Você está na página 1de 10

O “BRUTESCO NACIONAL”

E A PINTURA DE AZULEJOS
NO TEMPO DO BARROCO
(1640-1725)
Vítor Serrão*

Ao José Meco, pioneiro nos


estudos do Brutesco Nacional

DO GROTESCO É muito abundante, na literatura artística portuguesa da segunda metade do século XVII e da
CLÁSSICO AO primeira metade do século XVIII, a referência a pinturas de brutesco realizadas tanto a óleo
BRUTESCO
como a fresco, em estuque e em azulejo, na decoração de vastos interiores da arquitectura
COMPACTO
sacra e civil.
Importa precisar, antes de mais, que o brutesco, tão usado na arte portuguesa de Seis-
centos como ‘género’ autónomo, não pode mais ser confundido com o grotesco clássico de
raiz neroriana (cujo uso foi tão criticado pelos censores da Contra-Reforma): é toda uma
outra coisa, mesmo que o termo em uso pareça ser uma corruptela semântica da fórmula
com que a época do Renascimento apelidou as estranhas decorações pagãs das grotte dos
velhos palazzi imperiais romanos1... Esta nova linguagem ornamental inspirou-se, como é
visível, na tradição dos grottesche renascentistas, difundidos pelas gravuras italianas de Agos-
tino Veneziano, Zoan Andrea de Mântua, Nicoletto da Modena e outros, mas não pode ser
considerada um seu mero sucedâneo, quando a sua utilização seguiu uma cenograia mais
larga e autónoma, e a gramática usada divergiu radicalmente dos caprichos paganizados do
grotesco clássico, dando peso, sim, às complexas folhagens acânticas, aos meninos-anjos, aos
frutos, às aves, aos festões e às cartelas com símbolos eucarísticos, no contexto de programas
imagéticos moralizantes, aptos a deixar uma impressão viva e um testemunho catequizador
dos seus temas marianos e cristológicos2.
Durante praticamente um século – entre o reinado de D. João IV e meados do reinado
do Magníico –, essa nova modalidade pictural assumiu preponderância nos programas
ornamentais dos espaços construídos, contribuindo para os qualiicar com maior evidência
como obras de arte total, numa espécie de dimensão portuguesa do conceito belloriano de
bel composto. Como sintetizava o grande especialista do Azulejo, o Eng.º João Miguel dos
Santos Simões3, em referência à sua largueza cenográica, “as composições dos brutescos são
sempre centradas por um motivo principal – cartelas na maioria dos casos – e desenvolvem-se
simetricamente segundo um eixo vertical; ligando-se ao motivo central por meio de ornatos
lineares ou formais, todo o conjunto forma uma unidade, sem soluções de continuidade”.

* Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

183
FIG. 1
AZULEJARIA DE
BRUTESCO
Lisboa, c. 1670,
Igreja de Santa Maria,
Óbidos
© Rosário Salema
de Carvalho

FIG. 2
AZULEJARIA DE
BRUTESCO
Lisboa, c. 1670
Igreja de Santa Maria,
Óbidos
© Rosário Salema
de Carvalho

FIG. 3 talha dourada dos altares, os mármores embutidos, os tecidos, os estuques e a imaginária,
TECTO DECORADO
De facto, é a cuidadosa integração do Brutesco azulejado ou pintado na superfície arqui- atinge uma vibração orgânica subtil: vejam-se os casos da Igreja de Santa Maria de Óbidos, de
COM BRUTESCOS
tectónica, com uma largueza cenográica que só raramente fora observável no uso pontual Igreja de Nossa Senhora S. Mamede de Évora, da Matriz de S. João das Lampas (Sintra), da Igreja de S. João de Deus em
do Carmo,
dos grotescos, e com um perfeito sentido de equilíbrio desta inédita recriação da tapetagem Montemor-o-Novo, da Matriz de Bucelas ou, ainda, da sacristia da Penha de França em Lisboa
Luanda, Angola
pictórica, que explica a perenidade de um gosto ornamental com estas características, cujo © MNAz e de uma sala do Palácio dos Condes da Calheta, também na capital (Figs. 1 e 2). O brutesco
uso perdura até datas avançadas do século XVIII, mesmo quando outras soluções internacio- mantém-se também, em utilização mais discreta, pontualmente nas cercaduras que envolvem
nalizadas, como o uso da “pintura de quadratura”, já estavam instaladas de pleno direito nos azulejos historiados, sendo visível, em muitos casos, o esforço de gradual abandono das tradi-
gostos da clientela portuguesa. FIG. 4 cionais ferronneries em proveito da folhagem acântica (como sucede em António de Oliveira
AZULEJOS
Bernardes nos azulejos do refeitório do Convento paulista da Serra d’Ossa ou na Ermida de
DE BRUTESCO
Lisboa, c. 1670 N.ª S.ª da Cabeça, em Évora, por exemplo).
capela do Santo Cristo
Na verdade, a designação de “pintura de brutesco”, multiplicada em contratos de obras
da Fala, Igreja
CONCEITO Segundo defende o historiador de arte José Meco no seu incontornável ensaio dedicado, em das Albertas e em descrições de igrejas, conventos e palácios a partir de meados do século XVII, atesta
DE BRUTESCO 1979, a Gabriel del Barco, “Portugal é o único país europeu onde o azulejo foi utilizado e (Museu Nacional a fortuna de uma modalidade ornamental que conquistou o gosto dos mercados nacionais
NACIONAL de Arte Antiga)
criado com continuidade e em quantidade impressionantes (...), apresentando sempre interli- © DDF da época, tanto na Metrópole como nos espaços ultramarinos (Brasil, Angola, Índia portu-
gações profundas com as várias artes ornamentais, nomeadamente a talha dourada, a pintura guesa), e que se caracterizou por uma série de repertórios formais e compositivos fadados
de tectos e o mosaico lorentino” .4
para granjear enorme aceitação dos mercados, num tempo que, com a Restauração de 1640,
O caso do pintor de azulejos Gabriel del Barco, aí pela primeira vez estudado numa visão era de crise, de resistência patriótica e esforço de guerra, mas com resultados perenizados na
de conjunto, vinha oferecer um exemplo concreto dessa associação de ‘géneros’, digamos época mais estável de D. Pedro II e mesmo nos primeiros decénios do reinado de D. João V.
assim, pois se trata do caso de um artista que tanto trabalhava a pintura de azulejo, como a de A linguagem brutesca é utilizada com largueza cenográica, em códigos de variação reconhe-
tectos de brutesco a óleo – como os que pintou em São Luís dos Franceses (1681) e na Igreja cíveis, a partir do uso de folhagens, festões, fruteiros e enrolamentos de acantos (e, ainda,
dos teatinos da Divina Providência (1688), entre outros que lamentavelmente se perderam . 5
das fantasiosas ferronneries oriundas da tradição maneirista dos grottesche), associados à
As pesquisas arquivísticas mais recentes vieram provar que essa prática era comum, pelo presença de anjos-meninos, de aves, de cartelas com litanias marianas, emblemas, símbolos
menos no inal do século XVII, e o facto é que sobreviveram dezenas de exemplos de grande eucarísticos ou da Paixão de Cristo, quase sempre ocupando a bidimensionalidade dos panos
qualidade em que coabitam a pintura brutesca de tectos e a decoração azulejar com a mesma murários, sejam tectos, arcos ou paredes axiais.
tipologia decorativa, fruto de campanhas homogéneas e da responsabilidade dos mesmos Estes conjuntos simultaneamente pintados e azulejados de brutesco, como é o caso da
artistas . Há conjuntos cerâmicos onde o uso do Brutesco Compacto – seguindo uma utili-
6
Igreja de Santa Maria de Óbidos (Figs. 3 e 4), constituem alguns dos melhores exemplos
zação que dir-se-ia assumir concorrência com o uso dos tapetes de padronagem azulejares de “igrejas forradas a ouro” do Barroco Nacional. No caso do templo obidense, as paredes
– atinge um efeito especialmente notável. A pintura de tectos brutescos, em uníssono com a do corpo são integralmente revestidas de azulejaria brutesca, enquanto o tecto é pintado a

184 185
têmpera (1676) com uma solução cenográica ingénua mas de efeito convincente, o que levou FIG. 5
SILHAR DE AZULEJOS
José Meco a sugerir uma mesma autoria para as duas campanhas, referindo-se mesmo a um ORNAMENTAIS
Mestre de Santa Maria de Óbidos, seguidor de Barco7. Também os brutescos que cobrem, Lisboa, c. 1660
Palácio dos Condes
a têmpera, a Capela de S. João Baptista na Quinta de Nossa Senhora da Conceição, em da Calheta (Museu
Barcarena, se associam a um ciclo de azulejos de Gabriel del Barco, realizados em 1691, Agrícola-Tropical) Lisboa
© Inês Aguiar
supondo o mesmo historiador de arte que se possa tratar de obra de Barco8. No caso da
Igreja de S. Mamede de Évora, a azulejaria do corpo, de 1691, é também de Barco (assinada)
e coabita com uma larga decoração fresquista brutesca da cobertura, atribuída, neste caso,
ao pintor eborense Lourenço Nunes Varela, um especialista desta modalidade, que pintaria,
um ano volvido, associado a Miguel dos Santos, o tecto do coro baixo do Mosteiro de Santa
Marta, em Lisboa. Em 1699, os mesmos Varela e Miguel dos Santos, associados a Amaro
Pinheiro, pintam o tecto de caixotões da Igreja de S. Miguel de Alfama por 550.000 rs9. É a
mesma “sociedade” de brutescadores que, um ano volvido, pinta outra obra ainda felizmente
íntegra, o tecto de caixotões da Igreja de S. Cristóvão por 500.000 rs10. Em ambos os casos,
os brutescos das coberturas associam-se a gorda talha dourada, a ciclos de telas e também a
azulejos, dentro do espírito das típicas igrejas forradas a ouro do Barroco português.
Desde os contributos de Santos Simões que esta coabitação artística entre pintores de óleo
e de azulejo fora pressentida, mas é com os trabalhos de José Meco sobre o citado Barco11 e
Acrescente-se o exemplo muito interessante do pintor de brutesco Manuel de Sousa, artista
de Flávio Gonçalves sobre Pedro Peixoto (brutescador activo em Peniche)12 que passamos a
inscrito na Irmandade de S. Lucas e que, em 1674, pintou os cinquenta e cinco caixotões do
conhecer com outra profundidade esse fenómeno de “descompartimentação” de modalidades
tecto da Igreja da Misericórdia de Torres Novas com uma sinfonia de ouro em ‘ferronne-
– caso deveras singular na história da arte portuguesa! De facto, a prática do brutesco cabia nos
ries’, enrolamentos acânticos, aves, anjos, festões de lores, frutos e cartelas com símbolos
cadernos de encargos, tanto dos pintores de óleo e têmpera, como no dos pintores de azulejo
marianos, num gosto que estava no auge do seu impacto cenográico em Portugal18. Acontece
(sem esquecer os mestres entalhadores), e testemunham-se grandes pintores de azulejo, como
que, quando em 1675 a Misericórdia torrejana mandou revestir as paredes com azulejos de
Gabriel del Barco, António Pereira Ravasco13, António de Oliveira Bernardes ou Raimundo
padronagem policroma, as despesas referem junto às contas dos “mestres azulejadores” uma
do Couto14, e também iguras “menores”, como Manuel Ramos15, que pintavam simultane-
paga “a Manuel Soares, pimtor, de seis mil rs do feitio das linhas”19, o que deve ser interpre-
amente a óleo painéis de brutesco para integrar caixotões de madeira, a fresco para ornar
tado como o serviço prestado com o “debuxo” fornecido aos artíices do azulejo, através de
largas superfícies, ou sobre biscoitos cerâmicos para os revestimentos azulejares, seguindo os
um risco (“linhas”?) apresentado em mesa e devidamente aprovado pelo provedor, o que
mesmos cartões. No caso de Manuel Ramos, será da sua inteira responsabilidade a decoração
justiica o pagamento avultado para o que se poderia pensar fosse um mero debuxo.
de uma capela na Igreja do Salvador, de Coimbra, de im do século XVII, com um ciclo de
Trata-se de referências singulares que obrigam a ver a outra luz, mais uma vez, o ambiente
telas (assinadas) e o revestimento integral das paredes com azulejaria de brutesco. Exemplos
laboral dos artistas do século XVII e mostram laços de cumplicidade entre pintores de óleo e
como este não são isolados. Trata-se de uma situação deveras interessante, que obriga a ver
de azulejo na concepção, execução e aplicação dos azulejos, tanto de padronagem como igu-
o ambiente laboral dos artistas do século XVII a outra luz, reforçando os laços de cumpli-
rativos. No caso da Misericórdia de Torres Novas, a solução foi especialmente complexa, pois
cidade laboral entre pintores de óleo e de azulejo. Assim, sabe-se que prestigiados pintores
envolvia a recolocação de telas tenebristas de Miguel Figueira, envolvidas por cercaduras de
de cavalete como Marcos da Cruz (fal. 1683)16 e, mais tarde, André Gonçalves e Vitorino
azulejo, numa sábia conjugação de valências. Terá sido essa a responsabilidade do “desenho
Manuel da Serra desenharam “modelos” para decorações de brutesco em azulejo. Conhe-
das linhas” de Manuel Soares: organizar o espaço da igreja, tomando partido das múltiplas
cemos documentação vária sobre obras de douramento e brutesco de tectos apainelados em
possibilidades que o azulejo de padronagem oferecia.
que os artistas, talvez por serem jovens, ou considerados de segunda plana, eram obrigados
Veriicamos, portanto, que vários pintores de cavalete e brutesco tiveram essa função, como
a fazer prova de competência pintando previamente um dos caixotões para cabal apreciação
Marcos da Cruz, Gabriel del Barco (ao desenhar um programa de azulejos que ele mesmo
dos clientes, antes de se estabelecer o assento contratual. No caso de Marcos da Cruz, que foi
iria pintar no Mosteiro dos Jerónimos), Vitorino Manuel da Serra, ao fornecer ‘debuxos’ de
responsável pelas telas do tecto e sanca da capela do Palácio de Santos (actual Embaixada
brutesco e de “ornato francês” para aplicação em azulejo, e ainda Manuel Vaz, pintor de
de França), é muito possível que também os azulejos de brutesco que revestem o corpo da
Serpa que era cunhado de António de Oliveira Bernardes, na amostragem de “azulejos de
mesma capela possam ser tributáveis a “modelos” ou “padrões” desenhados pelo mesmo
países” que fez em 1706 para a Igreja de Baleizão.
artista. Aliás, o facto comprovado de ter desenhado “padronios para azulejo” no Loreto, em
A intercomunicação entre estas modalidades é um facto absolutamente comprovado, a
167517, sugere que tenha feito outros trabalhos ains, como podia ser o caso do desenho para
atestar a unicidade artística (particularmente bem evidenciada durante o reinado de D. Pedro II)
os azulejos de padronagem e brutesco do corpo da Igreja de Santa Maria de Óbidos, onde o
entre talha lavrada e dourada, imaginária estofada, entarsia de embutidos marmóreos, azulejo
conjunto de telas da cimalha da nave central é da oicina de Cruz.

186 187
e pintura de brutesco, modalidades integradas entre si em prol de discursos homogéneos. O UM “AZULEIJO Em 11 de Setembro de 1708, o mestre ladrilhador Valentim da Costa foi encarregado de
brutesco tornou-se imagem emblemática de decoração nacional, espécie de marca de resis- DE BRUTESCO revestir a nave da igreja do Convento de freiras clarissas recoletas de Nossa Senhora da
DO MILHOR QUE
tência após a dominação espanhola, não admirando que conquiste expressão nos espaços do Conceição da Luz, no bairro de Carnide, com azulejos de brutesco. O caderno de encargos
SE FIZER EM
Mundo Português (a Igreja do Carmo de Luanda, em Angola (Fig. 5), e a de Tiradentes, no PURTUGAL”… desse mestre impõe que o revestimento seja feito com “azuleijo de brutesco do milhor que se
Brasil, são bons exemplos). Chegou a existir o cargo de pintor de têmpera de Sua Majestade izer em Purtugal pintado por Antonio de Oliveira”24. Isto é, exigia-se não só qualidade reco-
(também designado pintor de oiro de El Rei), que respeita esta especialidade e de que foram nhecida ao modelo brutescado que se comprava, mas também a mão precisa do pintor que
titulares os Ferreiras de Araújo (Francisco e seu ilho José). Pintores de azulejos aprendem os clientes requeriam. Tratava-se de uma casa de freiras recoletas clarissas de Nossa Senhora
a arte do óleo e brutesco em Lisboa, como sucede com o conimbricense Manuel da Silva da Conceição (a Ordem fundada em Espanha por Santa Beatriz da Silva), cuja construção se
que, em 1703, frequentava a oicina de João Pereira Pegado, especialista de “brutesco de iniciara em 1694 devido ao empenho e bens de um casal da nobreza lisboeta, Nuno Barreto
oiro” , e o bracarense Pedro Peixoto (que também se encarregou de obra cerâmica) veio a
20
Fuzeiro e Maria Pimenta da Silva.
Lisboa aprender brutesco com Lourenço da Silva Paz . Entre os muitos brutescadores da era
21
Estamos face a mais uma obra de prestígio de cuja direcção se incumbia o pintor de óleo e
pedrino-joanina, contam-se António de Oliveira Bernardes, que foi o melhor pintor de óleo azulejos António de Oliveira Bernardes (Beja, 1662-Loures, 1732), justamente considerado o
e de azulejo do seu tempo, Francisco Ferreira de Araújo (seu sogro), José Ferreira de Araújo maior especialista que se podia encontrar no mercado lisboeta nestas modalidades25. O artista
(seu cunhado), Gabriel del Barco, Raimundo do Couto, Miguel dos Santos, Estêvão Amaro pintou os azulejos de brutesco da igreja, assentados pelo ladrilhador Valentim da Costa (artí-
Pinheiro, Lourenço Nunes Varela, António da Serra e alguns outros cujas obras vão sendo ice que foi sogro de Manuel Borges, nome conhecido da História da Arte, pois será o habitual
paulatinamente reconhecidas. Alguns destes artistas relacionavam-se com a arte da azulejaria, assentador dos ciclos azulejares pintados por Bernardes)26, e forneceu ainda os “modelos”
sendo responsáveis por cartões para decoração cerâmica, quando não eram, mesmo, pintores para a sua composição. Mas o serviço solicitado por D. Maria Pimenta (que, enviuvando,
de azulejo, como Barco e Couto. Era uma pintura de especialistas, estimada em todos os níveis prosseguiu a direcção das obras) não se limitou a essa empresa: até Abril de 1710, produziu
da clientela; por isso, cobriu em poucos anos a paisagem nacional, existindo exemplares por também a pintura a óleo dos tectos da capela-mor e da nave, treze quadros a óleo (quatro para
todo o País, muitos deles devidamente documentados. Interessantes, entre os mestres regio- a capela-mor com a Vida da Virgem, oito para o corpo, e a Entrega da Regra de Santa Clara
nais, são os casos de Manuel Gomes de Andrade, em Viana do Castelo , Pedro Peixoto, em
22
para a empena acima do coro alto) e, ainda, a restante decoração azulejar do corpo27. Ou seja,
Peniche e Cós, Manuel Vaz, em Serpa, e Manuel da Costa Mourato, em Beja. coube a Bernardes e à sua entourage a totalidade da decoração pictórica e azulejar da igreja.
Por vezes, este tipo de decoração brutesca abriu-se mesmo a experiências tridimensionais, Quanto ao tecto da capela-mor, Bernardes pintou “hum bom Brutesco ornado com seus
rasgando a rotina planimétrica e ousando sugerir planos distintos e efeitos de rasgamento meninos e lores” e envolvendo um painel do Sacramento, ao centro, entre emblemas marianos
perspéctico – assim se explicando que alguns bons artistas da “quadratura” ilusionística e quadri riportati. Do mesmo modo, fez “ingidos de pedra” e de marmoreado nas paredes e
também trabalhassem o brutesco e que certos clientes dotados de maior exigência e referên- no arco triunfal da igreja e nas molduras dos painéis, e pintou o tecto da nave “na forma de
cias internacionais também não desdenhassem encomendar obras importantes em idelidade huma amostra que fez com a mesmas cores e oiro, de bom brutesco composto e ornado com
a esse igurino. O facto de muitas obras brutescas referidas na documentação contratual algumas vertudes e anjos gramdes nos corpos principaes e tudo o mais brutesco composto
terem chegado incólumes permite que possamos discriminar sem equívocos aquilo que, à com seus meninos e targas em que leva alguns emblemas”28. Ainda a respeito da decoração
época, cabia nessa designação e que não pode ser confundida, de forma redutora, como uma de azulejos de brutesco, ela incluía, pelo contrato, a presença de cartelas molduradas com
sequência directa da tradição dos grottesche de raiz arqueológica usados nas decorações artís- “atrebutos de Nossa Senhora”, entre folhagem e enrolamentos acânticos, e seria colocada até
ticas complementares durante o Renascimento e o Maneirismo. Pelo contrário, o Brutesco à Quaresma de 1709, por 12.000 rs cada braça, mais se sabendo que, no conjunto, envolvia
Compacto – ou Brutesco Nacional, conforme à designação já avançada a este propósito 23
“vinte e quatro brassas e meia e oito palmos e meio que a presso de doze mil rs a brassa
– assumiu, no caso do Império português (e só no caso português, pois é especíico da nossa emportão duzentos e nocenta e sete mil e quatro sentos e vinte rs”29.
realidade decorativa), características de unicidade artística, de linguagem decorativa com Ao todo, o famoso artista recebeu de paga por estas obras de decoração integral do templo
especiicidades, dir-se-ia, nacionalizadas. um preço excepcional: a capela-mor custou 820.000 rs, e o tecto do corpo 450.000 rs. É
É por isso que só nos territórios do antigo Império português, e não nos espaços hispano- verdadeiramente de lamentar o desaparecimento desta igreja de clarissas de Carnide e do
-americanos, se encontram pinturas de óleo, e azulejos, com tais características. Na Igreja seu recheio, que Bernardes decorou com tanto esmero e alto preço, num típico programa
brasileira de Tiradentes (Minas Gerais), por exemplo, os tectos da nave e capela-mor, iniciados barroco de arte total. Tudo se perdeu com a destruição da casa pelo megassismo de 1755:
na data tardia de 1730 pelo pintor António Caldas, integram-se nesse contexto de utilização as freiras mudam-se, em 1767, para o antigo Noviciado de Arroios, depois da expulsão dos
vernácula do brutesco como forma de dinamização integral dos espaços barrocos, sem qual- jesuítas, mas é de esperar que, pelo menos, algumas das telas possam ter sido poupadas,
quer intuito de polémica com o gosto de ilusão arquitectónica entretanto adoptado na pintura sugerindo-se a hipótese de identiicação dos painéis com a Vida da Virgem, que estavam na
de coberturas. capela-mor, com as telas da oicina de Bernardes, conservadas hoje em depósito do Museu de
S. Roque, oriundas de extintos conventos da capital, onde é acentuada a inluência francesa
dos modelos habitualmente seguidos (de Simon Vouet, Michel Dorigny e Pierre Mignard)30.

188 189
FIG. 6 Fica a impressão viva de que se tratava de um espaço forrado a ouro, com a turgidez da
SILHAR DE AZULEJOS
talha lavrada, o esplendor dos tectos de fantasioso brutesco e as matizes azuis e brancas do
ORNAMENTAIS
(PORMENOR) azulejo também de brutesco, tudo pontuado por mármores ingidos e ciclos de telas com
c. 1660
cenas marianas. Vêm-nos à lembrança o conjunto da Igreja dos Prazeres de Beja (1690-1695),
Palácio dos Condes
da Calheta (Museu do mesmo Bernardes (embora a decoração brutesca seja, nesse caso, restrita) e o da Casa do
Agrícola-Tropical), Lisboa Corpo Santo em Setúbal (conjunto artístico de primeiríssima qualidade, onde Bernardes, o
© Inês Aguiar
pintor de azulejos Mestre P.M.P. e o entalhador José Rodrigues Ramalho tiveram especiali-
zado labor).
Segundo João Miguel dos Santos Simões, a imperiosidade de se ver no Azulejo uma das
grandes artes de animação do espaço arquitectónico, o modo como intimamente ele se irmana
com as outras artes (talha, escultura, brutesco, jardins) e a sua predilecta relação com a luz,
a água e a natureza que o tornam modalidade maior da criação portuguesa com expressão
fortíssima nos territórios da Lusofonia levaram-no a deinir Bernardes como “o mago que
soube reabilitar uma arte que se perdia, levando o Azulejo a um esplendor até então desco-
nhecido, lançando a semente que haveria de produzir a fecunda semente do século XVIII”33.

PINTORES- De facto, a modalidade do Brutesco Nacional, ao consolidar a importância deste tipo de


-BRUTESCADORES decoração e ao autonomizar o ‘género’, proporcionou, tanto à pintura de óleo e têmpera dos
DE ÓLEO E DE
tectos, como à de azulejo, uma experiência assaz original, não confundível com uma mera
AZULEJO
derivação dos grotescos clássicos e apta a desenvolver um verdadeiro Estilo Nacional.
Assim, o termo brutesco não pode ser aplicado a muitas decorações azulejares realizadas
Interessa relectir, face a estes preciosos documentos, sobre o que no início do século XVIII na primeira metade do século XVII – em igrejas como S. Pedro da Sertã, Bucelas, Marvila, de
era designado por “azulejos de brutesco” ou, simplesmente, por “pintura de brutesco” no Santarém, a antessacristia do Mosteiro da Graça e a Capela de Santo Amaro, em Alcântara
tocante às coberturas pintadas. É evidente que se trata da mesma linguagem ornamental (Fig. 6)34, nem a pinturas como a da Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra (por Jacinto
que se desenvolveu nos dois tectos, ainda que sobre suportes distintos. O facto de subsis- Pereira da Costa, 1656)35, onde o que se encontra são as soluções inspiradas nos grotescos
tirem conjuntos de Bernardes com esta tipologia – como sucede com o tecto de brutesco da maneiristas, segundo gravados lamengos do século XVI, como os de Cornelis Floris, Cornelis
Irmandade do Corpo Santo em Setúbal, de data próxima a este – torna viável uma clarís- Bos, Hans Vredeman de Vries e outros. O que aí sucedeu foi, ainal, a transposição para o
sima reconstituição criptoartística daquilo que, no caso de Carnide, se perdeu. A respeito azulejo, em data tardia, de modelos tradicionais dos grottesche de raiz ítalo-lamenga, tão
deste Convento da Conceição da Luz, sabemos que icou muito daniicado pelo terramoto utilizados durante o Maneirismo em painéis de retábulos, em stucchi, baixos-relevos enta-
de 1755, pelo que as freiras (que ali permaneceram até 1767) foram obrigadas a instalar-se lhados, iluminuras ou vinhetas de livros. Essa não é ainda a linguagem cenográica que o
no Convento de Arroios (antigo Noviciado da Companhia de Jesus), e o que restava da casa Brutesco Nacional virá depois a tipiicar como sua, num esforço de credibilização de uma
icou devoluto, até sofrer obras de reediicação no im do século XIX, embora sem idelidade gramática nacional.
à traça primitiva, destinado a albergar as freiras hospitaleiras de S. Francisco, sendo outra O Brutesco Compacto, só longinquamente inspirado na tradição dos grottesche da
parte destinada a hospício de coléricos; em 1893, enim, o espaço é entregue ao Patriarcado Antiguidade Clássica, que o Renascimento redigniicou, é uma modalidade recriada face às
e neste período se deve ter retirado o que sobrevivera da azulejaria . Num opúsculo lauda-
31
circunstâncias de depauperamento de um Reino em guerra. Assumiu uma linguagem come-
tório chamado Jardim do Ceo, editado em 1766, dão-se dados sobre o historial do convento dida, contra-reformista, como base para a génese de uma linguagem autónoma que, a partir
e informa-se que o esforço dos nobres fundadores tornou “todo o Templo tão perfeitamente de meados do século XVI, adquire foros de repertório nacional como linguagem apelativa de
ornado, que em tudo pareceu fundação Real” . 32
um Barroco de totalidades onde se unem a pintura a óleo e fresco, o azulejo, a talha dourada,
É sempre dolorosa a perda do património artístico, mas o caso da Igreja da Conceição da o marmoreado e o embutido. Com o uso generalizado do Brutesco, a partir da Restauração
Luz, deixando adivinhar pelos documentos quão imponente era o seu programa de azulejo portuguesa, o campo decorativo abre-se à exploração das formas túrgidas, a efeitos cenográ-
e pintura, torna-se especialmente digno de lamento. Se se perdeu toda a sua decoração, ao icos compactos e a novas dinâmicas transformadoras que, através do talento dos artistas,
menos as informações dos documentos citados tornam-se elucidativas da grandiosidade vai rasgar caminho para a sedimentação do Barroco do inal do século XVII, ou já quinto-
barroca assumida por esse espaço integralmente decorado por Bernardes e seus colabora- -joanino, ao nível da cerâmica e da pintura decorativas.
dores (conhece-se o nome de um deles, o pintor Manuel de Sousa, também de óleo e azulejo).

190 191
Especialista na arte do Brutesco, como se atesta pelo contrato do Convento das recoletas
de Carnide, António de Oliveira Bernardes pintou não só azulejos (como indubitavelmente
sucedeu no caso revelado), como também decorações de pintura a óleo e têmpera e, bem
assim, produziu cartões com modelos de “bons brutescos” para servir os seus colaboradores
(como sucederia em obras de Manuel Vaz, morador em Serpa e seu cunhado, que era simulta-
neamente pintor de óleo, têmpera, brutesco e azulejo). Com Bernardes, o Brutesco Compacto
tenderá a ser subvertido, digamos assim, abrindo-se a programas de cenograia perspéctica e
a efeitos ilusionísticos com enquadramentos de arquitectura e quadri riportati, como sucedeu
no notabilíssimo tecto da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, em Beja, pintado em 1690
em associação a seu pai, o brutescador Pedro Figueira, onde a pintura do tecto se associa a
telas (da autoria dos mesmos), à túrgida obra de talha dourada e aos azulejos de Gabriel del
Barco, num eloquente exercício de arte total do mais notável que o Barroco português gerou.
Da oicina de Bernardes são também o tecto pintado da antiga Capela da Quinta da Ramada
em Frielas (de c. 1698, mudado para a Casa de Santa Maria, Cascais), o do Convento de
Santa Clara, de Évora (1698), o da capela-mor da Igreja do Senhor do Bonim, em Setúbal, e
os tectos azulejados de uma antiga capela no Convento das Mercês, bem estudado por Moura
Sobral36, e o da Igreja dos Remédios, em Peniche. Todos seguem, de certo modo, o igurino do
tecto de Beja, no uso de quadri riportati e de arquitecturas ingidas, num esforço deliberado
de abandono do brutesco e exploração da tridimensionalidade. Mas a idelidade das clien-
telas exigia perenidade de soluções e, por isso, os brutescos continuaram a ser reclamados
ao talento de Bernardes – como se vê pelo contrato de 1710 para a Igreja da Conceição da
Luz (Carnide), desaparecido, e no caso sobrevivente do tecto da sala da Irmandade do Corpo
Santo em Setúbal, notabilíssimo exemplo de pintura de Brutesco Compacto que ousa ser
moderna, pois se associa a uma arquitectura ingida, simulando o rasgamento perspéctico,
e inclui, além disso, “quadri riportati” de ino pincel, com cenas da cruzada de S. Domingos
contra os albigenses e da protecção marítima por S. Pedro Gonçalves Telmo. Este é um dos
exemplos em que a pintura de brutesco (de novo associada a azulejos, neste caso do Mestre
P.M.P., c. 1714) se mostra capaz de superar os seus limites bidimensionais e de agitar o espaço
numa miríade de cores e movimento cenográico. A obra do tecto brutescado da Luz seria,
quero crer, muito similar à de Setúbal.
Eram empreitadas a que os encomendantes davam a maior importância, até pelo generalizado
recurso à folha de ouro e aos demais custos envolvidos. São sobretudo os contratos notariais que
pululam de referências a pinturas do “género”, sempre muito caras. Em 1677, a Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Igreja do Socorro, em Lisboa, contrata João da Mota para dourar
e brutescar a capela-mor e dá-lhe 750.000 rs37. Em 1676, Amaro Pinheiro e Nicolau Antunes
brutescam de ouro a capela-mor de Santo Estêvão de Alfama por excepcionais 950.000 rs38. Em
1687, esse Amaro Pinheiro realiza de brutesco a capela de N.ª Senhora do Vale no Convento de
FIG. 7
Santo Elói39. Em 1700, o tecto da Igreja de S. Lourenço da Mouraria é brutescado por Francisco AZULEJOS
Rodrigues, Marcos da Silva e Manuel do Monte, a mando de D. Tomás de Lima e Vasconcelos, DE GROTESCO,
Lisboa, c. 1670-1680
visconde de Ponte de Lima. Em 1701, o tecto da Igreja dos Santos Reis Magos, no Campo Ermida de Santo Amaro,
Grande, é brutescado por Francisco de Sousa, Manuel Soares e José de Campos por 350.000 rs40. Lisboa
© Cintra & Castro Caldas
A capela-mor da Matriz da Ameixoeira é brutescada, em 1702, por António da Serra, Manuel
do Monte, Caetano de Almeida e Manuel Dias, com custeamento do próprio regente (D. Pedro
II)41. Em 1704, o brutesco e dourado da capela-mor da Matriz de Camarate custaram 500.000
rs, associando-se nada menos que treze pintores da modalidade, dirigidos por Manuel Soares,
José de Sequeira Freire, Jerónimo da Costa e José de Sousa de Figueiredo, o Coxo, e lá aparece

192 193
também Pascoal de Araújo, pintor de azulejos42. Em 1706, o tecto de S. João Baptista, no o gosto dos clientes arreigados a valores do “país profundo”. Por isso, o uso do Brutesco
Lumiar, é pintado por José Ferreira de Araújo com “brutesco e arquetetura” . Em 1712, o da
43
Compacto prosseguiu mesmo em círculos da encomenda nobre: tecto da Sala Real do Paço da
Igreja gótica de S. Tiago de Palmela é pintado por Estêvão de Sousa e Bernardo de Sequeira Ribeira (por Santos Marques, 1695), da Capela Real de Salvaterra de Magos (por Francisco
a mando da Ordem militar, que privilegiou expressamente a linguagem brutesca . Saindo 44
Ferreira do Araújo e equipa, c. 1681), ou o tecto de caixotões da Igreja cisterciense de Cós,
de Lisboa, vemos bons exemplos, em 1683, em Portalegre (os pintores-brutescadores Pedro pintado em 1715 por Pedro Peixoto, a mando do nobre D. Luís Inácio Pereira51 (com cartões
Coelho Taborda e Domingos Nogueira e o bate-folha da Casa Real, Gaspar da Silva, realizam fornecidos pelo arquitecto Frei Luís de S. José).
o dourado e brutesco do Convento de S. Bernardo) ou, em 1684, em Cós, Alcobaça (João de Na realidade, o Brutesco Compacto foi uma espécie de linguagem oicial na pintura de óleo
Matos, “pintor de ouro da Casa Real”, a dourar e brutescar a capela-mor do Convento de e azulejo até datas bem entradas no século XVIII e constitui por isso, com a sua capacidade de
Santa Maria, por 800.000 rs). adaptação a suportes e a linguagens, uma das especiicidades vernáculas e distintivas do nosso
Das referências do Santuário Mariano, entre tantas outras nas crónicas de Setecentos, a património artístico da Idade Moderna. A realidade que se atesta, face a mais de meio milhar
Igreja de Nossa Senhora de Monte Sião, na Amora, é valorizada pela decoração da capela-mor, de exemplares remanescentes quanto a tectos brutescados entre 1640 e o reinado de D. João V,
“grande, & espaçosa, fechada de abobada, revestida de azulejo, & o tecto, que he estucado, é que o modo brutesco na decoração compacta das coberturas – quer em tectos de caixotões,
está pintado a oleo de brutescos excellentes de cores, & ouro” . Também Frei José Pereira
45
quer em forros lisos e em abóbadas afrescadas – dobra o ano de 1706, início do reinado
de Sant’Ana, na Crónica dos Carmelitas, regista na Igreja do Carmo, de Lisboa, a sumptuosa de D. João V, como prática de modo algum anacrónica, fomentada no mercado artístico da
“decoração de brutesca” que a decorava no início do século XVIII . Rangel de Quadros
46
capital e mesmo em encomendas régias. Pintores de óleo e azulejo multiplicam esforços de
regista informação sobre o Convento de S. Domingos, de Aveiro, e diz que a cobertura de decoração, seguindo essa linguagem, e assumem intervenção destacada para nobres e para
berço era animada “com hum gracioso brutesco” . Abundam referências na literatura dos
47
confrarias importantes. Parece, pois, como já acentuava José Meco em 1979, que a avaliação
séculos XVII e XVIII a brutescos bonitos, singular brutesco, brutesco valente, ino brutesco e pejorativa que ainda hoje continua a ser feita sobre o pretenso anacronismo do brutesco da
outros epítetos que destacam o efeito decorativo, a força dos matizes cromáticos e a constante pintura de tectos de óleo e azulejo e a impossibilidade de renovação de modelos que estaria
busca de soluções para gáudio das clientelas. Em contrato de 16 de Maio de 1733, o mestre ligada ao seu uso precisam mesmo de ser revistas52.
azulejador Pedro de Almeida ajustou “azulejar a igreja da irmandade de Nª Sª do Rosário da O gosto pela decoração brutesca atinge o auge no próspero reinado de D. Pedro II, como
Vila das Caldas da Rainha de azulejo de brutesco com passos da Vida da Senhora guarnecida comprova o número de contratos de recenseados e obras remanescentes, mostrando que
com seus ornatos, conforme planta que ele dito mestre apresentou”, por preço de 38.000 rs o ambas as linguagens conviviam em plenitude. Os contratos notariais são elucidativos. O
milheiro assentado , o que mais uma vez atesta o uso continuado do Brutesco, associado às
48
objectivo de criar ilusão e sugerir ritmos volumétricos era constante: atesta-o o pedido feito
cercaduras de azulejo. Um documento tardio respeitante à obra da capela-mor do Convento a um pintor do Porto, Francisco da Rocha, quando em 1690 vai à Sertã pintar o tecto da
franciscano de S. José, em Cernache do Bonjardim, assinala despesas, em 1779, com “azolejo capela-mor da igreja, que izesse “nos frisos hum Brutesco de ouro e cores que bem se vejam
brotesco” associado a medalhão “com algum passo da vida do Senhor S. Joze” , obra ainda
49
dos baixos com a mesma traça e cor de tinta variando cores quando paressa milhor”53. Em
subsistente, que atesta a perenidade do uso dos brutescos na azulejaria portuguesa. todas as circunstâncias, não podia tratar-se de um gosto subalternizado e só aceitável em
Se o início de Setecentos acolheu a nova pintura de tectos em perspectiva ilusionística situações de anacronismo, pelo que se torna necessário um reenfoque desta situação artística,
segundo o gosto de Bolonha, Roma e Florença, conceptualizado no célebre tratado Perspec- apta a conquistar os mercados ultramarinos com força de novidade54...
tiva Pictorum et Architectorum de Andrea Pozzo, a tradição do Brutesco Compacto prosse- A respeito de um célebre tecto da Lisboa destruída em 1755, o da Igreja de N.ª S.ª da Pena,
guiu, na Metrópole e no Ultramar, imune à nova fórmula trazida pelo lorentino Vincenzo que António Lobo, iel discípulo de Baccherelli, pintou em 1719, a mesa da confraria discutia,
Baccherelli, que chega a Lisboa no início de Setecentos e aqui forma o primeiro escol de em 1715, se a obra devia ser “de molduras à imitação do da egreja de Samta Justa”, se dentro
pintores de perspectiva . Creio que a questão central que estas duas linguagens contrastantes
50
do gosto da “quadratura”, como acabou por vingar55 – prova de que não existia modelo único
(senão antagónicas) colocam terá de ser relectida em outros moldes pela História da Arte. É para a decoração de tectos e que várias soluções eram aceites, incluindo o brutesco. O tecto
de considerar a deriva brutesca na decoração a óleo e azulejo de igrejas e palácios (que pros- em caixotões da Igreja do Loreto, do genovês Giovanni Battista Ponte (1680-1684), também
segue, imperturbável, pelo século XVIII dentro) como tendência de resistência e renovação destruído pelo terramoto, é outro exemplo, pois serviu de matriz inspiradora para alguns
que se desenha nos espaços da Metrópole e do Império, um modo de actualizar modelos tectos pintados no início do século XVIII em igrejas de Lisboa e também do Brasil (Salvador da
vernáculos redimensionados numa visão mais esclarecida e teatralizada – mais barroca! Bahia, Recife, Olinda, São Luís do Maranhão), como variante da “quadratura” ilusionística,
Quando admiro as experiências brutescas de revestimentos de azulejo (o dinâmico conjunto mais cara e difícil de realizar56... A par desta, a tradição brutesca resistia com força, em cober-
de duas salas do Palácio dos Marqueses de Tancos ou o conjunto da capela do Senhor da Fala turas pintadas e em azulejos, alimentando a veia barroca nacional, projectada nos espaços
na Capela das Albertas, por exemplo, Fig. 7) e em tectos pintados (na Capela da Universi- imperiais. É elucidativo que a famosa Capela Dourada da Ordem Terceira de S. Francisco, no
dade de Coimbra, 1697, por Francisco Ferreira de Araújo, ou na Sala dos Reitores, 1701, por Recife, tenha tecto de caixotões de brutesco, tal como se fazia em Lisboa, associado a azulejos
José Ferreira de Araújo), torna-se claro que, na segunda metade do século XVII e início do lisboetas (de António Pereira) e a tábuas pintadas (de João de Deus Sepúlveda e José Pinhão
XVIII, era consciente (e foi, com toda a certeza, consequente) o desejo de superar os limites de Matos).
da linguagem tradicional, tornando-a mais apelativa e teatralizada, sem deixar de satisfazer

194 195
Em paralelo com a espacialidade decorrente do uso da “quadratura” e da arquitectura ilusio- projecto interdisciplinar. Veriico, assim, que o uso desta modalidade – quando foi aplicada
nista na pintura de tectos em perspectiva – que os mercados mais esclarecidos tanto desejavam de modo compacto ou quando foi usada tão-só em cercaduras, tanto na pintura decorativa,
e que a nova geração de artistas (António Lobo, António Simões Ribeiro, Brás de Oliveira no azulejo, nos quartelões de entalhe, em modelos de entarsia, na iluminação de livros e
Velho) estava apta a realizar –, outras franjas do mercado (não por isso menos actualizadas) em muitas outras artes da era pedrino-joanina – permite destacar alguns comportamentos
continuavam a explorar a tradição vernácula do Brutesco Nacional para renovar as decorações globais e tendências constantes de linguagem repertorial, como sejam os seguintes:
joaninas, no âmbito da festa barroca e dos faustosos programas de arte total . A pintura de
57
1. O Brutesco acântico, com enrolamentos lorais, em idelidade à planimetria e com uma
tectos do im do século XVII e início do século XVIII abraçou, assim, dois caminhos distintos em tipologia de um modo geral mais simples, mesmo quando a execução o complexiica
gosto e sentido (e qualidade): por um lado, a erudita actualização que opta pelo modo italiano, (exs.: tectos pintados da Matriz de Bucelas e da sacristia de Marvila, em Santarém,
por outro a continuidade da tradição brutesca na sua vertente mais original e portuguesa, dina- e azulejos de uma capela no claustro do Mosteiro da Encarnação e da Igreja Santa
mizada com outros recursos e apta, por isso, a ser melhor entendida em largos espaços. Por Maria de Óbidos, com as paredes integralmente revestidas de azulejos e tecto pintado
vezes, essa tardia dinamização do Brutesco assume caminhos de convergência, em que a cultura do mesmo tipo);
perspéctica dos efeitos de rasgamento atmosférico coabita com o vernacularismo do Brutesco 2. O Brutesco de ‘ferronnerie’ de gosto tardo-maneirista, inspirado em fontes clássicas,
Compacto. Existem na pintura de tectos exemplos em que essa faceta se desenvolve, como o da mas fundido com os repertórios tradicionais do Brutesco Compacto, mesmo em
Igreja de S. Tiago, de Évora, 1700, onde Lourenço Nunes Varela rasgou a bidimensionalidade soluções não eruditas (exs.: tecto de caixotões da Matriz de S. João das Lampas,
da superfície, abrindo um ousado varandim em perspectiva onde colocou iguras em escorço. 1666-1667) ou em experiências mais eloquentes (tecto pintado de S. João de Deus,
A ruptura essencial produzida pelo pintor de óleo, fresco e azulejo António de Oliveira de Montemor-o-Novo, 1671, tecto da Matriz de Tiradentes, Brasil, e azulejos de uma
Bernardes, com o pioneiríssimo tecto afrescado da Igreja da Senhora dos Prazeres, em sala do Palácio dos Marqueses de Tancos);
Beja (c. 1690-1695), onde utiliza nova linguagem perspéctica, não deixa de coabitar com 3. O Brutesco Compacto tradicional (o Brutesco Nacional), de larga expressão decora-
a tradição brutesca, que prossegue nas cartelas historiadas do tecto e no janelão do coro tiva e cenográica, usado em centenas de espaços religiosos (exs.: tectos pintados de
como linguagem coerente e complementar . Essa linguagem dual seria prolongada até datas
58
S. Cristóvão e de S. Miguel de Alfama, da Igreja da Misericórdia de Viana do Castelo
tardias: recordo como o pintor de Lisboa, António Pimenta Rolim (por sinal, discípulo de e de S. Pedro de Vila Real; e azulejos do corpo da capela do Palácio de Santos e de
Baccherelli), concebe em 1732-1737, associado aos bejenses José e Manuel Pereira Gavião, o uma segunda sala do Palácio dos Marqueses de Tancos, etc.);
vasto tecto do Santuário de Castro Verde num programa cenográico em que a arquitectura 4. O Brutesco de embutidos ingidos (ex.: mais raro, usado em casos especíicos como o
em perspectiva e o Brutesco Compacto se solidarizam no mesmo contexto pictural. Conclui- tecto de uma sala da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira em Guimarães, 1709); e
-se que a força da tradição vernacular portuguesa era mesmo muito forte… 5. O Brutesco Compacto com aberturas ao ‘quadraturismo’ ilusionístico, à cenograia e
Conforme já se airmou, “é importante lembrar que o tipo de decoração que antecedeu à tridimensionalidade barrocas (exs.: tectos pintados de S. Tiago de Évora, da Irman-
a inovação do Brutesco Nacional não foi de modo algum interrompida, antes se prolongou dade do Corpo Santo, em Setúbal, e do Santuário de Castro Verde, e na molduração
em termos de respostas anacrónicas bem dentro do século XVIII: trata-se de uma questão da azulejaria de Bernardes e da sua ‘escola’, com brutescos, temas de cânticos celestes,
corrente da evolução das formas estéticas e das preocupações do mercado, no debate entre putti, termini, balaústres, volutas enroscadas e outros motivos).
‘novidade’ e ‘tradição’; o que aconteceu é que as decorações de brutesco, em Setecentos, se
impuseram menos na pintura dos tectos e sobretudo como subsidiárias da decoração do Dos novos géneros da pintura de óleo, têmpera e azulejo usados nos séculos XVII-XVIII, o
Azulejo ou do lavor da Talha” .59
Brutesco Compacto deve ser entendido como solução plástica sujeita a uma dimensão naciona-
lizada, imposta pelo contexto do isolamento vivido após a Restauração, mas mantida, depois,
com a força cenográica da sua originalidade. O que pareceu atavismo é, ainal, airmação de
modernidade possível – existem conjuntos com decorações brutescas em arcos, paredes, tectos
CONTRIBUTOS É necessário cumprir-se um levantamento exaustivo da informação disponível sobre o Brutesco de espaços religiosos e civis que, independentemente da modalidade em que são executados
PARA UMA Nacional: levantamento de existências (calculadas em mais de meio milhar de obras rema- (azulejo ou óleo), surpreendem pela sua largueza ornamental: falámos antes, entre muitos
TIPOLOGIA
nescentes), registo de obras desaparecidas, “corpus” de artistas e artíices, banco de dados testemunhos possíveis, dos casos de Santa Maria de Óbidos, da Capela Real de Salvaterra de
documental com transcrição de contratos de obra, avaliação de preços e estudo das relações Magos, de S. Mamede de Évora, das matrizes de Bucelas e da Ameixoeira, da Misericórdia de
entre pintura brutesca de óleo, fresco, azulejo e outras modalidades (como o embrechado, Viana do Castelo e de S. Miguel de Alfama, sem esquecer exemplos nas ilhas atlânticas, em
os têxteis, o estuque e a obra de massa). Já muito se sabe hoje sobre o historial destas obras, Angola (Igreja do Carmo de Luanda) e no Brasil (Matriz de Tiradentes, Minas Gerais).
seus clientes, autores e modelos discutidos. Tal como a padronagem mereceu ao Eng.º Santos Como disse José Meco, se houve um mundo em que os portugueses souberam nacio-
Simões um início de tipologia que é incontornável, e que hoje prossegue a outras luzes , 60
nalizar referenciais externos, vernacularizar as linguagens dos repertórios e transfornar a
também o Brutesco merece um estudo com esses contornos de globalidade. pintura, tanto a de azulejos como a de tectos em madeira e estuque, em harmoniosas valências
Desde já, é possível avançar-se com uma proposta de tipologia da arte do Brutesco em unívocas, esse foi sem dúvida o mundo do Brutesco Nacional da fase pedrino-joanina61.
Portugal, entre cerca de 1640 e cerca de 1730, a merecer a melhor atenção de um futuro

196 197
18 Paulo Renato Ermitão Gregório, A Igreja da Misericórdia – Um estudo monográfico (1572-1700), Município de
1 AGRADECIMENTOS: Agradeço as informações e debates frutuosos havidos sobre esta matéria com José Torres Novas, 2003, pp. 89-92.
Meco, Nicole Dacos-Crifó, Dora Alcântara, Sylvie Deswarte, Sílvia Ferreira, Maria João Pereira Coutinho, Rita 19 Arquivo Histórico da Misericórdia de Torres Novas, Lº de Receita e Despesa de 1674-1675, fls. 154-157vº.
Rodrigues, João Miguel Antunes Simões, Eduardo Pires Oliveira, Ana Paula Rebelo Correia, Fernando Grilo, 20 ANTT, Notas de José Caetano do Vale, Cartório Notarial 7-A (actual 15), Lº 445, fls. 48-49v. Inédito.
Paulo Henriques, Francisco Lameira, Alexandre Pais, Patrícia Monteiro, Maria João Santos Simões Real e Maria 21 Cf. Serrão, “O pintor penichense Pedro Peixoto. Uma contribuição para a História do Barroco periférico”.
Adelina Amorim, bem como com a Susana Varela Flor e Rosário Salema de Carvalho (RTEACJMSS – Rede 22 O tecto da Igreja da Misericórdia de Viana do Castelo (associado a azulejos dos Bernardes), pintado em 1722
Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões) do Instituto de História da pelo vimaranense Manuel Gomes de Andrade, tem um programa brutesco que seguiu recomendações do
Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. arquitecto Manuel Pinto de Vilalobos, que considerou ser essa a linguagem adequada para a decoração desse
Embora no Diccionario de Lingoa Portugueza de António de Morais Silva (Lisboa, 1789, vol. II, p. 103) se templo. Não se trata de reflexo anacrónico, mas de uma experiência de continuidade adequada às exigências
confunda grutesco e brutesco, vistos como sinónimos de “pintura, ou escultura, em que se representão da cenografia barroca.
grutas, ou se orna com figuras de folhas, caracóca, e outros insectos, penhascos, penedos, arvores, etc.”, a 23 Cf. Serrão, “A Pintura de Brutesco no Século XVII em Portugal e as suas repercussões no Brasil”, p. 119.
verdade é que a terminologia dos contratos de obra, “obrigações”, recibos de despesa e outras fontes que 24 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Cartório do Convento de N.ª S.ª da Conceição da Luz e
existem para os séculos XVII e XVIII ajuda a clarificar bem o que se tratava quando se queria encomendar Arroios, Maços 69, n.º 18, e 108, n.º 6. Deve-se a Manuel dos Santos Estevens, director da Biblioteca Nacional,
pintura ou azulejo brutesco. a localização, em Março de 1957, no Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, deste macete de contas,
2 Cf. Dacos, La Découverte de la Domus Aurea et la Formation des Grottesques à la Renaissance; Meco, cuja existência comunicou ao Eng.º João Miguel dos Santos Simões. No arquivo de Santos Simões (Museu
Azulejos de Gabriel del Barco na Região de Lisboa: Período inicial, até cerca de 1691 – Pintura de tectos; Nacional do Azulejo), existem alguns apontamentos (não publicados) sobre esta obra. A transcrição integral
Chastel, La Grottesque; Dacos e Serrão, “Des grottesques à la peinture de ‘brutesques’” e “Do grotesco ao dos documentos consta da comunicação de Vítor Serrão, “A actividade artística de António de Oliveira
brutesco – as artes ornamentais e o fantástico em Portugal (Séculos XVI a XVIII)”. Bernardes na igreja da Conceição da Luz em 1709-1711: um exemplo de Cripto-História de Arte”, no Congresso
3 Santos Simões, Azulejaria em Portugal no Século XVII, vol. II, p. 192. Internacional A Herança de Santos Simões. Novas perspectivas para o estudo da Azulejaria e da Cerâmica,
4 Cf. Meco, Azulejos de Gabriel del Barco na Região de Lisboa: Período inicial, até cerca de 1691 – Pintura de promovido pela Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões
tectos, pp. 78-79. (RTEACJMSS), em Outubro de 2010, na Reitoria da Universidade de Lisboa, e em vias de publicação.
5 Cf. Rosário Salema de Carvalho, “Gabriel del Barco: a influência de um pintor espanhol na azulejaria 25 Para a biografia actualizada de Bernardes, cf. Falcão, Lameira e Serrão, A Igreja de Nossa Senhora dos
portuguesa 1669-1701”. Prazeres em Beja. Arte e história de um espaço barroco (1672-1698), pp. 66-78.
6 Cf. a documentação, a este propósito, reunida nos estudos de Ayres de Carvalho, “Documentário artístico 26 O mestre assentador de azulejos Manuel Borges frequentava a oficina de Bernardes na Rua das Casas Caídas
do primeiro quartel de Setecentos, exarado nas notas dos tabeliães de Lisboa”; Vítor Serrão, “A Pintura de e foi responsável pela colocação de, pelo menos, cinco conjuntos azulejares produzidos nessa oficina: Igreja
Brutesco no Século XVII em Portugal e as suas repercussões no Brasil; História da Arte em Portugal, vol. IV dos Lóios de Évora (1711), Santuário da Senhora da Nazaré na Nazaré (1714), Misericórdia de Évora (1716),
– O Barroco, pp. 55-62; Flor, ‘Do seu tempo fazia parelha aos mais...’. Marcos da Cruz e a pintura portuguesa Igreja dos Terceiros Franciscanos de Faro (1718) e Misericórdia de Viana (1720, esta com colaboração de seu
do século XVII; Ferreira-Alves, “A actividade de pintores e douradores em Braga nos séculos XVII e XVIII”, e filho, Policarpo de Oliveira Bernardes.
Ferreira, Talha Barroca de Lisboa (1670-1720). 27 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Cartório do Convento de N.ª S.ª da Conceição da Luz e
7 Meco, Azulejos de Gabriel del Barco na Região de Lisboa: Período inicial, até cerca de 1691 – Pintura de tectos, Arroios, Maço 108, n.º 6 a 17.
pp. 114-115. 28 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Cartório do Convento de N.ª S.ª da Conceição da Luz e
8 Idem, Ibidem, pp. 116-117. Arroios, Maço 108, n.º 17 (transcrição inédita): “Obrigação do Pintor Antonio de Oliveira Bernardes em que se
9 Arquivo de S. Miguel de Alfama, Lº 2 de Despesa da Irmandade do Santíssimo Sacramento, 1678-1735, fls. 59v. e ss. obriga a dar a Igreja pintada athe o fim de março do anno de 1710 por preço e quantia de quatrocentos e sincoenta
10 Arquivo de S. Cristóvão de Lisboa, Lº 1 de Receita e Despesa da Irmandade do Santíssimo Sacramento, 1696- mil reis. Pelo prezente por mim feito e asinado digo eu, Antonio de Oliveira Bernardes, que eu me obrigo a pintar o
-1726, fls. 19 e ss. tecto da Igreja na forma de huma amostra que fis para o dito tecto com as mesmas cores e oiro que na dita mostra
11 Meco, Azulejos de Gabriel del Barco na Região de Lisboa: Período inicial, até cerca de 1691 – Pintura de tectos assinalo como tambem a simalha e arcos dos colatrais, feitos como o arco grande, e a simalha na forma da que
e “O pintor de azulejos Gabriel del Barco”. esta feita na capela mor, e outrossim os alizares das janelas, e portas que tem a igreja fingidos de pedra vermelha,
12 Gonçalves, “As obras setecentistas da igreja de Nossa Senhora da Ajuda de Peniche e o seu enquadramento e fazer oito paineis do corpo da Igreja na forma dos da capela mor da uida de Nossa Senhora, e as molduras deles
na Arte Portuguesa da primeira metade do século XVIII (conclusão)”. de pedra fingida com as folhas e filetes doirados, assim mais o painel grande da empena sobre o coro com a
13 Cf. Serrão, “António Pereira Ravasco, ou a influência francesa na arte do tempo de D. Pedro II” e História da fundassão do dito mosteiro na forma dos mais, e outrossim a uolta da empena athe o azolejo, tudo por presso e
Arte em Portugal, vol. IV – O Barroco, pp. 125-147; Coutinho et al., “Um contributo para o estudo do estatuto quantia de quatro sentos e sincoenta mil reis secos em que entra o custo de metriais [sic}, tintas e oiro e mãos e
social dos pintores de Lisboa a partir dos róis de confessados (1664-1720)”. Novos dados recenseados nos selario de oficiais, de que tudo me dou por pago e satisfeito pela dita quantia, e por conta da dita obra Resebi ao
róis de confessados vieram enriquecer o conhecimento do pintor de azulejos António Pereira (cuja identidade fazer deste da Senhora D. Maria Pimenta das Silua oito moedas de ouro de quatro mil e oitosentos rs, por ser a que
com o pintor de óleo António Pereira Ravasco propus em 1999). Sabemos que, em 1692 e em 1704, morava me manda fazer esta obra no mosteiro da Conseisão da Lus que fundou, e me obrigo a dar a dita obra acabada de
na Rua do Lambas, casado com Joana Baptista, confirmando a comum identidade. Esta coincidência de todo athe o fim de março de sete sentos e des e não a dando perderei a quarta parte da dita quantia em que estou
elementos biográficos demonstra de modo inequívoco a identidade dos pintores, que fica, assim, ligada ajustado, e podera a dita Senhora mandar principiar e acabar a obra a minha custa, para o que obrigo minha pesoa
indissociavelmente a comprovativo documental. e benes avidos e por auer, de que forão testemunhas Manuel de Sousa, pintor, e Gaspar de Castro Calhariz, que
14 Em 1692, o pintor de azulejos Raimundo do Couto foi contratado, com Manuel Franco, para brutescar a ouro a assinaram aqui comigo. Mosteiro da Conseisão da Luz em 27 de Outubro de 1709. E declaro que no meio do tecto
capela-mor da Igreja de S. Lourenço da Mouraria (Serrão, “A Pintura de Brutesco no Século XVII em Portugal hade leuar hum painel grande da sorte que me pedirem debaixo do mesmo presso. (a) Ant º de oliu.rª Bern.des –
e as suas repercussões no Brasil”, p. 129). Manoel de Souza – Gaspar de Castro Calheiros.” Segundo os recibos, a 8 de Dezembro de 1709, Bernardes recebe
15 “Mestre Pintor de Azulejos”, segundo a documentação (cf., por exemplo, ANTT, Cartório Notarial 12-A, maço 10 moedas de ouro pela obra; a 8 de Janeiro, dez moedas; a 23 de Janeiro, cinco moedas; a 16 de Fevereiro, mais
85, Lº 365, fls. 69-70, e Lº 372, fls. 76v. a 77), o lisboeta Manuel Ramos pintava também a óleo, como se vê dez moedas; a 1 de Março, trinta; a 15 de Março, quinze; e, a 20 de Abril de 1710, recebe “de resto” 31.200 rs, além
numa das capelas da Igreja do Salvador, em Coimbra, que azulejou de brutesco, pintando também as telas. de moeda e meia de outras “miudezas” que D. Maria Pimenta lhe pediu além do contrato.
Aparece relacionado, em 1712, com a oficina de António de Oliveira Bernardes. 29 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Cartório do Convento de N.ª S.ª da Conceição da Luz e
16 Cf. o exemplo de Marcos da Cruz, um estimável pintor de óleo da capital que, em 1675, pintou para a Arroios, Maço 69, n.º 18.
sacristia da Igreja do Loreto cinco tarjas decorativas destinadas ao “padronio do azulejo do lavatório”, ao 30 Agradeço a João Miguel Antunes Simões as informações sobre a procedência destas telas da oficina de
mesmo tempo que os pintores Miguel Mateus de Cardenas, Félix da Costa Meesen e Domingos Ferreira Bernardes, expostas no coro baixo do Convento de S. Pedro de Alcântara (depósito de S. Roque). Trata-se de
faziam “painéis de pintura ao brutesco”, in Flor, “As relações artísticas entre pintores a óleo e de azulejo uma Anunciação e de uma Visitação da Virgem, que podem ser oriundas do ciclo da Luz.
perspectivadas a partir da oficina de Marcos da Cruz (a. 1637-1683)”, pp. 299-300. 31 Sabemos que os acervos que escaparam ao terramoto de 1755 e os que passaram em 1767 para o Convento
17 Flor, op. cit., p. 300. de Arroios foram, entretanto, levados para o Museu de Belas-Artes, para o Patriarcado de Lisboa, para a
paróquia de Ourém, para a Misericórdia de Lisboa e para outros sítios. Embora devam ter sobrevivido quatro

198 199
das telas (hoje no Museu de S. Roque), em vão tentámos localizar o destino dos azulejos de Bernardes que

32
tivessem, eventualmente, escapado do megassismo.
Jardim do Ceo, Plantado no Convento de Nossa Senhora da Conceição da Cidade de Braga pela Madre Maria
OS REVESTIMENTOS
33
Benta do Ceo, Religiosa Professa do Mesmo Convento da Conceição de Braga, Lisboa, Of. Manoel Coelho
Amado, Ano de MDCCLXVI (1766), pp. 38-39. AZULEJARES E O MOBILIÁRIO
Referência, em texto inédito de cerca de 1957-1958, do Eng.º Santos Simões sobre Bernardes, conservado no

34
seu arquivo pessoal (Museu Nacional do Azulejo), cuja informação devo à Doutora Susana Varela Flor.
“Corpus” de Santos Simões, Azulejaria em Portugal no Século XVII, vol. II.
PORTUGUÊS SEISCENTISTAS:
35 Sobre este grandioso tecto de grotescos, impropriamente chamado de brutesco em vários estudos, cf. Dacos
e Serrão, “Do grotesco ao brutesco – as artes ornamentais e o fantástico em Portugal (Séculos XVI a XVIII)”, e
AMBIENTES E GRAMÁTICA
36
Lameiras, O Elogio do Fantástico na Pintura de Grotesco em Portugal, 1521-1656.
Sobral, “Tota Pulchra est Amica Mea. Simbolismo e Narração num programa imaculista de António de Oliveira
DECORATIVA
Bernardes”, pp. 71-90.
37 Ferreira, A Talha Barroca de Lisboa (1670-1720), vol. II, pp. 286-288 e 1141.
38 Idem, Ibidem, vol. II, p. 1141. José António Proença*
39 Idem, Ibidem, vol. II, pp. 439-441.
40 Idem, Ibidem, vol. II, p. 589.
41 Arquivo Paroquial da Ameixoeira, cxs. de mss. avulsos de receita e despesa (séculos XVII e XVIII).
42 ANTT, Cartório Notarial n.º 11 (antigo), Lº 339, fls. 90 e v. Inédito.
43 Numa procuração passada em 8 de Julho de 1707 pelo pintor José Ferreira de Araújo a seu cunhado António As produções azulejares e a obra de marcenaria têm sido, ao longo do tempo, pouco consi-
de Oliveira Bernardes, para que este cobrasse o que lhe era devido da pintura, deixa inferir que Bernardes deradas pela crítica de arte. As primeiras são apelidadas, assiduamente, como a “pintura dos
também colaborou na decoração (de que ainda restam vestígios). Cf. Arquivo Paroquial de S. João Baptista
pobres”, se comparada com as grandes escolas de pintura europeia (nomeadamente italiana,
do Lumiar, Irmandade do Santíssimo Sacramento, doc. avulso, Doirado e Pintura do tecto da capella mór
1707, s/n. fls., publ. por J.M. Cordeiro de Sousa, A Igreja Paroquial de São João Baptista do Lumiar. Breves lamenga, francesa e/ou espanhola). Por seu lado, o mobiliário, ou seja, “os trastes” da casa
apontamentos para a sua história, Lisboa, Pia Sociedade de S. Paulo, s/d. (agradecemos esta referência à eram ainda menos considerados, apesar das qualidades oicinais de que foram dando provas
Doutora Sílvia Ferreira).
44
os artesãos/artíices envolvidos na sua execução, designadamente marceneiros/ensambladores,
Meco e Serrão, Palmela Histórico-Artística. Um inventário do património artístico concelhio, pp. 143-145 e 475-476.
45 Frei Agostinho de Santa Maria, Santuario Mariano, e Historia das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, t. II, p. 444. torneiros, correeiros e cinzeladores. Privilegiavam-se mais os diversos revestimentos das peças
46 Frei José Pereira de Sant’Anna, Chronica dos Carmelitas da Real Observancia... (têxteis e couros) do que a obra em madeira, apesar das excelentes qualidades das designadas
47 Quadros, Aveiro. Apontamentos históricos, vol. IV, p. 604.
48
“madeiras de fora”1 que, gradualmente, a partir da segunda metade de Seiscentos, começaram
ANTT, Cartório Notarial n.º 11, cx. 118, Lº 515, fl. 14 e vº. Inédito.
49 ANTT, Convento de S. José de Cernache do Bonjardim, livro 5 (receitas e despesas). a ser utilizadas no fabrico de móveis civis e religiosos. Disso nos dão conta inúmeros inventá-
50 Cf. Mello, A Pintura de Tectos em Perspectiva no Portugal de D. João V; Raggi, Arquitecturas do Engano: rios coevos nos quais os revestimentos de tecidos e de couro aplicados na construção de um
A longa conjuntura da ilusão. A influência emiliana na pintura de quadratura luso-brasileira do século XVIII;
móvel são minuciosamente descritos, mas sem qualquer referência quer às madeiras em que
Serrão, História da Arte em Portugal, vol. IV – O Barroco; Reis, O ‘Rapto do Observador’: Invenção,
representação e percepção do espaço celestial na pintura de tectos em Portugal no século XVIII. são construídos, quer às técnicas de construção e de decoração empregues.
51 Pina e Gomes, Intimidade e Encanto. O Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Cós (Alcobaça), pp. 155-156 e O mobiliário da primeira metade de Seiscentos, na continuação das produções de formas
434-436; e Trindade, Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça, pp. 82-112 e 105-107.
52
arquitectónicas do século XVI, início da governação ilipina2, apresenta uma grande sobriedade
Meco, Azulejos de Gabriel del Barco na Região de Lisboa: Período inicial, até cerca de 1691 – Pintura de tectos,
pp. 110-111 e 123-124. e solidez de construção, de onde transparece, por vezes, um carácter austero, proporcionado
53 Pinho Brandão, Obra de Talha Dourada, Escultura e Ensamblagem na Cidade e na Diocese do Porto, pp. 602-604. por uma preferência pelas linhas rectas, por torneados quase lisos, almofadas pouco salientes e
54 Idem, Ibidem, pp. 602-604.
55
desenhos geométricos (rectângulos e losangos), simplesmente marcados por iletes de marim.
Arquivo de Nossa Senhora da Pena, Livro dos Acórdãos de 1709-1785, fls. 15v. e 16. Inédito.
56 Cf. Serrão, História da Arte em Portugal, vol. IV – O Barroco, pp. 149-165. Estas formas geométricas podem ser observadas nas composições azulejares “enxaquetadas”,
57 Cf. Sobral, “Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português”, e Serrão, História da Arte simples e compósitas, e inscritas em guarnições de azulejos de “tapete” da época. Essa austeri-
em Portuga, vol. IV – O Barroco.
58
dade era, em certa medida, amenizada pelas aplicações de metal dourado, colocadas nalgumas
Meco, “António de Oliveira Bernardes”; Serrão, “O Conceito de Totalidade nos Espaços do Barroco Nacional:
A Obra da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (1672-1698)”, pp. 245-267. tipologias, nomeadamente bancas de escrever e de escritório, escrivaninhas, “leitos bronze-
59 Serrão, “A Pintura de Brutesco no Século XVII em Portugal e as suas repercussões no Brasil”. ados”, contadores, bufetes e nos designados “móveis de estrado”3, peças de pequenas dimen-
60 Está em curso, pelos investigadores da RTEACJMSS da Faculdade de Letras de Lisboa, com coordenação de
sões produzidas a partir das peças de tamanho real, que se colocavam no “estrado” (Fig. 1), um
Rosário Carvalho, e do Museu Nacional do Azulejo, com Alexandre Pais, um exaustivo levantamento visando a
actualização reportorial dos padrões de azulejo utilizados em Portugal no século XVII (e ainda no séulo XVIII). costume mourisco que permaneceu em Portugal até ao início do século XIX.
61 Síntese desenvolvida na introdução de uma obra incontornável de Meco, O Azulejo, ed. Alfa, Lisboa, 1989. Se no mobiliário transparecia essa austeridade que relectia, em certa medida, os tempos
conturbados que se viviam, sobretudo devido ao domínio ilipino, ao período de guerra
(1640-1668) que se seguiu à Restauração de 1640, e às carências económicas, face à parali-
sação do comércio por via terrestre, à restrição do comércio externo com a Inglaterra, aliada

* Museu Condes de Castro Guimarães, Cascais.

200 201

Você também pode gostar