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A retórica barroca do Modernismo

brasileiro: o recurso visual


da azulejaria na Igreja de São
Francisco de Assis na Pampulha
Rafael Alves Pinto Junior

or meio deste trabalho, pretende-se estu- inserem não implica em reduzir os demais aspectos

P dar o recurso visual constituído pela azu-


lejaria na Igreja de São Francisco de Assis
na Pampulha, buscando entender como
ela participou da realização da ambiência do espaço
construído, concretizou as exigências psicológicas e
do edifício à sua visualidade, mas antes, reconhecer
o objetivo de sua utilização. Se assim não fosse, as
consequências teriam sido outras, e a azulejaria não
teria influenciado tão notadamente as produções
subsequentes à Pampulha.
artísticas dos ambientes e contribuiu para a singulari- Na fachada, o painel de azulejos é o elemento que
zação desta arquitetura. obviamente mais se destaca, e podemos dizer que ele
Esta abordagem pode parecer uma simplificação é o elemento mais fortemente associados à imagem
da arquitetura aos elementos puramente visuais. do edifício. O espaço plástico-pictórico da obra de
Entretanto, o reconhecimento da prevalência do efeito Portinari foi o recurso decorativo usado no espaço
visual não se constitui num reducionismo de aborda- construído modernista.
gem, mas foi sim um objetivo perseguido com afinco De todos os elementos advindos da arquitetura
na arquitetura deste período. A primeira percepção colonial selecionados por Costa, o emprego deco-
de um espaço arquitetônico é quase sempre visual, e a rativo proporcionado pela azulejaria parece ter
ressonância imediata das forças presentes nas formas sido o recurso que mais profundamente marcou a
visuais acompanha toda percepção, sendo espacial- produção arquitetônica da década de 1930 e 1940.
mente decisiva na experiência estética. Entendido como elemento responsável por subli-
Entender as obras de azulejaria como desem- nhar os ambientes onde se insere a azulejaria, o
penhando um papel destacado no espaço onde se emprego desta representou a recuperação da idéia

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Fachada da Igreja São Francisco de Assis. Disponível em: http://prascabecas.blogspot.com. Acesso em: 12/02/2007.

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de uma ornamentação inserida numa ótica essen- consultar você sobre a possibilidade de fazer uma
cialmente moderna. pequena modificação nos azulejos. Ele queria evitar
Portinari executou para a Igreja, além dos diver- os lobos que lhe pareceram muito grandes e iriam
sos afrescos importantes no interior, vários azulejos; chocar o arcebispo.
mas naturalmente que, de todos eles, o tour de force Ele gostaria se você pudesse aproveitar faixas por
exemplo, ele acha que teria uma certa ligação
seria reservado ao painel frontal com a imagem do
com a localização da Igreja na beira da represa.
santo que dá nome à igreja.
Eu coloquei então que o croqui será um ponto de
Conforme a correspondência de Portinari nos partida e que transmitirei a você o pensamento dele
mostra, ele participou desde o início de sua concep- para que organizasse o desenho final. Assim você
ção. Em 14 de outubro de 1943, escreve à Niemeyer pode preparar o desenho de execução como achar
e envia orçamento para realização das obras da conveniente. Quanto aos painéis já mandei cal e
Igreja da Pampulha. Diz preferir tratar com ele, estou aguardando os croquis. Eu pela minha parte,
Oscar, do que com a Prefeitura1. Em dezembro, peço também a você enviar com urgência possível o
escreve para Juscelino Kubitschek, dizendo que os desenho dos azulejos pois a execução será demorada
desenhos para os azulejos estavam concluídos e ao e estou nervoso para ver a fachada revestida.
inteiro dispor2. Pelo que podemos ver na composição final,
Diferentemente do que acontecera no Palácio Portinari acata as sugestões, e é possível perceber
Capanema, podemos ver que os azulejos da Pampulha que a interferência de Niemeyer apenas reforça a
sofreram uma interferência direta do contratante. hipótese de que, ao menos no âmbito estritamente
Temendo chocar a Cúria de Belo Horizonte, o arqui- visual, o painel de azulejos deveria remeter ao
teto pede a retirada dos lobos presentes no estudo ambiente onde o edifício se insere, um recurso estri-
inicial e sugere a colocação de algo que remetesse à tamente retórico. Enquanto autônomo, o espaço
represa. Escrevendo à Portinari em janeiro de 19453, arquitetônico recorre a esse artifício como elemento
Niemeyer diz que: de afirmação visual.
Entendidos como sequência da produção
Caro Portinari, dos azulejos do Ministério, os azulejos da Igreja da
Recebi o croqui dos azulejos. Estive em B. Horizonte Pampulha se estruturam no mesmo padrão de azul e
e conversei com o Juscelino. Ele gostou muito dos branco que se lastreava na nossa azulejaria colonial.
croquis e pediu que lhe escrevesse adiantando a Para o programa de um edifício religioso, esta
maior urgência possível no desenho definitivo para adoção era ainda a mais natural. Conforme Santos
ele poder providenciar a execução com o Rossi. (1959), o século XVII em Portugal - caracterizado
pelos azulejos em policromia - cede lugar ao azul e
A idéia do prefeito é inaugurar a igreja ainda em
branco que iria predominar nas grandes composi-
Dezembro e seria preciso correr muito para ter nessa
ções setecentistas (ver Ilustração II). Até a primeira
data tudo em ordem. Ele pediu-me também para

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metade do século XVIII, influenciado pelas porce- demonstração contundente – porque territorialmente
lanas chinesas oriundas do intercâmbio comercial condensada – da versatilidade de um número limi-
em Goa e, principalmente, Cantão, a azulejaria tado de elementos e princípios formais. A inegável
portuguesa passou por um forte período azul e unidade estilística não exclui a variedade da manifes-
branco, que apesar da simplicidade monocromática, tação singular, que se legitima mais por sua corres-
fez com que surgissem verdadeiros prodígios deco- pondência com programas de natureza diferente que
rativos. Os mais importantes painéis decorativos com características de situação. A singularidade se
que vieram para o Brasil datam deste período. Essa acentua, no mais extraordinário dos programas, pela
produção atingiria seu esplendor durante a recons- eleição de um sistema estrutural especial, que não se
trução de Lisboa após o terremoto de 1755. Nesse enquadra na regra do esqueleto independente: decla-
período, inicia-se uma variada produção rococó ração de riqueza de meios técnicos, mas também da
com a presença de elementos arquitetônicos nos racionalidade de relacionar e relativizar a regra frente
azulejos joaninos, como enquadramentos para figu- às circunstâncias múltiplas da tecnologia.
ração religiosa ou profana, em formas naturalistas, Vista desta forma, a Igreja da Pampulha pode ser
de gosto Regência. Em 1737, chegam, de Portugal, entendida como a expressão de uma Gesamtkunstwerke4
os magníficos painéis da capela mor do Convento de e aos objetivos de muitas edificações setecentistas em
São Francisco, na Bahia, o mais vasto repositório de assegurar uma unidade entre a arquitetura e demais
azulejos portugueses existentes sob um mesmo teto, elementos decorativos, na qual os efeitos de conjunto
depois do de São Vicente-de-Fora, em Lisboa. tem função primordial5. Conforme a conceituação
As cores escolhidas para o painel de São Francisco estilística adotada por Norberg-Schulz (1974) para
– azul cobalto em diversos tons e matizes sobre um designar o barroco internacional do final do seculo
fundo branco – devem ser vistas dessa forma como XVIII e de maneira a distinguí-lo das realizações do
uma citação da azulejaria colonial portuguesa e toda estilo no século anterior, o rococó religioso determi-
a tradição ceramista oriental em azul e branco, reme- nou diferenças essenciais no tratamento formal dado
tendo ao nosso passado colonial e toda a riqueza à iconografia religiosa, tendendo ao amaneiramento
simbólica que ele representa (ver Ilustração II). e ao preciosismo.
Portinari obviamente, conhecia nossa azulejaria, bem No caso da arquitetura modernista brasileira da
como sua matriz lusitana; e talvez seja esse o caminho década de 30 e 40, o emprego da azulejaria, como
para uma possível interpretação das cores, uma vez recurso visual ancorado no passado colonial ibérico
que estas são arbitrárias e foram escolhidas em meio e no barroco tão caro aos brasileiros, aproxima se
a uma gama infinita de variações. de um recurso puramente retórico, como elemento
Para concluir, podemos dizer que a diferencia- fundamental da persuasão da imagem modernista
ção compositiva, material e significativa da Igreja que buscava uma afirmação. Dessa maneira e devido
de São Francisco de Assis, da Pampulha, é uma à precedência dos valores visuais que o espaço

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Ilustração II - Painel de Azulejos portugueses na  Igreja e Convento de São Francisco – Bartolomeu Antunes de Jesus - Salvador-BA. Disponível em:
http://www.ceramicanorio.com. Acesso em 13/02/2007.

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arquitetônico modernista construiu ao se afirmar, O gênero que encontra sua expressão na arte do
o emprego da retórica dispensa a priori o reconhe- século XVII é o demonstrativo que considera o pre-
cimento de que teses ela queira demonstrar: o que sente como ponto de encontro entre a experiência
importa é o reconhecimento de que ela pretende do passado e a perspectiva do futuro. Configura-se
simplesmente persuadir, e não a isto ou àquilo. A uma nova concepção de tempo: o homem vive no
presente, mas suas decisões implicam uma reflexão
visualidade do espaço arquitetônico modernista
sobre o passado e uma previsão do futuro (2004,
se configura como apto a discorrer, fornecendo ao
p. 70).
mesmo tempo o argumento e a prova.
O emprego dos azulejos se constituíram assim
O processo de tradução visual do discurso dá
num elemento de persuasão por meio da imagem do
origem à alegoria, pois, como podemos ver e como
conjunto, que em arquitetura significa a mudança de
colocada pelos teóricos da pós-modernidade, a
um sistema formal fechado em um sistema formal
arquitetura modernista produzida até a década
aberto, equivalendo no plano do discurso à passa-
de 1940, apesar de suas pretensões de afirmação
gem do enunciado à anunciação. Reside neste fato
e da construção de um espaço modernista, estava
a presença da azulejaria na Igreja São Francisco, na
distante da alegoria. Sem ser alegórico, o espaço
Pampulha, atingir proporções mais ambiciosas que
modernista – ao menos o explicitado em obras
as do Palácio Capanema.
como a Igreja da Pampulha – se construiria por
Ao lado da retórica fundada na tríade retó-
meio desta retórica, entendida como a arte de
rica-prova-persuasão, a edificação se estrutura numa
persuadir, a arte de estabelecer um discurso, ainda
poética que não é técnica de ação mas sim técnica de
que distante do conceito aristotélico de se falar no
criação e que corresponde à tríade poiésis-mimésis-
Areópago, de estabelecer um discurso político. A
-catharsis. A fachada da igreja pertence aos dois
retórica como um instrumento persuasivo não está
domínios, exercendo não só uma ação retórica,
necessariamente ligada a um texto literário, e seu
como desempenhando também um papel na criação
emprego na arte é inconteste.
poética.
Na igreja São Francisco de Assis, a azulejaria na
Entendida desta forma, a retórica barroca parece
fachada parece reforçar a idéia da poética barroca da
servir para interpretar a adoção da azulejaria nos
persuasão. Para Argan (2004, p.40), o princípio da
moldes como na Pampulha. A imagem cumpre
arte como persuasão de relaciona com o programa
as pretensões de afirmar e persuadir o usuário à
religioso da igreja católica, e este programa não
legitimidade do discurso modernismo brasileiro,
pode deixar de também se relacionar, talvez mais
ao resgatar elementos visuais coloniais e apresentá-
que todos, com a arquitetura. O entendimento do
-los numa forma estritamente modernista. Com
gênero da retórica característica dos artistas barro-
as técnicas do dizer, a retórica proporcionada pelo
cos destacado por Argan, sublinha este ponto de
painel persuade, demonstra e legitima o referencial
vista:
teórico norteador do modernismo. Modernista na

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forma e barroco na intenção. São Francisco não se função de seus valores formais. Monumentalidade
detém na casuística da forma e função; intui para por excelência, como se refere Argan (2004, p.78),
além deste paralelismo uma unidade de ato e de resultando numa complexa relação entre duas
potência. Paradoxal, a modernidade expressa na exigências fundamentais: uma plena representati-
Igreja da Pampulha não é a tradução de um conceito vidade simbólica e uma funcionalidade que é ainda
numa imagem, mas antes a prevalência da imagem definitivamente, representativa, porque o ritual
sobre o conceito. espetacular, com a sua cena, seu referente imagético,
O edifício instaura-se numa monumentalidade não é somente um meio, mas a substância mesma da
enquanto produto de sua inserção no tecido urbano representação.
e, neste sentido, está numa zona organizada em

Referências Bibliográficas.

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Notas
1 Portinari, Candido. [Carta] 1943 out. 14, Brodowski, SP [para] Candido Portinari, [Brodowski, SP]. Disponível em: http://www.
Oscar Niemeyer, [s.l.]. Fonte: http://www.portinari.org.br/ppsite/ portinari.org.br/ppsite/cartas. Acesso em 20 mar. 2006.
documentos/cartas. Acesso em 20 jun. 2006. 4 Literalmente traduzido como “obra de arte total” (OLIVEIRA, 2003,
2 Portinari, Candido. [Carta] 1943 dez. 18, Rio de Janeiro, RJ [para] p. 82)
Juscelino Kubitschek, [Belo Horizonte, MG]. Fonte: http://www. 5 Particularmente as edificações produzidas pelo Rococó germânico
portinari.org.br/ppsite/documentos/cartas. Acesso em 20 jun. – as igrejas de peregrinação de Steinhausen (1728-1735) e Wies
2006. (1745 – 1754).
3 Niemeyer, Oscar. [Carta, 1945 jan.], Rio de Janeiro, RJ [para]

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