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Sociolinguística

Prof.a Luana Ewald


Prof.a Danielle Vanessa Costa Sousa

Indaial – 2019
2a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:
Prof.ª Luana Ewald
Prof.ª Danielle Vanessa Costa Sousa

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

EW94s
Ewald, Luana

Sociolinguística. / Luana Ewald; Danielle Vanessa Costa Sousa. –


Indaial: UNIASSELVI, 2019.

180 p.; il.

ISBN 978-85-515-0403-1

1. Sociolinguística. - Brasil. I. Sousa, Danielle Vanessa Costa. II.


Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 400

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico, este livro didático pretende oferecer uma porta de
entrada para os estudos sociolinguísticos e sua contribuição para a educação
básica brasileira. A sociolinguística é uma das áreas de conhecimento da
linguística, cuja responsabilidade está ligada aos estudos da linguagem
sob uma abordagem social. Ao pensarmos sobre o olhar que os estudos
sociolinguísticos lançam para a língua, entramos em uma perspectiva que
leva em conta aquilo que os falantes efetivamente usam em seu dia a dia e
que, na maioria das vezes, está bastante distante da prescrição feita pelas
gramáticas tradicionais. Esse distanciamento, no entanto, é natural.

Dada nossa tradição escolar, há uma tendência em se identificar


o estudo da linguagem com o estudo tradicional da gramática, o que
buscaremos desconstruir nesta disciplina a partir da explicação de fenômenos
linguísticos, sejam eles decorrentes das línguas em contato, dos contextos de
comunicação, da história das línguas e seus falantes etc.

Ao estudar linguística, você irá sempre se deparar com diferentes


teorias que abordam o mesmo objeto de estudo central: a língua(gem). Essas
teorias estão vinculadas às disciplinas da linguística, isto é, aos estudos
sociolinguísticos, filológicos, estudos de gramaticalização, da linguística
aplicada, dentre outros, que possuem métodos, concepções e formas distintas
de tratar a linguagem. Na linguística, portanto, existe uma pluralidade
teórica para trabalharmos com os vários fenômenos da língua.

Na sociolinguística brasileira, procuramos desconstruir o mito de


que as pessoas devem falar conforme prescreve a gramática normativa.
Bagno, sociolinguista brasileiro, trata da variação em seus estudos da língua
materna. Em vários de seus livros sobre variação linguística, o autor discute
que falar conforme prescreve essa gramática é um feito impossível de se
concretizar, pois a língua é dinâmica e está sempre se transformando a partir
de questões sociais vivenciadas por seus falantes. E é justamente por isso que,
ao tratarmos da fala, não podemos dizer que alguém fala certo ou errado,
mas de forma adequada ou inadequada para determinada situação social.

A partir desta apresentação, você já deve ter compreendido que a


sociolinguística é uma área de estudos na nossa formação em Letras que
se contrapõe às formas idealizadas e coercitivas de tratar os estudos da
linguagem. Não pretendemos julgar uma forma linguística como melhor ou
pior do que outra, como mais bonita ou feia, como mais correta ou errada; o
que procuramos é compreender a língua em uso.

Nossos estudos nesta disciplina devem contribuir com sua prática


pedagógica a fim de que você se afaste de modelos de ensino que visem à
mera aplicação de conhecimentos linguísticos em sala de aula legitimados

III
pelo ensino tradicional da língua. O que pretendemos, na verdade, é que a
disciplina de língua portuguesa permita ao aluno da educação básica refletir
sobre seus conhecimentos linguísticos, sobre a norma-padrão da língua,
sobre os textos que circulam socialmente e passe a utilizar a linguagem
adequadamente na sociedade, legitimando sua própria variedade e tendo
acesso às variedades prestigiadas do país.

Resumidamente, podemos dizer que a disciplina de sociolinguística


está em diálogo com a linguística aplicada, a filologia, com as disciplinas
voltadas aos estudos gramaticais, como morfologia e sintaxe sob a abordagem
de usos sociais. Por meio desse diálogo, buscaremos compreender juntos o
português falado no Brasil e o ensino de língua portuguesa na escola.

Prof.ª Luana Ewald


Prof.ª Danielle Vanessa Costa Sousa

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

V
VI
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

VII
VIII
Sumário
UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS
E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA.....................................................1

TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA.................................................................3


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................3
2 A LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA DA LINGUAGEM HUMANA........................................5
3 O SURGIMENTO DE UMA ABORDAGEM SOCIAL SOBRE A
LINGUAGEM HUMANA..................................................................................................................7
4 SOCIOLINGUÍSTICA: A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA ESCOLA DE
PENSAMENTO NA LINGUÍSTICA...............................................................................................11
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................14
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................19
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................21

TÓPICO 2 – RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE..........................................................25


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................25
2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS: VARIAÇÃO E COMUNIDADE..........................................26
3 AS GRAMÁTICAS E A NOÇÃO DE ERRO..................................................................................31
4 VARIEDADE, VARIAÇÃO, VARIÁVEL, VARIANTE.................................................................36
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................39
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................41

TÓPICO 3 – ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO.....................45


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................45
2 POR QUE TRATAR DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA O CONTEXTO DE
TRABALHO NA EDUCAÇÃO BÁSICA?.......................................................................................45
3 VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO.............................................47
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................55
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................57

UNIDADE 2 – ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS.........61

TÓPICO 1 – SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA.................................................................63


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................63
2 PARA ENTENDER A VARIAÇÃO E A MUDANÇA LINGUÍSTICA.......................................64
2.1 ANALISANDO REGULARIDADES LINGUÍSTICAS: PRINCÍPIOS
METODOLÓGICOS.......................................................................................................................68
2.2 AS DIMENSÕES SOCIAIS DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA:
TRAÇOS DESCONTÍNUOS E GRADUAIS................................................................................74
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................83
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................86
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................88

IX
TÓPICO 2 – ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E
ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS.................................................................................95
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................95
2 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS........................................................................................................96
2.1 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS E BILINGUISMO . .................................................................101
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................103
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................105

TÓPICO 3 – O MITO DO MONOLINGUISMO..............................................................................107


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................107
2 O MITO DO MONOLINGUISMO NO BRASIL..........................................................................107
2.1 UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO SOBRE O MITO DO MONOLINGUISMO...........109
2.2 IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS MONOLÍNGUES E LÍNGUA COMO
PRÁTICA SOCIAL..........................................................................................................................113
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................117
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................118

UNIDADE 3 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO...........119

TÓPICO 1 – O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA...............................................................................................121
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................121
2 A GRAMÁTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA....................................................121
3 A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA.......125
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................131
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................135
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................136

TÓPICO 2 – AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS


E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES.....................139
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................139
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LÍNGUAS EM CONTATO.......................................................139
3 ESTUDANDO A VARIEDADE LINGUÍSTICA: SOCIOLETO, ETNOLETO,
CRONOLETO E IDIOLETO..............................................................................................................144
4 COMPORTAMENTOS E ATITUDES SOBRE AS LÍNGUAS E SEUS FALANTES:
PRECONCEITO LINGUÍSTICO......................................................................................................148
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................153
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................155

TÓPICO 3 – POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA........................................................159


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................159
2 A GESTÃO DO PLURILINGUISMO..............................................................................................159
3 POLÍTICAS E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO ......................................................................163
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................167
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................172
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................173

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................175

X
UNIDADE 1

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS


SOCIOLINGUÍSTICOS E À
SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender o lugar da sociolinguística nos estudos científicos da


linguagem humana;

• conhecer o surgimento da abordagem social sobre a linguagem e o


nascimento da sociolinguística como disciplina da linguística;

• reconhecer a existência de aspectos sociais na língua;

• identificar a metalinguagem própria da sociolinguística a partir dos conceitos


de comunidades de fala, variedade, variação, variável e variante linguísticas;

• refletir sobre algumas variantes do português brasileiro.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

TÓPICO 2 – RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

TÓPICO 3 – ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

1 INTRODUÇÃO
A sociolinguística é tratada, de maneira geral, como o ramo da linguística
que estuda a língua(gem) a partir de suas relações com a sociedade. Você verá, ao
longo deste tópico, como ocorreu a constituição desse campo científico de estudos.

NOTA

Neste livro, muitas vezes, você se deparará com o termo língua como palavra
equivalente à linguagem. Isto porque estamos entendendo a linguagem como uma forma de
comunicação, seja de modo verbal ou não verbal. A língua, na presente disciplina, é estudada
no seu contexto de comunicação verbal. Por isso, usamos língua(gem) como um recurso
para identificar o estudo da língua socialmente situado.

É importante que procure compreender, desde o início de suas leituras, que


o tratamento dado à língua portuguesa durante a sua formação em Letras será
científico, e não meramente normativo. O tratamento normativo dado à língua
portuguesa, muitas vezes, tem sido pautado em uma compreensão de estrutura
pronta e pré-estabelecida, o que Faraco (2008) chama de “norma curta” ao
contrapor com a expressão “norma culta”. Esse jogo de palavras ocorre para criticar
o ensino de língua que prescreve, normatiza regras do “bom” uso do português
sob um olhar purista utilizado muito mais para justificar preconceitos que causam
constrangimentos às pessoas do que para explicar o funcionamento da língua em
si. O tratamento científico dado ao estudo da língua, por sua vez, está associado à
busca pela compreensão e reflexão do processo pelo qual uma língua varia, muda e
se constitui. Para tratar com cientificidade a língua, precisamos, portanto:

[...] abandonar a ideia de que a língua é uma estrutura pronta, acabada,


que não é suscetível a variar e a mudar. É necessário entender que a
realidade das pessoas que usam a língua – os falantes – tem uma
influência muito grande na maneira como elas falam e na maneira
como avaliam a língua que usam e, especialmente, a língua usada pelos
outros. [...] (COELHO; GÖRSKI; NUNES DE SOUZA, 2015, p. 12).

3
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Talvez seja difícil pensar no estudo da língua como ciência, dada a nossa
tradição escolar pautada exclusivamente nas gramáticas normativas, que tendem
a realizar apagamentos acerca da reflexão sobre fenômenos da fala e da própria
escrita. Nesse sentido, tendemos a simplificar, em contexto escolar, o processo
de compreender fenômenos da linguagem ao apenas prescrevermos de forma
subjetiva regras da gramática tradicional.

Para tratar da cientificidade linguística, inclusive no campo dos estudos


sintáticos, Mioto, Silva e Lopes (2018) problematizam o fato de termos facilidade
em reconhecer a física ou a química como ciências, enquanto apresentamos certa
resistência para atribuir o mesmo reconhecimento à sociologia ou à própria
linguística. Os autores procuram, então, contextualizar a linguística como ciência,
comparando-a com esses outros campos:

[...] o físico – ou qualquer outro pesquisador – precisa de um objeto de estudo,


isto é, uma coisa para estudar. Uma teoria se justifica na relação que tem
com o objeto de estudo que ela aborda. Mas observe que “alguma coisa”
é muito vago como objeto e é necessário que se faça aí uma delimitação
muito mais precisa (MIOTO; SILVA; LOPES, 2018, p. 9, grifo no original).

O objeto de estudo do físico corresponde a certos fenômenos naturais, tais


como aqueles relacionados a condições climáticas (raios, trovões etc.) ou aqueles
relacionados à conservação de energia, erosão, só para citar alguns exemplos. A
linguística, de modo semelhante, também apresenta o seu objeto de estudos: a
linguagem.

Como é bastante vasta a “quantidade de termos que o fenômeno


linguagem abarca [...]”, se torna “necessário restringir drasticamente o seu objeto
de estudo” (MIOTO; SILVA; LOPES, 2018, p. 10), categorizando-o por escolas
de pensamento ou disciplinas. A sociolinguística é uma dessas disciplinas que
trata da variação e mudança linguísticas, da estratificação social das línguas, dos
contatos linguísticos, enfim, da relação língua e sociedade, conforme mencionado
anteriormente. Ao longo do seu curso de graduação, além da sociolinguística,
você deve ter contato com outras disciplinas da linguística, como a morfologia, a
sintaxe, a filologia, a linguística aplicada etc.

Vamos começar nossos estudos situando o campo de conhecimento


denominado sociolinguística para compreendermos sua importância na
formação do profissional de Letras, nos avanços científicos acerca da linguagem
e na prática pedagógica brasileira. Para que possamos situar a sociolinguística,
precisamos recapitular, ainda que brevemente, alguns aspectos da própria
constituição da linguística enquanto ciência autônoma, especialmente a partir das
contribuições de Saussure para a formação do que viemos a chamar de linguística
moderna, perpassando pela contraposição elaborada por Meillet à linguística
saussuriana e chegando aos principais nomes da formação do campo de estudos
sociolinguísticos nos Estados Unidos, como é o caso de William Labov. Pronto
para iniciar seu percurso científico da sociolinguística?

4
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

2 A LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA DA LINGUAGEM HUMANA


Como você já deve ter visto em outras disciplinas voltadas aos estudos
linguísticos em seu curso de graduação, a linguística, constituída como ciência
autônoma, foi pautada essencialmente a partir das contribuições de Ferdinand
de Saussure ([1916] 2006) publicadas postumamente em 1916 em “Curso de
Linguística Geral”. Charles Bally e Albert Sechehaye, com base em suas anotações
e nas anotações de Albert Riedlinger, realizadas ao longo de cursos ministrados
por Saussure na Universidade de Genebra, editaram e publicaram “Curso de
Linguística Geral”, obra que se tornou um marco para a linguística moderna e
para a abordagem estruturalista da linguagem.

Conforme apresentamos na introdução deste tópico, toda ciência precisa


de um objeto de estudo, isto é, um tema central que versa sua preocupação e que
servirá de ponto de partida para elaboração de pesquisas. Para a linguística não é
diferente! Seu objeto de estudo é a linguagem humana. Contudo, para lidar com
esse objeto de estudo (a linguagem), há diferentes escolas de pensamento, como a
linguística estruturalista originada a partir de Saussure, e a própria sociolinguística,
que se constitui como conteúdo desta disciplina que você está cursando agora.

Na área da sociolinguística, estudamos a linguagem a partir de uma


abordagem social, o que é muito diferente do que se fazia no estruturalismo
de Saussure, quando ocorreu a autonomia científica da linguística, o qual
desconsiderava os falantes e sua história. A problemática que é aqui levantada
pela sociolinguística se volta ao fato de que “as línguas não existem sem as
pessoas que as falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes”
(CALVET, 2002, p. 12).

NOTA

Você deve ter notado o uso dos verbos no pretérito acerca das ações da
linguística estruturalista (como em “ocorreu a autonomia científica”; ou em “muito diferente
do que se fazia na linguística estruturalista”). Isto se deve apenas ao fato de a autonomia da
ciência em questão já ter se concretizado e ao fato de Saussure ter falecido (em 1913), o que
implica o impedimento da continuidade de seus estudos de forma direta. Contudo, vale alertar
que o estruturalismo ainda é uma abordagem importante na linguística e que continuou
em aprimoramento científico mesmo com o surgimento de novas escolas de pensamento.
Por entenderem que o estruturalismo não compreende a linguagem em sua completude,
alguns linguistas passaram a adotar outras perspectivas de estudo, como a abordagem social
da sociolinguística, a fim de responder a novas perguntas de pesquisa que surgiam sobre a
linguagem com o passar dos anos. Para compreender melhor os estudos estruturais, que não
se constituem como foco deste material didático, recomendamos a leitura do texto disponível
on-line “Por que ainda ler Saussure?”, publicado no livro “Saussure: a invenção da linguística”:
FIORIN, José Luiz; FLORES, Valdir do Nascimento e BARBISAN, Leci Borges (Orgs.). Saussure: a
invenção da linguística. São Paulo: Contexto, 2013, 174 p. Disponível em:
<https://editoracontexto.com.br/downloads/dl/file/id/1523/saussure_a_invenc_o_da_
linguistica_apresentac_o.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2018.

5
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

FIGURA 1 – SAUSSURE: A INVENÇÃO DA LINGUÍSTICA

FONTE: <http://twixar.me/QcV1>. Acesso em: 15 maio 2019.

Quando você iniciou as disciplinas específicas do curso de Letras, viu que,


dentro da linguística, o objeto de estudo adotado por Saussure ([1916] 2006) era a
langue (língua) como estrutura homogênea, separada dos aspectos da parole (fala).
Embora Saussure reconhecesse a língua como um fato social, seu objeto de estudo
desconsiderava as relações entre a linguagem e a sociedade e estava definido na
estrutura da língua, a partir das relações internas entre os elementos linguísticos.
Conforme introduz Calvet (2002), sociolinguista francês, Saussure via a língua como
a parte social da linguagem, isto é, como uma instituição social, mas desconsiderava
fatores externos a ela (classe social do falante, escolaridade, região onde vive...) e a
estudava apenas de forma interna, como um sistema fechado em si mesmo.

O estruturalismo na linguística foi construído, portanto, sobre a


recusa em levar em consideração o que existe de social na língua,
e se as teorias e as descrições derivadas desses princípios são
evidentemente uma contribuição importante ao estudo geral das
línguas, a sociolinguística [...] teve de tomar o sentido inverso dessas
posições (CALVET, 2002, p. 12, grifos nossos).

Foi especialmente pela concepção de língua como um sistema fechado em


si mesmo que linguistas começaram a se opor ao estruturalismo, impulsionando
o surgimento, anos mais tarde, da sociolinguística como uma nova escola de
pensamento sobre a linguagem.

NOTA

Você verá, a partir do Tópico 2 desta unidade, que a sociolinguística é um campo


científico responsável pelo estudo da língua levando em consideração tanto fatores externos
a ela quanto internos. Isto quer dizer que, diferentemente do que Saussure fazia ao estudar o
sistema da língua fechado em si mesmo, a sociolinguística procura compreender esse sistema
a partir de fatores externos a ele, como a influência da vida social dos falantes na língua.

6
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

A partir da década de 1960, iniciou de forma mais significativa a complexa


tarefa de problematizar as lacunas acerca da compreensão estruturalista da
linguagem, dando margem à discussão sobre a diversidade linguística sob um
viés social. Na corrente estruturalista, “insistia-se na organização dos fonemas
de uma língua, em sua sintaxe”, enquanto que a sociolinguística passa a olhar
para a língua em sua heterogeneidade, preocupando-se com a estratificação
social das línguas e com a variação linguística, estudada, especialmente, a partir
das classes sociais (CALVET, 2002, p. 12).

E
IMPORTANT

Você entende o que significa a estratificação social das línguas? Ao longo de


suas aulas de sociologia, na educação básica, você já deve ter se deparado com a expressão
“estratificação social”. Seu conceito implica considerar que podemos classificar as pessoas
em grupos tomando como base suas condições socioeconômicas. Nesse contexto, Labov
([1972] 2008), linguista estadunidense considerado um dos fundadores da sociolinguística,
advoga que a língua só pode ser realizada e, por conseguinte, estudada, nesses grupos sociais
de pessoas. A língua, pois, não existe fora da sociedade. Logo, através da língua, podemos
observar o desenho da sociedade, de forma sempre fluida, nunca fixa.

Além da crítica levantada ao estruturalismo de Saussure, a sociolinguística,


na mesma década (1960), passa também a criticar fortemente o gerativismo
de Chomsky, cuja principal contribuição teórica reside nos estudos sobre
gramaticalidade e agramaticalidade, sobre a linguagem como uma universalidade
das regras de natureza inata humana (CALVET, 2002). Os sociolinguistas se
opõem a determinadas perspectivas desses dois modelos teóricos (estruturalismo
e gerativismo), especialmente por conta da separação que tais modelos fazem
entre o estudo linguístico e as questões sociais dos falantes. No entanto, o que nos
interessa, mais do que debater sobre as controvérsias das diferentes escolas de
pensamento da linguística, é compreender o que significa estudar sociolinguística
e qual a sua contribuição para a atuação do profissional de Letras em contexto
escolar (o que veremos a partir dos próximos tópicos).

3 O SURGIMENTO DE UMA ABORDAGEM SOCIAL SOBRE A


LINGUAGEM HUMANA
Conforme apresenta Calvet (2002) em sua obra “Sociolinguística: uma
introdução crítica”, as primeiras contribuições para o surgimento de um pensamento
social sobre a linguagem datam logo após a publicação de o “Curso de Linguística
Geral”, o que contribuiu para o desenvolvimento das duas correntes de modo
independente: o estruturalismo e a sociolinguística.

7
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

O linguista francês Antoine Meillet (1866 – 1936), tido como um dos mais
brilhantes alunos de Saussure (MARRA; MILANI, 2012), é considerado precursor
nesse pensamento social sobre a linguagem. “Entre os anos de 1905 e 1906,
pouco tempo antes de Saussure iniciar o Curso em Genebra, Meillet, enquanto
contribuía com o jornal de Durkheim, definiu linguagem como um fato social
[...]” (MARRA; MILANI, 2012, p. 69).

Embora Meillet e Saussure utilizem a definição de língua como um fato


social, distanciam-se na forma como explicam esse fato. Na resenha que faz do
livro “Curso de Linguística Geral”, Meillet já levantava uma importante crítica,
afirmando que: “[...] ao separar a variação linguística das condições externas
de que ela depende, Ferdinand de Saussure a priva de realidade; ele a reduz a
uma abstração que é necessariamente inexplicável” (MEILLET, 1906 [1921] apud
CALVET, 2002, p. 14, grifos nossos).

O que seriam as condições externas mencionadas por Meillet? Essas


condições são aquelas vinculadas a fatores sociais, que dependem de seus falantes
para serem realizadas na língua. São exemplos de condições externas à língua: a
classe social do falante, o grupo social ao qual pertence, a situação comunicativa,
dentre outros aspectos. O que Saussure fazia era exclusivamente analisar fatores
internos da língua, como sua sintaxe e fonologia, excluindo as influências sociais
que levam a mudanças nos fatores internos.

Vamos a um exemplo para compreender o que são as condições externas


e internas da língua no contexto brasileiro? Quando observamos a palavra
“Pernambuco” falada em diferentes regiões do país, podemos perceber que será
dita de formas diversas, a depender do falante. Ela pode ser pronunciada como
PÉrnambucU, PÊrnambucU, PÊrnambucO, dentre outras possibilidades. Para
estudar essas diferentes realizações da palavra Pernambuco, precisamos levar em
consideração os fatores internos da língua, como a posição das vogais na sílaba e
na palavra, sua tonicidade, bem como os fatores sociais, como a região do falante,
o que se caracteriza como um condicionador externo à língua.

Em outros exemplos, como “Você estuda na UNIASSELVI” e “Vós sois o


Caminho, a Verdade e a Vida”, temos a variação dos usos dos pronomes “você” e
“vós”, cujo significado coincide na língua portuguesa, mas pertencem a contextos
sociais distintos (rua/trabalho/família versus religioso). Além do contexto,
também podemos considerar a própria história do pronome “você” como um
condicionador externo a essa realização, hoje utilizado como pronome pessoal
por falantes do português brasileiro, mas ainda classificado como pronome de
tratamento na gramática normativa.

8
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

NOTA

A sentença “Vós sois o caminho” é uma construção frequentemente utilizada no


meio religioso. Esse fragmento faz parte da música com o mesmo título da composição do Padre
Vigne. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/catolicas/1933500/>. Acesso em: 17 jan. 2019.

Ficou mais fácil de compreender por que existe uma defesa para estudar
a linguagem levando em consideração os seus fatores internos e externos? Mais
adiante, ao longo da Unidade 2, retomaremos esses fatores para que possamos
iniciar nossas próprias análises sociolinguísticas.

E
IMPORTANT

Neste ponto de seus estudos sociolinguísticos, você já está se deparando com o


termo variação linguística, que será aprofundado mais adiante no nosso material. Mas o que
seria a variação linguística? Marcos Bagno (2007), autor de diversos livros de sociolinguística
brasileira, explica a variação linguística a partir do conceito de heterogeneidade da língua. Em
outras palavras, dizer que a língua varia implica admitir que existe um conjunto de realizações
possíveis de uma língua, como a portuguesa. Anteriormente, vimos exemplos de variação
linguística na palavra Pernambuco (que pode apresentar diferentes pronúncias, a depender da
região do falante), bem como a escolha entre os pronomes vós e você (que depende de que
século está situado o falante, ou de que contexto está falando, como o religioso ou familiar).
Há vários outros exemplos de variação linguística que poderiam ser aqui explicitados, mas
preferimos apresentá-los ao longo do nosso Livro de Estudos para explorá-los aos poucos.

Além de defender a necessidade de abordagem interna e externa da língua,


Meillet também procurou estudar a linguagem tanto pelo tratamento sincrônico
quanto diacrônico, distanciando-se mais uma vez de Saussure, que estudou a língua
exclusivamente pela sincronia. Lembra-se da diferença entre sincronia e diacronia?
Trata-se do estudo das características da língua durante um o recorte de período do
tempo (sincronia) e o estudo da língua através do tempo (diacronia).

A linguística diacrônica, que é também chamada linguística histórica,


analisa a linguagem e suas mutações durante um determinado
período. Neste caso, explicita-se o período a ser considerado e o
material linguístico a ser adotado na análise. A linguística sincrônica
investiga as propriedades linguísticas de uma determinada língua em
seu estágio evolutivo atual (SILVA, 2001, p. 16, grifos nossos).

9
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

DICAS

A sincronia e a diacronia são conceitos introduzidos à linguística especialmente


a partir de Saussure. Para entender melhor estes e outros conceitos saussurianos,
recomendamos que assista aos vídeos que compõem o Kit Pedagógico de Linguística
Aplicada à Língua Portuguesa.
Além disso, há o vídeo “Bate-papo sobre: Saussure, cem anos de herança e recepções”, que
apresenta uma entrevista realizada com Carlos Alberto Faraco e Marcio Alexandre Cruz.
Vídeo disponível no canal de Youtube da Editora Parábola: https://www.youtube.com/
watch?v=Tj9gFyrLy-g.

Em suma, as principais oposições que Meillet levanta aos postulados


estruturalistas de Saussure se colocam no foco exclusivo dado à abordagem
interna, sincrônica e abstrata da língua. No quadro a seguir, você poderá conferir
as principais contraposições que Meillet levantou à linguística saussuriana:

QUADRO 1 – OPOSIÇÕES SOBRE A ABORDAGEM DA LÍNGUA DE MEILLET A SAUSSURE

SAUSSURE MEILLET
Opõe linguística interna e linguística Associa linguística interna e
ABORDAGEM
externa (focando na interna); desenvolve linguística externa; desenvolve uma
INTERNA E
uma linguística terminológica para linguística programática ao levar em
EXTERNA
embasar teoricamente essa ciência. conta o caráter social da língua.
Distingue abordagem sincrônica de
ABORDAGEM Une a abordagem sincrônica à
abordagem diacrônica (focando na
DA SINCRONIA diacrônica; busca explicar a estrutura
sincrônica); distancia estrutura de
E DIACRONIA da língua pela história.
história.
Ao procurar explicar a estrutura
LÍNGUA: Busca elaborar um modelo abstrato
da língua pela história, se vê em
ABSTRATA OU da língua, separando-a da fala e
conflito entre o fato social e o sistema
SOCIAL estudando exclusivamente sua forma.
linguístico.
É somente em dada comunidade que
O princípio de língua como um fato
a língua é social, pois não analisa as
social é central. A “linguística é uma
marcas sociais que o falante produz
LÍNGUA COMO ciência social, e o único elemento
na língua. A instituição social é um
INSTITUIÇÃO variável ao qual se pode recorrer
princípio apenas geral, pois restringe-
SOCIAL para dar conta da variação linguística
se a uma linguística formal, à língua
é a mudança social” (MEILLET, 1965,
“em si mesma e por si mesma”
p. 17 apud CALVET, 2002, p. 16).
(CALVET, 2002, p. 16).

FONTE: Adaptado de Calvet (2002)

A partir dos itens listados no Quadro 1, podemos entender que


a apresentação da língua como fato social por Meillet é profundamente
antisaussuriana. É neste tema central a Meillet que nasce uma oposição ao
estruturalismo ao mesmo tempo que nasce a linguística moderna (CALVET, 2002).

10
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

Essa oposição permitiu a constituição, anos mais tarde, de uma nova disciplina
na linguística (a sociolinguística), que, ao insistir nas funções sociais da língua,
funda-se contraditória ao enfoque exclusivo dado à sua forma.

Vale considerarmos, contudo, que a sociolinguística moderna


essencialmente se materializará nas pesquisas publicadas em língua inglesa.
Dentre esses pesquisadores, podemos destacar Basil Bernstein (foi o primeiro
a levar em consideração as produções linguísticas reais e a situação sociológica
dos falantes de forma concomitante); William Bright (destacou-se pelo estudo
dos fatores que condicionam a diversidade linguística, pelo estudo dos usos
linguísticos e das crenças a respeito desses usos, das diferenças multidialetal,
multilingual ou multissocietal); William Labov (constitui a sociolinguística
variacionista ao pesquisar a fala dos negros americanos) (CALVET, 2002).

4 SOCIOLINGUÍSTICA: A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA


ESCOLA DE PENSAMENTO NA LINGUÍSTICA
A constituição da sociolinguística como uma nova escola de pensamento
na linguística se dá diante do contexto apresentado desde a oposição de Meillet
a Saussure até as publicações em língua inglesa, dentre as quais Labov, que se
inspirou em Meillet, tem recebido grande destaque no campo variacionista.

Embora Meillet represente um avanço para a linguística com relação


à sua percepção de língua, estava longe de responder a exigências teóricas
sociolinguísticas. A crítica aos estudos linguísticos no período de Meillet e Saussure
se constitui, segundo Calvet (2002, p. 142), “na defesa, de um lado, de uma linguística
que estude inicialmente “a língua em si mesma” e, de outro, de uma linguística que
vá até o fim das implicações da definição da língua como fato social”.

De acordo com Calvet (2002), Meillet não soube perceber esse desafio
nos estudos linguísticos, o qual sinalizava para a necessidade de “explicar todos
os fatos das línguas (tanto sincrônicos como diacrônicos) em relação constante
com a sociedade da qual essas línguas são o meio de expressão. Explicar e
não meramente descrever” (CALVET, 2002, p. 144, grifo no original). Para que
possamos compreender essa realidade linguística, o porquê da variação e
mudança linguística, das atitudes e ações sobre as línguas, precisamos encarar
uma perspectiva social na linguística.

Nesse contexto, a literatura específica tende a afirmar que o termo


sociolinguística alavancou a partir de um seminário organizado em 1964 na América
do Norte. Essa sociolinguística, denominada norte-americana, tem como ponto
de partida a linguística antropológica e se alinha intelectual e metodologicamente
ao lado social da pesquisa (FISHMAN, 1991).

11
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

De 11 a 13 de maio de 1964, por iniciativa de William Bright, 25


pesquisadores se reuniram em Los Angeles para uma conferência sobre
a sociolinguística. 8 eram da UCLA, a universidade que organizava a
conferência, 15 outros eram americanos e só 2 participantes vinham
de outro país (a Iugoslávia), mas estavam temporariamente na UCLA.
3 dentre eles apresentaram comunicações: Henry Hoenigswald,
John Gumperz, Einer Haugen, Raven MacDavid Jr., William Labov,
Dell Hymes, John Fisher, William Samarin, Paul Friederich, Andrée
Sjoberg, José Pedro Rona, Gerald Kelley e Charles Ferguson. Os
temas abordados eram variados: a etnologia da variação linguística
(Gumperz), o planejamento linguístico (Haugen), a hipercorreção
como fator de variação (Labov), as línguas veiculares (Samarin, Kelley),
o desenvolvimento de sistemas de escrita (Sjoberg), a equação de
situações sociolinguísticas dos Estados (Ferguson)... e os referenciais
teóricos não eram menos variados (CALVET, 2002, p. 28-29).

Esses pesquisadores constituem um grupo de linguistas contemporâneos


que rejeitam a abordagem associal dos estudos estruturalistas e também
gerativistas. Dentre eles, como você pode notar, está o linguista William Labov,
que foi impulsionador na sociolinguística variacionista, conforme já apontamos.

E
IMPORTANT

Labov inovou os estudos sobre as línguas ao abordar fenômenos da variação


e da mudança linguísticas. O livro Padrões Sociolinguísticos (LABOV, [1972] 2008) é bastante
representativo quanto às metodologias de pesquisa na sociolinguística variacionista.

FIGURA 2 – PADRÕES SOCIOLINGUÍSTICOS

FONTE: <http://twixar.me/9MV1>. Acesso em: 15 maio 2019.

12
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

O livro Padrões sociolinguísticos traz contribuições significativas para a


teoria e metodologia na sociolinguística, especialmente ao entender que, nos
estudos linguísticos, não devemos lidar com uma língua idealizada, mas com
a língua representada na fala cotidiana. Isso permitiria à ciência explicar os
fenômenos linguísticos por meio das teorias gramaticais, de modo que a teoria
pudesse explicar os dados em análise (LABOV, [1972], 2008). O que acontecia
na linguística estruturalista e gerativista, segundo Labov ([1972], 2008), era a
produção de dados de análise e de teorias de forma conjunta, a fim de que esses
dados se ajustassem à teoria gramatical.

Diante desse contexto, que parte de fatores sociais e linguísticos, estrutura-


se a proposta da teoria laboviana da variação e mudança linguísticas. Dentro dessa
teoria, preocupamo-nos em estudar as variações linguísticas, suas estruturas e
mudança/evolução no contexto social de dada comunidade de fala. Para isso,
a sociolinguística dialoga com a linguística geral, a fim de explicar fenômenos
morfológicos, sintáticos, semânticos e fonéticos acerca da variação linguística.

Você já deve ter notado, aqui, que para tratar da variação e mudança
linguística, foi necessário romper com as dicotomias saussurianas para estudar
a língua tanto pela sincronia quanto pela diacronia e unir os fatores externos
aos internos da língua. No próximo tópico, veremos mais detalhadamente as
relações entre língua e sociedade estudadas pela sociolinguística. Mas, antes de
prosseguirmos, vejamos também, de forma sucinta, uma leitura complementar
que poderá contribuir para sua compreensão sobre a sociolinguística, além de
tópicos pontuais do que estudamos até o momento. Por fim, convidamos você a
colocar em prática os conhecimentos construídos por meio de algumas atividades.

13
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

LEITURA COMPLEMENTAR

Na leitura complementar que apresentamos a você, acadêmico do curso


de Letras, recortamos um trecho do capítulo “Sociolinguística”, escrito por Tânia
Maria Alkmin, da coletânea “Introdução à linguística: domínios e fronteiras”. O texto
a seguir pretende tornar acessível para leitores iniciantes as relevantes abordagens
sobre o fenômeno linguístico como fenômeno sociocultural, fundamentalmente
heterogêneo e em constante processo de mudança.

A partir da sua entrada nesse “terreno” dos estudos linguísticos, é


importante que você adquira certa familiaridade com as questões mais gerais
que se dedica a sociolinguística. A presente leitura complementar deve auxiliar a
esclarecer seu entendimento sobre orientações teóricas que postulam o princípio
da diversidade linguística, observando a relação entre linguagem e sociedade.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

[...]
A relação entre linguagem e sociedade, reconhecida, mas nem sempre
assumida como determinante, encontra-se diretamente ligada à questão da
determinação do objeto de estudo da Linguística. Isto é, embora admita-se que a
relação linguagem-sociedade seja evidente por si só, é possível privilegiar uma
determinada óptica, e esta decisão repercute na visão que se tem do fenômeno
linguístico, de sua natureza e caracterização. Nesse sentido, a Linguística do século
XX teve um papel decisivo na questão da consideração da relação linguagem-
sociedade: é esta que se encarrega de excluir toda consideração de natureza social,
histórica e cultural na observação, descrição, análise, e interpretação do fenômeno
linguístico. Referimo-nos, aqui, à constituição da tradição estruturalista, iniciada
por Saussure em seu Curso de Linguística Geral, em 1916. É Saussure quem define
a língua, por oposição à fala, como o objeto central da Linguística. Na visão do
autor, a língua é o sistema subjacente à atividade da fala, mais concretamente, é o
sistema invariante que pode ser abstraído das múltiplas variações observáveis da
fala. Da fala, se ocupará a Estilística, ou, mais amplamente, a Linguística Externa.
A Linguística, propriamente dita, terá como tarefa descrever o sistema formal, a
língua. Inaugura-se, assim, a chamada abordagem imanente da língua que, em
termos saussurianos, significa “afastar tudo o que lhe seja estranho ao organismo,
ao sistema” (SAUSSURE, 1981, p. 17) [...].

Saussure institucionaliza a distinção entre a Linguística Interna oposta a


uma Linguística Externa. É essa dicotomia que dividirá, de maneira permanente,
o campo dos estudos linguísticos contemporâneos, em que orientações formais
se opõem a orientações contextuais, sendo que estas últimas se encontram
fragmentadas sob o rótulo das muitas interdisciplinas: Sociolinguística,
Etnolinguística, Psicolinguística etc.

A tradição de relacionar linguagem e sociedade, ou, mais precisamente,


língua, cultura e sociedade, está inscrita na reflexão de vários autores do século
XX. Integrados ou não à grande corrente estruturalista, que ocupou o centro da
14
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

cena teórica, particularmente, a partir dos anos 1930, encontramos linguistas


cujas obras são referências obrigatórias, quando se trata a questão de pensar do
social no campo dos estudos linguísticos. Não caberia, aqui, enumerar todos
esses estudiosos, mas uma breve referência a alguns nomes, ligados ao contexto
europeu, impõe-se: Antoine Meillet, Mikhail Bakhtin, Marcel Cohen, Émile
Benveniste e Roman Jakobson. [...]

O esboço feito até aqui pode ser reduzido a uma afirmação muito simples:
a questão da relação é óbvia e complexa ao mesmo tempo. Sabemos que é inegável,
mas também, que a passagem do social ao linguístico – e do Linguístico ao social
– não é feita com tranquilidade. Não há consenso sobre o modo de tratar e de
explicar a questão da relação entre linguagem e sociedade: o fato é que o lugar
reservado a essa consideração constitui um dos grandes “divisores de águas” no
campo da reflexão da Linguística contemporânea.

2 A SOCIOLINGUÍSTICA: FIXAÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS

O termo Sociolinguística, relativo a uma área da Linguística, fixou-se em


1964. Mais precisamente surgiu em um congresso, organizado por William Bright,
na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), do qual participaram
vários estudiosos, que se constituíram, posteriormente, em referências clássicas
na tradição dos estudos voltados para a questão da relação entre linguagem
e sociedade: John Gumperz, Einar Haugen, William Labov, Dell Hymes,
John Fischer, José Pedro Rona. Ao organizar e publicar, em 1996, os trabalhos
apresentados ao referido congresso sob o título Sociolinguistics, Bright escreve o
texto introdutório As dimensões da Sociolinguística, em que define e caracteriza
a nova área de estudo. A proposta de Bright para a sociolinguística é a de que
ela deve demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social.
Ou seja, relacionar as variações linguísticas observáveis em uma comunidade às
diferenciações existentes na estrutura social desta mesma sociedade. Segundo o
referido autor, o objeto de estudo da Sociolinguística é a diversidade linguística.
E, como que estabelecendo um roteiro para atividades de pesquisa a serem
desenvolvidas na área da Sociolinguística, Bright, na mesma obra, identifica
um conjunto de fatores socialmente definidos, com os quais se supõe que a
diversidade linguística esteja relacionada como:

a) identidade social do emissor ou falante – relevante, por exemplo no estudo dos


dialetos de classes sociais e das diferenças entre falas femininas e masculinas;
b) identidade social do receptor ou ouvinte – relevante, por exemplo, no estudo
das formas de tratamento, da baby talk (fala utilizada por adultos para se
dirigirem aos bebês);
c) o contexto social – relevante, por exemplo, no estudo das diferenças entre a
forma e a função dos estilos formal e informal, existentes na grande maioria
das línguas;
d) o julgamento social distinto que os falantes fazem do próprio comportamento
linguístico e sobre o dos outros, isto é, as atitudes linguísticas. [...]

15
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Os referidos autores observam, também, que a Sociolinguística se constitui


e floresce no momento em que o formalismo, representado pela gramática de
Chomsky, alcança enorme repercussão, em rota para o seu percurso vitorioso.
Vemos assim, que, de um lado, a preocupação com as relações entre linguagem
e sociedade tinha raízes históricas no contexto acadêmico norte-americano,
e também que a oposição entre uma abordagem imanente da língua versus a
consideração do contexto social é posta com grande vitalidade no campo dos
estudos linguísticos. De fato, a constituição da Sociolinguística se fez, claramente, a
partir da atividade de vários estudiosos e pesquisadores que deram continuidade
à tradição, inaugurada no começo do século XX por F. Boas (1911) e seus discípulos
mais conhecidos – Edward Sapir (1921) e Benjamin L. Whorf (1941): a chamada
Antropologia Linguística. Nessa vertente, em que linguagem, cultura e sociedade
são considerados fenômenos inseparáveis, linguistas e antropólogos trabalham
lado a lado e, mesmo, de modo integrado. Nesse sentido, o que há de novo é a
definição de uma área explicitamente voltada para o tratamento do fenômeno
linguístico no contexto social no interior da Linguística, animada pela atuação
de linguistas e, particularmente, de estudiosos formados em campos das ciências
sociais. A Sociolinguística nasce marcada por uma origem interdisciplinar. É
oportuno assinalar que o estabelecimento da Sociolinguística, em 1964, é percebido
pela atuação de vários pesquisadores, que buscavam articular a linguagem com
aspectos de ordem social e cultural.

Em 1963, Labov publica seu célebre trabalho sobre a comunidade da ilha


de Martha’s Vineyard, no litoral de Massachusetts, em que sublinha o papel
decisivo dos fatores sociais na explicação da variação linguística, isto é, da
diversidade linguística observada. Nesse texto, o autor relaciona fatores como
idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao comportamento linguístico manifesto
dos vineyardenses, mais concretamente, à pronúncia de determinados fones do
inglês. Logo, em 1964, Labov finaliza sua pesquisa sobre a estratificação social
do inglês em New York, em que fixa um modelo de descrição e interpretação do
fenômeno linguístico no contexto social de comunidades urbanas – conhecido
como Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação, de grande impacto na
linguística contemporânea. [...]

Assim, o rótulo “Sociolinguística”, como foi possível observar, reuniu


e agregou, no seu início, pesquisadores marcados pela formação acadêmica
em diferentes campos do saber e marcados também pela preocupação com as
implicações teóricas e práticas do fenômeno linguístico na sociedade norte-
americana. Surgem, assim, pesquisas voltadas paras as minorias linguísticas
(imigrantes porto-riquenhos, poloneses, italianos etc.), e para a questão do
insucesso escolar de crianças oriundas de grupos sociais desfavorecidos (negros e
imigrantes, particularmente). Em suma, a realidade diversificada, tanto linguística
como cultural dos Estados Unidos, torna-se um ponto de reflexão básico para um
contingente significativo de estudiosos. A propósito, vale lembrar que, também em
1964, houve um congresso em Bloomington, Indiana, em que linguistas e cientistas
sociais debateram questões relativas às relações interdisciplinares, ao campo da
dialetologia social, à escolarização de crianças provenientes de meio social pobre e de

16
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA

origem estrangeira. Três obras referenciais foram organizadas a partir dos trabalhos
apresentados nesse congresso: Ferguson (1965) Directions in Sociolinguistics: reporto
on a interdisciplinar seminar, Lierberson (1966) (ed.) Explorations in Sociolinguistics, e
Schuy (1964) (ed.) Social dialects and language learning.

3 A SOCIOLINGUÍSTICA: OBJETO, CONCEITOS, PRESSUPOSTOS

Pondo de maneira simples e direta, podemos dizer que o objeto da


Sociolinguística é o estudo da língua falada, observada, descrita e analisada em seu
contexto social, isto é, em situações reais de uso. Seu ponto de partida é a comunidade
linguística, um conjunto de pessoas que interagem verbalmente e que compartilham
um conjunto de normas com respeito aos usos linguísticos. Em outras palavras,
uma comunidade de fala se caracteriza não pelo fato de se constituir por pessoas
que falam do mesmo modo, mas por indivíduos que se relacionam, por meio de
redes comunicativas diversas, e que orientam seu comportamento verbal por um
mesmo conjunto de regras. Tomemos, como exemplo, o uso do modo imperativo
em português. Para os falantes do português, o imperativo denota ordem, exortação,
conselho, solicitação, segundo o significado do verbo e o tom de voz utilizado,
como em: “Vai-te embora”; “Ouve este conselho!”; “Vem cá”; “Desce daí”. [...]

A depender do alcance e dos objetos de um trabalho de natureza


Sociolinguística, podemos selecionar e descrever comunidades de fala como a
cidade de New York e a cidade do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belém. Ou
o povo ianomâmi, que vive no Estado do Amapá. Ou, ainda, as comunidades
dos pescadores do litoral do Estado do Rio de Janeiro, da ilha de Marajó, dos
estudantes de Direito, dos rappers etc.

Ao estudar qualquer comunidade linguística, a constatação mais imediata


é a existência de diversidade ou da variação. Isto é, toda comunidade se caracteriza
pelo emprego de diferentes modos de falar. A essas diferentes maneiras de falar, a
Sociolinguística reserva o nome de variedades linguísticas. O conjunto de variedades
linguísticas utilizado por uma comunidade é chamado repertório verbal. Assim é que,
a propósito da cidade de Bruxelas, na Bélgica – país caracterizado pelo bilinguismo
francês-flamengo (variedade do holandês) – Fishman aponta:

Os funcionários administrativos do Governo, em Bruxelas, que são de


origem flamenga, nem sempre falam holandês entre si, mesmo quando
todos sabem holandês muito bem e igualmente bem. Não só há ocasiões
em que falam francês entre si, em vez de holandês, como também há
algumas ocasiões em que falam entre si o holandês standard enquanto
em outras usam esta ou aquela variedade regional do holandês. De
fato, alguns da mesma forma usam diferentes variedades de francês:
uma variedade particularmente carregada de termos administrativos
oficiais, outra correspondendo ao francês não técnico falado nos
círculos de educação superior e refinados da Bélgica, e, ainda
outra, que não é apenas um “francês mais coloquial”, mas o francês
coloquial dos que são flamengos. Em suma, essas diversas variedades
de holandês e de francês constituem o repertório linguístico de certos
complexos sociais flamengos em Bruxelas (FISHMAN, 1974, p. 28).

17
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Caso consideremos uma comunidade como a de Salvador, observaremos


que o seu repertório linguístico se constitui de variedades linguísticas distintas,
dado que os habitantes da cidade falam de modo diferente em função, por
exemplo, de sua origem regional, de sua classe social, de suas ocupações, de sua
escolaridade e também da situação em que se encontram. Assim é que um falante
que pronuncia a palavra “doido” como [‘doijd3u] revela sua proveniência da
região interiorana, assim como a pronúncia da palavra “cozinha” como [kú’zîǝ]
indica, além da origem social, a sua pouca escolaridade. Um mesmo habitante
de Salvador, segundo a situação em que se encontrar, poderá optar entre usar
as expressões “Fiquei retado” ou “Fiquei aborrecido”, assim como entre “João
convidou ele” ou “João o convidou”.

Qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre variações.


Pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como uma entidade
homogênea. Isso significa dizer que qualquer língua é representada por um
conjunto de variedades. Concretamente: o que chamamos de “língua portuguesa”
engloba os diferentes modos de falar utilizados pelo conjunto de seus falantes do
Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor etc.

Língua e variação são inseparáveis: a Sociolinguística encara a diversidade


linguística não como um problema, mas como uma qualidade constitutiva do
fenômeno linguístico. Nesse sentido, qualquer tentativa de buscar apreender
apenas o invariável, o sistema subjacente – se valer de oposições como “língua
e fala”, ou competência e performance – significa uma redução na compreensão do
fenômeno linguístico. O aspecto formal e estruturado do fenômeno linguístico é
apenas parte do fenômeno total.

FONTE: ALKMIN, Tânia Maria. Sociolinguística: parte 1. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna
C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 21-47.

18
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A sociolinguística tem sido classificada como uma das áreas de conhecimento


da própria linguística, ciência relativamente recente que é responsável pelo
estudo da linguagem humana.

• As primeiras contribuições para o surgimento de um pensamento social sobre


a linguagem datam logo após a publicação do “Curso de Linguística Geral”, o
que contribuiu para o desenvolvimento das duas correntes – o estruturalismo
e a sociolinguística – de modo independente.

• Saussure (corrente estruturalista) analisava exclusivamente os fatores internos


da língua, como sua sintaxe e fonologia, excluindo as influências sociais que
levam a variações e mudanças nos fatores internos da língua.

• Como disciplina da linguística, a sociolinguística surge em oposição às concepções


sistêmicas e formalistas dadas à língua em correntes como a do estruturalismo de
Saussure e do gerativismo de Chomsky. Meillet foi um dos primeiros linguistas
a se contrapor à corrente estruturalista, embora tenham sido os estudiosos
estadunidenses, apenas na década de 1960, que receberam maior destaque para
formulação da nova escola de pensamento denominada sociolinguística.

• As condições externas à língua são aquelas vinculadas a fatores sociais, que


dependem de seus falantes para serem realizadas. São exemplos de condições
externas à língua a classe social do falante, o grupo social ao qual pertence, a
situação comunicativa, dentre outros aspectos.

• As principais diferenças entre os estudos de Meillet e de Saussure estão na


abordagem interna e externa da língua, na abordagem sincrônica e diacrônica,
no tratamento social dado à língua e não abstrato, ao tratamento heterogêneo
e não homogêneo à língua como fato social.

• A sociolinguística alavancou com a sociolinguística norte-americana, a partir de


um seminário organizado em 1964. Dentre os principais nomes da sociolinguística
como uma nova escola de pensamento está William Labov (constitui a
sociolinguística variacionista ao pesquisar a fala dos negros americanos).

19
• Os sociolinguistas contemporâneos entendem que para que possamos
compreender a realidade linguística, o porquê da variação e mudança
linguística, das atitudes e ações sobre as línguas, precisamos encarar uma
perspectiva social na linguística.

• Para estudar as variações linguísticas, suas estruturas e mudança/evolução no


contexto social de dada comunidade de fala, a sociolinguística dialoga com
a linguística geral. Assim, é possível explicarmos fenômenos morfológicos,
sintáticos, semânticos e fonéticos acerca da variação linguística.

20
AUTOATIVIDADE

1 A partir de suas leituras sobre a sociolinguística, você deve ter percebido que
ela se constitui como um campo científico do estudo da língua, associado à
própria linguística. Para auxiliar na sua apropriação de conhecimento acerca
dessa disciplina, montamos para você um roteiro de leitura, com o qual você
poderá registrar suas inferências a partir das seguintes perguntas:

a) Por que houve a necessidade de iniciar uma nova escola de pensamento para os
estudos linguísticos se o estruturalismo já marcava a linguística como ciência?
b) Quando e onde passamos a chamar os estudos que relacionam a sociedade e
a linguística como sociolinguística?
c) Qual é o pressuposto básico da sociolinguística?
d) Qual o objeto de estudos da sociolinguística?
e) Quem é reconhecido como o principal fundador da sociolinguística
variacionista?
f) O que você entende por heterogeneidade e variação linguística?

2 Ao longo deste tópico você viu que a sociolinguística é uma escola de


pensamento da linguística. A sociolinguística surgiu, assim, para dar conta
do aspecto social que constitui o uso da língua. Nesse sentido, essa disciplina
procura responder às perguntas sobre a língua que outras correntes de
estudo (como o estruturalismo e o gerativismo) não pretenderam responder.
Tendo isto em vista, assinale V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para
a(s) falsa(s):

( ) O estruturalismo, assim como a sociolinguística, entende que a língua é


uma instituição social e, por isso, a estuda inserida em um contexto de uso.
( ) A sociolinguística procura explicar fenômenos de variação e mudança
linguísticas a partir de estudos situados com falantes da língua, já que eles
a influenciam cultural e historicamente.
( ) A sociolinguística tem caráter interdisciplinar, tendo em vista que dialoga
com a linguística geral para explicar fenômenos morfológicos, sintáticos,
semânticos e fonéticos acerca da variação linguística.
( ) Por meio dos estudos sociolinguísticos, podemos justificar o porquê de
algumas pessoas tenderem a falar mais corretamente que outras, como é o
caso da fala de professores com relação a de seus alunos.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) F – V – V – F.
b) ( ) V – V – F – V.
c) ( ) V – V – V – F.
d) ( ) F – V – V – V.
e) ( ) V – F – V – F.

21
3 Leia o fragmento do texto a seguir a respeito da linguística moderna saussuriana:

A Linguística, iniciada a partir do Curso, leva em conta os princípios


saussurianos de que a língua “é um sistema que conhece apenas sua própria
ordem” (cl g: 31); “é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser
consideradas em sua solidariedade sincrônica” (cl g: 102); “é uma forma e não
uma substância” (cl g: 141) e de que a Linguística “tem por único e verdadeiro
objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (cl g: 271).

FONTE: FIORIN, José Luiz; FLORES, Valdir do Nascimento e BARBISAN, Leci Borges. (Orgs.).
Saussure: a invenção da Linguística. São Paulo: Contexto, 2013.174 p.

Assinale a alternativa CORRETA em relação às ideias apresentadas no fragmento


do texto e à concepção de estudos sociolinguísticos apresentados neste tópico:
a) ( ) Saussure foi o primeiro linguista a valorizar os estudos sociolinguísticos
ao reconhecer a língua como fato social.
b) ( ) O objeto de estudo da linguística estruturalista centrou-se na estrutura
da língua a partir dos fatores externos a ela.
c) ( ) O estruturalismo estuda a língua em si mesma e por si mesma, o que é
fortemente criticado pelos sociolinguistas.
d) ( ) Os estudos sociolinguísticos priorizam o estudo do sistema linguístico
fechado em si mesmo.
e) ( ) Os estudos saussurianos ainda carecem de cientificidade porque
deixaram de contemplar a dimensão social da linguagem.

4 Para os sociolinguistas, os modelos estruturalistas e gerativistas de estudo


são problemáticos porque desconsideram as influências externas à língua,
como questões históricas, culturais, sociais, ideológicas, entre outras.
Escreva um parágrafo crítico a respeito dos modelos problematizados pela
sociolinguística, defendendo a necessidade de relacionar a língua com
questões históricas, culturais, sociais, ideológicas dos seus falantes.

5 Neste tópico, você viu que Meillet foi um dos primeiros linguistas a se contrapor
à corrente estruturalista, embora tenham sido os estudiosos estadunidenses,
apenas na década de 1960, que receberam maior destaque para formulação da
nova escola de pensamento denominada sociolinguística. Sobre os principais
pressupostos da sociolinguística, analise as proposições a seguir:

I- Os fatores internos (estrutura) e fatores externos (história e mudanças


sociais) da língua são levados em consideração para explicação da variação
e mudança linguísticas.
II- São exemplos de condições externas à língua a classe social do falante, o
grupo social ao qual pertence, a situação comunicativa, a idade, o gênero.
III- Assim como Saussure, Meillet aborda a língua sincrônica e diacronicamente,
a fim de contemplar as influências históricas e atuais na sua estrutura.

É CORRETO o que se afirma em:

22
a) ( ) I e II.
b) ( ) I, II e III.
c) ( ) II, apenas.
d) ( ) II e III.
e) ( ) I e III.

6 Ao longo deste tópico, você se deparou, principalmente, com a reflexão de


três estudiosos da língua: Saussure, Meillet e Labov. Disserte, sucintamente,
o que aprendeu sobre eles.

23
24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

1 INTRODUÇÃO
Como falante da língua portuguesa, você já deve ter observado quantas
pessoas, falantes dessa mesma língua, possuem um “sotaque” diferente do seu
(como no exemplo da pronúncia da palavra Pernambuco, mencionada no tópico
anterior). Você também já deve ter percebido que há várias pessoas que fazem
seleções de “palavras diferentes” que você para descrever um mesmo fenômeno
ou objeto (como é o caso da escolha entre as palavras biscoito e bolacha), ou ainda,
que construam “frases cujas formas sejam diferentes” das suas (como em “eu não
falei”, “eu não falei não”, “falei não”...).

Essas diferenças nas formas de falar, como veremos neste tópico,


são denominadas pela sociolinguística como variações linguísticas, e estão
relacionadas a diversos fatores: origem geográfica do falante, sua idade, gênero,
entre outros. Reconhecer esses fatores, contudo, não quer dizer que admitamos
algum tipo de condicionamento da fala com a região de nascimento do falante,
ou com sua classe social etc. O que estamos admitindo, aqui, é o fato de que os
falantes adquirem formas de falar a língua em convívio com outros falantes de
dada região, grupo social etc.

A reflexão sobre essas diferentes realizações em uma mesma língua é


estudada pela sociolinguística a partir da relação entre a língua e a sociedade,
conforme já viemos conversando desde o Tópico 1 desta primeira unidade.
No Tópico 2, passaremos a estudar alguns conceitos essenciais para falarmos
acerca da diversidade linguística, isto é, acerca das diversas possibilidades que
temos para pronunciar as palavras da nossa língua, para escolher as palavras
para descrever um mesmo objeto ou fenômeno e para realizar as construções
sentenciais da língua. Vamos começar, então, a falar de variação linguística, e,
por conseguinte, de variedade, variável e variante, de comunidade linguística,
de normas da língua, que se vinculam a conceitos de gramáticas, bem como do
entendimento de língua como um sistema heterogêneo. Pronto para iniciar?

25
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS: VARIAÇÃO E COMUNIDADE


Como vimos na introdução deste tópico, é natural, como falantes de uma
língua, a portuguesa, observarmos o jeito que cada um tem de falar. Essa observação
normalmente se dá pelo âmbito geográfico, no qual tendemos a destacar os vários
sotaques que as pessoas revelam; uns mais “cantados”, outros com pronúncias
mais “aligeiradas”, outros, ainda, mais “chiados”, só para citar alguns exemplos.
Pela fala, tendemos a determinar a região de um falante, a reconhecer, inclusive, se
sua nacionalidade é a mesma ou não é a mesma que a nossa.

Como afirma Silva (2001, p. 11), faz parte do “conhecimento comum” das
pessoas “falar sobre” a linguagem e discutir aspectos relacionados às propriedades
das línguas que conhece[m]. [...] Contudo, há um ramo da ciência cujo objeto
de estudo é a linguagem”. Esse ramo, conforme já introduzido no Tópico 1, é
a linguística, responsável por “determinar os princípios e as características
que regulam as estruturas das línguas” (SILVA, 2001, p. 11). A sociolinguística,
como uma das disciplinas da linguística, entende que uma língua não pode ser
compreendida puramente pelo seu escopo linguístico, pois precisamos da relação
língua e sociedade para explicarmos diversos fenômenos linguísticos.

Quando duas pessoas falantes de uma mesma língua se encontram e


passam a interagir linguisticamente, certamente se dá uma interação
ampla em que cada uma das pessoas envolvidas passa a criar uma
imagem de outra pessoa. Podemos identificar se a pessoa é falante
nativo daquela língua. Um falante nativo é um indivíduo que
aprendeu aquela língua desde criança e a tem como língua materna
ou primeira língua. Caso classifiquemos o falante como sendo nativo,
podemos afirmar se tal pessoa partilha da mesma variante regional
daquela língua. Não precisamos nem mesmo ver um falante para
determinar a sua idade ou sexo, e talvez seu grau de educação. Isto
pode ser facilmente atestado quando atendemos a um telefonema.
Podemos também precisar se o falante é estrangeiro que tem a língua
em questão como segunda língua. Na grande maioria dos casos,
falantes de uma segunda língua têm características de sua língua
materna transpostas para a língua aprendida posteriormente. Tem-se,
portanto, o “sotaque de estrangeiro” com características particulares
de línguas específicas (como “sotaque” de americano, de japonês,
alemão, italiano etc.) (SILVA, 2001, p. 11, grifos nossos).

Quando observamos as características linguísticas dos falantes de uma


dada língua, procuramos compreendê-las dentro de uma comunidade de fala.
“Uma comunidade de fala consiste de um grupo de falantes que compartilham de
um conjunto específico de princípios subjacentes ao comportamento linguístico”
(SILVA, 2001, p. 12, grifos nossos). No livro Padrões Sociolinguísticos, Labov
([1972] 2008) conceitua a comunidade de fala a partir das atitudes dos falantes
em relação à língua e às gramáticas que esses falantes compartilham. No entanto,
vale considerarmos que esse conceito continua em debate e aperfeiçoamento nas
discussões científicas. Guy (2001), por exemplo, faz uma reelaboração e define
comunidade de fala como sendo um grupo de falantes que:

26
TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

1- compartilham traços linguísticos que são diferentes dos de outros grupos;


2- têm uma frequência alta de comunicação entre si;
3- apresentam as mesmas normas e atitudes em relação ao uso da língua.

Diante do que vimos até o momento, é possível entender que o estudo da


sociolinguística se preocupa com a comunidade de fala e não com um sistema
específico de um ou outro indivíduo apenas. Para saber mais sobre o conceito
de comunidade de fala, retome a seção “A sociolinguística: objeto, conceitos,
pressupostos” da leitura complementar do Tópico 1 desta unidade.

Sempre que estudarmos a língua, partindo da sua relação com a sociedade,


precisamos reconhecer a comunidade de fala a ser analisada. Em outras palavras,
todo fenômeno linguístico a ser discutido precisa estar situado socialmente.
Tanto no contexto de ensino superior quanto no contexto de educação básica,
defendemos a importância do estudo da língua de forma situada, a fim de que
fenômenos linguísticos possam ser compreendidos através de usos linguísticos
concretos. Nesse sentido, você, professor de língua portuguesa em formação,
precisa se despir de certos preconceitos acerca de falas marginalizadas para
procurar compreendê-las, entender o porquê de serem realizadas e assim tratá-las
com cientificidade. Para entender melhor, vejamos a situação expressa na imagem
a seguir, que submete a zoologia (ramo da biologia responsável pelo estudo dos
animais) às prescrições formais que comumente ocorrem com a língua:

FIGURA 3 - A ZOOLOGIA X A LINGUÍSTICA

Na verdade, você não está no Subespécies? Apenas um tigre


meu livro de animais, portanto que não sabe ser um tigre
você não é um animal de verdade. adequado! Tão preguiçoso.

Isso é um erro. Sua espécie


deve ter apenas 9 faixas. Pare de evoluir!
Eduque-se.

FONTE: <https://i1.wp.com/starkeycomics.com/wp-content/uploads/2019/04/Prescriptive-
Zoology.jpg?fit=1199%2C1400&ssl=1>. Acesso em: 24 abr. 2019 (tradução nossa)

27
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Como a língua é dinâmica, é perfeitamente natural que nela ocorram


mudanças com o tempo, o que implica admitir variações nos usos cotidianos
de cada falante, de acordo com sua intenção discursiva e com a comunidade
de fala à qual pertence. Em contexto escolar, há uma tendência de naturalizar o
apagamento da variação da língua, embora em outros campos científicos, como
o da biologia, essa naturalização de apagamento da diversidade das espécies não
tende a ocorrer com a mesma frequência.

Na imagem que você acaba de ver, é possível observar, de uma forma


bem-humorada, como seria antiético se na zoologia houvesse uma certa
seleção dos animais considerados cabíveis de estudo, ou se os animais fossem
submetidos ao que está prescrito nos manuais do zoólogo, ao invés de estudados
e descritos na forma que são encontrados. Pareceu bastante absurdo, não é
mesmo!? Infelizmente, como vimos, essa realidade prescritiva não costuma soar
tão absurda ou antiética quando tratamos, de modo geral, da língua.

Quando estamos nos dirigindo ao estudo da língua, especialmente em


contexto escolar, costumamos nos deparar com situações como no quadrinho um:
“Na verdade, você não está no meu livro de animais, portanto, você não é um animal
de verdade”. Nesse caso, quando há uma variação linguística que não está presente na
gramática normativa, tendemos a ignorar essa variação, tratando-a como inexistente
na língua. Quanto ao quadrinho dois (Subespécies? Apenas um tigre que não sabe
ser um tigre adequado! Tão preguiçoso), identificamos que há uma tendência, na
língua, de dizermos que as pessoas que não falam conforme a norma-padrão são
preguiçosas, e não damos atenção à nova forma da língua, digna de ser estudada
para que seja possível compreendermos como e por que ela acontece.

No quadro três, entra a relação de erro: “Isso é um erro. Sua espécie deve ter
apenas nove faixas. Eduque-se”. É comum que subjuguemos como simplesmente
erro uma forma inovadora da língua, que se afasta da norma-padrão, e não
busquemos compreendê-la como regularidade dentro dos aspectos linguísticos
e extralinguísticos. Diante de tudo isso, veja o absurdo que seria pedir para a
língua parar de “evoluir”, ou melhor, parar de mudar, assim como ocorreu no
quadrinho quatro com uma espécie animal.

A partir do exposto, precisamos problematizar que, para uma variação


existir, ela não precisa ser dicionarizada ou prescrita pela gramática normativa,
basta estar em uso por uma comunidade de fala. Nesse sentido, é preciso que
trabalhemos com a educação linguística em contexto escolar, validando as
diferenças como constitutivas da língua, e rompendo com a tradição de classificar
como erro tudo o que se afasta do padrão.

Com a disciplina de sociolinguística na graduação em Letras, procuramos


romper com certos estigmas da língua para compreender que qualquer forma
linguística em português, utilizada por comunidades de fala prestigiadas
socialmente ou não, constitui o que convencionamos chamar de língua portuguesa
e, por isso mesmo, não pode ser excluída dos estudos da língua.

28
TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

Diante do que ora fora apresentado a você, acadêmico, já é possível


compreender que o conhecimento sobre uma língua não se limita às classificações
normativistas de orações e palavras, pois estas são apenas elementos de estudos,
mas não a língua em si. Para estudar uma língua, portanto, precisamos considerar
seus elementos extralinguísticos, que consistem nos aspectos históricos, sociais,
situacionais. Nesse sentido, a língua é sempre tratada, na sociolinguística, de
forma heterogênea, o que implica a existência de variação linguística.

E
IMPORTANT

A variação linguística, como já discutimos anteriormente, refere-se às diferenças


que uma mesma língua pode apresentar em diferentes planos (histórico, comunicativo,
estilístico, regional, social, contextual). Em outras palavras, a variação linguística pode ser
compreendida como o processo pelo qual duas formas, com um mesmo valor de significado,
podem ocorrer em um mesmo contexto (COELHO; GÖRSKI; NUNES DE SOUZA, 2015).
Dizemos, portanto, que as diferenças de uso da língua provêm de diferentes variações, que
podem ser: diastráticas (ou sociais), diatópicas (ou geográficas), diacrônicas (ou temporais),
diafásicas (ou contextuais) e diamésicas (ou de modalidade escrita/falada). A seguir,
acompanhe exemplos de cada uma dessas variações.

a) Variação diacrônica: refere-se às mudanças na forma da língua ao longo da


história. Para exemplificar a notória mudança da língua portuguesa ao longo
do tempo, Bagno (2007) apresenta um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha,
considerada entre diferentes estudiosos como a primeira produção literária
brasileira, datada de 1º de maio de 1500:

Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terça feira
doitauas de pascoa que foram xxj dias dabril que topamos alguus
synaaesde terá seemdo da dita jlha segundo os pilotos deziam obra de
bjc lx ou lxx legoas . os quaaes herã muita camtidade deruas compridas
aque os mareantes chama botelho [...] (PERO VAZ DE CAMINHA
1500 apud BAGNO, 2007, p. 165).

Se compararmos a língua utilizada na carta com qualquer produção


escrita atual, ainda que ambas as produções sejam escritas em língua portuguesa,
perceberemos nítidas diferenças linguísticas. Quanto mais antigo for o texto, mais
comprometida fica nossa compreensão, já que se distancia da variedade com a
qual estamos habituados.

b) Variação diatópica: também conhecida como variação geográfica, está


relacionada aos usos linguísticos que falantes de uma mesma língua podem
realizar de maneira diversificada, conforme suas origens geográficas. Confira
alguns exemplos elencados por Alckmin (2001, p. 35):

29
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

a) brasileiros e portugueses se distinguem em vários aspectos de sua


fala. No plano lexical, apenas um exemplo: “combóio” em Portugal,
“trem” no Brasil. No plano fonético: a pronúncia aberta da vogal
anterior média como em “prémio” [‘prEmjU], em contraste com
a pronúncia fechada no Brasil, “prêmio” [‘premjU]. No plano
gramatical: derivações diversas de uma raiz comum, como em
ficheiro, paragem, bolseiro, que no Brasil correspondem a fichário,
parada e bolsista; a colocação de advérbios como em “Lá não vou
(Portugal) e “Não vou lá” (Brasil).
b) entre falantes brasileiros originários das regiões nordeste (incluída
a Bahia) e sudeste, percebemos diferenças fonéticas, como, por
exemplo, a pronúncia de vogais médias pretônicas – como ocorre
na palavra “melado” pronunciadas como vogais abertas no
nordeste [mE’ladU] e fechadas no sudeste [me’ladU]. Percebemos
também diferenças gramaticais, como, por exemplo, a preferência
pela proposição verbal da negação, como em “sei não” (nordeste) e
“não sei” (ou, “não sei, não”, no sudeste); o uso do artigo definido
antes de nomes próprios como em “Falei com Joana” (nordeste) e
“Falei com a Joana” (sudeste);
c) O Estado da Bahia, por exemplo, a origem urbana ou rural pode ser
evidenciada pelo uso da expressão “de primeiro” [di primero], em
lugar de “antigamente”, “anteriormente”.

c) Variação diamésica: é associada ao meio de comunicação, tendo em vista que


nela se verifica a comparação entre as modalidades oral e escrita da língua
(BAGNO, 2007). A esta altura de seus estudos, você já notou que existem
diferenças na forma que você utiliza a língua na fala e na escrita? Quando você
escreve um e-mail, por exemplo, consegue pensar previamente na linguagem
escrita, nas sentenças, na ortografia, consegue revisá-lo e modificá-lo. Nesse
sentido, um comunicado enviado por e-mail certamente será diferente de um
comunicado proferido oralmente, na interação face a face, mesmo quando os
interlocutores são os mesmos e o conteúdo da mensagem também. Isto porque,
na oralidade, não temos a mesma possibilidade de revisão ou reajuste. Logo,
há variações que costumam ser aceitas entre essas duas modalidades, como
CÊ e VOCÊ; NÃO VAMU NÃO e NÃO VAMOS etc.
d) Variação diastrática: também conhecida como variação social, “relaciona-se a
um conjunto de fatores que têm a ver com a identidade dos falantes e também
com a organização sociocultural da comunidade de fala” (ALCKMIN, 2001,
p. 35). Tais fatores são normalmente identificados como de: a) classe social;
b) idade; c) gênero; d) situação ou contexto social. Confira alguns exemplos
elencados por Alckmin (2001):
I- Classe social: observou-se o uso de dupla negação em grupos situados
abaixo na escala social, como em “ninguém não viu”, “eu nem num gosto”.
Nesse mesmo grupo, costuma-se encontrar a presença de [r] em lugar de
[l], em grupos consonantais, como em “brusa” (blusa) e “grobo” (globo).
II- Idade: com relação à idade, é comum encontrarmos certas gírias para
denotar faixa etária jovem.
III- Gênero: diferentes estudos identificaram o uso frequente de diminutivos,
como “bonitinho”, “gostosinho, “vermelhinho” na fala feminina.

30
TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

IV- Situação ou contexto social: a situação social implica a mudança que


tendemos a realizar de acordo com os nossos interlocutores, o lugar
onde nos encontramos (em um bar, em uma conferência, por exemplo) e
segundo o tema da conversa (como a fofoca, assunto científico...). Esse tipo
de variação, que depende do contexto social, também é conhecido como
variação estilística ou de registro, considerando que o falante pode fazer
uso de um estilo mais formal ou informal.

Diante do que você viu até o momento, já deve ter compreendido que,
para estudarmos a variação linguística, precisamos sempre levar em consideração
a realidade das relações sociais dos falantes. Sempre que um falante utiliza a
língua, o faz dentro de uma variedade linguística relativa ao seu grupo social,
seu contexto comunicativo, sua origem geográfica etc. Continue sua leitura para
refletir, a seguir, a noção de erro construída socialmente sobre certas variedades.

3 AS GRAMÁTICAS E A NOÇÃO DE ERRO


Como estudante de Letras, especialmente ao longo desta disciplina, você
passará a ter subsídios para formular, ainda que de forma inicial, explicações
sobre o mecanismo subjacente à linguagem. Essa tarefa, pois, coincide com o
papel da própria gramática da língua.

NOTA

O papel da gramática, vale destacar, é o de apresentar as normas de uma dada


língua. Em contato com os estudos da linguística aplicada, vemos, comumente, que a palavra
“normas”, no plural, implica compreendermos que há regularidades diversas de se utilizar
a língua, que não tão somente a norma-padrão, tradicionalmente imposta em materiais
didáticos mais antigos ou antiquados.

Nesse sentido, quando falamos em gramática, nem sempre estamos


falando na gramática prescritiva ou normativa, a qual está limitada a prescrever
(e não explicar) as regras para o uso da norma-padrão de uma dada língua.
Conforme têm apontado alguns estudiosos brasileiros (BAGNO, 2011; BAGNO,
2007; BORTONI-RICARDO, 2004; ALCKMIN, 2001; SILVA, 2001), não existe o
falante ideal, que realmente faça uso de todas as regras gramaticais prescritas
pela gramática normativa, sem violações. A norma-padrão, pois, não é língua
materna de ninguém, mas uma forma da língua ensinada nas escolas, em
contexto de educação formal. Apesar disso, não podemos apagar os méritos da
gramática normativa, tendo em vista seu papel em estabelecer certos padrões que
são compartilhados pelos falantes de uma mesma língua (SILVA, 2001), além de
seu patrimônio cultural (BAGNO, 2007).
31
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

E
IMPORTANT

“Ao contrário do que declaram algumas pessoas desavisadas, os linguistas


não consideram o processo de constituição de uma norma-padrão como uma coisa
intrinsicamente negativa. Eles sabem que a vida social é regulada por normas, entre as quais
estão as normas de comportamento linguístico. Os linguistas simplesmente chamam a
atenção para o fato de a normalização da língua não ser um processo “natural”, mas sim o
resultado de ações humanas conscientes, ditadas por necessidades políticas e culturais, e nas
quais impera frequentemente uma ideologia obscurantista, dogmática e autoritária. Alguns
linguistas (mas nem todos!) acreditam que uma norma-padrão poderia até ser um elemento
cultural desejável, desde que constituída com o auxílio da pesquisa científica e com base em
projetos sociais democráticos e não excludentes” (BAGNO, 2007, p. 34).

O que procuramos problematizar, aqui, com o apoio da sociolinguística,


é que a gramática normativa não deve ser utilizada de forma acrítica em
contexto educacional, pois precisamos refletir, como professores e estudantes
da língua portuguesa, sobre as particularidades dessa língua que não atendem
necessariamente a tais prescrições e que ainda assim são perfeitamente utilizadas
por nós, falantes dessa língua. Silva (2001, p. 15, grifos nossos) exemplifica com o
uso do futuro simples no português brasileiro, que é recomendando pela gramática
normativa, mas não necessariamente utilizado no cotidiano pelos falantes:

“Eu buscarei um livro amanhã”. Para uma grande maioria dos


falantes do português brasileiro o futuro simples não ocorre na língua
falada. Em seu lugar ocorre o futuro composto: “Eu vou buscar o
livro amanhã”. Note, contudo, que o futuro simples é utilizado na
linguagem escrita e em algumas variantes do português brasileiro
(e certamente do português europeu). Faz-se, portanto, pertinente
registrar a norma que prescreve o uso do futuro simples. De posse
desta informação, falantes podem fazer uso apropriado de futuro
simples se lhes for necessário.

32
TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

E
IMPORTANT


Como estamos defendendo um posicionamento de que não há formas certas
ou erradas da língua falada, mas adequadas e inadequadas ao seu contexto de comunicação,
levamos em consideração que todo falante de uma língua é capaz de desenvolver sua
competência comunicativa. Todo falante nativo aprende a falar sua língua na convivência
com outros falantes, e por isso mesmo, inserido em algum grupo social (ou melhor,
comunidade de fala), aprende a falar de um determinado modo. No entanto, ao longo da
vida, esse mesmo falante aprende a mudar certos aspectos da forma que fala a língua, de
acordo com suas necessidades sociais.
A essa habilidade, Fishman (1972 apud ALCKIMIN, 2001) atribui a denominação de
competência comunicativa e sociolinguística, adquirida de forma lenta e inconsciente por
cada falante. Dessa forma, é possível afirmar que cada um de nós conhece suficientemente
bem a língua que fala. Diante disso, é capaz de desempenhar, socialmente, habilidades
contextuais e discursivas (estabelecendo sentido na conexão de orações e frases mesmo
que, muitas vezes, não conheça a nomenclatura utilizada na gramática normativa). Os
conhecimentos que temos sobre a língua nos permitem fazer uso da linguagem para dar
uma ordem ou optar por uma expressão equivalente mais modalizada (no sentido de realizar
um pedido), “como em “saiam daqui, já!” ou “por favor, dirijam-se à saída”; se é oportuno dizer
“tô fora” ou “não vai ser possível”; ou, ainda, “a gente não sabia” ou “não sabíamos”, ou ainda
“desconhecíamos”” (ALCKIMIN, 2001, p. 37-38).

A partir do posicionamento crítico à gramática normativa ou prescritiva,


vamos procurar compreender a importância da gramática descritiva nos nossos
estudos. Diferentemente da gramática normativa, que prescreve normas da
língua, sem necessariamente explicá-las, a descritiva busca “descrever as
observações linguísticas atestadas entre os falantes de uma determinada língua”
(SILVA, 2001, p. 15). Nesse sentido, a gramática descritiva não julga como certo
ou errado padrões linguísticos utilizados pelos falantes de dada língua, mas
documenta-os como são manifestados no momento da descrição. Retomando o
caso do futuro simples, em uma gramática descritiva, veríamos a documentação
da “sua ausência no português falado de vários dialetos”, bem como, o registro
de “suas características nas variantes em que ele ocorre. Tais gramáticas são
formuladas com o apoio teórico da linguística” (SILVA, 2001, p. 16).

Diante do que você estudou até agora, já deve ter percebido que, para
a sociolinguística, não há língua melhor ou pior que outra, não existem formas
da língua que sejam mais evoluídas que outras, tendo em vista que todas elas
permitem a interação entre os falantes quando situadas em seus contextos de
usos. Quando novas demandas sociais surgem, novas palavras ou formas
comunicativas também surgem (o que visualizamos com bastante nitidez nos
meios de comunicação digital), comprovando a mudança linguística como
constitutiva das línguas. As línguas mudam continuamente, conforme você pode
observar também nos estudos da filologia da língua portuguesa.

33
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Nesse momento dos seus estudos, é imprescindível que você reflita e


problematize a orientação tradicional escolar de ensino da língua portuguesa como
algo homogêneo ou fixo, cuja existência dependa única e exclusivamente da norma-
padrão (a qual passa a ser ensinada de forma fragmentada e descontextualizada).
É a partir dessa orientação, pois, que decorre uma prática que costuma nos gerar
insegurança no uso da linguagem ao “separar as ocorrências linguísticas em dois
grupos: o certo, identificado sempre com as formas gramaticais escolares, e o
errado, que, em geral, é aquilo que a gente fala e ouve o dia inteiro” (FARACO;
TEZZA, 2001, p. 10, grifos no original). Por conseguinte, tendemos a pensar que
não sabemos língua portuguesa, já que a língua do nosso dia a dia é julgada como
errada na tradição escolar.

Frases como Sou bom em matemática, mas péssimo em português, ou Será


que falei certo?, ou Não sei nada de gramática, Mas que língua mais difícil
esse tal do português são muito frequentes em ambientes escolarizados.
Daí porque, embora a palavra ocupe um espaço extraordinário na
vida das pessoas, ela mantenha sempre o seu toque “estrangeiro”,
como algo que nunca pode ser completamente dominado (FARACO;
TEZZA, 2001, p. 10, grifos no original).

Com a sociolinguística, esperamos que você passe a compreender que


a divisão da língua em certo e errado acaba eliminando o caráter investigativo
para o estudo dela. O que é classificado como errado, pois, tende a perder o
valor de estudo, distanciando o aluno de educação básica da compreensão do
funcionamento da sua língua materna.

Erros de português são simplesmente diferenças entre variedades


da língua. Com frequência, essas diferenças se apresentam entre a
variedade usada no domínio do lar, onde predomina uma cultura de
oralidade, em relações permeadas pelo afeto e informalidade, [...] e
culturas de letramento, como a que é cultivada na escola (BORTONI-
RICARDO, 2004, p. 37, grifo no original).

Para melhor compreender o que é erro, na sociolinguística, precisamos


diferenciar a língua falada da língua escrita. Isto porque, na língua escrita, é
possível exigir normas ortográficas, que podem ou não ser seguidas de forma
correta por quem escreve. Quando a ortografia de uma palavra estiver diferente
daquela exigida na regra, podemos identificar um erro ortográfico. Na fala, por
sua vez, não temos como exigir regras ortográficas, logo, não podemos transcrever
essa mesma noção de erro para o contexto da oralidade.

Nos nossos estudos, como você pode observar, não lidamos com erros, já
que toda variedade linguística utilizada por uma comunidade de fala é reconhecida
e, por tanto, legítima para comunicar. Isso não significa dizer, contudo, que o
falante não se adéque a certos contextos de usos da língua (lembra-se da variação
diastrática? Nela, há a mudança de estilo, por exemplo, que depende do contexto
social no qual o falante se insere).

34
TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

Tratamos, na sociolinguística, de usos adequados e inadequados da língua


para determinados contextos comunicacionais. Todo falante precisa desenvolver
a habilidade de adequar a linguagem para cada situação de uso, desempenhando,
assim, sua competência linguística. A isto, não atribuímos a avaliação de erro e
acerto, mas identificamos a adequação linguística.

De acordo com Bortoni-Ricardo (2004, p. 74), é papel da escola “facilitar


a ampliação da competência comunicativa dos alunos, permitindo-lhes se
apropriarem dos recursos comunicativos necessários para se desempenharem
bem, e com segurança, nas mais distintas tarefas linguísticas”. A escola, pois, é o
lugar reconhecido socialmente para o letramento, o que implica reconhecermos,
também, que é um espaço privilegiado para o ensino sistemático de recursos
comunicativos, necessários para o desempenho competentemente em certas
práticas sociais (BORTONI-RICARDO, 2004).

DICAS

Para compreender melhor a relação entre a noção de erro e o ensino de


gramática na educação básica, sugerimos que assista ao Programa “Salto para o Futuro” /
Série: Um Mundo de Letras: Práticas de leitura e escrita, episódio “A gramática na escola”,
apresentado pela TV Escola / Secretaria de Educação a Distância (SEED) / MEC, Produzido
pela REDE BRASIL (TVE), Rio de Janeiro, RJ. Nesse episódio, contamos com a rica
participação do Prof. Dr. José Carlos de Azeredo (UFF), da Prof.ª. Drª. Edair Maria Görski
(UFSC) e do Prof. Dr. Luiz Carlos Travaglia (UFU). Link para acesso: https://www.youtube.com/
watch?v=yQ8fFk4m900&t=323s.

FIGURA 4 - A GRAMÁTICA NA ESCOLA

FONTE: <https://youtu.be/yQ8fFk4m900>. Acesso em: 15 maio 2019.

35
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

O ensino dos recursos comunicativos, como viemos discutindo ao longo da


Unidade 1 do nosso material, precisa ser crítico, logo, deve extrapolar os conceitos
prescritivos da gramática tradicional, tendo em vista que a norma-padrão não
será adequada a todos os contextos comunicativos. Vamos a um exemplo? Você
já pensou se um roteirista escrevesse as falas das personagens de um filme
seguindo a norma-padrão? O resultado certamente lhe causaria estranhamento,
pois os filmes mais aclamados são aqueles que fogem da artificialidade, isto é,
são aqueles em que as atrizes e os atores captam a essência da personagem, e a
linguagem é constitutiva desse processo. Como naturalmente falamos fazendo
uso de diferentes variedades, esperamos que os filmes representem essa realidade.
Nos filmes nacionais, também estranhamos quando nos deparamos com a fala
carioca, por exemplo, sendo utilizada por uma personagem gaúcha. A seguir,
vamos nos aprofundar um pouco mais a este debate a partir de alguns conceitos-
chave utilizados na sociolinguística variacionista.

4 VARIEDADE, VARIAÇÃO, VARIÁVEL, VARIANTE


Nesta etapa dos nossos estudos, já compreendemos que a variação
linguística é constitutiva da língua. Não existem línguas que não tenham variação.
Nesse sentido, podemos definir a língua, na perspectiva sociolinguística, como
um conjunto de variedades.

A partir deste momento, acostume-se a utilizar os termos específicos para


o estudo dos diferentes modos de falar uma mesma língua: variação, variedade,
variável e variante. Vamos conhecer melhor cada um deles?

Como vimos no início da nossa leitura, compartilhamos princípios sociais


e linguísticos quando fazemos uso de uma língua, sem que necessariamente
tenhamos que estudá-los formalmente. Por exemplo, um morador do interior de
São Paulo não estuda o som do R pós-vocálico para pronunciar “porta” com uma
líquida retroflexa não lateral.

NOTA

Quando estudamos os sons da fala de uma língua, precisamos utilizar a


representação fonética desses sons, o que ocorre convencionalmente por meio do alfabeto
fonético internacional, identificado pela sigla IPA (International Phonetic Alphabet). A líquida
retroflexa não lateral é um som fonético representado pelo símbolo [ɹ] e popularmente
chamada de R caipira. A palavra “porta”, assim, teria o seu R representado na fala de uma
camada significativa da população do interior de São Paulo como po[ɹ]ta. No Rio de Janeiro
metropolitano, como a pronúncia costuma ser diferente, poderíamos representar da seguinte
forma: po[ɣ]ta. Temos aqui, portanto, o exemplo de dois sons ([ɹ] e [ɣ]) para representar o R
pós-vocálico, mas poderíamos encontrar ainda outros.

36
TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE

A pronúncia de “po[ɹ]ta” na comunidade de fala interiorana é


compartilhada entre os falantes sem que haja uma exigência explícita para que isto
ocorra. Nesse sentido, dizemos que o falante realiza a seleção de dada variante
para falar. É justamente por isso, como vimos desde o primeiro tópico, que a
análise sociolinguística precisa levar em conta tanto os fatores linguísticos como
os extralinguísticos para compreendermos dado fenômeno da linguagem. Dentre
os fatores extralinguísticos, foram destacados a região geográfica, classe social,
escolaridade, faixa etária, gênero, estilo. A variante é assim empregada com a
finalidade de “[...] caracterizar as propriedades linguísticas compartilhadas por
um grupo específico de falantes. Temos, assim, variantes etárias, variantes de
sexo, variantes geográficas etc.” (SILVA, 2001, p. 14).

Para que sejam consideradas variantes, as formas linguísticas precisam


ser intercambiáveis em um mesmo contexto e precisam manter o mesmo
significado. No exemplo da porta (po[ɹ]ta ou po[ɣ]ta), a palavra porta sempre
será porta, independentemente de qual variante o falante usar. A variante, assim,
equivaleria a uma forma linguística selecionada pela comunidade de fala.

Você já consegue entender por que temos os termos variante, variedade e


variação? A variação linguística, como vimos, produz um conjunto de realizações
possíveis de uma língua, admitindo-a como heterogênea. Consoante Bagno
(2007, p. 39), “[...] debaixo do guarda-chuva LÍNGUA, no singular, se abrigam
diversos conjuntos de realizações possíveis dos recursos expressivos que estão à
disposição dos falantes”. Nesse sentido, é dentro da variação que encontramos a
variedade linguística, ou seja, encontramos “um conjunto dos muitos “modos de
falar” uma língua [isto é, seus dialetos]” (BAGNO, 2007, p. 47).

Ainda segundo Bagno (2007) é possível estudarmos quantas variedades


linguísticas quisermos. Isto dependerá dos fatores sociais que incluiremos no nosso
estudo. O modo de falar de cada grupo social em estudo (como mulheres agricultoras
da Paraíba acima de 60 anos; jovens entre 18 e 25 anos, com baixa escolaridade, do
interior de São Paulo etc.) constitui uma variedade linguística (BAGNO, 2007), um
“dialeto”. Cada variedade linguística apresentará uma característica (a variante)
que permitirá diferenciá-la de outra variedade (de outro “dialeto”):

[...] nem todas as variedades linguísticas do português brasileiro


apresentam o “s chiado” [que constitui em uma variante] em final de
sílaba (FE[ʃ]TA) ou final de palavra (FE[ʃ]TA[ʃ]); algumas variedades
usam TU como pronome de 2ª pessoa, enquanto outras usam
VOCÊ); a maioria das variedades que apresentam o TU eliminaram a
terminação –S na conjugação verbal (TU FALA, TU COME), enquanto
outras (poucas) conservam o –S (TU FALAS, TU COMES), e por aí
vai... (BAGNO, 2007, p. 47).

Perceba que, diante do que lhe foi apresentado, podemos entender


que dentro da variação (heterogeneidade da língua), existem variedades
(caracterizadas pelos modos de falar dos grupos sociais dos falantes), e dentro
das variedades, existem as variantes (elemento singular, como o uso do TU ou
VOCÊ, que permitirá caracterizar a variedade do grupo). No próximo tópico,
você ainda visualizará alguns exemplos de variantes do português brasileiro.
37
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

O termo variável, dentro desse contexto de estudos, é aplicado para


assumir a possibilidade de variação de dado uso linguístico, permitindo ao
falante a escolha de uma variante dentre a possibilidade de outras para se chegar
a uma variedade linguística. Conforme Mollica (2003, p. 11), um exemplo de
variável linguística ou de fenômeno variável é “a concordância entre o verbo e o
sujeito [...], pois se realiza através de duas variantes, duas alternativas possíveis
e semanticamente equivalentes: a marca de concordância no verbo ou a ausência
da marca de concordância”. Este seria o caso também apresentado por Bagno
(2007) na citação anteriormente realizada, em que há uma variável linguística que
permite duas variantes para a conjugação verbal acompanhada do pronome TU:
o apagamento da terminação–S na conjugação verbal (TU FALA, TU COME) ou
a manutenção do –S (TU FALAS, TU COMES).

As variantes são as formas que concorrem em uma variável, interna ou


externa na língua. Nas variáveis internas, “encontram-se os fatores de natureza
fonomorfossintáticos, os semânticos, os discursivos e os lexicais” (MOLLICA,
2003, p. 11), enquanto que nas externas, “reúnem-se os fatores inerentes ao
indivíduo (como etnia e sexo), os propriamente sociais (como escolarização, nível
de renda, profissão e classe social) e os contextuais (como grau de formalidade e
tensão discursiva)” (MOLLICA, 2003, p. 11).

Vale considerarmos, ainda, de acordo com Mollica (2003, p. 11), que há


variantes que “podem permanecer estáveis nos sistemas (as mesmas formas
continuam se alternando) durante um período curto de tempo ou até por
séculos, ou podem sofrer mudança, quando uma das formas desaparece”. No
caso da mudança linguística, o fator variável parece desaparecer aos poucos,
permanecendo um único modo de falar algo, momento em que se configura um
fenômeno de mudança em progresso. Podemos, assim, investigar a mudança
linguística, a estabilidade de certas variantes, a variedade de um grupo social,
quais são os fenômenos variáveis, assim como prever um comportamento
linguístico regular e sistemático (MOLLICA, 2003).

No próximo tópico, veremos de forma mais aprofundada as variáveis


que configuram as variantes do português brasileiro, de modo a reconhecermos
a heterogeneidade da língua e a importância de nos distanciarmos de uma visão
homogênea ao tratarmos da norma-padrão em sala de aula. Mas antes disso, vamos
colocar em prática os conceitos aprendidos neste tópico com algumas atividades?

38
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A sociolinguística, enquanto subárea da linguística, estuda a língua usada por


comunidades de fala.

• A comunidade de fala consiste de um grupo de falantes que compartilha


normas em relação ao uso da língua. Como exemplo, podemos retomar as
mulheres analfabetas e agricultoras da Paraíba acima de 60 anos de idade como
uma comunidade de fala.

• Para estudar uma língua, precisamos considerar seus elementos linguísticos e


extralinguísticos, que consistem nos aspectos históricos, sociais, situacionais.
Nesse sentido, a língua é sempre tratada, na sociolinguística, de forma
heterogênea, o que implica a existência de variação linguística. Cada
comunidade de fala apresenta uma variedade própria de seu grupo social.

• A variação linguística consiste na heterogeneidade da língua. As diferenças de


uso da língua provêm de diferentes variações, que podem ser: diastráticas (ou
sociais), diatópicas (ou geográficas), diacrônicas (ou temporais), diafásicas (ou
contextuais) e diamésicas (ou de modalidade escrita/falada).

• Na variação diastrática, destacamos a organização sociocultural da comunidade


de fala em: a) classe social; b) idade; c) gênero; d) situação ou contexto social.

• A norma-padrão é problematizada pela sociolinguística no sentido político e


ideológico, tendo em vista a legitimação de uma variedade e a exclusão de
outras, de modo autoritário. No entanto, isto não significa que a norma-padrão
deva ser ignorada, pelo contrário, deve ser aliada à pesquisa científica a fim de
democratizá-la. Por isso, seu tratamento em sala de aula precisa ser crítico.

• Todo falante nativo aprende a falar sua língua na convivência com outros
falantes, e por isso mesmo, inserido em uma comunidade de fala, aprende a
variedade linguística dessa comunidade, embora também aprenda a transitar
entre diferentes modos de falar, conforme sua necessidade social. O falante
desempenha certas habilidades contextuais socialmente, bem como discursivas,
de acordo com sua competência comunicativa e sociolinguística.

• A gramática normativa tradicional é aquela que prescreve normas da língua,


sem necessariamente explicá-las. A gramática descritiva não julga como certo
ou errado os padrões linguísticos utilizados pelos falantes de dada língua, mas
documenta-os como são manifestados no momento da descrição.

39
• A divisão da língua em certo e errado NÃO é utilizada pela sociolinguística
devido à necessidade de investigação de qualquer variedade linguística como
constitutiva da língua. Tratamos, na sociolinguística, de usos adequados e
inadequados da língua para certos contextos comunicacionais. Todo falante
precisa desenvolver a habilidade de adequar a linguagem para cada situação de
uso, desenvolvendo, assim, sua competência comunicativa e sociolinguística.

• Na variação linguística (processo pelo qual diferentes formas podem ocorrer


no mesmo contexto linguístico com o mesmo valor referencial, ou com o mesmo
valor de verdade), existem variedades (caracterizadas pelos modos de falar
dos grupos sociais dos falantes, como um dialeto). Nas variedades, existem as
variantes (forma individual que disputa pela expressão variável, como a variante
TU ou VOCÊ, que permitirá caracterizar a variedade do grupo). O termo variável
consiste no item gramatical no qual localizamos a variação linguística (nas
variantes TU ou VOCÊ, identificamos a variedade do grupo, mas a possibilidade
de escolher entre um pronome ou outro indica um fenômeno variável).

40
AUTOATIVIDADE

1 Assinale a alternativa que melhor defina comunidade de fala para os estudos


sociolinguísticos:

a) ( ) Grupo de pessoas cuja fala seja homogênea entre si, a fim de caracterizar
a variedade linguística em comum.
b) ( ) Grupo de pessoas que vive em uma comunidade e fala a mesma língua,
sem variação.
c) ( ) Grupo de pessoas que fala a língua fazendo uso de normas em comum.
d) ( ) Grupo de pessoas que apresenta a variante padrão da língua
compartilhada entre si.

2 Veja a tabela a seguir e procure identificar as comunidades linguísticas


estudadas. Em seguida, conceitue comunidade de fala com suas palavras:
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

Contextos linguísticos
[ey] + flap [ey] e [ay] + fricativa palato-
Localidades
(dinheiro) alveolar (beijo, caixa)
Percentual PR Percentual PR
Florianópolis/SC 96% 0,32 48% 0,62
Porto Alegre/RS 99% 0,35 98% 0,46
Curitiba/PR 97% 0,79 94% 0,22
Região Sul 98% 66%

FONTE: Görski e Coelho, (2012, p. 135)

3 (ENADE, 2017)
FIGURA - VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
A Verinha é uma gata!
De que raça?

Eu mandei ver!
E foram?

Demorô!
É que a condução atrasou

O quê? Levou uma bolada? Tô bolado...

É, hoje em dia não saco nada Pô, Vô!


mesmo. Mas, quando eu era Tu não saca nada!
jovem, sacava muito bem no
vôlei. E no tênis também!

FONTE: ENADE (2017)

41
O texto exemplifica a variedade linguística:
a) ( ) Diatópica (geográfica).
b) ( ) Diacrônica (de tempo).
c) ( ) Diafásica (forma/informal).
d) ( ) Diamésica (modalidade oral/escrita).
e) ( ) Diastrática (camada social/profissional).

4 No quadro a seguir, você verá a comparação de fenômenos comuns à


modalidade escrita da língua e à modalidade oral.

ORALIDADE E ESCRITA

Oralidade Escrita
O momento de produção e o de recepção do Há defasagem entre o momento de produção
texto são simultâneos. e o de recepção.
O autor deve antecipar possíveis dúvidas
É possível negociar o sentido com o interlocutor
do leitor e tratar de esclarecê-las ainda no
e, também, corrigir-se.
momento de produção.
O texto é coconstruído: para comunicar-se
O autor produz o texto solidariamente
melhor, os interlocutores interagem o tempo
e, depois, o leitor deve reconstruir seus
todo, usando tanto a linguagem verbal quanto
significados também sozinho.
a não verbal.
É possível revisar o texto quantas vezes for
É impossível “voltar atrás” no que foi dito.
necessário.
O processo de produção é transparente: o O processo de produção fica oculto: o leitor
interlocutor “vê” seus erros e correções. tem acesso apenas ao texto final.
É impossível consultar outras fontes durante É possível consultar outras fontes e checar as
a produção. informações.
O planejamento é global: a pessoa planeja
O planejamento é local: enquanto está falando o texto como um todo e, caso se desvie do
uma frase, a pessoa pensa na próxima. plano inicial, pode aceitar a nova ordem ou
voltar atrás.
Tende a haver maior tolerância a erros e, Tende a haver maior cobrança e, portanto,
portanto, mais informalidade. mais formalidade.
A obediência à norma padrão costuma ser
A norma padrão costuma ser seguida com mais
menos rígida. Por exemplo: as marcas do
rigor, até porque é possível revisar o texto.
plural às vezes desaparecem.
Predomínio de frases longas e complexas:
Predomínio de frases curtas e simples: “Bom dia, “Para a primeira aula, está prevista uma
pessoal! Hoje a gente vai dar uma recordada na revisão dos fundamentos de cálculo, a começar
equação de segundo grau. Vamos abrir o livro pela equação de segundo grau. Os alunos
na página 10 que eu já explico”. resolverão uma série de problemas em sala,
sob a supervisão do professor”.
Predomínio da voz ativa e da ordem direta: Uso frequente da voz passiva e da ordem indireta:
“Vamos revisar os fundamentos de cálculo”. “Serão revisados os fundamentos de cálculo”.
A b u n d â n c i a d e “ f r a s e s q u e b r a d a s ” Maior linearidade na composição das frases:
(anacolutos): “Essas optativas, precisa fazer “Para inscrever-se nas disciplinas optativas, é
o pré-requisito primeiro”. preciso ter cumprido os pré-requisitos”.

FONTE: Adaptado por Juarez Firmino da obra de GUIMARÃES, Thelma de


Carvalho. Comunicação e linguagem. São Paulo: Pearson, 2012. Disponível em: <https://
juarezfrmno2008sp.blogspot.com/2012/07/variacao-diamesica.html>. Acesso em: 2 maio 2019.
42
Esse quadro exemplifica a variedade linguística:
a) ( ) Diatópica (geográfica).
b) ( ) Diacrônica (de tempo).
c) ( ) Diafásica (forma/informal).
d) ( ) Diamésica (modalidade oral/escrita).
e) ( ) Diastrática (camada social/profissional).

5 A variação diastrática é a que observa os modos de falar de diferentes


grupos sociais, normalmente identificados por: a) classe social; b) idade; c)
gênero; d) situação ou contexto social. Na situação de sala de aula, em que
você estiver exercendo seu papel social de professora ou professor, na sua
fala, haverá variação linguística? Explique e argumente com a discussão
realizada ao longo deste tópico.

6 A divisão da língua em certo e errado NÃO é utilizada pela sociolinguística,


mas sim os usos adequados e inadequados da língua para determinados
contextos comunicacionais. Tendo isto em vista, assinale V para a(s)
sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s) falsa(s):

( ) Para desenvolver a habilidade de adequar a linguagem para cada situação


de uso, o faltante possui a competência de aprender a falar conforme os
postulados da gramática normativa.
( ) A competência comunicativa e sociolinguística permite que o falante
aprenda que todo texto escrito será produzido conforme a norma-padrão,
embora na fala possa admitir erros.
( ) Aprender a transitar entre diferentes modos de falar, conforme sua
necessidade social, corresponde ao seu desempenho adequado, que parte
da competência comunicativa e sociolinguística.

7 Leia o fragmento do texto a seguir:

Se por gramática entendermos o estudo sem preconceitos do funcionamento


da língua, do modo como todo ser humano é capaz de produzir linguagem
e interagir socialmente através dela, por meio de textos falados e escritos,
portadores de um discurso, então, definitivamente é para ensinar gramática,
sim. Na verdade, mais do que ensinar, é nossa tarefa construir o conhecimento
gramatical dos nossos alunos, fazer com que eles descubram o quanto já
sabem da gramática da língua e como é importante se conscientizar desse
saber para a produção de textos falados e escritos coesos, coerente, criativos,
relevantes etc. (BAGNO, 2007, p. 70).

Agora, analise a relação entre as seguintes proposições e assinale a alternativa


CORRETA:

43
I- Com fundamento na sociolinguística, defendemos que a gramática normativa
se constitui como objeto de ensino da disciplina língua portuguesa
PORQUE

II- Ela explica os padrões linguísticos utilizados pelos falantes.

a) ( ) As duas proposições são verdadeiras, e a segunda é justificativa da


primeira.
b) ( ) As duas proposições são falsas.
c) ( ) A primeira proposição é falsa e a segunda é verdadeira.
d) ( ) As duas proposições são verdadeiras, mas a segunda não é justificativa
da primeira.

8 Como você está começando a ter contato com uma linguagem científica bastante
específica da área da sociolinguística, sugerimos que inicie a produção de um
glossário. Toda vez que se deparar com uma nova palavra, escreva-a em seu
glossário para futuras consultas ao longo dos seus estudos. Que tal iniciar este
glossário com as seguintes palavras: variação, variedade, variável, variante?
Para isto, construa um quadro que contenha uma coluna para a explicação de
cada um desses termos e uma para seus respectivos exemplos.

44
UNIDADE 1
TÓPICO 3

ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO
PORTUGUÊS BRASILEIRO
1 INTRODUÇÃO
A partir dos fundamentos da sociolinguística, estivemos trabalhando
com a identificação da diferença linguística na língua portuguesa. Na presente
disciplina, você começa a observar a variedade linguística inserida na comunidade
de fala, sem julgá-la em comparação com a norma-padrão.

Com este tópico, em específico, esperamos que você dê continuidade


aos seus estudos sociolinguísticos a fim de desenvolver fundamentos para uma
pedagogia culturalmente sensível no contexto de educação básica, atribuindo
cada vez mais um caráter científico à língua ao invés de mero juízo de valor.

Tendo isto em vista, passaremos a discutir as variedades prestigiadas e


estigmatizadas na língua portuguesa, o tratamento dado aos conceitos de norma-
padrão e norma culta e os diferentes níveis da variação. Vamos começar?

2 POR QUE TRATAR DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA O


CONTEXTO DE TRABALHO NA EDUCAÇÃO BÁSICA?
Bortoni-Ricardo (2004) sugere, enquanto professoras e professores
de língua portuguesa na educação básica, que adotemos uma pedagogia
culturalmente sensível aos saberes dos educandos. Nesse sentido precisamos nos
atentar “às diferenças entre a cultura que eles [os alunos] representam e a da
escola”, a fim de “encontrar[mos] formas efetivas de conscientizar os educandos
sobre essas diferenças” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 38).

Identificar a diferença linguística no momento da realização é o primeiro


passo para conscientizar o estudante sobre essa diferença. É justamente
por conta da identificação da diferença que o estudo da variação linguística
constitui importância ao longo de sua formação em Letras, tendo em vista que
a falta do reconhecimento implica a falta da conscientização em sala de aula. A
dificuldade maior, muitas vezes, está em identificarmos a variedade na qual nós
mesmos nos inscrevemos.

Após a identificação da diferença, o que fazemos? Devemos corrigir nossos


alunos? Tendo em vista que a palavra “corrigir” se inscreve na noção de certo e
errado, não devemos corrigir. No entanto, como colocamos acima, precisamos
conscientizar os estudantes sobre as diferenças linguísticas sempre que for
45
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

oportuno, bem como ensinar-lhes recursos para se adequarem linguisticamente


aos diferentes contextos comunicativos. Nesse sentido, procuramos dar recursos
para que comecem a monitorar seu próprio estilo, “sem prejuízo do processo de
ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportunas. Às vezes, será
preferível adiar uma intervenção para que uma ideia não se fragmente, ou um
raciocínio não se interrompa” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 42).

A partir desse contexto, esperamos que você aja criticamente em sala de


aula com relação ao ensino de língua portuguesa, considerando que a norma-
padrão é apenas mais uma das diferentes variedades linguísticas que temos à
disposição. Assim como nos estudos da sociolinguística, esperamos que você
possa observar a variedade linguística inserida na comunidade de fala, sem julgá-
la em comparação com a norma-padrão.

Algumas variedades, como você verá melhor na Unidade 3 com a discussão


sobre o preconceito linguístico, recebem maior prestígio que outras, por razões
sociopolíticas. Como exemplo, podemos identificar o estigma social que a fala de uma
comunidade de baixa escolaridade, de área rural, sofre em comparação ao prestígio
atribuído a uma variedade mais urbana, falada por uma comunidade mais escolarizada.
Em ambas, muitas vezes, podemos encontrar distanciamentos da norma-padrão, como
a omissão do R em verbos de infinitivo – Preciso FALÁ com você – e a troca de R por L
em encontros consonantais – pRaca ao invés de pLaca. Contudo, nesses dois exemplos
citados, apenas a variedade de menor escolaridade, na qual identifica-se a troca do R
por L em encontros consonantais, sofre estigma social.

Essa valoração linguística é reflexo da hierarquia social existente entre


esses grupos de falantes, a qual acaba implicando na falsa ideia de que há
variedades superiores e outras inferiores. Vamos tratar, no nosso material de
sociolinguística, das variedades prestigiadas, aquelas faladas por grupos mais
urbanos, de classe social mais elevada, com maior escolaridade, e das variedades
estigmatizadas, que são aquelas faladas por grupos de menor prestígio social.

A norma-padrão é a variedade linguística socialmente mais valorizada, de


reconhecido prestígio social, cujo uso é, normalmente, requerido em situações de
formalidade na escrita. Nos materiais didáticos, contudo, parece haver uma certa
confusão entre o que é a norma-padrão e o que é a norma culta, ou língua culta.
De acordo com Bagno (2007), podemos identificar como norma culta ou língua
culta as variedades prestigiadas do grupo. Estamos chamando-as aqui sempre de
variedades prestigiadas, nunca de norma culta, a fim de evitarmos a falsa ideia de
que quem não as utiliza não tem cultura.

A norma-padrão, portanto, não é sinônimo de norma culta, tendo em vista


que não é a forma falada pelos grupos sociais de maior prestígio, mas um conjunto
de normas prescritas pela gramática normativa. Como afirma o autor, “[...] o
português brasileiro são três: uma norma-padrão, que não é língua de ninguém; um
conjunto de variedades estigmatizadas e um conjunto de variedades prestigiadas,
cada uma delas caracterizando grupos sociais específicos” (BAGNO, 2007, p. 131).

46
TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

O uso indevido da terminologia, para Bagno (2007), é um dos maiores


problemas da abordagem da variação linguística em materiais didáticos. Por isso,
é importante que você se aproprie desse conhecimento sociolinguístico e consiga
lidar com o livro didático de forma crítica, trabalhando aspectos bem elaborados
dele e problematizando, com seus alunos, algumas lacunas com relação ao
tratamento dado à língua.

A sociolinguística nos dá subsídios para compreendermos a relação entre


as diferentes variedades da língua e o reconhecimento de apenas uma delas como
norma-padrão. Esse reconhecimento, vale destacarmos, pode mudar ao longo da
história. Na língua portuguesa, inclusive, podemos encontrar alguns usos que já
foram padrão e hoje não são mais, como observado nos exemplos do século XVI:

- as formas “desreito”, “despois”, “frecha”, “frito”, “premeiramente”,


hoje desabonadas, são encontradas no texto da carta de Pero Vaz de
Caminha, de 1500;
- as formas “frauta”, “escuitar”, “intonce”, assim como as construções
sintáticas do tipo “deseja de comprar” (com a presença da preposição
de) [...] – hoje consideradas incorretas – são encontradas em Os
Lusíadas, de Camões (1572).
Como se vê, representações de pronúncias e construções gramaticais
atestadas em textos legitimados não são mais consideradas como
“bom uso”. Como entender, então, que ocorrências equivalentes,
tão vivas em variedades não padrões contemporâneas, como por
exemplo “Framengo”, “ele deve de sair, agora” e “a gente fomos
lá”, sejam consideradas como “erradas”, “fruto de ignorância”? A
fala das classes altas mudou e a de outros grupos sociais reteve esses
usos: esse foi o “erro” (ALCKMIN, 2001, p. 41).

O fundamento teórico desta disciplina, como vimos, permite-lhe


reconhecer, em seu trabalho em sala de aula, que os princípios que regulam as
propriedades da norma-padrão não são puramente linguísticos, mas também
sociais. O que se marginaliza na língua, por conseguinte, se marginaliza, na
verdade, no grupo social que a fala. Conforme Bagno (2007, p. 129), essa realidade
precisa ser analisada e criticada “para que o trabalho na escola não reproduza
os mesmos estereótipos e as mesmas discriminações que vigoram na sociedade
em geral”. Continue sua leitura para aprofundar o debate com a realidade
variacionista do português brasileiro.

3 VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO


Ao longo desta unidade você leu sobre a constituição da disciplina
sociolinguística nos estudos científicos sobre a linguagem. Também viu que,
quando analisamos a língua cientificamente, é incoerente julgar uma variante
como melhor ou pior que outra, embora reconheçamos que, socialmente, existam
as variantes de prestígio ou as estigmatizadas.

47
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Para entendermos melhor sobre as variantes do português brasileiro, é


importante que saibamos que a variação ocorre em todos os níveis da língua.
Em outras palavras, a variação pode ser fonético-fonológica; morfológica;
sintática; semântica; lexical; estilístico-pragmática. É justamente por isso que a
sociolinguística é um campo de estudo interdisciplinar. No diálogo com essas
outras áreas da linguística, é capaz de observar os usos da língua por uma
comunidade de fala. Vamos conhecer melhor cada um dos níveis citados?

a) Variação fonético-fonológica: ocorre quando a troca de um som pelo outro


não gera mudança no significado da palavra. Bagno (2007) exemplifica com as
várias pronúncias do R, que pode ser mais vibrante (como tipicamente no Rio
Grande do Sul), pode ser realizado como o popular R caipira (que é aquele que
se assemelha à pronúncia da língua inglesa estadunidense), pode, ainda, ser
realizado bem na garganta, como na pronúncia carioca, e assim por diante.

NOTA

Quando ocorre uma variação de ordem fonético-fonológica, um som é trocado


por outro sem que haja mudança no significado da palavra. Por conta disso, tais sons são
considerados alofones de um mesmo fonema.

b) Variação morfológica: essencialmente se refere à alteração que ocorre em


uma unidade mínima de significado da palavra, isto é, em um morfema da
palavra. Por exemplo, em “pegajoso” e “peguento”, vemos uma variação no
uso dos sufixos, que exercem função de expressar a mesma ideia (BAGNO,
2007). Na variação morfológica, podemos observar como os morfemas (que
são elementos que carregam significado dentro de uma palavra) variam para a
inovação linguística. No exemplo de “pegajoso” e “peguento”, os sufixos que
foram utilizados na formação dessas novas palavras (derivadas a partir do
verbo pegar), apesar de diferentes, exercem a mesma função de substantivar a
palavra pegar para dizer que algo gruda (como em grudento).

A variação morfológica normalmente é uma variação de interface, sendo,
em muitos casos, morfofonológica ou morfossintática. A partir de Coelho, Görski
e Nunes de Souza (2015), podemos identificar alguns exemplos que ilustram bem
esses níveis de variação:

I- Na variação morfofonológica, a variação atinge um morfema e um fonema.


Exemplo: o apagamento do morfema verbal -r como marca de infinitivo em
realizações como andá, vendê e parti é uma variação morfofonológica. Veja
que o -r representa um fonema (um som da palavra) e também um morfema
(uma unidade que marca infinitivo do verbo). Na realização “revolve” (em

48
TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

comparação com “revólver”), não temos esse mesmo tipo de variação,


pois a queda do –r é um fato apenas fonológico, já que é parte do radical
da palavra, e não um morfema que traz um significado à palavra. Outro
exemplo de variação morfofonológica que podemos encontrar com facilidade
no português brasileiro é com relação à redução do morfema verbal –ndo
(utilizado para representar o gerúndio) para –no, como em “falando” versus
“falano”, “comendo” versus “comeno”.
II- Na variação morfossintática, a variação atinge um morfema e a relação da
estrutura sentencial. Exemplo: na formação das sentenças “tu anda” e “eles
anda”, observamos a concordância com a segunda pessoa do singular e
com a terceira pessoa do plural na relação entre pronome e verbo. Quando
precisamos iniciar a análise da relação entre os termos de uma sentença,
levamos em consideração as relações sintáticas. Por isso, a transformação que
o verbo sofre nas duas sentenças exemplificadas não é apenas morfológica,
ela é morfossintática.
III- Se analisarmos apenas a alternância entre os pronomes “tu” e “você” ou “nós”
e “a gente”, estaremos realizando uma análise de variação morfológica (e não
um caso de interface), pois não há necessidade de reconhecer a relação entre
os termos de uma sentença ou entre os sons de uma palavra, apenas há a
necessidade de observar a escolha de um pronome para o outro.

c) Variação sintática: refere-se à organização dos elementos dentro de uma


sentença. O exemplo que Bagno (2007, p. 40) apresenta é o seguinte: "UMA
HISTÓRIA QUE NINGUÉM PREVÊ O FINAL / UMA HISTÓRIA QUE
NINGUÉM PREVÊ O FINAL DELA / UMA HISTÓRIA CUJO FINAL
NINGUÉM PREVÊ”.
d) Variação semântica: refere-se à variação de significados empregados por cada
comunidade de fala a uma palavra. A palavra “vexame”, por exemplo, pode
significar “vergonha” ou “pressa”, a depender da região do falante (BAGNO, 2007).
e) Variação lexical: corresponde à variação de palavras que temos para dizer a
mesma coisa. Por exemplo: “as palavras MIJO, XIXI, e URINA se referem todas
à mesma coisa” (BAGNO, 2007, p. 40).
f) Variação estilístico-pragmática: refere-se à variação da situação comunicacional,
que ora requer maior grau de formalidade, ora requer menor grau de
formalidade. Por exemplo: “os enunciados QUEIRAM SE SENTAR, POR FAVOR
e VAMO SENTANO AÍ, GALERA” podem ser proferidos pelo mesmo falante,
dependendo de sua situação comunicativa (BAGNO, 2007, p. 40).

Nesses diferentes níveis da variação linguística que apresentamos, talvez


o que lhe traga maiores novidades, agora, seja o de variação fonético-fonológica,
tendo em vista que a representação alfabética não é capaz de retratar a realidade
dos sons da língua pronunciados por seus falantes. Para isto, fazemos uso do
IPA (Alfabeto Fonético Internacional). Veja, a seguir, a imagem de um quadro
que representa os sons do português-brasileiro produzidos com algum tipo de
obstrução no trato oral (chamados de consoantes).

49
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

E
IMPORTANT

É importante que você não confunda consoantes com letras dentro do contexto
que estamos lhe apresentando. Na fonética e na fonologia, as consoantes são compreendidas
como sons produzidos com alguma obstrução no trato oral (e não corresponderão de modo
direto às letras do nosso alfabeto ortográfico). Vale destacarmos que, em outras línguas, são
encontrados ainda outros símbolos que não estão representados no quadro a seguir.

QUADRO 2 – REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS CONSOANTES DA LÍNGUA PORTUGUESA

Articulação Dental
Bilabial Labiodental ou Alveopalatal Palatal Velar Glotal
Maneira Lugar Alveolar
desvozeada p t k
Oclusiva
vozeada b d g
desvozeada tʃ X h
Africada
vozeada dʒ ɣ ɦ
desvozeada f s ʃ
Fricativa
vozeada v z ʒ
Nasal vozeada m n ɲ
Tepe vozeada ɾ
Vibrante vozeada r̆
Refroflexa vozeada ɹ
Lateral vozeada l ʎ lj

FONTE: Adaptado de <http://www.dle.uem.br/fonetica/consoantes.html>. Acesso em: 9 jul. 2019.

DICAS

No site do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá http://


www.dle.uem.br/fonetica/consoantes.html, você encontrará os quadros das consoantes
e das vogais da língua portuguesa com animações. Ao clicar em cada símbolo fonético, o
site lhe direcionará para a explicação de como o som é produzido, a exemplos de palavras
com a aplicação desse som, à possibilidade de ouvir o som, além de exercícios para colocar
sua aprendizagem em prática. Também sugerimos que você assista ao vídeo “ALFABETO
FONÉTICO INTERNACIONAL (IPA): Como interpretar? Para que serve?| Masterclass de
fonética #1”, https://www.youtube.com/watch?v=FYAzWHT__tM, disponível no Canal English
in Brazil by Carina Fradozo. Nesse vídeo, você poderá assistir a uma aula completa gravada por
Carina Fragozo sobre o International Phonetic Alphabet (IPA). Seu foco, embora voltado à língua
inglesa, é bastante pertinente nos nossos estudos sobre a variação linguística no nível fonético
e fonológico para observarmos a importância da representação fonética da língua falada.

50
TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Minutagem:
0:54 O que é o IPA?
2:57 Para que servem os símbolos?
7:30 Como interpretar o IPA?
7:44 Consoantes pulmônicas
13:57 Consoantes não pulmônicas
14:30 Outros símbolos
14:45 Diacríticos
15:16 Suprasegmentos
17:22 Tons
17:47 Vogais

São vários símbolos que podem lhe parecer confusos inicialmente, já que
uma parte deles se diferencia do alfabeto ortográfico que convencionalmente
conhecemos. Por isso, vamos lhe apresentar, no quadro a seguir, exemplos de
usos desses símbolos para representar certos sons da nossa língua.

QUADRO 3 - CONSOANTES

Símbolo Exemplo em
Explicação do símbolo
Fonético palavra
[b] Baba Usado para representar o som do “b”.
Usado para representar o som de “c” e “qu” quando parecem ser
[k] Cuca, quinta, quero
pronunciadas como um “k”.
[d] Dado Usado para representar o som do “d”.
Usado para representar uma variante que parece unir “d” e “j”
[dʒ] Dia
no som de “d”.
[f] Fofo Usado para representar o som do “f”.
Usado para representar o som de “g” quando precede as vogais
[g] Gato, grande
“a, o, u” ou consoantes.
[ʒ] Já Usado para representar o som de “j”.
[l] Lá Usado para representar o som de “l” em início de sílaba.
[ʎ] Palha Usado para representar o som de “lh”.
[m] Mama Usado para representar “m” em início de sílaba.
[n] Nó Usado para representar “n” em início de sílaba.
[ɲ] Manhã Usado para representar “nh”.
[p] Pó Usado para representar “p”.
Usado para representar o “r” entre os dentes, normalmente
[ɾ] Puro, braço, prato pronunciado em palavras que possuem um único “r” entre vogais
ou em encontro consonantal.
Usado para representar o “r” vibrante, como na pronúncia do
político Michel Temer, ex-presidente do Brasil. Normalmente
[r̆] Carro, rato utilizado no encontro de dois “r” ou em “r” em início de palavra,
mas também pronunciado em palavras como porta, carta. O “r”
vibrante normalmente é encontrado no Sul do Brasil.

51
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Usado para representar o “r” velar, como na pronúncia


[x] Carro, rato característica da variedade carioca. Normalmente utilizado no
encontro de dois “r” ou em “r” em início de palavra.
Correspondente de [x] e ocorre no final de sílaba seguida de
[ɣ] Perda
consoante, como em perda, tarde, carta, curva.
Popularmente conhecido como “r” caipira, o [ɹ] é produzido como
[ɹ] Porta se houvesse combinação de r e l na pronúncia, como na pronúncia
do inglês estadunidense, “we are” (nós somos).
Pronúncia característica, por exemplo, da variedade mineira de
[h] Rio, terra
Belo Horizonte. Não ocorre fricção na região velar.
É o popular som de “s”, independentemente de sua grafia
[s] Só, cedo, texto
alfabética.
É o popular som de “x”, independentemente de sua grafia
[ʃ] Xixi, chimarrão
alfabética.
Usado para representar o som de “t” quando for pronunciado
[tʃ] Tchau, tia
como se houvesse o encontro entre “t” e “x”.
[v] Vovô Usado para representar o som de “v”.
Usado para representar o popular som de “z”, independentemente
[z] Casa, doze
da sua grafia alfabética.

FONTE: Adaptado de Bagno (2011, p. 16-17).

No Quadro 2 e no Quadro 3, você teve um contato inicial com a


representação fonética das consoantes da língua portuguesa. No Quadro 4,
a seguir, você poderá observar a representação fonética das vogais orais do
português brasileiro.

QUADRO 4 - REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA


PORTUGUESA BRASILEIRA

Regiões Articulatórias
Anterior Central Posterior
Altura:
Fechada i u
meio-fechada e o
meio-aberta ɛ ɔ
Aberta a ɐ
Não arredondada Não arredondada arredondada
Labialização

FONTE: Massini-Cagliari e Cagliari (2001, p. 129)

Além das vogais orais, apresentadas acima, existem, também, as vogais


nasais e as semivogais. Todas elas estão exemplificadas no Quadro 5 logo a seguir.
É importante que você observe que há mais de cinco vogais quando levarmos
em consideração sua produção fonética, diferente do que tradicionalmente
estudamos com a representação ortográfica no período de alfabetização.
52
TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Para entender melhor cada um dos sons apresentados, veja o Quadro 5,


que traz exemplos e explicações da realização das vogais, além das semivogais.

QUADRO 5 – VOGAIS E SEMIVOGAIS

Símbolo Exemplo em
Explicação do símbolo
Fonético palavra
[a] Pá Usado apenas quando o “a” é tônico.
[ɐ] Madeira Usado apenas quando o “a” não possui tonicidade.
[e] Bebê Usado para representar apenas o “e” fechado.
[ɛ] Pé Usado para representar apenas o “e” aberto, com em “é”.
Usado para representar o som de “i” quando constitui núcleo da sílaba
[i] Vi
(não é semivogal).
[o] Vovô Usado para representar apenas o “o” fechado.
[ɔ] Vovó Usado para representar apenas o “o” aberto, como em “ó”.
Usado para representar o som de “u”, quando núcleo da sílaba (não
[u] Urubu
é semivogal).
[ã] Manhã Usado para representar o som do “a” nasalizado.
[ẽ] Vento Usado para representar o som do “e” nasalizado.
[ĩ] Fim Usado para representar o som do “i” nasalizado.
[õ] Som Usado para representar o som do “o” nasalizado.
[ũ] Mundo Usado para representar o som do “u” nasalizado.
[y] Raiva Usado para representar o som do “i”, quando for uma semivogal.
[w] Louco Usado para representar o som do “u”, quando for uma semivogal.

FONTE: Adaptado de Bagno (2011, p. 16)

Agora que você já conhece as representações fonéticas das consoantes


e das vogais da língua portuguesa, vamos passar a observar como esses sons
são discutidos e observados diretamente no campo da sociolinguística. Quando
procuramos destacar um único som da palavra que varia, como é o caso do R,
escrevemos a palavra de acordo com nossa ortografia, mas substituímos as letras
vinculadas à variante pela representação fonética entre parênteses quadrados [ ].
Por exemplo, a palavra carro pode variar bastante. Então, é possível que façamos
algumas representações: ca[x]o, ca[ɾ]o, ca[r̆]o, só para citar alguns exemplos.

Podemos também realizar a transcrição fonética completa da palavra.


Para isto, além dos parênteses quadrados, precisamos fazer uso de aspas simples
e reta ˈ, a qual precede a sílaba tônica da palavra, como em “fala” [ˈfalɐ]. Veja que,
na palavra “fala”, a sílaba mais forte na pronúncia é o “fa”, por isso o símbolo
de aspas simples e reta (ˈ) precisa ser colocado antes dessa sílaba durante a
transcrição fonética.

Neste livro não trabalharemos especificamente com o estudo da fonética,


mas faremos uso de transcrições para representar as diferentes pronúncias do
português brasileiro, isto é, algumas variantes no nível fonético. Recomendamos,
53
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

então, que tenha sempre consigo os quadros que trazem exemplos de cada som
para lhe auxiliar na interpretação da variação e para que você consiga se apropriar
de cada um deles.

Na próxima unidade, passaremos a analisar algumas regularidades


linguísticas. Por isso, é importante que você estude os símbolos que foram aqui
apresentados e procure, aos poucos, se apropriar deles. Elaboramos uma lista de
autoatividades que poderão auxiliá-lo nessa tarefa. Fique conosco!

54
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A pedagogia culturalmente sensível corresponde ao trabalho com as


diferenças culturais em contexto escolar, no qual cabe à professora ou professor
de língua portuguesa identificar a variação linguística presente na sala de
aula no momento da realização para, quando for oportuno, conscientizar o
estudante sobre as diferenças linguísticas. Essa prática é importante para o
desenvolvimento da competência comunicativa e sociolinguística do aluno.

• A valoração linguística que determina modos de falar como certos ou errado,


bonitos ou feios, é resultado de uma hierarquia social existente entre os grupos
de falantes. Neste livro, discutimos a existência das variedades prestigiadas,
aquelas faladas por grupos mais urbanos, de classe social mais elevada, com
maior escolaridade, e das variedades estigmatizadas, que são aquelas faladas
por grupos de menor prestígio social.

• A norma-padrão e a norma culta NÃO são sinônimos. A norma culta ou língua


culta corresponde às variedades prestigiadas faladas por grupos sociais. A
norma culta falada em Belo Horizonte certamente é diferente daquela falada
em Pernambuco e assim por diante. A norma-padrão NÃO é a forma falada
pelos grupos sociais de maior prestígio, mas é um conjunto de regras prescritas
pela gramática normativa (e, por isso mesmo, não pertence à comunidade de
fala alguma).

• A sociolinguística permite que reconheçamos que o que se marginaliza na


língua, se marginaliza, na verdade, no grupo social que a fala. Logo, é correto
afirmar que o que regula a norma-padrão não são princípios puramente
linguísticos, mas também sociais. Isto quer dizer que, embora a norma-padrão
não seja uma língua pertencente a uma comunidade de fala, ela existe por
conta de questões sociais (essencialmente políticas) e não por exigência de uma
estrutura interna da língua.

• A variação linguística ocorre em todos os níveis da língua: a variação pode


ser fonético-fonológica; morfológica; sintática; semântica; lexical; estilístico-
pragmática.

• Para observar a variação fonético-fonológica, a representação alfabética não


é suficiente. Por isso, fazemos uso do IPA (Alfabeto Fonético Internacional),
com o qual trabalhamos as representações fonéticas de vogais, semivogais e
consoantes da língua portuguesa.

55
CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

56
AUTOATIVIDADE

1 A sociolinguística apresenta contribuições significativas para o ensino de


língua portuguesa em contexto de educação básica. Seus subsídios acerca
da diversidade linguística nos fazem pensar a urgência de uma pedagogia
culturalmente sensível com os saberes dos educandos. A partir dessas
considerações, analise as assertivas a seguir e selecione a que esteja ancorada
em uma prática pedagógica culturalmente sensível:

I- A compreensão da troca ortográfica de “mais” no lugar de “mas” na escrita


do aluno a partir de seu modo de falar permite um trabalho de identificação
da variação linguística, bem como a posterior conscientização da diferença
entre forma escrita e falada, ao invés da mera correção ortográfica.
II- O trabalho de conscientização em sala de aula deve sempre levar o aluno
a substituir sua variedade linguística, quando estiver errada, para passar a
falar conforme a norma-padrão.
III- O reconhecimento da heterogeneidade que já existe na sala de aula é
um aspecto importante do trabalho com ensino de língua portuguesa
(da conscientização da língua padrão, dos usos em diferentes situações
comunicativas, etc.).

Estão CORRETAS apenas a(s) sentença(s):


a) ( ) I e III.
b) ( ) III.
c) ( ) II e III.
d) ( ) I, II e III.
e) ( ) I e II.

2 Leia o trecho de Carmo Bernardes (1969) utilizado por Bortoni-Ricardo


(2004, p. 13) para iniciar a conversa sobre língua portuguesa como língua
materna: “Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas
não quiseram aprender a minha” Essa fala caracteriza a tentativa de Carmo
Bernardes a aprender a língua da comunidade escolar urbanizada, quando
saiu de um contexto interiorano. Com base no fundamento teórico discutido
ao longo desta Unidade e no próprio livro de Bortoni-Ricardo (2004),
comente a afirmação de Carmo Bernardes buscando refletir a diversidade
linguística que pode ser explorada em sala de aula e a prática pedagógica
que pode auxiliar o professor em tal tarefa.

3 Considerando o contexto brasileiro, é possível afirmar que a língua


portuguesa falada pelas camadas sociais mais populares é inferior à norma-
padrão ao trazer marcas linguísticas que se distanciam das prescrições
gramaticais? Discuta.

4 Por que a escola deve levar os alunos a se apoderarem de regras linguísticas


que gozam de prestígio, entre outras?
57
5 O professor deve intervir na forma em que os alunos utilizam a linguagem
no domínio escolar? Responda considerando as diferenças entre a cultura
da oralidade, predominante na variedade usada no domínio do lar, e a
cultura de letramento, como a que é cultivada na escola.

6 Ao longo deste tópico você viu alguns conceitos importantes para tratarmos
os diferentes modos de se utilizar a língua, seja na modalidade escrita ou oral.
Assinale a alternativa que apresenta a melhor definição para norma culta:

a) ( ) Forma falada pelos grupos sociais de maior prestígio, também conhecida


como variedades de prestígio.
b) ( ) Conjunto de normas prescritas pela gramática normativa e, por isso
mesmo, não pertencente à comunidade de fala alguma.
c) ( ) É sinônimo de norma-padrão e amplamente utilizada nos manuais
didáticos de língua portuguesa.
d) ( ) É oposição da norma inculta, falada pelas pessoas mais ignorantes do país.
e) ( ) Conjunto de normas ensinadas nos livros didáticos para a escrita correta
das palavras.

7 A variação linguística ocorre em todos os níveis da língua: a variação pode


ser fonético-fonológica; morfológica; sintática; semântica; lexical; estilístico-
pragmática. Diante disto, relacione as colunas, identificando em cada
variação o nível em que ocorre:

(1) Variação fonético-fonológica. ( ) Camisola, em Portugal, é uma roupa que se usa em


vez da camisa. Ex.: As camisolas dos jogadores de
(2) Variação morfológica. futebol. / No Brasil, camisola é uma peça de vestuário
feminino usada para dormir.
(3) Variação sintática. ( ) Informal: E aí, cê tá bem? / Formal: Como a senhora
está?
(4) Variação semântica. ( ) [dʒ]ia / [d]ia.
( ) Eu nem num sei / Sei não.
(5) Variação lexical. ( ) Maluquês / Maluquice.
( ) Aipim / Mandioca.
(6) Variação estilístico-pragmática. ( ) Tô bem / Estou bem.

8 (ENADE, 2017) As variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer


a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A
um conjunto de variantes dá-se o nome de variável linguística.

FONTE: TARALLO, F. A Pesquisa Sociolinguística. São Paulo: Ática, 1986 (adaptado).

Assinale a opção que apresenta dois pares linguísticos legítimos de variação


linguística.
a) ( ) m[u]rcego – m[o]rcego, [p]ata – [l]ata.
b) ( ) [b]ote – [p]ote, d[e]dal – d[ɛ]dal.
c) ( ) f[i]liz – f[ɛ]liz, p[u]mada – p[o]mada.
d) ( ) [d]oca – [t]oca, lei[t]e – lei[tʃ]e.
e) ( ) [t]ime - [tʃ]ime, [d]ata – [m]ata.

58
9 Ouça a leitura do texto “Só de sacanagem”, com a interpretação da cantora
Ana Carolina, e preste muita atenção nas palavras destacadas:

Só de sacanagem
Elisa Lucinda - interpretado por Ana Carolina

[...]
Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então
agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar.
Só de sacanagem!
Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba" e eu
vou dizer: Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez.
Eu, meu
irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a
quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.
Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau.
Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que
veio de Portugal".
Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal.
Eu repito, ouviram? IMORTAL!
Sei que não dá para mudar o começo, mas, se a gente quiser, vai dá para mudar
o final!
(Link para ouvir a leitura acesse: https://www.youtube.com/watch?v=cE1VuxpOshI)

a) Faça a transcrição fonética das sílabas destacadas nas palavras, de acordo


com a variante da intérprete.

Palavra Transcrição fonética


Comigo
Rouba
Freguês
Desde

b) Sobre as variantes utilizadas por Ana Carolina, identifique a pronúncia de


“o” não tônico, de “r” em início de palavra, de “s” em final de sílaba, e
de “d” quando precede o som de “i” (como quando a cantora pronunciou
“desde”). Compare esses sons com a forma que você os pronunciaria nessas
palavras e descreva as semelhanças e/ou diferenças da variação em nível
fonético e fonológico.

10 No vídeo a seguir você deverá assistir à entrevista de Cacau Menezes,


colunista de jornais da cidade de Florianópolis, SC, com Ney Matogrosso,
artista brasileiro natural do Mato Grosso do Sul, embora tenha vivido em
São Paulo e Rio de Janeiro grande parte de sua vida.

59
FONTE: <http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/jornal-do-almoco/videos/t/edicoes/v/cacau-
menezes-entrevista-ney-matogrosso/7368434/?mais_vistos=1> Acesso em: 27 ago. 2019.

a) A partir do vídeo, represente foneticamente os sons destacados nas palavras


a seguir:

Fala de Cacau Menezes


Palavras Transcrição Fonética
Os teatros O[ ] teatro[ ]
Florianópolis Florianópoli[ ]
Rio de Janeiro [ ]io de Janeiro

Fala de Ney Mato Grosso


Palavras Transcrição Fonética
Rua [ ]ua
Roupagem [ ]oupagem
Horas Hora[ ]

b) Com base na transcrição fonética de alguns sons produzidos por Ney Mato
Grosso e por Cacau Menezes, responda: As palavras indicadas para observação
das variáveis linguísticas sinalizam para semelhanças ou diferenças entre a
fala do entrevistador e do entrevistado? Explique sua resposta.

60
UNIDADE 2

ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS
CONTATOS LINGUÍSTICOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• apresentar análises de variação e mudança linguística;


• discutir o fenômeno da mudança linguística como algo inerente à sociedade;
• identificar regularidades linguísticas em variedades do português brasileiro;
• conhecer os traços contínuos e descontínuos da variação;
• discutir conceitos referentes a línguas em contato;
• apresentar noções acerca do bilinguismo e das práticas de translinguagem;
• introduzir o conceito de alternância de códigos, estratégias linguísticas,
bem como a definição de translinguagem;
• refletir sobre as ideologias monolíngues e sobre as que diferem desta
orientação linguística no que concerne ao bilinguismo e à educação bilíngue.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles, você encontrará dicas,
textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior
compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

TÓPICO 2 – ALTERNÂNCIAS DE CÓDIGO E ESTRATÉGIAS


LINGUÍSTICAS

TÓPICO 3 – O MITO DO MONOLINGUISMO

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

61
62
UNIDADE 2
TÓPICO 1

SOCIOLINGUÍSTICA
VARIACIONISTA

1 INTRODUÇÃO
Ao longo dos estudos da Unidade 1 do seu material de Sociolinguística,
você provavelmente notou que esta disciplina está preocupada com a descrição
das diferentes variedades que coexistem dentro de uma comunidade ou
mais comunidades de fala. Nesse sentido, não podemos confundir a língua
portuguesa com a gramática normativa dessa língua, uma vez que buscamos
compreender as variedades do português brasileiro considerando o seu contexto
social de uso. Para essa compreensão, dependemos do campo científico da
sociolinguística variacionista, que apresenta modos próprios de pesquisa. Neste
tópico, pretendemos introduzir, de forma sucinta, a metodologia de pesquisa
da sociolinguística variacionista e apresentar possibilidades para o estudo de
fenômenos linguísticos variáveis do português brasileiro.

Para esse estudo, você conhecerá os cinco problemas e princípios


empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística, que são: fatores
condicionantes, encaixamento da variação, avaliação das mudanças, transição e
implementação.

É a partir do estudo nessa perspectiva, considerando os problemas e


princípios citados, que sociolinguistas brasileiros têm identificado atitudes de
estigmatização a determinados traços linguísticos denominados de descontínuos,
os quais representam as variantes linguísticas típicas de falantes provenientes de
classes sociais economicamente desfavorecidas, com menor grau de escolaridade
e associadas às zonas rurais do país. Em contrapartida, há variantes linguísticas
encaixadas em classes sociais economicamente favorecidas, provenientes de
zonas urbanas e com maior escolaridade, que não sofrem o mesmo estigma.

Diante dessa realidade, os estudos da sociolinguística têm contribuído


significativamente para o contexto de educação básica, uma vez que a descrição
das variedades de comunidades de fala existentes no Brasil desmente o mito
do monolinguismo nacional e de homogeneidade na língua portuguesa,
desqualificando o ensino pautado exclusivamente na noção de certo e errado.
Nesse sentido, é muito importante que você, enquanto futuro docente, conheça e
compreenda a perspectiva da qual parte a sociolinguística para que as suas aulas
possam ser planejadas, levando em conta as variedades com as quais você se
deparará em sua sala de aula. Pronto para iniciar a Unidade 2?

63
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

2 PARA ENTENDER A VARIAÇÃO E A MUDANÇA LINGUÍSTICA


Na Unidade 1, você teve a oportunidade de conhecer o conceito de
variação linguística, em quais níveis ela ocorre e de que maneira os contextos
sociais influenciam para que ela ocorra. A partir dessa compreensão, podemos
observar a importância do trabalho no campo da variação linguística para o
debate sobre o progresso da mudança linguística que, conforme Labov (2008),
ocorre em três estágios: na origem, na propagação e no término. Em outras
palavras, por meio da pesquisa no campo da sociolinguística variacionista, é
possível olhar para um contexto no qual inicia-se uma variação linguística,
compreender como a nova variante passa a se propagar em novos contextos,
entre falantes de diferentes idades, escolaridades, classes sociais, e de que forma
essa variante assume a norma de uso.

Para exemplificar, retomaremos um contexto de variação apresentado


na Unidade 1 acerca do pronome de segunda pessoa do plural. Como já
observamos, embora o pronome “vós” ainda se faça presente nos manuais de
gramáticas normativas da língua portuguesa, os falantes do português brasileiro
o substituíram pelo pronome “vocês” para indicar a segunda pessoa do plural.
Se realizarmos uma análise sociolinguística em textos antigos, veremos que, no
século XVI, o pronome “vós”, e não “vocês”, era utilizado para marcar a segunda
pessoa do plural. Nos séculos seguintes, novas formas passaram a competir com
“vós”, o que implicou na variação linguística. A partir dessa variação, observamos,
portanto, uma mudança linguística completada da forma pronominal de “vós”
para “vocês” na fala de praticamente todos os brasileiros.

E
IMPORTANT

Vale destacarmos que “nem toda variabilidade e heterogeneidade na


estrutura linguística implica mudança; mas toda mudança implica variabilidade e
heterogeneidade” (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006, p. 126, grifos nossos). Isso quer
dizer que sempre que nos depararmos com uma mudança linguística, como é o caso de
“vós” e “vocês”, conforme vimos há pouco, também nos deparamos com a heterogeneidade
da língua, com a sua possibilidade de variação. No entanto, mesmo quando estamos
diante de uma variação linguística, não quer dizer que haja uma mudança linguística. Por
exemplo: As formas “tu” e “você” convivem na nossa sociedade, especialmente no Sul do
Brasil, marcando uma diferença de estilo e região. Podemos observar que entre as formas
concorrentes “tu” e “você” há variação, mas não há uma mudança linguística, uma vez que
ambas as formas continuam em uso.

64
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Duas obras foram fundamentais para a consolidação dos estudos da


teoria da variação na busca para compreender a língua em sua heterogeneidade,
num processo constante de variação e mudança linguística: (1) a primeira obra,
publicada por Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (2006), é intitulada
“Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística”; (2) e a
segunda obra, que você conheceu um pouco melhor na Unidade 1, foi publicada
por William Labov (2008) e recebeu o título de “Padrões sociolinguísticos”.

FIGURA 1 – FUNDAMENTOS EMPÍRICOS PARA UMA TEORIA DA MUDANÇA LINGUÍSTICA

FONTE: <http://twixar.me/yfGT>. Acesso em: 24 ago. 2019.

E
IMPORTANT

Em nossa sociedade, nós interagimos por meio da língua. É através dela que
a vida acontece. No entanto, isso só é possível porque essa língua é estruturada, possui
uma lógica e todos aqueles que dominam essa língua conseguem se entender, mas, se
existe uma estrutura, como é possível que a língua mude sem que o caos aconteça?
Como continuamos a nos comunicar mesmo diante das variações e das mudanças que
acontecem? Para responder a essas perguntas, a teoria da mudança busca por dados
empíricos variáveis. Para descrever esses dados, contudo, é importante que se tenham
ferramentas adequadas. Nesse sentido, a sociolinguística parte de alguns problemas (que
podem, também, ser entendidos como questionamentos) empíricos, que orientam os
estudos daqueles que buscam conhecer e compreender como é possível que “[...] tanto
língua quanto comunidade permaneçam ordenadas, embora a língua mude” (COELHO et
al., 2015, p. 76). Esses problemas, também chamados de princípios, foram propostos por
Weirich, Labov e Herzog (2006) e guiam ainda hoje os estudos sociolinguísticos.

65
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

I- Fatores condicionantes – “busca-se compreender quais são as condições


para a mudança em dada estrutura, que podem advir de fatores de ordem
social e de ordem linguística” (SALOMÃO, 2011, p. 191, grifos nossos). Esse
princípio possibilita descrever, por exemplo, de que forma aspectos sociais,
como idade, gênero, sexo, escolaridade, entre outros, condicionam a variação
e a mudança linguística. Além disso, também possibilita observar a influência
dos condicionantes linguísticos que participam da própria estrutura da língua,
como os morfológicos ou sintáticos, por exemplo, na mudança da língua.

II- Encaixamento da variação – busca-se descrever o fenômeno da variação


linguística com base na observação dos fatores condicionantes linguísticos
e sociais (não linguísticos). Podemos dizer que a análise variacionista, em
sua essência, corresponde à observação de fatores sociais e seu reflexo nos
fenômenos linguísticos que ocorrem na fala de uma comunidade (LABOV,
2008). Em outras palavras, nesse princípio, o fenômeno da variação é descrito
dentro de uma comunidade de fala a partir dos fatores condicionantes.

III- Avaliação das mudanças – “busca-se estudar os possíveis efeitos da variação


sobre a estrutura linguística, sobre a eficiência comunicativa e sobre um
amplo conjunto de categorias não representacionais (inclusive interacionais,
discursivas e pragmáticas) envolvidas na fala” (SALOMÃO, 2011, p. 191).
Em outras palavras, a avaliação das mudanças nos permite refletir sobre os
valores da própria variável linguística entre seus falantes, sobre o papel do
falante no processo de mudança e sobre sua consciência acerca do processo
de mudança (LABOV, 2008). A atitude do falante pode se manifestar em dois
níveis, a saber: (i) avaliação linguística e (ii) avaliação social. Enquanto que
a avaliação linguística se relaciona à eficiência na comunicação, a social diz
respeito ao significado social das formas linguísticas (COELHO et al., 2015,
p. 91-92). Em suma, podemos dizer que a avaliação corresponde à atitude
social quanto à língua para a determinação de uma mudança linguística.

IV- Transição – “busca-se compreender os estágios intervenientes entre dois


estados da língua: como um falante aprende uma forma alternante, tempo
em que as duas formas coexistem, tempo em que uma das formas prevalece
sobre a outra” (SALOMÃO, 2011, p. 191). O problema da transição consiste
na observação e na descrição da mudança linguística, por meio de um olhar
diacrônico, de um ponto inicial de origem do fenômeno até um ponto no qual
a mudança se apresenta concluída, totalmente visível, ou seja, observa-se a
progressão da mudança ao longo de diferentes gerações.

V- Implementação – “busca-se analisar os fatores responsáveis pela


implementação da mudança e a razão pela qual as mudanças em um aspecto
estrutural ocorrem em determinada língua em um dado momento, mas não
em outra língua com o mesmo aspecto, ou na mesma língua, em outras
épocas” (SALOMÃO, 2011, p. 191). Uma das hipóteses da implementação de
Labov (2008) é a de que a mudança raramente acontece de baixo para cima,

66
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

isto é, a mudança é legitimada e encaixada apenas se a avaliação de grupos


sociais prestigiados, com maior escolaridade, maior poder socioeconômico,
aceitar a forma inovadora e incorporá-la às suas variedades prestigiadas.

NOTA

Você sabia que há muitos estudos sociolinguísticos que são realizados a


partir de cartas pessoais escritas em diferentes séculos? O problema de implementação
da mudança pode guiar esse tipo de estudo, uma vez que os dados revelam as formas
inovadoras da língua usadas nas cartas pessoais e que foram incorporadas pelos falantes.
As cartas pessoais normalmente são extraídas de uma plataforma on-line chamada de
CORPORA do PHPB, disponível em: https://sites.google.com/site/corporaphpb/.

Cada um desses cinco problemas representa os princípios para uma teoria


da variação e mudança linguística, a fim de que o sociolinguista possa observar, em
dados reais da fala de comunidades, como as variações ou as mudanças linguísticas
podem estar encaixadas num contexto social, como são avaliadas e como a mudança
pode ser ativada em contextos geográfica e temporalmente específicos.

Esses cinco problemas, portanto, correspondem a uma investigação


sobre a língua, que pode ser realizada com objetivos distintos, tais como: I.
identificar os fatores condicionantes da variação linguística; II. observar o reflexo
dos fatores condicionantes da variação linguística na fala de uma comunidade;
III. compreender a atitude social de uma comunidade de fala diante de formas
concorrentes da língua; IV. descrever uma mudança linguística em curso ou
totalmente concluída; V. descrever a implementação da mudança, considerando
o encaixamento e a avaliação da forma inovadora na comunidade de fala. Para
saber mais sobre como se realizam as pesquisas na sociolinguística variacionista,
continue a leitura deste tópico!

67
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

2.1 ANALISANDO REGULARIDADES LINGUÍSTICAS:


PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS
Prezado acadêmico, a discussão aqui presente buscará lhe auxiliar na
compreensão dos princípios metodológicos de uma análise de regularidade
linguística, importante para o seu olhar crítico de dados de variação linguística ao
receber materiais pedagógicos. Você poderá, assim, avaliar se os livros didáticos,
por exemplo, trazem materialidade de variação linguística real ou representações
fictícias (como nos quadrinhos de Maurício de Sousa), cujo objetivo não é estudar
a heterogeneidade da língua, mas produzir conteúdo literário. Apresentamos
a você uma abordagem inicial dos estudos sociolinguísticos para você ter uma
base para empreender suas próprias investigações e para que possa levar o
conhecimento variacionista da linguagem para a sala de aula.

A sociolinguística, como campo de investigação científico sobre a língua,


pode ser compreendida a partir de duas perspectivas diferentes de estudo: a
macrossociolinguística e a microssociolinguística (MONTEIRO, 2000).

E
IMPORTANT

Na macrossociolinguística, a relação sociedade e língua é compreendida a


partir de discussões voltadas ao multilinguismo e às políticas linguísticas, que serão mais
aprofundadas nos próximos tópicos da Unidade 2 e na Unidade 3 do nosso livro. A segunda
perspectiva de estudo, a microssociolinguística, se constitui como foco no presente tópico,
pois nos permite analisar como os fatores sociais resultam nas variedades faladas por
diferentes comunidades brasileiras.

A perspectiva da microssociolinguística é mais comumente denominada


a partir da corrente de estudos laboviana: sociolinguística variacionista ou
teoria da variação (embora essa perspectiva também englobe a sociolinguística
interacional e a etnografia da fala). William Labov é considerado precursor no
campo devido aos métodos que utilizou em sua dissertação de mestrado e em
sua tese de doutorado para coletar dados de variedades da língua inglesa falada
na ilha de Martha’s Vineyard, no estado de Massachusetts, e das variedades da
língua inglesa falada em Nova York.

A relação língua e sociedade, como temos discutido ao longo deste livro, é


foco na análise sociolinguística para compreensão de regularidades presentes na
fala de uma comunidade linguística. A fim de sistematizar o processo de variação
linguística, o pesquisador sociolinguista identifica fatores sociais que implicam
o fenômeno variável.

68
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

NOTA

Perceba que os conceitos acerca da variação linguística, como variedade,


variante, variável, trabalhados na Unidade 1, continuam em uso para os nossos estudos. Por
isso, não deixe de retomá-los sempre que necessário antes de prosseguir com as suas leituras.

Conforme introduz Bagno (2007) na obra “Nada na língua é por acaso”, a


variação linguística não acontece livremente em um sistema aleatório onde “tudo
pode”. O emprego das variantes é regido por certas regras sociais e estruturais
(LABOV, 2008), que permitem verificar o encaixamento linguístico e social da
variação, além de uma possível mudança linguística em curso.

Essa verificação ocorre por meio de pesquisas na sociolinguística


variacionista, as quais realizam análises quantitativas e qualitativas de um corpus.
Você saberia dizer o que é um corpus de pesquisa? Na sociolinguística variacionista,
o corpus de pesquisa se refere a um conjunto de dados de variação linguística obtido
com base em determinadas características. Nesse sentido, podemos selecionar um
conjunto de dados que nos permite analisar a variação fonético-fonológica de um
estado brasileiro, ou a variação morfossintática entre grupos de escolaridades
diferentes numa mesma cidade, só para citar alguns exemplos.

Na pesquisa variacionista, é possível comprovarmos que a variação é


constitutiva da língua, o que implica admitir que diferentes formas linguísticas
convivam na sociedade, nas comunidades de fala, e que inclusive há variação na fala
de um mesmo indivíduo. Além disso, a sociolinguística variacionista tem comprovado
que a mudança linguística não ocorre de uma hora para outra, mas é gradual.

E
IMPORTANT

Os pressupostos teóricos presentes na teoria da variação “permitem ver


regularidade e sistematicidade por trás do aparente caos da comunicação no dia a
dia, procurando demonstrar como uma variante se implementa na língua ou desaparece”
(SALOMÃO, 2011, p. 190, grifos nossos), como ocorre seu encaixamento na comunidade
de fala, quais as atitudes dos falantes diante da maneira inovadora, de que forma se dá a
transição e implementação de uma mudança.

69
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

Para analisar essa realidade, a sociolinguística variacionista trabalha


com dados estatísticos, que são tratados qualitativa e quantitativamente, a
partir da noção de peso relativo, que é a análise da regra variável baseada nos
seus fatores contextuais.

Existe um pacote de programas para a análise computacional dos dados.


Os mais utilizados são o VARBRUL e o GOLDVARB, auxiliando a calcular a
porcentagem dos fenômenos variáveis para que, em seguida, interpretemos o
fenômeno da variação, relacionando os princípios estatísticos e as teorias sociais
e linguísticas (SALOMÃO, 2011). “O resultado da análise das variantes pode
produzir duas situações: a existência de estabilidade entre variantes, denominada
variação; ou a competição entre as variantes com aumento de uso de uma delas,
chamada mudança em curso” (SALOMÃO, 2011, p. 192, grifos nossos).

Como você já deve ter percebido ao longo da sua leitura, nos nossos
estudos, procuramos trabalhar com o falante-ouvinte real, em situações reais
de linguagem, e não com um falante-ouvinte ideal, para o qual se impõe certos
modelos linguísticos. Nesse sentido, ao realizarmos uma pesquisa sociolinguística,
lidamos com gravações de amostras de fala informais e espontâneas de um
número expressivo de informantes, a fim de que seja possível analisar as formas
variáveis dentro de uma comunidade de fala. Salomão (2011, p. 191, grifos nossos)
explica o passo a passo da pesquisa na sociolinguística variacionista:

Primeiramente, o investigador tem de delimitar o fenômeno


linguístico variável, levantando todas as possibilidades de produção
que estão em variação. Posteriormente, ele deve lançar hipóteses sobre
as variáveis condicionadoras (linguísticas e sociais) que podem estar
influenciando a escolha de uma ou de outra forma variante, baseando-
se tanto nos dados coletados, na teoria linguística e na estrutura
social da comunidade estudada. É importante que o investigador
identifique os grupos de fatores, tanto estruturais como sociais,
com os quais irá trabalhar antes de submeter os dados a uma análise
computacional, por meio de um pacote de programas (alguns dos
mais utilizados são o VARBRUL e o GOLDVARB) que faz os cálculos
de frequência (SALOMÃO, 2011, p. 192, grifos nossos).

Para ilustrar esses procedimentos metodológicos da teoria da variação,


convidamos você a conhecer a pesquisa de Macedo (2004), que realiza uma análise
de variação no nível fonético-fonológico no falar "culto" de Recife, na qual identifica
o encaixamento da palatização de /s/ em final de sílaba. A pesquisadora, para iniciar
seu estudo na sociolinguística variacionista, passa por quatro etapas de delimitação:

1- Seleção do fenômeno linguístico variável: /s/ em final de sílaba.


2- Delimitação da comunidade de fala: grupo de falantes que acessam a norma
prestigiada de Recife.
3- Reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em
variação: Macedo (2004) reconhece quatro variáveis para /s/ em final de sílaba
na fala prestigiada de Recife: (1) as consoantes alveolares surdas [s] e [ʃ], como

70
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

em pa[s]tel, mê[ʃ]; (2) as consoantes alveolares sonoras [z] e [ʒ], como em me[z]
mo ou pé[ʒ]descalços; (3) a consoante fricativa glotal, como em me[h]mo; (4) e
ainda a possibilidade de não se pronunciar o /s/, o que se identifica como um
zero fonético – me[Ø]mo.
4- Levantamento de hipóteses sobre as variáveis condicionadoras (linguísticas
e sociais): Macedo (2004) considera as variáveis sociais de sexo (feminino e
masculino) e de faixa etária (I – de 13 a 20 anos; II – de 21 a 45 anos; III – de 46 a 70
anos). Como variáveis linguísticas, Macedo (2004) considera a posição da sílaba
(intravocabular – quando o /s/ ocorre dentro de uma palavra, como em pasta;
ou intervocabular – quando o /s/ se localiza no final de uma palavra e na fala
se conecta com o início de outra, como em olhos azuis), a categoria gramatical
(verbo, adjetivo, substantivo, outras), o contexto fonológico antecedente (quais
vogais e consoantes antecedem o /s/), o contexto fonológico seguinte (quais
vogais e consoantes sucedem o /s/), a tonicidade (a sílaba onde se encontra
o /s/ é tônica ou atônica), e a sonoridade (o traço vozeado ou desvozeado da
consoante seguinte).

Para delimitação do corpus de pesquisa, Macedo (2004) extraiu 5.369


ocorrências de /s/ em final de sílaba de 12 inquéritos do tipo DID do Projeto NURC
– Recife, aleatoriamente selecionados, totalizando aproximadamente 360 minutos
de gravação. Das 5.369 ocorrências, por meio do pacote computacional VARBRUL,
Macedo (2004) analisou pormenorizadamente 3.911, que correspondem às
realizações alveolar e palatal do fonema em questão (o que corresponde ao
reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em variação).

NOTA

O Projeto NURC surgiu da iniciativa de documentar e descrever a norma


objetiva do português culto falado no Brasil, tendo promovido o registro sonoro de
exemplares da fala urbana, com vista à descrição de seus aspectos fonéticos e fonológicos,
gramaticais e léxicos.
As gravações compreendem três tipos de entrevistas: D2 – diálogo entre dois informantes,
DID – diálogo entre informante e documentador e EF – elocução em atitude formal. Os
informantes apresentam as seguintes características: formação universitária, nascidos na
cidade sob estudo e filhos de falantes nativos do português. Dividem‑se em três faixas
etárias, a saber: I – de 25 a 35 anos, II – de 36 a 55 anos e III – de mais de 56 anos.
No Brasil, foram gravadas entrevistas em cinco capitais, a saber: São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Salvador e Recife (IEL, UNICAMP, 2013-2019.

FONTE: <http://www3.iel.unicamp.br/cedae/noticia.php?view=details&article=203>. Acesso


em: 28 jul. 2019.

71
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

A seguir, você conseguirá visualizar como ocorreu a análise quantitativa


e qualitativa da realização do /s/ em final de sílaba, levando em consideração a
variável linguística das categorias gramaticais:

NOTA

Lembre-se de que a variável linguística significa que há algo interno à própria


língua que favorece a variação.

QUADRO 1 – CATEGORIA GRAMATICAL

FATOR APLIC./TOTAL FREQUÊNCIA


Verbo 479/804 60%
Adjetivo 265/462 57%
Substantivo 1.009/1.961 51%
Outra 687/2.142 32%

FONTE: Macedo (2004, p. 58)

Nessa análise, identifica-se que “a categoria gramatical que mais favorece


a palatização é o verbo” (MACEDO, 2004, p. 58).

Seguidamente, a autora procura relacionar os dados da categoria linguística


com as variáveis sociais da pesquisa, afirmando que: “após analisarmos uma a
uma, todas as variáveis em estudo, constatamos que cinco foram as variáveis
selecionadas pelo programa computacional como estatisticamente relevantes
para a produção da palatal” (MACEDO, 2004, p. 60), que foram de sexo; contexto
fonológico seguinte; traço de sonoridade do segmento seguinte; faixa etária;
posição da sílaba. No gráfico a seguir, a autora cruza as variáveis sociais, que são
as de maior peso no tocante à realização palatal:

72
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

GRÁFICO 1 – PRODUÇÃO PALATAL EM POSIÇÃO DE CODA: SEXO X FAIXA ETÁRIA

FONTE: Macedo (2004, p. 61)

Conforme podemos observar no gráfico anterior, a produção palatal atinge


percentuais altíssimos no sexo feminino, chegando a 99% na segunda faixa
etária, também é na segunda faixa etária masculina que podemos verificar
o mais elevado índice percentual, 66% (MACEDO, 2004, p. 61).

Observe, acadêmico, que os condicionadores sociais (sexo e faixa etária)


estão atuando nessa variação específica. Assim, a realização de uma ou outra
variante parece estar condicionada por esses fatores, quando se olha em uma
perspectiva externa à língua.

Numa rápida análise, podemos perceber uma diferença de


comportamento na produção palatal entre homens e mulheres
distribuídos nas respectivas faixas etárias. Entre as mulheres, o
índice mais baixo de produção é na I faixa e o mais alto, como já
dissemos, na II faixa, estando a I e II faixas praticamente no mesmo
patamar, havendo um pequeno favorecimento também para a II
faixa (MACEDO, 2004, p. 61).

Além do trabalho de Macedo (2004), que utilizamos para exemplificar a


você como ocorre uma pesquisa à luz da teoria da variação, existem outros estudos
dessa natureza sobre a fala e a escrita, abrangendo fenômenos morfológicos,
sintáticos, fonético-fonológicos, discursivo-pragmáticos. Não deixe de conferir
mais sobre essas pesquisas, que investigam não só a variação e a mudança, mas
as atitudes e as crenças linguísticas relacionadas à variação linguística. Fique
conosco para ler mais sobre a avaliação acerca dos traços linguísticos.

73
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

2.2 AS DIMENSÕES SOCIAIS DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA:


TRAÇOS DESCONTÍNUOS E GRADUAIS
Como vimos até agora, a pesquisa sociolinguística contribui para
pensarmos na heterogeneidade da língua condicionada a fatores sociais. Também
vimos que a diversificação social, além de constituir fatores condicionantes para
a variação linguística, agrega um conjunto de valores socioculturais às variantes
de uma língua, o que pode ser investigado especialmente a partir do problema
da avaliação proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006).

Tomando como base a teoria da variação, Bagno (2007) identifica que as


variedades linguísticas podem ser representadas a partir de um contínuo. De um
lado desse contínuo, temos falares que evidenciam maior renda econômica, maior
escolaridade e maior contato com o espaço urbano, avaliados, consequentemente,
com maior prestígio social. Do outro lado, contudo, os falares com menor renda,
menor escolaridade e maior contato com o espaço rural, são avaliados socialmente
com maior estigma.

FIGURA 2 – CONTÍNUO DOS FALARES DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

+ PRESTÍGIO
- renda + renda
+ ESTIGMA

- escolaridade + escolaridade
+ rural + urbano

FONTE: Bagno (2007, p. 77)

Conforme observa Bagno (2007), a avaliação atribuída às variedades


linguísticas é essencialmente social, isto é, os traços linguísticos característicos de
classes menos favorecidas social e economicamente (menor escolaridade, menor
renda, maior contato com zonas rurais) são avaliados negativamente. O autor
procura destacar que “não é propriamente a língua que está sendo avaliada,
mas, sim, a pessoa que está usando a língua daquele modo” (BAGNO, 2007, p.
77, grifos nossos).

Na nossa fala, portanto, podemos encontrar traços linguísticos


característicos de variedades mais estigmatizadas e de variedades mais
prestigiadas. A esses traços sociolinguistas, Bagno (2007) e Bortoni-Ricardo (2004)
têm atribuído a denominação de traços graduais e traços descontínuos.

74
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

E
IMPORTANT

Traços graduais são aqueles comuns aos falares de praticamente todos


os brasileiros; e traços descontínuos são aqueles que estão presentes principalmente
no contínuo de menor renda, menor escolaridade, de origem mais rural (BAGNO 2007;
BORTONI-RICARDO, 2004).

Para que essas ideias fiquem mais claras, vamos ler o texto “O limoeiro”,
de autoria do cartunista brasileiro Maurício de Sousa, cujo conteúdo contempla
características da fala de Chico Bento, personagem de origem rural, do interior de
São Paulo. Durante sua leitura, preste especial atenção nas palavras destacadas
em negrito.

O Limoeiro
Maurício de Sousa

Chico Bento: — Vixi! Como você cresceu! Inté parece qui foi onte
qui prantei esse limoero! Agora, já ta cheio di gaio! Quase da minha artura!
Como o tempo passa, né? Uns tempo atrais, ocê era deste tamanhico! Fiz um
buraquinho i ponhei ocê inda mudinha dentro! Protegi dos vento, do sor, das
geada... i nunca dexei fartá água! Imagina se eu ia dexá ocê passa sede! Hoje
você ta desse tamanhão! Quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu!
Cum uns gaio cumprido cheio di limão i umas foia bem larga, pra dá sombra
pra quem tivé dibaxo! Aí, num vô percisá mais mi precupá c’ocê, né limoero?
Pruque aí ocê vai tá bem forte! Vai sabê si protegê do vento do sor i da geada,
sozinho! I suas raiz vão tá tão cumprida qui ocê vai podê buscá água por sua
conta! Ocê vai sê dono doce mesmo! Sabe, limoero... Tava pensando... Acho
que dispois, vai sê eu qui vô percisá docê! Isso é... Quando eu ficá mais véio!
Craro! Cum uns limão tão bão qui ocê tem... i a sombra qui ocê dá, pode mi
protegê inté dos pingo di chuva! Ocê vai fazê isso, limoeiro? Cuidá di mim
também? Num importa! O importante é qui eu prantei ocê! I é ansim qui eu
gosto! Do jeito qui ocê é.
Pai do Chico Bento para a Mãe do Chico Bento: — Muié... tem reparado
como nosso fio cresceu?

FONTE: SOUSA, M. de. O limoeiro. Chico Bento, nº 354. In: BORTONI-RICARDO, S. M.


Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 45.

75
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

Você conseguiu perceber que, dentre as palavras destacadas, algumas


delas recebem maior rejeição que outras? No discurso direto da personagem Chico
Bento, Maurício de Sousa procurou incluir marcas características da fala rural do
interior de São Paulo, a fim de dar vivacidade ao texto. No entanto, apesar de
a fala ser caracterizadamente rural, nela encontramos tanto traços descontínuos
quanto traços graduais.

No quadro a seguir, acompanharemos a explicação de cada palavra


destacada que caracteriza um traço descontínuo:

QUADRO 2 – TRAÇOS DESCONTÍNUOS EM “O LIMOEIRO”

Palavra Explicação
É uma forma arcaica da preposição até. Esse arcaísmo se conservou no polo rural
e praticamente desapareceu dos falares urbanos; por isso foi considerado traço
descontínuo. Observe que muitas formas encontradas hoje no polo rural são
INTÉ arcaísmos que se preservaram e podem ser encontrados em obras literárias antigas,
como Os Lusíadas, poema que foi escrito pelo português Luís Vaz de Camões,
para celebrar as descobertas marítimas de seus patrícios, e publicado em 1572
(BORTONI-RICARDO, 2004, p. 54).
A troca de /l/ por /r/ nos grupos consonânticos, como em bloco/broco, problema/
probrema/pobrema é encontrada em falares rurais e rurbanos e, às vezes, até em falares
urbanos. Preferimos classificar prantei como um traço descontínuo, considerando
PRANTEI
que esse fenômeno é muito estigmatizado na cultura urbana (BORTONI-RICARDO,
2004, p. 54). O falar rurbano é aquele intermediário, situado entre o caracterizado
rural e urbano.
A troca de /l/ pós-vocálico por /r/ é fenômeno típico dos falares rurais igualmente
ARTURA avaliado muito negativamente nas cidades. É, portanto, um traço descontínuo
(BORTONI-RICARDO, 2004, p. 55).
O verbo pôr é irregular e no pretérito perfeito é conjugado assim: pus, puseste, pôs,
pusemos, pusestes, puseram. Nos falares rurais, porém, o pretérito perfeito é formado
em analogia com os verbos regulares (cantei/ casei/ falei etc.), usando-se, como
base, a forma da primeira pessoa do presente (ponho). A forma ponhei é, portanto,
uma regularização que segue um processo de analogia. Observe que formações
PONHEI
analógicas como essa são muito comuns na linguagem de crianças pequenas, que
dizem coisas como: “eu descei”, “já chegui” etc., mas a variante ponhei é uma forma
estigmatizada nas comunidades urbanas e tem o mesmo caráter de um estereótipo
dos falares rurais. Por isso, nós os catalogamos como traço descontínuo (BORTONI-
RICARDO, 2004, p. 55-56).
É variante da palavra sol em que o /l/ pós-vocálico é realizado como /r/. É a mesma
regra fonológica que vimos em artura. A flutuação entre /r/ e /l/ pós-vocálico é
SOR
própria das comunidades situadas no polo rural, onde também podemos ouvir
galfo/garfo; calvão/carvão (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 56).
Nesta variante de mulher, típica do polo rural do contínuo, temos a aplicação de
duas regras: a vocalização da consoante lateral palatal /lh/ e a perda do /r/ final.
A primeira regra tem caráter descontínuo e pode ser observada em /filho/ > fio/; /
MUIÉ palha > paia/; /trabalha > trabaia/. A perda do /r/ final é um traço gradual. Observe
que essa perda é mais frequente nos infinitivos verbais, mas também ocorre em
substantivos como mulher; colher e suor ou em adjetivos como maior, melhor etc.
(BORTONI-RICARDO, 2004, p. 58).

76
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Nessa palavra, vemos que o fonema /r/ alterou sua posição no interior da sílaba:
/precisar/ > /percisá/. Essa regra, que é conhecida como metátese, é muito comum
nos falares rurais. Alguns exemplos: “tauba” (< tábua), “partelera” (< prateleira),
PERCISÁ “preguntar” (< perguntar), “vrido” (< vidro). [...] Na evolução do português arcaico
para o português moderno, ocorreram muitos casos de metátese. Exemplos:
semper (latim) > sempre; desvariar > desvairar; depredar > depedrar (BORTONI-
RICARDO, 2004, p. 57-58).
É uma forma arcaica de depois que ainda se conserva nos falares rurais. A palavra
depois se formou da junção de três preposições latinas: de + ex + post, e isso explica
DISPOIS
a presença do “s” na forma arcaica (e rural) despois/dispois (BORTONI-RICARDO,
2004, p. 58).

FONTE: Bortoni-Ricardo (2004, p. 54-58)

Bortoni-Ricardo (2004) explica que algumas variantes presentes nessas


palavras destacadas são típicas dos falares situados no polo rural e que, conforme
nos aproximamos do contexto urbano, essas variantes vão desaparecendo.
“Dizemos, então, que esses traços têm uma distribuição descontínua porque seu
uso é “descontinuado” nas áreas urbanas” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 53,
grifos nossos). Bagno (2007), por sua vez, esclarece que a rejeição às variedades
mais estigmatizadas, que apresentam traços descontínuos, é reflexo direto da
exclusão e injustiça da distribuição dos bens sociais, e não especificamente pela
estrutura linguística.

Como você deve ter reparado no texto de Maurício de Sousa, ainda há


outros traços que estão presentes na fala de Chico Bento que não discutimos.
Esses traços são aqueles que se situam na fala de todos os brasileiros e, por isso
mesmo, “se distribuem ao longo de todo o contínuo. Esses traços, ao contrário
dos outros, têm uma distribuição gradual”, e, portanto, os chamamos de traços
graduais (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 53). Conforme a própria caracterização
da fala de Chico Bento revela, os traços linguísticos graduais também fazem parte
do repertório dos falantes das variedades mais estigmatizadas, e não somente
daquelas que recebem certo prestígio social.

No Quadro 3, você poderá acompanhar a explicação de cada palavra


destacada no texto que caracteriza um traço gradual. Conforme pontua Bortoni-
Ricardo (2004), talvez você não vá concordar totalmente com essa classificação,
mas o importante é ter fundamentos para justificar e refletir sobre esses traços.

77
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

QUADRO 3 – TRAÇOS GRADUAIS EM “O LIMOEIRO”

Palavra Explicação
O sufixo –eiro é pronunciado quase sempre “êro”. Os ditongos ei e ai seguidos
dos fonemas /r/, /n/, /j/ e /x/ tendem a ser reduzidos, tornando-se vogais simples
LIMOERO
/e/ e /a/. Exemplos: cade(i)ra, ca(i)xa, be(i)jo, ribe(i)ra etc. Todos esses são traços
graduais (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 54).
O pronome de tratamento você deriva do tratamento antigo “Vossa Mercê”, que
obedeceu ao seguinte percurso: vossa mercê > vosmecê > você > (o)cê. As formas
OCÊ
“ocê” e “cê” são muito usadas em estilos não monitorados por todos os brasileiros
(BORTONI-RICARDO, 2004, p. 55).
Temos um sintagma ou frase nominal, cujo núcleo é um substantivo (vento). Os
sintagmas nominais são formados de um núcleo nominal e de outros elementos
chamados determinantes, que podem ser artigos definidos (o, a, os, as), artigos
indefinidos (um, uma, uns, umas) ou pronomes (demonstrativos, indefinidos,
possessivos etc.). Podem ocorrer também adjetivos no sintagma nominal. No
DOS VENTO português padrão, principalmente na modalidade escrita, os determinantes e os
adjetivos concordam em gênero e número com o núcleo do sintagma (ex.: todos
aqueles cidadãos corruptos serão processados). [...] Mas no português oral, nos
estilos não monitorados, há uma tendência a evitar a redundância, flexionando-
se só o primeiro elemento do sintagma, como ocorreu no diálogo de Chico Bento
que vimos (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 58).
Nesta forma verbal, o primeiro ditongo /ei/ foi reduzido a /e/, como em limoero, que
já vimos. Observe que em dexei o ditongo que já está na sílaba átona pretônica foi
reduzido, mas o mesmo ditongo que está na sílaba tônica final se preservou. De
fato, os segmentos fonológicos das sílabas tônicas tendem a ser mais resistentes a
mudanças fonológicas. No entanto, o ditongo /ou/ reduz-se a /o/ tanto em sílabas
DEXEI átonas não finais, quanto em sílabas tônicas não finais e finais. Veja: outro > otro;
outono > otono; entrou > entrô. Se compararmos então o que está acontecendo com
o ditongo /ei/ e o ditongo /ou/, concluiremos que a regra de redução do ditongo
/ou/ se aplica a uma gama maior de ambiente do que a regra de redução do ditongo
/ei/. Isso é um indicador para nós de que a primeira já está mais avançada no
processo de evolução da língua que a segunda (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 56).
Esta forma verbal ocorreu no seguinte enunciado: “Quero vê o dia im qui ocê
tivé mais grande qui eu”. Há muitos comentários a fazer sobre esta fala do Chico
Bento, começando pelo tivé. Nesse contexto, a forma tivé é variante de estiver, que
é futuro do subjuntivo do verbo estar, que perdeu a sílaba inicial es- e o fonema /r/
TIVÉ final. A forma tivé também pode ser variante de tiver, que é futuro do subjuntivo
do verbo ter.
[...]
Classificamos tivé como um traço gradual porque a perda – ou aférese, que é a
supressão de fonema(s) – da sílaba inicial es- no verbo estar é um traço generalizado
no português brasileiro, especialmente nos estilos não monitorados. Igualmente
a perda do /r/ final nos infinitivos verbais e nas formas do futuro do subjuntivo
é um traço gradual (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 56).
Nessa variante do advérbio debaixo, foram aplicadas duas regras [...]: a redução
DIBAXO de vogal pretônica /e/ > /i/ e do ditongo /ai/ > /a/. Ambas as regras têm caráter
gradual (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 57).

FONTE: Bortoni-Ricardo (2004, p. 54-58)

78
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Você consegue identificar algum desses traços na sua fala ou na fala de


alguém que você conheça? É importante destacarmos novamente que o fato
de esses traços constituírem variedades linguísticas de falantes do português
brasileiro não significa que haja erros nessas variedades, uma vez que, com o apoio
da sociolinguística, observamos que os traços representam apenas diferenças no
uso da língua. O fato de existir estigma ou prestígio sobre eles implica apenas
no nosso reconhecimento de que se há variação linguística, também há avaliação
sobre as variantes.

Com relação à perspectiva de erro, vale relembrarmos que, quando estamos


pensando nos contextos de uso da língua, não tratamos as variantes como formas
que possam ser consideradas erradas. As diferentes formas de usar a língua,
de fato, não são erros, afinal, fazem parte da variação e mudança linguísticas.
Contudo, conforme discutimos no Tópico 3 da Unidade 1, em um contexto de
ensino formal, é dever da escola apresentar aos alunos as diferentes variedades,
num processo de identificação e conscientização (BORTONI-RICARDO, 2004),
discutindo, inclusive, o preconceito linguístico contido naquelas variedades mais
estigmatizadas.

No quadro a seguir, elencamos 15 principais traços descontínuos do


português brasileiro:

QUADRO 4 – TRAÇOS DESCONTÍNUOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

TRAÇOS DESCONTÍNUOS COMENTÁRIO


1. Queda da vogal átona postônica Prosseguimento de uma tendência muito antiga na língua
em palavras proparoxítonas: córrego portuguesa, que transformou em paroxítonas um sem-
> corgo; pássaro > passo; bêbado > bebo; número de proparoxítonas latinas: tégula > telha; apícula >
árvore > arvre etc. abelha; límpidu > limpo etc.
Outra tendência antiga na história da língua; até hoje
os dicionários registram pares como ABDÔMEN/
ABDOME, REGÍMEN/REGIME, CERTÂMEN/CERTAME,
2. Não nasalização de sílabas
VELÂMEN/VELAME, CERÚMEN/CERUME, em que a
postônicas: home ~ homem; ontem ~
variante sem nasalização final é mais amplamente usada.
onte; fizeram ~ fizero etc.
Outras muitas palavras, como LUME, EXAME, NOME,
CIÚME, provém de palavras latinas em que existia um
–N final postônico.
3. Monotongação de ditongos átonos A história da língua apresenta muitos exemplos da mesma
crescentes em posição final: notícia > tendência, que as variedades estigmatizadas seguem mais
notiça; paciência > paciença; imundície > coerentemente: istitia > justiça; pigritia > preguiça; factitiu >
imumdice etc. feitiço; pretiu > preço; criantia > criança etc.
4. Rotacismo: troca de L por R em O rotacismo nos encontros consonantais ocorreu na
encontros consonantais ou em final de formação do português. Inúmeras palavras que hoje têm
sílaba: placa > praca; planta > pranta; talco um R no encontro consonantal tinham um L na palavra
> tarco; futebol > futebor etc. de origem.
5. Pronúncia [y] da consoante palatal
Mudança que também aconteceu em galego, francês e na
[ʎ], escrita LH: telha > têia; abelha > abêia;
maioria das variedades do espanhol.
velha > véia etc.

79
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

6. Eliminação do plural redundante,


Também ocorre nos estilos falados menos monitorados
marcado em geral só nos determinantes:
dos falantes urbanos escolarizados, em situação distensa.
os menino, as casa, aquelas coisa toda etc.
7. Redução da morfologia verbal a duas
formas: [eu] canto e [tu/você/ele/nós/a
Também ocorre nos estilos falados menos monitorados
gente/vocês/eles] canta; ou a três: [eu]
dos falantes urbanos escolarizados, em situação distensa.
canto, [tu/você/ele/vocês/eles] canta;
[nós] cantamo.
8. Uso dos pronomes do caso reto em O pronome ELE (e flexões) também é usado pelos falantes
função de complemento: ABRAÇA EU; urbanos escolarizados em função de objeto. Os outros
LEVA NÓS TAMBÉM; ELA GOSTA aparecem com menor frequência, e sobretudo com
MUITO DE TU; EU CONHECO ELE construções sintáticas mais complexas: VOCÊ NUNCA
etc. TINHA VISTO EU E O PEDRO JUNTOS ANTES?
9. Uso do pronome oblíquo MIM
Essa construção se torna cada vez mais frequente na fala
como sujeito de infinitivo depois da
de cidadãos altamente escolarizados das zonas urbanas,
preposição PRA ( < PARA): É COISA
particularmente na cidade e no estado de São Paulo.
DEMAIS PRA MIM FAZER!
10. Uso da palavra MAIS como
preposição equivalente a COM: O Também usada em algumas variedades urbanas regionais.
PEDRO TEVE AQUI MAIS A MARIA.
Processos analógicos semelhantes também operam nas
11. Formação analógica do verbo variedades urbanas. A maioria dos brasileiros, inclusive
PONHAR a partir da primeira pessoa os mais letrados, pronuncia “vim” o infinitivo de VIR,
PONHO: EU JÁ PONHEI A MESA muito provavelmente por influência analógica das formas
DO JANTAR. conjugadas em que aparece a nasalidade: VENHO, VIM,
VINHA etc.
12. Surgimento da preposição NE
(pronunciada /ni/), deduzida das
Também ocorre em algumas variedades urbanas regionais.
formas compostas: NO, NA, NUM,
NISSO etc.: ELA MORA NE GOIÂNIA.
Recurso enfático, que também ocorre nas variedades
13. Uso de advérbio de intensidade
urbanas de escolarizados quando dizem, por exemplo,
com formas superlativas: MAIS MIÓ,
ISSO VAI PIORAR AINDA MAIS, PODE FICAR AINDA
MAIS PIÓ, MUITO ÓTIMO etc.
MELHOR etc.
14. Léxico característico, variável de
região para região: FRUITA, LUITA,
A maioria desses vocábulos representam sobrevivências
OITUBRO, CUZINHA, DRUMI,
de fases anteriores da língua e podem ser encontrados na
PERCURÁ, DESPOIS, ANTOCE,
literatura medieval e clássica.
ARRESPONDÊ, ALEMBRAR,
DEREITO, MENHÃ, VOSMECÊ etc.
A prótese de um [a] em algumas palavras (atropeçô,
1 5 . A p r ó t e s e d e u m [ a ] e m alembrandu, avoar) se refere ao processo de inserção
algumas palavras: ATROPEÇÔ, do fonema nessas palavras, como resultado de um
ALEMBRANDU, AVOAR. processo histórico de mudanças linguísticas internamente
motivadas e regidas por leis fonéticas.

FONTE: Bagno (2007, p. 144-146)

80
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Vale destacarmos que muitas variações linguísticas são realizações das


regras mais recorrentes na língua. A título de exemplo, pensemos no caso das
paroxítonas, que são as palavras mais comuns na língua portuguesa. Por conta
da regularidade da tonicidade das palavras, há essa tendência de tentarmos
encaixar outras palavras nesse mesmo padrão tônico, especialmente palavras
proparoxítonas, que seriam as exceções no português brasileiro. Nesse sentido,
o primeiro traço descontínuo apresentado no quadro anterior é reflexo dessa
regularidade linguística, na qual palavras proparoxítonas, como córrego, bêbado
e árvore, podem variar para palavras paroxítonas, como corgo, bebo e arvre.
Interessante pensar, prezado acadêmico, que as palavras estrangeiras, inclusive,
quando são trazidas para a língua portuguesa, tendem a ser pronunciadas como
paroxítonas (observe a tonicidade de delete, cheque, clique, enter...).

Agora que você já conhece alguns traços descontínuos do português


brasileiro, confira, no Quadro 5, os traços graduais:

QUADRO 5 – TRAÇOS GRADUAIS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

TRAÇOS GRADUAIS COMENTÁRIOS


A convenção ortográfica leva a pronúncias forçadas,
artificiais, que não correspondem à realidade falada
1. Redução dos ditongos /ey/ a /e/ e pela imensa maioria dos brasileiros de todas as regiões.
/ay/ a /a/ diante de consoantes palatais Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização,
ou da vibrante simples: BEIJO [ˈbeʒo]; uma vez que a tendência do aprendiz é escrever a vogal
CAIXA [ˈkaʃɐ]; CHEIRO [ˈʃeɾu] etc. simples e não o ditongo. Também é responsável por casos
de hipercorreção, como as escritas CARANGUEIJO,
BANDEIJA, PRAZEIROSO etc.
A convenção ortográfica leva a pronúncias forçadas,
artificiais, que não correspondem à realidade falada pela
2. Redução de ditongo /ow/ a /o/ em
maioria dos brasileiros de todas as regiões. Esse fenômeno
todos os contextos: OURO [ˈoɾu];
interfere no processo de alfabetização, uma vez que a
CALOURO [kaˈloɾu]; AMOU [aˈmo] etc.
tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não
o ditongo.
Essa ditongação é generalizada no português brasileiro,
3. Ditongação da vogal tônica final
ocorrendo em quase todo o território nacional. Dela,
seguida de /s/, resultando nas
resulta a dificuldade de distinguir, na escrita, a conjunção
pronúncias: “pais” para PAZ, “mêis”
MAS do advérbio MAIS, uma vez que tendem a ser
para MÊS, puis para PUS etc.
pronunciados exatamente da mesma forma.
4. Apagamento do /r/ em final de
palavra, principalmente em final O apagamento do /r/ nos infinitivos caracteriza o
de verbos no infinitivo: CANTAR vernáculo de todos os brasileiros. Nas demais palavras,
> CANTÁ; VENDER > VENDÊ; é mais frequente em determinadas variedades regionais.
PROFESSOR > PROFESSÔ.
5. Queda do –S final das formas verbais
de 1ª pessoa do plural (NÓS): VAMO
Caracteriza a fala rápida, distensa, informal.
LÁ! NÓS COMPRAMO ISSO PRA
VOCÊ.

81
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

6. Uso amplo de ONDE para se referir


a espaço, tempo, situação etc., ou como
organizador do fluxo discursivo: ESSA
A norma padrão só admite o uso de ONDE com referência
É UMA CRISE MUITO PERIGOSA,
a “espaço físico”.
ONDE NÓS PRECISAMOS OLHAR
PARA FRENTE EM BUSCA DE UMA
SOLUÇÃO
7. Uso indistinto de ONDE por AONDE Apesar desse uso indistinto estar registrado há séculos
e vice-versa: ONDE VOCÊ PENSA na língua, inclusive na melhor literatura, os puristas só
QUE VAI? AONDE VOCÊ PENSA admitem AONDE com verbos que indicam direção ou
QUE ESTÁ? movimento: AONDE VOCÊ VAI?
8. Uso do verbo TER impessoal,
A tradição purista condena esse uso de TER, prescrevendo
com sentido de existência: JÁ TEM
em seu lugar o verbo HAVER: JÁ HÁ AÇÚCAR NESSE
AÇÚCAR NESSE CAFÉ? QUANTAS
CAFÉ? QUANTAS PESSOAS HAVIA POR LÁ?
PESSOAS TINHA POR LÁ?
9. Atribuição de gênero feminino a
palavras tradicionalmente masculinas
A norma padrão prescreve os gêneros tradicionais.
e vice-versa: A DÓ, O ALFACE,
DUZENTAS GRAMAS etc.

FONTE: Bagno (2007, p. 147-156)

Além dos traços graduais aqui apresentados, é possível identificar


muitos outros. No entanto, para compreendermos sobre os aspectos da variação
linguística, o que foi listado já é suficiente. Essa compreensão, prezado acadêmico,
é importante para ser levada ao contexto da sala de aula, uma vez que a discussão
sobre essas variações pode auxiliar seus futuros alunos a reconhecerem as regras
que regem a norma padrão, partindo das regras que constituem a própria fala.
Além disso, ao perceberem que não é possível, a ninguém, falar de acordo com
o que traz a norma padrão o tempo inteiro, os alunos podem quebrar alguns
estigmas e entenderem que todos variam o seu falar em alguma medida.

No próximo tópico, introduziremos alguns conceitos relacionados à


macrossociolinguística (ou sociologia da linguagem), como alternância de
códigos, estratégias linguísticas, bilinguismo, entre outros, que, assim como o
estudo da variação, permitem combatermos o mito do monolinguismo brasileiro.
Antes disso, vamos realizar uma leitura complementar que poderá lhe direcionar
a fazer uma pesquisa sociolinguística? Em seguida, confira as autoatividades
para colocar em prática o que estudamos neste tópico!

82
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

LEITURA COMPLEMENTAR

Na leitura complementar que apresentamos a você, acadêmico do curso de


Letras, recortamos um trecho do artigo “Sociolinguística variacionista: pressupostos
teórico-metodológicos e propostas de ensino”, escrito por Márluce Coan e Raquel
Meister Ko, e publicado pelo periódico “Domínios da Lingu@gem”. Esse texto,
de forma sucinta, retoma os pressupostos da teoria da variação linguística,
especialmente com base nos postulados labovianos.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE VARIAÇÃO E MUDANÇA

A Teoria da Variação e Mudança Linguística (também chamada


Sociolinguística Quantitativa ou Laboviana) tem como objeto de estudo a variação e
mudança da língua no contexto social da comunidade de fala. A língua é vista pelos
sociolinguistas como dotada de “heterogeneidade sistemática”, fator importante
na identificação de grupos e na demarcação de diferenças sociais na comunidade.
O domínio de estruturas heterogêneas é parte da competência linguística dos
indivíduos. Nesse sentido, a ausência de heterogeneidade estruturada na língua
seria tida como disfuncional (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006).

A língua não é propriedade do indivíduo, mas da comunidade (é social).


Entretanto, Labov discorda de Saussure, Chomsky e outros que insistem na
homogeneidade necessária do objeto linguístico, que ignoram a heterogeneidade
e que consideram a fala como caótica e desmotivada (FIGUEROA, 1996). Labov
(2008) crê que o novo modo de fazer linguística é estudar empiricamente as
comunidades de fala. Esse argumento pode ser acoplado à rejeição da psicologia
individual como um modelo de referência para a linguística, bem como rejeição
do idioleto ou gramática individual como o objeto da linguística (FIGUEROA,
1996). De acordo com Labov (2000), todos os sociolinguistas concordam que
produções e interpretações de um falante não são o lugar primário da investigação
linguística nem as unidades finais da análise, mas os componentes usados para
construir modelos de nosso objeto primário de interesse, a comunidade de fala.

A Sociolinguística que Labov propõe é aquela com o propósito de estudar


a estrutura e a evolução da língua no contexto social da comunidade, cobrindo
a área usualmente chamada de Linguística Geral, a qual lida com Fonologia,
Morfologia, Sintaxe e Semântica (LABOV, 2008). Segundo Figueroa (1996),
quando se diz que a Sociolinguística é o estudo da língua em seu contexto social,
isso não deve ser mal-interpretado. A Sociolinguística laboviana não é uma teoria
da fala, nem o estudo do uso da língua com o propósito exclusivo de descrevê-
la, mas o estudo do uso da língua no sentido de verificar o que ela revela sobre a
estrutura linguística (langue).

Quando Labov fala em heterogeneidade, refere-se à variação, mas está


interessado na variação que pode ser sistematicamente explicada. A variação
sistemática é um caso de modos alternativos de dizer a mesma coisa, sendo esses
83
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

modos portadores do mesmo significado referencial (LABOV, 2008). A linguística


laboviana tornou-se sinônimo do estudo de variação e mudança linguísticas.
Conforme Labov (1978), dois enunciados que se referem ao mesmo estado de
coisas com o mesmo valor de verdade constituem-se como variantes de uma
mesma variável (regra variável).

Assumindo a perspectiva de que é impossível entender o desenvolvimento


de variação e mudanças linguísticas fora da vida social da comunidade, já que
pressões sociais estão continuamente operando sobre a linguagem, Labov se
propõe, em seus trabalhos pioneiros, a correlacionar os padrões linguísticos
variáveis a diferenças paralelas na estrutura social em que os falantes estão
inseridos. De fato, investigando variáveis fonológicas, o autor constata uma
forte correlação entre a estratificação social dos falantes e seus usos linguísticos
diferenciados. Ampliando o escopo da regra variável para além dos limites da
fonologia, Weiner e Labov (1977) estudam construções ativas e passivas do inglês,
testando fatores externos (estilo, sexo, classe, etnia, idade) e fatores internos
(status informacional, paralelismo estrutural), concluindo que os dois tipos de
condicionamento podem ser independentes, uma vez que todos os grupos sociais
tratam a alternância ativa/passiva da mesma maneira. A extensão do modelo
variacionista para tratar fenômenos sintático-discursivos “abriu as portas à
incorporação de hipóteses funcionalistas, no sentido de atribuir a motivações fora
da estrutura da língua, decorrentes de necessidades comunicativo-funcionais, a
origem da variação” (PAREDES, 1993, p. 885).

Labov (2008) comenta que, se se quer dar uma contribuição significante no


que se refere ao funcionamento da língua, o estudo dessa em seu contexto social
não pode permanecer no campo da Fonologia. Note-se que mudanças fonológicas
podem alterar a morfologia da língua; mudanças morfológicas podem alterar a
sintaxe; mudanças sintáticas, o plano discursivo.

Correlacionando variação e mudança, a Teoria da Variação e Mudança


(WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006) rompe com a dicotomia sincronia/
diacronia (SAUSSURE, 1995) aproximando-as. “Afinal de contas, para que
os sistemas mudem, urge que eles tenham sofrido algum tipo de variação”
(TARALLO, 1994, p. 25). A conjunção entre sincronia e diacronia permite que
o enfoque não seja o de mudanças abruptas ou etapas estáticas. Pode-se dizer
que, “a partir de tais e tais características estruturais e de tais e tais condições de
funcionamento, o sistema, quase que preditivamente, caminhou na direção X e
não na direção Y” (TARALLO, 1994, p. 26).

Tendo sido evidenciada a variação num momento sincrônico, atual,


por exemplo, volta-se ao passado para o encaixamento histórico das variantes,
fechando o ciclo com a chegada novamente ao presente (TARALLO, 1994); desse
modo, pode-se observar (ou não) a manifestação da doutrina do uniformitarismo:
alguns mecanismos que operaram para produzir mudanças no passado podem
estar operando nas mudanças correntes (LABOV, 2008). Se olhar o passado
pode fornecer indícios para explicar o presente, é possível olhar o presente para

84
TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

projetar o futuro, ou seja, verificar uma mudança em tempo aparente. Conforme


pontua Labov (1994), esse tipo de mudança refere-se à predominância de uma
das variantes nos grupos mais jovens.

As observações em tempo aparente conectadas às observações em tempo


real permitem que se verifique a mudança em progresso. A análise da mudança
em tempo aparente é apenas um prognóstico, uma projeção que o pesquisador
se arrisca a fazer, portanto, constitui-se como uma hipótese. A articulação
entre presente e passado permite evidenciar estágios variáveis e mudanças
que aconteceram (tempo real) e que estão em curso (tempo aparente). Convém,
contudo, deixar claro que nem toda variabilidade na estrutura linguística
envolve mudança, mas toda mudança envolve, obrigatoriamente, variabilidade
(WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006).

Via variação, pode-se captar a direção e algumas generalizações acerca


da mudança. De acordo com Faraco (2005), a mudança não se refere à troca
direta e abrupta de um elemento por outro, mas envolve sempre uma fase de
concorrência. Da variação entre duas formas para a codificação de uma mesma
função/significação, uma pode se fixar na função tornando a outra obsoleta,
embora nem sempre seja esse o caso.

Para explicar a mudança, é preciso dizer o que aconteceu (fatos) e por


quê (princípios). A teoria da mudança, segundo Lass (1980), teria de incluir a
variabilidade como um axioma, visto ser empírica a variabilidade. Pelo que
supõe Lass, o estudo da variação pode constituir-se em caminho para explicar o
fenômeno da mudança linguística.

FONTE: COAN, M.; KO, R. M. Sociolinguística variacionista: pressupostos teóricometodológicos e


propostas de ensino. Domínios da Lingu@agem, v. 4, n. 2, 2010, p. 175-178.

85
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A sociolinguística é dividida em duas perspectivas diferentes de estudo: a


macrossociolinguística e a microssociolinguística. Assim, trabalhamos com a
sociolinguística variacionista, situada na microssociolinguística.

• A mudança linguística ocorre em três estágios: na origem (quando inicia dado


fenômeno variável), na propagação (como a nova variante é introduzida a
diferentes contextos sociais e comunidades) e no término (quando a mudança
linguística é completada).

• Toda mudança linguística implica variação, mas nem toda variação resulta em
uma mudança linguística.

• Weinreich, Labov e Herzog (2006) propuseram cinco problemas e princípios


empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística: I. Fatores
condicionantes; II. Encaixamento da variação; III. Avaliação das mudanças;
IV. Transição; V. Implementação.

• O pesquisador sociolinguista identifica fatores sociais que implicam no


fenômeno variável, que são os condicionantes sociais e linguísticos.

• Reconhecer que a língua varia não significa dizer que ela é caótica, pois,
conforme os estudos sociolinguísticos têm comprovado, mesmo na variação
existe regularidade e sistematicidade.

• A sociolinguística contribui para a compreensão de que a variação é constitutiva


da língua e a mudança linguística não ocorre de uma hora para outra, mas é
gradual. Nesse sentido, o sociolinguista reconhece a variação como a existência
de estabilidade entre variantes e mudança em curso como o aumento de uso
significativo de uma das variantes que competem no fenômeno variável.

• A metodologia de pesquisa na sociolinguística variacionista parte da


necessidade de utilizar como corpus de análise dados de fala reais, tratados
qualitativa e quantitativamente, a partir da noção de peso relativo.

• A pesquisa na sociolinguística variacionista envolve algumas etapas, a saber:


I. seleção do fenômeno linguístico variável; II. delimitação da comunidade de
fala; III. reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em
variação; IV. levantamento de hipóteses sobre as variáveis condicionadoras
(linguísticas e sociais).

• A avaliação das variantes linguísticas é social e tem sido observada a partir dos
traços linguísticos graduais e descontínuos.

86
• Os traços graduais são comuns aos falares de praticamente todos os brasileiros
e os traços descontínuos estão presentes principalmente no contínuo de menor
renda, menor escolaridade, de origem mais rural.

• Os principais traços descontínuos elencados nos nossos estudos foram: queda


da vogal átona postônica em palavras proparoxítonas (árvore > arvre); não
nasalização de sílabas postônicas (home ~ homem); monotongação de ditongos
átonos crescentes em posição final (notícia > notiça); rotacismo (placa > praca);
pronúncia [y] da consoante palatal [ʎ], escrita LH (telha > têia); eliminação
do plural redundante (os menino); a prótese de um [a] em algumas palavras:
ATROPEÇÔ, ALEMBRANDU, AVOAR, entre outros.

• Os principais traços graduais elencados nos nossos estudos foram: redução


dos ditongos /ey/ a /e/ e /ay/ a /a/ (BEIJO [ˈbeʒo], CAIXA [ˈkaʃɐ]); redução de
ditongo /ow/ a /o/ (OURO [ˈoɾu]); ditongação da vogal tônica final seguida
de /s/ (“pais” para PAZ); apagamento do /r/ em final de palavra (CANTAR >
CANTÁ); queda do –S final das formas verbais de 1ª pessoa do plural – NÓS -
(VAMO LÁ); entre outros.

87
AUTOATIVIDADE

1 A sociolinguística é uma área da linguística preocupada com os


estudos da linguagem sob um aspecto social. Ela pode ser dividida em
duas perspectivas diferentes de estudo: a macrossociolinguística e a
microssociolinguística. Assinale a alternativa CORRETA que caracteriza
um estudo da microssociolinguística:

a) ( ) Sociologia da linguagem.
b) ( ) Alternância de código.
c) ( ) Sociolinguística variacionista.
d) ( ) Política linguística.
e) ( ) Multilinguismo.

2 A mudança linguística ocorre em três estágios: na origem (quando


inicia dado fenômeno variável), na propagação (como a nova variante é
introduzida a diferentes contextos sociais e comunidades) e no término
(quando a mudança linguística é completada). Considerando o exposto,
analise a tabela a seguir, que apresenta dois fenômenos variáveis para duas
localidades da região Sul do Brasil:

USO DE TU VS. VOCÊ E CONCORDÂNCIA VERBAL COM TU (ADAPTADA DE


LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 133; 167)

Localidades Uso de tu vs. você Concordância verbal com o pronome tu


Peso
Percentual Percentual Peso Relativo
Relativo
Florianópolis/SC 76% 0,32 43% 0,85
Ribeirão da Ilha/SC 96% 0,78 60% 0,91
Porto Alegre/RS 93% 0,61 7% 0,35
Região Sul
87% 40%
(sem Curitiba)

FONTE: Görski e Coelho (2012, p. 146)

Agora, a partir da análise feita e dos estudos realizados, classifique V para as


sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) O pronome de segunda pessoa do singular é um fenômeno variável que


se realiza por meio de duas variantes (tu e você), o que revela o término
de uma mudança linguística.
( ) A variante TU está encaixada na Região Sul (Florianópolis, Ribeirão da Ilha/
SC e Porto Alegre /RS), sendo a mais usada para expressar segunda pessoa
do singular, embora haja variação para VOCÊ em 13% das ocorrências.

88
( ) A variável de concordância verbal com o pronome TU tem como variantes
a presença de marca de concordância (tu vais, tu foste...) e ausência de
marca de concordância (ex.: tu vai, tu foi).
( ) A Região Sul (Florianópolis, Ribeirão da Ilha/SC e Porto Alegre /RS) parece
avaliar negativamente a ausência de marca de concordância verbal com o
pronome TU, impedindo uma mudança linguística de se completar.

3 Explique e exemplifique a afirmação “toda mudança linguística implica


variação, mas nem toda variação resulta em uma mudança linguística”.

4 Ao longo deste tópico, você conheceu os cinco problemas e princípios


empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística: I. Fatores
condicionantes; II. Encaixamento da variação; III. Avaliação das mudanças;
IV. Transição; V. Implementação. Relacione as colunas, indicando cada
problema com sua devida explicação:

I- Fatores condicionantes ( ) Estuda a atitude social quanto à variante


para a determinação de uma mudança
II- Encaixamento da variação linguística.
( ) Busca identificar os fatores linguísticos
III- Avaliação das mudanças e sociais como condicionantes para a
variação e mudança linguística.
IV- Transição ( ) Analisa por que uma mudança linguística
em certa estrutura ocorre em dado
V- Implementação momento, mas em outra língua não.
( ) A partir dos condicionantes, descreve a
variação e a mudança linguística em uma
comunidade de fala.
( ) Observa e descreve uma mudança
linguística em curso.

5 A metodologia de pesquisa na sociolinguística variacionista parte da


necessidade de utilizar como corpus de análise de dados de fala reais,
tratados qualitativa e quantitativamente. Nesta questão, gostaríamos de
propor a você a elaboração de quatro etapas de pesquisa, que você poderá
desenvolver com o acompanhamento de seu professor. Defina:

I- Seleção de um fenômeno linguístico variável.


II- Delimitação da comunidade de fala.
III- Reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em variação.
IV- Levantamento de hipóteses sobre as variáveis condicionadoras (linguísticas
e sociais).

6 A avaliação das variantes linguísticas é social e tem sido observada a partir


dos traços linguísticos graduais e descontínuos. Assinale a alternativa
CORRETA que apresenta um grupo de traços descontínuos:

89
a) ( ) Praca (placa); Escrevê (escrever).
b) ( ) Pexe (peixe); pobrema (problema).
c) ( ) Home (homem); Deiz (dez).
d) ( ) Arvre (árvore); Têia (telha).
e) ( ) Os Menino (os meninos); Oro (ouro).

7 (ENADE, 2014) Leia o texto a seguir.

Restos
Minha Nossa Senhora do Bom Parto! O caminhão do lixo já deve
ter passado! Eu juro, seu poliça, foi nessa lixeira aqui! Nessa mesminha! Eu
vim catar verdura, sempre acho umas tomate, umas cenoura, uns pimentão
por aqui. Tudo bonzinho, é só lavar e cortar os pedaço podre, que dá pra
comer… Aí quando eu puxei umas folha de alface, levei o maior susto.
Quase desmaiei, até.
Eu, uma mulher assim fornida que nem o seu poliça tá vendo,
imagina: fiquei de pernas bamba. Me deu até tontura. Acho que também
por causa do fedor… Uma carniça que só o senhor cheirando pra saber. Mas
eu juro por tudo que é mais sagrado! Tinha sim um anjinho morto nessa
lixeira! Nessa aqui! Coitadinho… Deve ter se esgoelado de tanto chorar.
A gente via pela sua carinha de sofrimento. Ele tava com a boquinha aberta,
cheinha de tapuru. Eu nem reparei se era menino ou menina, porque eu fiquei
morrendo de pena… E de medo, também… Os olho… É do que mais me
alembro… Esbugalhado, mas com a bola preta virada pra dentro, sabe? Ai!
Soltei um berro e saí correndo.”

FONTE: SERAFIM, L. Restos. In: SOUTO, A. Variação linguística e texto literário: perspectivas
para o ensino. Cadernos do CNLF, v. XIV, n. 4, t. 4, 2010, p. 3310 (com adaptações).

Considerando a variedade linguística utilizada pela personagem do texto,


analise as afirmativas a seguir:

I- A redução do verbo “estar”, como em “tá” e “tava”, é uma característica


evidenciada na fala de sujeitos escolarizados e não escolarizados.
II- A eliminação da marca de plural, como em “os pedaço” e “pernas bamba”,
é um traço das variedades linguísticas populares faladas e escritas.
III- A prótese do fonema /a/ em “alembro” é uma característica associada à
história da língua portuguesa.

É correto o que se afirma em:

a) ( ) I, apenas.
b) ( ) III, apenas.
c) ( ) I e II, apenas.
d) ( ) II e III, apenas.
e) ( ) I, II e III.

90
8 (ENADE, 2011)

'Praca cronada'
Ladrão de carros derrapa no Português
e é preso pela polícia por causa de uma
placa clonada

Disponível em: <http://www.xapeco.com.br/praca-cronada/> Acesso em: 19. ago. esp. 2011.

O caso é caracterizado na língua como rotacismo, ou seja, um processo de


mudança em que se emprega o /r/ no lugar de /l/ nos vocábulos. Embora seja
inadequado à norma padrão da língua, esse processo é bastante frequente
em variedades de menor prestígio social. Acerca desse tema, avalie as
informações a seguir:

I- As diferenças entre variedades da língua, como a exemplificada pelo


rotacismo, não devem ser consideradas mero fator de preconceito
linguístico; dado que este é um dos fatores que favorecem a unidade
linguística de uma comunidade.
II- O rotacismo é bem aceito por todos os falantes e é empregado de forma
ampla nos diversos grupos sociais, sendo uma das mudanças que se está
generalizando no português brasileiro.
III- O processo de rotacismo é decorrente de diferenças sociais recentes, que
estão permitindo o surgimento de dialetos paralelos ao português padrão
e utilizados por falantes em ascensão social.
IV- O processo de rotacismo não é novo na língua e já ocorria no período de
passagem do latim vulgar para o português, como no caso de /plicare/ > /
pregar/.

É CORRETO o que se afirma apenas em:


a) ( ) I e II.
b) ( ) I e IV.
c) ( ) II e III.
d) ( ) I, III e IV.
e) ( ) II, III e IV.

91
9 (ENADE, 2008)

Canção

Nunca eu tivera querido


Dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca
e depois no teu ouvido

Levou somente a palavra


Deixou ficar o sentido
O sentido está guardado
no rosto com que te miro
neste perdido suspiro
que te segue alucinado
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado

Nunca ninguém viu ninguém


que o amor pusesse tão triste
Essa tristeza não viste
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também.
FONTE: MEIRELES, C. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1993, p. 118.

Em qual das opções a seguir as duas palavras do texto estão sujeitas à redução
do ditongo, fenômeno frequente no português falado no Brasil?

a) ( ) “eu” e “bateu-me”.
b) ( ) “guardado” e “viu”.
c) ( ) “louca” e “beijo”.
d) ( ) “depois” e “sei”.
e) ( ) “ninguém” e “bem”.

10 (ENADE, 2008)
Com relação aos estigmas linguísticos, vários estudiosos contemporâneos julgam
que a forma como olhamos o "erro" traz implicações para o ensino de língua. A
esse respeito, leia a seguinte passagem, adaptada da fala de uma alfabetizadora
de adultos, da zona rural, publicada no texto Lé com Lé, Cré com Cré, da obra
O Professor Escreve sua História, de Maria Cristina de Campos. "Apresentei-
lhes a família do ti. Ta, te, ti, to, tu. De posse desses fragmentos, pedi-lhes que
formassem palavras, combinando-os de forma a encontrar nomes de pessoas
ou objetos com significação conhecida. Lá vieram Totó, Tito, tatu e, claro, em
meio à grande alegria de pela primeira vez escrever algo, uma das mulheres
me exibiu triunfante a palavra teto. Emocionei-me e aplaudi sua conquista e

92
convidei-a a ler para todos. Sem nenhum constrangimento, vitoriosa, anunciou
em alto e bom som: “teto é aquela doença ruim que dá quando a gente tem um
machucado e não cuida direito”.

O fenômeno sociolinguístico constituído pela passagem da proparoxítona


“tétano” para a paroxítona “teto”, na variedade apresentada, é observado
também no emprego de:

a) ( ) “figo” em lugar de fígado, e “arvre” em vez de árvore.


b) ( ) “paia” em lugar de palha, e “fio” em lugar de filho.
c) ( ) “mortandela” em lugar de mortadela, e “cunzinha” em vez de cozinha.
d) ( ) “bandeija” em lugar de bandeja, e “naiscer” em lugar de nascer.
e) ( ) “vende” em lugar de vender, e “cantá” em vez de cantar.

93
94
UNIDADE 2 TÓPICO 2

ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS


LINGUÍSTICAS

1 INTRODUÇÃO
Ao longo desta unidade, temos discutido os processos envolvidos no
estudo da variação e da mudança linguística. Além disso, depreendemos o
quão importante é compreender tais questões para que possamos chegar à
escola munidos de subsídios que nos auxiliem no trabalho com as diferentes
variedades faladas pelos alunos. O que vimos até o momento, contudo, leva
em conta a variação dentro de uma mesma língua. Neste tópico, ampliaremos a
discussão e partiremos para a reflexão sobre alternância de línguas, bilinguismo
e estratégias linguísticas, tópicos de discussão situados na macrossociolinguística
(ou sociologia da linguagem).

Dentre os vários fenômenos presentes nas interações linguísticas e


sociais, destacamos a alternância de línguas (em inglês code-switching). O code-
switching, fenômeno que consiste no uso de duas ou mais línguas, é considerado
um fenômeno linguístico natural, pois surge nas interações conversacionais de
pessoas bilíngues.

A alternância de línguas é compreendida como uma estratégia de adaptação


comunicativa, empregada de forma criativa pelos falantes bilíngues, por meio do
uso de uma ou de outra língua de acordo com os elementos particulares de cada
situação comunicativa.

No Tópico 2 desta unidade, apresentaremos alguns conceitos de


alternância de línguas, além de uma breve reflexão sobre estratégias linguísticas,
dialogando com as definições de bilinguismo, visto que este fenômeno emerge
das interações de sujeitos bilíngues. Com o intuito de enriquecer e ampliar a
nossa aprendizagem sobre este tema, que envolve uma mistura de línguas, e por
estarmos alinhados à sociologia da linguagem, apresentaremos também, neste
tópico, uma definição concisa de translinguagem, por ser um conceito que vem
sendo bastante discutido dentro do campo de pesquisas linguísticas e por divergir
das concepções encontradas na literatura científica sobre alternância de línguas.

95
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

E
IMPORTANT

Em português, code-switching pode ser traduzido por alternância de códigos ou


alternância de línguas. Neste livro, escolhemos usar o segundo termo (alternância de línguas),
tendo em vista a concepção de língua que embasa nosso trabalho, língua como prática social
e não enquanto código, assunto que abordaremos ainda de maneira mais ampla.

2 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS
Conforme mencionamos no início desta unidade, a alternância de línguas
é uma estratégia linguística em que o sujeito bilíngue insere itens lexicais (ou
sentenças inteiras) de duas ou mais línguas e dialetos.

Antes de falarmos sobre alternância de línguas, consideramos importante


apresentar a definição de bilinguismo a que nos alinhamos neste livro e nas
nossas práticas cotidianas. Entendemos o bilinguismo como um fenômeno
político-linguístico que envolve o uso de diferentes línguas e experiências
vivenciadas nessas línguas. A visão de bilinguismo que trazemos não se reduz
à somatória de duas línguas, isto é, primeira e segunda línguas. A visão de
bilinguismo que trazemos aborda todas as línguas que compõem o repertório do
falante, sendo essas línguas caracterizadas dentro de um contexto multilíngue.
Por isso, procuramos situar a construção do conceito de alternância de línguas
para chegarmos à translinguagem.

E
IMPORTANT

Compreendemos multilinguismo como um contexto no qual várias línguas,


dialetos e falares coexistem numa comunidade. É importante deixar claro que nem
sempre uma sociedade multilíngue possui falantes plurilíngues, visto que o multilinguismo
está relacionado com a língua, com a cultura e com os usos da língua, enquanto que o
plurilinguismo trata das habilidades linguísticas de um sujeito falar várias línguas.
Com relação aos conceitos “língua” e “dialeto”, que são melhores compreendidos dentro
da linguística, eles se aplicam a aspectos diferentes, embora estes termos não sejam
opostos. Entendemos língua como meio comum de comunicação entre pessoas de uma
comunidade, podendo ser modificada por seus falantes nativos. Diferente da concepção
estruturalista da língua de Saussurre e da concepção estritamente mentalista de Chomsky
– os quais estudam a língua sem considerar o contexto de uso –, compreendemos a língua
como um fenômeno ideológico e indissociável do seu contexto de uso. Já o dialeto é
entendido como uma língua realizada numa região específica, tratando-se de uma
variedade linguística, como uma realização da língua.

96
TÓPICO 2 | ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS

De acordo com Grosjean (1982, p. 145), a alternância de línguas diz


respeito ao “uso alternado de duas ou mais línguas no mesmo enunciado ou
interação”. Segundo o autor, uma única palavra, uma sentença ou mesmo várias
sentenças podem ser alternadas durante uma mesma interação conversacional.

A alternância de línguas tem sido descrita pelos pesquisadores como


algo natural e inerente à condição de falante de mais de uma língua. Durante
a conversação, os falantes bilíngues fazem escolhas linguísticas, observando as
vantagens e desvantagens de usar uma ou outra língua (GROSJEAN, 1982).

John Gumperz, um dos precursores do estudo de alternância de línguas,


define o fenômeno como “a justaposição dentro do mesmo fragmento de fala
de passagens pertencentes a dois sistemas ou subsistemas gramaticais distintos”
(GUMPERZ, 1982, p. 59). Para o autor, falantes bilíngues alternam as línguas
durante a comunicação e essa estratégia é parte central da interação entre os
indivíduos bilíngues.

No entanto, embora falantes bilíngues possam lançar mão de diversos


elementos linguísticos de diferentes línguas nas interações comunicativas,
constituindo tal ação como uma estratégia comunicativa, esta prática não se realiza
de forma casual, pois existem várias razões que fundamentam a alternância de
línguas (EMMOREY et al., 2008; GROSJEAN, 1982).

No quadro a seguir, apresentamos alguns motivos e/ou funções que levam


os falantes a alternarem as línguas nas interações comunicativas. Depois da leitura
do quadro, você encontrará explicações mais aprofundadas para esses fenômenos.

QUADRO 6 – ALGUNS MOTIVOS PELOS QUAIS AS PESSOAS ALTERNAM LÍNGUAS

Autores Como ocorre a alternância Motivo da alternância


Preenchimento lexical,
GROSJEAN citar alguém ou especificar o Transmitir intimidade,
(1982) interlocutor; aborrecimento, bem como marcar a
qualificar a mensagem, com o intuito de identidade com o grupo.
torná-la mais ampla ou com mais ênfase.
Excluir alguém da conversa;
Personalizar a mensagem, destacando o
incluir alguém na conversa;
GUMPERZ envolvimento do falante;
modificar o papel do falante;
(1982) citações;
interjeições,
especificação do interlocutor.
qualificação da mensagem.

FONTE: Adaptado de Grosjean (1982) e Gumperz (1982)

A seguir, apresentaremos alguns exemplos que envolvem preenchimento


lexical, marcação de identidade e interjeições presentes na alternância de línguas:

97
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

a) Preenchimento lexical em alternância de línguas inglês – português (OLIVEIRA,


2000, p. 70)
I felt so much saudade after he left.
(Eu senti tanta saudade depois que ele partiu.)

b) Marcação de identidade do grupo em alternância de línguas inglês – espanhol


(GUMPERZ; HERNÁNDEZ-CHAVEZ, 1978, p. 296)
a. Mulher: Well, I’m glad that I met you. OK?
b. (Bom, gostei de te conhecer. OK?)
Homem: Andale, pues, and do come again.
(OK, e volte novamente.)

c) Função de interjeição em alternância de línguas dinamarquês – turco


(JORGENSEN, 2005, p. 395)
a. Snak ordentlig jeg smadrer dig.
(Fale corretamente ou eu te bato)
b. Tamam. Jeg snakker meget ordentlig.
(OK. Eu falo muito corretamente.)

E
IMPORTANT

Um ponto que vale destacarmos é que as concepções de alternância de


línguas, hoje, sofrem críticas em diferentes campos da linguística, uma vez que a prática
linguística que alterna as línguas não se limita na soma de uma língua à outra (ou de
um elemento de uma língua à outra língua). Por isso, para lidarmos com as situações de
bilinguismo nas quais identificamos certa interferência entre as línguas, tratamos de práticas
translíngues (conceito que complementa a alternância de línguas), como veremos adiante.

Dependendo do contexto, monolíngue ou bilíngue, a alternância das


variantes pode ser menos ou mais complexa. Em situações monolíngues, o falante
pode alternar a variante da língua que utiliza de acordo com três variáveis. A
primeira acontece com base em fatores pragmáticos, dependendo sempre do cenário
e da situação que o sujeito está envolvido. A segunda, com base nos interlocutores,
isto é, idade, sexo, ocupação, status socioeconômico, origem, além de seus papéis
sociais em relação ao outro participante da interação. A terceira acontece de acordo
com o tópico da conversa entre os interlocutores (ERVIN-TRIPP, 1964).

Em contextos bilíngues, essa alternância é mais complexa, pois os aspectos


pragmáticos permitem que o indivíduo escolha, em cada situação interacional,
não somente por variantes de uma mesma língua, mas também por línguas
diferentes. Em situações bilíngues, os falantes podem variar o uso de acordo com
três variáveis, a saber:

98
TÓPICO 2 | ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS

I- O pertencimento do sujeito ao grupo. Isto envolve critérios como idade, sexo


e religião.
II- A relevância da situação, no tocante aos interlocutores, ao ambiente físico e
aos estilos do discurso dos participantes.
III- A relação com o tópico, pois dependendo do assunto, os falantes podem variar
na escolha das línguas.

E
IMPORTANT

É importante ressaltarmos que a escolha de uma língua pelo falante não ocorre
necessariamente em detrimento de uma outra. Conforme Grosjean (1982), esta escolha,
que acontece por meio ou não da alternância de línguas, se dá através de dois estágios que
envolvem falantes monolíngues e bilíngues:
I- No primeiro, o falante bilíngue, ao interagir com um monolíngue, escolhe inicialmente a
língua que usará na interação.
II- No segundo estágio, o falante bilíngue, que interage com outro falante bilíngue, decide,
mesmo que de maneira inconsciente, se vai ou não alternar entre as línguas.

Para clarificar esta proposição, apresentamos a figura a seguir, de acordo


com a proposta de Grosjean (1982):

FIGURA 3 – ESTÁGIOS DE ESCOLHA DE LÍNGUAS

Falante bilíngue em interação com

falante monolíngue falante bilíngue

utiliza utiliza Escolha da


Língua

L1 L2 L1 L2

com sem com sem Code-


code- code- code- code- Switching
Switching Switching Switching Switching

FONTE: Grosjean (1982, p.129)

A figura é composta por traços e parênteses para mostrar a interação de


falante monolíngue e bilíngue. Do lado esquerdo da figura, há a divisão e ligação
por meio de traços para indicar que o falante monolíngue fala a L1 e a L2 sem
alternar as línguas. No meio, existe uma imagem ligada por traços mostrando o
falante bilíngue, usuário de duas línguas, isto é, L1 e L2, e que faz uso ou não da
alternância de línguas.
99
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

Ao aprender uma segunda língua, vivenciamos diferentes situações com


e na língua que está sendo estudada. Uma das situações relacionadas com este
contexto de aprendizagem é a alternância de línguas, considerada um fenômeno
natural, que não deve ser confundida com erro ou ausência de conhecimento na
língua em estudo.

E
IMPORTANT

É importante ainda esclarecer que a alternância de línguas segue uma


concepção de uso das línguas de maneira hierárquica, ou seja, as línguas que o falante
aprende e usa são vistas como um somatório, por exemplo, L1+L2+L3. Na interação, o
falante decide e alterna a língua que fará parte da comunicação.

O profissional da área de Letras deve estar preparado para atuar e lidar


com a diversidade sociolinguística brasileira, uma vez que poderá atuar em
escolas situadas em contextos indígenas, de imigração e com a comunidade
surda. Esta experiência, certamente, desvelará, no uso da língua portuguesa, o
bilinguismo de seus falantes, que revela mais uma prática de translinguagem que
necessariamente uma alternância de línguas, como veremos adiante.

E
IMPORTANT

Enfatizamos também que o conceito de alternância de línguas trouxe


benefícios para os estudos sociolinguísticos, mas hoje são problematizados quando
pensamos nas práticas linguísticas de maneira mais ampla, isto é, quando pensamos na
diversidade linguística presente na sociedade, que se traduz por meio dos muitos falares e
usos das línguas.

A seguir, apresentaremos o conceito de bilinguismo e de translinguagem


como definições que divergem do conceito de alternância de línguas.

100
TÓPICO 2 | ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS

2.1 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS E BILINGUISMO


Desde o início da nossa discussão neste tópico, estamos citando o
termo “bilíngue” ou “falantes bilíngues”. Afinal, qual o conceito de bilíngue?
Responderemos esta questão partindo de concepções distintas de bilinguismo
defendidas por diferentes linguistas: Bloomfield, Grosjean e García.

Bloomfield (1979) define o bilinguismo como a junção de duas línguas,


como uma somatória de dois monolíngues, o que problematizamos nos estudos
da linguística aplicada e sociologia da linguagem. Para Grosjean (1982), em
contrapartida, o bilíngue é o indivíduo que usa duas ou mais línguas em sua
vida cotidiana, e este uso muda de acordo com os diferentes domínios da vida,
como a casa, a universidade, a interação com familiares e amigos. Um falante
brasileiro de guarani (língua indígena) e português brasileiro, por exemplo,
dificilmente utilizaria a língua guarani na universidade, embora possa ser a língua
que melhor atenda suas realidades interacionais na esfera familiar ou religiosa.

García (2009) apresenta um conceito de bilinguismo que se aproxima ao de


Grosjean (2010) e, por conseguinte, se distancia de Bloomfield (1979): o bilíngue
é alguém que possui um repertório de diferentes línguas e tem experiências
diversas em cada uma delas. Para a autora, os falantes bilíngues não têm
simplesmente dois recipientes externos com duas línguas (como parece entender
Bloomfield), mas um repertório linguístico maior, um sistema de linguagem,
com características que interagem entre si para impulsionar os desempenhos
linguístico e cognitivo (GARCÍA, 2009).

Observe que as definições de Grosjean, com ênfase na definição de García,


divergem da concepção de alternância de línguas, estudada anteriormente.
Isto porque o conceito de García e Grosjean, o qual defendemos neste material
didático, não se refere ao falante bilíngue como alguém que intercala as
línguas nas interações – como aparece na alternância de línguas. Ao contrário,
o falante faz uso das diferentes línguas do seu repertório sem monitorar ou
hierarquizar a língua em uso.

O que isto quer dizer? É que existe uma diferença marcante entre a
alternância de línguas e a translinguagem, que é a pressuposição de que
as línguas envolvidas na alternância são sistemas autônomos e distintos.
Translinguagem se refere a construções linguísticas criativas por parte dos
falantes bilíngues na produção e negociação de sentido para atingir seus
propósitos comunicativos (GARCÍA, 2009).

101
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

E
IMPORTANT

Na perspectiva das práticas translíngues, o falante pode adotar recursos


linguísticos de diferentes comunidades, sem que tenha que comprovar uma competência
“perfeita” nas línguas que estão em uso, ou seja, ele pode “misturar” as diferentes línguas
que conhece sem se preocupar em falar “bem” a língua em uso.

Todo falante bilíngue carrega marcas do seu bilinguismo e isso não


significa dizer que ele fala alguma das línguas de forma errada, ele está apenas
realizando práticas de translinguagem com as línguas que conhece. Como
exemplo, trazemos os descendentes de imigrantes alemães no Brasil que utilizam
expressões que são comuns nas construções sintáticas alemãs para a produção
de sentenças em língua portuguesa, tais como: (i) Preciso estudar para as provas
finais uma vez; ou uso de léxico de uma língua em outra devido ao valor distintivo
que apresenta (ii) Eu gosto de chimia de ovo no meu pão.

E
IMPORTANT

É importante não confundir a translinguagem com a simples alternância entre


as línguas que o falante conhece. Para García (2009), as alternâncias de línguas referem-
se às alternâncias de línguas nomeadas. A definição externa de quais línguas devem ser
faladas ou de quais línguas devem ser alternadas é dada pelos estados e pelos sistemas
escolares. Enquanto que a translinguagem incide sobre as estratégias de negociação de
sentidos, e não unicamente sobre as formas estruturais da língua.

Neste livro didático, partimos do pressuposto de que as perspectivas das


práticas translíngues não invalidam o conceito de alternância de línguas – recurso
produtivo e estratégico nos estudos de bilinguismo –, mas o complementa,
compreendendo que a grande diferença entre estas concepções reside no conceito
de “língua” que subjaz a essas definições. A alternância de línguas alinha-se à
concepção de língua como um sistema abstrato, isto é, um sistema homogêneo
e fixo, enquanto que a prática translíngue alinha-se à concepção de língua como
prática social, ou seja, a língua é vista como heterogênea, fluida e os aspectos
culturais, sociais dos falantes são considerados.

102
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Dentre os vários fenômenos presentes nas interações linguísticas e sociais,


apresentamos a alternância de línguas (em inglês code-switching) como um
fenômeno linguístico natural, que surge nas interações conversacionais de
pessoas bilíngues, no uso de duas ou mais línguas.

• Apresentamos também, de acordo com Grosjean (1982) e Gumperz (1982),


alguns motivos e/ou funções que levam os falantes a alternarem as línguas
nas interações comunicativas, bem como alguns exemplos que envolvem
preenchimento lexical, marcação de identidade e interjeições presentes na
alternância de línguas.

• O conceito de alternância de línguas é um recurso produtivo e estratégico nos


estudos de bilinguismo, mas o conceito de translinguagem o complementa.

• Atrelado a estes aspectos acerca da alternância das línguas, destacamos dois estágios
que envolvem falantes monolíngues e bilíngues: I. o primeiro voltado à interação
de um falante bilíngue com um monolíngue, que escolhe inicialmente a língua que
usará na interação; II. segundo estágio, voltado à interação do falante bilíngue com
outro falante bilíngue, que decide, mesmo que de maneira inconsciente, se vai ou
não alternar entre as línguas em uma interação comunicativa.

• Trouxemos algumas definições de bilinguismo, a começar com a de


Bloomfield (1979), que conceitua o termo como a somatória de duas línguas
(BLOOMFIELD, 1979). Apresentamos também outra concepção, com a qual
nos alinhamos: a de Grosjean (2010) e a de García (2009).

• Grosjean (2010) afirma que o bilíngue é o indivíduo que usa duas ou mais línguas
em sua vida cotidiana, e este uso muda de acordo com os diferentes domínios da
vida, como a casa, a universidade, a interação com familiares e amigos.

• Somada à visão de Grosjean, destacamos a de García (2009), que assevera


que o bilíngue é alguém que possui um repertório de diferentes línguas e
tem experiências diversas em cada uma delas. Os falantes bilíngues não têm
simplesmente dois recipientes externos com duas línguas, mas um repertório
linguístico maior, com características que interagem entre si para impulsionar
os desempenhos linguístico e cognitivo.

103
• Em complementação à definição de alternância de línguas, apresentamos, de
maneira sucinta, o conceito de translinguagem, que se refere às construções
linguísticas criativas, recursos linguísticos, por parte dos falantes bilíngues na
produção e negociação de sentido para atingir seus propósitos comunicativos,
sem a preocupação de possuir uma competência “perfeita” no uso da língua
(GARCÍA, 2009).

104
AUTOATIVIDADE

1 A partir do texto apresentado, você pôde conhecer alguns temas relacionados


à área de ensino de línguas e seus usos. Para auxiliar sua aprendizagem
nessa disciplina, montamos para você um roteiro de leitura, com o qual você
poderá registrar suas inferências a partir das seguintes perguntas:

a) O que você compreendeu sobre alternância de línguas e quais as razões que


conduzem os falantes a esse fenômeno?
b) De acordo com o que estudamos nesse tópico, descreva uma situação de
alternância de línguas que você poderia presenciar na escola.
c) De acordo com Fishman (1965), em situações bilíngues, os falantes podem
variar o uso da alternância de línguas de acordo com três variáveis. Quais
são essas variáveis?
d) Qual o conceito de bilíngue apresentado no texto, de acordo com García (2009)?
e) Qual a diferença entre translinguagem e alternância de línguas?

105
106
UNIDADE 2 TÓPICO 3

O MITO DO MONOLINGUISMO

1 INTRODUÇÃO
No tópico anterior, apresentamos alguns conceitos de alternância
de línguas, dialogando com as definições de bilinguismo e translinguagem,
uma vez que consideramos que este fenômeno é oriundo e está presente nas
interações de sujeitos bilíngues.

Apresentamos também algumas razões que levam os falantes bilíngues a


alternarem os usos das línguas nas práticas de translinguagem. Este uso, de caráter
heterogêneo, nos mostra que diferentes grupos sociais fazem uso de diversas
línguas e, respectivamente, possuem diferentes culturas, identidades e ideologias.

Diante de uma realidade linguística composta por várias línguas e


diversos falantes dessas línguas, refletiremos, neste tópico, sobre o mito do
monolinguismo, isto é, a ideia ainda presente de que existe uma única língua
nos contextos sociais, bem como as ideologias subjacentes a este mito. Vamos
iniciar a nossa reflexão?

2 O MITO DO MONOLINGUISMO NO BRASIL


O Estado brasileiro, por muito tempo, estabeleceu um ideário nacional
fundamentado em uma única língua, falada de uma única maneira (a língua
portuguesa), e uma identidade comum aos brasileiros, atribuindo destaque ao
mito ou à crença do monolinguismo, desconsiderando, consequentemente, todas
as outras línguas, culturas e identidades existentes no país.

O mito do monolinguismo, historicamente estabelecido no Brasil,


ressalta o preconceito, o desconhecimento da realidade e um projeto político
de se construir um país com uma língua legítima (OLIVEIRA, 2000). Os fatos
subjacentes à concepção histórica e ideológica de que no Brasil se fala uma única
língua trazem a ideia de que a unidade nacional só seria possível numa base
unilíngue, o que possibilitaria aos falantes da língua portuguesa uma convivência
amigável e harmoniosa, visto que se entenderiam perfeitamente. Para Bagno e
Rangel (2005, p. 77):

107
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

A história da formação da sociedade brasileira revela o empenho


constante, por parte das camadas sociais dominantes, de criar
a imagem de um país monolíngue, onde todos os habitantes se
entendem perfeitamente e vivem, por isso, em total harmonia. O mito
da língua única, para se constituir, exigiu ao longo da história uma
política linguística essencialmente autoritária, consubstanciada em
medidas repressoras […].

Essa concepção política homogeneizante e repressora de imposição


do português como única língua legítima do país é refutada nos dias atuais
pelas comunidades linguísticas brasileiras, por meio de ações, instrumentos e
políticas que enfatizam a legitimação das línguas dessas comunidades, sejam elas
indígenas, línguas de sinais, de fronteiras ou dos imigrantes.

Com o advento da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos


(UNESCO, 2006), as comunidades linguísticas ganharam uma proteção
internacional importante, que toma como ponto de partida as comunidades
e não os Estados. A Declaração concebe que uma organização linguística
deve estar baseada no respeito, na diversidade, na convivência e no benefício
recíproco, manifestando-se contrária aos interesses próprios do Estado e da
comunidade linguística que queira prevalecer sobre outra, pois “baseia-se no
princípio de que os direitos de todas as comunidades linguísticas são iguais
e independentes do seu estatuto jurídico ou político como línguas oficiais,
regionais ou minoritárias” (Art. 5 º).

Com relação ao conceito de comunidade linguística, a Declaração a define


como toda sociedade humana historicamente situada em um território geográfico
estabelecido, seja ele reconhecido ou não, que se autoidentifica como povo e
que desenvolve uma língua compartilhada entre seus membros como meio de
comunicação natural e coesão cultural entre eles, determinando, desta forma,
uma territorialidade geográfica e simbólica para a língua da comunidade.

Artigo 1º
Esta Declaração entende por comunidade linguística toda sociedade
humana que, assentada historicamente em um espaço territorial
determinado, reconhecido ou não, se autoidentifica como povo e
desenvolve uma língua comum como meio de comunicação natural e
coesão cultural entre seus membros. A denominação língua própria de
um território faz referência ao idioma da comunidade historicamente
estabelecida neste espaço (UNESCO, 2006, s.p.).

108
TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO

DICAS

Você sabe quantas línguas são faladas no Brasil? O INDL (Inventário Nacional
de Diversidade Linguística) se ocupa com a identificação, documentação, reconhecimento
e valorização das línguas faladas pelos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira. Dentre os diferentes setores da sociedade atuantes para inclusão das línguas
como patrimônio cultural do Brasil, estão as Universidades, que, especialmente por meio de
pesquisas da pós-graduação, levantam os dados sociolinguísticos dos diferentes cenários
nacionais. Acesse o portal do INDL e saiba mais sobre a diversidade de línguas faladas no
nosso país. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/indl.

Dados sobre a existência da diversidade linguística e cultural no Brasil


podem ser notados através da presença de diferentes línguas no país, pois há, em
média, mais de 200 línguas atualmente (OLIVEIRA, 2000), sejam elas indígenas,
crioulas, de imigração e línguas de sinais. Essa diversidade enfraquece o mito
do monolinguismo, fomenta a necessidade de discussão e o reconhecimento
do caráter multilíngue do país, bem como destaca a importância de políticas e
planejamentos linguísticos que conscientizem a população brasileira desse status
e propiciem o conhecimento de diferentes línguas, além de uma identificação
linguística e cultural com a língua de acesso.

Quando se fala em diversidade linguística, muitas vezes, se pensa na


diversidade interna à própria língua portuguesa, das variações presentes na
língua, o que decorre, entre outras razões, do predomínio, no país, do mito de
que aqui só se fala português (embora seja de fato a língua oficial do país). No
entanto, cada vez mais, vemos que as sociedades contemporâneas estão sendo
ocupadas e alteradas por um fluxo intenso de textos, línguas e culturas, recursos
dos quais as pessoas fazem uso para interagir socialmente.

2.1 UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO SOBRE O MITO


DO MONOLINGUISMO
No Brasil, ainda, tem-se difundido a ideologia do monolinguismo
(CAVALCANTI, 1999), ou seja, a crença de que os brasileiros falam uma única
língua. Neste sentido, as línguas dos grupos minoritários (as línguas de sinais,
línguas indígenas, línguas de migração) são vistas como fora de um padrão, por
se contraporem aos ideais nacionalistas.

109
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

E
IMPORTANT

De acordo com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,


a Ciência e a Cultura), a língua oficial é a língua utilizada no quadro das diversas atividades
oficiais, isto é, as atividades legislativas, executivas e judiciais de um estado soberano ou
território. A língua regional é a língua falada em uma determinada região ou localidade.
Línguas minoritárias são as consideradas desprestigiadas, tais como as línguas indígenas, as
de sinais, as línguas de imigrantes.

A concepção de língua única é oriunda principalmente de dois fatos


históricos importantes do país, a saber: (i) a administração do Marquês de Pombal,
por volta de 1750 e (ii) período da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937-1945.
Com relação ao Marquês de Pombal, este acreditava que a língua indígena tupi-
guarani poderia ser uma ameaça aos colonizadores e também uma forte barreira
para a constituição de um único povo. De igual maneira, Getúlio Vargas defendia
a proibição do uso das línguas trazidas pelos imigrantes que vinham para o Brasil,
como uma ameaça à identidade nacional.

DICAS

Para conhecer mais sobre as políticas de silenciamento linguístico do período


ditatorial de Getúlio Vargas, assista ao documentário “Sem Palavras”, disponibilizado na
plataforma YouTube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=2WMUGVvRdQA.

A diversidade linguística sempre esteve presente na história do Brasil.


Apesar deste fato, os governos sempre difundiram e reforçaram na sociedade a
visão de um país monolíngue e homogêneo. Estas visões, presentes até hoje na
sociedade, fomentam o preconceito linguístico com relação às línguas minoritárias
(línguas de sinais, línguas indígenas, de imigração), bem como as variedades
linguísticas presentes na língua portuguesa, impondo como aceitável apenas o
uso do português padrão ou de um português idealizado.

110
TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO

E
IMPORTANT

Para a sociolinguística, o termo “heterogêneo” caracteriza a língua como um


fenômeno variável e dinâmico, considera, ainda, a variabilidade social e as diferenças no uso das
variantes linguísticas correspondentes às diversidades dos grupos sociais. O termo “homogêneo”,
por sua vez, considera a língua como um sistema fechado, fixo, com regras categóricas.

Com relação à compreensão do que vem a ser o preconceito linguístico,


veja a tirinha a seguir:

FIGURA 4 – PRECONCEITO LINGUÍSTICO

FONTE: <https://redacaonline.com.br/blog/tema-de-redacao-preconceito-linguistico/>.
Acesso em: 15 nov. 2019.

A imagem foi escolhida para exemplificarmos e refletirmos sobre uma


atitude de preconceito linguístico. O homem, ao falar para a mulher a palavra
“pobrema” numa situação de conquista amorosa, causou nela espanto e
resistência de prosseguir a conversa, por ele não seguir uma norma padrão e fixa
da língua portuguesa. A fala do homem revela a realidade brasileira no tocante à
diversidade linguística e social.

Marcos Bagno, autor do livro “Preconceito linguístico”, faz uma forte


reflexão e crítica ao mito do monolinguismo e destaca o quanto é prejudicial
para a sociedade, pois apaga a diversidade linguística no Brasil e fixa, nas escolas
brasileiras, a ideia do erro quando os falantes falam ou escrevem diferente da
norma padrão do português. A escola, por sua vez, acaba sendo um local de
normalização e imposição de uma língua comum, quando não considera o falante
juntamente à sua origem geográfica, idade, cultura, grau de escolaridade etc.

111
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

FIGURA 5 – LIVRO “PRECONCEITO LINGUÍSTICO”, DE MARCOS BAGNO

FONTE: <https://www.amazon.com.br/Preconceito-Lingu%C3%ADstico-Cole%C3%A7%C3%A3o-
que-Como/dp/8515018896>. Acesso em: 18 ago. 2019.

DICAS

Embora o tema ‘preconceito linguístico’ seja retomado e aprofundado na


Unidade 3, você já pode procurar por referências de leitura. O livro “Preconceito linguístico”
é uma importante referência para ampliar a compreensão e discussão sobre o preconceito
linguístico no Brasil. Nessa obra, o autor traz discussões e propostas das ciências da
linguagem e da educação, além de apresentar um discurso em favor de uma educação
linguística voltada para a inclusão social e para o reconhecimento e a valorização da
diversidade cultural.

112
TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO

2.2 IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS MONOLÍNGUES E LÍNGUA


COMO PRÁTICA SOCIAL
O breve panorama histórico que apresentamos na seção anterior mostra
que a constituição da concepção de língua única sempre esteve relacionada com o
movimento colonial e suas aspirações políticas. Da Monarquia à República, sempre
foi fomentada a construção, bem como o fortalecimento do monolinguismo,
mesmo diante da diversidade linguística no Brasil.

Essas “crenças, ou sentimentos sobre as línguas como são usadas em seus


mundos sociais” (KROSKRITY, 2004 apud LOPES, 2013) são um dos conceitos de
ideologia linguística que problematizamos e que correspondem ao que estamos
discutindo sobre a hegemonia da língua portuguesa em relação às outras línguas
presentes na sociedade brasileira.

Compreendemos também como ideologia linguística “quaisquer


conjuntos de crenças sobre a língua articulados pelos usuários como uma
racionalização ou justificação de estrutura e uso linguístico percebidos”
(SILVERSTEIN, 1979, p. 193). Ao observarmos as visões preconcebidas sobre a
língua portuguesa em que se excluem as suas variedades, percebemos que existe
uma concepção de uma única língua padrão na fala, desprestigiando os outros
falares que fogem do que é considerado correto.

Um outro exemplo de crença e de ideologia linguística presente no Brasil


é a visão sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Embora reconhecida como
língua da comunidade surda brasileira, pela Lei nº 10.436/2002 e regulamentada
pelo Decreto nº 5626/2005, muitas vezes ela não é vista como uma língua, mas como
mímica, conjuntos de gestos e pantomimas ou como uma língua inferior ao português.

Além disso, existem, com relação às línguas de sinais, alguns mitos


recorrentes (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 31), que conferem a elas um estatuto
linguístico inferior às línguas orais, a saber:

Haveria uma única e universal língua de sinais usada por todas as


pessoas surdas. A língua de sinais seria uma mistura de pantomima
e gesticulação concreta, incapaz de expressar conceitos abstratos.
Haveria uma falha na organização gramatical da língua de sinais que
seria derivada das línguas de sinais, sendo um pidgin sem estrutura
própria, subordinado e inferior às línguas orais.

113
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

FIGURA 6 – LIVRO “LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA: ESTUDOS LINGUÍSTICOS”, DE RONICE


MULLER DE QUADROS E LODENIR BECKER KARNOPP

FONTE: <https://www.amazon.com.br/L%C3%ADngua-Sinais-Brasileira-Estudos-
Ling%C3%BC%C3%ADsticos-ebook/dp/B016UWFVSW>. Acesso em: 18 ago. 2019.

DICAS

O livro “Estudos Linguísticos” é uma das obras mais importantes sobre a Língua
Brasileira de Sinais, pois as autoras descrevem detalhadamente os aspectos linguísticos em
todos os níveis, desmistificando várias ideologias sobre as línguas de sinais.

E
IMPORTANT

Pidgin é uma língua nascida do contato de outras línguas. Ela é criada de forma
espontânea, a partir da mistura de duas ou mais línguas, servindo de apoio e comunicação
para os falantes dessas línguas.

114
TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO

Podemos citar também a ideologia sobre a língua espanhola no Brasil,


vista como uma língua “parecida” ao português, portanto, “fácil” de ser falada
pelos lusófonos. Além disso, muitos consideram que o espanhol “correto” é o
falado na Espanha, em detrimento das múltiplas variedades da língua dentro da
própria Espanha e dos países hispanofalantes.

Os conceitos apresentados sobre ideologia linguística, somados aos


respectivos exemplos, nos mostram que a ideia de monolinguismo se associa
a uma visão de língua única, pura e rígida, não aceitando a fluidez, os aspectos
sociais, culturais e históricos que influenciam na fala e interação dos sujeitos.
Conforme Blommaert (2014, p. 71):

[...] uma ideologia especializada em que a diversidade desconcertante


que caracteriza a língua real em contextos reais (“fala”) pode ser
reduzida a apenas um punhado de formas e regras que organizam
as combinações de tais formas [...] que as regras são tudo o que há na
língua, são “a língua” e ponto final.

DICAS

O texto “A ideologia do pan-hispanismo e o ensino do Espanhol no Brasil” é um


texto relevante para a discussão de ideologias sobre a língua espanhola no Brasil.
FONTE: <https://docplayer.com.br/32967368-A-ideologia-do-panhispanismo-e-o-ensino-
do-espanhol-no-brasil.html>. Acesso em: 18 ago. 2019.

Contrapondo a ideologia monolíngue, apresentamos uma visão que


busca desconstruir essa concepção totalizante de língua, ao considerar o falante
como um agente da e na língua, levando em conta os aspectos sociais, culturais,
históricos, ideológicos que o constroem enquanto sujeito, e que não se dissociam
da língua em uso.

Heller (1999) enfatiza a necessidade de mudar a visão sobre as línguas como


sistemas autônomos e mover a sua concepção para discussões que privilegiem a
língua como prática social, os falantes como atores sociais e as diferentes línguas
envolvidas nas interações.

Como prática social, entendemos que a língua se constitui no uso e nas


interações dos falantes (GARCÍA, 2009; PENNYCOOK, 2010). Consideramos que
a língua é um produto das atividades sociais e culturais nas quais as pessoas se
envolvem (PENNYCOOK, 2010).

115
UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS

Falar da língua como prática social é considerar o que acontece em um


lugar particular e em momentos específicos, nos quais os falantes fazem uso de
uma variedade de recursos semióticos do seu repertório linguístico, produzindo
significados diversos (PENNYCOOK, 2010).

Esta visão de linguagem, como prática social, não só difere da concepção


que considera a língua um instrumento de comunicação, vista como única e
fixa, como também destaca a importância de direcionarmos o nosso olhar para a
heterogeneidade e diversidade das línguas nas interações sociais.

116
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• O mito do monolinguismo, historicamente estabelecido no Brasil, que ressalta


o preconceito, o desconhecimento da realidade e um projeto político de se
construir um país com uma língua legítima, é oriundo de dois fatos históricos
importantes do país, a saber: (i) a administração do Marquês de Pombal, por
volta de 1750 e (ii) o período da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937-1945.

• Ideologia linguística pode ser compreendida como qualquer conjunto de


crenças sobre a língua articuladas pelos usuários como uma racionalização
ou justificação de estrutura e uso linguístico percebidos, e que a ideologia
monolíngue se associa a uma visão de língua única.

• O conceito de prática social se contrapõe ao de ideologia monolíngue e se


constitui no uso e nas interações dos falantes, sendo um produto das atividades
sociais e culturais nas quais as pessoas interagem.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

117
AUTOATIVIDADE

1 Na sua opinião, o contexto acadêmico tem sido um espaço de discussões e


reflexões sobre preconceito linguístico? Descreva.

2 O que você entendeu sobre ideologias linguísticas? Explique apresentando


exemplos.

3 Diante da concepção de língua como prática social, explique por que


a ideologia monolíngue não se sustenta. Traga exemplos que deem
sustentação à sua resposta.

118
UNIDADE 3

CONTRIBUIÇÕES DA
SOCIOLINGUÍSTICA PARA A
EDUCAÇÃO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• retomar a sociologia da linguagem para refletir sobre o papel do


multilinguismo brasileiro e das línguas em contato na educação linguística;
• refletir sobre os tipos de variedades linguísticas para a compreensão da
heterogeneidade da língua portuguesa na educação básica;
• discutir o tratamento dado à variação linguística nos materiais didáticos
de língua portuguesa;
• discutir o conceito de preconceito linguístico frente aos comportamentos
e atitudes sobre as línguas e seus falantes;
• introduzir o debate sobre política e planificação linguísticas.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles, você encontrará dicas,
textos complementares, observações e atividades que lhe darão maior
compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA

TÓPICO 2 – AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS


E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS
FALANTES

TÓPICO 3 – POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

119
120
UNIDADE 3
TÓPICO 1

O TRATAMENTO DAS VARIEDADES


NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 3 da primeira unidade, vimos que a pedagogia culturalmente
sensível corresponde ao trabalho com as diferenças culturais em contexto escolar,
no qual cabe à professora ou ao professor de língua portuguesa identificar a
variação linguística presente na sala de aula para conscientizar o estudante sobre
as diferenças linguísticas.

Neste tópico da Unidade 3, veremos que a pedagogia culturalmente


sensível depende do tratamento dado à gramática em sala, às variações
linguísticas e ao preconceito linguístico. Entendemos, pois, que as aulas de
língua portuguesa, sob uma abordagem científica acima da normativa, precisa
direcionar para a investigação dos fenômenos presentes na língua portuguesa
não só idealizada em determinados manuais gramaticais, mas utilizada pelos
falantes dessa língua. Essa prática, como observamos, é importante para o
desenvolvimento da competência comunicativa e sociolinguística do aluno.

Também traremos à discussão, neste primeiro tópico, o tratamento


dado à variação linguística nos livros didáticos de língua portuguesa, como
os conceitos de norma e variação são abordados e de que forma buscam
conscientizar estudantes da educação básica acerca da heterogeneidade da
língua. Pronto para iniciar?

2 A GRAMÁTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA


Ao longo da nossa conversa, vimos a importância sobre ultrapassarmos
a noção de que a língua portuguesa, enquanto disciplina escolar, visa ao
estudo exclusivo da gramática normativa, de uma forma descontextualizada e
fragmentada. Nesse sentido, o estudo sobre regra gramatical continua, mas abrindo
possibilidade para diferentes abordagens (como é o caso da abordagem descritiva
da língua). Apesar da aparente “tranquilidade” que a abordagem normativa-
prescritiva representa para a maioria dos estudantes, pais e professores, sob uma
falsa ideia de que sozinha possa garantir “um bom desempenho comunicativo”,
vale considerarmos que é a descrição do uso real da língua que tem possibilitado
a reflexão sobre as regras que regem seu “funcionamento”.

121
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

E
IMPORTANT

Faz parte do ensino da língua, na escola, o ensino de gramática, que não


necessariamente precisará tomar um viés normativo, cuja função única seja de identificar
erros e acertos nos usos linguísticos. Além disso, o ensino de gramática não se restringe ao
ensino das nomenclaturas gramaticais, como ainda veremos nesta seção.

Mais importante que classificar palavras, frases, períodos “como se fossem


coisas autônomas, com leis próprias e independentes de suas condições de uso”
(ANTUNES, 2007, p. 75), é reconhecer o funcionamento das regras gramaticais
da língua oral e escrita. Por conseguinte, esperamos que o estudante possa
refletir que em situações de maior monitoramento, especialmente na escrita,
as construções linguísticas poderiam (ou deveriam) ser diferentes da situação
corriqueira de fala (ANTUNES, 2007).

DICAS

Para saber mais sobre a fala e a escrita, recomendamos que assista ao vídeo
do linguista brasileiro Luiz Antônio Marcuschi, do Departamento de Letras – CEEL UFPE.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOzoVHyiDew.

Considerando o que já estudamos, a concepção de que a língua é imutável


ou inflexível é mítica, pois a língua assume variações, embora o falante não tenha
total liberdade de escolha sobre essas variações (há condicionantes sociais e
linguísticos para a variação).

E é por isso que as línguas são sistemas complexos. É que elas são
providas de um componente – digamos – mais fixo que flexível [esse
componente seria as regras gramaticais], e de outro mais flexível que
fixo, à disposição do usuário, na dependência de mil e um fatores
constituintes da situação de interação. Por exemplo, em português, a
posição do artigo faz parte daquele componente rígido: vem sempre
antes do substantivo; ou ainda, o artigo e o demonstrativo nunca vêm
juntos, como em O este livro. Mas, muita coisa na língua se situa naquela
zona de oscilação, cuja escolha por uma ou outra forma cabe ao usuário
(por exemplo, Meu livro ou O meu livro, porcentagem ou percentagem).
Alguém, ainda, dependendo da situação, pode optar por usar um
adjetivo no superlativo (lindíssima) ou, para surtir o mesmo efeito,
repetir o adjetivo, como em Ela é linda, linda! (ANTUNES, 2007, p. 72).

122
TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

E
IMPORTANT

Conforme pontua Antunes (2007, p. 72, grifos nossos), “todos os usos da


língua são submetidos à aplicação de regras”, sejam eles pertencentes à norma padrão
ou às diversas variedades linguísticas faladas por distintas comunidades. Por isso, insistimos
que trabalhar com regras gramaticais na escola significa estudar normas que “regulam
os usos que as pessoas fazem [da língua], nos mais diferentes contextos e com as mais
diferentes finalidades” (ANTUNES, 2007, p. 72).

Além disso, vale alertá-lo, caro acadêmico, que nem sempre a noção de
regra gramatical está clara nos materiais didáticos de língua portuguesa. Por isso,
nesta disciplina de sociolinguística, procuramos lhe dar subsídios para reconhecer
as regras gramaticais que se fazem presentes na língua portuguesa padrão e suas
variedades.

Sobre essa questão, a linguista brasileira Irandé Antunes (2007) adverte


acerca da confusão entre o estudo da regra gramatical e da nomenclatura
gramatical nas atividades pedagógicas em língua portuguesa, inclusive em livros
didáticos. Segundo a autora, “quando alguém está explorando as terminologias e
nomenclaturas das diferentes classes de palavras, é comum ficar a impressão de
que se está estudando gramática” (ANTUNES, 2007, p. 69), embora esteja apenas
observando “rótulos, nomes das unidades da gramática” (ANTUNES, 2007, p. 70).

A promoção de atividades de análise e reflexão de regras gramaticais


contempla o estudo das normas que especificam os usos da língua, sejam eles
constituintes das variedades linguísticas mais prestigiadas ou não. Ao estudante,
nesse contexto, é oportunizado o exercício de observação de regularidades da
língua em diferentes níveis (fonético-fonológico, morfológico e suas interfaces,
sintático, semântico, pragmático), e não sua mera classificação.

Antunes (2007, p. 71) exemplifica algumas regras da gramática do


português:

- deixar o verbo na primeira pessoa do singular se o sujeito da oração


se refere à pessoa que fala (Eu gosto de ouvir música brasileira);
- pôr o artigo antes do substantivo (o livro);
- usar o presente do indicativo como núcleo do predicado em
definições e verdades universais (O homem é um animal racional.);
(O homem é mortal);
- deixar sem flexão de gênero ou de número os pronomes indefinidos
alguém, ninguém, tudo, nada, algo;
- alterar a forma dos substantivos para indicar flexão de gênero (o
gato; a gata);
- usar o demonstrativo aquele (e suas flexões) se a coisa referida está longe
(Aquela casa é a casa onde moro) (ANTUNES, 2007, p. 71, grifos nossos).

123
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Há uma tendência de os livros didáticos, nos tópicos de estudo sobre


gramática, evitarem contemplar as questões gramaticais que admitem variação
(ANTUNES, 2007), fixando-se apenas nos modelos linguísticos idealizados.
Essa prática acaba privando o estudante de reconhecer que as regras admitem
mudanças e variações, o que, segundo Antunes (2007), se evidencia ainda mais
pela dificuldade de abrir mão de normas cristalizadas, como a regência do verbo
assistir com preposição (assistir ao jogo). De maneira geral, a regência com a
preposição “a” do verbo “assistir” não costuma ser usada nem por pessoas mais
escolarizadas. O mesmo se poderia dizer sobre o uso de pronomes oblíquos
no início de frases ou sobre o estudo do pronome “vocês” como pronome de
tratamento, ao invés de ser levado em conta como um pronome que, no Brasil,
assume o lugar de “vós”.

Parece existir, nesses exemplos sobre vós e vocês, sobre a regência do


verbo assistir, entre outros, certa dificuldade em se reconhecer que as mudanças
linguísticas já aconteceram e que, como afirma Antunes (2007), de alguma maneira
são irreversíveis.

E
IMPORTANT

Diferentemente do estudo sobre as regras gramaticais que orientam o uso


da língua em diferentes contextos, também precisamos do estudo da nomenclatura
gramatical na escola, mas não para um fim em si mesma. O estudo da nomenclatura
gramatical é importante para a abordagem científica dada à língua, a fim de possibilitarmos
a identificação, de forma bem-sucedida, dos elementos gramaticais que estão sendo
estudados. Cada ciência possui um “conjunto de termos com os quais se refere às coisas
de seu campo” (ANTUNES, 2007, p. 78), e, com o estudo da língua não poderia ser diferente.

Estudar as nomenclaturas, portanto, não significa estudar regras (já que


elas não regem padrão algum) ou estudar a própria norma padrão. Estudar as
nomenclaturas implica reconhecer os nomes que as unidades da gramática têm
para que funcionem como um recurso para a descrição das regras gramaticais
(ANTUNES, 2007). Logo, os exercícios de língua portuguesa que solicitam apenas
a identificação de substantivos, verbos, preposições, entre outras unidades da
gramática, não são suficientes para que o estudante reflita e compreenda sobre os
mecanismos que constituem os usos linguísticos, embora sejam importantes para
nomeá-los de alguma forma.

124
TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Você já deve ter percebido, até este ponto das suas leituras, que a disciplina
de sociolinguística não está aqui para tirar o espaço que ocupa a norma padrão de
uma língua como registro oficial, mas de oportunizar o estudo da língua dentro
das suas variedades. Para isso, é importante manter o diálogo com as disciplinas
do campo gramatical, sem excluir as influências sociais sobre a variação. Continue
sua leitura para saber mais sobre o tratamento dado à variação linguística nos
livros didáticos de língua portuguesa.

3 A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE


LÍNGUA PORTUGUESA
Como vimos, há críticas levantadas acerca das atividades que constituem
os livros didáticos de língua portuguesa na educação básica com relação à
confusão entre estudo de regras gramaticais e de nomenclaturas, ou falta de ênfase
na variação linguística. No entanto, a qualidade desses materiais é crescente,
especialmente a partir da instituição do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), oportunizando às escolas selecionarem a coleção que melhor atender às
necessidades educacionais dos seus estudantes.

NOTA

Os livros didáticos são escritos no PNLD pelos detentores de direitos autorais,


conforme critérios estabelecidos em edital e aprovados em avaliações pedagógicas
coordenadas pelo Ministério da Educação, contando com a participação de Comissão
Técnica específica, integrada por especialistas das diferentes áreas do conhecimento
correlatas. Esses materiais didáticos distribuídos pelo MEC às escolas públicas de educação
básica do país são escolhidos pelas próprias escolas.

FONTE: <http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=12391:pnld>. Acesso em:


9 out. 2019.

E
IMPORTANT

É importante destacarmos que o tratamento da variação linguística nos livros


didáticos tem se manifestado cada vez mais. Parece haver, de fato, um avanço quanto à
inclusão do debate sobre preconceito linguístico e diversidade nos livros didáticos, embora
continuem com alguns problemas que merecem reflexão.

125
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

A gente percebe, em muitas obras, uma vontade sincera dos autores


de combater o preconceito linguístico e de valorizar a multiplicidade
linguística do português brasileiro. Mas a falta de uma base teórica
consistente e, sobretudo, a confusão no emprego dos termos e dos
conceitos prejudicam muito o trabalho que se faz nessas obras em
torno dos fenômenos de variação e mudança (BAGNO, 2007, p. 119).

A confusão teórica a qual Bagno (2007) faz referência é a troca conceitual


de norma culta e norma padrão, é a necessidade de constituir entendimento de
que há variação nos diferentes níveis da língua, de que variação não é apenas
regional ou de baixa escolaridade, de que no Brasil se falam várias línguas.
Observe, prezado acadêmico, que estes são conteúdos que você foi estudando ao
longo de toda a disciplina de sociolinguística.

Bagno (2007) explica essas questões dentro de dois principais


problemas dos livros didáticos com relação à variação linguística (quando
ela aparece no livro):

1- A tendência de tratar da variação linguística como sinônimo somente de


variedades regionais, rurais ou de pessoas não escolarizadas.
2- A prática de propor exercícios de reescrita da norma estigmatizada para a
norma padrão ou “culta”.

NOTA

“Em termos sociológicos, estigma é um julgamento bastante negativo, que os


grupos sociais hegemônicos fazem sobre os grupos subalternos, seja por seu modo de ser,
por sua cultura e, obviamente, por sua língua” (BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA, 2013, p. 47).

Com relação ao primeiro problema, Bagno (2007) entende haver uma


falsa suposição de que “os falantes urbanos e escolarizados usam a língua de
modo mais “correto”, mais próximo do padrão, e que no uso que eles fazem
não existe variação” (BAGNO, 2007, p. 120). Essa compreensão é resultado
das relações de poder estabelecidas na sociedade, que abrem caminho para
o julgamento das variedades de falantes urbanos, normalmente de status
socioeconômico mais alto, como as formas da língua mais “corretas” (mesmo
não correspondendo à norma padrão) quando comparadas às variedades de
falantes rurais, com baixo status socioeconômico.

Por isso, Bagno (2007) reconhece que muitos livros didáticos insistem em
apresentar como exemplos de variação linguística uma tirinha do personagem
Chico Bento (de Maurício de Sousa), um poema de Patativa do Assaré ou o
samba de Adoniran Barbosa, isto é, textos literários que apresentam de forma
estereotipada os falares menos urbanos para fins de marcações socioculturais.
126
TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

NOTA

Conheça um poema de Patativa do Assaré e um samba de Adoniran Barbosa:

Coisas do Meu Sertão Samba do Arnesto

Patativa do Assaré Adoniran Barbosa

Seu dotô, que é da cidade O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Tem diproma e posição Nós fumos, não encontremos ninguém
E estudou derne minino Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Sem perdê uma lição, Da outra vez, nós num vai mais
Conhece o nome dos rios, Nós não semos tatu!
Que corre inriba do chão, O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Sabe o nome de estrela Nós fumos, não encontremos ninguém
Que forma constelação, Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Conhece todas as coisa Da outra vez, nós num vai mais
Da história da criação No outro dia encontremo com o Arnesto
E agora qué i na Lua Que pediu desculpas, mas nós não aceitemos
Causando admiração, Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa
Vou fazê uma pergunta, Mas você devia ter ponhado um recado na porta
Me preste bem atenção: O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Pruque não quis aprendê Nós fumos, não encontremos ninguém
As coisa do meu sertão? Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez, nós num vai mais
Por favô, não negue não No outro dia encontremo com o Arnesto
Quero que o sinhô me diga Que pediu desculpas, mas nós não aceitemos
Pruquê não quis o roçado Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa
Onde se sofre de fadiga, Mas você devia ter ponhado um recado na porta
Pisando inriba do toco, Um recado assim ói: “Ói, turma, num deu pra esperá
Lacraia, cobra e formiga, Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância
Cocerento de friêra, Assinado em cruz porque não sei escrever”
Incalombado de urtiga, Arnesto
Muntas vez inté duente,
Sofrendo dô de barriga,
Mas o jeito é trabaiá
Que a necessidade obriga.
[...]

FONTE:
Coisas do Meu Sertão: Patativa do Assaré.
SILVA, A. G. da. Cante lá, que eu canto cá. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
Samba do Arnesto: Adoniran Barbosa.
<https://www.vagalume.com.br/adoniran-barbosa/samba-do-arnesto.html>. Acesso em: 9
out. 2019.

127
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Esses exemplos comumente encontrados em livros didáticos retratam as


variedades mais estigmatizadas, o que pode ser um indicativo, para os estudantes
da educação básica, de que variação só acontece nas camadas sociais de menor
escolaridade, de área mais rural. Além disso, esses textos não representam
verdadeiramente variedades linguísticas do português brasileiro, uma vez que
intentam produzir literatura como manifestação lúdica, artística (BAGNO, 2007).

Bagno (2007) exemplifica o problema do uso inadequado dos trabalhos


criativos em materiais didáticos com a análise de uma sentença retirada da
fala de Zé Lelé na tirinha da Turma da Mônica: “SORRIAM QUI EU VÔ TIRÁ
O RETRATO!”

FIGURA 1 – CHICO BENTO

FONTE: SOUSA, M. de. Turma da Mônica. In: CRUZ, A. G. C. da et al. A variação fonológica:
metaplasmos em tiras de HQs. Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA
– UENP/CJ. <https://docplayer.com.br/4276744-A-variacao-fonologica-metaplasmos-em-tiras-
de-hqs.html>. Acesso em: 9 out. 2019.

Ora, na tentativa de reproduzir o falar caipira, foram usadas as grafias


QUI, VÔ e TIRÁ. Mas desde quando essas pronúncias são exclusivas
das variedades rurais? Em todo o português brasileiro, a palavra
que escrevemos QUE é pronunciada [ki], porque a redução da vogal
átona final E em [i] é uma regra categórica da nossa língua, isto é,
não apresenta variação – como ocorre em BODE, DENTE, FACE,
GENTE, ELE, ME e em milhares e milhares de outras palavras. Tanto
é assim, que em alguns (poucos) casos em que ele vem devidamente
enfeitado com um acento circunflexo: QUÊ – nesses casos, não se trata
mais da não útil palavra gramatical que pode ser pronome, conjunção,
advérbio, preposição etc., mas sim de um substantivo (HAVIA UM
QUÊ DE MISTÉRIO NO OLHAR DE MARINALVA) ou uma interjeição
(O QUÊ?! TODO MUNDO FOI EMBORA?) (BAGNO, 2007, p. 121).

128
TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

NOTA

São em poucas regiões do país onde se preserva a pronúncia do “E” nas


sílabas átonas finais (BODE, DENTE, FACE, GENTE, ELE), como no oeste do estado de Santa
Catarina, por exemplo.

O que procuramos questionar, aqui, em conformidade com Bagno (2007),


é a marca gráfica QUI para reproduzir a fala de Chico Bento ou do Zé Lelé, mas
nunca da Mônica, ou da Magali, crianças de áreas urbanas. As crianças brasileiras
de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, e outras cidades grandes
(BAGNO, 2007) pronunciam, assim como Chico Bento e Zé Lelé, a elevação de
“e” para “i” em sílabas finais átonas – QUI para QUE, DENTI para DENTE etc.
No entanto, a variação linguística é marcada na escrita apenas para as crianças
de zonas rurais, implicando a falsa ideia de que para as outras crianças, de zonas
urbanas, não há variação linguística.

Precisamos relembrar, como bem sinaliza Bagno (2007), que o problema


não está nos textos literários, como de Maurício de Sousa, mas nos nossos
usos descontextualizados desses textos como material pedagógico para o
ensino da variação linguística. Como vimos na primeira unidade deste livro de
sociolinguística, o estudo da variação se dá através de representações reais de
falas, e não fictícias.

As opções gráficas empregadas no Chico Bento, nos sambas de


Adoniran e nos poemas de Patativa têm como única finalidade
criar uma atmosfera peculiar, inserir o leitor/ouvinte num universo
social e cultural diferente daquele que vem convencionalmente
representado pela ortografia oficial, o universo urbano letrado.
Nenhum compromisso com o rigor da pesquisa científica (ainda
bem!) (BAGNO, 2007, p. 123).

Uma dica pedagógica do sociolinguista Marcos Bagno (2007), ao se


deparar com representações de falas como esta da HQ da Turma da Mônica no
material didático de língua portuguesa, é levantar com os estudantes da educação
básica as mesmas reflexões que foram aqui levantadas: Por que será que o autor
optou por representar QUI para QUE, VÔ para VOU, TIRÁ para TIRAR? Será
que essas marcas linguísticas são representativas apenas das comunidades rurais
ou também se fazem presentes nas falas mais urbanas?

129
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Até aqui, vimos o primeiro principal problema identificado por


Bagno (2007) nos livros didáticos de língua portuguesa: a tendência de
tratar da variação linguística como sinônimo de variedades regionais, rurais
ou de pessoas não escolarizadas. O segundo problema, como mencionado
anteriormente, se refere à prática de propor exercícios de reescrita da norma
estigmatizada para a norma padrão ou “culta”. Nesse sentido, diante de uma
representação da fala de Chico Bento, por exemplo, haveria uma atividade de
reescrita da fala para a “norma culta”.

Nesse tipo de atividade, vale destacar, há um problema conceitual, pois


o termo “norma culta” abarca as variedades prestigiadas de uma língua, e não
necessariamente a norma padrão. Além disso, esse tipo de atividade pode se revelar
como preconceito linguístico, uma vez que discrimina o falar rural, solicitando que
seja corrigido de alguma forma. “Se existe algum trabalho pedagógico interessante a
ser feito com Chico Bento, é precisamente o de valorizar as diferenças socioculturais
que o personagem tenta encarnar” (BAGNO, 2007, p. 123).

A conscientização da variação linguística numa pedagogia culturalmente


sensível não se dá por meio da correção, mas da identificação de que a variação
ocorre em todos os estratos e situações sociais. Logo, é dentro de textos (orais ou
escritos) do próprio estudante que o uso da norma padrão ou monitoramento da
fala deve ser exigido, por meio do exercício de adequação linguística.

DICAS

Bagno (2007) sugere trabalhar, em sala de aula, com variedades linguísticas


autênticas. Por isso, indica como uma fonte de fácil acesso o portal do Museu da Língua
Portuguesa na internet (www.museudalinguaportuguesa.org.br), que possui amplo material
para pesquisa e estudo acerca da língua falada e língua escrita. Alguns links que podem ser úteis:

• http://museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2017/09/menas.pdf.
• http://museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Saber-uma-
li%CC%81ngua-e%CC%81-separar-o-certo-do-errado.pdf.
• http://museudalinguaportuguesa.org.br/estacao-educativo/biblioteca/lingua/.
• http://museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2017/10/Projetos-
cienti%CC%81ficos-sobre-o-portugue%CC%82s-brasileiro.pdf.

130
TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LEITURA COMPLEMENTAR

Recortamos um trecho do Capítulo 6 (A variação linguística nos livros


didáticos) do livro “Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
linguística”, escrito por Marcos Bagno. Esta leitura pode servir como um
instrumento de análise crítica e reflexiva acerca do tratamento dado pelos livros
didáticos (LD) aos fenômenos da variação e da mudança linguísticas, por meio de
um roteiro composto por dez questões.

UM ROTEIRO PARA ANALISAR OS LIVROS DIDÁTICOS

1- O livro didático trata da variação linguística?


Essa é a pergunta principal, porque se o LD não tratar de variação
linguística em nenhum momento, ele já se revela fora de sintonia com as
propostas mais avançadas de educação em língua materna, até mesmo no
que diz respeito às diretrizes oficiais de ensino. Se for esse o caso, e se você
considerar que, em outros aspectos, o LD faz um bom trabalho e merece ser
utilizado, então caberá a você elaborar por conta própria uma boa abordagem
dos fenômenos de variação. [...]

2- O livro didático menciona de algum modo a pluralidade de línguas


que existem no Brasil?
Por causa da formação histórica da sociedade brasileira, uma formação
marcada por toda sorte de violência e de autoritarismo, existe na nossa cultura
o mito muito poderoso do monolinguismo. Todo o discurso que circula na
sociedade carrega a noção de que ser brasileiro é sinônimo de ser falante de
português. O Brasil, no entanto, está na pequena lista dos oito países que
abrigam no seu território metade das línguas faladas no mundo (os outros
sete são, pela ordem, Índia, Indonésia, Papua Nova Guiné, Nigéria, Camarões,
México e Austrália, com o Brasil no oitavo lugar). Se considerarmos que existem
cerca de 6.000 línguas no planeta, metade delas são faladas nesses oito países,
sendo quase 1.000 só na Índia!
Das quase 210 línguas que coexistem com o português, cerca de 190 são
línguas indígenas (um décimo do total de línguas que se falava no território
brasileiro no início da colonização), usadas por um total de mais ou menos 300
mil descendentes dos primeiros habitantes do território – sobreviventes de uma
longa história de extermínio sistemático praticado durante os quatro séculos de
colonização e, em boa medida, perpetuada até hoje na forma de uma situação
social de extrema indigência e de exclusão absoluta. [...]
Além das línguas indígenas, convivem com o português brasileiro quase 20
línguas de origem europeia e asiática, trazidas pelos imigrantes que se estabeleceram
no Brasil desde o início do século XIX, logo após a independência (1822). [...]
Nos quase 16.000 quilômetros de fronteiras terrestres com os países
vizinhos, o português brasileiro vive em contato com outras línguas, sobretudo
com o espanhol, falado em sete dos dez países limítrofes. [...]

131
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

O plurilinguismo brasileiro sempre foi silenciado, inclusive por meio


de ações violentas, como proibições formais, massacres de povos indígenas,
legislações que condenavam à prisão quem falasse outras línguas etc. É uma pena
que toda essa história permaneça oculta e que a escola continue preservando o
mito do monolinguismo que, para piorar, foi construído na ilusão de que o Brasil
é um “milagre” linguístico porque todos os brasileiros se entendem perfeitamente
num território maior do que a Europa ocidental [...]

3- O tratamento se limita às variedades rurais e/ou regionais?


Os livros didáticos mais vendidos no Brasil são escritos e produzidos, em
sua maioria, na região Sudeste (com predomínio no estado de São Paulo) e, em
menor medida, na região Sul (com predomínio do Paraná), sempre por autores
vinculados à cultura das grandes cidades. Com isso, pela própria origem social dos
autores, as variedades linguísticas mais representadas nessas obras são as urbanas
dessas regiões. O “diferente”, o “exótico”, o “pitoresco” será inevitavelmente o
que vier de fora, o Outro, o que não fizer parte daquele universo sociocultural,
que acaba sendo considerado (enganosamente) “neutro”, “normal”, “comum”.
É por isso que, no tratamento da variação linguística, esses livros quase
unanimemente recorrem a exemplos das variedades rurais de suas próprias
regiões (em geral exemplos não autênticos, como o Chico Bento) ou de variedades
de outras regiões brasileiras. Desse modo, como os LD produzidos no Sudeste-
Sul são adotados em todo o território nacional, o usuário da obra didática é
levado a acreditar que o seu modo de falar, por não estar representado no livro, é
“estranho” ou “errado”. [...]
Tudo isso deve ser analisado e devidamente criticado, para que o trabalho
na escola não reproduza os mesmos estereótipos e as mesmas discriminações que
vigoram na sociedade em geral.

4- O livro didático apresenta variantes características das variedades


prestigiadas (falantes urbanos, escolarizados)?
Essa é uma pergunta que, infelizmente, até agora, só tem podido ser
respondida de forma negativa. Mesmo os livros didáticos que conseguem tratar
da variação linguística de maneira relativamente satisfatória acabam deixando
de lado as variedades urbanas, por causa do prestígio socialmente conferido à
fala dos cidadãos urbanos mais letrados, fica a ilusão de que eles se comportam
linguisticamente de acordo com as prescrições da gramática normativa. Isso se
revela na confusão terminológica entre “norma culta” e “norma padrão”, tomadas
como sinônimos, quando de fato não são, numa perspectiva científica rigorosa.
Atenção: não abordaremos as variedades prestigiadas com a intenção de
denunciar os “erros” e os “abusos” que “até mesmo” os falantes escolarizados
cometem contra a língua! [...] Mostrar que ocorre variação em todas as camadas
sociais ajuda a gerar a consciência de que a língua é essencialmente heterogênea,
variável e mutante, e que não existe nenhum grupo social que fale mais “certo”
ou mais “errado” do que outro e que, principalmente, a gramática normativa não
encerra a verdade eterna, última e absoluta sobre a língua.

132
TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

5- O livro didático separa a norma padrão da norma culta (variedades


prestigiadas) ou continua confundindo a norma padrão com uma variedade
real da língua?
Esse é um dos maiores problemas da abordagem da variação linguística,
não só nos livros didáticos, mas também em muitos trabalhos acadêmicos sobre
questões sociolinguísticas – o problema da terminologia.
Só para lembrar: O PEDRO, EU CONHEÇO ELE MUITO BEM é um
exemplar da norma culta brasileira (variedades prestigiadas), porque todos os
falantes brasileiros urbanos e altamente escolarizados usam o pronome ELE
como objeto direto. Esse uso, no entanto, não é acolhido pela tradição normativa,
portanto, não faz parte da norma padrão.
Por isso, como também já dissemos, não faz muito sentido usar termos
como variedade padrão, língua padrão, dialeto padrão, porque o padrão não é
variedade, nem língua, nem dialeto – para tratar de variedade, língua e dialeto,
é preciso que existam pessoas de carne e osso falando essa variedade, língua
ou dialeto, e ninguém fala (nem escreve) o padrão, nem no máximo grau de
monitoramento estilístico. Como o próprio nome diz, é um padrão, um modelo
idealizado (e muito ideologizado). [...]

6- O tratamento da variação ao livro didático fica limitado ao sotaque e


ao léxico, ou também aborda fenômenos gramaticais?
É muito frequente, nos materiais didáticos, a abordagem da variação
linguística se restringir a fenômenos que poderíamos chamar de superficiais: o
sotaque e o léxico. [...]
Muito frequente também é o tratamento da variação se limitar a
comparar sotaque e léxico do português brasileiro e do português europeu,
sem se aprofundar nas questões mais importantes para o ensino no Brasil e
transformando a variação linguística, ainda que involuntariamente, numa lista
de coisas engraçadas e curiosas [...].
Existe um nível mais profundo de variação linguística que em geral é
pouco abordado: a variação morfossintática. [...]
Na tarefa de inserção do aprendiz no mundo da leitura e da escrita, o
reconhecimento das diferenças que existem entre a gramática das variedades
estigmatizadas, a gramática das variedades prestigiadas e a norma padrão é
indispensável. Um único exemplo, o do paradigma da conjugação verbal, basta
para demonstrar isso:

VARIEDADES VARIEDADES
NORMA-PADRÃO
+ESTIGMATIZADAS +PRESTIGIADAS
eu FALO eu FALO eu FALO
você [tu] você tu FALAS
ele ele FALA ele FALA
FALA
a gente [nós] a gente nós FALAMOS
eles nós FALAMOS vós FALAIS
vocês eles FALAM
FALAM
eles

133
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

[...]

7- O livro didático mostra coerência entre o que diz nos capítulos


dedicados à variação linguística e o tratamento que dá aos fatos de gramática?
Ou continua, nas outras seções, a tratar do “certo” e do “errado”?
[...]
Assim, para analisar a coerência do tratamento da variação linguística no
LD, é preciso não se limitar ao capítulo ou unidade que aborda especificamente
esses temas, mas também investigar o trabalho que ele faz na obra com relação ao
ensino de gramática.
É incoerente pedir respeito e tolerância diante da variação linguística e
dizer, nos exercícios de gramática, que usar o pronome ELE como objeto direto
é um “erro”, ou que o pronome VOCÊ é apenas uma “forma de tratamento”, ou
que é “proibido” iniciar frases com pronome oblíquo, ou que não se pode dizer
EU CUSTO A CRER, mas somente CUSTA-ME CRER... [...]

8- O livro didático explicita que também existe variação entre fala e


escrita, ou apresenta a escrita como homogênea e a fala como lugar de erro?
[...]
Entre a fala mais espontânea e a escrita mais monitorada existe um
amplo contínuo de gêneros textuais que representam as realizações empíricas da
língua nas interações sociais. [...] No mundo contemporâneo, com o surgimento
da comunicação virtual, por meio do computador, a separação entre o que é
tipicamente falado e o que é tipicamente escrito se torna cada vez mais fluida – é
só pensar que um bate-papo na internet se faz por meio de sinais escritos... [...]

9- O livro didático aborda o fenômeno da mudança linguística? Como?


[...] exatamente como no tratamento da variação, é muito frequente
limitar a abordagem da mudança às questões de vocabulário. Mal dá para contar
quantas vezes aparece, em LD, a crônica “Antigamente” de Carlos Drummond de
Andrade, para tratar de palavras e expressões que não são mais usadas hoje em
dia...
Seria muito bom se os livros começassem a dar exemplos de textos antigos
para mostrar que a língua mudou, não só no léxico, mas principalmente na sua
gramática, nas regras que fazem a língua funcionar como funciona. [...]

10- O livro didático apresenta a variação linguística somente para dizer


que o que vale mesmo, no fim das contas, é a norma padrão?
Essa é uma forma muito sutil de preconceito linguístico: abordar a variação
linguística, mostrar que a língua é heterogênea para, no final, insistir na preservação
de um modelo idealizado de língua, de um padrão normativo extremamente rígido
e conservador. [...]

FONTE: BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São
Paulo: Parábola Editorial, 2007. p. 125-139.

134
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• O ensino de gramática faz parte do ensino da língua, mas não deve se restringir
à abordagem normativa-prescritiva.

• O estudo das regras gramaticais permite identificarmos que a língua possui


componentes mais fixos (ex.: posição do artigo faz parte daquele componente
rígido: vem sempre antes do substantivo) e mais flexíveis (ex.: Meu livro ou O
meu livro, porcentagem ou percentagem).

• Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras, sejam eles


pertencentes à norma padrão ou às diversas variedades linguísticas faladas
por distintas comunidades. Por isso, atividades de análise e reflexão de
regras gramaticais precisam contemplar essa realidade em diferentes níveis
(morfológico e suas interfaces, sintático, semântico, pragmático).

• Estudar a nomenclatura gramatical não é o mesmo que estudar as regras


gramaticais. A nomenclatura gramatical é importante para a abordagem
científica dada à língua, a fim de possibilitar a identificação dos elementos
gramaticais em estudo com sucesso.

• O tratamento da variação linguística nos livros didáticos tem se manifestado


cada vez mais, embora necessite de aprofundamento.

• Há livros didáticos que ainda realizam confusões teóricas com relação


à norma culta e norma padrão, além de realizarem algumas confusões ao
entendimento de que há variação nos diferentes níveis da língua, de que
variação não é apenas regional ou de baixa escolaridade, de que no Brasil
se falam várias línguas.

• Há dois principais problemas dos livros didáticos com relação à variação


linguística (isto quando ela aparece no livro): 1. A tendência de tratar da
variação linguística como sinônimo somente de variedades regionais, rurais
ou de pessoas não escolarizadas; 2. A prática de propor exercícios de reescrita
da norma estigmatizada para a norma padrão ou “culta”.

135
AUTOATIVIDADE

1 (ADAPTADO DO ENADE, 2011)


No excerto a seguir, encontram-se algumas atividades propostas em livro
didático de língua portuguesa:
Atividades com trecho do poema O operário em construção, de Vinícius de Moraes.
Proposta:
[...]
2- Aponte todos os substantivos presentes no texto.
3- Aponte um substantivo abstrato presente no texto.
4- Aponte um substantivo concreto presente no texto.
5- Qual é o único substantivo presente no texto que admite uma forma para o
masculino e outra para o feminino?
6- Há, no texto, algum substantivo próprio? Em caso afirmativo, aponte-o.

AZEVEDO, D. G. Palavra e criação: língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1996. v. 8, p. 102
(com adaptações).

Sobre as atividades, assinale V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s)


falsa(s):

( ) As atividades revelam um contexto de aprendizagem acerca das regras


gramaticais da norma padrão da língua portuguesa.
( ) As atividades usam o poema como recurso e pretexto para trabalhar com
os alunos tópicos de gramática, ignorando aspectos mais relevantes.
( ) A proposta apoia-se em atividades que representam uma confusão sobre o
conhecimento da nomenclatura gramatical com o aprendizado da língua e
suas regras gramaticais.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) V – V – V.
c) ( ) F – V – V.
d) ( ) F – F – V.

2 Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras, sejam eles


pertencentes à norma padrão ou às diversas variedades linguísticas faladas
por distintas comunidades. No entanto, existem regras gramaticais que
pertencem a componentes mais fixos e outras a mais flexíveis. Diante dessas
considerações, leia as sentenças a seguir:

I- A mesa é branca.
II- A gente comprou uma mesa branca.

136
Explique o componente fixo destacado na sentença I e o componente flexível
destacado na sentença II.

3 O ensino de gramática faz parte do ensino da língua, mas não deve se


restringir à abordagem normativa-prescritiva, já que ao estudante deve ser
oportunizado estudar a língua em uso. Diante disso, analise as sentenças
a seguir:

I- O estudo de regras gramaticais significa priorizar a norma padrão na escola.


II- As atividades de identificação da nomenclatura gramatical explicam as
regras da norma padrão da língua e outras variedades.
III- As regras gramaticais evidenciam que há componentes fixos e flexíveis
na língua.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Apenas a sentença III está correta.
b) ( ) Todas as sentenças estão corretas.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças II e III estão corretas.

4 Você viu que o estudo das regras gramaticais faz parte do estudo da
língua. Por isso, não pode ser ignorado na escola. No entanto, também
deve-se ter cuidado para não se confundir estudo das regras gramaticais e
estudo das nomenclaturas gramaticais. Explique a diferença entre regras e
nomenclaturas gramaticais.

5 Dentro da abordagem descritiva da língua, é possível realizarmos a descrição


de qualquer variedade linguística, reconhecendo suas regras gramaticais.
Nesse sentido, explique a afirmação: todos os usos da língua são submetidos
à aplicação de regras.

6 O tratamento da variação linguística nos livros didáticos tem se manifestado


cada vez mais, embora necessite de aprofundamento. Leia o texto a seguir
e marque V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s) falsa(s),
considerando os estudos realizados até o momento nesta disciplina:

Coisas do Meu Sertão

Patativa do Assaré

Seu dotô, que é da cidade


Tem diproma e posição
E estudou derne minino
Sem perdê uma lição,
Conhece o nome dos rios,
Que corre inriba do chão,
Sabe o nome de estrela

137
Que forma constelação,
Conhece todas as coisa
Da história da criação
E agora qué i na Lua
Causando admiração,
Vou fazê uma pergunta,
Me preste bem atenção:
Pruque não quis aprendê
As coisa do meu sertão?

( ) O texto é uma boa representação de variação linguística para atividades


de identificação e conscientização, uma vez que permite reescrita para a
norma culta.
( ) A omissão do R em “fazê” pode ser discutida nas aulas de língua portuguesa
como marca de variação linguística urbana.
( ) O uso do texto literário para o estudo de variação linguística constitui em
uma prática pedagógica recomendável, uma vez que permite exemplificar
a realidade da língua portuguesa.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V.
b) ( ) F – V – F.
c) ( ) V – F – F.
d) ( ) V – V – F.

138
UNIDADE 3
TÓPICO 2

AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS
COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM
RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

1 INTRODUÇÃO
No tópico anterior, vimos alguns elementos importantes sobre o ensino
de gramática na escola e os problemas que, de modo geral, aparecem nos livros
didáticos de língua portuguesa para a educação básica, apesar da melhora crescente
que apresentam ao tratamento destinado ao estudo da linguagem. No presente
tópico, traremos a você algumas considerações sobre as línguas de contato,
levando em conta que dificilmente você irá se deparar com uma sala de aula
inteiramente monolíngue. Nesse contexto, conceitos sobre diglossia, sabir, pidgin,
línguas crioulas, línguas veiculares serão levantados para a nossa conversa.

Também pretendemos retomar o estudo sobre as variedades linguísticas,


a fim de introduzirmos o que é dialeto, socioleto, etnoleto, cronoleto, idioleto.
Esses conceitos, pois, contribuem para a concepção de que não há língua sem
variação. Logo, são importantes para desconstruirmos os mitos acerca da
homogeneidade da língua portuguesa no Brasil. Por isso, é importante que você,
futuro professor, conheça e compreenda esses conceitos.

Em seguida, no âmbito da variação linguística, trazemos à discussão os


comportamentos e atitudes acerca das línguas, suas variedades e seus falantes,
bem como o preconceito linguístico. Vamos iniciar mais esta etapa de estudos?

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LÍNGUAS EM CONTATO


Antes de iniciarmos nossa conversa acerca dos comportamentos e atitudes
sobre as línguas e seus falantes, é importante abordarmos alguns conceitos
vinculados a situações do multilinguismo, frequentemente ignoradas em
políticas educacionais, e à presença da variação linguística (que é inevitável) na
própria língua portuguesa. Conforme o sociolinguista francês Louis-Jean Calvet
pontua, o multilinguismo faz com que as línguas estejam constantemente em
contato, e “o lugar desses contatos pode ser o indivíduo (bilíngue, ou em situação
de aquisição) ou a comunidade. E o resultado dos contatos é um dos primeiros
objetos de estudo da sociolinguística” (CALVET, 2002, p. 35).

139
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

No Brasil, como você viu na Unidade 2, construiu-se um mito do


monolinguismo, pautado na concepção de que aqui só se fala português. No
entanto, pesquisas no âmbito da sociolinguística (e/ou sociologia da linguagem)
e da linguística aplicada desvelam um cenário bem diferente. Oliveira (2000), cujo
trabalho se destaca no campo das políticas linguísticas para o multilinguismo,
sinaliza para as mais de 200 línguas faladas no Brasil. Essas línguas, por
conseguinte, geram uma situação sociolinguística complexa, uma vez que não
só interferem na variação linguística em língua portuguesa, mas também nas
práticas de translinguagem, nos empréstimos e interferências (como já estudado
na Unidade 2). Nesse sentido, é importante olharmos para a formação linguística
de uma comunidade considerando também alguns outros conceitos da
sociolinguística, tais como: línguas aproximativas (como as línguas veiculares,
o crioulo, o pidgin e o sabir) e a diglossia, como resultado do contato linguístico.

As línguas veiculares consistem naquelas utilizadas em situação de contato


entre os falantes que mutuamente desconhecem a língua um do outro (CALVET,
2002). A língua veicular, portanto, é utilizada com o intuito de possibilitar a
comunicação entre pessoas que não partilham da mesma língua vernácula.

NOTA

Vernáculo consiste em um termo utilizado para a língua que representa o


Estado, a nação, ou para as variedades linguísticas populares (variedades vernáculas), como
é o português popular brasileiro.

Imagine, como exemplo de língua veicular, um refugiado sírio que chega


ao Brasil sem falar português e procura estabelecer diálogo com brasileiros que
não falam árabe. Para se compreenderem, esses interlocutores tentarão utilizar
uma terceira língua que conheçam, como a língua inglesa, por exemplo. Nesse
sentido, por meio de uma língua veicular, conseguiram encontrar uma forma de
conversarem entre si.

140
TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

NOTA

A língua inglesa, nesse contexto, não é a língua materna dos falantes que
precisam estabelecer comunicação mesmo desconhecendo a língua um do outro. No
entanto, é a primeira língua de alguma outra comunidade, como de falantes ingleses,
australianos, canadenses, estadunidenses, entre outros. Nesse sentido, a língua inglesa,
ainda que seja língua materna de alguma comunidade, no exemplo dado anteriormente, é
língua veicular para os falantes sírio e brasileiro

Precisamos considerar o fato de que nem sempre haverá uma língua


veicular disponível – já imaginou se o refugiado tentasse utilizar uma terceira
língua que o brasileiro desconhecesse? Diante da necessidade de comunicação,
ainda é possível inventarem para si outra forma de língua aproximativa, que
pode ser uma língua sabir ou um pidgin.

Afinal, qual é a diferença entre um sabir e um pidgin? Calvet (2002)


distingue esses dois conceitos de língua pela estrutura que assumem:

Estas formas, chamadas de sabirs, são originalmente utilizadas entre


comunidades que não têm língua comum, mas que mantêm, por
exemplo, relações comerciais. Trata-se de um sistema extremamente
restrito: algumas estruturas sintáticas e um vocabulário limitado às
necessidades de comunicação imediata. Quando essas formas cobrem
necessidades de comunicação mais amplas e seu sistema sintático se
torna mais desenvolvido, fala-se de pidgins [...]” (CALVET, 2002, p. 42).

Como você deve ter notado, o sabir e o pidgin não são línguas maternas
de ninguém, uma vez que nascem da necessidade de comunicação imediata. O
sabir, um sistema linguístico gerado por línguas de contato é muito mais restrito
em comparação ao pidgin. A origem do sabir, segundo Calvet (2002, p. 169), vem
da “língua de contato formada por elementos provenientes do italiano, árabe,
grego, turco e espanhol, desaparecida por volta de 1900, e que foi utilizada nos
portos do Mediterrâneo desde a Idade Média”. O pidgin, por sua vez, é uma
língua de contato cujo sistema linguístico já se desenvolveu um pouco mais em
comparação ao sabir, e sua origem pode apresentar algumas controvérsias entre
linguistas (CALVET, 2002).

Um exemplo de pidgin que podemos mencionar se refere ao violento


período em que africanos, de origens diferentes, foram retirados de suas terras e
escravizados, levados para plantações em outros países (CALVET, 2002). Como
não podiam se comunicar em suas línguas maternas, tiveram de criar um pidgin
como língua aproximativa.

141
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Acerca do contexto brasileiro, vale destacarmos que o pidgin, “desenvolvido


como meio de comunicação de emergência nas comunidades de escravos”,
influenciou as variedades regional-rurais existentes hoje (BORTONI-RICARDO,
2005, p. 35). Nesse sentido, encontramos, na sala de aula, variedades que são
decorrentes de um pidgin, conforme destaca Bortoni-Ricardo (2005).

Quando discutimos as línguas aproximativas, também é importante


lembrarmo-nos de que o crioulo faz parte desse contexto. Com a chegada de
imigrantes haitianos ao Brasil, em fluxos mais recentes, é possível que você tenha
ouvido falar sobre as línguas crioulas, já que fazem parte do repertório linguístico
de grande parte da população haitiana. Segundo Calvet (2002, p. 52):

Para alguns, um crioulo é um pidgin que se tornou língua veicular (isto


é, a língua primeira de uma comunidade), tendo um léxico muito mais
ampliado, uma sintaxe mais elaborada e campos de uso variados. O
crioulo se caracteriza então por um vocabulário emprestado a uma
língua dominante, a dos plantadores, e uma sintaxe fundada sobre
a sintaxe das línguas africanas. Outros enfatizam que nenhuma
descrição pôde provar verdadeiramente as relações entre a gramática
dos crioulos e as das línguas africanas e se inclinam especialmente
para a hipótese de uma aproximação de aproximação.

A aproximação de aproximação a qual Calvet (2002) se refere é a tese


de que, na ilha da Reunião, os africanos escravizados adquiriram um francês
sumário (“uma aproximação do francês”). Os novos escravizados que chegavam
à ilha aprendiam esse francês sumário com os mais antigos, desencadeando em
uma nova língua: o crioulo adquirido de “uma aproximação de aproximação”.

Nesse contexto, é importante entendermos que o contato linguístico


gera conflitos nas necessidades de comunicação, possibilitando o surgimento de
novas línguas ou até o desaparecimento de determinadas línguas, de variedades
linguísticas, além das possibilidades de situações de translinguagem (conforme
estudado na Unidade 2) e de usos de línguas veiculares. Diante disso, as pesquisas
sociolinguísticas de línguas em contato identificaram a necessidade de uma nova
discussão importante no campo: a noção de diglossia.

Em 1959, o linguista americano Charles A. Fergunson lança um conceito


de diglossia, adaptando-o do francês, diglossie, como a existência, “dentro das
fronteiras de uma mesma comunidade, de duas variedades [uma variedade alta
e uma variedade baixa] de uma mesma língua, cada uma destinada a propósitos
distintos” (FERGUNSON, 1959 apud FRITZEN, 2007, p. 76). A função de cada
variedade, para o autor, é uma das características mais importantes da diglossia.
Pensando nos domínios de língua, Fergunson (1959 apud FRITZEN, 2007,
p. 76) entende que a “variedade alta seria empregada, por exemplo, para fins
burocráticos, acadêmicos, religiosos, enquanto a baixa em situações mais íntimas
ou informais, como no lar, entre amigos, em correspondência pessoal”.

142
TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

O também linguista americano Joshua Fishman (1971) ampliou a noção de


diglossia utilizada por Fergunson (1959). Fishman (1971 apud FRITZEN, 2007 p.
76) incluiu “situações de bilinguismo em que duas diferentes línguas são usadas
para funções comunicativas distintas”. Nesse contexto, o bilinguismo é estudado
a partir da diglossia-fenômeno social, em contraposição ao bilinguismo como fato
individual (CALVET, 2002).

Calvet (2002, p. 61-62) exemplifica a noção de diglossia de Fishman


concretizada em quatro situações polares:

1- Bilinguismo e diglossia: todos os membros da comunidade conhecem a


forma alta e a forma baixa. É o caso do Paraguai (espanhol e guarani).
2- Bilinguismo sem diglossia: há numerosos indivíduos bilíngues
em uma sociedade, mas não se utilizam das formas linguísticas
para usos específicos. Esse seria o caso de situações instáveis, de
situações em transição entre uma diglossia e uma outra organização
da comunidade linguística.
3- Diglossia sem bilinguismo: numa comunidade social há a divisão
funcional de usos entre duas línguas, mas um grupo só fala a forma
alta, enquanto a outra só fala a forma baixa. [...]
4- Nem diglossia nem bilinguismo: há uma só língua. Só se pode imaginar
essa situação em uma comunidade muito pequena.

E
IMPORTANT

Vale alertar que, embora o conceito de diglossia até aqui apresentado tenha
exercido forte influência na sociolinguística, novas pesquisas na área passaram a questionar
um ponto frágil na sua definição: “a relativa estabilidade da variedade alta e da baixa que
a noção desse fenômeno [proposto por Fergunson e ampliado por Fishman] implica”
(FRITZEN, 2007, p. 76). Essa definição é tida como frágil porque o contato sempre gera
conflito, uma vez que as línguas e/ou as variedades linguísticas sempre disputam alguma
legitimidade nos espaços geográficos, o que gera novas mudanças linguísticas ou a
permanência de variações.

Quando falamos, hoje, em diglossia, consideramos as disputas e conflitos


que ela implica na realidade multilíngue, na relação entre as diferentes línguas
em contato e o uso de diferentes variedades dessas línguas. Para exemplificar,
podemos pensar na situação bilíngue de surdos na educação básica brasileira,
que se comunicam diariamente em Libras, mas utilizam a língua portuguesa
nas tarefas escritas escolares. Há um conflito constante na presença dessas duas
línguas na escola, considerando que as atividades avaliativas tendem a ser
realizadas na língua portuguesa, dificilmente na língua materna desse estudante

143
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

surdo. Além disso, como estudante bilíngue, revela as marcas desse bilinguismo
nos usos do português constantemente, o que também gera conflitos. A língua
portuguesa em uso por um surdo, que apresenta as marcas do bilinguismo, tende
a ser mal recebida, julgada negativamente, desvelando mais uma vez a situação
de conflito na diglossia presente na sala de aula.

TUROS
ESTUDOS FU

A noção de diglossia, ao olharmos para o bilinguismo sob um aspecto social,


contribui para a discussão acerca da política e planificação linguística, que será apresentada
a você no Tópico 3 desta unidade.

Na Unidade 2, vimos as alternâncias entre as línguas e as práticas de


translinguagem como estratégias linguísticas em situação de bi/multilinguismo,
isto é, em situação de contato entre línguas. Nesta seção do Tópico 2 da Unidade
3, esperamos que você, prezado acadêmico, tenha refletido sobre a diglossia como
um aspecto do bi/multilinguismo social, sobre as línguas veiculares, o sabir, o
pidgin, bem como o crioulo como outras estratégias linguísticas investigadas pela
sociolinguística e importantes para os estudos da linguagem também na escola.
Lembre-se, afinal, de que seu contexto escolar tende a ser multilíngue e, ignorar esse
multilinguismo pode implicar perda linguística, dificuldades de aprendizagem e
construções de estereótipos que fortaleçam o preconceito linguístico. Enquanto
professor de língua portuguesa, suas atitudes e comportamentos diante do contato
linguístico importam e muito para os falantes dessas línguas! Continue conosco
para conhecer aspectos sobre o estudo da variedade linguística nas comunidades
brasileiras, considerando o dialeto, o socioleto, o etnoleto, o cronoleto e o idioleto.

3 ESTUDANDO A VARIEDADE LINGUÍSTICA: SOCIOLETO,


ETNOLETO, CRONOLETO E IDIOLETO
Neste momento da sua leitura na disciplina de Sociolinguística, é
importante que você consiga reunir subsídios para responder à seguinte questão:
por que estudar a variação linguística?

O tema variação linguística está constantemente presente nas nossas


atitudes como professores de língua portuguesa, já que a variação, inevitável na
vida social de qualquer pessoa, adentra a escola. Por conseguinte, a formação
inicial do professor de língua portuguesa necessita contemplar aspectos de
variação e preconceito linguístico, os mitos construídos acerca da homogeneidade

144
TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

da língua portuguesa no Brasil e o apagamento do multilinguismo, assim como


as políticas que buscam reverter, de certo modo, a invisibilidade que a história
linguística brasileira desvela sobre a diversidade de línguas e seus falantes.
Nesse sentido, esperamos que os estudos da sociolinguística possam contribuir
para a sua prática pedagógica aberta à heterogeneidade, e que você possa
assumir ações de ensino da língua que permitam ao estudante da educação
básica descrever os fenômenos morfológicos, sintáticos, fonético-fonológicos,
semânticos, pragmáticos, contextualizados dentro de variedades linguísticas,
incluindo a norma padrão.

E
IMPORTANT

Na Unidade 1 deste livro didático, você viu que existem diferentes tipos de
variação linguística: variação diatópica, variação diastrática, variação diacrônica, variação
diafásica e variação diamésica. Nesta seção da terceira unidade, veremos que também
podemos classificar por tipos as diferentes variedades linguísticas: dialeto (tipicamente
visto como variedade regional, embora o uso do termo tenha sido ampliado), socioleto
(variedade social), etnoleto (variedade dos grupos étnicos), cronoleto (variedade de
geração), idioleto (modo particular de cada um falar).

NOTA

Você lembra qual é a diferença entre os conceitos de variação e variedade


na sociolinguística? A variação linguística corresponde ao processo pelo qual diferentes
formas da língua podem ocorrer no mesmo contexto linguístico com o mesmo valor
referencial, ou com o mesmo valor de verdade. A variedade representa o modo como uma
comunidade fala (é o seu dialeto, por exemplo).

Olhar para cada tipo de variedade linguística contribui não só na


compreensão das características da variação, como também na prática pedagógica
que ultrapassa a ideia de “erro” na língua para fortalecer o estudo dos diferentes
modos de falar o português brasileiro. Irandé Antunes (2002, p. 130) afirma que
“ninguém cria [...] suas próprias regras linguísticas. A língua é um fato social, um
saber coletivo, que existe em função da interação do indivíduo com os seus pares”.

145
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

As variedades da língua portuguesa se constituíram por mudanças


linguísticas ao longo de um percurso histórico, desde o latim, até os usos atuais.
Essas mudanças, como vimos na Unidade 2, resultaram em traços descontínuos
e graduais, revelando fenômenos de síncope (desaparecimento de fonema no
interior de vocábulo; ex.: LETRA para o que era LITTERA, FIGO para FÍGADO),
vocalização (transformação de consoante (lateral) em vogal; ex.: PAIA para
PALHA), metátese (troca de lugares de fonemas ou sílabas dentro de um vocábulo;
ex.: SEMPRE para o que antes era SEMPER, TAUBA para TÁBUA), entre outros.

Vamos, agora, reconhecer o que significa cada tipo de variedade:

a) Dialeto: “é um termo usado há muitos séculos, desde a Grécia Antiga, para


designar o modo característico de uso da língua num determinado lugar,
região, província etc.” (BAGNO, 2007, p. 48).

E
IMPORTANT

É importante destacarmos, consoante Bagno (2007), que o termo dialeto,


hoje, perde sua essência conceitual restrita à variedade regional para designar o que,
na sociolinguística, preferimos chamar de variedade. Além disso, o senso comum
tem construído uma representação negativa acerca do dialeto, como uma forma não
gramatical da língua falada por pessoas sem instrução formal (FRITZEN; EWALD, 2011). Essa
representação, contudo, não cabe à sociolinguística, uma vez que trata toda a realização
linguística como variedade de mesmo valor para estudo.

O sociolinguista Max Weinreich (1894-1969)  popularizou a


frase: “uma língua é um dialeto com um exército ou marinha” (NORDHOFF;
HAMMARSTRÖM, 2011, p. 1), problematizando o fato de que não haveria
diferença, sob o aspecto sociolinguístico, ao tratamento dado entre dialeto e língua.
No entanto, a língua, diferentemente de um dialeto, tem status na sociedade para
se tornar língua oficial de uma nação. Nesse sentido, seria possível afirmarmos
que a língua é um dialeto com prestígio e o dialeto é uma língua sem prestígio.

A língua, num cenário de preconceito, seria o que pessoas “civilizadas”


utilizam, enquanto dialeto, visto de maneira pejorativa, consiste no desprezo a
determinados modos de falar (CALVET, 2002). Línguas minoritárias tendem a ser
denominadas, no senso comum, como dialetos (por não desfrutarem do status de
língua padrão).

146
TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

A sociolinguística tem trabalhado, no Brasil, com variedades de línguas


de imigração sem fazer distinção de status entre elas: como Pommerisch e o
Hunsruckisch (dialetos do alemão) e o Talien (dialeto do italiano), só para citar
alguns exemplos. Quando usamos o termo dialeto/variedade na sociolinguística,
portanto, não estamos nos distanciando do reconhecimento de língua, já que
entendemos que toda língua é constituída por dialetos/variedades. É importante,
também na educação básica, desconstruir estigmas vinculados à variação
linguística e à constituição de variedades das línguas que compõem o cenário
multilíngue nacional.

Na língua portuguesa, em discurso majoritário, o falar caipira frequentemente


tem sido visto como um dialeto, mas as variedades mais prestigiadas das línguas,
faladas por pessoas escolarizadas de zonas urbanas não têm recebido a mesma
designação. Como variedades linguísticas, na sociolinguística, todas elas são
dialetos/variedades e recebem o mesmo tratamento científico.

b) Socioleto: também chamado de dialeto social, “designa a variedade linguística


própria de um grupo de falantes que compartilham as mesmas características
socioculturais (classe socioeconômica, nível cultural, profissão etc.)” (BAGNO,
2007, p. 48). Nesse sentido, consoante Monteiro (2002), é possível identificarmos,
pelas características da fala de um indivíduo, o grupo social ao qual pertence
(como de surfistas, de advogados etc.).

O socioleto usado por determinados sujeitos serve como uma reafirmação


da sua identidade, isto é, aquele uso da língua o caracteriza como sendo parte
de um determinado grupo, por isso o faz. Perceber que o próprio indivíduo,
por meio de uma variedade linguística, se reconhece e é reconhecido por outros
sujeitos como pertencente a um grupo social, também tem um papel importante
no processo de ensino da língua em sala de aula.

c) Etnoleto: é a variedade associada à determinada etnia/subgrupo cultural


(MONTEIRO, 2002), e por isso tende a ser reconhecida como um dialeto de
grupo étnico.
d) Cronoleto: “designa a variedade própria de determinada faixa etária, de uma
mesma geração de falantes” (BAGNO, 2007, p. 48). Para exemplificar, podemos
pensar na facilidade que temos para identificar a diferença da fala dos idosos
em comparação à de indivíduos mais jovens, em virtude de conservarem traços
que já passaram por mudanças linguísticas (MONTEIRO, 2002).
e) Idioleto: “designa o modo de falar característico de um indivíduo, suas
preferências vocabulares, seu modo próprio de pronunciar as palavras, de
construir as sentenças etc.” (BAGNO, 2007, p. 48). O conceito de idioleto contribui
para reconhecermos que nenhuma comunidade é homogênea, uma vez que não
existem “duas pessoas que falem igualmente, empregando os mesmos tipos
de construção sintática, uma frequência igual na seleção de vocábulos ou uma
realização de fonemas sem distinção” (MONTEIRO, 2002, p. 50).

147
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Estudar os diferentes tipos de variedades linguísticas é importante para


que reconheçamos que a realização da língua é influenciada pelos contextos de
uso, se diferenciando e até se modificando conforme idade, sexo, classe social,
grau de escolaridade, etnias, distâncias geográficas, além dos fatores linguísticos
(como tonicidade silábica, posição da consoante da sílaba etc.). Fique conosco
para estudar acerca dos comportamentos e atitudes sobre as variedades da língua
que, quando negativos, resultam no preconceito linguístico.

4 COMPORTAMENTOS E ATITUDES SOBRE AS LÍNGUAS E


SEUS FALANTES: PRECONCEITO LINGUÍSTICO
Ao longo da disciplina de sociolinguística, vimos que em qualquer língua
há variedades diferentes. Nesse sentido, é inevitável considerar que existem
variantes que coexistem na sociedade de forma competitiva, como a disputa
entre “tu” e “você”, “a gente” e “nós”, a disputa entre pronúncias etc. O uso de
determinadas variantes pode assumir traços sociais, como escolaridade, região
de origem do falante, classe social, entre outros. As variantes, relacionadas aos
traços sociais, são constantemente julgadas pelos falantes de uma língua, que
podem assumir atitudes positivas ou negativas frente a certos usos linguísticos.

Considerar esses comportamentos e atitudes é importante para o estudo


da linguagem, tendo em vista que “a valorização ou a desvalorização de uma
determinada língua [ou variantes da língua] pode ser o fator decisivo entre a sua
manutenção ou extinção” (CEREZOLI; MENDONÇA; SELLA, 2015, p. 1). Nesse
contexto, consoante Labov (2008), as atitudes linguísticas são determinantes
para os fatores de mudanças linguísticas, uma vez que só ocorre uma mudança
na língua quando os falantes passam a aceitar a forma inovadora. Nesta seção,
procuraremos sensibilizá-lo, prezado acadêmico, com a reflexão acerca das nossas
atitudes frente às línguas e suas variações, bem como acerca dos preconceitos
linguísticos em relação às variedades e aos seus falantes.

Como você já deve ter observado, é impossível uma língua ser falada
sem variação. Logo, todo falante, independentemente de grau de escolaridade
ou situação socioeconômica, está sujeito à variação linguística. Diante dessa
realidade, é pertinente questionarmos: se a língua é sempre realizada dentro
de uma variedade, por que então algumas variedades são julgadas (no senso
comum) como mais “erradas” que outras?

Para responder tal pergunta, precisamos considerar fatores sociais, e não


necessariamente linguísticos, pois o estigma e o prestígio a certas variedades
estão associados aos seus falantes, à posição social que ocupam em uma escala
socioeconômica, à escolarização e à própria origem geográfica. Conforme
assinalam alguns linguistas, são os grupos de maior prestígio social que detêm
poder para ditar qual variante da língua tem maior status, valorizando ou
rejeitando determinados usos linguísticos (AGUILERA, 2008).

148
TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

Vale lembrarmos que as variantes linguísticas de uma regra variável,


mesmo quando não corresponderem à norma padrão, não são consideradas pela
sociolinguística como erros. Bortoni-Ricardo e Oliveira (2013, p. 50) explicam a
atitude linguística de classificar como “errados” alguns modos de falar e outros não:

Alguns “erros” são vistos como menos salientes porque já se tornaram


regra na língua falada pelos cidadãos mais letrados, passando, assim,
muitas vezes, despercebidos. Bagno (2003) acredita que, por esse
motivo, existam erros mais “errados” (ou mais “crassos”) do que
outros e trabalha com a ideia de uma pirâmide das classes sociais, na
qual a escala de “crassidade” é inversamente proporcional à escala de
prestígio social, ou seja, quanto menos socialmente prestigiado for um
indivíduo, mais erros serão encontrados na sua língua pelos membros
das classes sociais mais prestigiosas.

No campo de estudos da sociolinguística, sempre houve a problematização


do que é visto como erro na fala das pessoas. Por isso, desde a Unidade 1,
introduzimos os termos adequação e inadequação linguística, cujos conceitos se
referem a um evento ou ato de fala que atende ou não “às expectativas do ouvinte
em função dos papéis sociais de um outro” (BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA,
2013, p. 48). Classificar meramente como erro um ato de fala pode ser reflexo do
preconceito linguístico.

DICAS

Para assistir a uma introdução sobre o tema preconceito linguístico, acesse o link
https://www.youtube.com/watch?v=TDCcSKl5maI, disponível no canal Brasil Escola, no YouTube.

E
IMPORTANT

O preconceito linguístico se manifesta por meio de julgamentos, que


costumam ser desrespeitosos e depreciativos com relação às variedades das línguas e seus
falantes (SCHERRE, 2008). É, portanto, uma crença, sem fundamento científico, sobre a língua.

149
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

As variedades linguísticas mais sujeitas a preconceito linguístico são,


normalmente, as que possuem características associadas a grupos de
pessoas com menos prestígio na escala social ou a grupos de pessoas
da área rural ou do interior do país. Este fato decorre do sentimento de
superioridade – muito claro na mídia – dos grupos vistos como mais
privilegiados, econômica e socialmente (SCHERRE, 2008, p. 12).

Na Unidade 2, ao observar os traços descontínuos, você encontrou


amostras de variantes frequentemente sujeitas ao preconceito linguístico, o qual
leva a afirmações descabidas e desrespeitosas sobre seus falantes: não sabe falar
português, fala tudo errado, empobrece a língua, só para citar alguns exemplos.

De acordo com Scherre (2008), assim como os preconceitos de raça,


religião ou gênero que, hoje, são passíveis de punição, o preconceito linguístico
poderia também ser tratado com gravidade na sociedade. As teorias linguísticas
e, mais especificamente, sociolinguísticas, contribuem constantemente no
combate ao preconceito linguístico, tendo em vista sua “condição de propiciar
um conhecimento dinâmico e aberto dos fenômenos que envolvem a linguagem
humana” (SCHERRE, 2008, p. 19). No entanto, cabe salientar que as discussões
sobre a legitimação das línguas e das suas variedades, além de científicas, também
são políticas, o que melhor veremos no último tópico desta unidade.

150
TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES

DICAS

Achou interessante o tema “preconceito linguístico”? Confira as sugestões de


leituras que deixamos aqui para você:

LIVROS PARA AMPLIAR O CONHECIMENTO SOBRE VARIAÇÃO E


PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Doa-se lindos filhotes de Poodle Preconceito linguístico

FONTE: <http://twixar.me/W7LT>. FONTE: <http://twixar.me/47LT>.


Acesso em: 15 out. 2019. Acesso em: 15 out. 2019.

A língua de Eulália Nós cheguemu na escola, e agora?

FONTE: <http://twixar.me/b7LT>. FONTE: <http://twixar.me/w7LT>.


Acesso em: 15 out. 2019. Acesso em: 15 out. 2019.

FONTE: As autoras

151
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

A partir dos pressupostos até aqui apresentados, podemos compreender


que é papel da escola oportunizar a aprendizagem dos modos diferentes de falar,
que podem (ou devem) ser ajustados às situações sociais de uso, adotando um
posicionamento científico, e não de preconceito. Por isso, a sociolinguística é
indispensável na formação dos professores e nos currículos escolares (BORTONI-
RICARDO; OLIVEIRA, 2013).

Nas aulas de língua portuguesa, esperamos que os estudantes possam


aprender a usar os recursos da variação para a competência sociolinguística,
sem invisibilizar suas características sociodemográficas (BORTONI-RICARDO;
OLIVEIRA, 2013). Nesse sentido, como assinalam as autoras:

Um professor poderá aceitar de seu aluno tanto “eu encontrei ele no


jardim” quanto “eu o encontrei no jardim”, dependendo do contexto
em que o enunciado apareça. Mas não poderá jamais aceitar que o
aluno escreva: “eu encomtrei...”. Levar em conta essa flexibilidade que
caracteriza a interação oral não monitorada não significa, todavia, que
os professores estejam proibidos de fazer intervenções quando seus
alunos não ajustam com propriedade a fala à formalidade da situação”
(BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA, 2013, p. 55).

DICAS

Em um programa televisivo do canal GNT, no qual o artista Fábio Porchat


entrevista convidados, o tema preconceito linguístico surge em um tom bastante
descontraído. Na oportunidade, Francisco Bosco fala sobre a invenção da gramática e como
ela já nasce como uma invenção de classe. Confira o vídeo no link: https://www.youtube.
com/watch?v=YDDeBLxKwrs&fbclid=IwAR3ikNvOOqS_dqWpmBjqyk5BjuSzzkCF4y-
UEpnnjvpkblcdOYLGFLdYC9s.

A sociolinguística, como temos defendido nesta disciplina, desempenha


um papel crucial no combate ao preconceito linguístico com sua função científica
de descrever as regularidades da língua nas mais diversas realizações, lutando
para o reconhecimento dessa heterogeneidade em contexto escolar. No próximo
tópico, veremos mais detalhadamente aspectos relacionados às políticas
linguísticas, nas quais se situam a discussão sobre a legitimação das línguas e
sua heterogeneidade. Antes de prosseguirmos, convidamos você a colocar em
prática, por meio de algumas atividades, os conhecimentos construídos.

152
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A sociolinguística (e/ou sociologia da linguagem) e a linguística aplicada


desvelam o multilinguismo no Brasil, apesar da existência do mito de que
aqui só se fala português.

• O multilinguismo faz com que as línguas estejam constantemente em


contato, gerando uma situação sociolinguística complexa. Por conseguinte,
é importante olharmos para a formação linguística de uma comunidade,
considerando: línguas aproximativas (como as línguas veiculares, o crioulo, o
pidgin e o sabir) e a diglossia como fenômenos gerados pelo contato linguístico.

• As línguas veiculares consistem naquelas utilizadas em situação de contato


entre os falantes que mutuamente desconhecem a língua um do outro. Ex.: um
falante de português e um falante de francês que desconhecem suas línguas
optam por uma terceira língua, a veicular, para haver comunicação, que pode
ser o espanhol, o inglês, entre outras.

• Caso não haja uma língua veicular como opção de comunicação, é possível que
os falantes inventem uma outra língua aproximativa, como o sabir ou o pidgin.

• O sabir é uma língua aproximativa, cujo sistema é extremamente restrito:


algumas estruturas sintáticas e um vocabulário limitado às necessidades de
comunicação imediata.

• O pidgin é uma língua aproximativa inventada para que os interlocutores, que


desconheçam suas línguas mutuamente, possam estabelecer comunicação. Seu
sistema sintático é mais desenvolvido que o do sabir.

• O sabir e o pidgin não são línguas maternas de ninguém.

• Há duas formas de definir as línguas crioulas: I. O crioulo é um pidgin que se


tornou a língua primeira de uma comunidade, cujo vocabulário é emprestado
de uma língua dominante e uma sintaxe é fundada sobre a sintaxe das línguas
africanas; II. O crioulo é originado de uma aproximação de aproximação, isto é, os
escravizados africanos ensinaram uma língua dominante sumária (aproximação da
língua dominante) a outros escravizados que realizaram uma nova aproximação,
gerando uma nova língua (crioula), ensinada de geração a geração.

153
• A diglossia é gerada em situação de contato linguístico, como resultado de
um contexto sociolinguisticamente complexo, onde há diferentes línguas e
variedades dessas línguas disputando espaços.

• As variedades da língua portuguesa se constituíram por mudanças linguísticas


ao longo de um percurso histórico, desde o latim, até os usos atuais. Essas
mudanças resultaram em traços descontínuos e graduais, revelando fenômenos
de síncope, vocalização, metátese, entre outros.

• As variedades linguísticas podem ser classificadas por tipos: dialeto (tipicamente


visto como variedade regional, embora o uso do termo tenha sido ampliado),
socioleto (variedade social), etnoleto (variedade dos grupos étnicos), cronoleto
(variedade de geração), idioleto (modo particular de cada um falar).

• A língua é um dialeto que desfruta prestígio social, podendo assumir


legitimação para língua padrão; o dialeto, no senso comum, é uma língua sem
prestígio, desassociado de um padrão. Para a sociolinguística, toda língua é
realizada em dialetos/variedades, o que implica no mesmo tratamento científico
para descrição.

• As atitudes sobre as variantes de uma mesma variável são determinantes para


os fatores de mudanças linguísticas, uma vez que só ocorre uma mudança na
língua quando os falantes passam a aceitar a forma inovadora.

• O senso comum tende a julgar determinadas variantes como “erros”, mas,


quando as variantes parecem estar associadas a cidadãos mais letrados, não
recebem o mesmo julgamento. Essa atitude diante da língua pode ser reflexo
de preconceito linguístico.

• O preconceito linguístico é uma crença, sem fundamento científico, sobre a


língua. Manifesta-se por meio de julgamentos, que costumam ser desrespeitosos
e depreciativos com relação às variedades das línguas e seus falantes. O
preconceito linguístico gera afirmações descabidas e desrespeitosas sobre seus
falantes: não sabe falar português, fala tudo errado, empobrece a língua etc.

154
AUTOATIVIDADE

1 A sociolinguística (e/ou sociologia da linguagem) e a linguística aplicada


desvelam o multilinguismo no Brasil, apesar da existência do mito de
que aqui só se fala português. O multilinguismo reflete diretamente as
realidades de contato linguístico que existem em nosso país. Diante desse
contexto, analise as sentenças a seguir:

I- O multilinguismo brasileiro só existe porque os falantes necessitam


constantemente das línguas veiculares para comunicação com estrangeiros.
II- Sabirs e pidgins correspondem ao vernáculo do português popular
brasileiro, que é heterogêneo.
III- No Brasil, a diglossia representa situação conflituosa, uma vez que o uso e
as atitudes diante das variedades linguísticas e de diferentes línguas estão
longe de serem estáveis.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Apenas a sentença I está correta.
b) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
c) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.
d) ( ) Apenas a sentença III está correta.

2 O estudo sobre contato linguístico implica a necessidade de utilizarmos


alguns conceitos da sociolinguística, tais como: língua veicular, sabir, pidgin,
língua crioula, diglossia. Assinale a alternativa CORRETA que melhor pode
conceituar uma língua crioula:

a) ( ) Idioma de um país terceiro utilizada em situação de contato entre os


falantes que mutuamente desconhecem a língua um do outro.
b) ( ) Língua aproximativa, cujo sistema é extremamente restrito: algumas
estruturas sintáticas e um vocabulário limitado às necessidades de
comunicação imediata.
c) ( ) Pidgin que se tornou a língua primeira de uma comunidade, cujo
vocabulário é emprestado de uma língua dominante e cuja sintaxe é
fundada sobre a sintaxe das línguas africanas.
d) ( ) Língua aproximativa inventada para que os interlocutores, que
desconhecem suas línguas mutuamente, possam estabelecer
comunicação, sem que seja ensinada às próximas gerações de falantes.

3 A diglossia é gerada em situação de contato linguístico, como resultado de


um contexto sociolinguisticamente complexo, onde podem haver diferentes
línguas e variedades dessas línguas. Explique por que não podemos tratar
de estabilidade linguística em situação de diglossia.

155
4 As variedades linguísticas podem ser classificadas por tipos: dialeto
(tipicamente visto como variedade regional, embora o uso do termo tenha sido
ampliado), socioleto (variedade social), etnoleto (variedade dos grupos étnicos),
cronoleto (variedade de geração), idioleto (modo particular de cada um falar).
Assinale a alternativa CORRETA que apresenta um exemplo de cronoleto:

a) ( ) Um grupo de idosos entre 70 e 80 anos fala “Nós comemos”, enquanto


um grupo de jovens entre 18 e 28 anos fala “A gente come”.
b) ( ) Em uma comunidade de surfistas, o léxico “ixi”, para indicar uma
interjeição de surpresa, faz parte da variedade de apenas um falante.
c) ( ) O inglês vernacular negro estudado por Labov.
d) ( ) O linguajar típico da região Sudeste do Brasil.

5 O sociolinguista Max Weinreich (1894-1969)  popularizou a frase:  “uma


língua é um dialeto com um exército ou marinha”. Escreva um parágrafo
crítico acerca dessa afirmação.

6 (ENADE, 2017)

Texto 1

O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava


sendo chamado de "Gaúcho". Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio
Grande do Sul, com um sotaque carregado.
— Aí, Gaúcho!
— Fala, Gaúcho!
Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora
explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram
tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas
a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do
tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?
— Mas o Gaúcho fala "tu"! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava
com o novato.
— E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer
"você". Os dois estão certos. Os dois são português.
O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.

156
Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que
acontecera.
— O pai atravessou a sinaleira e pechou.
— O que?
— O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.
A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do
menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento,
em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo
retirados do seu corpo.
— O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge.
— Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.
— E o que é isso?
— Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.
— Nós vinha...
— Nós vínhamos.
— Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho
e deu uma pechada noutro auto.
A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera?
Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não
podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.

"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas
"pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra?
Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha do espanhol
e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o
gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara
outro apelido: Pechada.
— Aí, Pechada!
— Fala, Pechada!

FONTE: VERÍSSIMO, L. Pechada. Revista Nova Escola, maio 2014. Disponível em: https://
novaescola.org.br. Acesso em: 9 jul. 2017.

Texto 2

Todos sabem que existe um grande número de variedades linguísticas, mas,


ao mesmo tempo em que se reconhece a variação linguística como um fato,
observa-se que a nossa sociedade tem uma longa tradição em considerar a
variação em uma escala valorativa, às vezes até moral, que leva a tachar os
usos característicos de cada variedade como certo ou errado, aceitáveis ou
inaceitáveis, pitorescos, cômicos etc.

FONTE: TRAVAGLIA, L. C. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática.


São Paulo: Cortez, 2009.

157
Considerando a imagem apresentada, os sentidos estabelecidos pelo texto 1 e
a reflexão provocada pelo texto 2, conclui-se que a professora:

a) ( ) Identifica “pechada” como um caso de estrangeirismo na fala de seu


aluno, incorporado à língua portuguesa como empréstimo aceitável da
língua espanhola.
b) ( ) Identifica o fenômeno de variação diafásica em nível lexical, ao
compreender o contexto de uso dos vocábulos “sinaleira” e “auto”.
c) ( ) Ignora a possibilidade de discutir o tema do preconceito linguístico com
relação ao uso de variações linguísticas diatópicas.
d) ( ) Evita, ao abordar as variedades linguísticas do português brasileiro,
que o estudante Rodrigo sofra preconceito linguístico.
e) ( ) Explica os diferentes modos de falar de seus alunos conforme a
ocorrência de variações morfológicas e sintáticas na fala de Rodrigo.

158
UNIDADE 3
TÓPICO 3

POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

1 INTRODUÇÃO
Nos tópicos anteriores, vimos alguns elementos importantes sobre o ensino
de gramática na escola e os problemas que aparecem nos livros didáticos de língua
portuguesa para a educação básica. Vimos também algumas considerações sobre
as línguas de contato, os conceitos de diglossia, sabir, pidgin, línguas crioulas,
línguas veiculares, dialeto, socioleto, etnoleto, cronoleto, idioleto. Agora, para
finalizar esta unidade, apresentaremos alguns conceitos e reflexões sobre a gestão
do plurilinguismo, políticas e planejamento linguístico.

2 A GESTÃO DO PLURILINGUISMO
Quando falamos em gestão do plurilinguismo, estamos nos referindo à
gestão da diversidade linguística, isto é, a pluralidade e a variação das línguas
em contato presentes em contextos diversos. Essa gestão se relaciona com o modo
como instituições, indivíduos e grupos lidam e agem com o plurilinguismo, ou
seja, como administram as situações de uso das línguas. Isso envolve políticas
linguísticas provenientes do Estado, de órgãos relacionados ao governo e de
pessoas ou comunidades que dispõem de recursos, estratégias e autoridade para
concretizar as políticas e gestão das línguas, mobilizadas pelos seus aspectos
ideológicos, políticos e sociais (CALVET, 2007; SPOLSKY, 2009).

Ao falarmos de gestão do plurilinguismo e das ações relacionadas


às línguas por meio de políticas linguísticas, destacamos e reiteramos
a diversidade presente no Brasil, que se contrapõe e desafia o mito do
monolinguismo, um processo histórico e social de homogeneização linguística,
que legitimou o português como língua nacional única do Brasil. Ter consciência
disso é fundamental para o professor. Estar em sala de aula significa conviver,
diariamente, com esse plurilinguismo. Diante disso, é fundamental compreender
o conceito e, para além disso, as implicações práticas dessa realidade.

159
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

E
IMPORTANT

O que compreendemos como plurilinguismo? De acordo com os autores


Broch (2014) e Altenhofen e Broch (2011), o termo plurilinguismo é entendido e utilizado
para designar as competências do falante em mais de uma língua, isto é, os usos das
línguas do falante, envolvendo uma postura linguística plural e social. Entendemos que os
usos de diferentes línguas de um falante estão além das escolhas por usar uma ou outra
língua, uma vez que compreendemos que as ações que fazemos com a linguagem estão
relacionadas com outras práticas culturais, sociais e políticas.

E
IMPORTANT

O que temos visto é que o Brasil é um país de muitas línguas, e isso fica claro
quando olhamos para o número de línguas que foram e são ainda faladas no país. Você
já leu sobre esse tema neste material didático e viu que, no Brasil, são faladas mais de 200
línguas. Segundo Oliveira (2000), os grupos indígenas do país falam cerca de 170 línguas,
as comunidades de descendentes de imigrantes por volta de 30 línguas e as comunidades
surdas do Brasil usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a língua de sinais Urubu-
Kaapor, localizada no sul do estado do Maranhão, a Língua de Sinais Cena, utilizada para a
comunicação entre surdos e ouvintes em uma comunidade rural do município de Jaicós,
no Piauí. Essa realidade caracteriza o Brasil como um país de multilinguismo.

Como uma das medidas e políticas que reconhecem e protegem a


diversidade cultural e linguística do Brasil está a Constituição Federal de 1988, que
reconheceu aos indígenas o direito à cidadania, à sua cultura e à sua língua. Apesar
desse reconhecimento, não direcionou ações para outras línguas e comunidades,
tais como as línguas de sinais (Libras, Urubu-Kaapor e Cena) e a dos imigrantes,
como o italiano, o alemão, o ucraniano e o crioulo (MORELLO; SEIFFERT, 2011).

Foi a partir da Constituição de 1988 que se vislumbrou e se articulou os


primeiros movimentos no Estado brasileiro em prol da diversidade linguística,
cujo início é marcado pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas
em relação às suas línguas e culturas. Estas ações inspiraram outras e abriram
espaços para discussões e reflexões sobre a importância da defesa em torno dos
direitos linguísticos no país.

160
TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

No tocante às ações em direção ao reconhecimento, à defesa, à valorização


e à difusão das línguas no país, além da Constituição de 1988, citamos o
Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Brasil (INDL), instituído
pelo Decreto nº 7.387/2010 e conduzido pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN). Este inventário contempla as línguas que fazem
parte da sociedade brasileira.

Destacamos também a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, regulamentada


pelo Decreto nº 5.626 de 2005, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais
(Libras) como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda
brasileira. Outras políticas linguísticas que tratam do uso e da defesa das
línguas são os documentos de co-oficialização de diversas línguas no âmbito de
governos municipais, voltados às línguas de imigração e às línguas indígenas,
bem como o Seminário de Criação do Livro de Registro das Línguas promovido
pelo IPHAN em 2006.

Essas políticas linguísticas não só reconhecem a presença de diferentes


línguas no Estado brasileiro, como também buscam valorizá-las e protegê-las,
desafiando e desconstruindo o mito de língua única no país. Por conseguinte,
contribui para que a sociedade perceba a multiplicidade de línguas no Brasil,
sejam as línguas de sinais, as línguas das comunidades indígenas, de imigrantes,
línguas crioulas, além das variedades dialetais da língua portuguesa.

DICAS

Para aprimorar seus conhecimentos sobre o tema diversidade linguística e


sobre quantas línguas são faladas no nosso país, confira esta entrevista com o professor
Gilvan Müller de Oliveira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Hy-ggZQYP7s.

Para você conhecer um pouco melhor as línguas citadas até o momento,


apresentamos o quadro a seguir com as categorias de línguas conforme o
Inventário Nacional de Diversidade Linguística (INDL) (2016, p. 13-14):

161
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

QUADRO 1 – CATEGORIAS DE LÍNGUAS CONFORME O INDL

Línguas alóctones trazidas ao Brasil por grupos de fala


advindos principalmente da Europa, Oriente Médio e Ásia
e que, inseridas em dinâmicas e experiências específicas
LÍNGUAS DE IMIGRAÇÃO
dos grupos em território brasileiro, tornaram-se referência
de identidade e memória. Exemplos: Talian, Pomerano,
Hunsrükisch, entre outras.
Línguas autóctones, originárias do continente sul-
americano – da porção que hoje corresponde ao território
LÍNGUAS INDÍGENAS brasileiro – e faladas por populações indígenas. Exemplos:
Guarani, Kaingang, Baniwa, Tukano, Ninam, Maxakali,
Marubo, entre outras.
Línguas de origem africana faladas no Brasil. Essas
línguas apresentam notáveis diferenças linguísticas em
vários aspectos de sua estrutura gramatical, produzidas
por mudanças históricas desencadeadas pelo contato
LÍNGUAS AFRO-BRASILEIRAS
com o Português, podendo ter ocorrido transferências
gramaticais desde esse substrato africano (LUCCHESI et
al., 2009). Exemplos: Gíria de Tabatinga, língua do Cafundó
e variedades Afro-brasileiras do Português Rural.
Línguas faladas por comunidades surdas, incluindo
pessoas surdas e ouvintes, que se utilizam da modalidade
visuoespacial com sinais manuais e não manuais, tais como
LÍNGUAS DE SINAIS
expressões faciais e corporais. Exemplos: Libras, Língua de
Sinais Urubu-Kaapor, Língua de Sinais do município de
Jaicós, no Piauí, entre outras.
Línguas surgidas a partir da aquisição como língua
materna por parte de um grupo social de uma língua
Pidgin. Exemplos: os Galibi-Marwórno, os Karipuna e
LÍNGUAS CRIOULAS os Palikur, que vivem no estado do Amapá e falam uma
língua crioula formada a partir do Francês como língua
dominante, e de diferentes línguas africanas e indígenas
da Guiana Francesa e Suriname.
Embora o Português seja língua oficial e majoritária do país,
suas variedades podem ser objeto de ações de promoção
e valorização. Essas variedades internas ao português
VARIEDADES DIALETAIS DA decorrem de fatores históricos, geográficos e étnico-
LÍNGUA PORTUGUESA culturais que influenciam a conformação de elementos
linguísticos que demarcam identidades de falares regionais
(variedades diatópicas) e de segmentos sociais específicos
(variedades diastráticas).

FONTE: Adaptado de INDL (2016)

162
TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

DICAS

Para saber mais sobre a Política da Diversidade Linguística e sobre o Guia de


pesquisa e documentação para o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, acesse o
livro do Inventário Nacional da Diversidade Linguística.

FONTE: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/INDL_Guia_vol1.pdf>. Acesso


em: 20 nov. 2019.

Diante dessa realidade linguística, pensar e reconhecer a relevância de


uma política de inclusão plurilíngue é fundamental para a construção de uma
“democracia cultural” (OLIVEIRA; ALTENHOFEN, 2001). Para tanto, Altenhofen
e Broch (2011, p. 17) propõem uma pedagogia do plurilinguismo, para que a
diversidade linguística seja protegida e que a pluralidade seja fomentada e
compreendida “como a postura de constituir-se plural diante da diversidade”.

Nesta perspectiva, falaremos, na próxima seção, sobre políticas linguísticas,


visto que elas existem em níveis diferentes, desde os usos das línguas por um
falante, por uma comunidade ou por uma família, até as leis oficiais do governo.

3 POLÍTICAS E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO


Considerando os temas desta unidade, que englobam as diferentes
línguas do Brasil com o preconceito linguístico em relação a essa diversidade,
apresentamos conceitos relevantes à discussão, a começar pela definição de
política linguística.

De acordo com Calvet (2007), um dos autores que discute esse conceito,
a política linguística é definida como uma deliberação das grandes decisões com
a relação língua e sociedade. Com a definição de política linguística, o autor
apresenta o conceito de planejamento linguístico, que, por sua vez, trata da
implementação da política linguística.

163
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

E
IMPORTANT

Assim, segundo Calvet (2007), as políticas linguísticas implicam relações de


poder, que envolvem diversas atividades de cunho político, tais como a organização de
leis, portarias, regimentos, de modo que o planejamento representa a passagem à ação,
ou seja, a implementação do que a política orienta. Embora o autor apresente esses dois
conceitos como distintos, também destaca que política e planejamento caminham juntos,
são como um binômio inseparável, não há política sem implementação e vice-versa.

De acordo com Calvet (2007), para proceder às ações planejadas sobre


uma língua, existem dois tipos de gestão das situações linguísticas. A primeira
gestão, nomeada de in vivo, refere-se às práticas sociais por meio das quais os
falantes resolvem seus problemas de comunicação numa língua. Essa gestão
trata do modo como determinada população usa sua competência linguística no
cotidiano, isto é, essa gestão não é determinada por instrumentos legais, como
leis e decretos, mas se realiza por meio das escolhas espontâneas dos falantes.

A segunda gestão, intitulada de in vitro, envolve a intervenção sobre as


práticas sociais. O que isso quer dizer? Essa gestão linguística, segundo Calvet
(2007), diz respeito às medidas oficiais de planejamento linguístico, por um viés
político, no que tange a determinadas situações linguísticas, ou seja, são as ações
do Estado em forma de poder e controle institucional sobre as práticas linguísticas.

Para Calvet (2007), quaisquer grupos sociais podem apresentar


propostas de políticas linguísticas, entretanto, apenas o Estado tem o poder
e as ferramentas para colocar em prática estas propostas. Como exemplo de
políticas linguísticas que incidem sobre a língua, citamos intervenções que
visam à defesa de uma língua, por meio de revisões e acordos ortográficos,
determinação sobre as línguas que devem estar presentes no sistema formal
de ensino e em contextos bilíngues ou plurilíngues, oficialização de uma
língua, como a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

E
IMPORTANT

Uma segunda definição de política linguística que apresentamos é o conceito


de Spolsky (2004), que define política linguística a partir de três componentes interligados,
mas independentes, a saber: práticas, crenças e gestão.

164
TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

De acordo com Spolsky (2004), as práticas são compreendidas como as


escolhas linguísticas e os comportamentos observáveis dos falantes, sobre o que
eles realmente fazem com a língua. São os aspectos linguísticos escolhidos pelos
falantes em situações de uso da língua no cotidiano.

O segundo componente, de acordo com Spolsky (2004), são as crenças


sobre a linguagem. Para o autor, as crenças envolvem os valores atribuídos à
língua e às variedades linguísticas. Algumas variedades e modos de falar são
estigmatizados, enquanto outros podem ser mais valorizados. O terceiro
componente apresentado pelo autor é a gestão linguística. Essa gestão engloba
leis e decretos estabelecidos por um estado-nação que determina aspectos do uso
oficial da língua.

DICAS

Para saber mais sobre Políticas Linguísticas, deixamos como referência o livro
de Louis Jean Calvet.

FONTE: <travessa.com.br/as-politicas-linguisticas/artigo/69203fda-54f9-48cd-b1a2-af7b4
c288545>. Acesso em: 20 nov. 2019.

E
IMPORTANT

Além das definições apresentadas, destacamos também os tipos de políticas


e planejamentos linguísticos (GARCEZ; SCHULZ, 2016), quais sejam: (i) políticas linguísticas
de corpus; (ii) políticas linguísticas de status; e (iii) políticas de aquisição.

165
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

As políticas linguísticas de corpus tratam literalmente sobre o corpo da


língua. Em muitos casos, isso diz respeito à língua escrita, buscando definir a
criação de um vocabulário, o sistema gráfico em que a língua será registrada, se esse
sistema será alfabético ou não. Mesmo a língua tendo uma escrita já consolidada,
como é o caso do português, possíveis ajustes podem e ainda são feitos, como é o
caso das diversas reformas ortográficas e do próprio Acordo Ortográfico.

As políticas linguísticas de status, por sua vez, englobam as funções


das línguas nos seus contextos de uso. Uma língua pode ser meio de interação
apenas no âmbito escolar, familiar ou profissional, por exemplo, e o seu
reconhecimento e uso podem reiterar o seu estatuto enquanto língua. Este seria
o caso da Libras, que após a sanção da Lei nº 10.436, seu uso e difusão tem
ganhado cada vez mais força e amplitude.

As políticas linguísticas de aquisição tratam do ensino de línguas. Esse


tipo de política envolve as decisões a respeito de como as línguas podem ou
devem ser usadas como meio de instrução, que línguas são oferecidas na escola
e em quais séries. Como exemplo desse tipo de política, citamos a lei que trata
da obrigatoriedade da oferta de Língua Espanhola no componente curricular
de Língua Estrangeira Moderna nas escolas brasileiras, além do Decreto nº
5626/05, que orienta que os alunos surdos devem ser alfabetizados em Libras
em escolas inclusivas.

A discussão que fizemos neste tópico reitera a realidade do Brasil, isto


é, um país com diferentes línguas, culturas e identidades. Essa diversidade
se encontra presente em todos os contextos, em especial o escolar. Por isso, é
importante que os professores considerem e trabalhem a diversidade linguística
na sala de aula, na escola, para que sejam fomentados o respeito e a compreensão
ao que é diverso, ao que é diferente.

A introdução dos conceitos discutidos neste Livro Didático de


Sociolinguística procurou servir de porta de entrada para você, prezado
acadêmico, à realidade complexa da relação entre língua e sociedade, que implica
reconhecer que as atitudes diante das línguas e suas variedades se constituem
em políticas linguísticas. Encerramos este livro convidando-o para realizar uma
última leitura complementar, na qual você verá alguns aspectos do trabalho do
linguista frente às políticas linguísticas. Além disso, também elaboramos um
resumo deste último tópico do livro para que você possa rever alguns conceitos
discutidos antes de realizar as autoatividades.

166
TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

LEITURA COMPLEMENTAR

Na leitura complementar que apresentamos a você, recortamos um trecho


da entrevista com Gilvan Müller de Oliveira, concedida à Revista Revel, v. 14,
n. 26, 2016, numa edição sobre o tema Políticas Linguísticas. Essa entrevista
ampliará a sua compreensão sobre o conceito de Política Linguística, em quais
países os estudos de Políticas Linguísticas encontram-se avançados e quais são
alguns dos principais temas discutidos em Políticas Linguísticas, em especial, no
cenário brasileiro.

REVEL – O que se entende hoje por “Políticas linguísticas”? Que tipo


de trabalho um linguista que atua nessa área desenvolve?

GILVAN – Em primeiro lugar considero necessário fazer uma distinção entre


as instâncias que fazem políticas linguísticas e as que tradicionalmente estudam as
políticas linguísticas, isto é, que fazem o que Louis-Jean Calvet chamou de Politologia
Linguística. Trata-se de dois fazeres muito diferentes e que às vezes se tocam.
Entendo que as políticas linguísticas são uma área das políticas públicas, concebidas
e executadas por instituições que têm ingerência na sociedade, como os Estados, os
governos, as igrejas, as empresas, as ONGs e associações, e até as famílias.

A maior parte das políticas linguísticas são realizadas sob outros nomes,
embutidas dentro de outras políticas, de modo que podem não ser imediatamente
identificáveis. Isso não ocorre por um suposto secretismo dos agentes de políticas
linguísticas – os Estados, por exemplo – mas porque as línguas e os seus usos
estão conectados a todo o agir social do homem. Assim, uma política de saúde
ou de defesa, de transporte ou editorial pode ter implicações sobre os usos das
línguas e gerar demandas para intervenções sobre as próprias línguas.

Uma grande parte das políticas linguísticas não é feita por linguistas
ou mesmo com a participação de linguistas, e a maior parte dos linguistas
profissionais, por exemplo no Brasil, pode não se envolver diretamente com a
concepção e execução de políticas linguísticas, embora o seu fazer muitas vezes
possa ser usado para determinadas políticas, por exemplo para instruí-las ou
legitimá-las.

Em parte isso ocorre porque a mainstream da linguística do século XX,


que teve como uma das suas preocupações centrais a de constituir uma ciência
– ciência entendida dentro de uma ótica mais ou menos positivista (e que não
pode por isso, naturalmente, incluir o político) – atuou na direção contrária:
fez um esforço para separar a linguística da política, da cultura e da história – e
também das demais ciências humanas – e para produzir uma visão cada vez mais
imanentista e sistêmica – estrutural – da língua, focada no código. Evidentemente
isso influenciou gerações de linguistas profissionais, e acabou conduzindo ao
desenvolvimento uma linguística de perfil mais teórico, e mais ou menos restrita
ao campo universitário.

167
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Costumo contar que quando fiz o bacharelado em linguística, na minha


graduação, no início dos anos 1980, tive 53 disciplinas na área, mas nunca ouvi
falar em política linguística, área acadêmica com a qual fui me familiarizar
minimamente apenas no mestrado na Alemanha na segunda metade da mesma
década. Não era algo corriqueiro, naquele momento, que se pensasse que
numa graduação em linguística houvesse a necessidade de tratar de política
linguística, ou de mostrar ao estudante que são tomadas decisões sobre as línguas e
realizadas ações sobre as línguas, isto é, que as línguas são também moldadas pela
intervenção humana.

A universidade, por outro lado, é um campo com lógica própria na


sociedade, como diria Bourdieu. Tanto é que a maioria dos linguistas que
conheço são professores universitários, e é dentro da universidade que fazem
as suas carreiras e constroem as suas práticas profissionais. Para todos os fins,
consideram-se muito mais professores universitários que linguistas.

Assim, considero importante ver o termo das duas perspectivas: da


perspectiva das políticas linguísticas propriamente ditas, como políticas públicas,
por um lado, e da área acadêmica chamada de “Política Linguística” por outro,
que, para a CAPES, é uma área da linguística, dentro da subárea de sociolinguística
ou de linguística aplicada, com uma história de uns 60 anos no meio universitário
ocidental, e recém na adolescência no Brasil.

No entanto, dos anos 1980 para cá, a questão tem mudado bastante, e
desde o início do século XXI tem crescido exponencialmente o interesse disciplinar
pela política linguística no Brasil e no mundo em geral, o que chamei em outra
oportunidade de “a virada político-linguística” nos estudos linguísticos.

A meu ver, o crescimento do interesse pelas políticas linguísticas, e


igualmente pela área acadêmica chamada política linguística, tem relação
com pressões da sociedade brasileira sobre o Estado após o processo de
redemocratização, plasmado pela Constituição de 1988. Essa “nova república”
que se inicia mais concretamente naquele momento, e tem hoje quase 30 anos,
com altos e baixos (até mais baixos que altos) interrompeu o processo autoritário
do Regime Militar e quis introduzir modificações no Brasil, quis introduzir um
modelo mais inclusivo de cidadania, mais aberto ao reconhecimento da diversidade
e da legitimidade das diferenças culturais e linguísticas dos brasileiros.

A nova república quis mudar algumas compreensões que o Brasil tinha


sobre si mesmo, tanto para acompanhar o movimento mundial de reconhecimento
do direito de ser diferente como para atualizar o conceito de cidadania, essencial
para o funcionamento de uma democracia, e isto precisava ser feito com a revisão
das compreensões mais tradicionais sobre o país e sobre os brasileiros.

Essa movimentação trouxe à luz diferentes políticas de inclusão, de fomento


à diversidade, de reconhecimento de direitos culturais, de internacionalização,
de desnaturalização, enfim, dos pressupostos da “Ilha Brasil”, monolíngue e

168
TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

monocultural, perfeitamente ocidental e cristã, estabilizada nos seus pressupostos


pelo Estado Novo e depois pelo Regime Militar, e com um espaço público criado e
mantido por meios de comunicação do nosso mainstream, em especial televisivos,
de perfil ainda colonial e antidemocrático [...].

Trata-se, então, de colocar esses ganhos epistemológicos e metodológicos


a serviço das sociedades, novamente citando Calvet, “porque afinal os homens
não existem para servir às línguas, mas as línguas para servir aos homens”. As
políticas linguísticas nos dão uma conexão entre as línguas e todo o resto do
universo humano, seus interesses, suas necessidades, suas visões de futuro.

Construir políticas linguísticas, então, é participar da construção do


futuro das sociedades, e mais especificamente da nossa sociedade; fazer política
linguística, pela própria noção de intervenção sobre as línguas, sem a qual
ela não existe, é atuar para um mundo mais justo neste campo específico das
línguas e dos seus usos, mais plural, mais democrático e mais aberto à ecologia
de saberes humanos. É reconhecer que também no campo do uso das línguas
há constantemente assimetrias de poder que favorecem a uns e calam os
outros, assimetrias que constantemente combateremos com os instrumentos da
planificação ou planejamento linguístico, numa guerra que finalmente não temos
(historicamente) como ganhar definitivamente, mas na qual podemos vencer
muitas batalhas importantes, “combatendo o bom combate”.

Dificilmente poderíamos dar hoje uma visão totalmente exaustiva sobre


as variadíssimas iniciativas, trabalhos e pesquisas que merecem o nome de
“políticas linguísticas”, dada a amplitude, e dado, ainda, que nos encontramos
em plena revolução digital no campo das línguas, que traz tantas modificações
para o campo.

REVEL – Em quais países os estudos de Políticas Linguísticas se


encontram mais avançados?

GILVAN – Bem, para retornarmos à dicotomia que propus no início da


entrevista, entre fazer política linguística e estudar as políticas linguísticas, acredito
que podemos dizer, em primeiro lugar, que cada país tem a política linguística
que necessita e que pode realizar. Dito assim, evidentemente, estou querendo
dizer que não se pode fazer qualquer política linguística em qualquer lugar ou
país simplesmente porque os fatores de poder, fatores geopolíticos, condicionam
fortemente cada movimento. Então seria difícil falar de políticas linguísticas mais
avançadas ou mais atrasadas e mais adequado tentar entender como é que um
Estado, por exemplo, tenta resolver um problema que se lhe coloca, com os meios
de que dispõe, e no horizonte da sua governança e das limitações ideológicas da
sua época e dos seus quadros gestores. Essa compreensão nos ajudará a intervir no
sentido de tornar essas políticas mais democráticas e respeitosas da diversidade,
se isso estiver ao nosso alcance.

169
UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO

Nesse caso encontraremos, nos diversos países, problemas e interesses


políticos fundantes, que fazem com que o Estado e suas instituições, mas
também o Mercado ou a sociedade civil, se concentrem em ações diversas no
âmbito das políticas linguísticas. Para uns, como a Índia, foi preciso reconhecer
uma multiplicidade de línguas para garantir a governança e a adesão ao
Estado e diminuir os conflitos. Para outros, como o Brasil, a continuidade
da dominação ideológica, econômica e militar do segmento luso-brasileiro
sobre outros segmentos constitutivos da cidadania, garantiu a força para levar
adiante a imposição do português como língua única, ainda que lentamente
se tenha permitido algum avanço, bastante tímido ainda, de iniciativas para o
plurilinguismo, como comentei anteriormente.

[...]

REVEL – Quais são alguns dos principais temas que ainda precisam ser
discutidos em Políticas Linguísticas, em especial no cenário brasileiro? Como
estão os estudos de Políticas Linguísticas no Brasil?

GILVAN – Políticas linguísticas são uma faceta das políticas públicas dos
países, das organizações internacionais, das corporações e instituições, e nesse
sentido são um fazer permanente do homem, sempre adaptadas a sua época,
aos interesses geopolíticos, econômicos e culturais em jogo numa determinada
fase histórica. Não se esgotam, mudam de foco; não se completam, estão sempre
em construção. Então talvez essa pergunta queira focalizar esse atual momento
histórico do Brasil, os desafios que estamos vivendo neste ano de 2016, ou nesta
segunda década do século XXI.

Vou responder lançando mão da contribuição de Richard Ruiz, de 1984,


no seu artigo Orientations in Language Planning, no qual apresenta três grandes
perspectivas dentro das quais as políticas linguísticas funcionam, e que captam
os esforços geopolíticos dos Estados na sua gestão do universo linguístico sob o
seu poder ou alcance.

Ruiz divide o campo das orientações em três: Língua como Problema,


Língua como Direito e Língua como Recurso. Se mapearmos as políticas
linguísticas veremos que em grande parte derivam de uma das três preocupações
e transcorrem dentro de uma das três chaves.

Assim, quando o Estado Novo brasileiro instituiu a Campanha de


Nacionalização do Ensino, com as suas ações de proibir o uso de línguas de
comunidades descendentes da imigração, algumas delas, então, já faladas em
território brasileiro há mais de cem anos, estava claramente vendo as Línguas como
Problema. Quando a Constituição de 1988, no entanto, incluiu a temática indígena,
nos artigos 210, 215, 231 e 232, e reconheceu aos índios “sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam” está no segundo quadro, que trata da Língua como

170
TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA

Direito. Quando os países de língua portuguesa, finalmente, criam um instituto


para promover a sua língua no exterior, tratam a Língua como Recurso, neste
caso um recurso do “soft power”, político, diplomático, com desdobramentos
econômicos.

Vivenciamos um momento histórico em que Língua como Direito e Língua


como Recurso orientam grande parte das políticas linguísticas. Boa parte das
ações do IPOL foram possíveis, nos últimos 15 anos, dado o crescimento da ideia
de que as comunidades têm direito ao uso das suas línguas, mas ainda mais forte
é a expansão das políticas que se orientam pela ideia de Língua como Recurso, em
especial na relação com a internacionalização dos mercados, do fluxo de pessoas
nas migrações internacionais, dos fluxos da informação e do conhecimento na
Internet, em forma digital.

[...]

Assim, para abreviar a conversa, o que estou sugerindo é que a área


mais dinâmica das políticas linguísticas nas próximas décadas, ocorrerá com as
políticas da chave de Língua como Recurso, na gestão do multilinguismo e na
criação de soluções plurilíngues onde antes se propunham soluções monolíngues.

Acredito, portanto, que precisamos ficar atentos a estes acontecimentos e


às novas políticas que daí decorrerão, e repito que estamos numa fase, no Brasil,
de grande crescimento do interesse pela política linguística, exatamente pela
percepção da necessidade de intervir no campo das línguas, num fenômeno que
chamei, há uns anos, como já disse no começo da entrevista, de a “virada político
linguística”. Penso que a linguística do século XXI será grandemente e cada vez
mais política linguística.

FONTE: OLIVEIRA, G. M. de. Políticas linguísticas: uma entrevista com Gilvan Müller de
Oliveira. ReVEL, v. 14, n. 26, 2016. Disponível em: www.revel.inf.br. Acesso em: 20 nov. 2019.

CHAMADA

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171
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A gestão do plurilinguismo, política e planejamento linguísticos se refere


à diversidade linguística, à pluralidade e à variação das línguas em contato
presentes em contextos diversos e que essa gestão se relaciona com o modo
como instituições, indivíduos e grupos lidam e agem com o plurilinguismo,
como administram as situações de uso das línguas.

• No Brasil se falam mais de 200 línguas, com destaque para os grupos indígenas,
as comunidades de descendentes de imigrantes, as comunidades surdas.

• As categorias de línguas são: línguas de imigração, línguas indígenas, línguas


afro-brasileiras, línguas de sinais, línguas crioulas, além das variedades
presentes no português, registradas no Inventário Nacional da Diversidade
Linguística do Brasil (INDL).

• O plurilinguismo pode ser definido como um termo que designa as


competências do falante em mais de uma língua, isto é, os usos das línguas do
falante, envolvendo uma postura linguística plural e social.

• O conceito de políticas linguísticas é definido como as relações de poder que


envolvem diversas atividades de cunho político, tais como a organização de leis,
portarias, regimentos. O conceito de planejamento linguístico é compreendido
como a implementação do que uma política orienta.

• Uma política in vivo envolve as práticas sociais por meio das quais os falantes
resolvem seus problemas de comunicação numa língua. Uma política in vitro
representa as intervenções sobre essas práticas sociais.

• A política linguística pode ser compreendida a partir de três componentes


interligados: práticas, crenças e gestão.

• Os principais tipos de políticas e planejamento linguísticos são: (i) políticas


linguísticas de corpus; (ii) políticas linguísticas de status; e (iii) políticas de
aquisição.

172
AUTOATIVIDADE

1 De acordo com a discussão feita no Tópico 3, defina a gestão do plurilinguismo.

2 Cite algumas políticas, mencionadas no texto, de proteção e de


reconhecimento da diversidade linguística no Brasil.

3 Quais são os conceitos de política e planejamento linguísticos apresentados


no Tópico 3?

4 Conforme o texto, quais são os tipos de políticas e planejamentos linguísticos?

5 (ENADE, 2015)

Texto 1

Se empreendermos uma grande viagem pelo Brasil, de Norte a Sul e de Leste


a Oeste, recolhendo os modos de falar das pessoas de todas as regiões, de
todos os estados, das principais cidades, da zona rural etc., vamos perceber
que existem diferenças nesses modos de falar, diferenças que podem ser
fonéticas, sintáticas, morfológicas, lexicais, semânticas, pragmáticas. Há muita
semelhança, também, mas são as diferenças que chamam mais a atenção e
que permitem classificar esses variados modos de falar a língua. Quando
você consegue identificar os traços característicos de determinado modo de
falar uma língua, você pode chamá-lo de variedade. A Sociolinguística veio
mostrar que toda língua muda e varia, isto é, muda com o tempo e varia no
espaço, além de variar também de acordo com a situação social do falante.

FONTE: BAGNO, M. Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola


Editoria, 2004.

Texto 2

“Olha; essa é pra quem tá arretado para conhecer um pouco mais sobre
Pernambuco”. – Cabeça do VT chamada por apresentadora.
“Então se aprochegue. A repórter Mônica Silveira mostra essa maneira
encantadora de falar”. – Cabeça do VT chamada por apresentador.
“É o mesmo Brasil, mas no meio de um bate-papo descontraído, esse parece
um país à parte” – Texto do off que abre o VT.
Na companhia da citada repórter, o poeta Jessier Quirino percorre um mercado
popular perguntando às pessoas o significado de determinadas palavras e
expressões, em ritmo de poesia falada. Dessa conversa, surgem os sentidos
atribuídos por nordestinos “Pedir pinico” (solicitar ajuda), “Assustado” (festa
surpresa), “Com a gota” (com raiva), “cocorote” (cascudo) e “pirangueiro”
(avarento).
VT produzido pela TV Globo Nordeste/Recife, veiculado no Bom Dia Brasil
em outubro de 2013. Tempo: 3''20'.
173
Considerando os excertos, avalie as afirmações a seguir:

I- Ao veicular uma reportagem destacando algumas formas variantes do


“nordestinês”, telejornais de abrangência nacional, notadamente em TV aberta,
contribuem para a divulgação das heterogeneidades da Língua Portuguesa.
II- Em telejornais de veiculação nacional, o texto jornalístico deveria recorrer
apenas à norma culta da Língua Portuguesa para possibilitar o entendimento
da reportagem pelo conjunto dos telespectadores, independentemente do
seu lugar de origem.
III- A abordagem de traços de variedades ou variantes sociolinguísticas de
determinadas regiões em uma edição de telejornal de âmbito nacional
possibilita aos telespectadores das demais regiões o conhecimento e a
valorização de entidades linguísticas diferentes da sua.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) II, apenas.
c) ( ) I e III.
d) ( ) II e III.

174
REFERÊNCIAS
AGUILERA, V. de A. Crenças e atitudes linguísticas: quem fala a língua brasileira?
In: RONCARATI, C.; ABRAÇADO, J. (Orgs.). Português brasileiro II: contato
linguístico, heterogeneidade e história. Niterói: Editora Federal Fluminense, 2008.

ALKMIN, Tânia Maria. Sociolinguística: parte 1. In: MUSSALIM, Fernanda;


BENTES, Anna C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. V. 1.
São Paulo: Cortez, 2001.

ALTENHOFEN, C. V. BROCH, I. K. Fundamentos para uma “pedagogia


do plurilinguismo” baseada no modelo de conscientização linguística
(language awareness). In: BEHARES, L. E. (Org.). V Encuentro Internacional
de Investigadores de Políticas Linguísticas. Universidad de la República y
Asociación de Universidades Grupo Montevideo: Montevideo, 2011. p. 15-24.

ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de língua sem pedras no


caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

ANTUNES, I. No meio do caminho tinha um equívoco: gramática tudo ou nada.


In: BAGNO, M. (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002.

BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação


linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BAGNO, M.; RANGEL, E. de O. Tarefas da educação linguística no Brasil. Rev.


Brasileira de Linguística Aplicada, v. 5, n. 1, 2005.

BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola


Editorial, 2011.

BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação


linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BLOMMAERT, J. Ideologias linguísticas e poder. Tradução de Ive Brunelli. In:


SILVA, D. do N.; FERREIRA, D. M.; ALENCAR, C. N. (Org.). Nova pragmática:
modos de fazer. São Paulo: Cortez, 2014. p. 67-77.

BORTONI-RICARDO, S. M. OLIVEIRA, T. de. Corrigir ou não variantes não


padrão na fala do aluno? In: BORTONI-RICARDO, S. M.; MACHADO, V. R.
(Orgs.). Os doze trabalhos de Hércules: do oral para o escrito. São Paulo: Parábola
Editorial, 2013, p. 45-62.

BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística


& educação. São Paulo: Parábola, 2005.

175
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na
sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

BROCH, I. K. Ações de promoção da pluralidade linguística em contextos


escolares. 2014.Tese de Doutorado – Programa de Pós-graduação em Letras,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial: IPOL, 2007.

CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.

CEREZOLI, J.; MENDONÇA, S. C. P.; SELLA, A. F. Crenças e atitudes linguísticas na


cidade de Missal e nas comunidades indígenas de Diamante do Oeste e São Miguel
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