religiosos de
S. Bento no sítio das Barreiras; enriquece-se com o rio Pituassú, e vem
desaguar nas Armações da pesca do peixe na costa de Itapoán.
(REBELLO, 1829, p.130).

Itapuã era um termo que abrangia boa parte do litoral norte de Salvador. No entanto, a norte
da foz, nas praias de Corsário e Pituaçu, não encontramos mais nenhuma referência sequer
a pescadores, o que dirá a Armações. Na foz mesmo do rio, na atual praia de Aratubaia, há
pescadores e condições constantes para os mesmos. Nenhum outro documento, porém,
aponta para algo de maior vulto ali. Apenas pequenas jangadas.22 A única alternativa é
referir-se às armações a sul da foz. Voltamos ao problema dessa longa faixa de areia, com
alguns agravantes. Certas toponímias parecem dançar de um lado a outro, em especial a de
Armação e o de Chega-Negro.

A Armação do Saraiva passou a ser chamada apenas de Saraiva. Já a Armação do


Gregório ganhou o nome de Carimbamba. Agora é questão de localizar ambas.

Da foz do rio Camurugipe – na época, o rio Chega-Negro – e a foz do rio Santo Antônio das
Pedras (ou Rio das Pedras) há uma extensão de praia de cerca de 3 km, interrompida
praticamente ao meio por um rio menor, vindo das dunas onde depois se construiu o Centro
de Convenções. Este rio foi pavimentado, correndo no leito da atual Av. Simon Bolívar, e
suas águas voltam a cair ao mar somente em época de chuvas, próximo à Casa de Pedra,
cujos restos ainda permanecem.

Acreditamos que o primeiro trecho, de oeste a leste, corresponde à antiga Armação do


Saraiva, e o segundo, a Carimbamba, seguindo a ordem física apresentada por Antônio
Alves Câmara (“Lagôa, Saraiva e Carimbamba”).23

O Plano hydrografico da Bahia de Todos os Santos... (1803), de José Fernandes Portugal


(Fig.69) apresenta Carimbamba, no sopé do Outeiro de São Francisco, e, a leste, D.
Ignacia. Referia-se à Armação do Saraiva. Já que Inácia era como fora conhecida
Bernardina Mirales de Souza, viúva do mestre de campo Fortunato José Rodrigues Pinheiro,
foreiro das terras da Pituba e do Saraiva, incluindo sua armação. Era madrinha de Manoel
Ignácio da Cunha Menezes, o Visconde do Rio Vermelho, a quem legou tais terras, e que
fora monopolista por um tempo do negócio das baleias, na Bahia.24 Ignacia, portanto,
designa o Saraiva. Confirmando nossa hipótese. Essa toponímia persistiu.

De Amaralina para cá tinha Areia de Chega-nego – era alin onde boataram


o Jardim dos Namorados, que é o jardim da infelicidade – de lá para cá
tinha o Saraiva, onde tem aquela casa de pedra. Ali chamava-se Saraiva.
Ali no Aeroclube chama-se Carimbamba, a Boca do Rio toda vida foi Boca
do Rio, depois o Jaguaribe, de Jaguaribe as Trincheiras, São Tomé... [...]
De lá de São Tomé tem Porto de Baixo, as Alagadas, a Enseadinha, o Porto
de Nossa Senhora e o Canal, e daí pra lá até Flamengo é essas praias. [...]
(Dona Helena) (GANDON, 2008, p.249).

A descrição de uma antiga itapuãzeira mostra que ambas as armações eram muito
próximas: o antigo Aeroclube, demolido, e que fora a sede da fazenda do Visconde do Rio
Vermelho, e a Casa de Pedra, estão praticamente uma defronte da outra, sendo apenas as
duas bandas do rio que corria ali.

Já na virada do século XIX ao XX, das grandes armações, funcionava apenas uma.

22
Boca do Rio é um pouco diferente das outras porque tem ainda um rio que se abre sobre as areias brancas, dunas
espetadas de coqueiros, jangadas em atitude de descanso, apoiadas nas espadelas. (FÉLIX, 1982, p.41).
23
CÂMARA, 1911, p.39.
24
TEIXEIRA, 1986, p.50.

500
[...] desappareceram completamente à excepção das da costa, que foram
abandonadas; mas conservam ainda vestigios das grandes senzalas, e dos
apparelhos, restando apenas a Carimbamba, que está montada e ainda
trabalha, situada em cerca de 7 milhas a E da ponta de Santo Antonio, a
qual é presentemente mais conhecida pelo nome generico de Armação.
(CÂMARA, 1911, p.39).

A puxada de rede continua, até os dias de hoje; mas as armações, a estrutura


organizacional, não. Júlio Negro, décadas depois, identificava como remanescente a
armação logo ao lado, do Saraiva:

[...] a armação do Saraiva, no local hoje denominado Armação, é


praticamente a única em funcionamento e por não oferecer mais nenhum
lucro, o proprietário da rede (o Armador) pretende não mais voltar a pescar
na próxima safra. (BRAGA, 1970. p.43).

Da Boca do Rio, houve um deslocamento toponímico: era evidentemente a foz do Rio das
Pedras. Com o assentamento posterior, conhecido pelo mesmo nome, a praia que lhe
corresponde se “deslocou” para sul, ocupando o lugar da antiga Carimbamba, termo que
persistiu apenas como nome de edifício pioneiro na região, mais a sudoeste, demolido há
algumas décadas.

Piatã e São Tomé


Júlio Braga fala em São Tomé.25 Da Ponta de São Tomé, pode estar se referindo à praia
imediatamente a oeste (atual Placaford) e a leste (atual Piatã). Esta é mais provável, por ser
aberta, enquanto a outra é coalhada de arrecifes. Há ainda outras menções, embora antigas
e dúbias.

De 1716, o documento mais antigo que atesta a pesca do xaréu. Como em documento de
1717 ambos falam de São Thomé. O segundo, do “porto da Pedra chamado de São Thomé
com dois portos mais na forma”.26 E ainda: “o porto da Pedra de São Thomé principiava no
rio chamado Jaguaripe até o fim da terra da parte do norte, que é onde se acha o marco q.
as divide”.27 Aqui pode haver confusão toponímica: São Tomé é o nome da ponta que divide
Piatã de Placaford, e ele é um porto. Isto é, pequenas embarcações (canoas, jangadas)
podem aportar com tranqüilidade ali, o que não podem fazer na região de Armação. Faz
sentido com a descrição de Jaguaripe. Depois de várias idas e vindas na posse dos terrenos
costeiros, os mesmos autores dizem que em 1796, arrendaram José Herculano, Feliciana
Maria dos Reis (esposa) e Francisco Lourenço da Costa Lima (filho), incluindo no contrato
as armações do Gregório e as do rio Jaguaripe.

Antônio Alves Câmara assinala que houve por breve tempo uma armação de xaréu nesse
porto de São Tomé, dada as dificuldades pelas características físicas do local.

Itapuã e além
Em 1819:

Quem quizer rematar huma Fazenda de coqueiral, com portos de mar para
armação de peixe, e desembarque em toda a maré, com casa de
alambique, em terras próprias, sita na Itapoan, denominada a Armação
Grande ou do Guimarães, que foi da falecida D. Maria do Rozario, Viuva do

25
BRAGA, 1970.
26
NEESER & TEIXEIRA, 1944.
27
NEESER & TEIXEIRA, 1944.

501
Capitão Francisco de Souza Guimarães; compareça nas Praças do Juizo de
Orfãos nas tardes dos dias 22 do corrente e seguintes. 28

Lopes localizou pesca de arrasto em Catassaba (que escreve Cataçaba), talvez onde esteja
o Hotel Catussaba. Ali houve de fato uma armação de pescado.29 Catassaba é toponímia
antiga, já na Carta hydrografica da Bahia de Todos os Santos (1830), de Leal Teixeira
(Fig.67).

Lopes fala ainda em Pau de Pinho.30 Júlio Braga menciona Diogo Dias e Flamengo.31

Observações Gerais
Há uma relação entre a foz de rios e pescadores – sem uma correspondência obrigatória.

Essa relação não é acidental. Os rios eram freqüentes na costa. Sua foz, ao ter os
sedimentos orgânicos trazidos do continente, criava ambiente propício para o pescado. Para
ter a condição de desaguarem no mar aberto, diante das forças contrárias das correntes
marítimas, carregando areias, era necessária uma espécie de quebra-mar natural, de
formações rochosas que criavam pequenos portos, bem-vindos para as jangadas e canoas.

Havia choças de pescadores nas margens da foz do Riacho do Seixos, no Morro Ipiranga,
que foi canalizado.

Havia pescadores na foz do rio Camarão, que também desapareceu sob construções.

Na Praia da Paciência desaguava um rio, que corria pelo vale da atual Av. Anita Garibaldi.

A foz do rio Lucaia criava um dos principais portos do litoral norte, o Porto da Mariquita.

O rio Camurugipe em tempos remotos, depois o rio Chega-Negro, criava um porto também
antigo.

A proximidade das armações do Saraiva e Carimbamba da foz do pequeno rio da Av. Simon
Bolivar pode não ser acidental.

Na saída do Rio das Pedras até hoje existem pescadores.

O Porto do Meio em Itapuã era onde um riacho vinha ao mar, dividindo Itapuã.

O importante Porto de Buraquinho era a própria foz do rio Joanes.

A desaparição gradual desses rios, pavimentados, e depois das localidades, apagou isso da
paisagem.

28
IDADE D´OURO DO BRAZIL n.23, Sexta-Feira 19 de Março de 1819. Salvador: Typ. de Manoel Antonio da Silva Serva,
1819.
29
CÂMARA, 1911, p.39.
30
LOPES, 1984. Onde hoje é conhecido como Busca-Vida (GANDON, 2008).
31
BRAGA, 1970.

502
Referências Bibliográficas
Obs: Documentos coloniais antigos, e obras dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, tal como indicado na bibliografia,
foram, em quase sua totalidade, foram obtidos no site www.archive.org.

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BARROS, F. Borges de (org.). Archivo Histórico 2º Vol. Primeira Parte (Organisações Communaes, Freguezias,
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ATAS DA CÂMARA 1625-1641. DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL 1º Volume. Salvador:


Publicações da Diretoria do Arquivo e Divulgação da Prefeitura do Salvador, 1944.

ATAS DA CÂMARA 1641-1649. DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL. 2º Volume.


Salvador: Prefeitura Municipal do Salvador/ Publicações da Diretoria do Arquivo e Divulgação da Prefeitura
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CALDAS, Jozé Antonio. Notícia Geral de Toda esta Capitania da Bahia desde o seu Descobrimento até o
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CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia/
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GIRALDES, Joaquim Pedro Cardoso Casado. Tratado Completo de Cosmographia, Geographia-Historica,


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GREGÓRIO DE MATOS. Obras Completas de Gregório de Matos. Sacra – Lírica – Satírica – Burlesca. Vol.III.
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ITAPARICA, Manuel de Santa Maria. Descrição da Ilha de Itaparica. Salvador: P55 Edições, 2011.

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PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Vol.II. 6ed. Completada com a 2ª
parte, até agora inédita, acompanhada de notas e estudos de Varnhagen, Leite de Vasconcelos, Afrânio
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ROCHA PITA, Sebastião da. História da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013.
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SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuario Mariano, E Historia das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, e
milagrosamente manifetadas, e apparecidas em o Arcebispado da Bahia, & mais Bispados, de Pernambuco,
Paraiba, Rio Grande, Maranhão, & Grão Pará, em graça dos prégadores, & de todos os devotos da Virgem
Maria nossa Senhora. Tomo Nono. Lisboa Occidental: na officina de Antonio Pedrozo Galram, 1722.

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SIMÃO DE VASCONCELLOS. Livro Primeiro das Notícias Antecedentes, Curiosas, e Necessarias das Cousas
do Brasil. In: SIMÃO DE VASCONCELLOS. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil E do que
obraram seus filhos n´esta prte do Novo Mundo Em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nas
partes do Brasil, dos fundamentos que n´ella lançaram e continuaram seus religiosos, e algumas notícias
antecedentes, curiosas e necessarias das cousas d´aquelle estado. 2ed corrigida e aumentada. Lisboa:
Editor A.J. Fernandes Lopes, 1865a.

________. Livro Segundo das Notícias Antecedentes, Curiosas, e Necessarias das Cousas do Brasil. In: SIMÃO
DE VASCONCELLOS. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil E do que obraram seus filhos
n´esta prte do Novo Mundo Em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nas partes do Brasil, dos
fundamentos que n´ella lançaram e continuaram seus religiosos, e algumas notícias antecedentes, curiosas e
necessarias das cousas d´aquelle estado. 2ed corrigida e aumentada. Lisboa: Editor A.J. Fernandes Lopes,
1865b.

________. Livro Terceiro da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. In: SIMÃO DE
VASCONCELLOS. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil E do que obraram seus filhos n´esta
prte do Novo Mundo Em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nas partes do Brasil, dos
fundamentos que n´ella lançaram e continuaram seus religiosos, e algumas notícias antecedentes, curiosas e
necessarias das cousas d´aquelle estado. 2ed corrigida e aumentada. Lisboa: Editor A.J. Fernandes Lopes,
1865c.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Hedra, 2010.

VICENTE DO SALVADOR, Frei. História do Brasil 1500-1627. Salvador: P55 Edições, 2013. [Obra concluída em
1627].

VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasilicas Contidas em XX Cartas Que da
Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos escreve um a outro Amigo em Lisboa, debaixo de nomes
alusivos, noticiando do Estado daquella Cidade, sua Capitania, e algumas outras do Brasil: feita e ordenada
para servir na parte que convier de Elementos para a História Brasílica, ornada de Plantas Geographicas e
Estampas. Dividida em Trez Tomos que ao Soberano e Augustissimo Princepe Regente N. St. O Muito Alto e
Muito Poderozo Senhor Som João dedica e oferece o mais humilde dos seus vassallos Luiz dos Santos
Vilhena Professor Régio de Língoa Grega na Cidade da Bahia. Anno de 1802. Vol. 1. Salvador: Imprensa
Official do Estado, Rua da Misericórdia, n.1, 1922a.

VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasilicas Contidas em XX Cartas Que da
Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos escreve um a outro Amigo em Lisboa, debaixo de nomes
alusivos, noticiando do Estado daquella Cidade, sua Capitania, e algumas outras do Brasil: feita e ordenada
para servir na parte que convier de Elementos para a História Brasílica, ornada de Plantas Geographicas e
Estampas. Dividida em Trez Tomos que ao Soberano e Augustissimo Princepe Regente N. St. O Muito Alto e
Muito Poderozo Senhor Som João dedica e oferece o mais humilde dos seus vassallos Luiz dos Santos
Vilhena Professor Régio de Língoa Grega na Cidade da Bahia. Anno de 1802. Vol. 2. Salvador: Imprensa
Official do Estado, Rua da Misericórdia, n.1, 1922b.

DOCUMENTOS HISTÓRICOS dos Tempos do Império e República


BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. Longos Serões do Campo Vol.1 – O Major Pedro Ribeiro. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1992a.

BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. Longos Serões do Campo Vol.2 – Infância e Juventude. Rio de Janeiro:
Ed. Nova Fronteira, 1992b.

CÂMARA, Antônio Alves. A Bahia de Todos os Santos com Relação aos Melhoramentos de seu Porto. Rio de
Janeiro: H. Lombaert & Comp., Rua dos Ourives, n7, 1890.

________. Ensaio sobre as Construções Navaes Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger &
Filhos, Ouvidor 31, 1888.

________. Pescas e Peixes da Bahia. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1911

517
COLECÇÃO DAS LEIS E RESOLUÇÕES Da Assembléa Legislativa de Regulamentos do Governo da Província
da Bahia, Sanccionadas e publicadas no anno de 1855. Volume VIII, contendo os números 515 a 583.
Salvador: Typ. Constitucional de França Guerra, ao Aljube n.1, 1865.

D. PEDRO II. Diário da Viagem ao Norte do Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora/ Universidade Federal da
Bahia, 1959. [Viagem que ocorreu em 1859].

FERRARI, Dr. José. Engenheida. Poema Didactico-Heroi-Comico. Salvador: Typ. de Carlos Poggetti, Rua
d´Alfandega, n.37, 1853.

GAMA, Padre Lopes. O Carapuceiro: Crônica de Costumes. Org. Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: Companhia
de Letras, 1996.
REBELLO, Domingos José Antonio. Corographia Ou Abreviada Historia Geographica do Imperio do Brazil,
coordinada, acrescentada, e dedicada à Casa Pia, e Collegio dos Orfãos de S. Joaquim desta cidade para
uso dos seos Alumnos, a fim de adquirirem conhecimentos Geographicos preliminares d´America em geral, e
seo descobrimento; e com particular individuação do Brasil; especialmente da Provincia, e Cidade de S.
Salvador Bahia de Todos os Santos. Salvador: Typ. Imperial e Nacional, 1829.

SAMPAIO, Lauro (org.). Indicador e Guia Prático da Cidade do Salvador – Bahia. Salvador: Typ. Agostinho
Barboza & C., R. Barão Homem de Mello, 1928.

SEPLAM-RENURB, Plano de Estruturação da Orla Marítima de Salvador – Trecho Amaralina-Itapuã Vol.1


Tomo1. Salvador, 1988.

A VIAGEM DE PATRONI, pelas Províncias Brasileiras de Ceará, Rio de S. Francisco, Bahia, Minas Geraes, e
Rio de Janeiro: nos Annos de 1829, e 1830. Segunda Edição. Lisboa: Typ. Lisboense, de José Carlos de
Aguiar Vianna, 1851.

VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia, feita por ordem do Exm. Sr. Dr. Joaquim Manuel
Rodrigues Lima, Governador do Estado da Bahia. Salvador: Typ. e Enc. do Diário da Bahia, 1893.

RELATÓRIOS OFICIAIS
Apesar de que em muitos lugares os Relatórios e documentos análogos do Governo Provincial ou da Intendência
Municipals serem creditados ao responsável pelo Poder Executivo, julgamos por bem ordená-los
cronologicamente, a partir do nome dos documentos. Entendemos que a compreensão será mais fácil, no corpo
do texto e na localização nesta Bibliografia. O ano que aparece comandando o tópico será o ano da publicação
do documento; na maioria dos casos, ele cobre o ano anterior.

1845
FALLA Dirigida à Assembléa Legislativa Provincial da Bahia na Abertura da Sessão Ordinaria do anno de 1845
pelo Presidente da Província Francisco José de Sousa Soares d´Andrea. Salvador: Typ. de Galdino José
Bezerra e Companhia, Rua do Saldanha, casa n.16, 1845

1849
FALLA que Recitou o Presidente da Provincia da Bahia o Dezembargador Conselheiro Francisco Gonçalves
Martins, n´Abertura da Assembléa Legislativa da mesma Provincia em 4 de Julho de 1849. Salvador: Typ. de
Salvador Moitinho, Rua das Portas do Carmo, casa n.33, 1849.

1850
FALLA que Recitou o Presidente da Provincia da Bahia o Conselheiro Desembargador Francisco Gonçalves
Martins, n´Abertura da Assembléia Legislativa da mesma Província em 1 de Março de 1850. Salvador: Typ.
Constitucional de V.R. Moreira, Rua das Portas do Carmo, casa n.39, 1850.

1851
FALLA que Recitou o Presidente da Provincia da Bahia o Dezembargador Conselheiro Francisco Gonçalvez
Martins, n´Abertura da Assemblea Provincial da mesma Provincia no 1. de Março de 1851. Salvador:
Tipographia Constitucional de Vicente Ribeiro Moreira, rua do Tijolo, casa n.10, 1851.

1852
FALLA que Recitou o Presidente da Província da Bahia o Dezembargador Conselheiro Francisco Gonçalves
Martins, n´Abertura da Assembléa Legislativa da mesma Província no 1 de Março de 1852. Salvador: Typ.
Const. de Vicente Ribeiro Moreira, Rua do Tijolo, casa n.10, 1852.

518
1853
FALLA que Recitou o Exm.o Presidente da Provincia da Bahia, Dr. João Mauricio Wanderley, n'Abertura da
Assembléa Legislativa da mesma Provincia no 1.o de Março de 1853. Salvador: Typ. Const. de Vicente
Ribeiro Moreira, 1853.

1854
FALLA Recitada na Abertura da Assembléa Legislativa da Bahia pelo Presidente da Província o Doutor João
Mauricio Wanderley no 1º de Março de 1854. Salvador: Typ. de Antonio Olavo da França Guerra e Comp.,
Rua do Tira-Chapéo, casa n.3, 1854.

1857
FALLA Recitada na Abertura da Assemblea Legislativa da Bahia pelo Presidente da Provincia o Dezembargador
João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu no 1. de dezembro de 1857. Salvador: Typ. de Antonio Olavo da
França Guerra, Rua do Tira-Chapéu, n3, 1857.

1860
FALLA Recitada na Abertura da Assembléa Legislativa Provincial da Bahia pelo Presidente da Província o
Conselheiro e Senador do Império Herculano Ferreira Penna em 10 de abril de 1860. Salvador: Typ. de
Antonio Olavo da França Guerra, Rua do Tira-Chapéo, n.3, 1860.

1863
RELATÓRIO com que o Exm. Sr. Conselheiro Antonio Coelho de Sá e Albuquerque Presidente da Província
Passou Interinamente a Administração da Mesma ao Exmo. Senhor Conselheiro Manuel Maria do Amaral,
Vice-presidente em 15 de dezembro de 1863. Salvador: s/d, 1863.

1873
RELATÓRIO com que o Exmo. Sr. Conselheiro Barão Homem de Mello Passou no dia 25 de Novembro de 1878
a Administração da Província ao Exmo Sr. Dr. Antonio de Araújo de Aragão Bulcão 2º Vice-Presidente.
Salvador: Typ. do “Diario da Bahia”, 1873.

1874
FALLA com que o Exmo. Sr. Commendador Antonio Candido da Cruz Machado Abriu a 1ª Sessão da Vigesima
Legislatura da Assembléa Legislativa Provincial da Bahia no dia 1º de Março de 1874. Salvador: Typ. do
“Correio da Bahia”, Rua d´Alfandega, n.31, 1874.

1877
RELATÓRIO com que ao Ilm. E Exm. Snr. Dezembargador Henrique Pereira de Lucena Passou a Administração
da Provincia em 5 de Fevereiro de 1877 O Exmo. Sr. Conselheiro Luis Antonio da Silva Nunes. Salvador:
Typ. do “Jornal da Bahia”, 1877.

1882
RELATÓRIO com que o Exm. Sr. Conselheiro de Estado João Lustosa da Cunha Paranaguá Passou no dia 5 de
Janeiro de 1882 a Administração da Província ao 2º Vice-Presidente e Exm. Sr. Dr. João dos Reis de Souza
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Negro ó Guaynia y Amazónas, hasta nauta en el Alto Marañon ó Amazónas, arriba de las bocas del Ucayali
Bajadas del Amazonas hasta el Atlántico compreendido en ese inmenso espacio de los Estados de
Venezuela, Guayana Inglesa, Nueva-Granada, Brásil, Ecuador, Perú y Bolivia. Viaje a Rio de Janeiro desde
Belen en el Gran Pará, por el Atlántico, tocando en las Capitales de las principales províncias del Imperio en
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Capital Barral traducido por D. Juan Doy y Carbonell, Piloto Particular, aumentado por el mismo, con un
apéndice estractado de los mejores autores ingleses que han escrito sobre la navegación de aquellas costas.
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MEDICINA – Teses para o Doutoramento


AMARAL, Augusto César. Beriberi. These apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 22 de
setembro de 1879 para ser sustentada por Augusto Cesar do Amaral. Rio de Janeiro, 1879.

BAHIA, Thomaz Coelho. Considerações acerca das Indicações da Ovariotomia. Theses para o Doutoramento em
Medicina apresentadas a esta Faculdade em 2 de Dezembro de 1885. Salvador: Litho-Typoliguori, Miranda &
C., 5, Rua Nova das Princezas, 1885.

BRAGANÇA, Antonio Militão de. Paralysias Consecutivas às Molestias Agudas. These apresentada à Faculdade
de Medicina da Bahia em 30 de agosto de 1883 para o Doutoramento de Antonio Militão de Bragança.
Salvador: Imprensa Econômica, Rua Nova das Princezas, 18, 1883.

CAPANEMA, Gustavo Xavier da Silva. Dos Pântanos considerados como causa de mollestia. These apresenada
à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1870 e perante ella sustentada à 3 de
dezembro do mesmo anno por Gustavo Xavier da Silva Capanema. Salvador: 1870.

DELLA CELLA, Symphronio F. Da Pustula Maligna, Sua Curabilidade, Indicar as Bases de um Tratamento
Racional. These apresentada e publicamente sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia em
novembro de 1878 a fim de obter o gráo de Doutor por Symphronio F. Della Cella. Salvador: Typ. de Affonso
Ramos & C., 2, Rua de St. Barbara, 1878.

FERRÃO, Manuel Gomes D´Argolo. Elephantíase dos Gregos. These que sustenta em novembro de 1871 para
obter o grão de Doutor em Medicina pela Faculdade da Bahia. Manuel Gomes d´Argolo Ferrão. Salvador:
Typ. do “Diario”, 1871.

FERREIRA JÚNIOR, José Duarte. Chlorose. These apresentada para ser sustentada perante a Faculdade de
Medicina em novembro de 1869 por José Duarte Ferreira Júnior. Salvador: Typ. de J.G. Tourinho, 1869.

FIGUEIREDO FILHO, Bernardo José de. Beriberi. These apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro em 6 de setembro de 1879 e sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia em 2 de janeiro
de 1880. Rio de Janeiro, Imprensa Industrial – de João Paulo Ferreira Dias, Rua da Ajuda, 75, 1880.

GOMES, Joaquim da Silva. Qual o melhor tratamento da febre amarella? These para o Doutorado em Medicina
sustentada em novembro de 1875 por Joaquim da Silva Gomes. Salvador: Typ. do Diario, Largo do Theatro,
101, 1875.

GONDIM, Edmundo Monteiro. A Novarsenotherapia no Beriberi. Cadeira de Therapeuta Clinica e Experimental


These apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia em 30 de outubro de 1921 a fim de obter o gráo de
Doutor em Sciencias Medico-Cirurgicas. Salvador: Livraria Econômica, Rua da Longa, 21, 1921.

GORDILHO, Manoel de Sá. Considerações acerca das Operações Obstetricas mais Preconisadas. These
Inaugural apresentada à Faculdade de Medicina da Bahia por Manoel de Sá Gordilho. Salvador: Litho-
typographia de João Gonçalves Tourinho, Arcos de Santa Barbara, n.83, 1882.

LEITE, João José de Oliveira. Ataxia Locomotriz Progressiva. These apresentada à Faculdade de Medicina da
Bahia e publicamente sustentada durante a mesma afim de obter o gráo de Doutor em Medicina por João
José de Oliveira Leite. Salvador: Typ. Bibliotheca dos Dous Mundos, 1882.

MORAES, João Pereira de Mello. Do Beriberi e seu Tratamento. These apresentada à Faculdade de Medicina da
Bahia em 30 de setembro de 1880 e a ser sustentada em novembro. Salvador: Typ. do “Diário da Bahia”,
Largo do Teatro, 101, 1880.

OTTONI, David Benedicto. Beriberi. These apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 30 de
junho de 1879, e defendida perante a Faculdade de Medicina da Bahia em 24 de dezembro do mesmo ano.
Rio de Janeiro, 1879.

524
PEREIRA, Francisco Braulio. Beriberi no Brazil. These para o Doutorado em Medicina sustentada por Francisco
Braulio Pereira. Salvador: Litho-typographia de João Gonçalves Tourinho, Arcos de Santa Barbara, n.83,
1881a.

________ Histórico-pathologia e therapeutica do beribéri. These para o Doutorado em Medicina. Salvador: Litho-
typographia de João Gonçaves Tourinho, Arcos de Santa Bárbara, n83, 1881b.

REDIG, Joaquim Marques. Hydrotherapia. These para o Doutorado em Medicina apresentada à Faculdade da
Bahia a 27 de fevereiro de 1884 para ser perante ella sustenta por Joaquim Marques Redig. Salvador:
Imprensa Economica, Rua Nova das Princesas, 15, 1883.
SANTOS, Domingos Pedro dos. Hemato-Chyluria dos Paizes Quentes. These Inaugural apresentada em 30 de
maio de 1884 Faculdade de Medicina da Bahia para ser publicamente defendida em novembro do mesmo
anno afim de obter o grau de Doutor em Medicina por Domingos Pedro dos Santos. Salvador: Typ. dos Dous
Mundos, Rua Conselheiro Saraiva, 41, 1884.

FEBRE REMITTENTE DAS REGIÕES TROPICAES. Salvador: 1874.

SILVA, Eduardo Ribeiro da. Beriberi. These para o Doutorado em Medicina apresentada para ser publicamente
sustentada por Eduardo Ribeiro da Silva. Salvador: Imprensa Economica, Rua dos Algibebes, 22, 1878.

TEIXEIRA, Diógenes José. Qual o melhor tratamento da febre amarella? These para o Doutoramento de
Diógenes José Teixeira. Salvador: Typ. Constitucional, 1876.

MEDICINA – Teses de Concurso


COUTO, José Luiz de Almeida. Quaes são os melhores meios therapeuticos de combater o beriberi? Concurso
para a Secção Médica. These apresentada e publicamente sustenta em fevereiro de 1871 na Faculdade de
Medicina da Bahia pelo Doutor José Luiz de Almeida Couto. Salvador: Typ. do Diário, 1871.

REBELLO, Guilherme Pereira. Semelhanças e diferenças entre a febre amarella especifica e a febre remittente
biliosa: deducções therapeuticas. These sustentada em junho de 1872. Concurso para Oppositor da Secção
Medica. Salvador: Typ. do “Diario”, 1872.

SARAIVA, Manuel Joaquim. Quaes são os melhores meios therapeuticos de combate o beriberi? Concurso para
um dos logares de oppositor à Secção de Sciencias Medicas. Sustentada em de fevereiro de 1871 pelo Dr.
Manuel Joaquim Saraiva, ex-interno do hospital da Caridade, 1º cirurgião da armada, cavalheiro das três
ordens do imperio: Christo, Rosa e Cruzeiro, condecorado com as medalhas da campanha do Paraguay, da
passagem de Humaitá, do combate naval de Riachuelo, e com a dos vencedores de Corrientes (Argentina).
Salvador: Typ. do “Diario”, 1871.

MEDICINA – Artigos Médicos


BERIBERI NO QUARTEL DE PALMA. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.3, ano XII, set 1880.

BRITTO, Alfredo. Endo-epidemia de abastia choreiforme na Bahia. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.3,
ano XXIII, set 1891.

BRITTO, João Paulo da Silva. Carta dirigida pelo Dr. João Paulo da Silva Britto, da cidade de Caxias, província
do Maranhão, ao estudante da Faculdade de Medicina da Bahia, Domingos Pedro dos Santos. In: Gazeta
Médica da Bahia, Salvador, n.4, ano XV, out 1883.

CIRCUNDES DE CARVALHO, Anísio. O Asylo João de Deus. In: Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina,
Salvador, 1904.

COMMISSÕES MÉDICAS PARA O ESTUDO DO BERIBÉRI. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.11, ano
XI. nov 1879.

FONSECA, Luís Anselmo da. Hygiene Pública aplicada à Cidade da Bahia. In: Revista dos Cursos da Faculdae
de Medicina. Bahia: Typ. Bahiana, de Cincinnatto Melchiades, Rua do Arsenal da Marinha, 25, 1908.

HYGIENE NAS ESCOLAS. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.6, ano X, jun 1878.

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JACOBINA, Ronaldo Ribeiro; CHAVES, Leandra & BARROS, Rodolfo. A “Escola Tropicalista” e a Faculdade de
Medicina da Bahia. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n2, jul-dez 2008.

JOUSSET. Elementos de Medicina Prática. In: Revista da Sociedade Homeopathica da Bahia. Tomo I. Salvador:
Escriptório no Laboratório Homeopathico, 1884.

MAGALHÃES, Pedro S. de. Ainda algumas palavras sobre filariose de Wucherer. In: Gazeta Médica da Bahia,
Salvador, n.12, ano XI, dez 1879.

SILVA LIMA. José Francisco de. Contribuição para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia
sob a forma epidêmica, e caracterizada por paralysia, edema, e fraqueza geral. In: Gazeta Médica da Bahia,
Salvador, n.16, ano I, 25 fev 1867a.

________. Contribuição para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia sob a forma epidêmica,
e caracterizada por paralysia, edema, e fraqueza geral. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.29, ano II,
15 set 1867b.

________. Contribuição para a História de uma Moléstia que reina actualmente na Bahia sob a forma epidêmica,
e caracterizada por paralysia, edema, e fraqueza geral. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.61, ano III,
15 fev 1869.

________. Estado sanitário da cidade durante os últimos quatro mezes; moléstias reinantes. In: Gazeta Médica
da Bahia, Salvador, n.5, ano VIII, mai 1876a.

________ Meteorologia; molestias predominante: febres paludosas, febre amarela, beriberi; o Asylo de
Mendicidade; a Enfermaria de Partos. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.3, ano IX, mar 1877.

________. Registro Clínico, Envenenamento de duas pessoas pela Trombeteria. In: Gazeta Médica da Bahia,
Salvador, n.6, ano I, 25 set 1866.

VELLOZO, Ignacio Alcibiades. Breves considerações sobre as condições climatérias, prophylaticas e statísticas
da cidade do Recife. In: Gazeta Médica da Bahia, Salvador, n.136, 31 mar 1873.

MEDICINA – Outros Documentos


ALMEIDA, Francisco José de. Tratado da Educação Fyisica dos Meninos, Para Uso da Nação Portugueza.
Publicado por ordem da Academia Real das. Lisboa: Officina da Academia Real das Sciencias, 1791.

FRANCO, Francisco de Mello. Tratado da Educação Fysica dos Meninos, Para uso da Nação Portugueza.
Publicado por ordem da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa: Officina da Academia Real das
Sciencias, 1790.

CUNHA, Manoel José Ribeiro da Cunha. Estudo sobre a Pathogenia do Beriberi. Salvador: Typ. Americana,
1874.

MORETZSOHN, Luiz Carlos. Beriberi. Salvador: 1880.

PIRAJÁ DA SILVA. Notas. Memória Histórica sobre as victorias alcançadas pelos Itaparicanos no decurso da
Campanha da Bahia, quando o Brasil proclamou sua independência. Dedicada ao Ilustríssimo e
Excelentíssimo Senhor Manoel Ignacio da Cunha e Menezes, commendador da Ordem de Cristo, Coronel do
Batalhão da Torre Número 95, da Segunda Linha do Exército, e Vice-Presidente da Província da Bahia. Por
seu author Bernardino Ferreira Nobrega Natural desta Cidade, Cirurgião Mor, Graduado Capitão do
Regimento de Infanteria da Segunda Linha da Ilha de Itaparica e condecorado com a Medalha de Distincção
da Campanha desta mesma Província. Typ. Imperial e Nacional, Bahia, 1827. Edição facsimilar da primeira e
única edição. Nova Edição Annotada por Pirajá da Silva. Typ. Social – Cine Theatro São Jeronymo. Bahia,
1923.

SILVA, Domingos Carlos da. Prólogo. In: CUNHA, Manoel José Ribeiro da. Estudo sobre a Pathogenia do
Beriberi. Salvador: Typ. Americana, 1874.

SILVA LIMA, José Francisco da. Ensaio sobre o Beriberi no Brazil. Salvador: Livrarias de J.B. Martin, Catilina e
C. e Viúva Lemos, 1872.

526
VILLAÇA, Augusto Flavio Gomes. Relatório apresentado à Inspectoria Geral de Hygiene, 31 dez 1897. In: DIAS,
Satyro de Oliveira Dias. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Cons. Luiz Vianna, 7 mar 1898.

MEDICINA – Historiografia
BRAGA RIOS, Venétia Durando. Entre a Vida e a Morte: médicos, medicina e medicalização na cidade do
Salvador 1860-1880. Setembro 2001. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Filosofia e
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________. O Asylo de São João de Deos – as faces da loucura. 2006. Tese (Doutorado em História Social) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2006.

BRITTO, Dr. Antonio Carlos Nogueira. A Medicina Baiana nas Brumas do Passado. (Arquivos do Instituto
Bahiano de Historia da Medicina e Ciências Afins). Salvador: Contexto e Arte Editorial, 2002.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras,
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CONI, Antônio Caldas. A Escola Tropicalista Bahiana. Salvador: Livraria Progresso Editora/ Tipographia
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FALCÃO, Edgard de Cerqueira. As Contribuições Originais da “Escola Tropicalista Baiana”. Publicação da


Universidade Federal da Bahia, 1976.

FOUCAULT. Michel. El Nacimiento de la Clínica – una arqueologia de la mirada médica. Mexico, DF: Siglo XXI
Editores, 1966.

GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Civilizando as Artes de Curar: Chernoviz e os Manuais de Medicina Popular
no Império. Agosto 2003. Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde) – Programa de Pós-
Graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz, Rio de Janeiro. 2003.

PEREIRA, Jaqueline de Andrade. Práticas Mágicas e Cura Popular na Bahia (1890-1940). 1998. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. 1998.

SANTOS FILHO, Lycurgo dos. História Geral da Medicina Brasileira Vol.1. São Paulo: Editora Hucitec/ Editora da
Universidade de São Paulo, 1991.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil 1870-
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PAZ, Daniel J. Mellado. Topoi Nocivos e Salubres: as recomendações geográficas da medicina baiana e suas
transmutações. In: Anais do 2º Seminário Íbero-Americano Arquitetura e Documentação. CD-ROM. Belo
Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG, 2011.

PAZ, Daniel J. Mellado. A Europa dos Pobres: a ilha de Itaparica como sanatório do beribéri. In: Anais do XII
SHCU – Seminário da História da Cidade e do Urbanismo. CD-ROM. Porto Alegre: PROPUR-UFRGS/
PROPAR-UFRGS, 2012b.

PERIÓDICOS
Alguns dos periódicos consultados o foram em acervos físicos, o principal foi o da Biblioteca Central do Estado
da Bahia. Outros foram em acervos online, principalmente da Hemeroteca Digital, da Fundação Biblioteca
Nacional. Abaixo estão os periódicos mencionados na Tese, e distinguiremos o primeiro como caso como a.f.
(acervo físico) e a.d. (acervo digital). Uns poucos periódicos foram consultados nas duas modalidades.

A BAHIA (BA) (a.f.)


A COISA (BA) (a.f.)
A LUVA (BA) (a.f.)
A MARMOTA (BA) (a.d.)
DIÁRIO DA BAHIA (BA) (a.d.)
GAZETA DA BAHIA (BA) (a.d.)
GAZETA COMMERCIAL DA BAHIA (BA) (a.d.)
GAZETA MÉDICA DA BAHIA (BA) (a.d.)
GRITO DA RAZÃO (BA) (a.d.)
IDADE D´OURO DO BRAZIL (BA) (a.d.)

527
O CORREIO MERCANTIL (BA) (a.d.)
O GUAYCURU (BA) (a.f.)
O IMPARCIAL BRASILEIRO (BA) (a.d.)
REVISTA DA BAHIA (BA) (a.f.)

ILUSTRAÇÕES
As fontes das ilustrações têm origens distintas. De documentos impressos, ainda que reproduzidos online, mas a
partir de uma matriz física. De imagens (pinturas, gravuras, fotos) veiculadas em meio digital online. E de
acervos físicos, públicos e privados.

Aqueles extraídos de periódicos pontuais, seguindo o padrão do restante do texto, não está nesta lista, mas
integralmente expostos nas legendas.

Documentos Impressos
ALLPORT, Samuel. On the Discovery of some Fossil Remaqins near Bahia in South America. In: Quarterly
Journal of the Geological Society of London, London, v.16, n.1-2, p.263-266, 1860. London: Longman, Green,
Longmans, and Roberts, 1860.

ALMEIDA, Maria do Carmo Baltar Esnaty. As Vitrines da Civilização: a modernização urbana do Bairro
Commercial da Cidade da Bahia (1890-1930). 2014. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) –
PPGAU, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2014.

ATHAYDE, Sylvia Menezes de (org.). A Bahia na Época de D. João: a chegada da Corte portuguesa 1808.
Salvador: Museu de Arte da Bahia/ Solisluna Design e Editora, 2008.

ATLAS PARCIAL DA CIDADE DO SALVADOR. Salvador: Diretoria de Tributação e Cadastro Municipal/


Prefeitura Municipal do Salvador, 1956.

BERTANI, Roberto (org). Coleção Brasiliana/ Fundação Estudar. São Paulo: Via Impressa Edições de Arte,
2007.

BETHELL, Leslie (org). Charles Landseer: desenhos e aquarelas de Portugal e do Brasil 1825-1826. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, 2010.

CÂMARA, Antônio Alves. Ensaio sobre as Construções Navaes Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de G.
Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31, 1888.

CHAMBERLAIN, Lieutenant Henry. Views and Customs of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro, Brazil,
from Drawings taken by Lieutenant Chamberlain, Royal Artillery, during the year 1819 and 1820, with
descriptive explanations. London: Howlett and Brimmer, Columbian Press, n.10, Frith Street, Soho Square,
1822.

FALCÃO, Edgar de Cerqueira. Isto é a Bahia! São Paulo: Edições Melhoramentos, s/d.

________ . Relíquias da Bahia (Brasil). São Paulo, 1941.

FERREZ, Gilberto. Bahia: Velhas Fotografias 1858/ 1900. Rio de Janeiro: Kosmos Ed./ Salvador: Banco da
Bahia Investimentos S.A., 1988.

LA BARBINAIS, Gentil de. Nouveau Voyage au Tour du Monde. Tome 3. Paris: Chez Briasson, rue Saint
Jacques, à la Science, 1728.

OLIVEIRA, Mário Mendonça de. As Fortificações Portuguesas de Salvador Quando Cabeça do Brasil. Salvador:
Fundação Gregório de Mattos, 2004.

OUSELEY, W.M. Gore. Description of Views in South America from Original Drawings, made in Brazil, the River
Plate, the Parana, &c, &c. London: Thomas McLean, 1852.

REBOUÇAS, Daniel. Indústria na Bahia: um olhar sobre sua história. Salvador: Ed. Caramurê, 2016.

REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. 1ed. São Paulo: Edusp, 2001

RELATÓRIO Apresentado à Câmara Municipal da Cidade do Salvador, pelo Bel. Osvaldo Veloso Gordilho,
Prefeito do Municipío do Salvador. Salvador: Oficina Tipográfica Manú, 1955.

528
VIANNA, Marisa. "...Eu vou pra Bahia". Salvador: Bigraf, 2004.

WILD, John James. At Anchor: A Narrative of Experiences Afloat and Ashore During the Voyage of H.M.S.
“Challenger” From 1872 to 1876. London: Marcus Ward and Co., Chandos Street and Royal Ulster Works,
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Meios digitais online


BRASILIANA ICONOGRAFICA. Disponível em: <https://www.brasilianaiconografica.art.br/> Acesso: nov 2019.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Biblioteca Nacional Digital Brasil. Disponível em:


<http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/> Acesso: nov 2019.

GUIA GEOGRÁFICO – BAHIA TURISMO. Guia Geográfico Bahia. Disponível em: <http://www.bahia-
turismo.com/> Acesso: nov 2019.

ITAÚ CULTURAL. Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/> Acesso:


nov 2019.

WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikimedia Commons. Disponível em: < https://commons.wikimedia.org> Acesso


em: nov 2019.

Acervos Físicos
AHM-FGM
CEAB-UFBA
Instituto Feminino da Bahia
Acervo do Prof. Ari Penna Costa

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