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O PINTOR-VITRALISTA ESTEVÃO TOMÁS E O RETÁBULO

DO MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE CÁSTRIS, EM ÉVORA

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FRANCISCO BILOU
MUSEU NACIONAL FREI MANUEL DO CENÁCULO
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A DESCOBERTA DO PINTOR ESTEVÃO TOMÁS

Deve-se a Antónia Fialho Conde a identificação do pintor Estevão Tomás no fundo conventual
de São Bento de Cástris. Com efeito, no livro 12 deste fundo à guarda da Biblioteca Pública de
Évora, em fólio solto (doc. 36), uma nota de conhecimento subscrita pela então regedora do
mosteiro eborense, Dona Violante da Silveira, diz o seguinte:
“eu dona violante da Sylveyra Regedora do moesteyro de sam bento que eu me ey por
entreg(u)e do Retauolo que era em poder d’estevam tomas pera ho elle pintar ho qual elle por
seu falecimento nam acabou somente duas peças que acabou - s – hu(m)a da saudação do anjo
e do nacimento de noso senhor e estas duas peças ficam em meu poder pera lhas a casa pagar
ou fazer pagar ho pintor que ho dito Retavolo ouver d’acabar ou come se mylhor poder fazer e
porque he verdade lhe mandej fazer este conhecimento e ho asyney antonio d’olamda o fez
por meu mandado oje xiij dias de Jun(h)o de jbc xxxiiij [1534] anos .
a Regedor de sam bento” 1

Posteriormente, Antónia Fialho Conde e Vitor Serrão dariam a este documento o adequado
contexto histórico e artístico em artigo intitulado “A encomenda do Retábulo do Mosteiro de
São Bento de Cástris em 1534, mecenas, artistas e agentes envolvidos”, dado à estampa no
número 3 da revista ARTIS, em 2015. É, até à data, a única fonte informativa sobre o pintor
Estevão Tomás e a obra de pintura retabular por ele produzida em Évora.

1
Biblioteca Pública de Évora (BPE), Fundo dos Conventos Extintos - São Bento de Cástris, Lº 12 doc. nº 36.
Publicado em: CONDE, Antónia Fialho, SERRÃO, Vitor – “A encomenda do Retábulo do Mosteiro de São Bento de
Cástris em 1534. Mecenas, artistas e agentes envolvidos”. ARTIS, N. 3, 2015, pp. 6-13. Leitura nossa do documento.
A PRIMEIRA NOTÍCIA DO PINTOR ESTEVÃO TOMÁS

Como se percebe, a descoberta providencial deste documento não é coisa pouca: numa
assentada a História da Arte portuguesa toma pela primeira vez conhecimento de um novo
pintor de elevado padrão artístico, de uma obra retabular indocumentada e, ademais, de uma
inesperada intermediação do iluminador régio António de Holanda.

Resumindo os factos: em junho de 1534, em véspera da festa de São João Baptista, a abadessa
do mosteiro cisterciense de São Bento de Cástris recebe das mãos de António de Holanda dois
painéis para o retábulo da capela-mor que ficara por concluir por morte do pintor Estevão
Tomás, ocorrida no ano anterior, talvez em Évora. A encomenda, como se imagina, fora
decidida algum tempo antes, segundo um contrato de que não chegou qualquer notícia, mas
certamente conforme aos termos usuais da época. Do conjunto retabular contratado o artista
só concluiu duas pinturas: a Anunciação e o Nascimento de Jesus. A primeira foi identificada
por Vitor Serrão na coleção de pintura do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo (vulgo
Évora), a segunda trataremos da sua identificação neste texto, a que juntaremos ainda a
Apresentação do Menino Jesus no Templo (ME 858).
Note-se, desde já, que o contexto temporal desta encomenda artística não pode deixar de
refletir a presença da Corte em Évora, acabada de chegar à cidade (a 22 de novembro de 1532)
para uma demorada estadia (até ao verão de 1537). Com ela e ao ritmo do fausto cortesão
instalam-se na cidade as grandes casas nobilitadas, os altos dignitários eclesiásticos, o corpo
diplomático, a nunciatura apostólica, os perceptores dos Infantes e uma multiplicidade de
servidores do aparelho de Estado de que faz parte um largo número de artistas das mais
variadas especialidades.

Como sucede habitualmente esta é a ocasião perfeita para as instituições religiosas locais
pedirem tenças, mercês e esmolas, coisa que a família real abasta com recorrente e pública
generosidade. Foi certamente neste contexto que as freiras de São Bento de Cástris obtiveram
da família real, além do apoio financeiro específico, o necessário enquadramento artístico
para a produção do retábulo para o seu velho cenóbio (o mais antigo do ramo feminino a sul do
Tejo). A provar uma tal condescendência por parte do rei temos conhecimento documental da
esmola dada por D. João III “ao mosteiro de São Bento desta cidade”, em 1534: uma vestimenta
de chamalote e um frontal 2.

Com a presença da Corte em Évora, também não surpreende encontrar António de Holanda a
intermediar a produção de boa pintura com uma comunidade religiosa. É ele, recorde-se, o
iluminador de maior prestígio da Corte, oficial de armas e avaliador de obra de pintura. A
provar esta sua (pouco conhecida) função artística na esfera cortesã, sabe-se que, em janeiro

2
Em 1534, “huma vistimenta de chamalote de cor não sendo cremysym com suas almaticas do dito chamalote e
com savastros e bandas de veludo e com manipolas e estolas do dito chamalote ” e um frontal: Arquivo Nacional
Torre do Tombo (ANTT), Corpo Cronológico, Parte I, mç. 52, n.º 120. É doc. De 22 de abril de 1534.
de 1535, Holanda avalia a pintura da bandeira que serviu às exéquias fúnebres do malogrado
infante D. Fernando, obra do pintor Diogo Fernandes 3.

O PINTOR-VITRALISTA ESTEVÃO TOMÁS, DOCUMENTOS INÉDITOS

Se o pintor Estevão Tomás surge de um acaso documental o certo é que nada mais se sabe
para além desta sua efémera passagem por Évora. Não deixa de ser surpreendente, aliás,
como um pintor de tão assinalável qualidade esteve tanto tempo indocumentado na História
de Arte portuguesa.

Acontece que, por outro providencial achado documental, fruto da insistente procura de
Arquivo, acabamos de saber que Estevão Tomás é também pintor-vitralista, além do mais
ligado à oficina de mestre João, Pedro Picardo e Pedro francês 4. Donde, a hipótese de se tratar
de um artista de origem francesa ou flamenga ganha foro de credibilidade, como já o seu nome
fazia supor. De facto, a sua origem estrangeira não só explica melhor o seu anonimato artístico
entre os melhores oficiais portugueses, como através dela melhor se compreende a sua
inovadora arquitetura cenográfica "ao romano" aplicada nos fundos pictóricos como veremos.

Com efeito, estando a Corte em Évora, a 27 de setembro de 1533 é emitida uma certidão
conforme ao alvará régio de 3 de julho desse ano, na qual se pede a Vasco Ribeiro, vedor e
recebedor das obras dos Paços Reais de Coimbra, para que este, a rogo da “molher que foy“ de
Estevão Tomás, mande medir a obra das vidraças que este pintor “fez e assentou na capella
dos paços da dita cidade “, trabalho de medição a ser feito “por algum bom medidor “ de
Coimbra, de modo a apurar “quantos palmos tem de vidro branco e quanto de vydro pintado” 5.

Mais esclarece o longo documento que na empreitada de 1527 protagonizada por Estevão
Tomás, mestre João vidreiro, Pedro Picardo e Pedro francês foram feitas seis vidraças, quatro
para o corpo da igreja e duas frestas para o cruzeiro. As quatro do corpo da igreja tinham todas
a mesma altura (19 palmos) e largura (5 palmos e meio), perfazendo um total de “quatrocentos
e dezoito palmos todos pintados”; as frestas do cruzeiro tinham 16 palmos e meio e duas
polegadas e de largo 4 palmos e 3 polegadas, somando ambas “cento e quarenta e quatro
palmos e mais vinte e oito polegadas”; a 31 de outubro de 1527 pagou-se por esta obra “a mestre
João vydreiro e pedro pycardo e a pedro frances quatro mil reis e pagou mais ao dito pedro
frances em parte de pago das quatro vidraças mil reis” 6.
Ficamos a saber, pois, que Estevão Tomás morre à volta de junho de 1533, tendo a viúva
reclamado junto do rei acertos de pagamentos devidos ao marido da empreitada vitralista

3
ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 54, n.º 63.
4
O autor agradece a Pedro Redol os comentários sobre o ineditismo deste documento e da sua particular
importância para a história da produção vitralista do século XVI.
5
ANTT, Corpo Cronológico, Parte II, mç. 185, n.º 80. É documento inédito. O autor agradece a Pedro Redol a
certificação deste facto bem como os comentários suscitados a este respeito.
6
Id.
feita na capela do paço real de Coimbra, em 1527. Caso diferente o de Évora, onde o pintor não
terminou a empreitada de pintura em razão da sua morte, pelo que se procurava, um ano
depois, dar o melhor seguimento a tal infortúnio.

O QUE RESTA DO RETÁBULO DE SÃO BENTO DE CÁSTRIS NO MUSEU DE ÉVORA (MNFMC)

Citemos Vitor Serrão: “É muito interessante que pelo menos a pintura da Anunciação, pintada
em 1534 por Estêvão Tomás, tivesse chegado aos nossos dias. Trata-se de um painel a óleo
sobre madeira de carvalho, medindo 1170 x 730 mm, com o nº de invº 1543. É peça de muito boa
execução plástica, tanto no desenho das figuras do Arcanjo São Gabriel, com o ceptro,
sobrepujado pelo halo luminoso com a Pomba do Espírito Santo, em gesto de saudação diante
da Virgem Maria, a qual se representa de joelhos diante da estante com o breviário, como na
fina caracterização da arquitectura renascentista que enquadra o fundo da composição, com
finos tondi, onde avultam os bustos vetero-testamentários dos profetas Isaías e Daniel, bem
como a figura do Padre Eterno relevada no remate pétreo e, ainda, a ornamentação dos
capitéis clássicos. Também é muito cuidadosa a modelação das peças de mobiliário que
preenchem a câmara de Maria, com o baldaquino e o dossel que sobrepuja o tálamo da Virgem,
especialmente bem pintados. No solo, ao invés do mais usual tapete, destaca-se uma esteira
congolesa, certamente pintada de visu, pormenor importante e que atesta os requintes da
execução.

Os cuidados realistas que o artista colocou em toda a factura da peça estendem-se aos
acessórios domésticos, tanto o trabalho cintilante da jarra metálica com os lírios e açucenas,
como o livro iluminado, aberto, que repousa no tampo da estante e que a Virgem lia no
momento da saudação do Arcanjo. A execução de todos estes elementos, que correspondem
aliás à iconografia tradicional das Anunciações renascentistas, revela a alta qualificação de
um mestre pintor que se mostra um competente sequaz dos modelos da Oficina Régia de Jorge
Afonso” 7.

Damos total razão a Vitor Serrão nesta sua análise estilística. Sublinhamos, contudo, a
integração na pintura de um inovador fundo clássico, não já ao modo flamengo do
contemporâneo Frei Carlos, mas como dispositivo cénico coerente romanizado, bem
revelador de alguém que já está familiarizado com o modelo clássico por via da emergente
tratadística italiana. É, como defendemos, a mais precoce integração da arquitetura “ao
romano” na pintura produzida em (ou para) Évora, datada com relativa segurança de 1533.

É de aduzir, ainda, que o pintor revela uma invulgar capacidade técnica e plástica na
representação das mãos, trabalho sempre exigente e que define, por norma, a mestria do seu
executor. Estevão Tomás exibe sem rebuço esses dotes de desenho expondo as mãos das
personagens em posições escorçadas a que acresce à finura e elegância dos dedos um
característico repuxamento do dedo médio. Por outro lado, o pintor vinca, por incisão na

7
Conde e Serrão, ob. cit. p. 11.
madeira, a grelha do pavimento, procedimento que detetamos numa outra obra como adiante
veremos8 [Fig. 1].

Acontece, no entanto, que os estilemas do pintor são claramente observáveis noutra obra
patente no Museu de Évora – a Apresentação do Menino no Templo (ME 858). De facto, não só
esta obra tem uma largura afim da referida Anunciação (diferença de 1 cm), embora a altura
seja menor por evidente corte do topo da tábula (92 cm), como se observa o mesmo tipo de
tratamento nas arquiteturas fundeiras, igual desenho das mãos, igual gosto requintado pelas
texturas, igual expressão do rosto da Virgem e, enfim, igual paleta cromática. É obra,
indiscutivelmente do mesmo pintor e de um mesmo contexto retabular.

Remanesce a dúvida, no entanto, de no citado conhecimento de Dona Violante da Silveira não


se referir esta pintura. A própria origem da obra parece provir do mosteiro de Santa Clara de
Évora, o que sendo plausível não é um dado absolutamente seguro. Salvo melhor
interpretação, trata-se, a nosso ver, de um dos painéis inacabados por morte do artista que foi
integrado posteriormente na máquina retabular. O tema e a identidade de estilo autoriza esta
nossa suposição [Fig. 2].

Mais certezas, porém, quanto ao painel do “Nascimento de Nosso Senhor” ser a homónima
Natividade (ME 845) que se associa ao conjunto pictórico exposto no Museu de Évora. Malgrado
o quase repinte integral da obra, pormenores há que não deixam margem para dúvida de se
tratar do mesmo pintor: a dimensão da peça (95 x 69 cm), o rosto e as mãos de São José, os
pormenores das asas dos anjos e das espigas do leito do Menino, a auréola que lhe
circunscreve a cabeça incisa na madeira, a própria paleta cromática subjacente [Fig. 3].

Culminando este ciclo pictórico de Estevão Tomás para o retábulo de São Bento de Cástris uma
outra obra também é passível de ser aqui integrada, ainda que, neste caso, pela mão do pintor
que tem o encargo de finalizar a empreitada – talvez Garcia Fernandes. De facto, é bastante
plausível que a Visitação (ME 1526) corresponda, como sugere Vitor Serrão, a uma pintura feita
por Garcia Fernandes (que sabemos ter trabalhado para Évora nesse tempo) e, como é de
imaginar produzida na sequência imediata da morte de Estevão Tomás. O tema, a dimensão (111
x 74 cm) e um certo ar de família com os restantes três painéis tornam bastante viável esta
hipótese de trabalho [Fig. 4].

CONCLUINDO

Estevão Tomás, além de documentado como pintor de cavalete na obra retabular de São Bento
de Cástris, deixando-a inacabada em virtude do seu falecimento à volta de junho de 1533,
documenta-se também como pintor-vitralista nas obras da capela dos paços régios de
Coimbra, em 1527, pouco tempo antes de D. João III aí fixar residência. É, pois, um pintor
eclético (na senda de Francisco Henrique, talvez estrangeiro como ele), que morre

8
O autor agradece ao historiador de arte italiano Federico Troletti os oportunos comentários sobre o tema a partir
da observação direta da peça.
prematuramente em condições não explicadas quando pinta para Évora, acaso sediado nesta
cidade e ao serviço da casa real. A sua importância artística, só agora um pouco melhor
desvelada, mede-se desde logo por introduzir na pintura eborense a mais precoce
manifestação das cenografias “ao antigo”, já não como simples exercício decorativo, mas
como dispositivo cénico coerente e consciente.

Do ignoto retábulo cisterciense aditámos, a partir da atribuição de Vitor Serrão do painel da


Anunciação do Museu de Évora, mais duas obras tributáveis a Estevão Tomás – a
Apresentação e a Natividade. Fizemo-lo por evidente similitude de processos técnicos,
linguagem plástica, dimensão e concordância temática, malgrado a descaracterização da
superfície pictórica desta última obra. Associada a estas três pinturas de Estevão Tomás, pode
andar associada ainda a Visitação, obra tributável a Garcia Fernandes, pintor a quem se pode
entregar com menor risco estilístico a continuação da encomenda retabular. É, aliás, bem
possível que o infortúnio com que foi erigida esta empreitada pictórica justificasse a sua
remoção apenas dez anos depois, por troca do esplendoroso retábulo de Diogo Contreiras 9.

Tudo razões, afinal, para não deixar de valorizar o património artístico de Évora e o seu Museu
Nacional Frei Manuel do Cenáculo como o mais importante guardião da memória da cidade.

Confronto estilístico de duas obras de Estevão Tomás: A Anunciação e a Natividade do antigo retábulo da capela-mor de São
Bento de Cástris, em Évora. Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo. Fotos do autor.

9
CAETANO, Joaquim Oliveira – “O pintor Diogo Contreiras e a sua actividade no Convento de S. Bento de Castris”,
A Cidade de Évora, CME, N. 71-76, 1988-1993, pp. 73-94.
FIGURAS

Fig. 1 – Painel da Anunciação do antigo retábulo da capela-mor do mosteiro de São Bento de Cástris, em Évora.
Pormenores de desenho. MNFMC. Foto do autor.
Fig. 2 – Painel da Apresentação do Menino no Templo, possivelmente do antigo retábulo da capela-mor do
mosteiro de São Bento de Cástris, em Évora. Pormenores de desenho. MNFMC. Foto do autor.
Fig. 3 – Painel da Natividade possivelmente do antigo retábulo da capela-mor do mosteiro de São Bento de
Cástris, em Évora. Pormenores de desenho. MNFMC. Foto do autor.

Fig. 3 – Painel da Visitação, obra possivelmente do antigo retábulo da capela-mor do mosteiro de São Bento de
Cástris, em Évora, tributável a Garcia Fernandes e feito na sequência da morte de Estevão Tomás (c. 1534-35).
MNFMC. Foto do autor.

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