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SEPARATA

Mosteiros
Cistercienses
História, Arte, Espiritualidade e Património

TOMO II

DIRECÇÃO
José Albuquerque Carreiras

Actas do Congresso realizado em Alcobaça


nos dias 14 a 17 de Junho de 2012

ALCOBAÇA
2013
RECITAÇÃO DO TEXTO SACRO: CLARAVAL E ALCOBAÇA
MANUEL PEDRO FERREIRA* E MARA FORTU DE ARAÚJO*

1. Introdução

É sabido que a leitura em voz alta, ou cantilação do texto sacro é o cerne da con-
templação monástica no contexto da liturgia. A Ordem de Cister distinguiu-se, no pri-
meiros séculos, pela definição, imposição centralizada e observância estrita de regras
em todos os campos da actividade monástica. Na definição dessas regras, os cister-
cienses foram norteados pela vontade de regresso às fontes primitivas. Assim aconte-
ceu com a Regra de S. Bento, com a selecção do hinário e com a eleição da tradição
melódica gregoriana.
Naturalmente, este espírito contagiou a sua abordagem do Latim, obrigando-os a
procurar quer a correcção gramatical na divisão dos textos, quer a correcção acentual
na sua pronúncia. No entanto, a consciência gramatical exerceu-se no seio de uma tra-
dição em que a leitura solene era veiculada por fórmulas melódicas com uma lógica
musical: tons salmódicos e diversos tons de leitura.
Nestas fórmulas, só alguns segmentos de texto são tratados, acentualmente, de
forma diferenciada. E apesar de estas fórmulas aparecerem, nalguns casos, reduzidas
a notação musical, esta notação não indica, pela sua própria natureza, senão a altura
do som. Por isso, quando a notação musical se comporta de forma imprevisível, é lí-
cito suspeitar de que o notador teve em conta outros fenómenos, que não a mera al-
tura melódica.

* Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), FCSH - Universidade Nova de Lisboa

Mosteiros Cistercienses, Vários Autores, José Albuquerque Carreiras (dir.), Alcobaça, 2013, Tomo II, pp. 195-203.

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2. O ponto e a virga

A notação neumática surgiu com a intenção de fixar o contorno da linha melódica,


precisando o número e o carácter dos seus elementos constitutivos. Uma nota simples
podia ser apontada quer com um ponto, quer com um traço com o topo marcado (virga).
Estes são os neumas mais simples. A escolha entre um ponto e uma virga para signi-
ficar uma nota isolada sobre uma sílaba era originalmente determinada pela altura re-
lativa da nota: um traço correspondia a uma altura elevada; um ponto, a uma altura
relativamente mais baixa. Este entendimento, válido a partir do século IX, não desa-
pareceu com a invenção da pauta no século XI. Porém, a colocação das notas indivi-
duais dos neumas sobre uma grelha de linhas horizontais correspondentes a posições
fixas na escala (a pauta) tornou desnecessária a distinção visual entre neumas graves e
agudos, ou seja, entre ponto e virga. As respectivas formas foram mantidas, por inér-
cia, sobre as pautas, mas tendencialmente esvaziadas da sua função primitiva, por re-
dundante. A natureza gráfica da virga também mudou: o traço escrito com ímpeto
ascendente, vertical ou quase, no topo do qual se marcava a nota, passou a ser escrito
como uma nota pendurada algures na pauta, com cauda descendente.
Na formulação hoje clássica de Dom Mocquereau1, o uso das notas caudadas, ou
virgae, diversificou-se então, nos manuscritos de canto gregoriano, de acordo com qua-
tro possibilidades, que reformulamos, para maior clareza, como segue:
1) Continuação da função tradicional de marcação da altura, apesar de redundante;
é o que sucede na maior parte dos casos.
2) Marcação do início ou do final de um elemento musical (no exemplo dado por
Mocquereau, esse elemento é definido pelas fronteiras de palavra).
3) Decomposição analítica dos grupos melódicos (no exemplo dado, definidos pe-
las fronteiras de palavra), em função da altura relativa.
4) Uso aleatório.
Infelizmente, Dom Mocquereau não identificou as suas fontes para as categorias 2)
e 3), as quais estão raramente documentadas.
Há, contudo, pelo menos um exemplo que poderá ilustrar a terceira categoria de
Mocquereau. Trata-se da antífona Sana Domine (Fig. 1) na qual, no uso da virga, con-
vergem o princípio da marcação de altura e o princípio da definição dos grupos meló-
dicos com base nas fronteiras de palavra. Dá-se também o caso de que, exceptuando o
vocábulo final, a acuidade melódica coincide sempre com o acento gramatical da pa-
lavra. O único caso em que o acento é também marcado pela presença de uma nota
adicional ocorre em “peccavi”.

1 MOCQUEREAU, Dom André, «Origine et développement de la notation neumatique», Solesmes: Imprime-


rie Saint-Pierre, 1890, separata da 1ª série de Paléographie musicale, vol. I (1889-1890), pp. 37-38, nota.

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Fig. 1. (Mosteiro de Arouca, Ms. 21, fol. 52v): antífona Sana Domine

3. Um uso particular da oposição punctum/virga

Os manuscritos cistercienses portugueses mais antigos, segura ou provavelmente


oriundos de Alcobaça, dos quais tomámos o exemplo acima, apresentam traços paleo-
gráficos comuns; um estudo comparativo das suas particularidades pode revelar os há-
bitos dos copistas do scriptorium alcobacense, que certamente seguiram como modelo
os manuscritos de Claraval.
Uma das características destes copistas, no uso da notação musical, é a utilização
da virga para marcar o início de uma palavra, como no recitativo “Ab iminentibus pec-
catorum nostrorum periculis, libera nos, Domine” (Fig. 2a).

Fig. 2a. (Biblioteca Nacional de Portugal, Mmf-11): Ladainha

Este sistema não é referido nem por Dom Mocquereau (em cuja segunda catego-
ria, no entanto, se pode enquadrar), nem por Solutor Marosszéki na sua tese sobre o
canto cisterciense2; nesta última tese, o autor assume, aliás, a utilização de forma alea-
tória da virga e do punctum nos manuscritos da família do mosteiro de Cister (Cîteaux).
Como veremos adiante, a hipótese de que Alcobaça imita, neste caso, Claraval, é con-
firmada por fontes desta última abadia, conservadas na Mediateca de Troyes.

2 MAROSSZÉKI, Solutor R., Les origines du chant cistercien. Recherches sur les réformes du plain-chant
cistercien au XIIe siècle, Tipografia Poliglotta Vaticana, Roma, 1952 [Analecta sacris ordinis cister-
ciensis, vol. VIII].

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A origem desta prática surge-nos, contudo, no manuscrito palimpsesto da década


de 1140 conservado em Roma, e proveniente de Oelenberg: um manuscrito que serviu
de apoio e de súmula dos trabalhos da comissão de músicos que definiu, sob a autori-
dade de S. Bernardo, a forma definitiva do canto litúrgico cisterciense (Fig. 2b)3.

Fig. 2b. (Roma, Tre Fontane, MS Oelenberg 47): Ladainha

Acontece de facto que, até ao início do século XIII, só nos manuscritos cistercienses
se encontram passagens de uníssono melódico em que não se repete apenas uma das fi-
guras musicais mais simples, o ponto ou a virga, ou seja, o pequeno quadrado ou o qua-
drado com um traço descendente à direita (nota caudata). Em vez disso, nesses
manuscritos as duas figuras alternam, embora a razão para tal nem sempre seja evidente.

4. Confirmação da filiação proposta, e sua matização

Foi em 1990 que pela primeira vez um dos autores destas linhas referiu o facto de
que nos manuscritos musicais presumivelmente copiados em Alcobaça nos últimos anos
do século XII — o Gradual de Lorvão na Torre do Tombo, um par de antifonários em
Arouca, e o antifonário de Las Huelgas — há esse tipo de passagens (Fig. 3a-c)4. Tam-
bém o Iluminado 115 na Biblioteca Nacional, pouco posterior, as exibe.

3 FERREIRA, Manuel Pedro, «La réforme cistercienne du chant liturgique revisitée: Guy d'Eu et les pre-
miers livres de chant cisterciens», Revue de Musicologie, 89, 2003, pp. 47-56; IDEM, «Dating a Frag-
ment: A Cistercian Litany and its Historical Context», em Leandra SCAPPATICCI (ed.), Studi in onore di
Giacomo Baroffio, Libreria Editrice Vaticana, Roma, no prelo.
4 FERREIRA, Manuel Pedro, «Relatório preliminar sobre o conteúdo musical do Fragmento Sharrer», in Actas
do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Volume I, Edições Cosmos, Lisboa, 1991,
pp. 35-42; uma primeira abordagem geral dos manuscritos musicais cistercienses em Portugal foi incluída
no artigo «Da Música na História de Portugal», Revista Portuguesa de Musicologia, 4-5, 1994-95, pp. 167-
216. O fundo de Arouca é tratado numa publicação mais recente: FERREIRA, Manuel Pedro (com FORTU,
Mara), «A música antiga nos manuscritos de Arouca: contribuição para um catálogo», em Ângela MELO
(coordenação), O órgão do Mosteiro de Arouca: conservação e restauro do património musical, Vila Real
– Arouca: Direcção Regional de Cultura do Norte / Câmara Municipal de Arouca, 2009, pp. 40-53.

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Fig. 3a-c. O versículo Omnis terra no Mosteiro de Las Huelgas, Ms.10; e no Museu de Arte Sacra
de Arouca, Mss. 21 e 25 (códices oriundos de Alcobaça)

Nessa altura, observou-se ainda que tal uso da notação musical só tinha sido en-
contrado em fontes oriundas de mosteiros da família de Claraval. Faltava examinar os
manuscritos que se conservam dessa mesma abadia, que se presumia estar na origem
dessa disseminação; e de facto, após consulta local, observámos que o sistema também
aí aparece (Fig. 4).

Fig. 4. Celi celorumque virtutes, Ms. 1518 da Mediateca de Troyes

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Faltava ainda comprovar que no fundo de Alcobaça da Biblioteca Nacional, onde


não há propriamente livros de coro, havia vestígios do sistema; e de facto, como no-
tou a subscritora destas linhas, ele encontra-se nos Prefácios do Missal Alcobacense
167, do século XII. Mas a ideia inicial de que, entre as abadias mais antigas, só em
Claraval se seguiu este sistema, teve que ser modificada: não só o manuscrito da Co-
missão bernardina serviu de base à tradição manuscrita cisterciense como um todo,
como há um antifonário de Morimondo, em Itália (Paris, BN, ms. n. a. lat. 1411), do
terceiro quartel do séc. XII, em que, ocasionalmente, o sistema foi também usado.
Assim sendo, a família de Claraval surge-nos como tendo retido por mais tempo e
com mais consistência o uso da virga para marcar o início de palavras em contexto re-
citativo, mas não como o herdeiro exclusivo dessa prática.

5. Problemas de inconsistência

Há contudo a observar casos de inconsistência, ou de contaminação do princípio da


marcação do início das palavras por outros factores. No caso da Fig. 5, o manuscrito
de Arouca (Museu de Arte Sacra, ms. 21) é totalmente consistente em “mane videbi-
tis”, o que não acontece nos manuscritos de Morimondo e de Claraval (Troyes, ms.
155) que com ele aqui se comparam. Naturalmente, o princípio da marcação de início
de palavra não cancela o princípio de marcação de acuidade; este permanece válido em
contexto de diferenciação melódica, como em “Venite” (Fig. 6).

Fig. 5. Quadro comparativo

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Fig. 6. (Arouca, ms. 21): Venite exultemus, início

Devemos no entanto reconhecer que outros factores, de mais difícil identificação,


se encontram em jogo. Muitas vezes palavras de três ou mais sílabas aparecem não só
iniciadas por uma virga, mas iniciadas por duas virgae, em contexto de recitativo
(Fig. 7): em “scapulis”, na primeira pauta, “mandata”, na penúltima, ou “angelis”, na
última. Embora em “mandata” a segunda virga coincida com o acento verbal (e a pri-
meira possa funcionar como marcador de acuidade), nos outros casos, e também em
situações aqui não ilustradas (nomeadamente, em ocorrências da palavra “dominum”),
isso não acontece: a presença de uma segunda virga resiste a uma explicação. É tam-
bém observável alguma inconsistência: “memento”, aparece ou com uma só virga no
começo, ou com virgae sobre a primeira e segunda sílabas; “egredietur” recebe ou 2,
ou 3 virgae iniciais.

Fig. 7. (Arouca, ms. 21): responsório Septies in die e seu enquadramento

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Pode especular-se que as virgae adicionais tivessem indirectamente a função de sus-


ter o fluxo rítmico, evitando uma aceleração do tempo. A lentidão era característica da
salmodia cisterciense. Sem que todos estes casos sejam objecto de estudo detalhado,
em que confluam os conhecimentos linguísticos, paleográficos e musicais, eles per-
manecerão largamente enigmáticos.

6. Acentuação e pontuação do latim

Recorde-se a este propósito que os primeiros cistercienses preocupavam-se com


a correcta acentuação do latim, tendo produzido regras claras, testemunhadas por inú-
meros textos ou mesmo tratados sobre o tema. Os principais testemunhos cister-
cienses sobre a pontuação do texto sacro e sobre acentuação foram editados por Jean
Leclercq em 1951 e por Martin Hubert entre 1970 e 19745. O manuscrito Troyes 1154,
de Clairvaux, contém alguns textos que correspondem ao tratado cisterciense do ms.
H 332 de Montpellier, publicado por Leclercq: A Regulae Ponctuationibus sive Clau-
sularum é aqui seguida de um pequeno capítulo inédito de Regulae Accentuum, que
recapitula regras gramaticais de posicionamento do acento em função da quantidade
longa ou breve da penúltima sílaba.
A Denotatio accentuum secundum usum cisterciensium que se segue a este tratado,
com uma relação de palavras fornecidas com a respectiva marcação acentual, aparece
também, entre outras fontes, em dois manuscritos de Claraval (Troyes 518, do séc. XII,
e Troyes 1154, do séc. XIV) e em Alcobaça (BN, Alcobacense 37). Há igualmente no
fundo de Alcobaça listas lexicais para ilustração do uso acentual no Alcobacense 32.
No Alcobacense 149, há um outro tratado sobre acentuação, assinado por frei Marti-
nho de Alcobaça e escrito em inícios do século XV, que foi encadernado junto com um
«mariale» e estudado por Aires Augusto Nascimento6.

5 LECLERCQ, Jean, «Textes cisterciens dans les bibliotheques d’Allemagne» (capítulo «Textes sur l’ ac-
centuation»), Analecta Sacra Ordinis Cistercensis 7, 1951, pp. 46-70 [64-70]; HUBERT, Martin, «Cor-
pus stigmatologicum minus», Archivum Latinitatis Medii Aevi (A.L.M.A.), 37, 1970, pp. 5-171; 39,
1974, pp. 55-84; IDEM, «Le vocabulaire de la ponctuation aux temps médiévaux: un cas d’incertitude
lexicale», Archivum Latinitatis Medii Aevi, 38, 1972, pp. 57-167.
6 NASCIMENTO, Aires Augusto, A "ars accentualis" de Martinho de Alcobaça (Lisboa BN, Alc. 149): es-
peculação e uso do Doctrinale, Inst. Nac. de Investig. Científica, Lisboa, 1986; IDEM, «Um "Mariale"
alcobacense», Didaskalia, 1979, vol. 9, nº 2, pp. 339-411, também disponível online: http://www.val-
lenajerilla.com/berceo/nascimento/ummarialealcobacense.htm.

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7. A prosódia latina e o canto

Põe-se a questão de saber se há consequências musicais a extrair dos princípios da


prosódia cisterciense. Estes são claros no tratado de Montpellier, quando o autor nos
diz que a uma sílaba acentuada corresponde, quer uma elevação melódica, quer um pro-
longamento rítmico:

Omnis dictio, quotcumque sit syllabarum, uno regitur accentu et unus accentus in
ea dominatur. Illa ergo syllaba in lectione tenebitur et elevabitur quae habuerit do-
minantem accentum. Caeterae omnes deprimentur et sine mora pronuntiabuntur.
Verbi gratia: [...] cum dico "tribulatiónes" vel "tribulatiónibus", haec syllaba "o"
sola tenetur et accentatur7.

No fundo, este ensinamento é clássico. Como a leitura solene, a “lectio” litúrgica,


implicada na passagem citada, estava sujeita à aplicação de fórmulas musicais que li-
mitavam a vigência da regra acentual às pausas pontuais, mediais e ao final das frases,
as únicas consequências não implicadas por essas fórmulas teriam sido de natureza rít-
mica, ou seja, o prolongamento das notas nos cumes melódicos correspondentes à acen-
tuação. Dado que esses cumes melódicos eram tradicionalmente marcados por uma
virga, poderá ter surgido, a pouco e pouco, uma associação entre a virga e o alonga-
mento rítmico. E de facto essa é a base da notação mensural surgida no século XIII.
Uma vez estabilizado e disseminado esse novo significado para a virga, a sua utili-
zação como mero índice visual de fronteira de palavra, entre os cistercienses, terá per-
dido o atractivo. E assim, os nossos manuscritos da tradição de Claraval permaneceram
testemunhos isolados do afã cisterciense de clareza visual na representação do recita-
tivo litúrgico.

7 «Incipit opusculum de accentibus. Generalis regula accentandi», f. 42v do códice H332 existente na
Biblioteca da Faculdade de Medicina de Montpellier.

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