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“Aqui estou – entre dois mundos, desde há uns tempos longos – a teologia
(o estatuto de pertença aos dominicanos, que não se esgotam na Inquisição
mas têm como lema a procura da verdade, o amor ao estudo e ao estar-se
com) e a semiótica e a literatura que ensino”…
(José Augusto Mourão, O.P., Da Vida Monástica)
1. Considerações gerais
Ao receber o honroso convite para intervir nas Jornadas de História – Os
Dominicanos em Portugal (1216-2016), e ser-me proposto destacar o papel que
coube ao património artístico gerado pela Ordem dos Pregadores em terras por-
tuguesas, procurei enfatizar o modo como a iconografia produzida à sombra da
Ordem dos Pregadores marcou o panorama artístico nacional. Nesse domínio, a
arte dos domínicos assumiu a vertente criativa que lhe conferiu a sua maior força:
o destaque à eloquência da palavra. E, nesse sentido também, dedico este texto à
memória de Frei José Augusto Mourão (1947-2011), poeta, semiólogo e grande
estudioso dos princípios da Ordem que o acolheu.
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1 Cf. Vítor Serrão – Pintura e propaganda nos programas artísticos dominicanos em Portugal durante a
Idade Moderna. In Dominicanos em Portugal. História, Cultura e Arte (Actas do Congresso dos Domini-
canos em Portugal, realizada na Faculdade de Letras do Porto em dezembro de 2006). Vol. coordenado
por Ana Cristina Costa Gomes e José Eduardo Franco, com homenagem a Frei José Augusto Mourão,
O.P. Lisboa: Alethêia, 2010, p. 254-279.
2 “Cecilia of San Sisto. Miracula beati Dominici”, Miscellanea Pio Paschini: studi di storia ecclesiastica.
Rome: Facultas theologica Pontificii Athenaei lateranensis, t. 1, 1949, p. 306-326. Cf. também, a este res-
peito, Mouette Barboff – A tradição do pão em Portugal. Lisboa: CTT, 2011, e Domingo Iturgáiz Ciriza
– Iconografía de Santo Domingo de Guzmán: La fuerza de la imagen. Burgos: ed. Aldecoa, 1992.
3 C. Scheeben – Jordan of Saxony: Libellus de pricipiis ordinis praedicatorum. In Monumenta Ordinis Fra-
trum Praedicatorum Historica. Roma: Institutum Historicum ordinis predicatorum, nº 16, 1935, p. 25-88.
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Célia Maia Borges – As obras de frei Luís de Granada e a espiritualidade do seu tempo: a leitura dos
escritos granadinos nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica. Estudios Humanísticos. Historia. 8 (2009)
135-149, e Vitor Serrão – O pintor Fernão Gomes, o mosteiro da Anunciada e a Irmandade de São Lucas.
In Monjas Dominicanas. Presença, Arte e Património em Lisboa. Coord. de José Eduardo Franco, Cristina
Costa Gomes e Frei José Augusto Mourão. Lisboa: Alethêia, 2008, p. 103-130.
5 José Eduardo Franco, Cristina Costa Gomes e Frei José Augusto Mourão (coord.) – Monjas Dominicanas.
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6 Cf. a este respeito António Gomes da Rocha Madahil – Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de
Aveiro, e Memorial da Infanta Santa Joana filha dei Rei Dom Afonso V (códice quinhentista). Aveiro: Fran-
cisco Ferreira Neves, 1939; Vitor Serrão – O Pintor António André e o Maneirismo reformado em Aveiro
no século XVII. Revista da Universidade de Aveiro. Letras. 6-8 (1989-1991) 277-298; Luís de Moura Sobral
– Pintura Portuguesa do século XVII – lendas, histórias e narrativas. Catálogo de exposição. Lisboa: Instituto
Português de Museus, MNAA, 2004; José António Rebocho Christo – “São Domingos Relicário e a Capela
de São Domingos e dos Santos da Ordem”, A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII –
Estudo comparativo das técnicas, alterações e conservação em Portugal, Espanha e Bélgica. Lisboa: Instituto
Português de Conservação e Restauro, 2004; e IDEM – A Capela de São Domingos e dos Santos da Ordem
no Convento de Jesus de Aveiro. Patrimónios. 9 (Dezembro 2011). Acessível em http://www.prof2000.pt/
users/hjco/Aderav/Patrimonios/Patrim09_075.htm.
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Fig. 3 a) e b). Entrega do Rosário a São Domingos, c. 1600, numa tela de António André no mosteiro de
Jesus de Aveiro, c. 1618-25, e em gravura de Anton Wierix (Antuérpia), em que aquele pintor se inspirou.
7 Mouette Barboff – A tradição do pão em Portugal. Lisboa: CTT, 2011; [Isabel Maria Fernandes] – Uma
refeição dominicana. O milagre da multiplicação do Pão e do Vinho por São Domingos (igreja de Mancelos).
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Fig. 4. O milagre da multiplicação do Pão e do Vinho por São Domingos, tela de autor desconhecido, na
igreja de Mancelos (Amarante, Porto). Início do Séc. XVIII. Cf. Os estudos de Mouette Barboff – A tradição
do pão em Portugal. Lisboa: CTT, 2011, e de Domingo Iturgáiz Ciriza – Iconografía de Santo Domingo de
Guzmán: La fuerza de la imagen. Burgos: Aldecoa, 1992.
mando de alguém que conhecia as fontes domínicas; aliás, a igreja onde o quadro
se encontra, um templo românico que fazia parte de um antigo mosteiro agosti-
nho, passou em meados do século XVI para a posse da Ordem dos Pregadores e a
tutela do convento de São Gonçalo de Amarante, o que explica cabalmente a sua
presença. É singular, como destaca a antropóloga Mouette Barboff, a represen-
tação naturalista dos alimentos na mesa do refeitório monacal, num detalhismo
quiçá mais apurado, ainda que de execução inferior, ao que se entrevê no quadro
de António André com o mesmo assunto.
O milagre é assim descrito por esta autora:
“Estando São Domingos no Convento de São Sisto, em Roma, envia, como era
costume, dois membros da ordem – o irmão João da Calábria e Alberto de Roma
– a pedir esmola de pão para alimento dos dominicanos. Nesse dia os frades não
conseguiram encontrar alma caridosa que lhes desse pão. De regresso a casa, pas-
sam, junto à Igreja de Santa Anastácia, por uma mulher afeiçoada à Ordem que,
vendo-os sem alimento, lhes dá um pouco do seu pão. Continuando a jornada
encontram um belo jovem que insistentemente lhes pede o pouco pão que levam
consigo. Eles bem lhe explicam que o que levam é muito pouco e insuficiente para
alimentar os frades que os esperam no convento, mas o jovem continua a insistir.
Os dois dominicanos decidem então que sendo o pão tão pouco para repartir
Acessível em https://saberescruzados.wordpress.com/2014/07/29/uma-refeicao-dominicana-o-milagre-da-
-multiplicacao-do-pao-e-do-vinho-por-s-domingos/.
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entre os frades, o melhor seria dá-lo aquele jovem. Se assim pensaram, melhor o
fizeram e entregaram o pão ao jovem, o qual rapidamente desapareceu sem eles
perceberem como. Chegados ao convento contam o sucedido a São Domingos
que lhes diz que o jovem que encontraram era um anjo enviado por Deus e que
não se preocupassem, pois o Senhor iria alimentar os seus servos. São Domin-
gos mandou que a comunidade se reunisse no refeitório para comer. Os frades
questionam-no, perguntando porque iriam para a mesa quando não havia nada
para comer. Ao que São Domingos retorque: ‘O Senhor alimentará seus servos’.
Juntam-se à mesa do refeitório e, após a bênção da refeição por São Domingos,
o irmão Henrique de Roma começa a fazer as leituras do dia. Entretanto São
Domingos começa a orar. De repente surgem dois belos jovens carregando cestos
com pão, começando a distribui-lo, indo um pelo lado esquerdo da mesa e outro
pelo lado direito. Quando entregam a São Domingos um pão de aspeto maravi-
lhoso, que este agradece com reverência, eles desaparecem sem deixar rasto. São
Domingos diz aos seus: ‘Comei, irmãos, o pão que o Senhor nos enviou’. Quando
começam a comer o pão São Domingos pede que lhe tragam vinho. Respon-
dem estes que não havia vinho. São Domingos insiste e manda-os ir procurá-
-lo onde o guardavam, pois o Senhor os tinha provido dele. De facto, quando
foram abastecer-se encontraram as vasilhas cheias de vinho. Disse-lhes então São
Domingos: – “Bebei irmãos o vinho que o Senhor nos enviou”. No final da refeição
São Domingos exortou-os a acreditarem na Providência Divina. Como se pode
constatar existe alguma semelhança entre este milagre e a multiplicação de pão
e de vinho realizada por Cristo (Mt 14,13-22; Mc 6,30-44; Lc 9,10-17; Jo 6,1-14;
Jo 2, 1-11)”8.
8 Ibidem.
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Jesús Urrea – Acotaciones a Gregorio Fernández y su entorno artístico. Boletín del Seminario de Arte y
Arquitectura. 46 (1980) 375-396.
10 Esta tela, que se guardava, até data recente, na igreja de São Nicolau de Santarém, procede quase de
certeza do extinto convento de São Domingos, cujo acervo artístico era abundante. Foi alvo de beneficiação
e restauro, tal como um seu par, também alusivo à missão de cruzada de São Domingos.
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Cf. Vítor Serrão – Pintura e propaganda nos programas artísticos…
12Ottavia Niccoli – Vedere con gli occhi del cuore. A Alle origini del potere delle immagini. Roma: Storia e
Società, 2011.
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13 Vítor Serrão – Arte, Religião e Imagens em Évora no tempo do Arcebispo D. Teotónio de Bragança, 1578-
1602. Caxias: Fundação da Casa de Bragança, 2015.
14 Federico Palomo del Barrio – Limosnas impresas. Escritos y imágenes en las prácticas misioneras de
nas primeiras décadas do século XVII. Via Spiritus. Revista de História da Espiritualidade e do Sentimento
Religioso. 1 (1994) 133-157.
16
Ibidem.
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males, e pecados”20. Livros como este do padre João Rebelo tinham forçosamente
eco em círculos devocionais, eruditos e populares, e inspiravam obras de arte.
É o caso, ainda mal conhecido, do ciclo de frescos recentemente descobertos
numa capela transmontana em Outeiro Seco, concelho de Chaves, distrito de Vila
Real. Trata-se de uma importante pintura quinhentista a fresco em forma de retá-
bulo fingido a recobrir a ousia. Esse programa integral de decoração historiada da
parede fundeira revela qualidades de pincel, dentro dos habituais modelos manei-
ristas, e revela um programa miraculógico do maior interesse! A partir de data
incerta do século XVIII, esse fresco foi tapado com cal e coberto por um retábulo
de talha barroca, por razões de mudanças de gosto, e por esse motivo esteve invi-
sível durante três séculos e só pôde ser redescoberto aquando da realização das
recentes obras de restauro. Tivemos oportunidade de estudar as pinturas de visu,
analisando os estilemas, a técnica e o programa iconográfico, e sensibilizando
proprietários e tutelas para a cabal salvaguarda da decoração fresquista, processo
que veio de seguida a ocorrer21.
Trata-se do que geralmente se chama um retábulo fingido executado a fresco,
produção regional de certo merecimento. O pintor, educado dentro dos câno-
nes do Maneirismo contra-reformista, em momento situado dentro do final do
século XVI ou no início do XVII. Como é usual neste tipo de decorações, nesta
região e época, a paleta cromática é pobre, com predomínio dos ocres, cinzentos,
castanhos e, mais raros, os vermelhos; mas é de crer que tenha havido valores
tonais acabados a têmpera sobre a superfície já seca, o que parece ser notório em
algumas vestes e adereços, e que
inevitavelmente se perderam com
o tempo e com a aposição da obra
de talha.
A Capela de Nossa Senhora
do Rosário é um singelo tem-
plinho, sede de antiga confraria
local, com origem quinhentista e
estrutura tradicionalista, situada
junto a uma ponte, no centro da
povoação. Conserva no seu inte-
Fig. 6. Inscrição votiva, pormenor do ‘retábulo fingido’ rior, além do fresco pintado no
a fresco da Capela de Nossa Senhora do Rosário em
Outeiro Seco, Chaves, por um fresquista desconhecido do
altar, uma ara romana epigrafada,
início do século XVII. de alto interesse arqueológico, de
20
João Rebelo, SJ – Historia dos milagres do Rosario da Virgem Nossa Senhora. 1ª ed. Évora, 1599.
21A Capela de Nossa Senhora do Rosário de Outeiro Seco foi alvo, em 2015-2016, de oportuno restauro
por parte da equipa da empresa Mural da História (técnicos de conservação e restauro José Artur Pestana,
Alice Cotovio e colaboradores).
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22 Ignoramos quem eram os membros dessa Confraria do Rosário que encomendaram o fresco.
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23 Agradecemos ao historiador de arte Jaelson Bitran Trindade a relevante partilha de ideias em torno da
edição eborense de 1599 da Historia dos milagres do Rosario da Virgem Nossa Senhora do padre Rebelo.
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24 Cf., sobre essas oficinas com atividade fronteiriça, Vitor Serrão – André de Padilha e a pintura quinhen-
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Cf., por exemplo, Federico Zeri – Pittura e Controrriforma. Turim, 1957; e Giordano Viroli – I luoghi
della continuità e del mutamento dalla Controriforma al naturalismo del Seicento. Intenzioni e inclinazioni
nella pittura in Romagna. In Bíblia Pauperum. Dipinti dalle diocesi di Romagna, 1570-1670. Nuova Alfa
Editrice, Ferrara, 1992, p. XXIXLXIX.
26 Juan de Sagástizábal – Exortación a la Santa Deuoción del Rosario de la Madre de Dios. Sevilla, 1597,
p. 765-766.
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Agradecimentos
Devo palavras de agradecimento a António Camões Gouveia (CHAM-FCSH/
UNL; CEHR-UCP), Adélio Abreu (FT-UCP; CEHR-UCP), Gaspar Roja Sigaya
(OP), Giuseppe Marcocci (Università degli Studi della Tusci, Viterbo), João
Luís Inglês Fontes (IEM-FCSH/UNL; CEHR-UCP), Maria de Lurdes Correia
Fernandes (FLUP; CEHR-UCP), Maria Filomena Andrade (UAberta; CEHR-
-UCP), Michael Attridge (Universidade de St. Michael´s – Toronto), Paulo Fon-
tes (CEHR-UCP), Saul António Gomes (FLUC-UC; CEHR-UCP), José Manuel
Fernandes (OP / ISTA), João Furtado Martins (CEHR-UCP; CLEPUL), José
António Rebocho Christo (Museu de Aveiro), Frei António José de Almeida, a
Fr. Pedro Fernandes, OP (Prior Provincial da Ordem dos Pregadores) e, ainda, a
Rui Araújo (empresa Capitellum), ao Padre José Banha (prior de São Miguel de
Outeiro Seco), ao senhor Alberto Pipa (comissão fabriqueira de Outeiro Seco), ao
Prof. Doutor Arnaldo Espírito Santo (FLUL), ao historiador de arte e amigo Jael-
son Bitran Trindade, e aos conservadores-restauradores Doutor Joaquim Inácio
Caetano e José Artur Pestana.