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Mosteiros
Cistercienses
História, Arte, Espiritualidade e Património
TOMO II
DIRECÇÃO
José Albuquerque Carreiras
ALCOBAÇA
2013
RECITAÇÃO DO TEXTO SACRO: CLARAVAL E ALCOBAÇA
MANUEL PEDRO FERREIRA* E MARA FORTU DE ARAÚJO*
1. Introdução
É sabido que a leitura em voz alta, ou cantilação do texto sacro é o cerne da con-
templação monástica no contexto da liturgia. A Ordem de Cister distinguiu-se, no pri-
meiros séculos, pela definição, imposição centralizada e observância estrita de regras
em todos os campos da actividade monástica. Na definição dessas regras, os cister-
cienses foram norteados pela vontade de regresso às fontes primitivas. Assim aconte-
ceu com a Regra de S. Bento, com a selecção do hinário e com a eleição da tradição
melódica gregoriana.
Naturalmente, este espírito contagiou a sua abordagem do Latim, obrigando-os a
procurar quer a correcção gramatical na divisão dos textos, quer a correcção acentual
na sua pronúncia. No entanto, a consciência gramatical exerceu-se no seio de uma tra-
dição em que a leitura solene era veiculada por fórmulas melódicas com uma lógica
musical: tons salmódicos e diversos tons de leitura.
Nestas fórmulas, só alguns segmentos de texto são tratados, acentualmente, de
forma diferenciada. E apesar de estas fórmulas aparecerem, nalguns casos, reduzidas
a notação musical, esta notação não indica, pela sua própria natureza, senão a altura
do som. Por isso, quando a notação musical se comporta de forma imprevisível, é lí-
cito suspeitar de que o notador teve em conta outros fenómenos, que não a mera al-
tura melódica.
* Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), FCSH - Universidade Nova de Lisboa
Mosteiros Cistercienses, Vários Autores, José Albuquerque Carreiras (dir.), Alcobaça, 2013, Tomo II, pp. 195-203.
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2. O ponto e a virga
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Fig. 1. (Mosteiro de Arouca, Ms. 21, fol. 52v): antífona Sana Domine
Este sistema não é referido nem por Dom Mocquereau (em cuja segunda catego-
ria, no entanto, se pode enquadrar), nem por Solutor Marosszéki na sua tese sobre o
canto cisterciense2; nesta última tese, o autor assume, aliás, a utilização de forma alea-
tória da virga e do punctum nos manuscritos da família do mosteiro de Cister (Cîteaux).
Como veremos adiante, a hipótese de que Alcobaça imita, neste caso, Claraval, é con-
firmada por fontes desta última abadia, conservadas na Mediateca de Troyes.
2 MAROSSZÉKI, Solutor R., Les origines du chant cistercien. Recherches sur les réformes du plain-chant
cistercien au XIIe siècle, Tipografia Poliglotta Vaticana, Roma, 1952 [Analecta sacris ordinis cister-
ciensis, vol. VIII].
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Acontece de facto que, até ao início do século XIII, só nos manuscritos cistercienses
se encontram passagens de uníssono melódico em que não se repete apenas uma das fi-
guras musicais mais simples, o ponto ou a virga, ou seja, o pequeno quadrado ou o qua-
drado com um traço descendente à direita (nota caudata). Em vez disso, nesses
manuscritos as duas figuras alternam, embora a razão para tal nem sempre seja evidente.
Foi em 1990 que pela primeira vez um dos autores destas linhas referiu o facto de
que nos manuscritos musicais presumivelmente copiados em Alcobaça nos últimos anos
do século XII — o Gradual de Lorvão na Torre do Tombo, um par de antifonários em
Arouca, e o antifonário de Las Huelgas — há esse tipo de passagens (Fig. 3a-c)4. Tam-
bém o Iluminado 115 na Biblioteca Nacional, pouco posterior, as exibe.
3 FERREIRA, Manuel Pedro, «La réforme cistercienne du chant liturgique revisitée: Guy d'Eu et les pre-
miers livres de chant cisterciens», Revue de Musicologie, 89, 2003, pp. 47-56; IDEM, «Dating a Frag-
ment: A Cistercian Litany and its Historical Context», em Leandra SCAPPATICCI (ed.), Studi in onore di
Giacomo Baroffio, Libreria Editrice Vaticana, Roma, no prelo.
4 FERREIRA, Manuel Pedro, «Relatório preliminar sobre o conteúdo musical do Fragmento Sharrer», in Actas
do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Volume I, Edições Cosmos, Lisboa, 1991,
pp. 35-42; uma primeira abordagem geral dos manuscritos musicais cistercienses em Portugal foi incluída
no artigo «Da Música na História de Portugal», Revista Portuguesa de Musicologia, 4-5, 1994-95, pp. 167-
216. O fundo de Arouca é tratado numa publicação mais recente: FERREIRA, Manuel Pedro (com FORTU,
Mara), «A música antiga nos manuscritos de Arouca: contribuição para um catálogo», em Ângela MELO
(coordenação), O órgão do Mosteiro de Arouca: conservação e restauro do património musical, Vila Real
– Arouca: Direcção Regional de Cultura do Norte / Câmara Municipal de Arouca, 2009, pp. 40-53.
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Fig. 3a-c. O versículo Omnis terra no Mosteiro de Las Huelgas, Ms.10; e no Museu de Arte Sacra
de Arouca, Mss. 21 e 25 (códices oriundos de Alcobaça)
Nessa altura, observou-se ainda que tal uso da notação musical só tinha sido en-
contrado em fontes oriundas de mosteiros da família de Claraval. Faltava examinar os
manuscritos que se conservam dessa mesma abadia, que se presumia estar na origem
dessa disseminação; e de facto, após consulta local, observámos que o sistema também
aí aparece (Fig. 4).
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5. Problemas de inconsistência
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5 LECLERCQ, Jean, «Textes cisterciens dans les bibliotheques d’Allemagne» (capítulo «Textes sur l’ ac-
centuation»), Analecta Sacra Ordinis Cistercensis 7, 1951, pp. 46-70 [64-70]; HUBERT, Martin, «Cor-
pus stigmatologicum minus», Archivum Latinitatis Medii Aevi (A.L.M.A.), 37, 1970, pp. 5-171; 39,
1974, pp. 55-84; IDEM, «Le vocabulaire de la ponctuation aux temps médiévaux: un cas d’incertitude
lexicale», Archivum Latinitatis Medii Aevi, 38, 1972, pp. 57-167.
6 NASCIMENTO, Aires Augusto, A "ars accentualis" de Martinho de Alcobaça (Lisboa BN, Alc. 149): es-
peculação e uso do Doctrinale, Inst. Nac. de Investig. Científica, Lisboa, 1986; IDEM, «Um "Mariale"
alcobacense», Didaskalia, 1979, vol. 9, nº 2, pp. 339-411, também disponível online: http://www.val-
lenajerilla.com/berceo/nascimento/ummarialealcobacense.htm.
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Omnis dictio, quotcumque sit syllabarum, uno regitur accentu et unus accentus in
ea dominatur. Illa ergo syllaba in lectione tenebitur et elevabitur quae habuerit do-
minantem accentum. Caeterae omnes deprimentur et sine mora pronuntiabuntur.
Verbi gratia: [...] cum dico "tribulatiónes" vel "tribulatiónibus", haec syllaba "o"
sola tenetur et accentatur7.
7 «Incipit opusculum de accentibus. Generalis regula accentandi», f. 42v do códice H332 existente na
Biblioteca da Faculdade de Medicina de Montpellier.
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