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Encontro O AMBIENTE DE TRABALHO, AS ESTRATÉGIAS

Revista de Psicologia
DE DEFESAS E SUAS IMPLICAÇÕES NA
Vol. 16, Nº. 25, Ano 2013
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO
TRABALHADOR

Evelyn Barreto Santiago RESUMO


Fundação Escola de Comércio Alvares
Penteado - FECAP
O trabalho é um dos principais meios através do qual o ser humano
veusantiago@gmail.com
constrói sua existência. É preciso considerar as relações que se
estruturam no ambiente de trabalho e as influências que estas
provocam na vida do sujeito dentro e fora desse ambiente. As relações
de trabalho desenvolvidas no contexto capitalista não dão a devida
importância à subjetividade e desejos humanos, provocando no
trabalhador um grande sofrimento psíquico que altera suas relações
sociais e sua saúde mental. No decorrer deste artigo, pode-se perceber
que o ambiente de trabalho tem dificultado a construção da identidade
do indivíduo com sentido emancipatório. Porém, como a identidade do
indivíduo não é construída apenas no ambiente laboral e como ele
carrega para esse ambiente o aprendizado adquirido em suas outras
vivências, discute-se no final deste trabalho sobre a possibilidade de
criação de alternativas emancipatórias, sem ignorar a existência de
contextos que aparentemente não oferecem saídas.

Palavras-Chave: psicologia; psicologia organizacional; saúde no trabalho.

ABSTRACT

Labor is one of the main means through which human beings build
their own existence. Thus, it is necessary to take into consideration
those relationships that are structured at the workplace, and the
influences they might have on people’s daily lives. The labor
relationships developed within the capitalist context don´t take
subjectivity and human desires into account, causing to workers a
major psychological distress that shapes their social relationships. Here
it’s possible to realize that the working environment has hindered the
construction of an individual’s identity in the emancipatory sense of the
word. However, since an individual's identity is not built only at the
workplace, and since he/she brings to that environment the skills
he/she has acquired from other experiences, at the end of this text we
discuss the possibility of creating emancipatory alternatives, without
ignoring the existence of contexts that apparently cannot offer any way
out of this.
Anhanguera Educacional Ltda.
Keywords: personal identity; strategy defense; work.
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 4266
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181
rc.ipade@anhanguera.com
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 27/07/2012
Avaliado em: 10/12/2012
Publicação: 18 de dezembro de 2013 9
10 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

1. INTRODUÇÃO

A relação entre o trabalho e o individuo transcende a esfera econômica. Ao adentrar no


ambiente de trabalho, o sujeito busca não somente obter uma contrapartida financeira, na
qual poderá suprir necessidades materiais, mas também concretizar expectativas e anseios
pessoais que se originam na espera subjetiva.

Na medida em que o sujeito vivencia o ambiente laboral, as relações provenientes


deste convívio auxiliam na construção da sua identidade pessoal, visto que o trabalho é
mais um cenário no qual o sujeito desempenha papeis sociais que irão reforçar a sua auto
imagem. No entanto, o aspecto positivo ou negativo desses papeis são fortemente
influenciados por diversos fatores, tais como, liberdade de escolha, identificação pessoal e
reconhecimento social em relação aos papeis desempenhados.

Infelizmente, na atual conjuntura, as relações de trabalhos dificilmente oferecem


ao trabalhador liberdade para que esse possa desempenhar os papeis sociais que almeja.
As organizações, geralmente, delimitam ao trabalhador determinadas tarefas e atuações
em que os seus interesses prevaleçam, pouco focando na necessidade de uma
convergência de interesses entre os envolvidos neste processo (no caso, trabalhador e
organização).

Diante deste fato, o trabalhador, tolhido na sua liberdade de tornar concretos


seus anseios, acaba por construir uma identidade pessoal pautada na busca da satisfação
alheia em detrimento da própria satisfação, exercendo papeis que pouco ou nada tem a
ver consigo.

O trabalho é um ambiente que pode ser promotor de saúde ou de doença. Ele


pode estimular o processo criativo do trabalho, ao permitir ao sujeito o exercício de papeis
sociais que promovam identificação e a auto valorização e, consequentemente, a
construção de identidades emancipatórias (Mesmidade) ou pode estimular o
desenvolvimento de processos patológicos do trabalho, na medida em que impossibilita a
convergência entre a subjetividade e objetividade, impede a identificação saudável com o
seu exercício laboral, reforça a atuação de personagens impostos e a manutenção da
reposição da identidade (Mesmisse).

Quais são as consequências desses aspectos para a prática laboral e para a saúde
do trabalhador?

Ao se tornar um fator de adoecimento, o trabalhador, tentando minimizar o seu


sofrimento, acaba por adotar estratégias de defesas que reforçam a alienação e dificultam
a criatividade, trazendo prejuízos não somente pra si (ao passo que se distancia

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afetivamente do seu processo produtivo, se fecha para a capacidade reflexiva do contexto


no qual faz parte, se acomoda a uma situação que não lhe faz bem) mas também pra
organização (visto que esta, diante das constante demandas de mercado, necessita de
mudanças, inovações e criatividade, e se depara com um sujeito resistente à mudanças,
desmotivado e doente).

O presente artigo tem como intuito analisar no contexto laboral, os fatores que
auxiliam ou dificultam a construção de identidades emancipatórias, o papel deste
contexto como promotor de saúde ou doença e a construção das estratégias de defesas
como um dos mecanismos utilizado no cotidiano de trabalho para minimizar o sofrimento
dos trabalhadores.

2. IDENTIDADE

Como nos tornamos o que somos? Há um momento específico em que se conclui a


formação de nossa identidade?

De que maneira os momentos vivenciados por nós, no decorrer de nossas vidas,


contribuem positiva ou negativamente na formação de nossa identidade?

E o trabalho? Qual é o seu papel neste processo?

Ciampa (1987) nos ensina que a identidade, como metamorfose, é o processo que
se expressa empiricamente pelo movimento, ao mesmo tempo diacrônico e sincrônico, das
personagens que ora se sucedem, ora se repõem, ora se alternam, ora se opõem em
decorrência do desempenho dos numerosos papéis que cada indivíduo representa nas
suas relações sociais.

A princípio, tende-se a ver a identidade como uma essência, imutável, inata ou


como algo que se adquire quando criança e que se mantém, mesmo com o passar dos
tempos. Mas o que ocorre, na realidade, é justamente o contrário. O homem é um ser
social, interage com o mundo e vice-versa. À medida que se dá essa relação (outro e Eu), o
homem sofre influências, relaciona-se com outras pessoas, adquire valores, ensinamentos,
culturas; constrói a imagem de si mesmo, que será positiva ou negativa a depender do
reconhecimento do outro, mas, ao mesmo tempo, influencia esse outro também.
Transforma constantemente o mundo e é transformado por ele.

A identidade, se por um lado é consequência das relações, por outro lado é


condição dessas relações.

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O indivíduo só adquire consciência de si mesmo quando o outro o reconhece, o


identifica. A influência que o outro exerce sobre o indivíduo é tão poderosa que muitas
vezes se interioriza aquilo que o outro lhe atribui, tornando-se algo seu.
A identidade da pessoa não pode ser completamente abstraída de sua identidade-para-
os-outros; de sua identidade-para-si mesma; da identidade que os outros lhe atribuem;
da identidade que ela atribui aos outros; da identidade ou identidades que julga que lhe
atribuem, ou que pensa que eles pensam que ela pensa que eles pensam. (LAING, 1986,
p.82).

Segundo Ciampa (1987),


É discutível o grau de liberdade que um indivíduo tem de escolher (e de ser escolhido
para) uma personagem; mesmo para adultos, esse grau de liberdade (ou grau de
seletividade da personagem) parece ter uma relação direta com a quantidade de poder a
que a personagem dá acesso. (p.163-164)

Esse poder pode ser vivenciado por meio de ganhos pessoais que acabam por
reforçar a manutenção de personagens, mesmo que esses ganhos sejam simplesmente
conseguir evitar atritos e questionamentos. Essa evitação pode levar a anulação de uma
transformação questionadora, da assunção de uma personagem mais atuante, mais
emancipatória.

No exercício de vários papéis, a identidade vai se estruturando à medida em que


as múltiplas personagens que se interpreta vão se articulando, vão se sucedendo ou
coexistindo. Há casos em que uma só personagem permanece mais tempo atuando,
revelando-se um modo de resistir às transformações pela re-posição daquela personagem.

O indivíduo, ao representar um papel, enquanto estiver sendo reconhecido e


estimulado pela sociedade, busca manter sua identidade sem modificações, caindo na
“mesmice”. Essa identidade, mantida pela re-posição (na verdade aparência de não
transformação), é vista como dada, como algo inerente ao indivíduo, e não como se
dando, num contínuo processo de identificação. Dessa maneira, espera-se/exige-se que o
indivíduo se comporte sempre conforme “sua” identidade, sempre repondo a mesma
personagem, de forma que qualquer mudança poderá ser mal interpretada. Na verdade,
esse jogo da “mesmice” implica a noção de uma identidade pressuposta (resultante da
expectativa de agir conforme “sua” identidade) que se confirma pela reposição da
personagem uma vez construída.

Segundo Abrantes (1997), em todas as relações, até mesmo antes do nascimento,


as representações que o grupo elabora sobre o indivíduo passam a interferir na sua vida e
na própria auto-imagem. A identidade pressuposta pelo grupo estará sempre presente na
relação homem-mundo e, consequentemente, no seu comportamento no mundo. Daí a
preocupação em não decepcionar, em não agir de maneira que crie uma imagem negativa
de si perante os outros.

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(...) Na verdade, evitar a transformação – manter-se inalterado - é impossível; o possível,


e que requer muito trabalho, é manter alguma aparência de inalterabilidade, por algum
tempo, como resultado de muito esforço para conservar uma condição prévia, para
manter a mesmice. (CIAMPA, 1987, p.165).

Ciampa (1987) diz também que a transformação é inevitável. Alguns indivíduos,


à custa de muito esforço, adiam a transformação, tentam continuar sendo o que sempre
foram, mas não percebem que estão se transformando numa verdadeira réplica de si
mesmo. E outros são obrigados, para manter interesses estabelecidos e situações
convenientes, a barrar suas transformações e, talvez, a assumir papéis que vão de
encontro a sua subjetividade.

Com o objetivo de viver harmoniosamente em certos ambientes, o indivíduo


transforma sua identidade construindo personagens para agradar (real ou
imaginariamente) os outros e, assim, ser aceito.

Para que o indivíduo passe por transformações, é preciso que condições


necessárias se façam presentes. Muitas vezes, as condições encontradas levam a uma
transformação não-desejada ou então a uma reposição. Esse bloqueio da “liberdade de
ser”, que implica identificações coercitivamente impostas, acaba prejudicando o equilíbrio
mental do indivíduo, porque tolhe a comunicação dele consigo mesmo. O indivíduo se
aliena de si mesmo. As angústias, a rejeição de si se tornam constantes, levando-o, assim,
ao sofrimento.

A possibilidade da manutenção do equilíbrio mental só é possível se houver a


unidade entre a subjetividade e a objetividade, com o que deseja ser e o que se está sendo,
pois, do contrário, “a subjetividade é desejo que não se concretiza, e a objetividade é
finalidade sem realização” (CIAMPA, 1987, p.145). Se essa contradição (subjetividade X
objetividade) persiste, o sofrimento emerge.

A identidade cindida é a revanche do mal-estar, da impotência, de ser


negativamente considerado pelos outros, de possuir representações ruins de suas
atividades e de si mesmo. O sentimento desvalorizado de identidade provoca sofrimento,
sobretudo porque nossa auto-afirmação pode não coincidir com o reconhecimento dos
outros; já a identidade positivamente valorizada se refere ao sentimento de ter o
reconhecimento de qualidades, de poder influenciar os outros e as coisas, o domínio (ao
menos parcial) do ambiente e de ter a representação de si confirmada de modo favorável
pelos outros.

Dentre os diversos ambientes nos quais transitamos, o trabalho é um local onde a


construção da identidade sofre forte influência. Lá se exerce papeis que, por vezes,
possibilitam ou dificultam a convergência entre a nossa subjetividade e objetividade.

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14 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

Ao iniciar-se no cotidiano laboral, o individuo traz consigo a expectativa de


concretizar - tornar objetivo - aquilo que inicialmente se manifesta subjetivamente - os
seus desejos, as suas necessidades -, por exemplo, crescimento pessoal, aprendizado,
fortalecimento de vínculos, reconhecimento social, aquisições materiais.

É também o ambiente de trabalho que possui uma forte influência sobre o


indivíduo na definição dos papeis sociais que deverão ser representados. Este ambiente, a
depender da qualidade do contexto apresentado, pode atuar de três formas: a) dar total
liberdade ao indivíduo na escolha dos papeis sociais a serem representados, b) estabelecer
uma relação de parceria com o sujeito na escolha e construção dos papeis a representar, c)
impor ao sujeito quais os papeis que deverão ser assumidos por este, sem lhe dar a chance
de escolha.

Qualquer que seja as alternativas, haverá consequências que podem ser positivas
ou negativas, tanto para o indivíduo quanto pra organização.

Na sociedade, quando estamos expostos a expectativas sociais opressoras, que


impedem a autonomia e a autodeterminação, não necessariamente a adaptação social é
sinal de saúde mental; até pelo contrário, resistir à opressão do conformismo massificador
pode ser a única possibilidade de busca emancipatória. O sujeito que busca a emancipação
nessa sociedade não significa um sujeito livre, mas um sujeito que consegue ter a visão
crítica a respeito da realidade em que está inserido e não se deixa manipular por ela.

3. O TRABALHO E O HOMEM

Na perspectiva de Marx (1988), o que diferencia o homem do animal é a capacidade que


aquele tem de produzir os seus meios de vida, a sua própria existência. O trabalho é o
principal meio pelo qual o homem constrói sua existência.

O trabalho foi desenvolvido pelo homem como consequência das necessidades e


da busca pela sua satisfação. Segundo Marx (1988), o trabalho é uma atividade que tem
como fim criar valores-de-uso e adaptar os elementos da natureza às necessidades
humanas. O trabalho sempre se constituirá por meio da interação entre o homem e o
meio, entre a objetividade e a subjetividade.

Por intermédio do trabalho, o homem reproduz no mundo um pouco de si,


confirma-se à medida que está em constante interação com o mundo. Por isso, de alguma
forma, “[...] o trabalho permanece como portador da identidade, no sentido de articulação
da percepção de si perante o mundo” (CODO; HITOMI; SAMPAIO, 1998, p.194).

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Admite-se que é pela interação social que o sujeito constrói sua individualidade,
sua história de vida, sua subjetividade e que será junto aos outros, na relação com os
outros, que essa subjetividade se manifestará.

A sua força do trabalho (trabalho abstrato) é pré-condição para que o trabalhador


a transforme em produto (trabalho concreto). É por meio do trabalho abstrato que o
indivíduo dará o valor à mercadoria produzida, independentemente do valor de troca
dela. O trabalho abstrato forma a personagem-trabalhador, como componente central de
sua identidade, dentro das condições dadas pela sociedade capitalista. A capacidade de o
trabalhador se identificar no produto do seu trabalho é relevante para a constituição da
identidade dele.

Do ponto de vista psicológico, “se a sociabilidade do homem é possibilitada pela


materialização de si no produto, a ausência do produto ou a não identificação com este,
empurra o homem em si mesmo, ou melhor, à impossibilidade de reconhecimento entre si
e o mundo” (CODO; HITOMI; SAMPAIO, 1998, p.43). Qualquer que seja o trabalho, existe
sempre uma transferência subjetiva ao produto, e é preciso que o indivíduo se veja um
pouco no produto do seu trabalho, sinta-se, de alguma forma, representado nele.

A obrigação de exercer uma função, cujo significado é percebido como


desumanizador, gera no indivíduo uma indignação muito grande; este não vê sentido na
execução do trabalho, , não se vê no produto do seu trabalho. Com isso, surge o
sentimento de inutilidade e, consequentemente, a falta de qualificação e de finalidade do
trabalho, a depressão, a desvalorização, a falta de motivação, o cansaço.

“A insatisfação em relação ao conteúdo significativo da tarefa engendra um


sofrimento cujo ponto de impacto é, antes de tudo, mental” (DEJOURS, 1992, p.61).

4. AS ESTRATÉGIAS DE DEFESAS E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA


IDENTIDADE DO TRABALHADOR

Diante do sofrimento causado pela desvalorização e insatisfação, o sujeito cria estratégias


de defesas que o protejam desse sofrimento. Essas estratégias podem ser construídas tanto
individualmente quanto coletivamente.

Primeiro, o objetivo principal da estratégia de defesa é transformar, minimizar a


percepção que o sujeito tem da realidade que o faz sofrer. Na maioria das vezes, elas são
construídas quando o sujeito não consegue transformar a rigidez das pressões
organizacionais.

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Segundo Dejours (1994), essa construção é estritamente mental, já que não


consegue alterar a realidade da pressão patogênica.

O sofrimento é uma vivência subjetiva e, portanto, individual. No entanto, vários


sujeitos, vivenciando um sofrimento único, mas proveniente de um mesmo fator, são
capazes de unir seus esforços para construir uma estratégia de defesa comum, que se dá
por meio de acordos e consensos compartilhados.
A diferença fundamental entre um mecanismo de defesa individual e uma estratégia
coletiva de defesa é que o mecanismo de defesa está interiorizado (no sentido
psicanalítico do termo), ou seja, ele persiste mesmo sem a presença física de outros,
enquanto a estratégia coletiva de defesa não se sustenta a não ser por um consenso,
dependendo assim, de condições externas [...] Há casos que as estratégias defensivas
coletivas, logo de saída, consagram-se à luta contra o sofrimento engendrado pela
organização do trabalho, conferindo ao sujeito uma estabilidade que ele será incapaz de
garantir com ajuda de apenas suas defesas próprias. (DEJOURS, 1994, p.129)

Essas estratégias levam à percepção irreal da realidade e, por isso, dificultam o


questionamento e a percepção crítica. No ambiente de trabalho, essas estratégias, ao
mesmo tempo em que protegem o trabalhador do sofrimento, causam também resistência
por parte dele em transformar a realidade em que está. Isso porque uma mudança implica
em adaptação e, para não correr o risco de passar por novos “geradores” de sofrimento, o
trabalhador resiste às mudanças.
As ameaças contra a estratégia defensiva são vivamente combatidas e a estratégia corre o
risco de ser promovida ao objeto. A situação subjetiva enuncia-se como se o sofrimento
fosse essencialmente o resultado de um enfraquecimento da estratégia defensiva e não
consequência do trabalho. O sofrimento não pode mais ser reconhecido como decorrente
do trabalho. Inversamente, a estratégia de defesa, que não era vista como nada além da
defesa contra o sofrimento, passa a ser vista como promessa de felicidade, e a defesa da
defesa é erigida em ideologia. (DEJOURS, 1994, p.130)

Dentro do ambiente de trabalho, cada coletivo constrói suas estratégias de defesa


e, assim, não só dificulta o entendimento da realidade, mas também se fecha para
qualquer possibilidade de diálogo e entendimento.

Negando o sofrimento, os trabalhadores impedem a sua elaboração e, negando a


realidade e a transformação, direcionam sua energia na manutenção da mesmice. Não
questionam, não desenvolvem uma visão crítica, apenas reproduzem a realidade,
evitando assim a mudança e barrando as possibilidades emancipatórias na construção de
suas identidades.

A afetividade está presente em todas as experiências humanas, é o modo pelo


qual o próprio corpo vivência seu contato com o mundo. Ela é intrínseca ao homem.

Todo trabalhador vive o seu trabalho de maneira afetiva, não havendo


neutralidade em relação à subjetividade. O trabalho contribui para desenvolvimento da
identidade ou de forma saudável ou de maneira patológica.

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Segundo Dejours (2001),


A afetividade está na base da subjetividade. (...) O essencial da subjetividade é da
categoria do invisível. O sofrimento não se vê. Tampouco a dor. O prazer não é visível.
Esses estados afetivos não são mensuráveis. São vivenciados de “olhos fechados”. O fato
de que a afetividade não possa jamais ser medida nem avaliada quantitativamente (...)
não justifica que se lhe negue a realidade nem que se despreze os que dela ousam falar
de modo obscurantista. Ninguém ignora o que sejam o sofrimento e o prazer, e todos
sabem que isso só se vivência integralmente na intimidade da experiência interior. .
(DEJOURS, 2001, p.29)

Ciampa (1987) informa que é preciso conhecer aquilo que está implícito, velado e
considerar o jogo da aparência, pois nele se encontram conteúdos ocultos e seus
significados.

Desta forma, o sofrimento vivenciado no ambiente de trabalho, mesmo que


vivenciado de maneira obscura, não reveladora, trazem consequências evidentes, na
medida em que este sujeito é levado a construir sua identidade pautada na opressão da
sua subjetividade.

A pressão por exercer funções que violentam suas expectativas, funções estas que
se prestam inicialmente a atender interesses organizacionais, acaba por prejudicar o
exercício profissional deste sujeito, visto que impedido de ser o que se pretende, esse
indivíduo tem a sua criatividade, motivação e energia tolhidas.

Desta forma, a postura organizacional que induz o indivíduo a agir de


determinada maneira para alcançar os seus objetivos, sem participar o próprio sujeito,
acaba por dificultar o alcance desses mesmos objetivos, na medida em que, desmotivado,
o trabalhador não investirá toda sua energia criativa na execução de sua função, visto que
precisará desviar boa parte dela na criação e manutenção de suas estratégias de defesas.

O ambiente de trabalho pode ser permeado de fatores que promovam sofrimento


psíquico no sujeito ou que contribuam para minorar esse sofrimento, transformando-o em
prazer.

Segundo Dejours (1999),


Nenhuma problematização da relação entre saúde e trabalho pode dispensar a análise
dessa relação. Na verdade, nenhuma relação de trabalho é neutra com relação à saúde.
Ou bem essa dinâmica de reconhecimento funciona, e o trabalho é feito em favor da
auto-realização que, como veremos, é a reapropriação1; ou a dinâmica do
reconhecimento não funciona, e o trabalho perde seu sentido subjetivo, não permite
subverter o sofrimento que causa, é feito contra a auto-realização, e se torna
essencialmente patogênico. Assim, não há neutralidade do trabalho: ele é operador de
saúde ou de doença; pode ser utilizado em proveito da reapropriação e pode gerar
alienação [...] (DEJOURS, 1999, p. 98)

1 Reapropriação é um termo utilizado por Dejours para definir um processo em que as pressões de trabalhos deixam de ser

suportadas passivamente pelo sujeito e passam a ser utilizadas estrategicamente visando a sua auto-realização.

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18 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

Atualmente, a dinâmica do mercado de trabalho demanda do trabalhador uma


busca constante por atualizações, por conhecimentos que sejam considerados pelas
organizações inovadores, criativos, de forma que aqueles que não participam dessa busca
incessante pela inovação deixa de ser valorizado e se torna facilmente substituído.

Tendo o seu papel constantemente determinado pela organização na qual


trabalha, o trabalhador acaba por assumir uma personagem que nem sempre se identifica.

“Assim, sob o culto da ‘excelência’ e da ‘qualidade total’, o trabalhador é coagido


a pensar para o capital, a alcançar a máxima produtividade e eficácia na atividade diária,
a ser lucrativo para a empresa” (JINKINGS, 2002, p.204).

Diante deste fato, onde ficam os desejos e sonhos desse profissional que se vê
induzido a exercer papeis, demonstrar emoções e motivações que muitas vezes não
existem? Não importam os artifícios que utilize, ele se vê forçado a adotar, diariamente,
esse personagem pré-definido.

4.1. Estratégia de defesa coletiva

É necessário deixar bem claro que, mesmo sendo a constituição das estratégias de defesa
coletiva, produto de cooperação entre sujeitos, o sofrimento é singular, individual.

Devido ao fato de o ambiente de trabalho ser um dos ambientes onde o sujeito


constrói a sua identidade, as relações nele estabelecidas são de extrema importância para
analisar como se dá a construção identitária.

Muitas vezes, diante de uma situação de sofrimento, o sujeito busca se comportar


de maneira que esse sofrimento diminua. Por meio das estratégias de defesa, o
trabalhador busca se proteger de um possível desequilíbrio seja mental, seja físico.

Dejours (1999) desenvolve a noção de normalidade para explicar como a


estratégia de defesa atinge seu objetivo. Ele define o estado normal como sendo um
estágio em que as doenças estão estabilizadas e o sofrimento compensado. No entanto,
ressalta que a normalidade não exclui o sofrimento, porém ameniza-o. Uma das formas de
atingir a normalidade é por meio da utilização das estratégias defensivas. Quando essas
se enfraquecem, a normalidade não consegue ser alcançada, e, portanto, surge o
desequilíbrio e as doenças.

No entanto, existe outra maneira de manter a normalidade: construindo


alternativas benéficas para lidar com os geradores de sofrimentos. Essa é a mais difícil, já
que exige que o trabalhador encare o sofrimento de frente, analise suas causas, busque,

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através dessa experiência, desenvolver uma visão crítica da sua realidade para escolher,
livremente, formas benignas de lidar com ela.

Um sujeito que tem uma visão crítica da sua realidade de trabalho e consegue
lidar de forma equilibrada com os conflitos e as contradições nela existentes, consegue
promover sua saúde mental/física. Porém, aquele que tem dificuldade de lidar com essa
situação cria estratégias de defesa para não adoecer.

Essas estratégias, mesmo visando à proteção, podem fazer com que o sujeito
anule a sua capacidade de transformação. Ele passa a agir passivamente e silenciosamente
para que não desperte em si a conscientização e, consequentemente, o sofrimento.
Qualquer possibilidade de mudança no ambiente de trabalho pode significar uma ameaça
para as estratégias construídas, já que implica em adaptação. O que ele quer manter é o
ambiente conhecido, mesmo que promova sofrimento, pois não quer desestabilizar as
estratégias de defesa e, assim, correr o risco de sofrer. Não há aí transformação e
possibilidade de emancipação. A mesmice é cultivada para a manutenção da
sobrevivência, daí a resistência à mudança de comportamento.

Como não é fácil construir uma estratégia de defesa que anule o sofrimento,
quando se consegue construir uma, é preciso conservá-la, e, para isso, é imprescindível
impedir a mudança. Os sujeitos se tornam prisioneiros de suas estratégias de defesa e
alienado.

O reflexo da adoção da estratégia de defesa atinge diretamente as organizações


na medida em que, diante da necessidade de estar em constante adaptação para se manter
no mercado, ela esbarra com trabalhadores resistentes à mudança. No entanto, a
estratégia de defesa também acaba por “proteger” as organizações dos questionamentos e
reivindicações provenientes de insatisfações geradoras de sofrimento e engendrada por
elas mesmas, visto que os trabalhadores, ao adotar tais estratégias, acabam por se alienar
da realidade que os cerca. Isso faz com que as organizações deixem de passar por
constantes autoanálises que possibilitem a visão de promotora de um ambiente
patogênico.

A realidade descrita sobre o ambiente de trabalho suscita mais reflexões sobre


alguns fatores que fazem parte e embasam as ações cotidianas no trabalho e suas
implicações no incentivo ou bloqueio da construção de identidades emancipatórias.

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20 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

Ética
Não se pode conceber o ambiente de trabalho apenas como um local de produtividade,
pois o relacionamento entre pessoas também faz parte desse ambiente. E, para que um
relacionamento seja saudável, deve haver o mínimo de confiança entre as pessoas.

“A confiança não é um problema psicológico, mas ético. Para ter uma relação de
confiança com o outro, devo conhecer as regras às quais ele se submete, as regras que
respeita e os acordos entre palavras e atos” (DEJOURS, 1999, p.81).

A ética está diretamente ligada a valores sociais e, atualmente, no ambiente de


trabalho, esses valores têm sido postos em segundo plano, quando não modificados por
questão de sobrevivência. A concorrência e a ameaça do desemprego fazem com que
muitos trabalhadores tenham que preterir a ética ao lucro.

No momento em que reconhece que muitas vezes não se portam eticamente,


como fica a subjetividade desses profissionais? Que defesas eles utilizam para conviver
com isso, constantemente?

Algumas vezes o senso de moral é mantido, mas há uma espécie de subversão de


valores. A ética passa a ser invertida, na medida em que muitos trabalhadores alegam que
determinado tipo de prática antiética é corriqueira no meio laboral. Quando o argumento
é o de que tal comportamento já se tornou uma prática da empresa, significa dizer que,
apesar de reconhecer que é errado, o ato já virou uma norma informal no ambiente de
trabalho, algo comum, banal. E, quando vira norma, a culpa deixa de ser do indivíduo
para ser da organização, que permite e, muitas vezes, incentiva essa prática. Criou-se,
assim, uma estratégia de defesa para tornar tolerável o sofrimento ético2.

As estratégias defensivas podem funcionar como uma forma de insensibilizar o


trabalhador para aquilo que o faz sofrer, uma espécie de artifício para a proteção.

Encontrando-se nessa situação, o sujeito, para se proteger do sofrimento, muitas


vezes utiliza uma estratégia defensiva que o exime de pensar criticamente sobre a sua
situação. Para evitar a conscientização dolorosa da própria cumplicidade, da própria
colaboração e da própria responsabilidade no agravamento do contexto social do qual faz
parte e, muitas vezes, também é vítima, ele substitui o pensamento pessoal por fórmulas
feitas, opinião dominante. Passa a reproduzir o papel que se espera que ele reproduza e,
assim, se exime da capacidade de julgamento e da culpa.

Mais uma vez, ele repõe a identidade pressuposta.

2 Segundo Dejours (1999), o sofrimento ético é o sofrimento que o sujeito pode experimentar ao cometer, por causa do seu

trabalho, atos que condena moralmente.

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“Dado o caráter formalmente atemporal atribuído a minha identidade


pressuposta (...), fica oculto o verdadeiro caráter de minha identidade [...] Toda aparência
é de estabilidade, ausência de movimento e de transformação [...]” (CIAMPA, 1987, p.178-
179).

Transgressão
Dejours (1999) identifica quatro casos típicos de transgressão no mundo do trabalho:

1. Infração inevitável: são infrações em que o sujeito não tem como não fazê-
las. Por exemplo, quando ele se vê diante de situações paradoxais
existentes dentro da própria instituição, das contradições existentes nas
regras elaboradas.
2. Infração a contragosto: são infrações em que a pessoa comete
conscientemente, mas a contragosto, sempre em benefício do chefe ou da
empresa.
3. Infração de má-fé: feita com o objetivo de enganar alguém em detrimento
de outro alguém.
4. Infração para si mesmo: não tem a intenção de prejudicar, é feita por
desejo ou por convicção.
A transgressão é sempre marcada pela ambivalência entre o desejo e a culpa. Por
isso, ela nem sempre traz prazer em executá-la.

Segundo Dejours (1999, p.59) “O prazer eventualmente obtido das transgressões


e das infrações normalmente não depende somente do sujeito, mas também – e muito - da
interpretação que os outros façam dessas transgressões e infrações”. Independente do
motivo que leva um indivíduo a transgredir, ele corre o risco de julgado por alguém.

O que faz uma pessoa transgredir e a outra não é a capacidade que o sujeito tem
de não se deixar influenciar pelo ambiente, de ter uma visão crítica da situação e buscar
alternativas que tragam benefícios.

Essas pessoas podem até usufruir a transgressão por meio de vantagens, ainda
que ilícitas, porém, correm o risco de ficarem prisioneiras do seu próprio comportamento,
se acomodando nas vantagens em vez de buscarem uma outra alternativa que não a
transgressão, uma alternativa emancipatória por meio da adoção de outros personagens.

Individualismo X Engajamento Político


Dentro do ambiente organizacional, a concorrência também é estimulada com o intuito de
impedir que haja uma identificação entre os funcionários e o consequente fortalecimento
da categoria para pleitear melhorias de condições de trabalho.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 16, Nº. 25, Ano 2013 • p. 9-29
22 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

Por meio de premiações individuais, de metas, de promoções, os trabalhadores


acabam direcionando toda a sua energia no cumprimento dos interesses organizacionais
e, consequentemente, dos benefícios individuais.

O individualismo não permite que os trabalhadores se reconheçam como grupo.


E isso impede que vejam que é justamente a falta de reações coletivas de mobilização
contra o sofrimento que aumenta o desemprego e traz consequências prejudiciais e danos
psicológicos e sociais. A pressão que as organizações exercem sobre os funcionários é tão
grande, que eles deixam, muitas vezes, de recorrer ao sindicato para fazer alguma
denúncia.

As organizações buscam, por meio de seus métodos aparentemente benéficos


(premiações, promoções) e visivelmente maléficos (ameaças, demissões, suspensão),
apagar qualquer possibilidade de união da categoria.

O que se vê é a transformação que a sociedade sofreu no que diz respeito à


reação diante do sofrimento, das adversidades e das injustiças sociais. Quase não há mais
indignação e mobilização coletiva com objetivos solidários e justos. Em troca disso, as
pessoas passaram a se comportar reservadamente, com medo e, algumas vezes, com
perplexidade. Porém, na sua maioria, o que predomina é a indiferença, a tolerância e a
resignação à injustiça e ao sofrimento alheio.

Desse modo, as pessoas vêm se transformando não na direção da sua


humanização, mas, sim, na direção da mesmice, da manutenção do status quo desumano,
reduzindo o sujeito ao conformismo e à indiferença resultante do medo da exclusão.

As relações sociais só se modificarão, se o sujeito promover, na sua


transformação, a “mesmidade”, pois, assim, as suas relações com o outro fatalmente se
modificam. A mesmice impede essa transformação e a possibilidade de melhorias.

Conformismo e banalização
Toda essa situação contraditória em que os trabalhadores estão inseridos e a dificuldade
em transformar tal realidade tendem a torná-los tolerantes e indiferentes a elas. Eles
perdem a capacidade de se indignar com o sofrimento alheio e até mesmo com o próprio
sofrimento.

A ameaça constante de precarização e exclusão social estimula esse tipo de


comportamento. As pessoas têm medo de contestar, de se indignar e sofrer as
consequências de suas ações. Dessa forma, muitos preferem se eximir da capacidade de
pensar e, assim, colaborar na manutenção do sistema capitalista excludente.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 16, Nº. 25, Ano 2013 • p. 9-29
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Apenas poucos conseguem direcionar sua ação para a solidariedade, o auxílio


mútuo, a luta pela justiça, entrando em choque com interesses estabelecidos e situações
convenientes. Essas pessoas, diante de um contexto que barra qualquer contestação e
transformação, encontram na realização de sua metamorfose identitária um sentido
emancipatório, mesmo correndo o risco de sofrerem represálias.

Porém, a grande maioria colabora, com sua ação ou sua omissão, para a
manutenção do sistema excludente, tornando, cada vez mais frequentes e hegemônicos, o
comportamento de exploração da mão-de-obra, a competitividade. O bloqueio à
qualidade de vida (também no ambiente de trabalho) e a supervalorização da
lucratividade passam não só a serem vistos como algo normal, mas também benéficos
para o desenvolvimento econômico e social.
A novidade não está na iniquidade, na injustiça e no sofrimento impostos a outrem
mediante relações de dominação que lhe são coextensivas, mas unicamente no fato de
que tal sistema possa passar por razoável e justificado; que seja dado como realista e
racional; que seja aceito e mesmo aprovado pela maioria dos cidadãos; que seja, enfim,
preconizado abertamente, hoje em dia, como um modelo a ser seguido, no qual toda a
empresa deve inspirar-se, em nome do bem, da justiça e da verdade. A novidade,
portanto, é que um sistema que produz e agrava constantemente adversidades,
injustiças e desigualdades possa fazer com que tudo isso pareça bom e justo. (DEJOURS,
2001, p.139).

Visão crítica
Conforme foi citado, anteriormente, os trabalhadores, muitas vezes, utilizam uma
estratégia defensiva que os exime de pensar criticamente sobre a sua situação. Eles podem
até ficar insatisfeitos com a sua realidade no trabalho, porém não argumentam, não
contestam e nem se opõem verdadeiramente.

Ao adotar essa estratégia, eles se acomodam e buscam se proteger de conflitos.


No entanto, enquanto alguns deles, inicialmente, passaram por momentos de extremo
sofrimento, que os levam à decepção total daquilo que acreditavam ser a base contratual
de seu trabalho, alterando completamente a sua visão de mundo, seu sentido em relação
ao seu trabalho, outros agem dessa forma, porque têm uma tendência a se comportar de
maneira dependente em relação às instruções, aos comandos, à proteção conferidos pelos
papéis assinados.

O sujeito, ao se apoiar nas instruções, nos comandos, deixa de ser verbo (alguém
que autodetermina suas ações) para se tornar substantivo (mantendo o papel determinado
externamente). Mesmo que haja mudanças, essas ocorrem em função da personagem que
as substantivou. Não há salto qualitativo, pois não há ação consciente.

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24 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

O sujeito perde a capacidade de desenvolver uma visão crítica; para não correr o
risco de perder o emprego, prefere se anular a ter que questionar as regras e normas no
seu ambiente de trabalho.

A compulsão de repetir os papéis pode ser removida quando pararmos para


refletir sobre as nossas representações.

5. CONCLUSÃO

“A reprodução da vida precisa ser mediatizada pela interpretação do que merece ser
vivido, sob as condições dadas” (CIAMPA, 1987, p.212).

No presente trabalho a proposta central foi a analise das condições existentes


dentro do ambiente de trabalho e a influência dessas condições na qualidade da
construção de suas identidades. Ao limitar esse enfoque, não houve a negação da
importância das outras esferas da vida do sujeito. Pelo contrário. Acredita-se justamente
que são elas que proporcionam ao trabalhador a possibilidade de uma emancipação que o
humanize não só fora do ambiente de trabalho, mas também dentro dele.

Neste sentido, pode-se considerar que a sociedade enfatiza o agir instrumental


em detrimento do agir comunicativo, buscando o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia em benefício do aumento da produção. As transformações decorrentes desse
desenvolvimento vêm, até hoje, produzindo cada vez mais riqueza capitalista. Todavia,
toda essa riqueza não garantiu ao trabalhador benefícios. Pelo contrário, o homem vem se
tornando cada vez mais escravo do sistema. Enquanto a questão da produção já está
resolvida (em relação ao incremento tecnológico e científico em prol da lucratividade e
produtividade) a distribuição equitativa da riqueza não se realiza.

Outras alternativas precisam ser criadas para que o sujeito não se deixe
escravizar pelo sistema. E o que vai diferenciar aquele que se deixou escravizar daquele
que, mesmo estando dentro desse contexto, resistiu é a capacidade de agir, quase sempre
estrategicamente, para conseguir alguma liberdade e autonomia.

O que foi exposto, até então, incita a uma pergunta muito importante: Se a atual
conjuntura organizacional não facilita que os trabalhadores construam suas identidades
de maneira emancipatória, quais seriam as condições necessárias à ser desenvolvidas
nesse ambiente para que tais identidades fossem construídas de maneira livre?

A questão não é acabar com a produtividade, não é ignorar a tecnologia, a


racionalização, porque tudo isso é usado pelo capitalismo para aumentar a produção.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 16, Nº. 25, Ano 2013 • p. 9-29
Evelyn Barreto Santiago 25

Considerando que, ao lado da produção, há a esfera da comunicação, voltada


para o desenvolvimento da autonomia e da liberdade, vale a penas citar a noção da vida
democrática, que supões o estado de direito.

Segundo Habermas (1987),


[...] uma cultura democrática, em que as pessoas passem a exercer os seus direitos de
cidadania [...] onde as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou
princípios que concordam (ou podem concordar) todos os indivíduos compondo ou
criando uma sociedade destinada a ter práticas leais e benefícios. (HABERMAS, 1987,
p.153)

Transferida essa proposta ao ambiente de trabalho, o primeiro passo seria


promover um ambiente de discussão3 com condições mútuas de compreensão e
mobilização subjetiva dos sujeitos em que pontos de vista distintos sobre o funcionamento
e o estado do trabalho pudessem ser debatidos. O objetivo não seria levantar quem está
certo ou quem está errado, mas, sim, gerir ajustamentos da organização do trabalho.
Falar e ser ouvido parece ser o modo mais poderoso de pensar e, portanto, de refletir
sobre a própria experiência, desde que se esteja comprometido em uma relação
dialógica, intersubjetiva, na qual se acredita que o outro esteja de fato tentando
compreender. (DEJOURS, 1999, p.176)

A criação de condições da intercompreensão, que supõe a queda da barreira que


impede a utilização da palavra e da escuta, permite, assim, a substituição do sofrimento
do trabalho pela elaboração da sua vivencia.
Entretanto, a existência de condições favoráveis a essa elaboração não depende apenas,
como se diz frequentemente, das qualidades psicológicas individuais: depende também
de que haja formas sociais e formas éticas que enquadrem as relações entre as pessoas no
trabalho. Da qualidade dessa discussão dependem o sentido do trabalho, o
reconhecimento das dificuldades encontradas pelas pessoas no trabalho, o
reconhecimento da inteligência e da engenhosidade para enfrentar esse obstáculo. A
qualidade da discussão é, portanto, decisiva para que seja possível construir o sentido
subjetivo da relação com o trabalho. (DEJOURS, 1999, p.32)

A comunicação aqui é vista como um esforço para compreender a visão do outro,


para chegar a um sentindo comum e à elaboração de normas construída conjuntamente. A
comunicação, nesse sentido, está voltada para a aliança que traz em si o ideal da
convivência pacífica.

Quando não se compreendem mais, quando não conseguem mais se comunicar,


as pessoas não só ficam decepcionadas, mas também se defendem; e, quando isso ocorre,
acabam por se fechar a qualquer possibilidade de entendimento.

“Para ser compreendido, não basta ter a verdade; é preciso encontrar formas
pelas quais os outros possam compreendê-la” (DEJOURS, 1999, p.173).

3 Termo utilizado por Dejours (2001) para se referir ao espaço que prefigura e contribui para alimentar ou engendrar o

espaço público; que as pessoas intervêm para opor argumentos que não são somente técnicos.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 16, Nº. 25, Ano 2013 • p. 9-29
26 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

Infelizmente, o que se pode afirmar é que o capitalismo atual se opõe à adoção do


agir comunicativo. No que diz respeito ao trabalho, o que se encontra são distorções
comunicativas e a utilização da comunicação como estratégia em proveito da
manipulação e dos interesses particulares.

Porém, a sociedade não deve, por isso, renunciar à transformação no trabalho.


E se a situação é insustentável, mas há esperança de transformá-la, ou se a
transformação parece possível desde que contribuamos para transformá-la, muda
completamente a relação com o sofrimento. A contribuição de cada um abre a
perspectiva de uma evolução e conjura a repetição. (DEJOURS, 1999, p.170).

Diante de tudo o que foi analisado anteriormente, a conclusão mais viável seria a
de que a emancipação do trabalhador está praticamente inviabilizada.

Felizmente, sabe-se que a emancipação pessoal desses sujeitos dependerá não só


do papel profissional do trabalhador, mas também de todas as outras personagens que
fazem parte da suas identidades, assim como de suas próprias historias de vida, que os
levam a interpretar, de forma diferenciada, o contexto a que estão submetidos e, assim,
eventualmente, criar alternativas pessoais que possam promover outros sentidos de vida.

A identidade se forma pela articulação de atividades concomitantes (sincrônicas)


e sequenciais (diacrônicas). É um processo. É atuação de inúmeros papéis, da
representação de várias personagens, e não apenas uma só. Ao focalizar e se limitar a uma
única personagem, o sujeito acaba por negar a característica processual da construção da
identidade e limita-se a uma única atuação, ação, mesmo quando a ação já não se faz mais
ou até não se fará jamais, futuramente.

Ao assumir uma só personagem, entre as outras que fazem parte de si nega-se a


sua totalidade.

A identidade é sempre transformação, já que ela é processual, dialética, porém


nem sempre essa transformação é emancipatória.

A mesmice é uma forma de metamorfose, todavia não-emancipatória. Pode não


parecer, mas, para manter uma mesma personagem, o sujeito precisa estar,
constantemente, se transformando numa cópia de si mesmo.
O ser humano também se transforma, invariavelmente. Alguns, à custa de muito
trabalho, de muito labor, protelam certas transformações, evitam a evidência de
determinadas mudanças, tentam, de alguma forma, continuar sendo o que chegaram a
ser num momento de sua vida, sem perceber, talvez, que estão se transformando numa
réplica, numa cópia daquilo que já não estão sendo, do que foram. De qualquer forma, é
o trabalho da re-posição que sustenta a mesmice. (CIAMPA, 1987, p.165, grifos do autor).

É preciso superar constantemente a identidade pressuposta para que os outros


que constituem o sujeito se manifestem, já que também fazem parte da sua identidade.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 16, Nº. 25, Ano 2013 • p. 9-29
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Quando reproduzimos, mecanicamente, uma personagem, não há a análise


desta. Negando essa reflexão, promove-se a alienação de si mesmo.

A emancipação se inicia quando o indivíduo troca a mesmice pela mesmidade,


que ocorre quando o indivíduo passa a ser aquilo que deseja. Ele não se deixa dominar
pelos personagens, tem autonomia para escolher entre aqueles que fazem parte da sua
totalidade, pois tem consciência de sua atuação e, consequentemente, de suas relações.
Analisa criticamente sua relação com o outro, não mais se submetendo a normas e desejos
externos.

Inicialmente, o sujeito passa da alienação para a autodeterminação de suas ações.


Isso ocorre porque ele reconhece e analisa seus atos. A partir daí, ele amplia a sua visão
para as relações sociais das quais faz parte, reconhece-se como sujeito que influencia e é
influenciado pela sociedade e, assim, conclui que a transformação do ambiente depende
também de sua transformação.

Segundo Ciampa (1987), a autodeterminação supõe finalidade. O sujeito precisa


conciliar a sua objetividade (ações) com a sua subjetividade (anseios e desejos), fazer do
seu agir uma atividade finalizada. A partir daí, tendo autonomia e visão crítica, ele se
torna capaz de analisar sua realidade e escolher que caminho seguir.

O ambiente de trabalho também pode ser um poderoso instrumento a serviço da


emancipação. Todavia, por ser um ambiente permeado de contradições; a alienação ou a
emancipação vão depender da visão que o sujeito tem desse ambiente e das alternativas
que utiliza para se proteger do sofrimento.

Quando entra no ambiente de trabalho, o indivíduo traz consigo toda uma


história de vida preexistente, seus valores morais e éticos, seus planos, suas expectativas
em relação a essa nova fase de vida e a concepção de si mesmo como pessoa.

Essa nova relação que se inicia no trabalho vai criar várias transformações, e,
nela, o indivíduo desempenhará novos papéis (entre aqueles que já desempenham nas
relações sociais) construindo sua personagem “trabalhador”, que traz consigo
aprendizados, experiências, comportamentos que já existiam e estão abertos a acrescentar
outros que surgirão a partir dessa nova relação.

As condutas, as atitudes têm estreita relação com as intenções, os valores, as


crenças, os significados que são adquiridos no decorrer da vida.

O ambiente de trabalho, na sociedade capitalista, tem dificultado e muito a


construção da identidade do indivíduo com sentido emancipatório e vai, aos poucos,
fechando alternativas e transformando o profissional naquilo que é desejado pelo sistema.

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28 O ambiente de trabalho, as estratégias de defesas e suas implicações na construção da identidade do trabalhador

Porém, como já foi dito anteriormente, a identidade do indivíduo não é construída apenas
por meio do trabalho, pois ele constrói sua identidade também na relação com seus
familiares, seus amigos, nos eventos sociais, entre outras situações vividas fora do
ambiente de trabalho. E, à medida que leva para esse ambiente o aprendizado adquirido
com suas outras vivências – desde que essas vivências sejam positivas no sentido de
desenvolver visão critica -, abre-se um leque de possibilidades para que ele crie
alternativas emancipatórias dentro de um contexto em que aparentemente não existe
saída.

Ao construir novas alternativas, o homem pode viabilizar alternativas


satisfatórias. Pode parecer algo simplista, porém é preciso nos conscientizarmos de que,
no conjunto, todas essas alternativas sempre vão se referir a soluções que são particulares,
são para poucas pessoas. E, mesmo que essas alternativas gerem novas formas de
relações, para que se tornem uma solução universal, para a sociedade inteira, seria
necessária uma transformação radical desta, uma nova ordem social que não pode ser
imaginada agora, sob pena de se cair num utopismo idealista.

Diante do que foi analisado até agora, persistem algumas perguntas: existe
possibilidade do trabalhador, enquanto tal, construir alternativas emancipatórias no
desenvolvimento de sua identidade? A historia de vida do sujeito constituída também
fora do ambiente de trabalho pode, de alguma forma, torna crítica a sua visão de mundo e
possibilitar, apesar do contexto descrito, a construção de uma identidade com sentido
emancipatório? Ou essa é uma ilusão necessária para a reposição de seu personagem
profissional a serviço do capital?

Lutar contra a colonização do mundo da vida pela ordem sistêmica, não ignorar
as contradições entre ambos, pode ser a forma de desenvolver um ceticismo não
derrotista. Ceticismo que ilumina os aspectos não emancipatórios de nossa sociedade,
para a crítica necessária, e não derrotismo que ilumina também possibilidades
emancipatórias, ainda que tênues, inesperadas, fragmentadas, que nos levam a continuar
lutando por uma vida que mereça ser vivida.

REFERÊNCIAS
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1997. 205f. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica
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Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

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Evelyn Barreto Santiago 29

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DEJOURS, C. A banalidade da injustiça social. 4.ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2001.
______. Conferências Brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. São
Paulo: Fundap: EAESP/FGV, 1999
______. A loucura do trabalho. 5.ed. São Paulo, Cortez Editora, 1992
DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da Escola
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HABERMAS, J. A nova intransparência: a crise do estado de bem estar social e o esgotamento das
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JINKINGS, N. Trabalho e resistência na “Fonte Misteriosa”: os bancários no mundo da eletrônica
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LAING, R.D. Identidade complementar. 6.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Volume I. 3.ed. Trad. Régis Barbosa e Flavio
Kothe. São Paulo, Nova Cultural, 1988 (Os Economistas.)

Evelyn Barreto Santiago


Professora dos cursos de Administração de
Empresas e Secretariado Executivo Trilíngue.

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