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Rua, o lugar da vida pública:

conceitos, especificidades e desafios

Fábio Mariz Gonçalves

Universidade de São Paulo


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

São Paulo
2020
Universidade de São Paulo
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

RUA, O LUGAR DA VIDA PÚBLICA:


CONCEITOS, ESPECIFICIDADES E DESAFIOS

FÁBIO MARIZ GONÇALVES

Edital ATAc 061/2019.


Concurso público de títulos e provas para concessão do título de
Livre-Docente junto aos Departamentos da FAUUSP, com base em con-
junto de disciplinas pertencentes ao Departamento de Projeto (AUP),
nos termos do art. 125, parágrafo 1º do Regimento Geral da USP.

São Paulo
2020
GONÇALVES, Fábio Mariz

Rua, o lugar da vida pública: conceitos, especificidades e desafios


/ Fábio Mariz Gonçalves – São Paulo, 2020.
300 p.

Tese (Livre-docência) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da


Universidade de São Paulo. Área de Concentração: Paisagem e Ambiente

1. Sistema de Espaços Livres. 2. Políticas Públicas.


3. Espaços Livres Públicos. 4. Projeto de Espaços Livres. 5. Ruas.

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer


meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada
a fonte.
Agradecimentos
Esta tese é fruto do percurso iniciado na graduação e construído ao longo de 30 anos
de magistério, trabalho e pesquisa. Nesse caminhar muitas pessoas contribuíram
enormemente com o olhar e as reflexões aqui compartilhadas.

Agradeço aos colegas e amigos do Grupo de Disciplinas Paisagem e Ambiente, por


todas as disciplinas que ministramos juntos, pelas reuniões, discussões e aulas que
elaboramos. Especialmente aos amigos mais presentes e próximos, que me acom-
panharam e motivaram todo o tempo: Silvio Soares Macedo e Miranda E. Martinelli
Magnoli. Este trabalho busca responder questões e desafios que vocês puseram no
meu caminho, e só pôde ser feito a partir das fundações que vocês construíram.

Aos colegas e amigos do Departamento de Projeto (AUP), sem os quais não seria
possível o afastamento que me permitiu desenvolver este trabalho, especialmente a
Raquel Rolnik e Euler Sandeville Jr., por apoiarem o processo.

Aos pesquisadores e amigos do Laboratório Quapá e da Rede Quapá-SEL, pelas


oportunidades de construção do conhecimento e reflexão conjunta. Especialmente
ao Eugênio F. Queiroga, Ana Cecília de Arruda Campos e João Fernando Pires Meyer.

Aos orientandos e amigos de pesquisa, de Trabalhos Finais de Graduação, Iniciação


Científica, Mestrado e Doutorado, que ajudaram a compreender melhor os variados
temas, questões e lugares que estudamos juntos. Aos alunos que fazem da sala de aula
e do ateliê lugares de construção de conhecimento, trocas e aprendizados coletivos.
Especialmente àqueles que se tornaram amigos e parceiros na construção do co-
nhecimento: Aline Fiqueiredo, Camila M. Paim, Criscia Sacardo, Diogo D. Lemos,
Eduardo Ganança, Eduardo Tita, Francine G. Sakata, Gabriela Callejas, Isadora
Marchi de Almeida, Jessica Luchesi, Laís Regina Flores, Luis Fernando V. Meyer,
Luiz B. Grecco, Marieta Colucci Ribeiro, Paulo Cássio Gonçalves, Rafael L. Pegoraro,
Ramiro Levy, Renata Cruz Rabello, Rodrigo Minoru, Sandra Morikawa, Sidney Vieira
Carvalho, Talita Micheleti H. da Silva e Wellington Nagano.

Aos colegas e amigos da Diretoria da Secretaria Municipal de Desenvolvimento


Urbano (SMDU), pelas trocas e discussões enriquecedoras no trabalho, nas conversas
e reuniões semanais. Especialmente ao Fernando de Mello Franco por ter me dado a
oportunidade de participar de equipe tão especial.

Aos colegas e amigos do Departamento de Urbanismo (DEURB), pelo apoio, aprendi-


zado e construção coletiva do trabalho e do conhecimento. Especialmente ao André
Luis G. Pina, Carolina Suzuki Silva e Kátia Canova.

Aos professores de outras escolas com quem tive oportunidade de aprender muito do
que compartilho neste trabalho: Cristian Nanzer e Alejandro Cohen, da Facultad de
Arquitectura, Urbanismo y Diseño de Córdoba (ARG); Roberto Rocco, do Department
of Urbanism, TU Delft. (HOL); Enrique J. Giménez Baldrés, da Universidade
Politécnica de Valéncia (ESP); às amigas da Unicamp, PROPUR-UFRGS, UFRJ, UFES,
UEMA, USJT, FIAM-FAAM e Mackenzie.

Aos colegas e amigos do NAP Escola da Metrópole, Ana Estela Haddad, Leda Paulani,
Luciana Royer e João Sette Whitaker Ferreira, pelo olhar multidisciplinar.
Aos colegas e amigos da Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo
(ABEA), especialmente João Carlos Correia, Ana Maria de Goes Monteiro e José
Antonio Lanchoti.

Às minhas amadas Laís Regina Flores e Jessica Luchesi, por toda força, apoio e ajuda.

Por fim, quero agradecer aos meus pais, Joaquim e Cida, pelo exemplo e pelo amor ao
longo de toda a vida.

Ao Plínio, com todo amor.


Las ciudades son libros
(Quintín Cabrera)

De mañana se visten La magia de Estocolmo

de pan y ruidos nuevos, lleno de primavera

de sol al mediodía, está en Río de Janeiro

por las tardes café. vaya a saber por qué.

Su corazón enseñan Lo seguiré diciendo

tan solo por las noches aunque nadie lo crea

mintiendo a los turistas hay zonas de Getafe

pues no les quieren bien. que son de Hospitalet.

Las ciudades son libros Las ciudades son libros

que se leen con los pies. que se leen con los pies.

Se prestan pedacitos Su soledad comienza

preciados del paisaje, en un túnel de metro

esquinas y detalles, y en manos apretadas,

a veces un cartel. la solidaridad;

El color de los taxis el patio en las escuelas

puede ser una clave, les da juegos y risas

un guiño hacia el viajero y amargo gesto toman

si este lo quiere ver. en salas de hospital.

Las ciudades son libros Las ciudades son libros

que se leen con los pies. que se leen con los pies.
La luna más hermosa

y grande que yo he visto

comparten Carcassonne

y Cuenca, bien lo sé,

Puerto de Santa María

las chicas más bonitas

paseando por sus calles

igual que Montpellier.

Las ciudades son libros

que se leen con los pies.

Baldosa por baldosa

busco a Montevideo

por silencios nocturnos

y en mesas de cafés;

montones de basura

vigilan las esquinas:

el “viejito” Frugoni

tenía razón, ya ven.


1
Las ciudades son libros

que se leen con los pies

1 Quintín Cabrera (1944-2009) nasceu em Montevidéu. Cantor, compositor e poeta uruguaio, viveu
na Espanha de 1968 até sua morte. Sua música, enraizada na tradição popular uruguaia, serviu como
veículo para letras poéticas e ácidas, nas quais expressou seu compromisso com a luta e a liberdade dos
trabalhadores. Apresentou-se regularmente em todos os tipos de locais, participando, por exemplo, de
atos de protesto contra o regime de Franco. Nos anos que se seguiram à transição, a mídia deixou de dar
atenção ao seu trabalho. No entanto, Cabrera continuou a tocar ao vivo e gravar álbuns. Nos anos 90,
fundou o coletivo Centro de Canción para promover novos cantores e compositores.
Resumo / Abstract

10
Resumo

Este trabalho reivindica o protagonismo das ruas nos Sistemas de Espaços Livres
urbanos.

As ruas são a própria essência das cidades, os espaços que melhor revelam o grau de
desenvolvimento, a história, as conquistas e os problemas das sociedades que nelas
habitam. Mesmo sendo espaços tão fundamentais, no século XX, tomadas pelos
automóveis, passaram a ser mal compreendidas, transformadas em estradas e mera
questão de engenharia de tráfego.

Ruas são espaços de permanência, mobilidade, passagem e acesso. Caminhos habita-


dos que exigem pactos negociados diariamente entre os grupos que as utilizam. Não
são espaços para o exercício livre da forma ou desejos do arquiteto, nem espaços de
fácil delimitação física ou funcional. Daí, muitos arquitetos e urbanistas buscarem
sonhar cidades sem ruas.

A introdução apresenta as questões e o rumo do trabalho.

O segundo capítulo descreve a base conceitual do trabalho e suas principais referên-


cias: Bourdieu, Morin, Sennett, Arendt e Berman. Reitera que o Sistema de Espaços
Livres associados ao sistema viário é o principal sistema de espaços livres urbanos.
Expõe as relações desses espaços com a complexa construção dialética do cotidiano,
da vida pública, dos habitus dos vários grupos da sociedade, e busca estabelecer a
relação entre a vida pública, o trabalho e o habitus que moldam e são condicionados
pelos espaços das ruas.

O terceiro capítulo define o que é rua, delimitando o objeto do trabalho.

Em percurso temporal, o quarto capítulo conta algumas características e especifici-


dades das ruas ao longo da história das cidades e sociedades e expõe a persistência de
características e mazelas para que as transformações, dinâmicas e intervenções nas
ruas ganhem perspectiva no tempo. Descreve, ainda, alguns aspectos dos usos e ca-
racterísticas das ruas nas cidades da Antiguidade, da Idade Média e da Era Moderna
até os dias atuais.

As dificuldades específicas das ruas das cidades brasileiras – a partir do caso do Rio
de Janeiro – estão expostas no capítulo 5, que também mostra aspectos das ruas da
sociedade violenta e desigual da capital do Império e da Primeira República.

O capítulo 6 aponta que São Paulo, como a maior e mais bem estruturada metrópole
brasileira, é o lugar que melhor permite reconhecer as experiências, eventos e
transformações que confirmam a retomada das ruas como questão central para o
urbanismo contemporâneo. Identifica fatos, processos e políticas públicas recentes
que retomam a qualidade das ruas como fundamento do urbanismo.

O capítulo 7 expõe aspectos específicos dos projetos e políticas para as ruas e


apresenta o Quadro Teórico que contribui para a compreensão de como as diversas
questões e condicionantes devem ser estruturadas e articuladas na análise de ruas.

Palavras-chave: Sistema de Espaços Livres. Políticas públicas. Espaços livres


públicos. Projeto de espaços livres. Ruas.
Abstract

This thesis highlights the leading role of streets in the urban system of open-air
spaces.

Streets are the very essence of cities, they are the spaces that best reveal the degree
of development, history, achievements and problems of the urban society. Despite
being such a fundamental space, in the twentieth century it has been taken over by
cars. Misunderstood, it became a mere matter of traffic engineering.

Streets are spaces of permanence and mobility, of passage and access, inhabited
paths that require daily negotiation by all groups that use them. They are not spaces
for the free exercise of the architect’s ideas or wishes, nor spaces of easy physical
or functional delimitation, which is why so many architects and planners sought to
dream cities without streets.

The introduction presents the questions and the course of this work.

The second chapter describes the thesis’ conceptual framework and it’s main sour-
ces: Bourdieu, Morin, Sennett, Arendt and Berman. It reiterates that the open-air
spaces associated with the streets system are the main kind of space of the urban
system of open-air spaces. It exposes their relationship with the dialectical construc-
tion of the daily life, the public life and the habitus of the various layers of society.
Finally, it seeks to establish the relationship between public life and the habitus that
shape and are shaped by the spaces of the streets.
The third chapter defines what a street is, thus delineating the object of this thesis.

In the fourth chapter, some of the characteristics and specificities of streets


throughout history are discussed through a timeline of cities and societies. The
persistence of certain problems are exposed, so that transformations, dynamics and
street interventions are understood under the perspective of time. Streets, their uses
and characteristics in the cities of antiquity, the Middle Ages and the modern era to
the present day are taken into account.

Chapter 5 shows the challenges faced by streets of Brazilian cities with Rio de Janeiro
as a case study, involving aspects of the violent and unequal society in the former
capital of the Brazilian Empire and the First Republic of Brazil.

The sixth chaper examines the streets of São Paulo. As the largest and best structu-
red Brazilian metropolis, São Paulo is a place of experiences, events and transfor-
mations that confirm the resumption of streets as a central issue for contemporary
urbanism. It identifies recent facts, processes and public policies that reclaim the
quality of streets as the foundation of urbanism.

Finally, chapter 7 sets out specific aspects of street projects and policies. It presents
the theoretical framework that contributes to the understanding of how the various
issues and conditions should be structured and articulated when analyzing streets.

Keywords: System of Open-air Spaces. Public policy. Public Open-air Spaces.


Projects of Open-air Spaces. Streets.
Lista de ilustrações / Lista de siglas

16
Lista de ilustrações

Capa Foto de uma rua em Valência. Foto 3. Vista da Piazza de Spagna com a Via Del
do autor, 2018. Babuino ao fundo, em Roma, Veduta di Piazza
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ig.com.br/brasil/sp/2014-01-25/no-aniver-
-extradicao/>; Protestos contra medidas de
sario-do-minhocao-passeata-pede-lazer-no-
austeridade do Presidente Lenin Moreno,
-viaduto-aos-sabados.html>; Barricada em
Equador. Foto: Ivan Alvarado, REUTERS.
confronto entre servidores e a Polícia Militar
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/
no Rio em 2017. Foto: Ricardo Borges/Folha-
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testos-24007372>. Acesso em: 20 dez. 2019.
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festantes fazem protesto contra o aborto na 141. Fiação nos postes de São Paulo. Fotos do
Avenida Paulista. Foto: Luiza Villaméa. Dis- autor, 2016.
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sil/2019/04/24/politica/1556137351_969753. 142. Quadro Conceitual, quarto passo, ela-
html>; Manifestação do Movimento Passe borado pelo autor.
Livre (MPL) em São Paulo, 7 de junho. Foto:
Gianluca Ramalho Misiti. Disponível em:
p. 388-389. Plan de Paris, 1735-1739, de
Michel Étienne Turgot. Paris: Claude Tchou
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Jornadas_
& Sons / Livraria Chapitre, 1999. Disponível
de_Junho#/media/Ficheiro:Protesto_SP_(2).
em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Turgot_
jpg>; Manifestante de colete amarelo sobe
map_of_Paris>. Acesso em: 17 nov. 2019.
no semáforo da Champs-Élysées em Paris,
França, 24 nov. 2018. Photo source: Wiki
Lista de siglas

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

AI-5 Ato Institucional Número Cinco (do Governo Federal do Brasil)

CA Coeficiente de Aproveitamento (da Prefeitura da Cidade de São


Paulo)

CET Companhia de Engenharia de Tráfego (da Prefeitura da Cidade


de São Paulo)

CEUs Centros Educacionais Unificados

CIAM Congresso Internacional da Arquitetura Moderna

CPTM Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (do Estado de São


Paulo)

CTB Código de Trânsito Brasileiro

DCP New York City Department of City Planning

Deurb Departamento de Urbanismo (da Prefeitura da Cidade de São


Paulo)

Emurb Empresa Municipal de Urbanização (da Prefeitura da Cidade de


São Paulo)

FAUUSP Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São


Paulo

FNP Frente Nacional de Prefeitos (Brasil)


Fundurb Fundo de Desenvolvimento Urbano (da Prefeitura da Cidade
de São Paulo)

iCS Instituto Clima e Sociedade

ITDP Institute for Transportation and Development Policy

QUAPÁ-SEL Quadro do Paisagismo no Brasil, Sistema de Espaços Livres

LGBTQI Lésbica Gays Bissexuais Travestis Transexuais Queers Interse-


xuais

LUOS Leis de Uso e Ocupação do Solo

Nacto National Association of City Transportation Officials (Associa-


ção de responsáveis pelo transporte de grandes cidades nos
Estados Unidos, Canadá e México)

NYCDOT New York City Department of Transportation

OMS Organização Mundial de Saúde

ONGs Organizações não governamentais

PDE Plano Diretor Estratégico

PEC Plano Emergencial de Calçadas (da Prefeitura da Cidade de


São Paulo)

PlanMob Plano de Mobilidade Urbana (da Prefeitura da Cidade de São


Paulo)

PMSP Prefeitura do Município de São Paulo

PNT People Near Transit

PPS Project for Public Spaces

PRSs Planos Regionais das Subprefeituras (da Prefeitura da Cidade


de São Paulo)
PSV Plano de Segurança Viária (da Prefeitura da Cidade de São Paulo)

RMSP Região Metropolitana de São Paulo

SEL Sistemas de Espaços Livres

SEME Secretaria Municipal de Esportes e Lazer (da Prefeitura da Cida-


de de São Paulo)

SIURB Secretaria Municipal de Infraestrutura (da Prefeitura da Cidade


de São Paulo)

SMDU Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (da Prefeitura


da Cidade de São Paulo)

SMS Secretaria Municipal de Serviços (da Prefeitura da Cidade de São


Paulo)

SMT Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes (da Prefeitura


da Cidade de São Paulo)

SP Urbanismo São Paulo Urbanismo (da Prefeitura da Cidade de São Paulo)

SSRH Secretaria Estadual de Saneamento e Recursos Hídricos (do


Estado de São Paulo)

UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

USP Universidade de São Paulo

WRI World Resoucers Institute

ZEU Zonas de Estruturação Urbana (da Prefeitura da Cidade de São


Paulo)
Sumário

32
1. Introdução 39

2. Sistemas, relações e a organização. Método. 47


2.1 Sistema viário como articulador do Sistema de Espaços Livres urbanos 57

2.2 Sistema de Espaços Livres associados ao sistema viário e o habitus 62

2.3 Esfera pública e o habitus 75

3. O que é rua 91

4. Rua na história – um ensaio 117


4.1 Origem da rua – Antiguidade 122

4.2 Persistência dos padrões – Idade Média 174

4.3 Ampliação dos padrões – início da Era Moderna 182

4.4 Aceleração dos padrões – Era Moderna 219

4.5 Mudança de padrões – os carros 248


4.6 Recuperação dos padrões – mobilidade ativa 260

5. A rua brasileira – o caso carioca 271


6. A rua em São Paulo – políticas públicas 2013 a 2017 299
6.1 Retomada da rua como centro de ações e das políticas públicas 320

6.2 Plano Diretor Estratégico – PDE e as Leis de Uso e Ocupação do Solo 322

6.3 Plano de Mobilidade Urbana – PlanMob 326

6.4 Áreas 40 e Plano de Segurança Viária 335

6.5 Centro Aberto, Ruas Abertas e Parklets 340

6.6 Território CEU 350

6.7 Revisão dos Planos Regionais das Subprefeituras 353

6.8 Ações espontâneas da população – Parque Minhocão e Carnaval 371

7. Conclusão 369
7.1 Quadro teórico 379

Referências 405
4

116
4 Rua na história – um ensaio
Não se pretende fazer pesquisa histórica no sentido mais exigente e rigoroso do
termo. O que se apresenta a seguir são a reunião de alguns dados e informações do
que foi encontrado acerca da história das cidades que ajude a compreender a natu-
reza e o papel específico das ruas no funcionamento e na construção do conceito de
urbanidade, na própria ideia de cidade e na vida pública. Investiga-se esse sistema
buscando, apoiado em Morin, suas lógicas e sua organização, estudando o sistema de
espaços públicos das cidades relacionando-o com os demais sistemas urbanos.

No livro “A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas”


Mumford68 faz alerta importante, destacando que praticamente nenhuma cidade
histórica foi completamente escavada69, que cinco mil anos da história das cidades e
outros cinco mil anos de história das aldeias e das protocidades estão precariamente
documentados. Mumford aponta que todos os estudos existentes são baseados em
tão poucos elementos remanescentes que podemos confiar plenamente em apenas
poucas conclusões grosseiras sobre os últimos três mil anos da história das cidades.
Conclui dizendo “Seja o leitor advertido: se seguir adiante, será por sua conta e
risco!”70.

68 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São Paulo:
Martins Fontes, 1982.

69 Existem algumas poucas cidades completamente escavadas, a questão é que estas estão sobrepostas
às outras camadas sobrepostas. Tem-se acesso apenas às camadas mais recentes e superiores.

70 MUMFORD, op. cit., p. 67.

119
Nos sítios arqueológicos das cidades com mais de três mil anos encontram-se nada
mais do que objetos e fragmentos de construções, restos dos sistemas e das infraes-
truturas mais duráveis, o pouco do que foi capaz de resistir aos séculos. Podemos
dizer que dispomos apenas de alguns fragmentos da ville a partir dos quais busca-se
imaginar como era a cité, como funcionavam a sua sociedade e o seu cotidiano. Essa
lacuna nas informações disponíveis não impede que tenhamos absoluta convicção
que boa parte dos habitus engendrados ao longo desta longa história ainda povoam as
cidades atuais. Parte das práticas cotidianas que podemos observar diariamente nas
ruas de muitas das cidades do mundo ainda são heranças, de práticas persistentes
das cidades mais antigas já escavadas.

Mumford destaca que não é fácil situar com exatidão o momento e a região em
que surgem as primeiras cidades. Embora aldeias de variados portes tenham sido
escavadas em vários territórios, essa mudança não teve a ver apenas com o tama-
nho dos conjuntos edificados ou da população. Algumas aldeias eram maiores do
que as primeiras cidades, o que marca a diferença entre elas é a complexidade das
atividades e a diversidade da população que habita a cidade. Os primeiros assenta-
mentos humanos permanentes tinham seus tamanhos limitados em grande parte
pela dificuldade em garantir abastecimento de água e alimentos para comunidades
maiores. Os séculos em que se deu essa transformação têm diretamente a ver com a
estruturação das rotas de circulação, permitindo o comércio e as trocas de produtos
e mercadorias. Essa circulação de produtos é confirmada pela quantidade de objetos,
pedras e metais encontrados nas várias escavações com artigos oriundos de grandes
distâncias, de outras regiões.

Olhando os livros de história pode parecer que os espaços livres urbanos são menos
importantes ou menos representativos das instituições humanas e das suas práxis do
que os palácios ou grandes templos, que permanecem como monumentais testemu-
nhos da importância da religiosidade nas várias civilizações. Até mesmo os espaços

120
públicos articulados a estas construções e suas instituições acabam sendo especial-
mente valorizadas pela historiografia.

As histórias da arquitetura, do urbanismo e a arqueologia têm especial interesse


pelas grandes edificações, os castelos, templos, palácios, monumentos, fortificações
e as muralhas. Em contraponto, neste trabalho, buscam-se destacar a importância da
história das construções ordinárias e dos espaços livres, os espaços não edificados,
especialmente das ruas e a sua construção enquanto pacto social, as práticas e suas
razões.

Interessa para este estudo quais espaços são deixados livres, por quais razões eles
não são edificados. Quais as funções destes espaços e em que medida eles nos permi-
tem compreender a construção histórica dos pactos e experiências compartilhadas
que alteram a dinâmica e o modo de se organizar e comportar das sociedades urba-
nas. A construção da cité pela construção da ville.

As construções mais ordinárias e seus espaços, por serem menores, mais simples e
frágeis, por serem edificadas com materiais menos duráveis acabam desaparecendo,
deixando poucos vestígios e elementos para a história. O casario em que morava a
população mais humilde, embora ocupe as maiores áreas das cidades, muitas vezes é
o que desaparece mais rapidamente deixando menos vestígios.

121
4.1 Origem da rua – Antiguidade

As primeiras cidades eram caracterizadas pela aglomeração pouco regular de edifi-


cações, conformadas pelo conjunto de paredes que delimitam os cômodos, alinhados
em séries ou organizados ao redor de pátios, abrigando as atividades privadas e
cotidianas. O compacto e complexo desenho gerado por estas construções dificulta
a percepção dos limites de cada moradia, contudo permite perceber o conjunto de
ruas e vielas de diferentes larguras e traçados criando os espaços de circulação e
acesso a cada uma das moradias. Mesmo em cidades de diferentes períodos e lugares
geográficos, culturais e políticos, praticamente em todas as cidades escavadas pela
arqueologia pode-se identificar organizações de quadras e alguma hierarquia no
sistema viário. Estas passagens muitas vezes tinham a mesma largura dos corredores
das construções maiores. As larguras eram comparáveis às estreitas vielas das favelas
brasileiras contemporâneas, muitas vezes com menos de um metro.

Em muitas destas vielas apenas pedestres ou mulas passariam. Ainda que tão estrei-
tas, elas são o único acesso, únicos espaços de circulação de pessoas, mantimentos,
mercadorias e de abastecimento. Por estas vielas era feita a drenagem e em alguns
casos o abastecimento de água e o escoamento das águas servidas.

Pode-se entender que o grande desafio destas primeiras aglomerações era criar as
condições de convívio de multidões. Mohenjo-daro (Figura 18), às margens do Rio
Indo, no Paquistão, foi declarada Patrimônio Mundial pela Unesco por preservar
ruínas de uma das cidades mais antigas, datada do século XXVI a.C.. Segundo esti-
mativas a cidade chegou a ter cerca de 35.000 habitantes, e foi sede de império que
organizou a agricultura do vale ao seu redor71.

71 BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983.

122
Figura 18 As ruas e vielas das cidades como Mohenjo-daro já apresentavam complexa hierarquia variando
suas larguras, desde passagens muito estreitas com pouco mais de um metro de largura, até ruas com
cerca de dez metros. O desenho acima mostra que as moradias eram bastante compactas, geminadas umas
às outras, e organizadas ao redor de pátios centrais. Fonte: desenho ajustado e trabalhado a partir do
original. BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983.

123
As vielas e as ruas mais estreitas eram delimitadas pelos muros altos e sólidos, de
pesados tijolos e blocos de pedra, que protegiam as habitações, as áreas privadas. As
vias mais largas permitem a circulação de carroças e cavalos, as estreitas só permi-
tem a circulação de pedestres.

Até hoje não existe explicação convincente para o declínio e a desocupação da cidade,
aparentemente não pode ser explicado pela falta de água ou por guerras, o que se
sabe é que praticamente todas as cidades, ao longo dos 5.000 anos de história urbana,
enfrentaram dificuldades para manter suas populações a salvo das pestes e doenças.
Enfrentar e resolver os problemas de saúde das populações urbanas dependia do
funcionamento adequado das ruas e vielas, pois elas que permitiam o escoamento
das águas de chuva e a retirada dos esgotos, superficialmente ou por encanamento
e galerias subterrâneas. Podemos imaginar que com os materiais e técnicas dispo-
níveis à época a manutenção destas galerias e sistemas tinha que ser permanente.
Grande parte das cidades escavadas, mesmo em diferentes regiões e épocas, mostram
esse mesmo padrão de construções agrupadas e vielas e ruas fazendo o acesso, a
drenagem pluvial e a retirada das águas servidas.

Desde o século VI a.C. Delos (Figura 19) era uma cidade de peregrinação religiosa para
muitos dos povos ao redor do Egeu, o que lhe permitiu assumir a condição de impor-
tante rota comercial, sede de grupos organizados que controlavam as rotas maríti-
mas, a cotação e o câmbio do comércio entre as cidades mediterrâneas e o oriente.
Daí que suas ruínas mostram as características das cidades da região que herdam as
características históricas, não planejadas, bem diferentes das várias cidades colo-
niais construídas posteriormente. O relevo rochoso da ilha impôs que as construções
se adaptassem à topografia gerando ruas sinuosas e irregulares.

124
Figura 19 Essa é a planta da parte escavada do Porto de Delos, com as construções do século III e II a.C..
Ainda que não tenhamos a cidade como um todo, a planta permite ver com clareza que existem ruas
mais largas que fazem a circulação mais articuladora, que serve à cidade conectando o porto à ágora e ao
teatro. Neste desenho foram destacados todos os cômodos que se abrem diretamente para as vias, e que
não são acesso às moradias. Não se pode afirmar que eram todos eles usados para o comércio ou oficinas
abertas às vias. Contudo, existe evidente predomínio de cômodos com essas características abrindo para
as vias principais, é notável o modo como eles se agrupam. Desde as primeiras cidades pode-se observar
que as ruas mais movimentadas, as que articulam áreas maiores, contam com maior número de cômodos
voltados para elas. Fonte: desenho ajustado e trabalhado a partir do original. BENEVOLO, Leonardo.
História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983.

125
Figura 20 Estas quadras escavadas no setor mais a leste, junto ao teatro, mostram bem como algumas das
moradias tinham ambientes com saída de esgotos. Mostram também que em sua maioria as galerias de
esgotos corriam pelas vias, que tinham larguras variadas, em muitos pontos com menos de três metros de
largura. O que a arqueologia mostrou é que esses cômodos eram muito flexíveis, podendo ser abertos ou
fechados para as ruas ou para outros cômodos com facilidade, de modo a ganhar novos e diferentes usos.
Fonte: desenho ajustado e trabalhado a partir do original. BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. São
Paulo: Perspectiva, 1983.

126
Figura 21 Essa sequência de imagens permite perceber com clareza como eram organizados os espaços
e os sistemas nas cidades gregas. Os cômodos em azul são os que abrigam as latrinas. As águas servidas
e a drenagem são conduzidas conjuntamente e escoam por galerias cobertas por pedras nas ruas. Vale
chamar a atenção do comércio que aparece com a porta diretamente aberta para a rua. Muitas casas
compartilhavam poços ou latrinas. Fonte: desenho ajustado e trabalhado a partir do original. BENEVOLO,
Leonardo. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983.

127
Existem diferenças significativas entre as cidades egípcias, as mesopotâmicas e
as mediterrâneas, pois as sociedades e suas estruturas eram distintas em vários
aspectos. Em grande parte, as diferenças podem ser creditadas às distintas condições
naturais, tecnológicas, históricas e geográficas. Todavia há semelhanças e paralelos
importantes que permitem destacar, especialmente nas estruturas urbanas, como
várias lógicas se repetem.

As vias eram quase sempre muito estreitas e irregulares na largura – estreitadas por
construções e obstáculos variados. A maioria era ladeada por paredes cegas, prati-
camente sem aberturas (Figura 20). Parte das construções tinham dois pavimentos,
algumas cobertas por telhas, outras por coberturas mais planas. Em ambos casos,
na maioria das vezes, as águas pluviais eram conduzidas para os pátios internos
(Figura 21). Os vários cômodos eram ventilados pelas portas que se voltavam para a
circulação coberta, o peristilo, que contornava o pátio interno, também chamado de
impluvium. As dificuldades e custos da fabricação e manutenção de portas e janelas
faziam com que os vãos internos fossem frequentemente controlados apenas por
cortinas, o que facilitava a ventilação. A porta de acesso à moradia era, muitas vezes,
a única porta da construção, que, por razões de segurança e privacidade, era bastante
necessária e resistente. Desse modo, a vida privada e a pública possuíam limites
físicos claros, as paredes que delimitavam as casas.

Esses limites eram claros, mas não rígidos. Pesquisas arqueológicas mostram muitas
reformas nas construções, fechando e abrindo portas, alterando acessos para que
antigos cômodos ganhassem novos usos. Confirmaram, também, que as construções
misturavam áreas de trabalho, depósitos, manufatura e comércio com os espaços
domésticos72. Cômodos eram abertos e fechados, alugados ou vendidos conforme as
necessidades e interesses dos proprietários e moradores.

72 ZARMAKOUPI, Mantha. The city of Late Hellenistic Delos and the integration of economic activities in
the domestic sphere. CHS Research Bulletin 1, n. 2, 2013.

128
Uma cidade bastante diferente no seu desenho, com os mesmos tipos de constru-
ção, plásticos e flexíveis é Dura-Europos73. Implantada às margens do Rio Eufrates,
atualmente na Síria, fez parte dos Impérios Macedônico e Romano, servindo de apoio
às importantes rotas comerciais entre o Mediterrâneo e o Oriente, até ser comple-
tamente abandonada em 256 d.C. – quando invadida pelos exércitos do Império
Sassânida. A cidade apresentava o traçado em grade regular com quadras medindo
cerca de 35x70 metros, ruas regulares e os cardos característicos das cidades colo-
niais gregas e romanas.

A inovação no traçado viário, revelando a sua condição de cidade projetada, colônia


construída, não alterou os hábitos cotidianos e tradicionais dos moradores, exigindo
saídas frequentes dos espaços privados (Figura 22). O abastecimento dos moradores
da cidade tinha de ser diário; apenas grãos, mel e alguns mantimentos podiam ser
preservados por tempos maiores. Nem todas as moradias tinham abastecimento de
água ou latrinas. Com frequência foram encontrados banheiros e chafarizes públi-
cos, compartilhados para garantir o atendimento de todos os habitantes. Parte das
casas era abastecida de água por escravos, que levavam a água dos chafarizes e fontes
para as moradias. Parte das casas tinha lixo e resíduos coletados à noite, também por
escravos. Em algumas cidades, havia regras estabelecendo que a retirada do lixo e
resíduos só podia ocorrer no período noturno74.

Além do comércio estabelecido e oficinas bem equipadas, existia importante co-


mércio nas ruas. Não é difícil imaginar que comerciantes e artesãos, ou mesmo os
produtores agrícolas, percorriam as ruas anunciando sua passagem aos gritos, com
sinos ou matracas, como até hoje é possível escutar em alguns bairros residenciais
das cidades brasileiras.

73 BAIRD, J. A. Dura Deserta: the death and afterlife of Dura-Europos. Disponível em: <https://www.
academia.edu/656310/Dura_Deserta_The_Death_and_Afterlife_of_Dura-Europos>. Acesso em: 10 set.
2019.

74 CILLIERS, L.; RETIEF, F.P. City planning in graeco-roman times with emphasis on health
facilities. Akroterion, 51. DOI: https://doi.org/10.7445/51-0-62.
Figura 22 (à esquerda) A esquina do Cardo com
a Rua F mostra uma casa unifamiliar (domus)
típica, integralmente escavada, a B8. Serve
para ilustrar a lógica da organização de muitas
casas de Dura-Europos, mas que permanecerá
com características comuns a todas as cidades
do Império Romano. O pátio era acessado pelo
vestíbulo (fauces), reunia os cômodos do térreo e
dava acesso às escadas que levavam aos cômodos
superiores. Tendo esse acesso pelo fauces, a
casa ganhava a possibilidade de isolar-se no
centro da quadra (insula). Assim, nas ruas menos
movimentadas, os cômodos podiam estar fechados
para as ruas, voltados para o interior da casa.
Nas vias mais movimentadas, os cômodos eram
abertos diretamente para as ruas, sem acesso ou
ligação com a casa B8. Por se localizarem junto
à esquina de duas ruas movimentadas, os vários
cômodos funcionavam como bares, lojas, oficinas
e serviços voltados para as ruas. As escavações
confirmaram que essa casa foi incendiada mais
de uma vez, mas nunca deixou de ser habitada e
usada até a invasão final da cidade.

Figura 23 (página seguinte) A planta mostra parte da Região VI de Pompeia, situada ao norte do Fórum.
Toda a borda das quadras é delimitada por muros e paredes. Todos os espaços livres intraquadra são pátios
de variados tamanhos ou quintais privados, sempre delimitados e fechados para as ruas. O que começa a
aparecer aqui é o aumento expressivo de aberturas para as ruas. Observa-se como os cômodos voltados
para as ruas, que abrigavam usos comerciais e de serviços, buscam as esquinas e agrupam-se. As insulae
ficam maiores e surgem unidades menores, tanto habitacionais como para o comércio e os serviços.

130
131
As ruas deviam ser bastante movimentadas. Pode-se imaginar que os usos que
apareceram nessas antigas ruas eram comuns a muitas das cidades e geravam lucros,
incômodos, debates, conflitos, processos de disputa e negociações permanentes.
Naturalmente, essa vida cotidiana era distinta em cada cidade, porém as ruas eram o
palco dessas práticas e por elas se transformavam e se moldavam.

Podem-se contrapor as quadras de Dura-Europos com Pompeia, que apresentava


quadras bem mais regulares, mas tão densamente edificadas quanto às de Delos. Em
algumas quadras de Pompeia, encontravam-se jardins e áreas de plantio. A maior
parte dos tipos de casas adota as mesmas soluções de Dura, Delos, Pompéia (Figura
23), Herculano (Figura 24) ou Mohenjo-Daro.

Outra cidade que ajuda na compreensão dos processos de organização e transforma-


ção das ruas ao longo da história das cidades é a antiga cidade de Ostia, situada há 20
quilômetros da cidade de Roma, junto à foz do Rio Tibre, outrora o principal porto
do Império. A cidade teve, no seu período mais próspero, mais de 100 mil habitantes,
contudo após a queda de Roma, foi alvo de terremotos, ataques de inimigos e piratas,
sendo abandonada, soterrada e completamente esquecida. O sítio arqueológico
de Ostia começou a ser escavado no início do século XIX e hoje é um dos melhores
registros para compreender as cidades do Império Romano.

Por ter sido porto estratégico, importante e movimentado, que conectava a capital, a
maior cidade do seu tempo, com todos os portos e colônias do Mediterrâneo, Ostia era
cidade cosmopolita, rica e estratégica para os vários governos. Apresentava templos
de diversas religiões (incluindo as ruínas da mais antiga sinagoga fora da Palestina),
abastecimento de água, sistema de esgotos, imponentes muralhas, banhos públicos e
intenso comércio. Foi o principal porto de Roma desde o século VII a.C. até a implan-
tação da Cidade de Portus (4 quilômetros ao norte) no início da Era Cristã, perdendo
definitivamente seu protagonismo com a construção do Porto de Trajano no século

132
II d.C.. Com a transferência de grande parte das atividades portuárias, Ostia seguiu
como importante polo comercial e de serviços até a queda do Império no século V d.C..

Figura 24 A planta da parte escavada da cidade de Herculano mostra a mesma condição de quadras
densamente edificadas e ruas configuradas por muros e paredes das edificações. Neste caso também todos
os espaços intraquadra são privados, entretanto importa observar que o número de aberturas para as ruas
aumentam bastante, como em Pompeia.

133
A maior parte das construções encontradas no sítio arqueológico data dos primeiros
séculos depois de Cristo: construções do período mais próspero da cidade e do
próprio Império Romano, contemporâneas da construção e inauguração dos novos
portos. Nesses mesmos séculos, Vitrúvio publicava suas teorias sobre a arquitetura,
e o Panteão e o Coliseu eram construídos em Roma. Certamente, foram períodos de
grandes avanços nas técnicas construtivas, nos investimentos públicos e de grande
atividade imobiliária e econômica.

As construções possuíam extraordinária qualidade, testemunhos do período de


riqueza e desenvolvimento tecnológico que as construções romanas atingiram nos
primeiros séculos, muito superiores em escala e tecnologia às do Porto de Delos.
As técnicas construtivas permitiam que os vãos fossem maiores. As ruínas de Ostia
apresentam muitas vergas, abóbadas e arcos abrindo grandes vãos nos pavimentos
térreos, especialmente os vãos das portas que se abrem para as ruas (Figura 25). As
grandes construções já revelavam a sociedade mais rica e complexa, com grande
parte das edificações projetadas e executadas com esmero por técnicos sofisticados.
Em Ostia foram escavados complexos de lojas, grandes padarias, mercados, casas
sofisticadas (domus), edifícios de apartamentos (insulae), grandes depósitos e arma-
zéns, edifícios públicos e um grande anfiteatro para 4 mil expectadores75. Parte das
construções era feita para ser alugada ou vendida e já havia claramente definidos os
papéis de investidores, construtores e demais agentes do mercado imobiliário. As
ruas mais movimentadas, mais articuladas, tinham grande predomínio de usos não
residenciais; as esquinas e becos tinham usos distintos e a localização nas ruas já
mostravam pleno significado e valor para o mercado.

O Decumanus Maximus era a via principal da cidade (Figura 26). Orientada no sentido
leste-oeste, levava a Roma a partir da Porta Romana até a Porta Marina – que acessava
um porto secundário – e as maiores Termas de Ostia. Ostia está a menos de 6 horas

75 Disponível em: <https://www.ostia-antica.org/regio2/7/7-2.htm#note1>. Acesso em: mar. 2019.

134
Figura 25 Esta é a ruína que sobrou de um
edifício de apartamentos em Ostia, uma insula,
construída entre 130 e 140 d.C.. Como se
pode observar os construtores já dominavam
amplamente a técnica dos tijolos, arcos e vergas
permitiam vãos mais amplos e regulares.
Os edifícios multifuncionais e de até quatro
pavimentos não eram mais raros. Nas cidades
gregas não víamos vergas e vãos semelhantes, as
aberturas eram bem menores.

de caminhada de Roma. Esse mesmo nome, Decumanus Maximus, era dado às ruas
principais dos acampamentos e das cidades novas construídas por Roma. As ruas
que cruzam os decumanus eram os cardos76; o Cardo Maximus era o que cruzava do
Decumanus Maximus no centro da cidade. Normalmente, nesse cruzamento ficava
o poder, o fórum. Em Ostia, o Cardo Maximus cruzava a cidade no sentido norte-sul,
ligando o porto junto ao Rio Tibre ao norte, com a Porta Laurentina ao sul.

A cidade de Ostia foi devastada por terremotos e tsunamis, sendo abandonada tão
abruptamente que seus habitantes deixaram muitos objetos e elementos que permi-
tem estabelecer os usos de grande parte das construções e sua relação com as vias.
No Decumanus Maximus ficavam os edifícios de maior significado, como o teatro e o
fórum. Por ser a ligação entre Roma e a cidade, certamente era a via mais movimen-
tada da cidade, o que favorecia o comércio. Os edifícios dispostos ao longo dessa rua
tinham sempre as frentes ocupadas por lojas e oficinas, fossem os banhos, o teatro
ou os armazéns. Fica evidente nas escavações que o movimento das vias era potente
definidor dos usos das edificações: grande parte dos bares, restaurantes e hotéis
ficava próximo das vias mais movimentadas.

76 Eram denominadas Decumanus as vias normalmente no sentido norte-sul; cardo era o nome
utilizado para as vias normalmente na direção leste-oeste (essa orientação podia variar). Era chamada de
Decumanus Maximus a via que fazia a ligação com a porta principal, a que vinha de Roma. SMITH, William.
Dictionary of greek and roman antiques. London: Taylor and Walton, John Murray, Albemarle Street, 1848.
135
Figura 26 Vale observar a distribuição dos usos em relação às principais vias da cidade. O Decumanus
Maximus é a via principal. Atravessa a cidade de leste para oeste, ligando a Porta Romana (a leste), que
dava acesso à Cidade de Roma, passava pelo Fórum e ia até a Porta Marina (a oeste), que ligava ao mar. No
sentido norte-sul, tem-se o Cardo Maximus ligando a Porta à Porta Laurentina ao sul, com os cais juntos do
Rio Tibre ao norte.

Para confirmar o papel das ruas na organização dos usos e atividades urbanas e, por-
tanto, na vida pública, serão analisadas duas insulae (Figura 27) com espaços internos
e condições muito distintas: a Insula II da Região IV e a Insula IX da Região III.

A primeira (Figura 28) fica situada ao lado do Cardo Maximo, junto da Porta
Laurentina, no sul da cidade. A quadra77 (insula no sentido de ser mesmo uma ilha)

77 Insula (em latim: ilha), insulae no plural, em arquitetura significa o bloco de edifícios agrupados,
ou seja, é o equivalente, na Roma antiga, à quadra moderna. As insulae também podiam ser os edifícios
residenciais, oferecendo moradias econômicas nas áreas mais densas e valorizadas das cidades. Neste
trabalho utiliza-se o termo em ambos sentidos: quadra ou edifício residencial. Disponível em: <https://
www.britannica. com/technology/insula>. Acesso em: 15 out. 2019.

136
Figura 27 Planta da cidade de Ostia, mostrando a área escavada da cidade e, em destaque, as duas insulae
a serem analisadas: a Insula IX, mais a oeste, na Região III; a Insula II , mais ao sul da cidade, na Região IV.
Observem que as duas insulae estão próximas dos muros e portões da cidade. O Cardo Maximo da Porta
Marina, a oeste, até a Porta Romana, a leste tinha, 1,2 quilômetro.

abrigava catorze edifícios independentes e distintos, embora geminados. Os usos


eram muito variados, incluindo uma grande casa de banhos (Terma Del Faro), uma
pousada (Caupona del Pavone), uma galeria de exposições, muitas lojas, bares,
oficinas e habitações. Correndo paralelamente ao Cardo Maximo, existia uma galeria
coberta, uma loggia, que certamente abrigava o comércio que se voltava para ela e
permitia que as mercadorias das lojas voltadas para a rua fossem expostas resguarda-
das das intempéries. Essa solução era muito comum nas ruas comerciais do império.

137
Em Roma, alguns estudos estimam que houvesse, na época de Augusto, mais de 20
quilômetros de calçadas cobertas como estas78.

O conjunto foi construído gradualmente, em diferentes períodos, entre o último


século a.C. e os dois primeiros da nossa área. Ao comparar essa insula com as qua-
dras de Mohenjo-Daro ou de Delos, é necessário lembrar que havia mais de 2 mil anos
de diferença entre elas. Contudo chama atenção a existência de mais diferenças no
modo de ocupação das quadras entre Delos e Ostia do que entre Delos e Mohenjo-
Daro. Nas três cidades, as casas construídas mais comuns são organizadas em pátios
murados, com praticamente todos os cômodos abrindo para o impluvium. Com esse
tipo de construção o “lote79” e a construção têm os mesmos limites e fechamentos.
Dele decorre que as ruas são delimitadas por muros contínuos e pouquíssimas
aberturas. As casas nobres (domus) seguem como as cidades muradas, protegidas
das ruas, sem mudanças significativas desde o século VI A.C.. Com a abertura e
consolidação das rotas comerciais e o crescimento das cidades, as ruas se tornaram
mais movimentadas, com movimento de vizinhos, de estrangeiros, animais e merca-
dorias. O comércio que ligava as cidades também motivava guerras por riquezas, pelo
controle de rotas, e ocupava as ágoras, os espaços livres das cidades e especialmente
as ruas.

Ostia era mais verticalizada que Pompeia ou Herculano. Embora não tão densamente
construída como Roma, apresentava muitos edifícios residenciais. Por ser o porto
mais movimentado do Mediterrâneo (e tão próximo da capital), Ostia é a cidade
perfeita para mostrar como o avanço do urbanismo e das técnicas construtivas per-
mitiram tanto o adensamento das cidades, com sua verticalização, quanto o apare-
cimento do maior número de aberturas, com vãos cada vez maiores entre os espaços

78 MUMFORD, L., 1982, p. 246.

79 Aparentemente, na maioria das cidades não existia a noção de lote como algo autônomo, distinto da
casa.

138
públicos e os privados. O abastecimento de água, a retirada dos esgotos e a drenagem
também foram muito facilitados pela retificação das vias. Por ser o porto de Roma,
Ostia era especialmente vulnerável a doenças e epidemia. Concomitantemente, ela
possuía intenso comércio e circulação de mercadorias, estrangeiros e escravos de
todo o Império Romano, que atingiu nos primeiros séculos sua extensão máxima.
Nenhuma outra cidade escavada desse porte apresentava tantos depósitos e lugares
de comércio.

Os usos da Insula II da Região IV (Figura 28), confirmam que o comércio buscava a


proximidade das vias, especialmente as esquinas, já que o movimento das ruas con-
tribui e fortalece suas atividades. É importante esclarecer que aqui se classifica como
comércio praticamente todas as atividades executadas com as portas abertas para as
vias. Não é possível precisar se as lojas simplesmente vendiam produtos ou se eram
também lugar de trabalho, reparo ou confecção de produtos. Marceneiros, sapatei-
ros, alfaiates, tecelões, ferreiros, médicos e outros homo faber – conceituados por
Arendt como os profissionais que trabalhavam e produziam com as mãos – podiam
estar na sua lida diária à vista dos que passavam nas ruas. Outro aspecto a destacar é
que as oficinas ou lojas muitas vezes também eram a moradia dos seus donos.

Laurence destaca que os romanos ricos se deslocavam diariamente, era pouco


comum que os homens ficassem em casa durante o dia. A rotina diária dos homens
ricos incluía passar cerca de quatro horas no fórum e três nos banhos públicos, retor-
nando à casa à noite para a janta. Enquanto, grande parte dos mais pobres trabalhava
e morava nas mesmas construções, não se deslocavam pela cidade.

As ruas determinavam a vocação e os usos das edificações lindeiras, 20% das tavernas
em Ostia eram localizadas nas esquinas80. A figura permite observar onde estavam
localizados os bares (popinae) e as tavernas são mais facilmente identificáveis pelos

80 LAURENCE, Ray. Roman Pompeii: space and society. Londres: Routledge, 2006, p. 68.

139
balcões e pelas prateleiras de mármore que serviam para guardar e exibir garrafas de
modo muito semelhante aos que ainda hoje são usadas nos bares. Existiam também
oficinas, ateliês e indústrias na cidade. Pequenas como as que se abriam para o
pátio A ou o grande moinho situado no outro lado do Cardus Maximus. Ostia contava
com alguns moinhos que eram também lugar de panificação, com fornos e grandes
armários, em escala quase industrial para produção dos pães.

Figura 28 Mapa da Insula II da Região IV, reelaborada sobre a planta de Ostia.


Disponível em: <https://www.ostia-antica.org/map/plans-so.htm>. Acesso em: 15 out. 2019.

140
Boa parte das esquinas da cidade era comercial, como a da Via Della Caupona com
o Cardus Maximus, três das esquinas são comerciais. Vale chamar atenção para o
edifício público de forma triangular existente no vértice norte desse cruzamento.
Ali funcionavam as latrinas públicas (forica), com nada menos que 21 posições para
uso. Não era a única da cidade, muitas, semelhantes, foram escavadas em Ostia,
Roma, Timgad, Herculano ou Pompeia; aparentemente, eram pontos de encontro e
convívio importantes. Em sua grande maioria, situavam-se junto das vias de maior
movimento, em esquinas e pontos visíveis. Essas latrinas públicas estavam a cerca de
150 metros da Porta Laurentina, no canto sul de um amplo pátio rodeado por banhos,
junto da loggia comercial do Cardus Maximus.

A posição muito visível das latrinas contrasta com o Templo de Mithra, posicionado
no vértice mais ao sul da insula, no lugar menos acessível e visível81. O pátio D,
indicado na figura 28, poderia acomodar, além dos fiéis, os animais que seriam ofe-
recidos em sacrifício no templo – mas seu acesso se dá apenas pelos pátios A, B e C.
O Mithraísmo82 era uma religião que demandava lugares secretos e ritos de iniciação
para o ingresso, foi religião popular em Roma, contudo perseguida como o cristianis-
mo no início, ou mesmo fortemente perseguida pelo cristianismo até o século V d.C..
Não surpreende seu templo ser tão pouco visível.

Stöger83 estudou a Insula II utilizando as ferramentas da Sintaxe Espacial, investi-


gando percursos e pontos prováveis de maior utilização e convívio dos espaços do
conjunto, mostrando que os pátios A, B e C eram bastante animados. Além de serem
caminhos para as oficinas, moradias e o Templo de Mithra, todos os pátios estão
diretamente ligados e visíveis a partir das ruas. Os pátios A e B têm chafarizes para o

81 Ver em: <https://www.ostia-antica.org/regio4/2/2-11.htm>. Acesso em: 14 out. 2019.

82 SELSVOLD, Irene R. Remember the fallen: a comparative study of memory sanctions in political and
religious contexts in the Roman Empire. Oslo: Master of Arts Thesis in Archaeology, Department of
Archaeology, Conservation and History, Faculty of Humanities, University of Oslo, 2011.

83 STÖGER, Hanna. Ostia’s Insula IV ii: the nexus between built form and social organization.

141
abastecimento de água da insula. Stöger observou que a entrada mais central a partir
do Cardus Maximus levava diretamente ao pátio C, assim como uma das entradas da
Via Della Caupona. Em ambos trajetos os tanques d’água estão próximos, mas não
criam obstáculos.

Essas construções demandaram negociações enquanto eram realizadas, ajustando


alinhamentos e compartilhando redes de esgoto e abastecimento. O convívio entre os
usos variados e os moradores, usuários e clientes certamente animava a vida pública
na quadra. Destaca-se que a Caupona Del Pavone, uma das mais bem estruturadas
hospedagens de Ostia, se abria diretamente para a via. A Del Pavone ficava a 35
metros do Cardus Maximus e a 240 metros da Porta Laurentina, em lugar estratégico,
acessível e visível. Normalmente, as hospedarias incluíam tabernas no térreo para
servir hóspedes e outros viajantes. Por esses motivos, não seria adequado abrir-se
para o interior da insula.

Praticamente todas as construções da insula contavam originalmente com segundos


pavimentos, dos quais não sobraram muitos elementos, mas acredita-se que em sua
maioria abrigavam moradias. Os pavimentos superiores ligavam-se diretamente às
ruas, e as escadas que lhes davam acesso, na maior parte das vezes desciam direta-
mente no alinhamento das vias. Isso evidenciava que a rua era mais valorizada do que
os pátios interiores, mesmo para usos não comerciais.

O mesmo movimento que anima e ocupa as ruas, atrai o comércio e valoriza suas bor-
das também pode incomodar. As maiores e melhores casas (domus) ficavam nas ruas
menos movimentadas da cidade, nenhuma no Decumanus ou no Cardus Maximus.

A construção mais emblemática de tal fenômeno situa-se na Insula IX da Região III


(Figura 29), que abriga o conjunto de dois edifícios residenciais, com apartamentos
regulares e idênticos, encontrados na parte oeste da cidade, conhecidos como as
“Casas com Jardim”. Desde que escavadas, são apontadas como o melhor exemplo de

142
empreendimento imobiliário para um dos períodos mais prósperos e avançados do
Império Romano.

Os blocos foram construídos nos anos 123 e 130 d.C.84, durante o reinado de Hadrian,
concebidos como sofisticado complexo residencial com moradias construídas ao
redor do amplo pátio (com 80 por 100 metros) que nunca foi pavimentado. Daí, seu
nome, pois acredita-se que era um amplo jardim comum, servido e ornamentado por
seis tanques d’água cobertos. Esse jardim era acessado a partir das ruas por elabo-
rados pórticos de mármore. Dos quatro lados do jardim, havia habitações com dois
pavimentos acessados por escadas independentes. Os blocos que delimitavam o pátio
tinham 16 apartamentos regulares de porte médio, um domus (casa de porte grande,
nobre) e muitas lojas. Mesmo esses apartamentos estavam parcialmente protegidos
de ruas movimentadas por espaços abertos e fileiras de lojas. Escavações indicam
que algumas dessas habitações foram posteriormente transformadas em comércio.
A rua ao norte, o Cardo Degli Aurigui, era ladeada com um longo conjunto de lojas, o
conjunto comercial que resguardava as moradias do barulho e movimento das ruas.
As aberturas maiores das lojas voltavam-se para o cardo; portas secundárias, mais
estreitas, voltavam-se para o pátio B.

Os dois blocos residenciais ao centro abrigavam, com rigorosa simetria, oito aparta-
mentos por pavimento. Embora haja controvérsia, parte dos pesquisadores acredita
que os blocos tinham originalmente quatro pavimentos (o térreo e mais três), atin-
gindo cerca de 17 metros de altura, e eram abastecidos com água85. Os apartamentos
possuíam 240 metros quadrados, com acessos separados, contudo poderiam ser
unidos dois a dois, pois foram previstas portas de conexão entre eles.

84 STEVENS, Saskia. Reconstructing the Garden Houses at Ostia: exploring water supply and building
height. Disponível em: <https://www.academia.edu/26367933/Reconstructing_the_Garden_Houses_at_
Ostia._Exploring_water_supply_and_building_height._BABESCH_80_2005_pp._113-123>. Acesso em: 14
out. 2019.

85 Os apartamentos contavam com tubos de chumbo e manilhas cerâmicas. Em parte das demais
construções, não havia sistema de abastecimento de água, daí conclui-se que os tanques de água serviam
também para o abastecimento das moradias.
Figura 29 Vale observar que o conjunto edificado vai até o Cardo Degli Aurigui, uma via muito comercial
com muitas lojas, armazéns e banhos. O acesso ao grande pátio central dos blocos residenciais é feito
atravessando o pátio alongado B ou pela Via Delle Volte Dipinte. Vale destacar a construção E (Região III -
Insula IV - Caseggiato Trapezoidale III,IV,1) e a vizinha, pois ambas aparentemente serviram para abrigar
cavalos (a maior trapezoidal) e a menor era um edifício de três pavimentos com quartos para hospedagem,
cozinha e refeitório. O espaço diante da Porta Marina contava com um monumento funerário imponente,
uma fonte e o acesso ao Foro da Porta Marina.
Algumas moradias mantiveram seu padrão sofisticado por toda sua vida útil.
Acredita-se que o conjunto foi utilizado por mais de um século, até que um grande
terremoto provocou o colapso de parte das construções e um grande incêndio. As
escavações indicam que foi parcialmente reconstruído, com menos pavimentos,
sendo ocupado até o século IV. Importa destacar que as Casas com Jardim são exem-
plos muito significativos na relação das populações mais ricas da sociedade romana
dos primeiros séculos com a cidade e suas ruas. A moradia urbana tradicional das
famílias ricas romanas era o domus, com seus pátios internos e fechamento para as
ruas; as insulae eram edifícios de apartamentos para as classes mais pobres, normal-
mente morando famílias inteiras em apenas um cômodo. As Casas com Jardim eram
insulae diferenciadas, propunham outros modos de separação das ruas, usando áreas
comerciais e espaços de socialização dos moradores como “barreiras”.

Os popinae funcionavam como lugares para venda de bebidas e comidas em todas as


cidades do império. Eram também lugares para jogos (especialmente de dados), apos-
tas, prostituição e brigas. Seu horário de funcionamento normalmente se dilatava,
em grande parte dos casos desde a quarta hora86 até o meio da noite. Existem relatos
de que as luzes das popinae iluminavam as ruas no período noturno87. Com o intuito
de controlar os problemas e inconvenientes oriundos dos usos das ruas, os aediles88
de Roma tentaram restringir a venda de comida, sem muito sucesso.

As Leis Sumptuárias do período buscavam garantir a ordem pública, incluindo


as proibições da venda de carne cozida nos açougues, de água quente e carne nas
tavernas, de comida nas cauponae (hospedagens), além de restrições de horários de
funcionamento dos estabelecimentos. Pelas leis romanas, caso o estabelecimento

86 As horas dos dias variavam em duração. Os romanos dividiam o período com sol e as noites
igualmente em 12 horas, independente da estação do ano. Assim, pode-se entender que a quarta hora
corresponde a quatro horas depois da alvorada; o meio da noite, a sexta hora após o crepúsculo.

87 LAURENCE, 2006, p. 70.

88 Oficiais eleitos na República Romana, responsáveis pela manutenção dos prédios públicos e pela
regulamentação da ordem pública.
tolerasse o jogo, seu proprietário não poderia pedir reembolso, indenização por
danos, roubos ou prejuízos.

Como destaca Laurence, as popinae e cauponae eram os lugares de vida pública,


do convívio e do lazer da maioria dos homens, exceto os da elite. A combinação de
bebida, comida, sexo e jogos de azar entre amigos e desconhecidos constituía o tipo
de interação social pública desaprovada pelas famílias mais ricas. Eram os lugares da
experiência cotidiana essencial das cidades.

As mulheres das famílias mais ricas raramente saíam nas ruas; seu território era o
espaço doméstico. As ruas eram espaços para os homens de todas as classes, das mu-
lheres das classes mais pobres e escravos de todos os gêneros. Os homens da elite não
costumavam comer ou beber em lugares públicos e as visitas e o convívio entre esses
grupos se davam nos espaços privados, não nas ruas. Para ser moralmente correta, a
elite isolava-se do resto da população da cidade, embora estivesse muito próxima.

O meretrício era tolerado, pois a infidelidade conjugal era dos crimes mais graves.
Por isso, as mulheres casadas, especialmente das famílias mais ricas, tinham suas
vidas cotidianas muito controladas. A prática regular do meretrício era feita nas ruas
mais afastadas das melhores moradias, contudo os popinae, as tavernas e parte das
cauponae e mesmo dos banhos, por serem lugares de concentração de homens, eram
mal-afamados por serem também lugares para jogo e prostituição.

A Porta Marina dava acesso a um porto e às grandes termas (Região IV - Insula


X - Terme di Porta Marina) construídas pela família real, que ficavam junto do mar,
área intensamente movimentada e comercial. Junto à porta, havia um monumento
funerário, um chafariz e o Foro da Porta Marina, outra área de negócios e comércio.
Assim, quem atravessasse a Porta Marina a partir dessa área encontraria uma das
áreas mais movimentadas e comerciais do Decumanus Maximus, e logo à esquerda

146
a entrada principal para o conjunto de moradias da Insula IX, as Casas com Jardim.
Estar perto dos banhos certamente valorizava a localização.

Roma chegou a ter mais de 800 banhos públicos89 em funcionamento, com diferentes
padrões: maiores, menores, mais populares ou elitizados. As Termas da Porta Marina
foram construídas poucos anos antes das “Casas com Jardim”, durante o Governo de
Trajano (98 a 117 d.C.). Eram as mais sofisticadas, famosas e nobres de Ostia, conhe-
cidas também como as Termas do Mar e como Termas da Marciana, pois, durante as
escavações, foram encontrados retratos de Plotina e Marciana, a esposa e a irmã do
imperador, respectivamente. Os registros de obras de manutenção e reformas confir-
mam que sua construção só terminou durante o reinado de Hadrian e funcionaram
até 526 d.C., mesmo depois da queda de Roma em 476 d.C..

A letra E na figura 29 indica duas edificações, a Caseggiato Trapezoidale e a Casa delle


Volte Dipinte. A primeira era um estábulo com instalações para guardar e alimentar
cavalos e alojamentos na parte superior; a segunda, uma hospedaria com três pavi-
mentos de quartos, com refeitório e cozinha no térreo. Era natural que as cauponae
se localizassem junto às ruas mais movimentadas e próximas das portas da cidade.

Os apartamentos da insula estavam a 400 metros do Fórum, a 300 das Termas do


Mar. Nesses dois trajetos, o comércio garantia o acesso a todos os serviços e produtos
que pudessem ser consumidos. Assim, considerando a rotina das elites romanas, a
posição não poderia ser mais estratégica. Tudo evidencia que as moradias da Insula
IX eram especialmente bem localizadas.

Essas duas quadras apresentadas mostravam espaços de pátios comuns. Por todos os
elementos remanescentes, acredita-se que eram bastante animados e propiciavam
o convívio dos moradores entre seus pares. As insulae evidenciam também a maior
complexidade na divisão entre os espaços públicos e privados, com novas categorias

89 CILLIERS; RETIEF, 2006.

147
de espaços intermediários, nem públicos e nem privados. Não há como saber de
que forma seus usos eram pactuados, como era feita a gestão e manutenção desses
espaços. No entanto antes de indicarem qualquer competição ou enfraquecimento da
vida pública dos espaços das ruas, indicam que os espaços públicos se mostravam tão
intensamente utilizados, que outros espaços passavam a ser úteis ou necessários.

Os habitantes de Ostia saíam das suas moradias por inúmeros motivos: fazer o
salutatio90 às manhãs, buscar água nas fontes, usar os banhos e latrinas públicas,
trabalhar, estudar, fazer compras, buscar insumos, mantimentos e se socializar. Nas
ruas encontravam os comerciantes, artesãos, soldados, escravos, pedintes, ambulan-
tes, viajantes de passagem para Roma ou para embarcar nos seus portos.

Por tudo isso, se confirma que as ruas eram lugares de circulação, comércio e vida
pública, mas também de muita confusão e variados problemas sociais e urbanísti-
cos. Nas várias cidades romanas, existiam ruas com variadas larguras: as estreitas,
onde apenas pedestres conseguiam circular (itinerae); as mais largas, permitindo a
circulação de carros em apenas um sentido (actus); as que permitiam o cruzamento
de dois carros lado a lado91 (viae); as ruas com cerca de 3 metros de largura ou mais
(vici), consideradas apropriadas92, podendo ter balcões e varandas nas construções
lindeiras. Nas cidades novas, esses problemas eram resolvidos com a construção de
ruas um tanto mais largas. Na cidade de Timgad, construída por Trajano no primeiro
século, todas as ruas tinham de 4,5 a 5 metros de largura, e o Decumanus e o Cardo

90 A salutatio acontecia todas as manhãs na República Romana. Era um dos aspectos centrais dos rituais
matinais das famílias romanas dos mais variados status, como sinal de respeito dos plebeus aos patrícios e
patronos. A salutatio era o ritual que reforçava a hierarquia e a aquiescência social, parte fundamental do
habitus das sociedades urbanas e rurais durante todo o domínio romano.

91 Diferentes autores informam que a distância padrão para as rodas das carroças romanas era de 4 pés
8-1/2 polegadas, equivalente à 1,42 m.

92 CARCOPINO, J. Daily life in ancient Rome. London: Folio Society, 2004, p. 45.

148
Maximus contavam com colunatas que cobriam os passeios com mais 3 metros de
cada lado, totalizando cerca de 11 metros de largura93.

Enquanto em Ostia o Decumanus Maximus chegava a mais de 7 metros em vários


trechos, em Roma, mesmo as principais vias da cidade, as que levavam para fora da
cidade, costumavam ter de 4,80 a 6,50 metros94. A circulação se dava de forma tão
problemática, tão congestionada, que Júlio César95 decretou que, desde o nascer do
sol até a décima hora, as carroças não podiam circular nas ruas da cidade. Durante
o dia só podiam circular pedestres, pessoas a cavalo e variados tipos de liteiras96. O
decreto abria apenas quatro exceções: os carros das Vestais nos dias de solenidades
e celebrações; os carros das autoridades nas celebrações triunfais97; nos dias de
jogos públicos, os veículos necessários a eles; os que trabalhavam na retirada do lixo
(detritos humanos e dos animais) e dos escombros dos prédios demolidos para a
construção de novos edifícios.

93 HAVERFIELD, F. Ancient town-planning. Oxford: The Clarendon Press, 1913.

94 MUMFORD, 1982. As estradas romanas tinham como padrão medir 4,5 metros, as menos importantes
tinham 3,6 e as mais importantes 7,2 metros. Ou seja, as ruas mais largas de Roma, eram tão largas quanto
as estradas do Império.

95 NEWSOME, David J. Introduction – making movement meaningful. In: Rome, Ostia, Pompeii:
movement and space. Oxford: Oxford University Press, 2011. O mais interessante código legal
remanescente para entender o movimento e a cidade antiga é o Tabula Heracleensis, descoberto em
Heraclea, no sul da Itália. Seu texto relaciona-se com a cidade de Roma e acredita-se que preserve o texto da
Lex Iulia Municipalis, promulgada por César em cerca de 45 A.C.. Essas restrições constam nessa Tabula.

96 NEWSOME, 2011. A Lex Iulia Municipalis permitia que as carroças de cargas, as plaustras, entrassem
na cidade a partir da décima hora, contada a partir no nascer do sol. Todavia a décima hora variava
conforme as estações do ano, correspondendo a cerca de 17h no verão e 15h no inverno. No verão, esperava-
se mais 4 ou 5 horas da luz do sol antes de anoitecer, com luz suficiente para circular nas ruas da cidade; no
inverno haveria talvez entre uma e, no máximo, 3 horas de luz antes do pôr do sol. Isso serve para lembrar
que o movimento na cidade possui ritmos diferentes, variando ao longo do dia ou das estações do ano.

97 As principais celebrações romanas aconteciam nas ruas. Os vários arcos do triunfo em incontáveis
cidades ao redor do Mediterrâneo atestam essa tradição.

149
Decorria dessas regras a intensa circulação de carroças durante o período noturno.
Daí os registros de problemas de barulho à noite, vindo da circulação das carroças (as
rodas atritavam com as pedras da pavimentação) e certamente do seu carregamento e
descarregamento. Não há informações confiáveis que permitam saber quanto tempo
as restrições à circulação de carroças no período diurno vigoraram ou o quanto
foram efetivamente respeitadas.

Outros governantes tentaram disciplinar a circulação de veículos em Roma: Hadrian


(117 a 138 d.C.) promulgou edito estabelecendo que nos festivais sagrados apenas as
matronas poderiam cavalgar em pilenta98; Marco Aurélio (entre 161 e 180 d.C.) proibiu
toda a população de dirigir qualquer veículo dentro dos limites da cidade; Severus
Alexander (entre 222 e 235 d.C.), certamente atendendo a interesses, estabeleceu que
apenas os senadores poderiam usar veículos na cidade, de certo modo inaugurando a
história das legislações que estabeleceram a primazia do veículo sobre os pedestres99.

É muito difícil encontrar elementos físicos que permitam compreender como era efe-
tivamente a circulação das ruas do Império Romano, mas graças ao fato de a cidade
de Pompeia ter suas ruas pavimentadas com basalto vulcânico, sulcos profundos
permaneceram como raro registro da circulação de veículos na cidade. Tais vestígios
permitiram avançar até no conhecimento dos tipos de veículos que circulavam no
primeiro século (embora suas características e tecnologias ainda não estejam plena-
mente esclarecidas). Cada cidade romana enfrentava, de modo particular, problemas
distintos de mobilidade urbana. Sendo assim, certamente não se pode extrapolar as
descobertas em Pompeia para as demais cidades.

98 Uma carruagem usada apenas por mulheres

99 NEWSOME, 2011.

150
Estudos feitos por Poehler100 demonstraram que a circulação de veículos em Pompeia
era muito mais organizada e eficiente do que fariam supor suas ruas estreitas. A
cidade enfrentou terremotos, especialmente o de 62 a.C., teve de retirar escombros,
reconstruir muitas construções enquanto seguia garantindo o abastecimento dos
mercados, do comércio e as demandas gerais. Não teria logrado sucesso nesses
trabalhos em tão pouco tempo se não tivesse visão estratégica e logística para viabili-
zar a circulação dos diferentes tipos de veículos que apoiavam a vida urbana. Poehler
afirma que a organização da circulação nas ruas da cidade teve diferentes fases e
etapas de aprimoramento. Existiram ruas de mão única, funcionando em horários al-
ternados e rígida disciplina na organização dos fluxos e sistemas de carga e descarga.
O autor identificou amplos e complexos sistemas de apoio com garagens, estábulos
e estratégias para que cavalos pudessem não só puxar carroças, mas trabalhar em
moinhos na cidade e na agricultura urbana. Seus estudos mostram que as padarias,
as hospedagens e as atividades agrícolas buscavam posições compatíveis e eficientes
para a circulação de carroças e seu apoio logístico. Poehler também demonstrou
que existiam empresas e serviços de transporte para o atendimento das moradias,
disponibilizando carroças, mulas, escravos e carregadores.

Laurence mostra que as regras que disciplinam o movimento pelas ruas respeitam ló-
gicas que não prezam apenas a eficiência, mas seus trajetos e horários podem indicar
status. Como no caso das procissões funerárias, que não seguem as rotas mais curtas
e fáceis, optando por trajetos deliberadamente tortuosos, a fim de serem vistas pelo
maior número de pessoas.

As ruas garantiam igualmente a eficiência do sistema de drenagem da cidade. As


calçadas muito altas (cerca de 30 a 40 centímetros) e as grandes pedras que fazem
o caminho de travessia, são explicadas, antes de tudo, pela drenagem das águas

100 POEHLER, Eric. Where to park? Carts, stables and the economics of transport in Pompeii. In:
LAURENCE, R.; NEWSOME, D. (eds.). Rome, Ostia and Pompeii: movement and space. Londres: Oxford
University Press, 2011.

151
pluviais da cidade. A densa ocupação dos lotes, altamente impermeabilizados, os
sistemas de escoamento dos implúvios e dos telhados das construções, lançando toda
a água de chuva diretamente nas vias, exigiam escoamento eficiente de grandes volu-
mes d’água. As fontes e chafarizes abastecidos pelo aqueduto não paravam de escoar
água, mesmo no período noturno. As ruas muitas vezes assemelhavam-se a canais
cheios d’água, mas não podiam dificultar a movimentação de pedestres e veículos.

Vitruvius aconselhava que pelo menos um terço ou até mesmo metade do supri-
mento de água disponível para a cidade fosse canalizado para as fontes, chafarizes,
latrinas e banhos públicos, deixando claro que nos primeiros séculos da nossa era,
grande parte da população utilizava o suprimento público de água. Embora boa parte
das moradias fosse abastecida diretamente, a vida cotidiana dos moradores incluía
saídas muito frequentes dos espaços privados para buscar água e tomar banhos.
Mesmo que em muitas das moradias isso fosse feito por escravos, pode-se imaginar
quanto movimento e agitação essa lida diária provocava nas ruas101.

Carcopino102 conta que, para melhorar a fluidez das vias de Roma, Germanicus
proibiu que o comércio exibisse suas mercadorias estreitando e ocupando as
calçadas. Em Pompéia (Figura 30), Herculano ou Ostia, praticamente todas as ruas
escavadas eram pavimentadas, no entanto, em Roma, a maior parte das ruas não
tinha pavimentação nem passeios. Encontraram-se muitos registros de reclamações
por sujeira, poças d’água e mau cheiro das canaletas de esgoto entupidas.

Júlio César decretou que a varrição das ruas deveria ser obrigação dos moradores do
térreo ou dos proprietários, das insulae ou dos domus, fiscalizada pelos magistrados
municipais (aediles) que os puniriam em casos de descuido com multas severas.
Às noites, as ruas eram tão escuras que escravos costumavam caminhar à frente
dos seus senhores carregando tochas para que pudessem enxergar onde pisavam.

101 LAURENCE, 2006.

102 CARCOPINO, 2004.


152
Figura 30 As ruas, em Pompeia, eram
pavimentadas com grandes pedras e tinham
calçadas especialmente altas. As ruas relativamente
estreitas, com calçadas igualmente acanhadas,
permitem imaginar os conflitos na circulação
de pedestres, veículos e animais, transportando
materiais e mercadorias variadas. Observando
como a fonte obstrui parcialmente a via, pode-se
imaginar a água escorrendo permanentemente da
fonte, os moradores buscando e carregando a água.
Mesmo assim, surpreendem a altura e o tamanho
das pedras colocadas para fazer a travessia entre
as calçadas. Certamente, tratava-se de um lugar
animado e cheio de vida.

Algumas vizinhanças (vicus) tinham grupos de vigias (vigiles) que percorriam as vias
carregando tochas tanto para acompanhar seus moradores quanto para cuidar para
que não acontecessem roubos ou furtos na área. Roma era considerada mais perigosa
do que as florestas ou os pântanos selvagens, por todos os roubos, raptos e assassina-
tos que ocorriam em suas ruas e vielas103.

A maior parte das cidades, mesmo Roma, não tinha muitas das suas ruas pavimenta-
das ou calçadas. Suas formas de uso e apropriação ainda não foram suficientemente
estudadas para determinar como eram utilizadas. As calçadas de Ostia, e especial-
mente as de Pompeia, ainda guardam mistérios não compreendidos, como as cente-
nas de furos nas pedras que fazem as guias do meio-fio, que despertam debates sobre
sua finalidade. Alguns acreditam que serviam para amarrar toldos que sombreariam
os produtos e as lojas; outros, que serviam para amarrar os animais, estacionar as
carroças enquanto descarregavam mercadorias104.

103 CARCOPINO, 2004.

104 WEISS, Claire. Determining function of pompeian sidewalk features through GIS Analysis. Oxford:
Archaeopress, Making History Interactive: Proceedings of the 37th CAA, March, 2009, pp. 22-26.

153
Multidões de pessoas de todas as classes sociais circulavam pelas ruas de Roma ao
longo dos séculos enfrentando problemas enquanto descobriam as maravilhas da
vida urbana. As regras criadas para administrar toda sorte de problemas de circula-
ção, limpeza, drenagem, manutenção e comércio buscavam garantir as condições de
convívio entre os variados grupos. Muitas dessas regras eram inúmeras vezes impos-
tas, alteradas e revogadas conforme implementadas e testadas. Há vários relatos das
dificuldades em circular pelas ruas de Roma.

Carcopino105 traz o relato vívido do poeta Juvenal106 batalhando para atravessar as


movimentadas ruas de Roma do segundo século, tendo os pés pisados, suportando
uma pancada na cabeça – dada por um passante desastrado que carregava um barril
de vinho –, tendo de desviar de uma viga de madeira carregada por escravos, dispu-
tando o espaço com carroças carregadas de madeira e pedras enormes, temendo que,
a qualquer momento, suas cargas rolassem sobre as multidões confinadas entre as
edificações.

A principal diferença nas características das ruas estava na mudança dos tipos de
edificações. Estudos avaliam que em Roma existiam 26 edifícios residenciais (insulae)
para cada casa (domus)107. Os domus, que herdavam a tradição grega de espraiamento
horizontal da cidade, abriam suas portas e janelas para o pátio interior, fechando-se
em muros para a rua. As insulae, ao contrário, eram abertas para as ruas e só começa-
ram a aparecer no século IV A.C., quando Roma já demandava adensamento por estar

105 CARCOPINO, 2004.

106 Escritor que viveu em Roma entre o primeiro e o segundo século, cujas obras são contemporâneas
às de Marcial, Tácito e Plínio, o Jovem. Escrevia sátiras, gênero muito comum à época, discutindo
criticamente a moral, os valores e costumes da sociedade da época. Da sua obra, são conhecidos 16 poemas,
divididos em cinco livros, sendo uma das melhores fontes de informação sobre o cotidiano da vida na
cidade de Roma.

107 CARCOPINO, 2004.

154
limitada pelos Muros Sérvios108. A Forma Urbis Romae109, como as plantas atuais ou os
sítios arqueológicos, apresentam versões organizadas do espaço, nas quais os limites
entre as insulae e viae são bem definidos, contudo a realidade já era bem diferente e
sua representação ainda é desafio.

Durante os séculos seguintes, a altura das edificações foi aumentando de três, para
quatro e cinco pavimentos. O número de incidentes com desmoronamentos e incên-
dios levou Augusto a decretar o limite de altura máxima de 20 metros, posteriormen-
te reduzido para 18 metros por Trajano. Nesse processo as classes mais abastadas
acabavam preferindo habitar o campo, muitas villas foram construídas nos arredores
das cidades romanas, fora dos muros. Mas como ainda hoje pode ser observada em
várias cidades italianas, mesmo em partes de Roma, a segregação territorial entre
as diferentes classes sociais não é muito rigorosa. Os mais ricos e poderosos de
Roma habitavam diferentes pontos da cidade, fazendo com que as diferentes classes
circulassem por todas as ruas simultaneamente.

As insulae apresentavam risco maior em caso de incêndios, além de levarem, para


os que moravam nos pavimentos mais altos, carregando mantimentos, água, lixo e
dejetos, o esforço diário de subir e descer as escadas. Os pavimentos térreos abri-
gavam as melhores moradias110, porém parte deles era ocupada por lojas (tabernae),

108 A Muralha Serviana era uma das muralhas mais antigas de Roma, construída no século IV a.C. Foram
úteis durante os ataques e guerras que precederam a Pax Romana, como o ataque de Aníbal durante a
Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.).

109 A Forma Urbis Romae era a planta de Roma, esculpida em mármore, criada na época do imperador
Septimius Severus, entre 203 e 211 d.C.. Originalmente, media 18 metros de largura por 13 metros de altura
e foi esculpida em 150 lajes de mármore montadas em uma parede interior do Templo da Pax. A planta
estava orientada com o sul no topo e incluía os nomes dos edifícios e espaços públicos. Criada na escala
aproximada de 1/240, o mapa era detalhado o suficiente para mostrar as plantas dos pavimentos térreos de
quase todos os templos, banhos e insulae da cidade. Mais de mil fragmentos de mármore da planta foram
reunidos, formando cerca de 10% da superfície original.

110 O abastecimento de água também, na grande maioria dos casos só podia atender aos pavimentos
térreos.

155
bares (popinae) e oficinas. Sendo assim, muitas das melhores moradias da cidade de
Roma e de Ostia se localizavam nos térreos das insulae, caso em que eram chamadas
de domus, embora não fosse exatamente o domus tradicional de origem grega. Essa
diferença era tão grande que, em alguns casos, o aluguel dos pavimentos superiores,
somando todos os seus apartamentos (cenacula), não era maior do que o aluguel do
domus no térreo111.

Os incêndios e desmoronamentos não facilitavam o alargamento das vias, pois,


quando Roma enfrentou incêndios, as leis impunham que, caso o antigo proprietário
não fosse capaz de reconstruir o edifício destruído pelo incêndio, qualquer um que
pudesse fazê-lo poderia ocupar, sem ônus, o terreno liberado112.

Nas cidades romanas, não havia qualquer legislação que estabelecesse restrições de
usos para as construções. O planejamento urbano cuidava, quando podia, exclusi-
vamente do traçado das vias e dos limites de gabaritos já mencionados. Entretanto
estudos confirmam que os usos das construções nas cidades se organizavam de

acordo com lógicas próprias, conforme Morin recomenda observar. Segundo


Laurence113, a maioria das padarias em Pompeia estava reunida próxima do único
armazém da cidade, de modo a facilitar o carregamento da farinha. Poehler114 mostra
que as hospedagens (cauponae), os grandes estábulos e garagens de veículos ficavam
próximos das portas de Pompeia; os bares (popinae), nas vias mais movimentadas; as
tabernas que serviam comida e bebidas ocupavam as esquinas mais movimentadas
da cidade.

111 CARCOPINO, 2004.

112 HAVERFIELD, 1913.

113 LAURENCE, 2006.

114 POEHLER, 2011

156
Conforme Laurence115, a religiosidade também tinha presença importante nas ruas
das cidades, fortemente articulada com questões políticas e administrativas. Roma
era dividida em vários bairros, conhecidas como vicus, cada um com o próprio par
de oficiais (aedile), eleitos pelos moradores do vicus. Essa organização dava a cada
habitante o senso de identidade e lugar na cidade, papel importante na política
municipal para esses limites. Os limites eram dados pelas ruas, e os moradores de
cada vici rezavam pela proteção e riqueza dentro dos seus limites. A deusa Lares, (a
dos “limites”), muito popular entre soldados, viajantes e marinheiros, protegia todas
as escalas de limites, das casas às estradas, cidades ou fronteiras. Em muitas encruzi-
lhadas (compitalia) ou cruzamentos viários, era frequente encontrar altares públicos
dedicados a Lares Compitales. As famílias mais poderosas de cada vicus costumavam
cuidar, manter e fazer oferendas nesses altares, que, junto com os limites, tinham
sentidos administrativo, político e religioso. Augusto (em 7 a.C.) quis reorganizar os
limites dos vici (o plural de vicus) de Roma, dividindo a cidade em 14 vici, formando
uma nova estrutura administrativa, com os magistri vici (escolhidos por sorteio) e as
imagens dos Lares Augusti introduzidas nos altares dedicados a Lares Compitales.

As condicionantes religiosas pesavam em diferentes aspectos do desenho das ruas.


Quando o aqueduto passou a abastecer Pompeia, chafarizes públicos substituíram os
antigos poços públicos de abastecimento. Tanto a localização dos chafarizes quanto a
das torres de água tiveram de ser negociadas com os proprietários dos imóveis e dos
altares Lares Compitales. Alguns dos chafarizes causaram obstrução em determina-
das ruas e, em alguns casos, impediram a circulação de veículos sobre rodas116.

As ruas possuíam intenso sentido político, pois, além de serem limites dos vici,
era muito comum que as famílias manifestassem seu apoio político nas fachadas,
muros e paredes mais visíveis. Pesquisas confirmam que as ruas mais movimentadas

115 LAURENCE, op.cit.

116 LAURENCE, 2006.

157
de Pompeia apresentavam maior número de inscrições de caráter político ou
comercial117.

Viitanen118 conta que os avisos eleitorais, apoiando diferentes candidatos, eram


exibidos nas fachadas das casas, especialmente nas da elite, pois tinham peso na
vida política da cidade, contudo também mostram que os demais moradores podiam
fazer o mesmo, escrevendo nas paredes das cidades autorizados ou não pelos pro-
prietários. Escolhiam os lugares mais visíveis, onde as pessoas circulam, param para
ler, rabiscar seus textos. A vida política era controlada principalmente pela elite, o
que se evidencia a partir da distribuição dos anúncios concentrados nas maiores
habitações.

Cidades muradas não podiam ser muito grandes. Não apenas a limitação física das
muralhas impedia seu crescimento, mas o fato de terem que buscar água em áreas
remotas para abastecer populações maiores. Do que adiantaria ter muralhas se,
durante o sítio, os atacantes pudessem simplesmente cortar todo o abastecimento
de água? Por isso, apenas durante a Pax Romana (28 a.C. até 180 d.C.) a capital do
império pôde atingir seu maior tamanho. Foi a partir do primeiro século, portanto,
que as cidades romanas ganharam outra dimensão e novas características.

As ruas intensamente utilizadas acabaram atingindo, especialmente em Roma,


proporções e escalas inéditas. A população de Roma variou ao longo dos séculos.
Fundada no século VIII a.C., acredita-se que atingiu seu tamanho máximo pouco an-
tes da queda do império no século VI d.C.. As estimativas populacionais para a capital
do império variam enormemente, de cerca de 350 mil até um milhão de habitantes.

117 VIITANEN; NISSINEM, 2017.

118 VIITANEN, Eeva-Maria; NISSINEM, Laura. Campaigning for votes in ancient Pompeii:
contextualizing electoral programmata. 2017. Disponível em: <https://helda.helsinki.fi//bitstream/
handle/10138/232723/_9783110534597_Writing_Matters_.pdf?sequence=1>. Acesso em: 10 out. 2019. DOI:
10.1515/9783110534597-006

158
Contudo dados encontrados em escavação informam que a cidade contava, no século
IV d.C., com 46.602 insulae e 1.790 domus119, portanto o número de um milhão de
habitantes não é irreal. Nunca uma cidade havia atingido esse porte, evento repetido
apenas por Londres no fim do século XVIII.

Pode-se dizer que Roma foi uma cidade muito populosa por cerca de cinco séculos
(entre o século I a.C. até sua queda); gerações de romanos nasceram e viveram o coti-
diano da grande cidade. Portanto não é possível imaginá-la como uma cidade estática,
certamente atravessou inúmeros períodos sucessivos, com grandes transformações
políticas, sociais e urbanísticas nas quais os seus espaços (livres ou edificados) foram
transformados e reapropriados para os mais variados usos práticos e simbólicos. Não
há dúvidas de que os espaços livres públicos foram palco de grandes transformações
e eventos dramáticos.

Os fóruns das cidades romanas eram diferentes das ágoras gregas, mas, como estas,
eram aparentemente de acesso restrito. Newsome120 aponta que, quando Roma
passou a ser uma cidade de grande porte, vários fóruns foram criados, e muitos deles
acabaram atravessados por ruas, sendo caminho obrigatório e diário para milhares
dos seus habitantes, se dessacralizando, tornando-se mais acessíveis. Os fóruns não
puderam permanecer fechados às rotas urbanas quando a mobilidade se tornou
problema “incontornável”, os clusters tiveram que permitir travessias.

As mudanças das práticas sociais se deram paralelamente às mudanças espaciais,


dialeticamente, alterando os habitus dos vários grupos sociais que circulavam pela

119 MUMFORD, 1982, p. 259. Segundo o autor, baseado em inventário encontrado dos anos 312/315 d.C.,
a cidade contava com 11 banhos públicos, 926 banhos menores e privados, permitindo que 62.800 pessoas
se banhassem simultaneamente; 700 tanques ou bacias de água para o abastecimento e mais 500 fontes; 18
fóruns ou praças públicas, oito campos gramados e 30 parques e jardins abertos à população.

120 NEWSOME, David J. Introduction – making movement meaningful. In Rome, Ostia, Pompeii.
Movement and space. Oxford: Oxford University Press, 2011.

159
cidade. A circulação pelos espaços urbanos passou a ser parte fundamental dessas
práticas, deixando de ser meio, passando a ser também fim, um dos objetivos.

Os estudos de Newsome, Laurence, Viitanem, Poehler e muitos outros pesquisadores


e arqueólogos ingleses e finlandeses confirmam com evidências materiais aquilo que
os textos remanescentes apontam – as ruas assumiram novo papel cultural. Como
exemplo, citam Marcus Terentius Varro, que no livro A Língua Latina conceitua o que
é “lugar” de dois modos, o primeiro como sendo onde o movimento para, temos um
lugar121. Esse entendimento é coerente com a visão de que o lugar é “aonde se chega”,
para aonde se caminha. Assim, o caminho não é lugar, mas apenas o meio. No mesmo
livro, Varro conceitua “lugar” de outro modo, dizendo que onde há movimento, há
lugar122. A segunda tríade de livros de Varro explora a relação entre tempo, espaço
e movimento. O autor define todas as coisas de acordo com a sua permanência ou
movimento. Para ele, tempo não existe sem movimento. Se Varro afirma que lugar é
onde as pessoas ”param” ou onde tem movimento, as ruas congestionadas são o lugar
por excelência, pois são os lugares onde o movimento para e vira lugar.

Outro autor romano do primeiro século, Marcial escreve que a cidade se baseia nos
ritmos das ações de pessoas. Marcus Valerius Marcial, escritor bastante popular,

121 VARRO, M. T. On the Latin Language. Cambridge, Harvard University Press, 1938. V.15, ‘ubi quodque
consistit, locus’. p. 15. Onde alguma coisa para, é um locus “lugar”. A partir disso, o leiloeiro diz locare “para
o lugar”, porque ele fica o tempo todo como indo até que o preço pare em alguém. Daí também o locarium o
‘locador’, que é dado para uma hospedagem ou uma loja, onde os pagadores se posicionam. Assim também
localiza os lugares das mulheres, onde estão situados os primórdios do nascimento. p. 15

122 VARRO, M. T. On the Latin Language. Cambridge, Harvard University Press, 1938. V.11, ‘ubi agitator,
locus’. p. 11. Pitágoras, o samiano: diz que os elementos primordiais de todas as coisas estão em pares,
como finitos e infinitos, bons e maus, vida e morte, dia e noite. Portanto, da mesma forma, existem os dois
fundamentos, permanência e movimento, cada um deles dividido em quatro tipos: o que está estacionário
ou está em movimento, é corpo; onde está em movimento, é lugar; enquanto está em movimento, é tempo;
o que é inerente ao movimento, é ação. A divisão quádrupla será mais clara assim: o corpo é, por assim
dizer, o corredor, o lugar é o percurso da corrida em que ele corre, o tempo é o período durante o qual ele
corre, a ação é a corrida.

160
com muitos vínculos sociais, tinha de percorrer grandes distâncias diariamente para
atender ao salutatio muito além do bairro (vicinus).

Marcial escreveu sobre o decreto domiciano, que obrigava os lojistas a respeitarem


os alinhamentos de suas tabernas, que habitualmente ocupavam de forma parcial
o espaço da rua. O que vale destacar é que ele articula diferentes conceitos de
infraestrutura e mobilidade urbana: “Você (Domiciano) ordenou que os distritos
(vicus) se ampliassem, e o que antes havia sido um caminho (semita) se tornasse uma
rua (via)”123. Marcial sobrepõe três conceitos urbanísticos (vicus, semita e via) para
informar sobre o transbordamento das atividades comerciais para além dos merca-
dos (macellum), para as vias, as ruas de maior movimento. Ele fala, no primeiro século
sobre a disputa entre a mobilidade e a permanência, a circulação e as atividades que
se beneficiam e ao mesmo tempo animam o espaço das ruas. É o usuário, pedindo
ao poder público que interceda nessa complexa e contraditória disputa pelo espaço
público.

Cícero, em Da Invenção, diz que, ao considerar o local em que uma ação foi realizada,
deve-se levar em consideração as oportunidades que o local pode proporcionar para o
desempenho. Além disso, a oportunidade é questão do tamanho do lugar, sua distân-
cia de outros lugares, remotos ou próximos, deserto ou muito ocupado. Finalmente,
é uma questão da natureza do local, suas condições reais, sua vizinhança e todo seu
distrito124. Essa compreensão acerca dos lugares, seus significados e relações, não
pôde ser conquistada sem a vivência diária da experiência urbana.

Os autores romanos demonstram pleno entendimento da importância relacional


do sistema de espaços e lugares. Um lugar só pode ser compreendido a partir das
relações que guarda com os demais, das permanências e do movimento que nele

123 NEWSOME, 2011. Martial 7.61, ‘Iussisti tenuis, Germanice, crescere vicos, et modo quae fuerat semita,
facta via est’.

124 NEWSOME, 2011.

161
ocorrem. Sendo assim, os estudos sobre Roma deixaram de analisar os edifícios
isoladamente e começaram a busca pelos lugares de movimento, as centralidades
definidas pelas práxis, não pela geografia.

Os estudiosos buscam o locus celeberrimus, o lugar mais importante, mais movimen-


tado, não como o espaço da representação, mas como lugar das práticas sociais mais
visíveis e reconhecidas pela maior parte da população. Como lugar que não é deter-
minado pelas construções, edifícios e monumentos que materializam o poder, mas
onde as práticas e disputas do poder efetivamente ocorrem. O termo muda o sentido
que trazia das cidades gregas quando é repensado para as cidades romanas. Nas
cidades gregas, o locus celeberrimus é o espaço com maior carga simbólica, pode ser
a ágora ou a acrópole. Os monumentos e demais símbolos do poder grego disputam
esses espaços, enquanto para os romanos os espaços mais movimentados assumem
essa primazia.

Assim, os portões da cidade, vistos como meros locais de passagem, de acesso à


cidade, foram reconhecidos como lugares fundamentais e potentes. Grande parte
das famílias mais ricas da sociedade romana morava ao redor de Roma, fora dos seus
muros, em villas com espaços maiores e vizinhanças mais tranquilas. É fácil imaginar
que o deslocamento diário, principalmente dos homens para a cidade, permitia que a
mendicância e o comércio aproveitassem do tráfego junto aos portões da cidade.

Observou-se que as atividades comerciais que aproveitavam o tráfego intenso nos


portões da cidade eram consequência do fato de o trânsito ser comprimido, tornan-
do-se lento e congestionado. Do mesmo modo que a Porta Capena em Pompéia, os
portões de Roma passaram a ter grupos de vendedores, comerciantes, pedintes e
prestadores de serviços em decorrência das oportunidades econômicas oferecidas
pelo tráfego. As lógicas econômicas do movimento também interferiram no desen-
volvimento dos espaços e das atividades urbanas, alterando necessidades e práticas
da sociedade. A compreensão dos processos históricos do movimento e do tráfego

162
alteraram os padrões de movimento, os usos e práticas dos espaços de circulação
(de pedestres, veículos ou ambos) pelos efeitos multiplicadores da economia de
movimento em locais com significativa intensidade do tráfego. As ruas assumiram
importante papel na economia da sociedade e da cidade e o comércio estabelecido
nos mercados (macellum) e nas lojas relacionavam-se diretamente com as ruas e suas
atividades.

A importância dos espaços de mobilidade para as atividades urbanas junto aos


portões atingiu tal grau que, quando a prefeitura de Pompeia não conseguiu evitar
que as terras públicas fossem ocupadas ilegalmente, recorreu à autoridade imperial
de Roma, que conseguiu restaurar os alinhamentos originais dos espaços públicos125.
As atividades deram significado e identidade aos espaços livres da cidade, batizados
como lugares, como a Area Pannaria, um espaço livre (locus vacuus) próximo dos
Muros Sérvios, junto à Via Appia, que abrigava o comércio de produtos têxteis126.

O comércio ocupou todos os espaços próximos às ruas mais movimentadas das cida-
des dos primeiros séculos. Ellis127 nos conta que o crescimento do número de lojas no
segundo século, no início do império se dará em todas as cidades do Mediterrâneo.
Ostia tinha algo como 800 estabelecimentos; Pompeia, 600; Tingad, 320; a parte
escavada de Dura-Europos, 160. A Forma Urbis Romae mostra que ruas inteiras da
capital, o pavimento térreo de todas as construções públicas ou privadas de muitas
ruas, dedicavam-se a estabelecimentos comerciais. A arqueologia mostra que o uso
era pervasivo, espalhando-se pelo interior das construções e vielas, borrando o rígido
limite entre os espaços livres e edificados.

125 NEWSOME, 2011.

126 NEWSOME, 2011.

127 ELLIS, Steven J. R. The roman retail revolution: the socio-economic world of the taberna. Oxford: Oxford
University Press, 2018.

163
O movimento dos circos e teatros também animava o comércio. Roma tinha, no
Reinado de Cláudio, no século I d.C., 159 dias de feriados públicos, 93 destes eram
animados por jogos gratuitos e abertos à população128. A Forma Urbis Romae mostra
que os pavimentos térreos dos circos e teatros também abrigavam o comércio, e as
ruas que davam acesso aos maiores teatros e circos eram bastante comerciais.

O movimento deu novo sentido aos espaços públicos, alterou seu significado e o pró-
prio entendimento do conceito de público. Os desafios decorrentes do movimento e
da disputa de todos os seus habitantes pelo espaço, os regramentos de comportamen-
tos, dos modos e atividades aceitáveis ou não, as regulações e hierarquizações do trá-
fego ganharam relação de complementaridade. Não podiam ser mais simples regras
de exclusão, de vedação do acesso, mas regras para que o convívio entre os diferentes
pudesse ocorrer. Regras que garantissem condições para os diferentes grupos sociais
e humanos, os diferentes modais e as diferentes atividades ocupassem os mesmos
espaços simultaneamente, densamente e diariamente. Um exercício permanente de
tensionamento, negociação e pactuação entre todos os grupos e agentes.

Essa rede urbana de caminhos e percursos se transformaram em lugares, palcos de


eventos tão mais significativos que apenas a sua experiência diária poderia avaliar.

Embora fosse uma sociedade estratificada e escravocrata, os mecanismos de controle


do uso desses espaços não tinham em Roma a mesma eficiência que nas cidades
menores. As multidões, percorrendo tão complexas e labirínticas redes de ruas,
eram menos vigiáveis. Os espaços passavam da dialética tradicional e binária para
a complexa dialógica moriniana. Os espaços não eram mais fruto da oposição de
termos, mas simultaneidade contraditória e complementar, simultaneamente,
movimento e permanência, todo o tempo. Fruto do esforço da mobilidade criando
as condições para que a troca e o encontro se dessem. Não eram apenas atração,

128 MUMFORD, 1982

164
mas, simultaneamente, expulsão. As massas eram atraídas pelo deslocamento, pelo
comércio, pelos encontros, no entanto toda essa agitação repelia, cansava, assustava
e expulsava grupos, usos e atividades.

Os espaços das ruas não eram apenas lugar de liberdade, mas, ao mesmo tempo, lugar
de controle e vigilância, regras e transgressões. Espaços vigiados pelo exército, pelos
aediles, pelos moradores dos vici, pelos vigias contratados e pelos escravos encarrega-
dos de cuidar e vigiar estes espaços. Todo esse controle certamente não impedia que
encontros e trocas acontecessem com mais liberdade do que nas cidades menores.

Os espaços das vias eram sistematicamente restritos e tinham regras de acesso,


sendo vedados a determinados usos, a determinados grupos e em determinados
horários. Ao mesmo tempo, eram espaços de todos, os mais inclusivos, francos e
democráticos. A mobilidade e a necessidade de chegar a determinados lugares fran-
quearam a circulação ao maior número e maior variedade de grupos do que qualquer
outro espaço ou lugar.

Pode-se dizer que os espaços das ruas de Roma, nos primeiros séculos, eram os
espaços onde muitas relações fixas – e as “veneráveis” verdades – podiam ser questio-
nadas, onde novas práticas poderiam tornar-se antiquadas rapidamente. Ainda não
eram os lugares onde, como Marx anunciaria séculos mais tarde, “[...] tudo o que é
sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente
obrigado a encarar os sentidos sóbrios, suas condições reais de vida e suas relações
com os outros homens”129. Contudo as ruas de Roma eram o que mais se aproxima-
vam de ser esse palco de transformações que a modernidade traria séculos depois.

A sociedade romana não era propriamente capitalista, mas muitas das organizações
protocapitalistas já existiam no mundo romano e os aspectos iniciais do capitalismo

129 MARX; ENGELS, 1978, tradução nossa.

165
mercantil já tinham florescido. Por alguns séculos, durante a Pax Romana, a grande
cidade era o palco efervescente de debates, ideias e forças sociais disputando o poder,
criando e acumulando riquezas sem precedentes. Essa populosa cidade reuniu pela
primeira vez contingentes humanos tão numerosos que, diariamente, milhares de
pessoas tinham de percorrer espaços e conviver com outras milhares que, em grande
parte, lhes eram desconhecidas.

A capital do Império atraía pessoas de todo o mundo conhecido, era o cadinho que
reunia povos com diferentes línguas, religiões, culturas e hábitos. Os estrangeiros
vinham nas mais variadas condições, como diplomatas, sacerdotes, artistas, escrito-
res, artistas, comerciantes, artesãos, trabalhadores, soldados, prostitutas e escravos.
Esse encontro com os desconhecidos, com os estranhos era compulsório e diário, e se
dava principalmente nas ruas e nas atividades que as ruas acomodavam. Aqui, recu-
pera-se o conceito de Delgado (1999), de que a vida urbana se caracteriza pela potente
integração da mobilidade espacial com as ações cotidianas, uma não acontece sem a
outra. Reitera-se que, para o sociólogo espanhol, só há cidade quando a densidade e
a heterogeneidade criam condições para relações interpessoais anônimas, diversas,
instáveis e frágeis. Só há cidade quando as relações se dão em, sua maioria, entre
indivíduos estranhos entre si, portanto pautadas por regras de convívio e troca esta-
belecidas também pelo espaço. As ruas de Roma criaram o lugar e as condições desse
encontro entre pessoas de tão variadas condições e origens, em escala e qualidades
nunca experimentadas.

As cidades construídas pelos romanos formaram verdadeiras estruturas, estru-


turadas e estruturantes no sentido conceituado por Bourdieu. Eram experiências
coletivas que abrigavam variados grupos humanos ocupando de modo contínuo, por
muitos séculos, os mesmos espaços e ruas.

166
A desordem e o aparente caos que reinavam nas ruas eram regidos por lógicas com-
plexas, contraditórias e antagônicas, indissociáveis e complementares. Morin ensina
que a busca do controle e da ordem, pelos os aediles, as leis edilícias e consuetudiná-
rias, eram parte da mesma lógica diacrônica, que não aceitava respostas simples ou
soluções permanentes. A cultura das cidades se fez e se faz no cotidiano vivido nas
suas ruas, da coexistência indissociável da busca pela ordem com o aparente caos.

A vida cotidiana nas cidades do Império, especialmente em Roma, fez com que os
processos de planejamento, projeto e gestão das cidades avançassem paralelamente,
acompanhando as transformações das sociedades que as habitavam. Curiosamente,
mesmo atingida por inúmeros incêndios, pouco do que o urbanismo romano desen-
volveu em termos de traçado de ruas foi aplicado na capital do Império. Muitas das
cidades mais antigas do planeta preservaram seus traçados mais antigos sem ter
oportunidades de edificar novos bairros com traçados mais regulares ou inovadores.
Atenas, Roma ou Istambul preservam bairros com traçados milenares, anteriores às
propostas hipodâmicas ou vitruvianas. Algumas das cidades construídas com traça-
dos regulares, como Timgad, Priene, Miletus ou Dura-Europos, foram simplesmente
abandonadas. As ruínas desertas permitem que os visitantes, turistas ou estudiosos
observem a permanência dessas estruturas ao percorrer e reconhecer o território
urbano. O professor Francisco Marshall130 conta que, ao percorrer as ruínas da
cidade de Priene, reconhece, nas esquinas ortogonais e nas ruas regulares, as lógicas
espaciais que imediatamente lhe situam no espaço, facilitando seus percursos pela
pavimentação remanescente na encosta da colina.

130 MARSHALL, Francisco. O corpo, os sentidos e as vozes da cidade. Palestra ministrada no Programa de
Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), em 24 out. 2018.

167
Entretanto algumas das áreas urbanas traçadas por urbanistas romanos perma-
necem até hoje habitadas e vivas. Florença (Figura 33), Lucca (Figura 34) e Nápoles
(Figura 35) também guardam algumas quadras com o traçado em grelha, caracterís-
tico das cidades fundadas nos primeiros séculos. Em Turin (Figuras 31 e 32) as ruas
que formam o Quadrilátero Romano preservam o traçado e as dimensões originais do
século, a Via Garibaldi era o Decumanus Maximus da cidade romana que começou na
Porta Decumani, a Porta Palatina marca a posição de um dos cardos, junto das ruínas
do antigo teatro. As primeiras expansões da cidade deram continuidade seguindo o
alinhamento das vias originais e expandindo seu desenho131.

Figura 31 (página seguinte) O Mapa de Turim, de 1800, gravado por John Stockdale, mostra a cidade
quando ainda preservava as muralhas renascentistas. As quadras assinaladas foram traçadas e
implantadas por Augusto no primeiro século. Praticamente não sobraram vestígios das construções
originais, destruídas por incêndios, guerras e bombardeios, no entanto várias ruas preservam até hoje os
alinhamentos originais.

131 HAVERFIELD, 1913.

168
169
170
Figura 32 Imagem do Quadrilátero Romano de Turin. A Via Garibaldi traça o caminho exato do decumanus
da cidade romana que começou na Porta Decumani; mais tarde, foi incorporada ao Castello ou Palazzo
Madama. A Porta Palatina ainda se mostra preservada em um parque perto da catedral como importante
registro histórico.

Figura 33 No centro histórico de Florença, ainda se observa o Quadrilátero Romano, constituído pela
atual Piazza della Repubblica, pelas ruas estreitas de paralelepípedos da cidade medieval e pela cidade
renascentista. As insulae de Florença são do mesmo século e guardam praticamente as mesmas dimensões
das de Turin. O Quadrilátero é delimitado pelas ruas Tornabuoni, a oeste, Porta Rossa, ao sul, Calzaioli, a
leste, e Teatina, ao norte, cobrindo um retângulo de cerca de 280 por 300 metros.

171
172
Figura 34 No centro de Lucca, há uma área retangular de cerca de 640 metros no sentido leste/oeste e 330
metros no sentido norte/sul, dividido em quinze insulae dispostas em três filas. A Via S. Croce coincide com
o traçado do antigo decumanus maximus.

Figura 35 Nápoles era uma importante cidade grega, que no século I a.C. se tornou romana. A cidade de
Neapolis original tinha traçado irregular com cerca de 100 hectares. Três ruas retas corriam paralelas
de leste a oeste, enquanto cerca de vinte travessas corriam perpendicularmente, de norte a sul. Os
quarteirões delimitados por essas ruas eram retângulos estreitos e regulares com cerca de 35 x 180 metros.
O traçado de Nápoles difere dos mencionados: seus quarteirões são estreitos como as insulae da VI Região
de Pompeia (Figura 18).

173
4.2 Persistência dos padrões – Idade Média

Com a queda do Império Romano, o comércio e as rotas comerciais (marítimas e


terrestres) sofreram grandes restrições. Durante a Idade Média, as sociedades se tor-
naram menos urbanas, as cidades se fecharam, tornaram-se menores, mais muradas
e literalmente fechadas. As guerras e as grandes pestes limitaram a circulação de
pessoas, mercadorias e ideias.

As invasões bárbaras, que culminaram com a desestruturação e queda do Império


Romano, nada mais eram do que grandes migrações de povos de variadas origens
para os territórios europeu e mediterrâneo. Esses povos se assentaram, miscigena-
ram e integraram suas heranças. A desestruturação do império, esfacelado em vários
pequenos territórios, determinou a redução do comércio, e com o passar dos séculos,
os moradores das cidades tornaram-se mais homogêneos, racialmente e cultural-
mente menos diversos. Todavia como nas cidades da Antiguidade, as ruas da Idade
Média seguiam como lugares de encontro e convívio entre os diferentes estratos
sociais. A riqueza da nobreza, do comércio e do clero encontrava a pobreza nas ruas.
Tudo o que constrangia, tencionava e incomodava o convívio entre os moradores era
punido e perseguido, como a mendicância, a bebida e o meretrício.

Entre os séculos IX e XI, as invasões vikings, sarracenas e magyares, que desesta-


bilizaram o império, perderam força, permitindo a reorganização da produção e
a retomada do comércio entre as cidades. A servidão substituiu a escravidão e as
características fundamentais do feudalismo se consolidaram132.

A cidade medieval era lugar de moradia do poder, do trabalho, do comércio e da


manufatura, do mesmo modo que as cidades do Império Romano. Não houve ruptura
forte entre os períodos, porém mudanças ocorreram em diferentes aspectos das

132 GREEN, William A. Periodization in European and world. In: Journal of World History. University of
Hawai’i Press, v. 3, n. 1, (Spring, 1992), pp. 13-53.

174
estruturas de poder e produção. A nobreza e a Igreja dominavam a cultura, as socie-
dades, as paisagens e os espaços urbanos. Ainda nessa condição, podia ser observada
grande vitalidade nos espaços urbanos, animados por feiras, cerimônias públicas e
atividades cotidianas que preenchiam com muita vida as ruas e praças. As técnicas
construtivas, tanto das edificações quanto dos sistemas públicos, não demonstram
avanços significativos. Em ambos aspectos ocorreram retrocessos significativos. Nos
países nórdicos, gradualmente, as técnicas de aquecimento das construções, com
lareiras e calefação avançaram, as dimensões das janelas aumentaram e o vidro foi,
aos poucos, barateado e difundido133.

Do ponto de vista urbanístico, não houve avanços importantes no modo de produção


ou organização das cidades. Embora menores, seguiram compactas e densas, em
grande parte devido às limitações impostas pelos muros. Assim, as ruas estreitas
e construções geminadas mantiveram os problemas de ventilação e iluminação
observados nas cidades romanas. O abastecimento de água continuou realizado nos
chafarizes das praças e ruas. Nas cidades do norte da Europa, os banhos públicos
eram comuns em vários bairros, mantendo a tradição romana. Viajantes contam
que podiam encontrar famílias caminhando pelas ruas em direção aos banhos, com
crianças correndo nuas, alegremente brincando pelo caminho. Mumford134 conta:

em Riga, já no século XIII, as casas de banho são mencionadas [...] no século XIV,

havia sete de tais estabelecimentos em Würzburg; e, no fim da Idade Média, havia

onze em Ulm, doze em Nuremberg, quinze em Frankfurt, dezessete em Augsburgo

e vinte e nove em Viena. Frankfurt, aliás tinha vinte e nove proprietários de casas

de banho já em 1387.

133 MUMFORD, 1982. O vidro é introduzido na construção a partir do século XV e vai ganhando escala
em tamanho e produção, permitindo seu barateamento de forma progressiva..

134 MUMFORD, 1982, p. 320.

175
Lojas e oficinas urbanas ficavam abertas
às ruas para os clientes, com a moradia
dos artesãos e os locais de trabalho so-
brepostos. Como poucas pessoas sabiam
ler, era frequente os letreiros e placas
sobre os acessos das lojas mostrarem
modelos gigantes dos trabalhos execu-
tados. Também era comum o comércio
e os artesãos do mesmo segmento se
agruparem por ruas especializadas135. As
ruas de uma cidade medieval seguiam
estreitas, movimentadas e barulhentas,
com sinos, músicos e anúncios feitos aos
berros em público, anunciando serviços
e produtos. Escuras e inseguras, era
comum que à noite, em muitas cidades,
seus portões fossem fechados. Soava
o toque de recolher anunciando as
patrulhas que vigiavam as vias, restrin-
gindo a circulação e reprimindo práticas Figura 36 Pintura sem autoria definida,
proibidas. A vigilância das ruas à noite executada por volta de 1530, retratando o comércio
de tecidos na praça central (Markt) da cidade
passou a ser assumida pelos burgueses, de Den Bosch, Holanda. Feita por encomenda
aqueles que tinham patrimônio, rique- da guilda dos comerciantes de tecidos, mostra
o seu padroeiro, São Francisco, alimentando e
zas e armas para se defender.136 presenteando os pobres. Parte das construções
retratadas, como a loja de manteiga e de ovos, o
poço e o oratório, estão no mesmo lugar até hoje.
Os produtos e as regras do que poderia ou não
135 MUMFORD, 1982.
ser comercializado no Markt variaram ao longo
136 Informações disponíveis em: <http://www. dos séculos, mas até hoje as feiras são realizadas
groetenuitdenbosch.nl/605t.htm>. Acesso em: 12 regularmente, no mesmo lugar136.
nov. 2019.

176
Figura 37 Em 1605 Guy Fawkes e um grupo de católicos ingleses planejaram explodir o parlamento e
assassinar o rei protestante James I, substituindo-o por sua filha católica. Espiões avisaram à corte que o
plano estava em andamento justamente no dia em que a explosão estava programada, 5 de novembro de
1605. Fawkes foi descoberto e preso nos porões do parlamento, prestes a acender o pavio da pólvora. Nos
meses seguintes, foi interrogado e torturado na Torre de Londres até revelar os nomes dos conspiradores.
Condenados por alta traição, em janeiro de 1606, Fawkes e os três colaboradores foram arrastados por
cavalos pelas ruas da cidade, da Torre até o antigo Palácio de Westminster, o edifício que planejaram
destruir. Ele e seus colegas foram enforcados, esquartejados e suas partes queimadas diante da população.
O evento foi tão marcante que um Ato do Parlamento, em 1606, designou que anualmente, no dia 5 de
novembro, os londrinos fossem encorajados a celebrar a salvação do rei. Iniciou-se a tradição, que dura até
hoje, de celebrar a guy fawkes night com fogueiras, queima de bonecos e fogos de artifício nas ruas.

177
Um dado importante na vida das ruas nessas cidades era a religião. Nas igrejas,
importantes espaços de vida pública, verdadeiras praças cobertas, a cidadania era a
própria participação nos ritos religiosos. O cristianismo, originalmente perseguido e
praticado em lugares privados, escondidos, tornou-se uma estrutura ordenadora da
vida pública. As ordens religiosas organizaram muitas das atividades diárias, os hos-
pitais, as escolas e o trabalho. As guildas, que se tornaram estruturas que reuniam,
organizavam e controlavam as várias profissões, começaram como grupos de devoção
religiosa137. As igrejas eram os espaços de reuniões por todos os motivos, desde os
religiosos ao apoio em caso de desastres ou epidemias

Os dias de celebrações religiosas tinham grandes procissões e festivais altamente


coreografados e controlados, muito animados. Não persistiu nenhuma separação
entre o lugar das decisões públicas com os espaços de circulação, como ainda existia
na ágora grega ou nos fóruns romanos. A maioria das praças e largos medievais são
simples alargamentos do sistema viário. Menos formalizados, menos configurados,
acumulavam a função de mercado e lugar de eventos religiosos e civis públicos de
acesso franco (Figura 36).

A Igreja estabelecia as regras para o convívio público e a moral das cidades. As


ruas eram lugar de práticas que ensinavam valores, construíam e organizavam a
compreensão da própria sociedade, tendo as várias ações evidente caráter moral
e educativo. Nelas aconteciam procissões e cerimônias para a glorificação de reis,
heróis, santos em pessoa ou em imagens. Mascates, médicos, artistas, músicos,
atores, malabaristas, adestradores ocupavam as ruas e peregrinavam entre as cidades
fazendo apresentações. Também eram lugar de punições públicas, com pelourinhos,
execuções e procissões humilhantes para traidores, criminosos e prostitutas (Figuras
37 e 38). A humilhação nas ruas era parte importante das punições, pois em algumas
cidades ainda não existia a ideia de prisão como modo punição. As punições eram

137 MUMFORD, 1982.

178
físicas, com mutilações ou espancamentos e, em casos mais brandos, constrangedo-
ras e humilhantes, forçando os condenados a usar máscaras grotescas, expondo-os a
constrangimentos.

O século XIV foi marcado pela crise econômica e a fome, consequências de mudanças
climáticas seguidas pela peste que dizimou um terço da população do continente,
matando cerca de 35 milhões de pessoas na Europa. As cidades foram especialmente
atingidas devido a suas condições de lotação. As medievais, as que não herdaram
o traçado geométrico hipodâmico, tão caro aos gregos e romanos, tiveram em sua
grande maioria o traçado mais orgânico, decorrente do crescimento gradual, lento e
sem controle. Muitas cidades nasceram de simples cruzamentos de caminhos, como
vias que vão se tornando habitadas, tecendo a trama urbana.

Figura 38 Cartões-postais mostrando punições públicas das mulheres briguentas, do viciado em jogos,
bebida, luxuria, e de um homem de letras.

179
A Idade Média não é um período de fácil delimitação. Para estabelecer o seu início,
praticamente todos os historiadores adotam a queda de Roma, no século V. Contudo
o seu fim não tem uma data universalmente aceita, justamente por não apresentar
ruptura, mas a transformação gradual de sistemas econômicos, políticos e sociais.
Aqui não cabe analisar as teorias que buscam estabelecer as mudanças e datas mais
significativas que marcam o fim da Idade Média e a entrada na modernidade. Como
visto, a queda de Roma não gerou rupturas radicais na organização das cidades ou
na vida pública urbana nas ruas. Do mesmo modo, as cidades medievais vão recu-
perando paulatinamente as atividades comerciais e produtivas conforme os estados
conseguem restabelecer o domínio dos territórios, fronteiras, estradas e, consequen-
temente, as rotas comerciais.

Parte dos historiadores aponta que o feudalismo, já decadente, terá seu fenecimento
entre os séculos XIV e XVII, enquanto paralelamente, desde o século XVI, instituições
e estruturas de um protocapitalismo, indústrias, bancos e mercados começam a se
organizar. Isso mostra que mudanças importantes estavam em andamento. A popu-
lação europeia apresentou extraordinário crescimento, de 80%, entre 1750 e 1850,
atingindo 206 milhões no mesmo período em que, segundo estimativas, a população
mundial atingiu o primeiro bilhão138.

Os acontecimentos mais importantes para o fortalecimento do comércio mundial


foram as navegações empreendidas por portugueses e espanhóis nos séculos XV e
XVI, que estabeleceram as rotas marítimas para o Oriente e abriram uma frente de
negócios, exploração e produção de novas riquezas com a descoberta das Américas.
O crescimento do comércio reorganizou e fortaleceu as cadeias produtivas, e a

138 GREEN, 1982. O autor comenta que a história da humanidade poderia ser dividida em três
partes: das eras mais remotas até o ano 500, a Antiguidade; de 500 até 1500, a Idade Média; a partir dos
descobrimentos até os dias atuais, a Era Moderna.

180
circulação de produtos intensificou as trocas de moedas, de grupos étnicos e cultu-
ras. O enriquecimento não se deu para todos; iniciou-se a formação das burguesias
urbanas, que logo disputaram com a nobreza e a Igreja o poder político e a possibili-
dade de estabelecer regras. A filosofia e as ciências avançaram em todos os campos,
com o Iluminismo, a laicização da ciência e da filosofia.

181
4.3 Ampliação dos padrões – início da Era Moderna

As mudanças dos habitus e das praxis de cada um dos grupos que habitavam as cida-
des aconteceram de modo gradual. O lucro e a ostentação de riquezas, tão condena-
dos pelo catolicismo, eram aceitos pelas igrejas protestantes. As burguesias italiana,
francesa, saxã e holandesa adotam habitus distintos, mas as suas praxis as enrique-
cem ao longo dos séculos seguintes. Inicialmente, adotarão vestimentas e práticas
das cortes e dos nobres, até desenvolverem culturas próprias. Aos poucos, parte das
classes trabalhadoras será transformada em operários; surgirão as classes médias, e
as burguesias comerciais e financeiras ganharão poder econômico e político.

As moradias das burguesias urbanas começarão a transformar as cidades medievais:


ruas novas serão traçadas e as existentes mais bem tratadas e desenhadas. Projetar
as cidades volta a ser uma preocupação, e no lento despertar das cidades após a Idade
Média, desenhar cidades era desenhar ruas, retas e regulares. Mumford diz sobre o
que Alberti pensava, e defendia, sobre as ruas: “[...] tornar-se-ão muito mais nobres
se as portas forem construídas todas segundo o mesmo modelo, e as casas de cada
lado ficarem em linha uniforme, não sendo qualquer delas mais alta que as outras”139.
A perspectiva regular era a materialização da ideia renascentista de cidade, o cenário
adequado para os palácios que a burguesia começava a construir. Em Florença a
maioria dos palácios renascentistas foi construída nas ruas regulares e estreitas das
quadras romanas (Figura 28). Em Gênova as famílias mais poderosas se uniram no
esforço de construir a Strada Nuova (Figura 39), a Via Giuseppe Garibaldi, que abria
um vetor de expansão da cidade ao norte, permitindo que aqueles que tinham fortu-
nas acumuladas com as navegações construíssem suas moradias. Essa via sinaliza,
materializa um dos mais antigos registros da busca pela valorização recíproca dos
investimentos. Ter um palácio nessa via significava ter poder político e econômico,
prestígio reciprocamente acordado pela nobre vizinhança.

139 MUMFORD, 1982, p. 379.

182
Figura 39 Vista da Via Giuseppe Garibaldi,
com os palácios das famílias Spinola, Grimaldi,
Pallavicini e Dori, construídos entre 1558 e 1583.
Em 2006 a via foi inscrita como Patrimônio
Mundial da Unesco. As famílias que enriqueceram
com o comércio marítimo e o financiamento
das navegações, tinham grande importância
e proximidade com o governo na República
Genovesa. Muitos desses palácios eram
relacionados no Rolli degli alloggoverni pubblici
di Genova, a lista de casas que deveriam abrigar
visitantes ilustres caso sorteadas. Por isso pode-se
reconhecer que não só as construções, com seus
salões, galerias, jardins em terraços, mas a própria
rua era parte do cartão de visitas do que a cidade
tinha de melhor. Observa-se que a largura e o feitio
da rua em nada diferem das ruas de Roma antiga; é
tão estreita que nem acomodava calçadas.

183
Giorgio Vasari, o arquiteto mais influente de Florença, teve oportunidade de dese-
nhar uma rua mais generosa e regular, como Alberti preconizava, a Galeria Uffizi
(Figura 40). O projeto foi realizado para Cosimo de Médici e acomoda uma série de
galerias para abrigar funções administrativas140 e expor a coleção de arte da família
mais poderosa da Itália. Sua construção começa em 1560 e termina em 1581, por
outros arquitetos. O longo pátio (cortile) com arcos nas laterais era quase como os
pátios monásticos, cercados por galerias cobertas e abobadadas, todavia articula a
Piazza della Signoria com a via que corre paralela ao Rio Arno, formando o percurso
até a Ponte Vecchio. Sua perspectiva impregnou o imaginário renascentista, criando o
paradigma da rua renascentista.

A Ponte Vecchio ilustra o poder da ideia de rua como elemento urbano. A ponte nada
mais é do que uma rua atravessando o Rio Arno para acessar a entrada sul da cidade
de Florença, servindo à zona rural. Nas cidades medievais, as pontes eram vias ideais
para acomodar o comércio que gerasse mais resíduos e lixo, tanto por ser caminho
movimentado entre as margens quanto por ter o rio para despejar o que incomodava.
Desde sua reconstrução, após as enchentes do século XIV, a Ponte Vecchio já era
ocupada por açougues.

No mesmo ponto onde hoje se situa a Ponte de Londres (Figura 41), sobre o Rio
Tâmisa, foram construídas, desde a ocupação romana, várias e sucessivas pontes de
madeira, ligando Londres ao sul da Inglaterra. A forte correnteza, a profundidade e
a largura do rio contribuem para que constitua importante barreira para a mobili-
dade do território, o que explica, em parte, o papel que Londres assumiu nas rotas e
estradas do território inglês. A construção da primeira ponte de pedra se estendeu
entre 1175 e 1209, gerando custos tão altos que, na sua conclusão, o Rei João construiu
a Igreja dedicada a Saint Thomas e loteou a ponte. No século XIV, a ponte já tinha 138
lojas, portões fortificados nas extremidades, uma ponte levadiça no vão central, para

140 Estes escritórios acomodariam magistrados florentinos, daí o nome uffizi, oficinas ou escritórios.

184
Figura 40 Esta gravura de Giuseppe Zocchi, do século XVIII, mostra a Galleria degli Uffizi a partir da
loggia que faz a ligação com o Rio Arno. Existe algo de idealizado na cena que ao longe avista as esculturas
na Piazza de La Signoria, diante do Palazzo Vecchio com a cúpula da catedral ao fundo. Figuras trajadas
elegantemente caminham pelo espaço monumental, admirando as vistas, enquanto o mendigo rasteja pelo
chão e crianças pobres brincam com um cachorro. À direita, duas mulheres pobres conversam sentadas
no chão (uma delas amamentando), recostadas no pedestal das colunas. Logo atrás um homem urina no
pedestal. O gravurista parece querer mostrar que as ruas são espaço de simultaneidade e contradições.

185
permitir a passagem de embarcações maiores, e banheiros públicos que lançavam de-
jetos diretamente no rio. No século XVI, já contavam com cerca de 200 edifícios sobre
a ponte, alguns com até sete pavimentos! A ocupação se tornou tão densa que os 8
metros originais foram reduzidos a um túnel com não mais do que 3,6 metros de lar-
gura. No século XVIII, em dias movimentados, a travessia podia levar até uma hora.
O prefeito decretou que todas as carroças e carruagens que saíssem de Southwark
para a cidade deveriam manter-se, por toda a travessia, do lado oeste da ponte; as que
saíssem da cidade para o sul, no lado leste. Alguns acreditam que vem desse decreto
a mão inglesa adotada até hoje. A necessidade de resolver o congestionamento
permanente sobre ela, determinou que fosse decretado o London Bridge Act, que deu
para a City Corporation os meios para comprar e demolir todas as construções sobre a
ponte. Depois de mais de 550 anos, os últimos moradores foram removidos, e a pista
da ponte ampliada para 14 metros. Em 1831, depois da inauguração da substituta, foi
demolida.

O mapa de Paris de Turgot é uma planta em perspectiva axonométrica representando


a cidade em 1736. A Ile de La Cité, em Paris, ainda apresentava quatro pontes tomadas
por edificações nos mesmos moldes da Ponte Vecchio até o século XVII (Figuras 42 e
43). Essas travessias eram tão antigas e importantes quanto as da Ponte de Londres,
e do mesmo modo, substituíram em pedra as pontes de madeira que outrora serviam
às estradas e acessos da cidade.

As transformações sociais e políticas ocorridas nos séculos XVIII e XIX decorrem da


aceleração do capitalismo rumo à Revolução Industrial. Então, do mesmo modo, as
pontes foram transformadas em ruas comerciais densamente utilizadas e edificadas.
Esse processo de transformação de antigas rotas e estradas em ruas era frequente
nas cidades europeias em crescimento. Progressivamente, a cidade passa a ser o
grande negócio, e sua expansão, além de necessidade, é também fonte de grandes
lucros imobiliários. Os Estados, os bancos, os donos das terras e as burguesias

186
moldarão as cidades, transformando-as em extensas sucessões de bairros com dife-
rentes condições e funções. O Estado e os capitais comercial, financeiro e industrial
assumem papéis distintos na expansão urbana. O amadurecimento de tais processos
e a definição desses papéis ocorrerão ao longo dos séculos.

Figura 41 Esta imagem da Ponte de Londres (1599) consta no livro Chronicles of London Bridge, escrito por
Richard Thomson em 1839, reunindo desenhos e documentos. Por mais de 600 anos, foi a única ponte a
cruzar o Rio Tamisa em Londres, daí ter sido uma rua muito movimentada e comercial.

187
Figura 42 Este corte da Pont Nôtre Dame, produzido em 1747 por Pierre-Louis Moreau, arquiteto da cidade
de Paris, permite compreender como a ponte era de fato: uma rua que atravessava o rio. Nela, todas as
casas foram construídas com modelo semelhante, com lojas no térreo, aproveitando o movimento intenso
da travessia e moradias e outros usos nos pavimentos superiores.

188
Figura 43 A Planta de Turgot, de 1736, mostra a Ile de La Cité e as três ruas em pontes. A mais larga era
a Pont au Change, que já fazia a ligação entre a ilha e o Chatelet, na época um pequeno castelo. Seguindo
nesse mesmo eixo, cruza-se a Pont Saint-Michel. Ambas seguem nas mesmas posições, servindo de ligação
no sentido norte-sul, articulando importantes vias da cidade. A Pont Nôtre Dame ligava-se à Pont des Coeurs,
nessa época chamada Petit Pont, fechada pelo Petit Chatelet, um dos portões fortificados da cidade. Esse
eixo de travessia do Rio Sena era o mais antigo e importante de Paris, desde a fundação da cidade. Por isso,
apresenta a porta fortificada em pleno século XVIII. A estrutura encostada à Pont Nôtre Dame era a bomba
de retirada de água do Sena para o abastecimento da cidade.

189
190
Figura 44 (página anterior) O mapa de Turgot mostra a cidade em seu momento de transformação,
com algumas das características da cidade medieval, elementos que marcam a cidade dos iluministas
e já apresentando as características que marcarão a cidade industrial. Em 1750 tinha cerca de 560 mil
habitantes. Nos anos seguintes sofrerá o impacto da Revolução Francesa e outras guerras, mas um século
depois, em 1850, terá praticamente o dobro da população, 1.050.000 milhão de habitantes. Tal crescimento
transformará a paisagem dos arredores da cidade: terras agrícolas sendo loteadas, residências e palácios
rurais ganhando novos vizinhos e as estradas sendo transformadas em ruas. Aqui vemos a Rue Du
Faubourg Saint Antoine ganhando as feições atuais: uma rua comercial e central para o denso e diverso 11o
Arrondissement, o mais denso de Paris nos dias de hoje.

Figura 45 O mesmo mapa mostra o centro da cidade de Paris antes das intervenções de Haussmann,
realizadas um século depois deste mapa. Por uma questão de representação, Turgot desenhou as ruas
um tanto mais largas do que eram de fato. A Rue Saint Martin, tão larga no desenho, não tem mais que 12
metros de largura, e suas travessas têm cerca de 5 metros de largura. Algumas das menores quadras desse
desenho foram derrubadas posteriormente. Hoje é o endereço do Centro Cultural Pompidou.

191
Figura 46 O mapa de Turgot mostra o momento em que os muros de Carlos V, que cercavam Paris desde
1383, foram derrubados. A cidade ainda não tinha ultrapassado plenamente seus limites, mas vários
faubourgs, como o de Saint Antoine, já prosperavam em áreas externas aos muros. A derrubada permitiu a
construção de vários boulevards que formaram o anel viário de Paris. Essas vias mais largas e arborizadas
entraram no repertório coletivo, nesse momento, como um novo tipo de via, e a arborização viária aparece
pela primeira vez.

192
As ruas estreitas das cidades, que cresciam rapidamente, repetirão as características
das cidades da Antiguidade, especialmente de Roma. As ruas de Paris são movimen-
tadas e potentes (Figuras 44, 45 e 46); as transformações de hábitos e ideias são tão
incontroláveis que Luis XIV já decidira transferir-se para Versalhes em 1671. Paris
e Londres se tornarão as maiores capitais da Europa e as duas maiores cidades do
mundo no fim do século XVIII, ultrapassando Pequim.

O tamanho das cidades, o enriquecimento das burguesias com o aumento do comér-


cio entre os países, a exploração das Américas e da África levarão à decadência as
estruturas de poder do Antigo Regime em todas as nações europeias. As cidades mais
populosas e densas terão o fortalecimento tanto da vida pública quanto da privada,
devido à crescente diferenciação dos dois universos. Conforme as ruas se tornarem
mais lotadas e movimentadas, as melhores casas urbanas avançarão rapidamente em
isolamento, tecnologia e privacidade. Com a extensão das cidades, o deslocamento
a pé já não resolve todos os deslocamentos. Em Paris, no século XVII, foram criadas
as primeiras charretes, que podiam ser alugadas com cocheiros (o conjunto era
chamado de fiacre), funcionando como táxis modernos. Para organizar esse serviço,
o parlamento da cidade, em 1666, estabeleceu os valores e definiu os 33 pontos onde
os fiacres poderiam ser contratados. Em 1804 ainda eram 45 pontos; em 1818, 900; em
1900, cerca de 2.600 para atender mais de dez mil fiacres.

William Hogarth (1697/1764), um dos representantes do Iluminismo britânico141,


pintor, gravador, cartunista e crítico da sociedade inglesa do século XVIII, fala em
seus trabalhos sobre o seu tempo e o da cidade que conheceu caminhando pelas
ruas diariamente. Foi o primeiro artista inglês a tornar-se popular, reproduzido e
conhecido no seu país e em toda a Europa. Hogarth era maçom, livre pensador, como
alguns escritores do seu tempo, interessava-se em refletir criticamente sobre a moral
e a ética, lia e conhecia os escritos de Horácio e Juvenal. A obra The four times of the

141 BROWN, G. Baldwin. William Hogarth. London: The Walter Scott Publishing Co., 1905.

193
day (Figura 47) mostra quatro momentos da rotina diária da cidade, entretanto não
forma narrativa linear. Por isso, foram selecionadas apenas três dessas imagens, por
representarem situações que ocorrem nas ruas da cidade. Retratam eventos banais,
cotidianos e expõem de modo irônico e bem-humorado as contradições da sociedade
inglesa.

A primeira gravura, Morning, exibe uma senhora chegando à Igreja de São Paulo142
às 7h da manhã, passando diante do Tom King’s Coffee House, local famoso à época.
Escoltada pelo seu pajem, parece a única que não se incomoda com o frio que aflige os
demais personagens da cena. O que a incomoda, o que a faz fixar o olhar adiante, sem
desviá-lo, são a sujeira e a pedinte que se dirige a ela, a luxúria e sensualidade dos
rapazes e moças, a briga que encerra as atividades noturnas da Coffee House. Atrás
da cena principal, casas nobres com telhados cobertos de neve, gradis altos e o portão
imponente assistem à rua tomada por uma agitada feira, com mercadorias expostas
no chão, um charlatão carregando cartaz vende remédio e crianças, a caminho da
escola, paradas assistindo ao movimento143. Essa imagem mostra que usos permanen-
tes, como o bar, ou intermitentes, como as feiras, podiam ocorrer mesmo nos bairros
nobres da cidade, que usos laicos e sacros podiam estar muito próximos e a cidade
não mais dormia à noite como na Idade Média. As jovens e os rapazes encerravam
pela manhã as animadas atividades que atravessavam a noite, enquanto o café tentava
fechar suas portas.

A segunda gravura, Noon, mostra huguenotes144 saindo da igreja francesa de Saint


Giles às 12h30. A família que vai à frente se veste com requinte, com roupas modernas

142 A cena ocorre no lado oeste do Covent Garden. O que o situa tão facilmente é o pórtico palladiano da
Igreja de São Paulo de Inigo Jones.

143 SHESGREEN, Sean. Hogarth and the times-of-the-day tradition. Londres: Cornell University Press,
1983.

144 Huguenotes eram protestantes franceses, de maioria Calvinista, que sofreram forte perseguição
religiosa nos séculos XVI e XVII. Muitos foram mortos, forçados à conversão ou imigraram para países
protestantes, principalmente para a Holanda, Inglaterra e Irlanda.
194
Figura 47 The four times of the day, obra gravada
em 1738. As três gravuras fazem parte do conjunto
de quatro realizadas por William Hogarth,
retratando situações rotineiras nas ruas de
Londres em três horários diferentes. Imagens
falando da passagem dos dias eram comuns e
costumavam retratar a lida diária no campo. O
trabalho de Hogarth inova ao mostrar as mazelas e
contradições da vida urbana do século XVIII.

195
para a época. O filho se veste exatamente como seu pai, imitando seus modos. Os
huguenotes eram franceses recém-migrados para Londres, estrangeiros que traba-
lhavam no comércio de seda. Do outro lado da rua, o cortiço mostra a mistura racial:
o homem preto acaricia os seios da mulher, que, distraída, derrama o conteúdo da
travessa. Diante do casal, o menino chora por ter o prato que transportava quebrado,
enquanto a menina de rua come avidamente, no chão, o que foi derramado. A mulher
jogando comida pela janela pode representar o desperdício e a falta de solidariedade
entre as pessoas. O gato morto, apedrejado no chão, mostra a crueldade e insensi-
bilidade das pessoas na rua. Destaca-se que as pessoas de ambos grupos (em cada
um dos lados da rua) não se olham: dividem a rua, mas parecem não se enxergar.
Grupos de anônimos e estranhos entre si, de classes diferentes, utilizando simulta-
neamente os espaços das ruas, já eram comuns na cidade de Londres no século XVIII.
Vestimentas, línguas e hábitos os distinguem, mas um grupo não parece estar atento
ou incomodado com a presença do outro.

A última gravura da série, Night, mostra o caos que se estabelecia à noite na Charing
Cross Road, no trecho atualmente conhecido como Whitehall, identificado pela
estátua equestre e os vários pubs. Como o nome diz, essa via estreita era originalmen-
te uma estrada, que fazia a ligação norte-sul a partir do Centro de Londres. Já era
tão congestionada que, em 1877, o Parlamento bancou a demolição e reconstrução
de muitos edifícios, incluindo alguns dos piores cortiços da cidade, para melhorar
o fluxo de tráfego no centro de Londres. É essa via congestionada que a gravura de
Hogarth representa. Ao fundo vemos uma carroça carregada de móveis que pode
representar inquilinos que fogem à noite para não ter que pagar aluguéis atrasados.
A via tinha muitos bares, bordéis e hospedagens baratas por ser lugar frequentado
por cocheiros e trabalhadores braçais, mas também era famosa pelos acidentes e
atropelamentos. A imagem mostra um acidente com a Salisbury Flying Coach, uma
das linhas regulares de carruagens que passava pela via. Parece ter sido provocado
pelas crianças brincando com fogo e com fogos de artifício, uma delas, no canto

196
inferior esquerdo, assopra uma tocha para perturbar a família de moradores de rua
que dormem, apesar de toda a confusão, sob a janela do cirurgião. Indiferente à cena,
o cirurgião-barbeiro145 trabalha com a janela aberta para a rua, babando enquanto
fere e faz sangrar o cliente146. Atravessando essa baderna, caminham dois maçons
bêbados, iluminando o caminho com a lanterna, sem perceberem que estão prestes a
ser atingidos pelo conteúdo do penico despejado de uma das janelas. Com todos esses
eventos, observa-se que os andares superiores parecem tranquilos, poucas janelas
mostram luzes acesas.

Esse conjunto de trabalhos mostra características fundamentais do cotidiano das


ruas de Londres no século XVIII. Grande parte dessas características é preciosa para
compreender o papel das ruas na construção da vida pública moderna. No início do
século XVIII, as burguesias, tanto Londres como Paris, não se preocupam mais em
esconder suas origens sociais, em emular o comportamento ou o vestuário dos no-
bres147, pois as cidades passam a abrigar maior diversidade de grupos sociais, convi-
vendo e dividindo espaços, especialmente os de mobilidade, as ruas. Por isso, o termo
adotado para descrever o comportamento coerente com tais situações é “cosmopo-
lita”, aquele que se movimenta sem denotar dificuldade ou incômodo entre grupos e
situações diversas, que não lhe são familiares. Demonstrar espanto ou desconforto
passa a denotar provincianismo, já que as duas capitais impõem o convívio aos seus
habitantes, exigindo atitudes emocionalmente distantes, moldando a vida social.

145 Cirurgião-barbeiro era profissão comum na Europa durante a Idade Média. As cirurgias raramente
eram conduzidas por médicos, mas sim por barbeiros, que, por trabalharem diariamente com lâminas,
dominavam os instrumentos e as habilidades indispensáveis para a realização de inúmeras tarefas, desde
cortar cabelos até amputar membros. Mais informações em: https://en.wikipedia.org/wiki/Barber_
surgeon

146 SHESGREEN, 1983. Os pequenos potes junto ao peitoril da janela guardam o sangue dos pacientes do
dia.

147 SENNET, Richard, 1988, p. 31

197
A vida das ruas é o lugar da ostentação das riquezas e do constrangimento com a
pobreza. É o lugar da simultaneidade de eventos, de circulação e permanência, é
o lugar do passeio e do trabalho. Conforme as sociedades urbanas se tornam mais
complexas e ricas, as contradições e conflitos se materializarão no cotidiano das
ruas. Transformando tanto a ville quanto a cité, dialeticamente.

As ruas eram espaços para eventos simultâneos, para a circulação de muitas pessoas
(Figura 49) em variados meios (cavalos, carroças, charretes, a pé), enquanto tantas
outras atividades ocorriam. Como em Roma, essas cidades tornaram-se tão popu-
losas, densas e vastas que os deslocamentos se alongaram, com maior número de
pessoas percorrendo diariamente grandes distâncias.

Ao longo dos deslocamentos, encontros e necessidades surgem. O comércio e o ser-


viço dominam os térreos das construções, as vitrines exibem produtos, os letreiros
publicizam os serviços cobrindo as fachadas. Além do comércio e serviços regulares,
a população mais pobre percorre as ruas e toma suas calçadas (Figura 50), buscando
tirar sua sobrevivência diária como ambulantes: vendiam água, pão, vinho, cha-
péus, adereços, qualquer coisa que pudesse ser comprada. Prestadores de serviços
oferecem limpeza de chaminés, de sapatos, extermínio de ratos, corte de cabelo ou
amolação de facas. Parte dessas atividades é anunciada com matracas, sinos, berros,
cartazes ou roupas chamativas. Prostitutas, mendigos, trambiqueiros, malandros e
delinquentes são vigiados e perseguidos pela polícia.

As profissões e ofícios praticados nas ruas (Figura 48) são a contrapartida à regu-
lamentação das profissões reservadas para os jovens das classes mais abastadas.
Nesse período, ofícios antes de acesso mais informal, como advogados, contadores
e cirurgiões, passam a exigir cursos universitários. Os antigos meios de formação,
como práticos e aprendizes, serão gradualmente formalizados e institucionalizados
nos moldes das guildas da Idade Média.

198
Figura 48 O artista francês Edmé Bouchardon (século XVIII) é mais conhecido como escultor, mas, como
morador de Paris, observava as atividades que ocorriam nas ruas que percorria. Portanto não surpreende
que represente os trabalhadores como esculturas, sem contexto, fora do seu lugar, a rua. Contudo observa
atentamente os adereços, tipos e gestos. O amolador de facas ainda percorre algumas ruas das cidades
do mundo. Seu equipamento, com o tempo, se tornou mais leve, ganhou rodas e eficiência. O mascate
que vende tesouras, pentes e óculos de leitura ainda ontem estava na porta do metrô do Butantã. O
vendedor de bilhetes de loteria ainda caminha de bar em bar, vendendo a sorte para os que não têm. O de
café encontra um lugar para colocar a cafeteira, que deveria estar quente, não podendo carregá-la. Deve
escolher o lugar mais movimentado, vender mais nos dias e horas frias, daí estar tão agasalhado. A velha
vendedora de aguardente carrega a pesada cesta com garrafas e jarros pelas ruas, e precisa se sentar. A de
maçãs é jovem e já devia ter vendido a maior parte da mercadoria quando foi desenhada. A bandeja que
carrega está leve, pois nem precisa usar as mãos para segurá-la.

199
200
Figura 49 (página anterior) Thomas Rowlandson (1756-1827), desenhista e caricaturista inglês, morava
em Londres e viajou várias vezes à Paris, conhecendo bem a vida urbana dessas cidades. Ilustrava jornais
da época, frequentava bares, jogava. Entre os séculos XVIII e XIX, Londres crescia aceleradamente,
tornando-se a maior cidade do mundo. Os congestionamentos passaram a fazer parte da rotina dos
habitantes. Rowlandson desenhou, em 1807, a cena patética do tráfego da cidade, com calçadas e ruas
caóticas tomadas de pessoas, novas edificações em construção, cocheiros irritados disputando os espaços
das vias. Na segunda imagem, os passageiros disputam lugares nas carruagens. O deslocamento será cada
vez mais importante.

Figura 50 A imagem de George Cruikshank (1792-1878), publicada em 1818, se assemelha em vários


aspectos com a de Thomas Rowlandson. Mostra calçadas tomadas por pedestres, comércio ambulante,
pessoas carregando pacotes, cargas e mercadorias, enquanto uma carruagem excessivamente lotada e
carregada atropela pedestres e quase tomba sobre os passantes.

201
As regras de construção aos poucos tornam-se mais importantes. Doenças, incêndios
e desmoronamentos impõem maior controle das construções, vias e atividades que
ocorrem nas cidades. A legislação que controla todos os aspectos da vida urbana
avança junto com os aparatos institucionais de fiscalização e policiamento.

O tratamento das ruas acompanhará as transformações em andamento. Desde suas


dimensões, que demandam larguras maiores, traçados mais retilíneos e contínuos,
iluminação pública, pavimentação e drenagem mais cuidadas. Nos séculos entre o
fim da Idade Média e a Revolução Francesa, Roma, Paris e Londres investirão para
que suas ruas possam acomodar a nova vida pública.

Como na Antiguidade, a maioria das ruas de Roma durante o Renascimento, nos sé-
culos XV e XVI, ainda não era pavimentada. As várias imagens disponíveis coincidem
no fato de que entre as construções existia apenas o espaço da rua com um único tipo
de pavimento, que parece ser de terra batida ou algum tipo de macadame.

As três gravuras a seguir ilustram o livro Delle Magnificenze Di Roma Antica e


Moderna, de Giuseppe Vasi, publicado em 1747148. Foram selecionadas as imagens
que retratam as ruas de Roma mais monumentais e as ordinárias. Praticamente não
existem calçadas e iluminação pública. O desenhista não é muito fiel à proporção das
ruas, quase sempre aparecem mais largas do que são, certamente com o objetivo de
permitir melhor visualização das construções.

A primeira (Figura 51) mostra a Piazza di San Marco, uma das vias mais largas da cida-
de, cercada de palácios importantes ainda existentes. Há um comerciante sentando

148 As visões de Vasi sobre Roma se dividem em dez livros intitulados Delle Magnificenze Di Roma Antica
e Moderna. Reunidos em três volumes publicados entre 1747 e 1761, tornaram-se populares fora da Itália na
segunda metade do século XVIII. As 30 gravuras são de autoria de Vasi, os textos que as acompanham com
informações sobre os monumentos e suas histórias foram escritos por Vasi e Giuseppe Bianchini. Vasi se
apresenta como “pintor, gravador, arquiteto e pastor das Arcádias” ou membro da Accademia degli Arcadi.
Disponível em: <https://www.davidrumsey.com/>. Acesso em: 21 nov. 2019.

202
Figura 51 Gravura do livro Delle
Magnificenze Di Roma Antica e Moderna,
de Giuseppe Vasi, publicado em 1747.
Mostra a Piazza di San Marco, com o
Palazzo di residenza Dell’Ambasciatore
della Serenissima Republica Di Venezia na
esquina com a Via Del Plebiscito, olhando
na direção oeste, rumo ao Rio Tibre.

Figura 52 Gravura exibindo a Piazza


della Madonna dei Monti, vendo a Via Dei
Serpenti na direção norte, rumo ao Palazzo
Del Quirinale.

Figura 53 A famosa Piazza delle Quattro


Fontane, que nada mais é do que o
cruzamento da Via del Quirinale com
a Via delle Quattro Fontane. O desenho
mostra essa via olhando na direção norte,
rumo à Basilica Papale di Santa Maria
Maggiore, visível ao longe. Ficam evidentes
as distorções na dimensão das vias,
alteradas para permitir a visualização dos
monumentos. A Via delle Quattro Fontane
tem largura regular, porém a esquina
foi deslocada no desenho para permitir
visualizar a fachada da belíssima Chiesa
di San Carlo alle Quattro Fontane, de
Francesco Borromini, à direita.
enquanto alguns potenciais compradores conversam diante da mercadoria. A grande
edificação à esquerda é identificada como o Palazzo di residenza Dell’Ambasciatore
della Serenissima Republica Di Venezia, atual Museu Nacional do Palácio Veneza. Essa
construção, na esquina com a Via Del Plebiscito, com 20 metros de largura, era uma
das mais largas de cidade. Ainda assim, pesados balizadores protegiam sua fachada
e os pedestres que caminhassem junto a ela. A drenagem da via era central, do lado
oposto ao palácio. Mesmo com o Palazzo Altieri, o Palazzo Pamfili e o Palazzo d’Aste,
não há qualquer passeio. Observa-se que nas esquinas do Vicolo Doria, o estreitíssimo
beco que separa os dois Palazzi, há pesados balizadores para proteger as construções.
Entre as duas portas do Palazzo di Venezia, o desenho mostra uma fileira com catorze
cavalos enfileirados, como que estacionados.

A segunda gravura (Figura 52) mostra a Piazza della Madonna dei Monti, olhando a
Via Dei Serpenti. Essa via e praticamente todas as construções ainda se encontram
no mesmo lugar. Novamente, o desenho não é fiel à largura da via, que na realidade
possui cerca de 10 metros junto à esquina e vai alargando, como o desenho mostra,
até atingir 14 metros no fim da primeira quadra. Novamente, não se vê qualquer
calçada ou passeio na Via Dei Serpenti, mesmo quando observamos o comerciante na
esquina mostrando seus produtos (talvez flores) para os clientes. Contudo, aos pés da
lateral da Chiesa di S. Maria ai Monti, há uma pequena calçada sem continuidade, nem
mesmo quando chega à esquina da fachada que tem a entrada da igreja. Fica claro que
a calçada não tem a função de oferecer percursos secos e seguros para os pedestres.
Nem as mulheres que entram na Chiesa dei Santi Sergio e Bacco têm algum resguardo
à porta. Os 49 pedestres caminham no centro dos espaços, sem preocupação.

A terceira imagem (Figura 53) mostra um dos cruzamentos mais célebres de Roma:
a Piazza delle Quattro Fontane com a Via del Quirinale. Ambas têm largura semelhan-
te: a primeira, 10,50 metros; a segunda, 9,50. Nas quatro esquinas, existem fontes
monumentais e históricas, as Quattro Fontane, executadas no fim do século XVI

204
por encomenda do Papa Sisto V. Junto a uma das fontes fica a Igreja de San Carlo
alle Quattro Fontane, de Francesco Borromini, uma das obras mais importantes do
Barroco. O desenho, mais uma vez, exagera a largura das vias, fazendo o cruzamento
parecer muito maior do que é. A Piazza já era um ponto conhecido da cidade quando
o desenho foi feito. As carruagens parecem estar paradas para que os passageiros
possam apreciar as fontes. A tranquilidade da cena em nada se assemelha às hordas
de turistas que nos dias atuais tentam observá-las, aflitos por não ter onde parar, pois
em nenhuma das esquinas existem calçadas. O desenho mostra que há séculos exis-
tem pesados balizadores para proteger apenas as fontes, e não quem queira mirá-las.

As ruas de Roma eram enlameadas e mal drenadas, e os pedestres sofriam com


a água nos dias úmidos e com a poeira nos dias secos. Todas as imagens da época
apresentam os pedestres vestindo casacos e capas para proteger as roupas e botas
altas, necessárias para enfrentar o piso irregular.

Para ter ideia de como eram as ruas de Roma nos séculos XVI e XVII, é importante
compreender que se tratava de uma cidade teocrática, com grande contraste social
e instabilidade política. As cidades da Itália travaram muitas guerras entre si, sendo
disputadas por espanhóis, franceses e alemães. O continente, tomado por guerras
e epidemias, levava, como peregrinos, nobres, artistas, comerciantes, soldados,
miseráveis e mendigos de toda a Europa à cidade sede do catolicismo, por motivações
religiosas ou políticas. Além disso, com a reabertura das rotas de navegação, o oriente
e o norte da África voltam a desembarcar na península italiana comerciantes de todo
o Mediterrâneo.

Ao longo desses séculos, a cidade ainda era marcada por ruínas e lugares de peregri-
nação entre palácios das autoridades eclesiásticas. Segundo Rudolph Bell149, o que

149 Segundo William Thomas, um inglês que visitou a cidade no século XVI, Roma tinha cerca de 40
mil prostitutas. Bell (2013) pondera que tal dado é pouco crível, pois nessa época a cidade não tinha mais
de 100 mil habitantes. BELL, Rudolph M. Street life in Renaissance Rome: A brief history with documents.
Boston: Bedford St. Martin’s, 2013.
205
mais surpreendia os peregrinos eram as ruas tomadas por cortesãs e meretrizes.
O contraste entre os andrajos dos peregrinos e mendigos com os nobres e cortesãs
chamou atenção de vários artistas que percorreram essas ruas. Duas coleções dispo-
níveis para consulta no Rijks Museum de Amsterdam, a de Jacques Callot (Figura 56)
e a de Annibale Carracci (Figuras 54 e 55), permitem ver os personagens que percor-
riam as cidades italianas, especialmente Roma, do século XVI e XVII.

A obra de Annibale Carracci (1560-1609), nascido em uma família de pintores de


Bolonha150, é composta por encomendas da Igreja, sendo afrescos as mais conheci-
das. Também retratou os tipos humanos que encontrou nas ruas de Bolonha e Roma,
especialmente vendedores e trabalhadores das ruas.

Callot (1592-1635), nascido em Lorraine, na França, tinha acesso à corte e viajou a


Florença trabalhando para Cósimo II de Médici151. Não era pintor e trabalhou como
gravurista, contribuindo com o aprimoramento da técnica de gravação e impressão.
Suas imagens mostram os tempos violentos em que viveu, com homens andando
armados nas ruas e mendigos aleijados, rastejando pelas ruas, pedindo esmolas.

Existem disponíveis para consulta aberta três livros que permitem passear pela
cidade de Londres no início do século XVIII. Um deles foi concebido como um guia
para quem fosse à cidade, o Modern London: guide to the city, publicado por Richard
Phillips em 1804; A picturesque tour through the Cities of London and Westminster,
de Thomas Malton, publicado entre 1792 e 1801, apresenta um conjunto de imagens
do cotidiano da cidade; Historical and descriptive sketches of some of the most
interesting of its public buildings, compilado e organizado por John B. Papworth e
publicado em 1816 por Rudolph Ackermann. Os livros reúnem mais de uma centena
de imagens mostrando, em sua grande maioria, as animadas ruas da cidade em dias

150 Ver em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Annibale_Carracci>. Acesso em: 10 dez. 2019.

151 Ver em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Jacques_Callot>. Acesso em: 10 dez. 2019.

206
ensolarados. Em 1800 Londres contava com cerca de um milhão de habitantes, era
a maior cidade do Ocidente. Estava para iniciar o século de maior prosperidade da
história britânica, fase de maior crescimento da cidade. Encerrado o século XIX,
atingira impressionantes 6.250 milhões de moradores na maior cidade do mundo.

As imagens são preciosas para mostrar não só os espaços monumentais e encan-


tadores da cidade, a ville, mas também para mostrar a cité e como seus moradores
usavam as ruas e nelas e circulavam. Londres tinha os mesmos pedintes, mascates e
ambulantes que Bouchardon retratou em Paris, mas estas imagens permitem vê-los
interagindo com os homens de negócios e famílias que povoam as ruas londrinas.
Também mostram que as ruas estão mais bem cuidadas do que na Roma de 50 anos
antes retratada por Giuseppe Vasi.

Foram estudadas mais de 500 imagens e selecionadas algumas vistas para mostrar a
evolução desse tratamento. O primeiro conjunto de imagens, figuras 57 a 60, mostra
as ruas no coração da City de Londres, nos cruzamentos mais movimentados da área,
junto à Mansion House Street com a Cornhill Street, próximo da Bank Station do Metrô.

As figuras 57 e 58 mostram o encontro da Threadneedle Street com a Cornhill Street à


direita, ponto especialmente largo do sistema viário da vizinhança. Por ser o encon-
tro de duas vias, nele a rua atinge quase 35 metros de largura. O edifício neoclássico
à esquerda era o Banco da Inglaterra (até hoje no mesmo endereço). O que está no
centro da cena ocupa uma pequena quadra. Derrubada pouco depois, abriu uma
praça triangular, valorizando, atrás, o monumental edifício que já abrigava a Bolsa
de Londres. Praticamente todos os edifícios que aparecem nessa imagem foram
substituídos. O alinhamento dos edifícios e as larguras das vias foram mantidos e, de
modo geral, as vias da City preservaram os traçados medievais. Poucas intervenções
ocorreram; a Queen Victoria Street e a King William Street foram abertas para dar
melhor acesso à Ponte de Londres e à Southwark Bridge, construída posteriormente.

207
Figura 54 Os desenhos de Carracci foram convertidos em gravuras e circularam por toda a Europa.
Exibem trabalhos comuns realizados nas ruas: vendedores de queijos, vinhos, cebolas, carne; o mesmo
amolador de lâminas que comparece com seu equipamento em praticamente todas as coleções de registros
de pessoas trabalhando nas ruas de todas as eras. Destaque para o comércio que visava aos peregrinos que
visitam Roma: chapéus e imagens de santos para devotos e nobres em visitas devocionais.

Figura 55 Estas quatro gravuras fazem parte da coleção de Jacques Callot e mostram os tipos que
encontrou pelas ruas da Itália entre 1612 e 1621, período em que viveu em Florença. Atrás do cavalheiro
armado com sua espada, aparecem cenas de combates nas ruas e o pranto de quem perde alguém na luta.
Callot era muito sensível à violência, retratando cenas de massacres e execuções públicas nas ruas.

208
Figura 56 Callot retratou muitos eventos nos espaços públicos das cidades italianas. Autos da inquisição,
execuções públicas, corridas de cavalos e queimas de fogos. Em várias destas gravuras, coloca uma figura
em primeiro plano, mesmo que esse lugar alto não exista, apenas para a composição do primeiro plano.
A figura escolhida tem a ver com o lugar retratado, como se fosse um personagem da cena que ganha a
possibilidade de ser representado em maior escala para que suas vestimentas e atitudes sejam mais bem
observadas. Aqui um nobre observa tudo o que acontece na Piazza del Duomo, em Florença. Mulheres
andam em cortejo hierarquizado, crianças brincam com cachorros, casais caminham de braços dados, um
soldado escolta uma dama, um carregador traz uma caixa enorme na cabeça, mendigos circulam entre as
pessoas, cavalos e carroças. Pessoas sentadas nos degraus da escada assistem ao movimento. A distinta
figura parece observar o animado palco enquanto decide se vai ou não entrar em cena.

209
Figura 57 Gravura do livro Modern London: guide to the city, publicado por Richard Phillips em 1804.
Retrata a Cornhill Street junto ao Banco de Londres e a Bolsa de Valores. Destaque para a quantidade de
veículos e pedestres.

210
Figura 58 Gravura do livro A picturesque tour through the cities of London and Westminster, de Thomas
Malton. Retrata a Mansion House Street, olhando na direção da Bolsa de Valores, o edifício da Prefeitura
de Londres, construído em 1752. Várias vias convergem para esse ponto: a Poultry e a Queen Victoria Street
de um lado e as King William, Lombard, Cornhill e Threadneedle Street. Nota-se que a Mansion House Street
já era muito movimentada. A escadaria da Mansion House foi reformada e seu gradil retirado anos depois
para alargar a via.

211
Figura 59 Gravura de Thomas Malton. A Mansion House Street, olhando na direção oposta da Figura 58.
Vale notar que a rua estava tão movimentada quanto na imagem anterior.

212
Figura 60 Gravura de Thomas Malton. Mostra a fachada sul, a principal da Royal Exchange, a Bolsa de
Londres na Cornhill Street. O imponente edifício substituiu o primeiro, construído em 1571 e destruído no
incêndio de 1666. O que aparece nesta imagem foi construído em 1669 e já contava com 130 anos quando
foi retratado. Funcionou até 1838, quando também se incendiou; a sede atual da bolsa está lá desde 1844. A
Cornhill Street era uma das ruas mais movimentadas e importantes da cidade, podendo-se observar como
era apropriada pelas pessoas que por ali passavam no início do século XIX.

213
As imagens mostram esse curto percurso, de não mais de 240 metros, entre a Royal
Exchange (Bolsa de Valores) e a Maison House (Prefeitura), trecho em que as vias
atingiam larguras muito superiores às observadas nas vias de Roma ou nas ruas
estreitas da City. Diante da Maison (Figuras 58 e 59), a via tinha 17 metros; depois foi
alargada para 20; diante da Exchange, atinge 18 metros. Importa observar atentamen-
te a presença de pedintes, ambulantes, mascates, carregadores, crianças brincando,
mulheres carregando cestas nas cabeças, casais de braços dados, famílias com
crianças e carrinhos de bebês, homens vendendo jornais e dezenas de outros tipos
humanos e atitudes ocupando os espaços das ruas indistintamente, simultaneamen-
te. Havia regras estritas sobre comportamento e vestuário para quem ingressava na
Bolsa de Valores (Figura 60), entretanto todos circulavam e atuavam sem restrições
nas ruas. Ninguém parece estar com pressa. Pedestres, vários tipos de charretes e
carroças, cavalos se deslocam sem correrias. A agitação se dá pela quantidade de
pessoas, não pela velocidade, especialmente a imagem de Richard Phillips (Figura 57)
parece querer mostrar que a rua está tomada de pessoas e movimento. Nas calçadas
representou verdadeiras procissões de pedestres, mesmo o leito carroçável (nestas
imagens o termo “carroçável” ganha seu pleno sentido) das ruas está muito animado,
tomado por pedestres que caminham ou param para conversar tranquilamente,
calmamente. Veem-se pessoas carregando cestas pesadas, sacos às costas, placas
com anúncios, caminhando com os braços dados enquanto carroças transportando
pesados barris circulam lentamente. Cavaleiros trotam sem pressa e apenas um
casal para, aguardando a passagem de um cavaleiro mais apressado. Aparentemente,
não há qualquer regra de circulação, um sentido preferencial para quem circula em
uma direção ou outra. As carruagens e carroças percorrem livremente qualquer lado
da via, às vezes o centro. Não existe qualquer fonte de iluminação pública e lugar
para travessias. Os pedestres cruzam em qualquer lugar, caminham ou param para
conversar livremente na via.

214
As várias imagens analisadas permitem afirmar que a movimentação não é apenas
recurso de composição pictórica, mas representação honesta e bastante confiável
das práticas cotidianas da cidade. Em Modern London: guide to the city, Richard
Phillips relaciona e ilustra os tipos humanos do mesmo modo que Bouchardon o fez
para Paris. Muitos dos tipos se repetem; outros aparentemente são mais vistos em
Londres, como os limpadores de chaminés. Os mesmos tipos e atitudes comparecem
nas imagens de Phillips, Malton e Papworth. Naturalmente, se os dias fossem chuvo-
sos, deixando o macadame das ruas com poças d’água e lama, os pedestres estariam
em menor número nas ruas. Se o dia representado fosse uma data comemorativa, ou
um dia qualquer de inverno, as formas de apropriação e circulação seriam diferentes,
mas não é essa a questão que interessa a este estudo. Importa perceber que as ruas
eram o palco de permanência e circulação e começavam a apresentar características
das ruas contemporâneas, porém com um aspecto muito diferente, as velocidades.
As menores permitiam que pedestres usassem com maior liberdade todo o espaço
das ruas, não apenas suas calçadas.

A Strand Street, principal ligação entre Westminster e a City, é uma via igualmente
movimentada, correndo paralela ao Rio Tamisa, em sua margem norte. Nela o movi-
mento era tão intenso que já em 1865 se iniciou a construção da Victoria Embankment,
avenida que corre paralela às margens do rio. O trecho representado por essas
duas gravuras (Figuras 61 e 62) é o mesmo: a parte da rua diante da Somerset House
avistando a rua até a Saint Mary Church. A Igreja havia sido construída há poucos
anos, por meio de um programa para a construção de novas igrejas em Londres, com
implantação muito singular e polêmica, no meio da rua, em um canteiro central. A
Somerset House, um palácio real existente há séculos, foi reformado e convertido em
edifício público no século XVIII, recebendo muitas secretarias e serviços públicos,
entre eles a escola nacional de arte, a Royal Academy.

215
216
Figura 61 Gravura de Thomas Malton, retratando a Strand Street, com a Saint Mary Church. Esta imagem
permite ver os pedestres já mais contidos, usando efetivamente as calçadas. Reforçando essa ideia, a única
pessoa a andar no leito carroçável é uma pobre mulher carregando uma grande cesta na cabeça, correndo
com a filha pequena agarrada às suas saias. As carruagens parecem trafegar lentamente pela rua bastante
larga, cerca de 27 metros, e as calçadas são generosas. Não há qualquer sinal de norma sobre travessia
ou sentido de circulação dos veículos. A iluminação pública começa a comparecer, providenciada nas
fachadas das construções. No caso aqui retratado, na fachada do edifício público a Somerset House e junto
às lojas da calçada à esquerda.

Figura 62 Gravura retirada do livro A Picturesque tour through the Cities of London and Westminster,
de Thomas Malton, publicado entre 1792 e 1801. Retrata o mesmo trecho da Strand, com as calçadas
movimentadas por casais elegantes e um casal atravessando tranquilamente o leito carroçável. A rua era
das mais valorizadas da cidade, endereço de famílias abastadas.

217
Se nas ruas da City junto aos edifícios mais importantes da capital, observam-se
ruas agitadas, mesmo nos bairros mais tranquilos e residenciais as ruas ainda têm
vida e são lugar da vida pública. A vista, desenhada a partir da esquina da Remmant
Street com a Gate Street (Figura 63), olha o Lincoln Inn Fileds com a cúpula da Saint
Paul Cathedral aos fundos, vizinhança nobre e recente, em 1816. Vê-se uma pedinte
sentada junto a uma criança e um homem com muletas sendo perturbado por dois
cachorros. Na cena também há uma carroça, duas carruagens, uma charrete e um
homem montado a cavalo. Como nas demais ruas, a pavimentação é em macadame.
Já se verifica iluminação pública e calçadas junto às casas.

Figura 63 Gravura retirada do livro A picturesque tour through the cities of London and Westminster, de
Thomas Malton, publicado entre 1792 e 1801. Vista de um bairro localizado a oeste da City, de alto padrão.

218
4.4 Aceleração dos padrões – Era Moderna

A animação tranquila das ruas de Londres e das cidades do século XVII mudaria
drástica e rapidamente. As imagens do item anterior mostram Londres no início do
século XIX, todavia no fim desse mesmo século a população da cidade aumentou seis
vezes, e Paris começou o século XIX com cerca de 545 mil habitantes e terminou com
2,53 milhões, aumento de quatro vezes e meia. Esses crescimentos extraordinários
não foram fenômenos isolados; as cidades europeias tiveram crescimento inédito no
período.

As condições para que tal crescimento ocorresse foram dadas nos séculos anteriores,
quando as constituições haviam sido revistas, o laissez-faire era princípio aceito
(nem a igreja nem os governos condenavam a iniciativa e o lucro), o mercado não era
regulado ou limitado, o capitalismo podia ser exercido explorando livremente os
recursos naturais e humanos. As leis sociais, trabalhistas, ambientais e mesmo os
direitos humanos não existiam. Trabalhadores, pobres, mulheres, crianças, nenhum
grupo etário ou social estava a salvo. O carvão, o vapor e as ferrovias, que permitiram
o início da industrialização, passaram a fazer parte da paisagem e do cotidiano das
cidades. A Revolução Industrial se urbanizou e o que Mumford chamou de período
“paleotécnico” permitiu o crescimento econômico ao preço da destruição e desor-
dem da vida urbana e social, a ville e a cité passaram por brutais mudanças.

Paris e Londres eram cidades portuárias e os pontos de cruzamentos de rotas comer-


ciais mais importantes da Europa. O aumento do comércio internacional trouxe o
crescimento do número de empregos nos setores financeiros, comercial e burocráti-
co das cidades. Essa mão de obra era mais bem remunerada, pois a maior parte da po-
pulação que chegava às cidades não era alfabetizada152. O comércio varejista cresceu
tremendamente, tornando-se grande empregador e altamente lucrativo. As lojas

152 SENNET, 1988.

219
220
agigantaram-se, os modos de expor e comercializar os produtos mudou. Surgiram
os grandes magazines, lojas de departamentos, galerias comerciais, a publicidade,
vitrines atraentes, cartazes, luminosos. As feiras livres não desapareceram, mas os
mercados públicos tornaram-se permanentes e fundamentais para a comercialização
e distribuição de produtos.

Neste trabalho não cabe discorrer sobre todas as transformações políticas e sociais
da Revolução Industrial, nem mesmo sobre todos os impactos urbanos. Pretende-se
apontar as mudanças dos habitus e práticas dos variados grupos observadas nas ruas,
mostrando como as estruturas econômicas mudaram a cité e como essas mudanças
transformaram fisicamente as ruas, a ville.

Com cidades industrializadas, populosas, densas e extensas, os deslocamentos pas-


saram a ser ainda mais importantes (Figuras 64). As ruas foram o palco maior dessas
mudanças, o lugar privilegiado para observá-las. Os deslocamentos nas cidades
passaram a demandar o transporte de grande número de pessoas em tempos muito
mais controlados e curtos, nunca o tempo foi tão precisamente medido. A produção
industrial demandava que todas as etapas da produção fossem cronometradas e
eficientemente geridas – daí os avanços na tecnologia de mensuração do tempo.
Relógios passaram a comparecer nas paredes das fábricas, estações de trem, nas
fachadas dos edifícios públicos e nas ruas, impondo o ritmo e a aceleração de todos
os movimentos. Os turnos de trabalho, em muitas fábricas, atravessavam as noites,

Figura 64 (página anterior) As gravuras de Gustave Doré ilustram os grandes problemas urbanísticos
e sociais que Londres enfrentou ao longo do século XIX. Mostram através das expressivas imagens os
dramas que ocorriam nas ruas da cidade. Estas três imagens mostram como a cidade enfrentou problemas
e buscou solução de mobilidade. A primeira mostra a nova Ponte de Londres congestionada, a ponto de
muitos arriscarem fazer a travessia de barco, por ser menos demorada e sofrida. Muitas novas pontes
foram construídas, a Tower Bridge foi construída em 1886. A segunda gravura mostra Ludgate Circus,
com o tráfego da Ludgate Hill congestionada com os ônibus, charretes e carroças disputando espaço com
pedestres, cavalos e cargas, passando sob a linha de trem. E finalmente o Tube de Londres, o metrô mais
antigo do mudo, a primeira linha subterrânea de trem começou a operar em janeiro de 1863.

221
portanto a entrada e a saída de operários e matérias-primas exigiam transportes
mais eficientes.

O solo urbano torna-se negócio; a cidade passa a ser um dos principais negócios
do capitalismo. Os capitais industrial, financeiro e comercial, bases da estrutura
capitalista em formação, ganham o capital imobiliário como grande aliado. Contudo
a produção capitalista da cidade pressupõe segregação, o solo urbano precificado
define onde cada uso ou grupo social pode ou não habitar. Bairros pobres e insalu-
bres são saneados, urbanizados, e a população mais pobre, expulsa para áreas mais
distantes. As ruas são os espaços de deslocamento, lugar dos meios de transporte
e mobilidade, mas são também o lugar de convívio e encontro entre os diferentes
grupos, lugar onde os diferentes habitus ocorrem.

As ruas foram lugar de movimento e permanência, conflitos e disputas abertas. A


riqueza gerada pelo crescimento econômico ocupou-as com cafés, lojas, vitrines
e palácios e, também, com a miséria – moradores de rua, pedintes, batedores de
carteira, assaltantes, trambiqueiros, ambulantes, operários, prostitutas, mulheres e
crianças pobres. Foi o século dos contrastes e da contradições expostas nas grandes
manifestações políticas e movimentos sociais. Se o século XVIII termina com a
Revolução Francesa cortando as cabeças do Ancien Regime nas ruas153, o XIX vai ser o
século em que as manifestações sociais serão reprimidas com mais brutalidade, e as
disputas políticas nas ruas feitas com sangue e pólvora.

Como nunca, os rios foram contaminados por esgotos, resíduos químicos e indus-
triais. O adensamento populacional, a pobreza extrema, a deterioração das condi-
ções de moradia e sanitárias, aliados aos deslocamentos de grandes contingentes

153 A Place de La Concorde é o espaço simbólico parisiense mais viário, mais comprometido com e pela
circulação de veículos, um bom exemplo da inutilidade de buscar separação entre espaços associados
ao sistema viário e as praças. Como na Praça Navona e na Praça de Espanha em Roma, no L’Etoile, não
existem limites que separem, espacial ou funcionalmente, os espaços das ruas que o delimitam.

222
populacionais, com viagens mais longas e rápidas, levaram à dispersão de grandes
epidemias154 e ao aumento da mortalidade. As tecnologias sanitárias, de drenagem
e abastecimento de água buscaram responder às novas demandas e à população. A
violência da pobreza, do crime e das manifestações políticas e sociais encontraram
limites na violência do policiamento e da repressão política.

As duas maiores cidades da Europa lideraram essas transformações com respostas


muito distintas. Foram os mais importantes laboratórios de experimentação, pesqui-
sa e disputa de propostas e soluções adotadas posteriormente, ou simultaneamente,
pelas outras cidades do mundo capitalista. A aceleração do capital se deu paralela-
mente à sua distribuição pelos territórios: cidades nas Américas, na Ásia e na África
adotarão práticas e instituições similares. As cidades, especialmente as capitalistas,
são grandes estruturas, estabelecendo as relações e o funcionamento dos sistemas
físicos e sociais que a compõem. Essas estruturas (cidades) são construídas pelos
sistemas políticos, econômicos e sociais nas suas disputas e práticas diárias.

Cada solução física ou política adotada, fruto da pactuação entre as forças que agem
sobre os campos, pode ser adotada pelas outras cidades. Caso adotadas, passam a
condicionar as práticas cotidianas, os habitus de cada um dos grupos sociais. As
cidades podem ser entendidas como as estruturas estruturadas e estruturantes,
como conceitua Bourdieu155.

154 HARRIS, Bernard. Health by association. International Journal of Epidemiology, v. 34, Issue 2, April
2005. A cólera era desconhecida até o século XIX. Sua bactéria, transmitida pela água e alimentos, atingiu
Londres em quatro surtos (1830, 1832,1848 e 1866), a Europa Central e a Rússia com alta letalidade. O vírus
da varíola matou cerca de 400 mil europeus anualmente durante todo o século XIX, causando um terço de
toda a cegueira daquele tempo. A bactéria do tifo era transmitida por ratos, carrapatos, piolhos e pulgas,
infestando cortiços. Segundo Harris, as taxas de mortalidade declinaram no fim do século XIX com a
combinação de campanhas de vacinação, melhorias das condições de moradia, de saneamento e salários.

155 BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. In: ORTIZ, Renato (Org.).Pierre Bourdieu:
sociologia. São Paulo: Ática, 1983

223
Figura 65 As obras de transformação em Paris foram tão aceleradas que demandaram trabalhos
noturnos. Os canteiros da obra eram iluminados para que os trabalhos pudessem prosseguir à noite. A Rue
de Rivoli era estratégica para as articulações pretendidas por Haussmann e foi uma das primeiras a ser
aberta, tornando-se um dos eixos mais importantes da nova Paris.

Paris respondeu às transformações com as grandes obras empreendidas por


Haussmann (Figura 65). O Prefeito de Seine reuniu condições financeiras e políticas
para, entre 1853 e 1870, construir dois grandes parques, mercados, edifícios públicos.
Derrubou mais de 12 mil edifícios para construir cerca de 70 quilômetros de novas
ruas156 e boulevards, que mudaram a escala e o entendimento do que eram as ruas
de Paris. É importante compreender que as avenidas de Haussmann não tinham a
questão da mobilidade como a maior preocupação. Seus boulevards foram a maior
realização do urbanismo barroco, que herdava as questões de ordem, geometria
e perspectivas cenográficas presentes nos jardins barrocos de Le Nôtre, dando

156 BENEVOLO, Leonardo. Diseño de la ciudad: el arte y la ciudad contemporánea, v. 5. Barcelona:


Gustavo Gili S.A., 1982.
continuidade e novo sentido ao repertório formal das paisagens do poder político e
técnico, do Absolutismo e do Iluminismo, reelaborando a própria ideia de paisagem
francesa.

A Planta do cartógrafo Roussel, executada em 1730, foi intitulada Paris, ses fau-
xbourgs et ses environs. Exibe a cidade e seus arredores e representa os bosques reais
de Boulogne e Vincennes, como eram antes das transformações feitas a pedido de
Napoleão III, por Alphand157. Nota-se que os percursos internos do bosque (Figura 66),
as promenades, eram linhas retas correndo em variadas direções, quase nunca para-
lelas, que se cruzavam em variados ângulos regulares formando uma étoile (estrela).
Esse cruzamento ampliava-se formando uma imensa praça circular para celebrar o
lugar de onde se descortinavam mais perspectivas.

Esse tipo de recurso para a monumentalização dos percursos era tão valorizado
que o caminho que ligava o Jardim das Tulherias até o Bois de Boulogne (Figura 67),
era o largo eixo arborizado, com praças circulares e sua L’Etoile, que décadas depois
receberia o Arco do Triunfo. O caminho arborizado consolidou-se como a Avenue
des Champs-Élysées. Muito antes de a avenida assumir qualquer função viária, as
famílias ricas de Paris costumavam passear com suas charretes nessa promenade até
contornar o Arco do Triunfo no L’Etoile, e voltar até contornar o obelisco da Place de
La Concorde158.

Além desses eixos preexistentes, existem no mapa outros incontáveis eixos barrocos,
dos mais variados portes, desde os jardins dos palácios das Tuilleiries e de Luxemburg,
dos conjuntos do Hotel Royal des Invalides e o eixo que começava na Place du Trone
(atual Place de La Nation) e formava a Avenue de Vincennes.

157 O paisagista francês Jean-Charles Adolphe Alphand (1817-1891) transformou os dois bosques (Bois
de Boulogne e Bois de Vincennes) em parques públicos inspirados nos parques londrinos que Napoleão III
conheceu quando esteve no exílio. É autor do Parc des Buttes Chaumont, Parc Monceau e dos jardins da
Chamos Élysées.

158 TEXIER, Edmond August. Tableau de Paris. Ouvrage illustré de quinze cents gravures. D’après les
dessins de Blanchard, Cham, Champin... [et al.]. 1852-1853. Paris: Paulin et le Chevalier, 1852.
226
Figura 67 O caminho que ligava o espaço que hoje é a Place de La Concorde, diante do Jardim das Tulherias
até o Bois de Boulogne, já era o largo eixo arborizado, pontuado por rotatórias. O L’Etoile já existia,
ainda sem o Arco do Triunfo, proposto mais de 70 anos depois. Após a construção do arco, Haussmann
transformou as alamedas em avenidas. Detalhe do mapa Paris, ses fauxbourgs et ses environs, de Claude
Roussel, 1730.

Figura 66 (página anterior) O Bois de Boulogne era um dos bosques de caça reais, como vários outros
existentes por toda a França. Eram plantados ou preservados com a intenção de permitir passeios a cavalo
e charretes para o deleite das cortes, com largas promenades em terra, muitas vezes com árvores plantadas
em linha nas laterais. Essas promenades eram passeios retos que se intercruzavam com longas perspectivas
abertas entre os bosques mais fechados. O bosque era frequentado por Napoleão III; as semelhanças entre
o traçado dos caminhos com os boulevards abertos por ele em Paris são evidentes. Observam-se as mesmas
perspectivas e cruzamentos, a mesma busca da simetria e do ritmo regular de todos os elementos. Detalhe
do mapa Paris, ses fauxbourgs et ses environs, de Claude Roussel, 1730.

227
Os eixos abertos por Napoleão III e Haussmann trocaram os palácios e os símbolos
do poder do Ancien Regime pelos símbolos da nova sociedade burguesa, como quem
afirma que a cidade é seu novo espaço de passeios, como os bosques de caça reais
eram para a nobreza derrubada. As largas vias não eram questão viária, técnica e
funcional, mas questão de desenho, carregado de significados políticos e interesses
imobiliários. Ao invés de arrematarem suas perspectivas nos portões e balcões
dos palácios imperiais, agora terminavam na Ópera, no Madeleine, na entrada dos
parques públicos, na Praça da República e no Panthéon. Os espaços monumentais
barrocos que já existiam, como a Place Vendôme e a Place Royale, foram incorporados
ao desenho. Não houve ruptura com as obras anteriores do barroco francês; a ruptu-
ra se deu apenas com a herança medieval, as ruas acanhadas, mal iluminadas, com as
construções precárias e os bairros pobres.

As teorias urbanísticas desenvolvidas e experimentadas nos séculos anteriores, du-


rante o Renascimento e o Barroco, fundamentaram seus projetos. Foram referências
fundamentais as intervenções de Bernini159 (1598-1680) em Roma, como os célebres
eixos que convergem para a Piazza del Popolo, e as obras realizadas pelo Marquês de
Pombal (1699-1782) para a reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755.

Pierre Patte (1723–1814) foi assistente de Jacques-François Blondel (1705-1774), o


maior professor e teórico da arquitetura e do urbanismo francês do século XVIII,
autor de Cours d’architecture, em nove volumes, impresso em 1774. É autor de um
desenho (Figura 68) apontado como o primeiro a associar o desenho da rua às redes
públicas160.

159 Os projetos de Bernini em Roma ganharam tanta aprovação e fama que, em 1665, Bernini foi forçado
a viajar para Paris e trabalhar para o Rei Luís XIV, que queria um projeto para o Palácio do Louvre. Ele
permaneceu em Paris por meio ano, fez projetos, mas suas propostas não foram aceitas.

160 TALLON, Andrew J. The portuguese precedent for Pierre Patte’s street section. Journal of the Society
of Architectural Historians, v. 63, n. 3, Sep., 2004, pp. 370-377. O autor mostra que o engenheiro português
Eugenio dos Santos precedeu Patte, fazendo um desenho para Lisboa dez anos antes.

228
O desenho de Patte mostra como a rua era pensada na França, no século XVIII, como
meio para garantir drenagem pluvial, abastecimento d’água e escoamento de esgotos.
Balizadores e linhas de escoamento separam a circulação de veículos e pedestres,
mas não existem calçadas ou guias de separação. A rua ideal é simétrica, regular e
monumental, enquanto provê a drenagem e as infraestruturas. A rua proposta teria
12,8 metros (42 pés), com espaços para pedestres com 2,75 metros (9 pés) de cada lado,
com as construções de alturas iguais no seu alinhamento. O desenho evidencia que,
entre outras, havia a preocupação com a ventilação e a iluminação dos ambientes.

Dois aspectos chamam especial atenção: o chafariz e o toldo. Bem no centro da via,
o chafariz é, ao mesmo tempo, fonte de abastecimento de água e monumento. Para
o urbanismo barroco, as formas têm compromisso com a monumentalidade – me-
ramente atender a função não basta. O toldo na construção à esquerda é um aspecto
curioso, pois de certa forma estabelece uma relação entre a construção e o espaço
da rua, entre o espaço privado e o público. Essa relação aparece nos dois lados da via;
na construção da direita, com a continuidade entre a via e o térreo da edificação. O
desenho não permite avaliar se tal continuidade pretende ser apenas a entrada para
carruagens e cavalos, comum à época, ou simplesmente o acesso para pedestres. O
fato é que o toldo e o acesso mostram as relações previstas com a rua, com a via inva-
dindo o térreo ou a casa invadindo a rua com o toldo. A relação entre esses espaços
será ampliada nos séculos seguintes.

A rua sonhada por Patte era pavimentada com pedras, menores onde circulam
carroças e cargas mais pesadas, e maiores onde circulam pedestres. A pavimentação
das ruas era uma das questões mais reveladoras da relação entre os eixos
haussmaniannos e barroco e os passeios dos bosques reais. Berman161 conta que esse
foi um dos poucos pontos de divergência entre o Prefeito de Seine e Napoleão III. O
Imperador queria que todos os boulevards fossem pavimentados com macadame,

161 BERMAN, 1986. Ver o capítulo A perda do halo.

229
Figura 68 O desenho de Patte mostra a secção da rua ideal e a galeria de drenagem de águas pluviais
e esgotos correndo sob a rua. Vê-se que o abastecimento de água também é feito pela via, que possui
no centro um chafariz monumental. Patte publicou esse desenho em Mémoires sur les objets les plus
importants of the architecture, publicado em 1769, bastante conhecido e elogiado na época. A construção à
esquerda tem um curioso toldo, embora não haja o pavimento térreo no nível do passeio.

230
piso mais macio e adequado para andar a cavalo e para as carruagens, especialmente
em velocidade. O Barão preferia que todas as ruas fossem pavimentadas com pedras,
pois, quando chovia, o macadame virava lodaçal tomado por poças d’água, problema
para os pedestres. Esse debate exemplifica perfeitamente o início do conflito entre as
formas de mobilidade relacionadas aos pedestres e veículos em função da velocidade.

As ruas propostas por Haussmann não foram compreendidas à época, nem mesmo
pelo Barão, pois as larguras generosas e inéditas, variando entre 30 e 100 metros,
tornaram-se espaços privilegiados da vida burguesa moderna, como nunca haviam
sido. Tanto a mobilidade quanto a permanência eram facilitadas pela largura
das calçadas e do leito carroçável. Entretanto o aumento da circulação ocorreu
proporcionalmente ao aumento dos espaços. Estes, generosos, se tornaram tão
convidativos à circulação e à permanência, que logo as pistas e as calçadas estavam
tomadas pelos rituais cotidianos dos vários grupos.

Os bairros centrais de Paris eram densamente habitados e edificados, com ruas


muito estreitas comprometendo a circulação, a ventilação e a iluminação das
construções. Neles proliferavam doenças: em 1831 a cólera matou 18 mil pessoas;
em 1849, mais 19 mil162. Na época já se sabia que a doença se originava da falta
de saneamento e da água contaminada. A circulação era muito dificultada pelo
traçado irregular e pela largura das ruas. A derrubada desses bairros se pautou em
dois argumentos, o saneamento e a circulação, porém embutia outro igualmente
relevante, a incorporação dessas áreas com muitos proprietários e situações
cartoriais irregulares ao emergente mercado imobiliário urbano. Remover os pobres
e regularizar os imóveis permitia a construção de novos, valorizados e elitizados
bairros para a nova classe média em expansão.

162 PINKNEY, David H. Napoleon III’s transformation of Paris: the origins and development of the idea.
The Journal of Modern History, v. 27, n. 2, 1955, pp. 125–134.

231
Outro aspecto que explica o apoio de vários grupos às obras era a atividade
econômica. Os investimentos públicos nas obras ativavam vários segmentos
econômicos, gerando empregos e lucros que ajudaram a França, especialmente Paris,
a ter um ciclo de desenvolvimento e prosperidade163.

A questão do controle político das ruas foi outra razão que certamente pautou
as reformas urbanas e o apoio das classes dominantes às obras. As doenças e as
constantes revoltas nas ruas parisienses justificaram a saída de Luis XV da cidade,
levando a corte para Versalhes em 1682. Cerca de 100 anos depois, o Ancien Regime
foi derrubado nas ruas pela Revolução Francesa, em 1789, quando os exércitos se
mostraram incapazes de sufocarem os movimentos populares e suas barricadas.
Entre 1827 e 1851, Paris teve suas ruas interrompidas por barricadas e tomadas por
revoltosos nove vezes: em 1827, 1830, 1832, 1834, 1839, 1848 (fevereiro e junho), 1849
e 1851. Em 1851 um orador na Assembleia Nacional pedia ruas à prova de rebeliões.
Tantos protestos e barricadas revelam as instabilidades política e econômica e
a enorme insatisfação social do período. Durante os anos de obra e do governo
Napoleão, não havia barricadas; foram 17 anos em paz nas ruas da cidade. Depois
da derrota para os prussianos, instituiu-se a Terceira República, que transferiu o
governo para Versalhes. A revolta da população parisiense contra o novo governo e
suas medidas explodiu na Comuna de Paris, que ocupou e governou a cidade entre
março e maio de 1871. O exército francês invadiu a cidade, enfrentando resistência,
barricadas, tomando um a um cada arrondissement. Foram as maiores batalhas nas
ruas da cidade até hoje, deixando cerca de 10 mil mortos.

Para se ter ideia das transformações empreendidas por Haussmann, as imagens


mais esclarecedoras são as fotos tiradas por Charles Marville, fotógrafo oficial de
Paris, que registrou e documentou as obras de transformação da cidade. Tirou
centenas de fotos das ruas e vielas que foram derrubadas, das avenidas e boulevards

163 PINKNEY, 1955.

232
recém-entregues. Suas imagens moldaram a forma como a história compreende e
avalia os trabalhos de Haussmann e Napoleão.

Observa-se, nas fotos de Marville (Figura 69), a regularidade das novas construções.
O ritmo das janelas é regular, formando planos muito uniformes, que reforçam as
perspectivas. Os térreos quase sempre são comerciais; as vitrines, portas largas e
toldos acolhem e exibem produtos e serviços aos que passam pelas ruas. A ilumina-
ção pública era fundamental: a cidade ganhou mais de 56 mil luminárias e postes dos
mais variados tipos. O mobiliário das ruas se sofisticou, assim como seus usuários,
ganhando bancos, quiosques, mictórios, pontos de ônibus, bebedouros e colunas
Morris164 como suportes para a publicidade.

A pintura Avenue Parisienne (Figura 70) exibe um dia normal e agitado das ruas da ci-
dade, provavelmente nas últimas décadas do século XIX. Jean Béraud era observador
atento da vida moderna em Paris, como outros pintores do seu tempo. O cotidiano
espetacular dos espaços públicos era tema popular, como o teatro, a vida noturna
dos cabarés e casas de espetáculo. Ao mostrar as ruas, destacava a mistura de tipos
humanos e personagens dos diferentes grupos sociais nesses espaços públicos
recém-abertos. Pintores como Béraud buscavam capturar a modernização de Paris
através das atitudes, vestimentas e aparências de seus habitantes. As relações entre
o teatro e as ruas não eram ignorada. Do mesmo modo que as vestimentas definem
as personagens no teatro, os modos de vestir, as atitudes nas ruas definiam os papéis
e personagens165. Observar e ser observado era um dos jogos mais importantes nesse
cenário.

164 Os suportes para cartazes (affiches) em forma de colunas para a publicidade na rua são conhecidos
na França como Colonne Morri”, mas sua origem é alemã. Surgiram como colunas cilíndricas nas calçadas
de Berlim em 1855, ganhando o nome do seu inventor, Litfaßsäule. Podem ser simplesmente suportes
para colagem de cartazes, mas muitas vezes acomodam outros usos, como quiosques, banheiros, guaritas
ou, mais recentemente, caixas bancários. Na França o nome Morris veio após Gabriel Morris conseguir o
direito de fabricação e concessão de instalação e gestão em 1868.

165 SENNET, 1988.

233
Figura 69 As fotos de Marville foram tiradas entre
1853 e 1870, durante as obras, obtidas a partir de
tripés e longas exposições. Por isso, apresentam
a cidade desabitada. Suas fotos não mostram as
pessoas que circulavam nos espaços, apenas vultos
muito transparentes. Obviamente esses espaços,
mesmo as vielas posteriormente derrubadas, não
estavam desertos como nas fotos. A primeira delas
mostra a Rue Estienne, a viela estreita que chama
atenção pela impossibilidade de ter calçadas, com
pedras pesadas colocadas dos dois lados da via
para proteger as construções e seus acessos das
carroças que por ali circulavam. A segunda foto
mostra o Boulevard Haussmann, esquina com a Rue
de Monceau, com mais de 25 metros de largura,
com as construções características, pavimentada
com macadame, as largas calçadas, a iluminação
pública, a arborização e o mobiliário.

234
Figura 70 As fotografias de Marville não mostram os movimentos rápidos do cotidiano nas ruas
parisienses. Quem os apresenta em sua pintura é Jean Béraud. Ele não abandonou os rigores da academia,
nem atualizou sua pincelada conforme o Impressionismo, mas retratou cenas de rua e o cotidiano da vida
da cidade. A cena se desenvolve em um dia ensolarado, na rua, sob a sombra das árvores da calçada.

235
Como os impressionistas, Béraud buscava fazer parte do seu trabalho ao ar livre,
in loco. Andava pelas avenidas de Paris em uma carruagem convertida em estúdio
móvel, carregando todo o equipamento de desenho166. Passava horas na rua, na
carruagem estacionada, desenhando e registrando detalhes em esboços rápidos. A
Avenue Parisienne apresenta personagens variados. Um senhor de cartola e óculos,
descansa enquanto assiste ao movimento da rua, sentado no mesmo banco que o
açougueiro, que tem uma cesta de vime no colo e lê um jornal. Ao lado do senhor,
uma mulher carrega uma caixa, que pode ser uma encomenda, algo que comprou ou
que pretende vender. Há um garçom sobre o macadame, aparentemente chamando
uma carruagem para um freguês, uma parisiense bem vestida subindo na calçada.
Mais ao fundo, homens caminham e se saúdam tirando as cartolas; outros dois ca-
minham de braços dados enquanto conversam. Mais atrás, o cliente sentado à mesa
do café fuma e assiste ao movimento; no leito carroçável, charretes, carruagens e o
ônibus andam sem pressa, circulando em sentidos definidos, pela direita. O homem
segurando a maleta acelera o passo, correndo para alcançar o ônibus167; outro, com
cartola, caminha tranquilamente entre as carruagens com a bengala sob o braço.

Os edifícios que ocuparam as bordas das avenidas de Paris mostravam o avanço nas
técnicas construtivas da época. Já existiam os primeiros modelos de elevadores,
contudo, levariam décadas para se tornarem seguros, eficientes e comerciais168.

166 REIS, Fernanda Pulido dos. Os bulevares de Jean Béraud: reflexões sobre a poética do efêmero.
Dissertação (mestrado em Estética e História da Arte) Programa de Pós-graduação Interunidades da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017

167 As primeiras linhas de ônibus em Paris começaram a operar em abril de 1828, conectando a Bastilha
à Madeleine e ao Carrousel. Oito meses depois, a empresa possuía 200 funcionários, 800 cavalos e 89
carros. Em fevereiro de 1830, havia várias empresas concorrentes. Em 1853 foram criados os primeiros
ônibus de dois andares; o nível superior era mais barato e, muitas vezes descoberto. Em 1913 o último dos
ônibus puxados a cavalo foi oficialmente substituído pelo seu equivalente motorizado. Disponível em:
<https:// fr.wikipedia.org/wiki/Stanislas_Baudry>. Acesso em: 1 dez. 2019.

168 Nas décadas seguintes, quando se tornaram acessíveis, foram inseridos nos vãos das escadas,
com gradis e portas pantográficas, executados sob medida para cada um dos edifícios que bancou sua
instalação

236
237
238
Figura 71 (página 237) Este desenho de Edmond Texier, publicado no Tableau de Paris em 1852, apresenta a
secção de uma construção típica de Paris, com a distribuição dos diferentes grupos sociais pelos andares dos
edifícios. O térreo é lugar de trabalho, oficinas ou lojas; os dois primeiros pavimentos são os mais valorizados
por serem menos sacrificados pelo esforço de subir diariamente as escadas. Os pavimentos superiores são
os de menor valor locacional. De certa forma, mantém as mesmas lógicas das insulas romanas do segundo
século.

Figura 72 (página anterior, acima) As três ilustrações do topo, do Tableau de Paris, mostram personagens
que habitavam as ruas da cidade. Na primeira, o menino furta a carteira de um cavalheiro enquanto é
observado pelo adulto que coordena seus trabalhos. Na ilustração seguinte, o homem veste a capa com
uma luva costurada, com enchimento falso. Com esse truque, tem sua mão direita livre e escondida
para furtar os pertences dos passageiros que se sentarem ao seu lado no ônibus. Sentar-se ao lado de
desconhecidos, anônimos, passa a fazer parte do cotidiano dos usuários dos transportes públicos. Na
terceira imagem, o ambulante vende correntes para prender relógios e pertences de bolso para que não
sejam furtados. Grupos se organizam para praticar roubos e furtos nas ruas, demandando estratégias de
segurança, atenção e esperteza para quem caminha por elas.

Figura 73 (página anterior, meio) As três ilustrações seguintes mostram personagens típicos das ruas
das grandes cidades. O primeiro é apresentado como o “Escamoteador”. Ele esconde feijões sob três
copos opacos, movimenta-os com agilidade, embaralhando-os, depois desafia o passante a adivinhar
em qual dos copos está o feijão. O outro é o vendedor que se veste de turco, anunciando as sementes de
palmeiras (datte), quitute comestível muito apreciado até hoje. Ele usa roupas típicas e turbante para
dar autenticidade à origem e valorizar sua mercadoria. O terceiro personagem é a mulher que, vestida
com andrajos e muito abatida, aparentando estar grávida, vende cata-ventos enquanto caminha pelas
ruas puxando a criança mal vestida. São personagens que tiram seu sustento do jogo de solidariedade e
desconfiança estabelecido entre os que caminham pelas ruas.

Figura 74 (página anterior, abaixo) As ruas eram espaço de novos e antigos ofícios. As três últimas
ilustrações tratam de trabalhos feitos nas ruas. O primeiro é o “vendedor de crimes”, pois ler os jornais
era cada vez mais parte integrante da vida urbana. Os cafés, trens e bancos das ruas também eram lugares
para ler jornais. A maior parte dos jornais dava grande destaque nas suas manchetes às notícias de crimes
e tragédias. O segundo é o cego que trabalha nas ruas fazendo reparos nas solas de couro. O terceiro, o
vendedor de marrons que se instalou em uma porta, com seu fogão, para vender quitutes quentes aos
passantes. O menino pobre aproveita o calor do fogão para aquecer as mãos.

239
Embora todos os pavimentos possuíssem unidades sanitárias, não eram distribuídos
igualmente, e o tamanho das unidades não era regular. Os pavimentos térreos, nas
vias mais movimentadas, eram predominantemente comerciais. Os pavimentos mais
altos eram reservados aos que podiam pagar menos (Figura 71), o esforço da subida
diária das escadas fazia com que os mais abastados morassem no segundo pavimento.

Devido à configuração das ruas e ao adensamento das suas bordas, a sobreposição


de diferentes grupos sociais se dava tanto nas edificações quanto nas vias. Paris foi a
cidade do encontro dos diferentes grupos que a habitavam no século XIX. As ações de
renovação não conseguiram expulsar todos os pobres do centro da cidade, os novos
edifícios também não eram tão exclusivos assim. Os empregos, o comércio e os siste-
mas de transporte também garantiram que a rua fosse tão diversa quanto Béraud as
pintou, o que se atesta por meio das histórias da cultura, da arte e do pensamento.

As ruas cheias animaram o comércio e os negócios, mas também criaram uma forma
de anonimato que apenas as grandes cidades permitiram. As massas de pessoas eram
anônimas, o que Sennett descreve como “um conjunto de estranhos”169, não necessaria-
mente forasteiros. Eram os milhares de moradores da cidade que estabeleciam modos
de condutas e vestimentas que permitiam o convívio nos mesmos espaços públicos.

Texier no seu Tableau de Paris, de 1852, (Figuras 72, 73 e 74) conta dos batedores
de carteira, das dificuldades em atravessar as ruas, do conflito entre pedestres e
carruagens, dos vendedores ambulantes, dos pedintes e do diversificado universo
de trabalhos e ofícios exercidos nas ruas. Movimentadas, sendo parte dos caminhos
cotidianos de diferentes grupos sociais, oferecem oportunidades de trabalho e renda
para inúmeros ofícios. Além dos ofícios retratados por Edmé Bouchardon no século
XVIII, que continuam a trabalhar e percorrer as ruas, surgem inúmeros outros
grupos, em quantidades e variedades inéditas.

169 SENNET, 1988, p. 68.

240
As quatro pinturas (Figura 75) na página a seguir mostram modos muito distintos de
olhar a paisagem das ruas. Caillebotte não se espanta com a cidade. Impressionista,
admira suas luzes e, como Béraud, se sente parte dela. Olha as ruas e seu movimento
como um flâneur, com naturalidade e encantamento. Munch – o maior pintor no-
rueguês, que morou em Paris entre outubro e dezembro de 1889 e retornou em 1891
– impactou-se com ela. Não lhe era familiar. Ele viveu parte da sua vida em cidades
muito pequenas, portanto, para ele, Berlim e Paris eram mundos agitados de infor-
mações e novidades que visitou, onde passou longas temporadas. Esse breve período
em que viveu na cidade mudou completamente o rumo do seu trabalho. Ele veio à
cidade para estudar com Bonnat, mas foi às exposições do Café Volpini e ao Salão
dos Independentes, onde conheceu os trabalhos de Van Gogh e Gauguin. Conheceu
também Caillebotte e seu quadro. Para Munch, as ruas eram agitação e movimento. O
homem debruçado na varanda olha com curiosidade, espanto e receio. Os homens na
varanda de Caillebotte estão à sombra, relaxados, observando as luzes que incidem
nas copas das árvores. O homem retratado por Munch está sob o mesmo sol que
ilumina a rua, como quem está diante de um precipício, como quem está atraído para
o movimento das ruas.

A cidade densa, rica e extensa oferece inúmeras oportunidades de aprendizado


e trabalho. Saber como movimentar-se por ela é fundamental a todos os grupos.
As mulheres começam a sair do mundo doméstico e trabalhar sem comprometer
sua reputação e seus vínculos familiares. As condições de segurança nas ruas são
construídas para que jovens, crianças, velhos e mulheres possam circular com maior
frequência e tranquilidade.

Os ônibus puxados por cavalos se multiplicam, as linhas foram estendidas, o número


de carruagens aumentou tremendamente e as largas ruas abertas logo se conges-
tionam. Como já dito, a primeira linha do metrô parisiense foi inaugurada para a
Exposição Internacional de 1900 e o sistema continuou ampliando-se até hoje, no
entanto o movimento das ruas e o tráfego não diminuíram.
Figura 75 Estas pinturas são de dois artistas e mostram que a cidade se debruçou nas varandas e janelas
para assistir às ruas. As duas primeiras são de Gustave Caillebotte (1848-1894). Nascido em uma família
burguesa parisiense, próximo do grupo dos impressionistas, viveu a intimidade e as transformações
da cidade no seu dia a dia. As duas outras são de Edward Munch (1863-1944), pintor norueguês que as
executou ao visitar Paris em 1890. Na época morava em Kristiana (antigo nome de Oslo), que possuía 113
mil habitantes170.

170 Ver em: https://en.wikipedia.org/wiki/Oslo#18th_century

242
Nas ruas de Paris e Londres, as grandes questões das sociedades foram debatidas e
os diferentes grupos e posições se enfrentaram. Os protestos e as manifestações se
deram de inúmeras maneiras. Ruas são lugar de mobilidade e permanência, assim,
muitas vezes o protesto era realizado por meio da interrupção da mobilidade (Figura
76), com a paralisação dos sistemas de transportes ou o fechamento das vias e as
barricadas. Todos os habitantes tinham que circular, os políticos podiam se aplaudi-
dos ou ofendidos quando passavam pelas ruas. Os grupos podiam ser perseguidos ou
discriminados; moradores de rua e prostitutas expulsos de ruas e vizinhanças pela
polícia; ambulantes ou pedintes, proibidos de importunar os clientes sentados às
mesas dos cafés. Os movimentos trabalhistas, reivindicando salários e condições de
trabalho, ocuparam as ruas inúmeras vezes. As mulheres, reivindicando direito ao
voto, manifestaram-se e foram brutalmente reprimidas em Londres (Figura 77).

Se a história das cidades europeias confirma que as ruas são o espaço fundamental
da vida pública, lugar que reitera e transforma diariamente os pactos dos vários
grupos que habitam as cidades, pode-se dizer que a polifonia dos eventos que ocor-
rem nas ruas sofreu grande revés com a chegada dos automóveis no início do século
XX. A velocidade dos veículos de tração animal, como carroças, charretes, ônibus e
bondes, mesmo com o macadame, o traçado reto e o aumento das larguras das vias,
não mudou exageradamente, justamente devido aos congestionamentos.

O Le Petit Journal, um dos quatro grandes jornais franceses no século XIX e início
do XX, funcionando entre 1863 e 1944171 , registrou as transformações no cotidiano
da cidade de Paris desde as obras de Napoleão III até a Segunda Guerra Mundial
(Figura 78). Todas as suas edições estão disponíveis para consulta na Bibliothéque
Nationale de France172, tanto as diárias, como os Suplément Ilustré que circulavam

171 Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Le_Petit_Journal_(newspaper)>. Acesso em: 6 dez.


2019.

172 Disponível em: <https://www.bnf.fr/fr>. Acesso em: 6 dez. 2019.

243
apenas aos domingos. As edições dominicais eram menores, com menos páginas,
muitos anúncios e ilustrações vistosas e coloridas. O Le Petit Journal dava bastante
atenção para crimes e desastres, cobria eventos e debates políticos, além de cuidar
das transformações de costumes e avanços tecnológicos. Suas reportagens mostram
que as ruas mantiveram muitas das práticas tradicionais, como as festas religiosas,
funerais e manifestações cívicas. Mostram também que as ruas eram espaços usados
para diferentes eventos compartilhados, como bailes e festas públicas.

Figura 76 Os sindicatos e as greves foram legalizados por Napoleão III, porém protestos e manifestações
políticas e sindicais não eram necessariamente autorizadas ou pacíficas. Grande parte dos eventos mais
violentos foi organizada por anarquistas na década de 1890, com bombas em residências, restaurantes e
edifícios públicos. Após os atentados anarquistas, o número de policiais aumentou. As organizações dos
movimentos políticos, sociais e sindicais ora conseguiram mobilizar a sociedade para a legitimidade dos
seus pleitos, ora perderam o apoio nas ruas.

244
Suas matérias permitem observar as grandes mudanças ocorridas no período no
modo como as mulheres se inserem nas dinâmicas econômicas, tanto na produção
quanto na comercialização e consumo de produtos.

Figura 77 O Representation of the People Act, de 1832, reorganizou o sistema eleitoral britânico e proibiu
a participação política das mulheres. Desde então variadas lideranças femininas tentaram organizar
as lutas para que as mulheres tivessem o direito de votar. Em 1872 a luta pelo sufrágio feminino foi
organizada em toda a Grã-Bretanha; as campanhas com cartazes e passeatas foram reprimidas com
prisões e violência. Greves de fome foram combatidas com alimentação forçada e torturas. Foi quase um
século de manifestações e protestos tolerados ou reprimidos com extrema violência. A imagem mostra
a repressão policial à Black Friday, manifestação sufragista realizada em Londres, em 18 de novembro
de 1910, reprimida com extrema violência; mulheres foram pisoteadas, espancadas e presas pela polícia
londrina. As ruas foram palco privilegiado e estratégico das manifestações. O radicalismo e o estoicismo das
manifestantes contra a violência policial faziam com que a opinião pública e a imprensa ora apoiassem o
movimento, ora tolerassem sua repressão. Essa luta só foi vencida parcialmente em 1918 e, finalmente, em
1928.

245
Figura 78 (acima e na página seguinte) Estas edições dominicais do Le Petit Journal mostram diferentes
aspectos da vida nas ruas da cidade.

A edição de 15 julho de 1900, à esquerda, mostra transeuntes atirando frutas em Joseph Reinach, figura
importante e conhecida na época, deputado que publicava textos em vários jornais. Na ilustração ele aparece
sendo insultado nas ruas por assumir a defesa do polêmico Caso Dreyfus. Por ter ganhado a causa e provado
sua razão foi reeleito em 1906. O texto original da edição é “MANIFESTATION POPULAIRE CONTRE M.
REINACH”.

A edição de 03 de março de 1907, à direita, mostra jovens operários embriagados sendo presos por causar
barulho e brigas em um bar incomodando a vizinhança e os que passavam pelo boulevard. Texto original da
edição: “TABLEAUX DU PARIS NOCTURNE. Une rafle dans um bar”.

A edição de 17 julho de 1921, na página a seguir mostra festas populares nas ruas de Paris para comemorar
a data nacional, a Queda da Bastilha. O jornal informa que a tradição de comemorar a data com bailes
populares tomou vários “carrefours” pela cidade. As ruas são lugar para ganhar ou perder reputações e
credibilidade. O texto original desta edição é “Le Bal dans la Rue. A tous les carrefours, autor des estrades ou se
groupent des musiciens, les danseurs tournoient. En ce soir de Fête Nationale, tango et fos-trott simplifiés, assainis
par la robustesse et la bonne humeur des Parisiens, reçoivent leur grande naturalisation” .

246
247
4.5 Mudança de padrões – os carros

Os carros assumiram a condição de principal modo de circulação nas cidades das


primeiras décadas do século XX, em uma transformação tão acelerada quanto
generalizada, transformando de forma radical as cidades do mundo todo, a partir das
maiores e mais economicamente dinâmicas (Figura 79). A principal razão foi o fato de
que as grandes cidades não seriam viáveis, dependendo de cavalos para sua mobili-
dade. Os automóveis foram fruto de avanços tecnológicos, a resposta da tecnológica
viável e urgente ao problema urbano, pois a mobilidade nas grandes cidades estava
no limite da funcionalidade.

No início do século XX, as três maiores cidades do mundo eram Londres (4,5 mi-
lhões), Nova York (3,4 milhões) e Paris (2,6 milhões). Nas três, ainda em meados do
século XIX, o principal modo de circular eram os bondes com tração animal, uma vez
que os trilhos ofereciam maior estabilidade que os antigos ônibus em carroças. Em
Nova York, na década de 1870173, esse tipo de transporte permitia a realização de 35
milhões de viagens por ano. Contudo, para movimentar um único bonde, eram ne-
cessários oito cavalos, pois os animais não suportavam turnos com mais de 4 horas.
Em 1880 já havia mais de 150 mil cavalos em Manhattan. Como cada animal libera,
em média, 25 quilos de esterco por dia, a produção atingia 45 mil toneladas por mês,
parcialmente distribuída nas ruas, gerando grandes desafios para o departamento
de limpeza viária. O aproveitamento do esterco para a agricultura não resolvia os
problemas logísticos e econômicos da remoção permanente de tanto esterco das
ruas. Em 1894 o jornal Times, de Londres, previa que, mesmo com o metrô e os trens
urbanos, em meados do século XX as ruas da cidade teriam 1,5 metro de estrume.
A conferência de planejamento urbano realizada em Nova York, em 1898 reuniu urba-
nistas do mundo todo, mas as discussões acerca do esterco urbano não encontraram

173 KOLBERT, Elizabeth. Hosed, is there a quick fix for the climate? The New Yorker, 9/11/2009. Disponível
em: <https://www.newyorker.com/magazine/2009/11/16/hosed?verso=true>. Acesso em: 20 dez. 2019.

248
Figura 79 Estas edições dominicais do Le Petit Journal mostram como os automóveis passaram de
curiosidade para parte importante do cotidiano da cidade, impondo novas regras de comportamento e
circulação tanto para os veículos quanto para os pedestres. Na edição de seis de agosto de 1894 (no topo, à
esquerda) a matéria mostrava os estranhos “Carros sem cavalos” apresentando a curiosidade acerca dos tipos
de veículos automotores em experimentação. O texto original da edição é “Concours du “Petit Jornal” LES
VOITURES SANS CHEVAUX”. A edição de 30 janeiro de 1921 (à esquerda, embaixo), 27 anos depois, mostrava
o guarda público interrompendo o trânsito do “trepidante boulevard” para que a mulher, empurrando o
carrinho de bebê, atravessasse a pista. Atrás da cena veem-se diferentes veículos como ônibus e carros
esportivos. O texto original: “Notre avenir qui passe... Un geste de l’Agente a suspendu, pour un instant, la vie
trépidante du boulevard: Sa Majesté l’Enfant traverse la chaussé...!”. Em 5 de outubro de 1924 (à direita), um
inventor propõe um estranho dispositivo semelhante aos que as locomotivas usam para remover objetos dos
trilhos para proteger os pedestres. Evidencia que os acidentes e atropelamentos passaram a fazer parte do
cotidiano da cidade. Na época ainda não compreendiam que a tecnologia não evitaria os atropelamentos, mas
mudanças comportamentais e de desenho dos espaços públicos. O texto original: “Pour la sauvegarde des
piétons. Il est bien juste qu’on s’occupe enfin d’eux. Un inventeur vient de proposer un appereil qui, fixé à l’avant
des autos, cuillerait au passage les inprudents surpris sur la chaussé. Les expériences faites sur un “écrasé”
volontaire ont donné les meilleurs résultats.”
249
solução para o problema. No fim do século o crescimento das cidades, com o aumento
das populações e cargas em circulação, impunham soluções urgentes. Não espanta
que tantos esforços tenham sido realizados nas grandes cidades na pesquisa de meios
de locomoção que prescindissem dos animais.

De acordo com o livro de 1878, The world on wheels174, em 1863 Nova York abrigava
cerca de 13.500 veículos de todos os tipos. Destes, 5 mil eram carruagens e charretes
particulares; 1.500, ônibus e carruagens de aluguel; 5.350, charretes de aluguel e
1.650 veículos de carga públicos e privados para coleta de lixo e abastecimento, além
de número incontável de carrinhos de mão e outros artifícios comerciais montados
sobre rodas. Manter qualquer veículo era caro; era muito mais viável alugar quando
necessário.

No fim do século XIX, a população se aproximava do primeiro milhão e o tráfego


já era problema (Figura 81). Em 1885 o engenheiro Francis V. Greene, avaliando o
tráfego que passava pela esquina da Broadway e Pine Street, contou 7.811 veículos
puxados por cavalos em um dia normal. Em 1916, na esquina da Quinta Avenida e da
57th Street, passaram cerca de 14.750 carros e carruagens em um período de 10 horas
– números parecidos com os atuais175.

Os primeiros veículos foram inventados e produzidos na França e na Alemanha nas


últimas décadas do século XIX, mas foi nos Estados Unidos que ganharam escala.
O Ford T foi lançado em 1908, inicialmente com produção de pouco mais de 10 mil
unidades por ano. Com a racionalização do sistema produtivo e uma nova fábrica em
1916, já eram produzidas 500 mil unidades por ano176. Quando o modelo foi aposen-
tado, em 1927, deixou o legado de cerca de 14 milhões de unidades produzidas! A

174 Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=-7o5AQAAMAAJ&pg=PA458&redir_


esc=y#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 13 dez. 2019.

175 NEVIUS, James. It’s time to ban cars from Manhattan. 2019.

176 Ver em: https://en.wikipedia.org/wiki/Ford_Model_T#Mass_production

250
mudança foi tão acelerada que, já em 1912, o número de carros em Nova York supe-
rava o de cavalos. Em 1917 o último bonde da cidade puxado a cavalo fez sua última
viagem.

Os automóveis vão alterar, em poucos anos, todo o equilíbrio e o modo de apropriação


e mobilidade nas ruas de todas as cidades do mundo. Em Nova York a mudança será
tão rápida quanto radical. Algumas imagens podem sintetizar as transformações no
modo de utilização, no cotidiano e na vitalidade das ruas da cidade (Figuras 80 e 82).

O século XX foi o século dos automóveis. O desenho das cidades mudou comple-
tamente em função desse modo de circulação, os habitus, as praxis e o cotidiano
das cidades foram drasticamente transformados. A forma de produção, o mercado
imobiliário, a forma de organização do território e a legislação urbanística, todos os
aspectos da ville e da cité foram tão impactados que aprofundar as transformações
decorrentes do predomínio do automóvel nas vias urbanas permitiria o desenvolvi-
mento de outro trabalho de grande vulto.

O pensamento urbanístico desenvolvido no início do século XX foi pautado, em gran-


de parte, pelo reconhecimento dos automóveis como o modo de circulação urbana
moderno e predominante. Le Corbusier, o mais importante e influente arquiteto e
urbanista do século XX, não pensava diferentemente. Elaborando seu pensamento
urbanístico a partir da vivência cotidiana em Paris, identificou corretamente que as
ruas da cidade não eram eficientes para a circulação de automóveis. Nas primeiras
décadas do século, o trânsito da cidade comprometeu grande parte das virtudes que
os boulevards haussmaniannos tiveram décadas antes, tornando-os barulhentos,
congestionados e perigosos para pedestres. Os cruzamentos de muitas avenidas não
permitiam que os veículos desenvolvam velocidades maiores do que as praticadas
com as ultrapassadas charretes.

251
Figura 80 A Mulberry Street é uma das ruas da área de Manhattan que recebeu muitos imigrantes italianos
no fim do século XIX e início do XX, sendo palco da vida diária da comunidade e da área que foi conhecida
como Little Italy. Os migrantes recém-chegados nas cidades americanas organizavam-se territorialmente
em verdadeiros guetos, como estratégia de defesa e organização social, econômica e política. Essa icônica
foto, tirada em 1900, mostra um dia de feira na Mulberry, com seus 13 metros de largura apinhados de gente,
janelas e lojas abertas, transformando o leito carroçável e as calçadas em um único espaço, animado, comum
e compartilhado. Os apartamentos pequenos e as famílias numerosas, com muitas crianças, impunham
que os espaços das ruas ficassem repletos de mulheres e crianças de variadas idades. A rua pavimentada
com macadame, as carroças carregadas com mercadorias, a enorme quantidade de pessoas a transformam
em verdadeira praça de comércio. Com ajustes nos tipos das construções e as vestimentas, a mesma cena
poderia ter sido vista em Roma no século III ou em Paris no século XVII. Associa-se a rua, até hoje, às
tradições italianas da cidade.

252
Figura 81 A proposta de construção de uma rua elevada sobre a Broadway, em 1868, revela que a
circulação em Manhattan já se apresentava muito complicada em meados do século XIX. Robert Melville
Smith177, um prestigiado engenheiro canadense, propôs construir novas ruas sobre as existentes,
separando pedestres e carruagens, liberando a de baixo para trens e bondes. Naturalmente, a solução
mais eficiente e prática foi a construção de linhas férreas aéreas, como mostra esta foto da Herald Square,
de 1903, no cruzamento da Broadway com a 6th Avenue. Quando as linhas de metrô foram construídas, as
linhas aéreas foram retiradas.

Figura 82 Foto tirada na Quinta Avenida na


segunda década do século XX. O fotógrafo estava
na parte superior descoberta de um dos ônibus
de dois níveis. Não se veem mais carroças, cavalos
e pedestres nas pistas. Rapidamente, os leitos
carroçáveis tornaram-se perigosos demais para os
pedestres.

177 Ver em: https://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Melville_Smith

253
Todo o seu pensamento urbanístico se baseia na necessidade de eliminar as ruas
e seus cruzamentos (Figura 83). Sua visão urbanística busca a simplicidade, a
simplificação das funções, dos habitus e dos sistemas urbanos. Reduz a diversidade
e propõem eliminar tudo o que possa comprometer a simplicidade preconizada.
Todavia, como Morin ensina, estamos condenados à complexidade; qualquer sim-
plificação dos múltiplos sistemas que operam nos espaços concretos é ingênua e
empobrecedora.

Existe ampla literatura apontando as consequências e desdobramentos do urbanis-


mo da Carta de Atenas178 e das propostas de Le Corbusier. Neste trabalho, destacam-se
apenas as razões para que as ruas sejam, de fato, um problema para o urbanismo
modernista e algumas consequências dessa questão.

As ruas eram entendidas por Le Corbusier como mera questão de mobilidade e


deslocamento. Para ele todas as outras funções poderiam ser mais bem resolvidas
em outros lugares, como os cafés no topo dos edifícios, o comércio nos centros
comerciais, o passear, nos parques e áreas verdes. Eliminando as ruas, a mobilidade
poderia ser planejada em termos de percursos coerentes com distâncias e velocida-
des. Os percursos mais longos deveriam ser feitos em automóveis por autopistas, sem
semáforos ou cruzamentos em nível, com trevos viários, viadutos e alças de acesso
permitindo que os veículos desenvolvessem plena velocidade. O trajeto dos automó-
veis não deveria ser perturbado nem por cruzamentos nem por travessias de pedes-
tres, deveriam ser verdadeiras rodovias urbanas. Transportes individuais e eficientes
dariam autonomia e liberdade de movimento para todos. Os percursos mais curtos,
entre a moradia e a escola ou ao posto de saúde, seriam realizados a pé, caminhando
por áreas verdejantes e tranquilas, sem pedintes, ambulantes ou comércio que
pudesse desvirtuar os espaços.

178 CORBUSIER, Le. A carta de Atenas. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1993.

254
Figura 83 Le Corbusier publicou livros, viajou o mundo, deu palestras em vários países e em congressos
nos quais repetia sua ideia de que as ruas em forma de corredores deveriam desaparecer, para que as
cidades pudessem encontrar novos modos de organização. Seus croquis tão sintéticos e impactantes quanto
suas falas mostravam os espaços do urbanismo barroco de Paris como um emaranhado de cruzamentos,
o L’Etoile ou as praças como más soluções para o cruzamento de fluxos. As perspectivas das ruas com
edifícios correndo paralelamente às vias, sem horizontes, são, para Corbusier, exemplos de tudo o que era
incompatível com as novas, verdejantes e ensolaradas cidades preconizadas pelos CIAMs. Sua frase mais
sintética era “Il faut tuer la “rue-corridor”!”, “Temos que matar a “rua-corredor”!”

255
Reunidos em um congresso em Atenas, em 1933, importantes urbanistas, entre eles
Le Corbusier, redigiram um documento que ganhou grande repercussão e aceitação
entre os urbanistas de todo o mundo. A Carta de Atenas deixava claro como entendia
a questão:

51. A rede existente de vias urbanas surgiu da aglomeração das estradas auxiliares
das principais rotas de tráfego. Na Europa, essas principais rotas datam da Idade
Média, às vezes até da Antiguidade.

52. Concebidos para o uso de pedestres e veículos puxados por cavalos, elas são ina-
dequadas para o transporte mecanizado atual.

53. Essas dimensões inadequadas das ruas impedem o uso efetivo de veículos meca-
nizados em velocidades correspondentes à pressão urbana.

54. As distâncias entre encruzilhadas são irregulares.

55. As larguras das ruas são insuficientes. Seu alargamento é difícil e muitas vezes
ineficaz.

56. Diante das necessidades dos veículos de alta velocidade, o padrão de rua aparen-
temente irracional presente carece de eficiência e flexibilidade, hierarquia e ordem.

57. As relíquias de uma antiga magnificência pomposa projetada para efeitos monu-
mentais especiais muitas vezes complicam a circulação do tráfego.

(...)

É RECOMENDADO QUE

59. Deverão ser realizados estudos de tráfego, com base em estatísticas precisas,
para mostrar o padrão geral de circulação na cidade e sua região, revelando as ro-
tas mais utilizadas e os tipos de tráfego.

60. As rotas de transporte devem ser classificadas de acordo com sua natureza e
projetadas para atender os requisitos e velocidades de tipos específicos de veículos.

61. Os cruzamentos de tráfego mais utilizados devem ser projetados para a passa-
gem contínua de veículos, utilizando diferentes níveis.

256
62. As rotas de pedestres e de automóveis devem seguir caminhos separados.

63. As estradas devem ser diferenciadas de acordo com suas funções: vias residen-

ciais, calçadas, estradas, principais rodovias, etc.179

Essa visão funcionalista das ruas, como mera questão de mobilidade, predominou
na maioria das propostas urbanísticas do século XX. Muitas vezes, como antes,
essas propostas atendiam, simultaneamente, a interesses imobiliários de renovação
e remoção de usos e populações que comprometessem interesses imobiliários e
comerciais. Para os urbanistas do Congresso Internacional da Arquitetura Moderna
(CIAM), as ruas bem planejadas seriam as que tivessem usos e usuários definidos.
Entendendo que o objetivo é simplesmente a mobilidade, a velocidade tem valor
absoluto. Países mais desenvolvidos implantaram amplo sistema rodoviário, que
cruzou rios, serras e todos os obstáculos, inclusive as cidades. Assim, os mesmos
veículos e velocidades praticadas nas estradas entraram nas cidades.

As cidades se estenderam pelos territórios, passaram a ocupar vastas áreas conec-


tadas por estradas. Por essa razão, a velocidade dos automóveis deveria ser a maior
possível. Os limites entre o que é estrada e o que é rua foram perdidos; as estradas
ganharam usos urbanos; novas estradas foram abertas, rompendo os tecidos urbanos
e algumas ruas viraram estradas. Como reforça Martins180, no século XX a rua deixou
de abrigar diferentes atividades para ser entendida exclusivamente como espaço de
deslocamento e infraestrutura para a circulação de veículos. Daí que os pedestres
que circulam pelas ruas foram limitados às calçadas, pois são incompatíveis com as
velocidades que se quer praticar nas cidades. Os inúmeros esforços de apropriação
de todo o sistema viário, como infraestrutura de mobilidade, geraram aterros, túneis

179 CORBUSIER, 1993.

180 MARTINS, Luís Pompeu. A cidade em movimento: a via expressa no pensamento urbanístico do século
XX. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

257
e viadutos que romperam os tecidos urbanos, criando fraturas e segregação urbana.
O volume de veículos circulando tornou-se a principal fonte de poluição urbana,
contaminando o ar e o solo das cidades.

Formado em Ciência Política, sem formação de urbanista, Robert Moses ocupava


cargos importantes. Dirigia o New York State Park Council e a Long Island Parks
Commission, quando foi encarregado de coordenar os trabalhos para a Feira
Internacional de Nova York de 1939. O tema Building the World of Tomorrow criava
grande oportunidade para moldar visões de cidade (Figura 84). Falava dos avanços
tecnológicos e seus futuros impactos, como as cidades deveriam ser moldadas para
que os automóveis pudessem resolver a mobilidade urbana. A convicção de que o
automóvel seria a forma de mobilidade urbana do futuro acompanhou Robert Moses
por toda a vida.

O urbanismo pautado pelo automóvel, apoiado por atender interesses econômicos


e imobiliários, foi responsável pela transformação das cidades ao longo do século
XX, período em que grande parte da população do planeta se urbanizou. Em 1900 a
população mundial era de 1,65 bilhões, com 270 milhões morando nas cidades, cerca
de 16% da população; em 2000 o mundo abrigava 6,15 bilhões, e a população urbana
representava 2,87 bilhões, 46% do total181. Ou seja, mundialmente, a população
urbana cresceu mais de 10 vezes no século XX, enquanto a população total cresceu 3,7
vezes.

181 Dados obtidos no Our World In Data. Disponível em: <https://ourworldindata.org/


search?q=world+urban+population+1900>. Acesso em: 7 dez. 2019.

258
Figura 84 A New York International Fair, aberta em 1939 com o tema Building the World of Tomorrow, mostrou
pra 25 milhões de visitantes, em monumentais pavilhões e maquetes, como deveriam ser as cidades do
futuro, ou melhor, como deveriam ser as cidades do automóvel. O pavilhão da General Motors abrigava a
maquete Futurama, projetada por Norman Bel Guedes, mostrando que as ruas deveriam ser divididas em
dois níveis: o térreo liberado para a circulação e estacionamento dos veículos e, no primeiro nível, as calçadas
seriam convertidas em varandas para pedestres. Parte da feira foi construída como a maquete propunha
para que os visitantes tivessem a experiência de andar na cidade do futuro.

259
4.6 Recuperação dos padrões – mobilidade ativa

Estudos da ONU demonstram que os processos de urbanização continuam acelera-


dos em muitos países. Em 2009 a população urbana ultrapassou a rural; em 2019 a
população mundial é de cerca de 7,7 bilhões – 4,3 bilhões morando em cidades (56%)
e 3,4 em áreas rurais (44%). Circulam atualmente cerca de 1,2 bilhões de carros, e al-
guns analistas avaliam que esse número poderá crescer para dois bilhões em 2035182.

Embora a quantidade de automóveis siga crescendo, observa-se que as cidades


estão buscando modelos alternativos para a gestão da mobilidade urbana. Gestões
municipais, em diferentes países, buscam novos modelos urbanos com cidades mais
densas, compactas, baseadas no transporte público e na mobilidade ativa. Inúmeros
exemplos podem ser listados, contudo Londres, Paris, Nova York e Barcelona são
as de maior visibilidade, justamente por serem laboratórios urbanísticos muito
conhecidos.

Em recente pesquisa encomendada pelo governo municipal de Paris183, perguntaram


aos motoristas quais as razões que os levam a usar seus automóveis. O carro, em
Paris, é muito pouco usado por famílias, grupos ou pais com seus filhos: 80% dos
veículos circulam com apenas uma pessoa a bordo. Mais de 50% dos parisienses não
possuem veículo, portanto se poderia imaginar que o tráfego da cidade é composto
principalmente por motoristas vindos de subúrbios mais distantes, menos bem
servidos pelos transportes públicos. Entretanto, mais da metade dos motoristas e
veículos motorizados de duas rodas que circulam no centro informa que só dirigem
em Paris. Apenas 10% dos motoristas ou condutores vêm ou vão para além dos

182 GREEN CAR REPORTS. Disponível em: <https://www.greencarreports.com/news/1093560_1-2-


billion-vehicles-on-worlds-roads-now-2-billion-by-2035-report>. Acesso em: 7 dez. 2019.

183 Le Vrai du Faux: idées reçues sur la voiture à Paris. Disponível em: <https://www.paris.fr/actualites/
a-paris-seuls-22-des-conducteurs-ont-reellement-besoin-d-un-vehicule-3876#particuliers-versus-
professionnels_4>. Acesso em: 3 ago. 2019.

260
arrondissements da cidade; os demais fazem deslocamentos muito menores. Os moto-
ristas que cruzam Paris de um lado a outro são muito poucos e a maioria das viagens
é curta: 42% das viagens são inferiores a 10 quilômetros e 12% percorrem menos de
5 quilômetros. Nem mesmo pode-se atribuir o trânsito no centro de Paris aos profis-
sionais que necessitam transportar máquinas ou equipamentos, pois apenas 20% dos
deslocamentos são feitos por profissionais; 80%, por razões particulares e 64% das
viagens são feitas por profissionais mais qualificados, que não são os moradores das
classes mais populares. Apenas 22% dos motoristas entrevistados admitem a neces-
sidade de usarem o automóvel; 65% dizem que o fazem por ser mais rápido; 25%, por
ser mais confortável.

A queda da qualidade do espaço urbano, os novos padrões urbanísticos, a baixa densi-


dade e as dificuldades de circular a pé geraram mudanças de hábitos que agravaram o
sedentarismo das populações urbanas de maior renda. Os modos de vida contempo-
râneos fazem a vida na cidade cada dia mais sedentária, aumentando a ocorrência de
doenças decorrentes da obesidade e do sedentarismo.

O carro passou a ocupar de tal maneira as ruas que alterou o modo das pessoas se
relacionarem nos espaços públicos. Essa percepção motivou o aparecimento de
vasta produção teórica, nos anos 1960, que apontava a importância da recuperação
das qualidades que a cidade e as ruas perderam devido ao predomínio do automóvel.
Kevin Lynch184 (The image of the city), Gordon Cullen185 (Townscape) e Aldo Rossi186
(L’architettura della città) buscaram reiterar a importância das ruas, resgatando
aspectos de desenho que a Carta de Atenas não considerava relevantes, como territó-
rios, aspectos visuais, simbólicos e formais.

184 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

185 CULLEN, Gorden. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 2002.

186 ROSSI, Aldo. A Arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

261
Não surpreende que a crítica mais famosa tenha sido elaborada por uma mulher
de Nova York. Jane Jacobs era moradora de Greenwich Village, escrevia artigos em
revistas de arquitetura e participou da mobilização dos moradores do bairro contra
uma obra viária, a implantação de uma via expressa proposta por Robert Moses, que
destruiria a sua querida Washington Square. Desde que assumiu os conselhos, em
1924, Moses acumulou diferentes cargos por 25 anos, logrando invejável conjunto de
obras bem-sucedidas: túneis, pontes e vias expressas que buscavam compatibilizar a
quadrícula regular da Ilha de Manhattan com a Era do Automóvel187.

O confronto entre Jacobs e Moses se dava entre duas maneiras de compreender


tanto a forma quanto o modo de construir as cidades. Todas as vezes que a população
organizada agendou audiências e fóruns públicos para a discussão da proposta,
Moses se recusou a comparecer. As forças hegemônicas que apoiaram suas obras e a
sua capacidade de impor os projetos e obras encontraram em Washington Square sua
primeira derrota.

A adesão e a experiência junto aos grupos organizados ajudaram Jacobs a compreen-


der o papel chave das ruas na vida cotidiana e política das cidades. A partir do pró-
prio cotidiano, no bairro em que morava, identificou as complexas relações sociais,
políticas e econômicas tecidas nos encontros casuais e rotineiros entre vizinhos,
comerciantes e pessoas que circulavam diariamente nas ruas do bairro. Em The death
and life of great american cities188, Jacobs reiterava que as ruas eram muito mais do
que mobilidade, deveriam ser o palco da vida comunitária, pública e política.

Para entender a razão pela qual Nova York é a cidade americana onde poderia nascer
tal percepção, basta comparar o número de carros da cidade com o de Los Angeles.
Em 2017 a população de Nova York era de 8,6 milhões para 1,9 milhões de carros, 0,22

187 POMPEIA, A., MARTINEZ, B. F. e TJABBES, B. Jane Jacobs e Robert Moses. In: CIMBALISTA, Renato.
Org. Situando Jane Jacobs. São Paulo: Annablume Editora, 2018.

188 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

262
carros/hab.; Los Angeles tinha 4 milhões de habitantes e 6,6 milhões de carros – 1,62
carros/hab., sete vezes mais! O traçado das ruas, seu adensamento histórico, o valor
do solo urbano e muitas outras razões podem explicar como Nova York continuou
sendo uma cidade densa, diversa e multifuncional, com vários dos seus bairros
apresentando as condições para haver ruas com as qualidades urbanísticas que
Jacobs identificou.

A quadrícula de ruas que toma a maior parte da Ilha de Manhattan foi definida por
uma comissão de três pessoas que apresentou o plano em 1811, estabelecendo a
grelha, padrão recorrente nas cidades americanas e espanholas. A numeração das
ruas começa logo depois da Houston Street (a rua zero), numerando até a 155th Street.
A distância entre as ruas não era relevante, o que importava à comissão eram os lotes
entre elas, milhares de lotes regulares com 25 pés de largura por 100 pés de profundi-
dade (7,62 por 30,48 metros que seriam vendidos, expandindo a cidade para o norte.
Por isso, a maioria das quadras mede 60 metros de largura, com o comprimento
variando entre 130 e 250 metros189.

Portanto as avenues que percorrem a ilha longitudinalmente cruzam as streets a cada


60 metros. Não há mecanismos de sincronização de semáforos que permitam que os
veículos desenvolvam grandes velocidades, apenas as vias expressas implantadas nas
bordas da ilha permitem maiores velocidades. A trama com ruas de 18 metros e ave-
nidas de 30 metros, generosas para a época, garantiu boas calçadas, permitindo que
a população use mais a mobilidade a pé do que os carros até hoje. Como os elevadores
chegaram à Manhattan meio século antes dos automóveis, a densidade construtiva
veio antes dos estacionamentos, e as antigas charretes e carruagens foram substituí-
das por táxis. É mais eficiente, prático e barato andar a pé, de transporte público ou
de táxi do que ter um carro na cidade.

189 NEVIUS, 2019.

263
Na mesma cidade, William Whyte190 desenvolveu, a partir dos anos 1970, a pesquisa
The social life of small urban spaces, identificando a partir da observação direta o
comportamento dos grupos humanos nos espaços urbanos sem função definida,
espaços que propiciam descanso e encontros importantes no cotidiano da cidade.
Seu trabalho alinhava-se com a valorização dos espaços públicos e semipúblicos que
a legislação da cidade trabalhava nesta mesma época.

Whyte estava interessado em identificar os grupos humanos, suas motivações e


comportamentos, investigando os modos que os diferentes grupos se relacionavam
nos espaços públicos. Entendia que a vida pública ocorre na interação desses vários
grupos nos espaços públicos de circulação e permanência. Quando trabalhou no
Department of City Planning (DCP), sua equipe instalava câmeras que registravam
os lugares em que os diferentes grupos se sentavam ao longo do dia, observando
as condicionantes dos comportamentos. Acreditava em processos mais amplos e
participativos, tendo proximidade com vários grupos que se organizaram para atuar
na concepção e gestão de espaços públicos como o Project for Public Spaces (PPS)191,
criado por Fred Kent, uma organização que atua fortemente na cidade até os dias de
hoje.

Amanda Burden trabalhou com Whyte no DCP assumindo sua direção durante a ges-
tão Bloomberg entre 2002 e 2013. Participando de muitas das ações que sinalizaram
a mudança de paradigmas, como o High Line Park e o East River Esplanade. Depois
de deixar o DCP, assumiu a coordenação da Bloomberg Associates, uma empresa
de consultoria fundada por Michael R. Bloomberg para divulgar a agenda de ações

190 WHYTE, William H. The social life of small urban spaces. New York: Project for Public Spaces, 1980.

191 Mais informações em: https://www.pps.org/

264
pautadas em transporte público, mobilidade ativa e priorização dos pedestres para as
prefeituras ao redor do mundo192.

Janette Sadik-Kahn foi nomeada por Bloomberg para dirigir o New York City
Department of Transportation193, priorizando os pedestres e mobilidade ativa, resul-
tando na conversão de pistas para automóveis em calçadas, ciclovias e corredores de
ônibus. Ela acompanhou a execução de quase 640 quilômetros de ciclovias, a implan-
tação do maior programa de compartilhamento de bicicletas dos Estados Unidos e a
criação de 60 novas praças, entre elas a Times Square. Também trabalhou na National
Association of City Transportation Officials (Nacto), levando para muitas cidades
americanas as mesmas políticas experimentadas em Nova York.

Existe certa ironia no fato de que Robert Moses, dirigindo os New York State Park
Council e a Long Island Parks Commission, abriu vias expressas aumentando a veloci-
dade dos automóveis, e Janette Sadik-Kahn, dirigindo o New York City Department of
Transportation, restringiu a velocidade dos automóveis e criou espaços para crianças
e pedestres. O que essa oposição mostra é que o modo de entender as cidades e suas
ruas mudou radicalmente nessas décadas.

As forças hegemônicas que permitiram Haussmann e Moses intervirem nas cidades


de modo radical não são mais capazes de sufocar resistências impondo seus projetos
sem negociação. O automóvel não é mais aceito como o modo desejável ou a solução
para a mobilidade urbana. Em cidades mais plurais com debates mais amplos e
posições divergentes, mesmo as intervenções pontuais propostas por Sadik-Kahn
tiveram de encontrar outras formas de debate e pactuação.

192 Mais informações em: https://www.bloombergassociates.org/

193 Mais informações sobre os DOTs em: https://nycdotprojects.info/

265
Antes Depois

266
Figura 85 (página anterior) A imagem da transformação da Times Square aberta para pedestres é a mais
icônica mudança no modo de compreender e trabalhar os espaços viários no mundo. Vários cruzamentos
entre a Broadway e as avenues de Manhattan são conhecidos; a Times Square é o cruzamento da Broadway
com a 7ª Avenida. É o mais conhecido por ter abrigado a sede do jornal The New York Times entre 1904 e
1913, e ter sido o endereço do Hotel Astor entre 1904 e 1967, tornando-se o ponto de reunião da população
para celebrar datas especiais, como o fim da Segunda Guerra Mundial e a contagem regressiva na virada
do ano. O fechamento ao tráfego acontecia de modo esporádico, contudo essas práticas permitiram
que a proposta de fechamento permanente fosse cogitada. O projeto de fechamento de duas quadras da
Broadway enfrentou grande resistência de moradores e comerciantes da área. Adotando as práticas de
Whyte, foram instaladas 18 câmeras e o sistema de contagem automatizado monitora 35 pontos, 24 horas
por dia, sete dias por semana. Atualmente cerca de 380 mil pedestres entram no coração da Times Square
todos os dias. Nos mais movimentados, o número cresce para 450 mil e, mesmo no período entre 19h e 1h,
mais de 85 mil pessoas ocupam o espaço194.

Em Street Fight195, Sadik-Kahn conta que cada obra executada demandou semanas
de negociação e debates públicos com os vários grupos interessados no projeto
específico. As diferentes posições tinham de ser manifestadas, compreendidas e
negociadas para que a proposta mais aceita fosse debatida e pactuada. Ainda assim,
mesmo depois desse processo, as obras eram implantadas em caráter experimental
para que todos os usuários do lugar pudessem ter a oportunidade efetiva de testar a
solução antes de consolidá-la. O debate com a população exige mais do que desenhos
informativos e claros, mais do que dados e projeções futuras, exige a experiência
física concreta. A experiência vivenciada é o melhor modo de avaliar possibilidades e
impactos.

A proposta de fechar definitivamente duas quadras da Broadway na Times Square


enfrentou grande resistência de comerciantes locais, de motoristas que passavam
diariamente pela via, de moradores da vizinhança (Figuras 85 e 86. Sadik-Kahn diz
que em 2008, quando passou pela primeira vez como commissioner pelos 1,7 hectares
da Times Square, sabia que 89% do espaço entre as 43rd e a 47th streets era dedicado

194 Disponível em: <https://www.timessquarenyc.org/do-business/market-research-data/pedestrian-


counts>. Acesso em: 12 dez. 2019.

195 SADIK-KAHN, Janette; SOLOMENOW, Seth. Street fight, handbook for an urban revolution. New York:
Penguin Random House, 2016.

267
aos automóveis e, das 356 mil pessoas que passavam por ali todos os dias, 82% o
faziam caminhando. Em 25 de maio de 2009, fecharam provisoriamente as pistas
para os automóveis, com containers e balizadores, colocando vasos e cadeiras de praia
para que os pedestres pudessem se apropriar das áreas reservadas aos carros. Foi um
longo debate coletivo, amplamente coberto pela imprensa, com monitoramento e
questionários aplicados com a população para que a experiência pudesse convencer
os mais resistentes à proposta. Para avaliar o impacto no trânsito ao redor, moni-
toraram os dados dos GPS instalados nos 30 mil táxis da cidade, acompanhando os
congestionamentos nas imediações e as mudanças nos tempos dos trajetos percor-
ridos. Os dados coletados desmentiram as manifestações contrárias dos taxistas,
que diziam que o fechamento havia piorado o trânsito. Ao contrário, os dados
confirmaram que o trânsito melhorou com o fechamento da via. Os atropelamentos
diminuíram em 40%; os acidentes entre carros, em 15%; o número de frequentadores
e visitantes aumentou; as vendas do comércio ao redor cresceram, e o número de
crimes caiu 20%.

Relatórios de cada um dos aspectos, divulgados e debatidos, municiaram a decisão


política da bancada e do próprio prefeito para a aprovação do investimento e do
fechamento definitivo. Nesse contexto as informações para o projeto puderam ser

Figura 86 Durante meses a Broadway permaneceu


fechada para que pudessem ser realizadas as
avaliações, estudos e aplicados os questionários
que fundamentariam tecnicamente o debate
público e político da experiência. Pode-se dizer
que os fechamentos realizados por tantos anos,
nas festividades, nas viradas de ano novo, foram as
primeiras experiências coletivas desta proposta.
A cidade e suas ruas são a grande experiência
coletiva, o lugar e o instrumento do aprendizado
coletivo compartilhado por seus moradores.
mais bem avaliadas e discutidas e o investimento de 55 milhões de dólares permitiu a
inauguração em 2017.

Não mudaram apenas os paradigmas que priorizavam os automóveis, mas a forma


de lidar com a experiência urbana, a maneira de o urbanista atuar, seu papel frente
à sociedade. Deixa de ser o que trabalha para Napoleão III, passa a ser o que municia
o debate público entre os diferentes grupos que disputam ou têm interesses na área.
Não porque os urbanistas avançaram, mas porque a sociedade avançou, as condições
sociais para as transformações urbanas mudaram. Os meios para que cada grupo
defendesse suas pautas foram aprimorados paralelamente à capacidade de organi-
zação e mobilização dos vários grupos. O urbanista não pode ser mais quem domina
apenas os aspectos técnicos dos projetos, tem de ser capaz de contribuir ativamente
no processo de debate e na construção dos pactos entre os vários grupos.

Tais mudanças revelam a importância das experiências vivenciadas cotidianamente


por todos os envolvidos. Todos os aprendizados só são completos se físicos. A po-
pulação compreende e aprende as vantagens de determinado arranjo físico expe-
rimentando, vivenciando o espaço proposto. O arquiteto, também. Compreender
as dificuldades e as possibilidades concretas depende da vivência sensível, aberta e
desarmada dos espaços.

De certa forma, é essa experiência compartilhada que as ruas das cidades têm
propiciado aos seus habitantes há mais de 4 mil anos. Em alguns lugares, como Nova
York , mais do que a ville, o que mudou foi a cité. As ruas mantêm muito da estrutura
histórica, porém as formas de apropriação, pactuação e gestão mudaram de forma
significativa. Ao contrário, em contextos onde foram construídas ruas muito dife-
rentes, alguns padrões de comportamento se mantiveram. As experiências recentes,
realizadas nas ruas das cidades do mundo, reiteram a convicção de que existem rela-
ções dialéticas entre as praxis e a cultura, o espaço e as práticas cotidianas, as ruas e
os habitus dos vários grupos que se apropriam diariamente dos espaços da cidade.

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