Você está na página 1de 5

Midiatização e Imaginário:

O lugar do observador de espíritos1


João Damasio da Silva Neto2
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
Unisinos

Palavras-chave: Midiatização. Imaginário espírita. Epistemologia dos observadores.

Contextualização: o caso de pesquisa sobre midiatização e imaginário espírita


A midiatização resulta, em seu aspecto mais básico, de materializações da semiose
ou de processos mentais via procedimentos técnicos, complexificando os sistemas
simbólicos. O imaginário, sem se resumir a processos mentais, encontra na mídia a
proliferação de imagens técnicas, seja como resultado ou como reação ao esvaziamento
do simbólico. Se a midiatização externaliza produções do imaginário ou resulta e reage a
seu esvaziamento, é uma questão teórico-epistemológica de fundo para o assunto deste
texto, interessado objetivamente na prática metodológica. Mais especificamente, no
lugar de observação dos fenômenos com os quais lidamos no desenvolvimento da tese
sobre midiatização e imaginário espírita.
O objetivo da tese é compreender os desafios mútuos entre as operações
simbólicas da midiatização e a circulação de símbolos do imaginário religioso. A
abordagem empírica, constitutiva do problema, se especifica em múltiplos casos sobre o
espiritismo, uma religião cujas especificidades comunicacionais estão em sua tensão
constituinte entre ciência e religião. Em termos de imaginário, trata-se da contradição
entre pensamento racional e pensamento simbólico.
Não entraremos em detalhes nos casos de pesquisa, mas é necessário um esboço
da problematização e dos casos. Durante dois anos atuei como colecionador de indícios
de uma midiatização do espiritismo, ao jeito de um flaneur numa diversidade de

1 Trabalho apresentado no IV Seminário Discente “(In)Certezas na Pesquisa: Construindo Escolhas e


Percursos” do PPGCOM/UFRGS, realizado entre os dias 23 e 25 de outubro de 2019.
2 Doutorando em Ciências da Comunicação (Unisinos), linha de pesquisas Midiatização e Processos Sociais, sob

a orientação da profa. Dra. Ana Paula da Rosa. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
ambientes físicos e digitais, sob a suspeita de que o imaginário espírita contém elementos
afins e contraditórios com os processos de midiatização da sociedade.
Em geral, a midiatização da religião ocorre por aspectos como a transformação do
culto pela admissão de processos midiáticos ou a oposição entre as religiões midiáticas e
as características de uma tradição anterior. Não é o caso do espiritismo, uma religião que
surgiu no século XIX, junto aos movimentos de uma “era da reprodutibilidade técnica”,
mas que, justamente por isso, começa a construir seu sagrado fazendo usos de imagens
técnicas (vide a fotografia espírita) e assume, com relação à imagem simbólica, a herança
iconoclasta do iluminismo e daquela ciência positiva. Estas são as especificidades
comunicacionais e midiáticas do imaginário espírita com as quais trabalhamos na tese.
Das coleções referidas, derivamos três constelações que constituem nossos casos
múltiplos. 1) Caso Kardec, com cinebiografias, arquivos, coletivos e perfis em redes
sociais que buscam preservar, atualizar ou experimentar a imagem do codificador do
espiritismo reunidos especialmente pela memória dos 150 anos de sua morte; 2) Caso
Museu, com práticas museais ou de emolduramentos das imagens espíritas, como pinturas
mediúnicas, retratos de médiuns e fenômenos mediúnicos, registros espíritas os mais
diversos, vistos em suas articulações comunitárias; 3) Caso Médiuns, com as produções
midiáticas em torno de quatro médiuns – João de Deus, Maury Rodrigues da Cruz, Chico
Xavier e Divaldo Franco – com projeção de ícones do espiritismo, mas cuja simbologia é
desafiada pela irrupção de outros imaginários sobre médiuns.
O que unifica os casos tão diversificados é o circuito que integra operações de
midiatização enquanto desafiam o imaginário religioso espírita entre o racionalismo e o
misticismo. Pretendendo negar o pensamento simbólico, a circulação inédita de uma
proliferação de imagens da memória espírita convoca o totem de Kardec (caso 1) e esse
movimento encontra ecos e desvios nas interações comunitárias que dão finalmente o
sentido religioso (caso 2). Negando, por outro lado, o pensamento racional, a totemização
de médiuns encontra barreiras internas de questionamentos à racionalidade espírita ao
mesmo tempo em que o imaginário irrompe socialmente na grande mídia (caso 3).
Esta montagem da pesquisa é a mais recente, prévia a um escrutínio no seminário
de tese da linha de pesquisa e alguns meses antes do exame de qualificação. A previsão
é, de fato, que haja recorte nos empíricos, mas consideramos produtiva a abordagem de
casos múltiplos, ao menos para nosso movimento atual de problematização, que não teve
um “case” apriorístico, mas sim um caso de pesquisa em construção a partir de
inquietações entre a noção de midiatização da religião e o imaginário espírita: a primeira
observada na circulação de imagens exógenas, cujas operações desafiam a recursividade
e a produção simbólica da segunda, via imagens endógenas (CONTRERA, 2017).
Questão deste trabalho: o lugar do observador
Entendendo uma espécie de tensionamento entre a midiatização e o imaginário,
encontramos no espiritismo um objeto empírico e nas respectivas teorias perspectivas
diversas sobre o simbólico. Nosso objetivo atual é construir um lugar de observação, o
que envolve anseios pessoais pelas buscas de um sujeito pesquisador, mas aqui serão
tratadas apenas pelo interesse metodológico de designar, ante o caso de pesquisa, um
modo de observar. Até que ponto o pensamento abdutivo da midiatização e o pensamento
simbólico das teorias do imaginário apontam procedimentos conjuntos ou divergentes?
Há várias posturas em ambas teorizações. O diálogo que pretendemos aqui busca
primeiramente em Eliseo Verón (2013) e Fausto Neto (2005) a preocupação de uma
epistemologia dos observadores na construção de casos em midiatização. Perguntar pelo
lugar do observador é apontar pressupostos ou construir diretrizes para uma hipótese
sobre o objeto de pesquisa.
Na epistemologia, Gaboardi (2006) comenta os casos de Kuhn e de Maturana e
Varela. Ambos colocam pressupostos normativos sobre um campo do saber: o primeiro
sobre a história da ciência, sempre narrada a partir de um paradigma do qual brota o
observador; o segundo sobre o ato de conhecer subjugado à própria capacidade e relação
cognitiva do observador.
Verón (2013), ao contrário dos epistemólogos, não inicia essa busca para rivalizar
outros pressupostos (ainda que, no horizonte, busque ressaltar a insubmissão dos sentidos
ao determinismo tecnológico), mas opera metodologicamente com sua “abdução
fundante”, tomando o pragmatismo peirceano. Não se trata de discutir Peirce aqui, mas
ver na abdução o argumento ou hipótese sobre o qual questionamos 1) a necessidade de
um lugar do observador e 2) as diretrizes que o próprio caso em constituição pode
reclamar do observador.
Seguindo a orientação de Fausto Neto (2005), sobretudo a pesquisa em
midiatização precisa buscar nos “sintomas” o programa de estudo. Ou seja, derivar das
experimentações dos processos midiáticos o lugar do observador e seus procedimentos de
investigação.

[...] se deve voltar menos para construção dos diagnósticos e mais para a
retomada dos sintomas como ‘programa de estudo’. Para tanto, considerar
que o conjunto de fenômenos que advém da invenção e da
experimentação dos processos midiáticos e da cultura midiática, terá cada
vez mais fortes impactos sobre os procedimentos de investigação [...]
(FAUSTO NETO, 2005, p. 22).

Assim é que a “hipótese”, em nosso caso, não se pretende como resultado, mas
como sintoma a partir do qual propiciar um lugar que questiona relações – no caso entre
midiatização e imaginário. A pista, afinal, é que há relações pouco elaboradas
metodologicamente entre operações sociossemiotécnicas apreendidas nas análises
discursivas e produções simbólicas, vividas, constituintes dessas realidades.
O procedimento antropológico da descrição desses “sintomas”, ou seja, o que se
observa para constituir casos de pesquisa, é o aspecto em questão. Verón (2013) valoriza
as abordagens de Benveniste, Levi-Strauss e Metz e enfrenta nelas, respectivamente: o
subjetivismo (quando se crê descrever o real a partir de sua própria linguagem), o
binarismo (quando, falando de fenômenos humanos, apartamos natureza e cultura) e os
problemas de enunciação (quando a argumentação agiganta o texto e esconde a cultura).
A pergunta que se coloca visa a vigilância epistêmica: o que o observador descreve é
imanente à realidade ou são seus próprios processos mentais?
Os diálogos de Verón com a antropologia estrutural constituem pistas para
aproximações com os postulados do imaginário. Destes postulados, na revisão conceitual
propiciada por Ana Taís Barros ao redor de Gilbert Duran, buscamos especialmente a
consideração de que “o símbolo, nos Estudos do Imaginário, é motivado e não arbitrado”
(BARROS, 2014, p. 74). Isso quer dizer que, ao observador, cabe reconhecer motivações
culturais – o que se coloca entre a “realidade” e “seus próprios processos mentais”.
Alguns caminhos já foram construídos para a observação de fenômenos que se
colocam entre a mídia (ou processos sociais subjacentes a suas complexificações) e o
imaginário. Os entendimentos de Malena Contrera (2017) sobre o conceito de mediosfera,
de Norval Baitello Junior (2014) sobre iconofagia, de Alberto Klein (2006) sobre a relação
entre imagens de culto e imagens da mídia e de Ana Paula da Rosa (2012) sobre imagens-
tótens propõem lugares de observação com os quais dialogamos, até então, para a
construção desse lugar do observador de espíritos, em vias de questionar algo como:
De que modo as operações envolvidas na circulação de imagens exógenas do
espiritismo, ao convocar aspectos de uma memória espírita, desafiam estruturas
profundas deste imaginário - como a tensão entre pensamento racional e simbólico -,
perpassando os estigmas sobre médiuns e a inobjetividade3 da matéria espírita?

Referências citadas

BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre a imagem,


comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014.

BARROS, Ana Taís Martins Portanova. Raízes dos estudos do imaginário: Téoricos,
noções, métodos. In: ARAÚJO, Denize Correa; CONTRERA, Malena Segura (orgs.).
Teorias da imagem e do imaginário. São Paulo: Compós, 2014.

CONTRERA, Malena Segura. Mediosfera: meios, imaginário e desencantamento do


mundo. 2.ed. Porto Alegre: Imaginalis, 2017.

FAUSTO NETO, Antonio. Dos sintomas aos programas de estudo. Revista Brasileira de
Ciências da Comunicação, São Paulo, v. XXVIII, n. 1, p. 11-25, 2005.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação.


São Paulo: Ubu, 2017.

GABOARDI, Ediovani Antônio. A questão científico-epistemológica do lugar do


observador. Controvérsia, v. 2, n. 2, p. 22-33, 2006.

KLEIN, Alberto. Imagens de culto e imagens da mídia: interferências midiáticas no


cenário religioso. Porto Alegre: Sulina, 2006.

ROSA, Ana Paula da. Imagens-tótens: a fixação de símbolos nos processos de


midiatização. 2012. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Programa de Pós-
graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, RS, 2012.

VERÓN, Eliseo. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Ciudad


Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2013.

3
O inobjeto ou a não-coisa, em Flusser (2017), permite pensar tanto o espectral quanto o informacional. A
imagem dos espíritos, por mais exógena que se faça, sempre carece de uma “inobjetividade”, uma aura
espectral, uma existência necessariamente informada, motivada simbolicamente do visível ao imaginado,
como elemento não de representação figurativa, mas de realismo e comprovação de crença.

Você também pode gostar