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Ars nova

Página do manuscrito iluminado do Romance de


Fauvel, c. 1318, possivelmente a mais antiga fonte
de música Ars nova. Biblioteca Nacional da França,
Paris.[1]
Ars nova (em português: arte ou técnica
nova) foi o nome dado em sua origem,
estritamente, a um novo método de
notação musical, ars nova notandi (nova
técnica de notação); porém, as grandes
facilidades de escrita que o método
introduziu propiciaram o
desenvolvimento de todo um novo estilo
musical, que acabou por receber o
mesmo nome, vigorando no século XIV,
especialmente na França e na Itália. Em
contraposição, a técnica notacional e o
estilo do período precedente passaram a
ser conhecidos como Ars antiqua (arte
antiga). Suas principais distinções
formais e estéticas em relação à fase
anterior apareceram nos campos rítmico,
harmônico e temático, sendo
privilegiados os gêneros de música
profana; também foram criadas ou se
popularizaram várias estruturas novas de
composição, como o moteto e o
madrigal.[1][2]

No terreno da notação propriamente dita


aperfeiçoou-se o sistema da pauta, se
modificaram desenhos e valores de
várias notas e se introduziram diversos
símbolos inteiramente novos, provendo
para os compositores e intérpretes um
instrumento gráfico muito mais flexível e
exato para descrever e transmitir os
avanços técnicos e os crescentes e sutis
refinamentos da música prática.[3] No
final do período as inovações receberam
ainda maior sofisticação, dando origem à
escola chamada Ars subtilior, a arte mais
sutil.[4]

Embora dois sistemas principais de


notação houvessem emergido nos cerca
de 150 anos de prevalência dos
princípios da Ars nova, um na França e
outro na Itália, o sistema italiano não foi
capaz de assegurar uma penetração em
larga escala, e logo desapareceu diante
da maior eficiência do sistema francês.[3]
Tantas mudanças foram o reflexo do
criativo e inquisitivo período de transição
entre a Idade Média e o Renascimento,
quando o universo das primeiras fases
da Idade Média, dominado quase
monoliticamente pela Igreja Católica, deu
lugar a uma sociedade mais laicizada,
onde a influência do humanismo, da
escolástica, de uma tendência a uma
abordagem lógica e racionalista do
conhecimento, e do pensamento
idealista da civilização clássica greco-
romana, ora redivivo, se tornaram forças
determinantes em toda sua evolução.[5][6]
O legado dessa fase de intensa atividade
e renovação da música foi, na técnica, a
sistematização dos componentes
essenciais do sistema de notação
musical usada hoje em dia e o
lançamento das bases da polifonia a
várias vozes e da harmonia moderna, e,
na estética, a libertação dos
compositores de sua dependência das
formas eclesiásticas para veicular sua
melhor música, possibilitando ainda que
suas personalidades criativas individuais
ganhassem legitimidade e encontrassem
um novo espaço de expressão.[3] Além
disso, a Ars nova foi uma inspiração para
os compositores do século XX,
estimulando pesquisas no terreno
rítmico, perceptual, estrutural e
harmônico que levaram à revolução de
toda a arte musical moderna[7] e
também, especificamente, à criação da
técnica serial.[8]
Antecedentes
Ao longo da primeira parte da Idade
Média, chamada convencionalmente de
Alta Idade Média (476 - c. 1000), a
principal forma de música erudita era no
gênero sacro, cultivado pela Igreja
Católica e tipificado pelo canto
gregoriano. Suas fundações repousavam
no canto empregado na liturgia judaica,
mas logo iniciou uma evolução
autônoma influenciada pelas práticas
musicais do Império Bizantino e pelas
das igrejas cristãs primitivas dos celtas e
espanhóis, e especialmente pelo rito
galicano da Igreja Católica, mas era
grande a variedade de estilos e
procedimentos técnicos. Durante
séculos não se conseguiu uma unidade
musical no Catolicismo, e somente com
a reforma da liturgia empreendida pelo
papa Gregório Magno se estabeleceu
uma uniformização na música sacra, que
recebeu o nome de canto gregoriano em
sua memória. Contudo, sua transmissão
e sistematização eram prejudicadas pela
ausência de um sistema eficiente de
notação musical. Antes do século IX as
notações que se dispunham eram muito
esquemáticas, e consistiam em sinais
gráficos simples, os neumas, apostos
sobre o texto da música como mero
auxílio mnemônico para um repertório
sonoro que se perpetuava basicamente
pela tradição oral. Esses sinais vagos
indicavam apenas os contornos gerais
da melodia e não podiam assinalar com
exatidão a altura das notas nem o
padrão rítmico da melodia. Além disso,
todo o canto gregoriano é monódico, ou
seja, existe uma única linha melódica
sem qualquer acompanhamento que é
cantada ou por um cantor solista ou em
uníssono por todo o coro.[9]

O canto gregoriano tinha um uso em


toda a liturgia católica, desde os serviços
simples das Horas até a celebração mais
importante, a Missa. Para cada serviço
divino existia um rito próprio, com cantos
especiais - hinos, antífonas, graduais,
etc. - mas seu estilo era idêntico. Com o
passar do tempo, fixando-se o Ordinário
da Missa, a sua parte que é invariável,
consolidou-se a "missa" como um
gênero musical específico com uma
sequência de trechos constante (Kyrie,
Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei), e pela
importância da celebração de onde
nasceu, também se tornou a forma
musical mais prestigiada. Logo os
músicos, a fim de enriquecer o ritual,
passaram a estabelecer regras definidas
para a composição de peças novas de
canto gregoriano, o que levou ao
ressurgimento formal da composição
como arte por direito próprio, depois do
seu virtual desaparecimento após a
queda do Império Romano, e se
aplicaram a escrever novas melodias
também para as seções da Missa que
variavam de acordo com os dias,
chamadas coletivamente de o Próprio da
Missa. Assim seções como o aleluia,
hinos e antífonas para diversos santos, o
Pai Nosso, a Ave Maria, e outras
adquiriram um status de gêneros
musicais autônomos.[9]

Manuscrito com sistema notacional neumático, no


trecho central em letras menores.
Moteto escrito no sistema notacional dásio.

Guido d'Arezzo: hino Ut queant laxis, escrito na pauta


inventada por ele, com uma transcrição para notação
moderna ao lado.

Todas as melodias eclesiásticas


gregorianas se encaixam numa das
classificações de um sistema
organizado em modos, diretamente
derivado dos modos gregos, que eram
padrões básicos para ordenar as notas
dentro de uma escala diatônica. Todos
os modos abrangiam apenas uma oitava
cada um, e possuíam uma nota de
importância central, a dominante, que
fornecia uma espécie de centro de
gravidade em torno do qual se
estruturava a melodia, e uma nota
chamada de final, onde necessariamente
a melodia deveria encerrar. Os modos se
dividiam em dois grupos, quatro sendo
considerados autênticos e quatro deles
derivados, os plagais ou falsos, que
tinham a mesma final mas outra
dominante e se desenvolviam dentro de
uma oitava diferente. Como exemplo, o
primeiro modo autêntico iniciava e
terminava suas melodias na nota ré, sua
dominante era o lá uma quinta acima e
se desenvolvia entre ré e ré. Seu modo
derivativo, o primeiro plagal, se
desenvolvia na oitava de lá a lá, tinha sua
final em ré e sua dominante em fá. A
diferença prática mais evidente entre os
modos era que a posição relativa dos
semitons na escala diatônica variava, o
que contribuía para dar a cada modo
uma atmosfera sonora especial.[9]

Em algum momento do século IX os


compositores deram um passo crucial
para o futuro desenvolvimento da
música do ocidente introduzindo uma
segunda linha melódica ao canto
gregoriano. De início essa segunda voz, a
vox organalis, imitava a linha original
nota a nota, mas sendo cantada no
intervalo de uma quarta abaixo da
melodia principal, e esta técnica foi
chamada de órganon ou organum.[9]
Entretanto, os organa iniciavam e
terminavam com ambas as linhas em
uníssono, de forma que para alcançar o
intervalo de quarta e também para
terminar a peça era necessário um
pequeno movimento não-paralelo, sendo
esta a tímida origem do contraponto.[10]
Na mesma época apareceu o primeiro
tratado de música a sistematizar as
inovações, o Musica enchiriadis, cuja
autoria é controversa, que logo foi
acompanhado de um comentário, o
Scolica enchiriadis. O Musica enchiriadis
trata da notação musical, valendo-se de
um sistema especial chamado notação
dasiana, analisa os modos eclesiásticos
e o canto gregoriano e usa uma escala
musical inspirada no sistema grego dos
tetracordes. Também traz seções sobre
intervalos consonantes e dissonantes e
dá regras como conduzir o organum. Já
o Scolica enchiriadis esclarece as teorias
do outro tratado em um longo
comentário três vezes mais extenso que
seu original, além de enfatizar as
relações da música com a matemática e
usar o monocórdio para ilustrar as
relações intervalares. Ambos os tratados
trabalham sobre conceitos musicais que
tinham conotações metafísicas a partir
do pensamento idealista desenvolvido
pelas escolas filosóficas de Pitágoras e
Platão, que associavam a beleza,
simetria e ordem com as virtudes morais
e para quem a estrutura do cosmos
estava fundamentada em relações
matemáticas que tinham um paralelo
nas consonâncias musicais. E a fim de
evitar as dissonâncias no organum
primitivo, entre elas o "perigoso" trítono,
chamado de diabolus in musica (o diabo
na música), os tratadistas admitiam
alguns pontos de exceção ao
paralelismo rigoroso.[11]

No século XI o sistema notacional foi


aperfeiçoado pelo monge italiano Guido
d'Arezzo em seu tratado Micrologus (c.
1026), cuja teoria suplantou em poucas
décadas o sistema impreciso dos
neumas e outros semelhantes e deu ao
mundo a primeira pauta musical, além de
ter batizado as notas com seus nomes
modernos. A pauta de Guido
possibilitava o reconhecimento da altura
exata das notas através de um quadro
dividido em linhas horizontais, onde cada
nota era colocada em uma posição
constante, mas se trouxe um novo senso
de exatidão à prática musical, também
ocasionou a perda de muitas nuances de
afinação microtonal e de notas de
passagem que eram usadas com
frequência no canto prático. Por outro
lado, na mesma época em que Guido
revolucionava a escrita da música,
mosteiros da França central introduziram
outras e importantes inovações, estas no
campo da forma e estilo, e com eles a
técnica do organum foi levada adiante
com a libertação da vox organalis de sua
estrita sujeição à linha gregoriana,
permitindo-lhe livres elaborações e
mesmo que ela passasse para cima da
melodia original, recebendo o nome
então de superius, superior, que mais
tarde deu origem ao termo moderno
soprano. Em contrapartida, a voz inferior,
por reter a melodia gregoriana original,
passou a ser chamada de tenor, de
tenere, segurar, em latim, ou de cantus
firmus, canto firme ou invariável. Com a
flexibilização de seu movimento, a vox
organalis seguiu frequentemente um
movimento contrário à melodia original,
salientando seu caráter contrapontístico
- de "ponto contra ponto", ou "nota contra
nota" - numa técnica que nesta época era
conhecida como discantus e era em
larga medida improvisada. Um pouco
mais adiante a vox organalis se libertou
também da observância do contraponto
estrito, embelezando-se com melismas
que chegaram a ser bastante extensos, a
ponto de o tenor ser obrigado por vezes
a sustentar notas por longos períodos de
tempo a fim de permitir que o superius
terminasse suas ornamentações,
alterando assim a estrutura e o ritmo da
música.[12]

Pater noster, em canto gregoriano -


gravação ao vivo

Ave Maria em canto gregoriano -


gravação ao vivo
Ars antiqua

Abertura do organum a 4 vozes Viderunt omnes, de


Pérotin. MS Pluteo 29, 1. Biblioteca Medicea
Laurenziana, Florença.

Finalmente, esses avanços foram


levados a uma primeira culminação na
chamada Escola de Notre-Dame, nascida
no século XII no ambiente da Catedral de
Notre-Dame em Paris, cujos principais
mestres foram Léonin e Pérotin. Com
eles o organum atingiu um novo patamar
de complexidade e refinamento,
tornando-se composições de grandes
proporções e produzindo um efeito de
impactante opulência sonora, já capazes
de veicular uma verdadeira originalidade
criativa individual e expressar
sentimentos de intenso misticismo.
Léonin trabalhou ainda principalmente a
duas vozes, mas Pérotin expandiu a
técnica do organum para incorporar uma
terceira e às vezes uma quarta voz, e
ampliando as ornamentações das vozes
superiores de modo a na prática obliterar
a percepção da melodia gregoriana do
tenor, fazendo com que suas notas se
prolongassem desmedidamente e
funcionassem mais como pontos de
pedal. A atenção maior da música nesta
fase se dirigia, assim, para os ricos
diálogos entre as vozes superiores, que
já podem ser caracterizados como uma
polifonia plena, além de suas complexas
relações intervalares serem a base da
moderna noção de harmonia. Ademais,
com a interpolação de textos e melodias
heteróclitos nas composições pré-
existentes, se deu nascimento ao moteto
polifônico, uma forma que rapidamente
adquiriu popularidade. Esse novo estilo
foi o que mais tarde se denominou Ars
antiqua ou Ars vetus (arte antiga), a base
imediata para os desenvolvimentos
ulteriores da Ars nova ou Ars
modernorum (arte nova ou moderna). O
corpo conceitual da Ars antiqua
continuava adotando os princípios
matemático-morais da filosofia clássica
pagã, ora cristianizada, e nele o número
três era especialmente privilegiado, por
suas associações com a Santíssima
Trindade. Daí derivou a preferência
absoluta dos compositores da Ars
antiqua por tempos e ritmos ternários,
que se organizavam nos chamados
modos rítmicos, inspirados nos metros
da poesia e que se dividiam em seis
padrões básicos que, contudo, podiam
ser variados em três ordens cada um.[13]

Pérotin - organum Quid tu vides (versão


instrumental midi)
Pérotin - seção do moteto Sederunt
principes (versão instrumental midi)

Uma excelente gravação do organum


de Pérotin Viderunt omnes pelo Hilliard
Ensemble está disponível aqui

Contexto e visão geral


A transição do século XIII para o século
XIV viu uma rápida evolução na maneira
de compor música erudita, com o
aparecimento de formas novas e mais
sofisticadas e uma progressiva e
marcada tendência à secularização, a
ponto de com poucas exceções toda a
melhor música desse período foi
profana. Parte dessa tendência se
explica pelo relativo descrédito em que
caiu a Igreja Católica, envilecida por seu
envolvimento com as coisas do mundo e
por fim submetida ao poder temporal do
rei da França, que obrigou o papado a
transferir sua sede de Roma para
Avinhão e fez dos papas na prática seus
vassalos, além de ter perseguido e
desestruturado a até então poderosa
Ordem dos Templários. Também
contribuiu o fato de que a sociedade
laica se afirmava em vista do
crescimento do comércio e da crescente
sofisticação das cortes principescas,
que se tornavam centros de moda e
cultura. O reflexo disso na música foi a
popularização do moteto com texto
profano como o campo experimental por
excelência da música erudita,
expandindo suas dimensões para obras
de grande envergadura.[14]

No fim do século XIII o ritmo binário já se


percebia latente dentro do uso
onipresente dos ritmos ternários, mas
aquele só podia ser obtido por meios
indiretos. Como o impulso para a adoção
de ritmos alternativos e mais complexos
crescia, se fez necessária a invenção de
novos métodos de notação, que
detalharam o sistema sintético de Guido
d'Arezzo. A história dessa evolução é
reconstituída precariamente, pela
escassez de fontes. O primeiro tratado
abrangente sobre notação, posterior a
ensaios sumários como o anônimo
Discantus positio vulgaris, de c. 1230, foi
o De mensurabili musica, de Johannes de
Garlândia, escrito possivelmente em
torno de 1240, e praticamente todas as
experimentações anteriores nesse
campo permanecem não documentadas,
embora o tratado de Garlândia
certamente tenha usado referências
mais antigas. Somente no fim do século
XIII surgiu outra obra de vulto, o tratado
Ars cantus mensurabilis de Franco de
Colônia, um trabalho muito mais
sistemático e lógico do que o de
Garlândia, e que expandiu as
possibilidades da notação rítmica para
muito além do imaginado pelo seu
antecessor, dando origem ao nome
Notação Franconiana como foi conhecido
o seu sistema. Apesar de seu mérito
intrínseco e sua ampla divulgação, não
sobrevive nenhum exemplo musical que
obedeça às regras que ele propôs, e os
tratados posteriores a ele se
preocuparam mais em adaptar seu
sistema altamente idealista às
necessidades da música prática.[15]
Página do tratado de Vitry.
Esquemas proporcionais no tratado Libellus cantus
mesurabilis, de Johannes de Muris.

No início do século XIV diversos


compositores e teóricos franceses já
começavam a expandir os sistema
Franconiano criando novos valores para
as notas e introduzindo os ritmos
binários, cujos metros podiam ser
combinados de uma grande variedade de
formas. A mais antiga fonte importante
de informação sobre as práticas da Ars
nova foi o tratado do astrônomo,
matemático e teórico musical Johannes
de Muris Notitia artis musicae, de c.1319,
em dois volumes, tratando da geração do
som, das proporções, da história da
música, da indivisibilidade das notas
básicas, da equivalência entre ritmos
binários e ternários, do gamut e da teoria
mensural, dividindo os tempos padrão
em quatro graus. O termo específico Ars
nova apareceu pela primeira vez
publicado no tratado Ars Nova Musicae,
escrito em torno de 1320 por Philippe de
Vitry, também em dois volumes, em
parte uma glosa do trabalho Plana
musica de Garlândia, tratando dos
intervalos, gêneros, proporções,
monocórdio, notação, solmização,
musica ficta e da notação mensural mais
moderna de sua época, defendendo a
adoção livre do ritmo binário,
descrevendo a isorritmia, codificando os
modos rítmicos e estabelecendo a
mínima como unidade de medida básica,
em valores de hoje algo entre a colcheia
e a semicolcheia.[16][17] A maioria das
fontes posteriores referem Vitry como o
inventor do sistema Ars nova, e ele foi
possivelmente o seu mais ativo defensor,
mas segundo Thomas Christensen o
mais importante e influente compêndio
de teoria Ars nova foi escrito por Muris
em torno de 1340-1350, intitulado
Libellus cantus mensurabilis,[18] que
permaneceu como a principal obra de
referência teórica até o século XV.[19]
Entretanto, a atribuição da autoria
dessas obras é controversa, há confusão
com a existência de dois Johannes de
Muris, um trabalhando em Oxford e outro
em Paris, e já se sugeriu que a própria
obra de Vitry foi uma produção do
segundo Muris.[20] Mais ou menos ao
mesmo tempo, na Itália trabalhava o
compositor e teórico Marchetto de
Pádua, que em data ainda incerta
escreveu seus influentes tratados
Lucidarium in arte musice plane e
Pomerium in arte musice mensurate
(possivelmente entre 1310 e 1326),
abordando os cromatismos, notação,
história da música, canto gregoriano,
ritmos, consonâncias e dissonâncias,
afinação, modos, técnicas permutativas
e escrita polifônica, introduzindo vários
conceitos originais em relação aos
franceses e fundando a escola italiana
da Ars nova.[21][22]

Com eles se iniciou uma fase de aguda


ênfase nos processos rítmicos e
notacionais baseados nas proporções
matemáticas, e a partir de números
simples intercambiados ora se podia
criar uma imensa quantidade de efeitos
práticos inauditos, o que não surpreende
se sabemos que a música nessa época
fazia parte do quadrivium lado a lado
com a aritmética, a geometria e a
astronomia, e a maioria dos tratadistas
da música do século XIV tinha sólida
formação matemática. Foram eles que,
antes dos matemáticos profissionais,
lançaram os fundamentos da teoria da
multiplicação continuada de números
inteiros e fracionais por eles mesmos,
sistematizada somente mais tarde pelo
matemático Nicole d'Oresme, ele próprio
também um musicólogo.[23] Outro fator
que levou a música a sucumbir a tal
detalhamento e matematização foi que
toda a atmosfera intelectual do século
XIV primou pela sutileza conceitual das
distinções racionalistas em todos os
campos do saber. Foi a era de ouro da
escolástica e da lógica, e o surgimento
de um novo corpo de conhecimento pan-
europeu proporcionou a unificação das
linguagens e terminologias científicas e
intelectuais, com o resultado de se poder
fundar uma nova metodologia educativa
nas universidades, lançar novos
princípios formais e elaborar sistemas
descritivos e normativos para todas as
artes liberais com um rigor, sofisticação,
detalhamento e elegância estética
enormes. As consequências dessa
tendência para a música foram
revolucionárias, com seus sinais
evidentes nas novas e complexas
propostas notacionais. Não apenas os
ritmos e tempos foram trabalhados
extensivamente, mas também se operou
uma profunda mudança nas próprias
formas e duração das notas, sentindo-se
os compositores livres para subdividir a
unidade básica à sua vontade, surgindo
uma verdadeira explosão de novas
figuras, compendiadas no Tractatus
figurarum, atribuído sem muita certeza a
Philippus de Caserta ou a Aegidius de
Murino.[5] Para tornar a descrição do
progresso da Ars nova notandi ainda
mais complexa, é conhecido que ao
longo de todo o século XIV até para
dentro do século XV, permaneceram em
uso, ao lado dos novos, sistemas mais
antigos, e existem evidências para
acreditar que mesmo em datas recuadas
os sistemas de notação eram lidos na
prática de forma muito mais flexível do
que se supõe usualmente. Ao mesmo
tempo, não parece ter havido uma
discriminação de hierarquia valorativa
entre todos os sistemas usados, mas
simplesmente eram vistos como formas
alternativas de escrever música.[15]

Pode parecer que as composições


resultantes desses esquemas estruturais
pré-concebidos fossem obras áridas,
mas a combinação engenhosa de vários
modos rítmicos na mesma peça e o
nascimento de um novo e mais fluente
senso melódico e uma noção incipiente
de harmonia como hoje a conhecemos,
nas mãos de mestres como Vitry,
Guillaume de Machaut e outros,
produziram composições ao mesmo
tempo altamente intelectualizadas e
também poéticas. Mesmo assim,
segundo Hindley, aparentemente o
caráter intelectual acabou por prevalecer
tanto na obra de Vitry como na de toda a
primeira geração Ars nova, e somente
com a produção de Machaut, a maior
figura de todo o período, pôde emergir de
fato um verdadeiro lirismo de todas
essas elucubrações matemáticas que
permeavam a arte de compor.[14] A forte
índole racionalista e secular da música
Ars nova, junto com uma maior
preocupação de criar uma música mais
individual e próxima da natureza dos
sentimentos, a despeito das
complexidades rítmicas, a tornam, pois,
o elo de ligação entre a música medieval
e a música renascentista,[23] tanto mais
que suas inovações não se deveram
somente aos franceses, mas também
aos italianos, cujo Renascimento cultural
se iniciou exatamente nesta época e se
desenvolvia dentro de um contexto
eminentemente urbano, cortesão e
intelectualizado, onde a influência da
filosofia clássica era marcada. No
contexto italiano o florescimento de uma
nova poesia, o dolce stil nouvo (o doce
estilo novo), com seus líderes em Dante
Alighieri e Petrarca, também deu ímpeto
à criação de uma nova estética musical,
e os textos de ambos foram muitas
vezes postos em música. Os italianos
deram grande contribuição adicional
ampliando o espectro de formas,
cultivando a ballata, a caccia e sobretudo
o madrigal, aplicando-lhes os princípios
da Ars nova com um senso de tonalidade
muito mais pronunciado e um
melodismo mais rico que seus
correspondentes franceses. Também
cultivaram a canção solo com
acompanhamento polifônico
instrumental que chegou aos limites do
virtuosismo, ao mesmo tempo em que a
chanson francesa ganhava corpo junto
com o aparecimento das "formas fixas"
do rondeau e do lai. Todas essas formas
musicais profanas se unificavam no
gosto pelos ritmos vivazes e
engenhosos, nos tempos rápidos e nas
refinadas figurações ornamentais, e sua
estética contaminava até a música
sacra, desencadeando desde logo uma
previsível reação. Já em 1322 o papa
João XXII lançara uma proclamação
condenando os excessos, e em 1324
voltou à carga com a bula De vita et
honestate clericorum (também conhecida
como Docta sanctorum patrum) banindo
todas as inovações da Ars nova do
ambiente eclesiástico, produzindo o
resultado natural de que a música mais
investigativa e criativa do século XIV
fosse produzida quase em sua totalidade
fora da Igreja.[6][24] É de interesse
transcrever trechos do documento pois
através de sua condenação ele traça um
sumário das práticas da Ars nova:

Papa João XXII.


"A competente autoridade dos Padres
decretou que, ao se cantar os ofícios
do louvor divino através dos quais se
presta a devida homenagem a Deus,
devemos evitar cuidadosamente a
violência às palavras, mas devemos
cantar, com modéstia e gravidade,
melodias de um caráter calmo e
pacífico. Pois está escrito: de seus
lábios saíram palavras doces. Mas
os sons são verdadeiramente doces
quando o cantor, quando fala a Deus
em palavras, lhe fala também com
seu coração, e assim, através de suas
canções, desperta a devoção em
outros… Mas certos expoentes de
uma nova escola, que pensam
apenas nas leis do tempo medido,
estão compondo novas melodias de
sua própria criação com um novo
sistema de notas, que preferem à
música antiga e tradicional; as
melodias da Igreja são cantadas em
semibreves e mínimas e com notas
de passagem. Mas alguns quebram
suas melodias em hoquetus ou as
privam de sua virilidade com discanti,
tripla, motectus, com um elemento
perigoso produzido por certas partes
cantando textos em vernáculo; tudo
isso são abusos que têm levado ao
descrédito as melodias básicas do
Antifonário e do Gradual; esses
compositores, não sabendo nada das
verdadeiras fundações sobre as quais
constróem, ignoram os Modos, são
incapazes de distinguir entre eles, e
causam grande confusão. O número
de notas nessas composições
esconde a melodia do canto
gregoriano e seus simples e bem
regulados movimentos que indicam o
caráter do Modo. Esses músicos
correm sem descanso, intoxicam o
ouvido sem satisfazê-lo, dramatizam
o texto com gestos e, em vez de
promover a devoção, a subvertem
criando uma atmosfera sensual e
artificiosa. Assim disse Boécio, com
boas razões: Uma pessoa que é
intrinsecamente sensual se deliciará
ouvindo essas melodias indecentes,
e quem as ouve com frequência será
enfraquecido e perderá a virilidade
de sua alma… Contudo, não
pretendemos proibir o uso ocasional -
principalmente nas festas solenes da
Missa e do Ofício Divino - de certos
intervalos consonantes superpostos
ao canto eclesiástico simples, desde
que estas harmonias estejam no
espírito e caráter das melodias que
ornamentam, como, por exemplo, as
consonâncias de oitava, de quinta, de
quarta e outras dessa natureza; mas
sempre sob a condição de que as
melodias originais permaneçam
intactas na pura inteireza de sua
forma…"[25]

Do seu ponto de vista ele tinha razão


para dizer isso, pois em sua época a
música eclesiástica havia absorvido
inúmeras melodias profanas de dança e
um pouco mais tarde os motetos sacros
chegaram mesmo a usar textos
paralelos de caráter erótico. E o seu
protesto não foi isolado, houve outros
críticos do novo sistema, dos quais o
mais importante foi Jacques de Liège,
defendendo em linhas gerais os mesmos
argumentos da Igreja. A confusão que
eles encontravam na música Ars nova se
devia tanto ao abandono das relações
clássicas entre matemática, música e
ética, quebrando o conceito de música
como reflexo da harmonia cósmica, mas
também ao uso de ritmos e modos
irregulares, como ficou explícito acima, e
textos diferentes para cada voz, às vezes
até em línguas diferentes, a serem
cantados ao mesmo tempo,
prejudicando seriamente a
inteligibilidade da mensagem verbal.[26]
Contudo, a admissão pelo papa de
certos intervalos consonantes e de uma
polifonia simples era um
reconhecimento tácito da força com que
as mudanças se processavam, uma
força que se revelou irresistível, a ponto
de sua proibição cair no vazio quando
logo em seguida outro papa, Clemente
VI, sem qualquer prurido de consciência
em torno de 1342 começou a recrutar os
melhores cantores de seu tempo para a
própria capela papal em Avinhão e
autorizou o canto polifônico do Ordinário,
e quando chegou o fim do século a
missa polifônica se tornara o mais
importante gênero de música sacra,
suplantando o próprio canto
gregoriano.[27]

Segundo Lawrence Earp, a Ars nova


atingiu seu apogeu em torno de 1350,
com o amadurecimento das "formas
fixas" das canções polifônicas através da
obra de Guillaume de Machaut e Pierre
des Molins, com a consolidação do
moteto isorrítmico por Philippe de Vitry,
Machaut e outros, e com a sumarização
das novidades teóricas na obra Libellus
cantus mesurabilis de Johannes de
Muris. Duas décadas depois o estilo foi
ainda mais sofisticado por compositores
ativos especialmente no sul da França,
em torno da corte papal de Avinhão, nas
cortes de Gastão III Febo e João I de
Aragão, e em alguns pontos da Itália
como Verona, Milão e Florença,
formando a escola chamada Ars
subtilior, que vai ser descrita mais
adiante.[1][28]

Relações harmônicas e
rítmicas
Para compreendermos o sistema
harmônico Ars nova é preciso remontar
ao tempo da Grécia Antiga. Segundo a
tradição, Pitágoras, no século VI a.C.,
pela primeira vez descreveu os intervalos
musicais tidos como consonantes
através da matemática. Usando relações
aritméticas entre os quatro primeiros
números inteiros junto com
experimentos práticos, definiu o intervalo
consonante de oitava como aquele
obtido dividindo-se uma corda sonante
de doze unidades de comprimento, que
gerava a nota básica, em duas partes de
igual extensão, com seis unidades,
dando a proporção de 1:2. Limitando
uma extensão de quatro unidades (1:3),
obtinha-se o intervalo de uma oitava
mais uma quinta, e com um
comprimento de três unidades (1:4), o
resultado era duas oitavas acima da nota
básica. Todas essas proporções, 1:2, 1:3
e 1:4, geravam intervalos consonantes
de acordo com a percepção da época.
Outros intervalos consonantes podiam
surgir com a inter-relação dessas
proporções iniciais - 2:3 e 3:4 - que
geravam os intervalos de quinta e quarta,
respectivamente. Além disso, Pitágoras
percebeu que 1+2+3+4=10, e que 10
unidades podiam ser representadas
graficamente através de 10 pontos
equidistantes dentro de um triângulo
equilátero com quatro unidades de lado,
uma figura chamada de tetraktys, que era
imbuída de especial significado místico,
contendo em si todas as relações
consonantes, sendo considerada por
isso um símbolo da perfeição. Mas em
certo momento Pitágoras e seus
seguidores abandonaram o
experimentalismo, desconfiando que os
sentidos humanos, uma vez que
variavam de indivíduo para indivíduo, não
poderiam dar acesso à Verdade, e
passaram a investigar a música somente
através da matemática, um instrumento
ideal de pesquisa que o aparato
sensorial humano não era capaz de
igualar; com isso o experimentalismo se
tornava irrelevante, e a música deixava o
território da arte e se tornava um
domínio das ciências exatas, tornando-
se passível de normatização
rigorosa.[29][30]

Relações intervalares baseadas na teoria de


Pitágoras

Também se credita a ele a origem da


teoria da música das esferas, que
declarava que a música humana era um
reflexo da música produzida pelo
movimento dos corpos celestes.
Aristóteles descreveu mais tarde esse
conceito, dizendo que

"o movimento dos corpos de


dimensões astronômicas deve
produzir som, uma vez que na terra
corpos muito menores em
movimento produzem este efeito.
Ainda, quando o sol e a lua e as
estrelas, tão grandes em número e
tamanho, se movem, como se diz,
com um movimento rápido, como
não produziriam um som
proporcionalmente grande? A partir
deste argumento, e da observação de
que suas velocidades, medidas pelas
suas distâncias, estão na mesma
proporção que as consonâncias
musicais, eles dizem que o som
produzido pelo movimento circular
dos astros é uma harmonia".[29]

Essa teoria era atraente por que ao


mesmo tempo explicava a origem da
música humana - um reflexo da
harmonia divina, a potência pela qual o
mundo fora criado - e dava uma razão
pela qual o ouvido experimentava certos
intervalos como consonantes e outros
como dissonantes, estando estes fora do
esquema celeste.[29] Intimamente ligado
aos conceitos de harmonia e movimento
estava o de ritmo, que representa o
impulso que estabelece padrões
organizados e estrutura desde o cosmos
até as relações sociais e ciclos vitais.
Assim, toda a descrição do universo na
escola pitagórica estava fundamentada
no número e nos elementos da música, e
o princípio da harmonia adquiriu fortes
conotações éticas, sendo o alicerce de
todo o classicismo. No século V a.C. os
músicos práticos já haviam estabelecido
escalas musicais derivadas das
consonâncias encontradas no modelo do
tetraktys, resultando nos modos gregos.
Eles definiram também outros intervalos
através de combinações ulteriores sobre
o esquema básico. Além dos músicos
outros filósofos expandiram os
princípios pitagóricos para a explicação
do mundo físico e do mundo espiritual,
como Platão e Aristóteles. Em suma, a
música era muito mais do que uma arte,
era uma forma de se conhecer o plano
divino para o mundo e um meio de elevar
as almas até a contemplação da
Verdade. E mais do a música, a
matemática pitagórica influenciou
também a literatura na definição da
métrica e da rítmica poética, tendo uma
influência igualmente vasta sobre a
escultura, a pintura e a arquitetura ao
longo de muitos séculos à frente.[30][31]

Esses conceitos perduraram até o fim da


civilização helenística, e foram
absorvidos pelos primeiros pensadores
cristãos. São Jerônimo, parafraseando
Pitágoras, disse que a harmonia do
mundo e a ordem e concórdia de todas
as criaturas produziam uma canção
espiritual. Para Santo Agostinho, as
proporções matemáticas se
encontravam em todas as
manifestações da Beleza, e Boécio
deixou escritos onde detalhou
exaustivamente o sistema pitagórico.
Dessa forma, no mundo cristão a música
continuou sendo vista como o Número
sonorizado e como uma proclamação do
Logos, a Palavra divina. Nos séculos IX e
X, quando iniciaram as primeiras
tentativas de canto litúrgico a duas
vozes, os intervalos de oitava, quinta e
quarta continuavam sendo os únicos a
serem considerados consonantes, mas
sob a influência das escolas inglesa e
lombarda algumas notas de passagem e
ornamentos podiam eventualmente cair
fora desses intervalos, como a segunda
maior e a terça maior. No século XI o
sistema foi tornado ainda mais rigoroso,
com o declínio da quarta como
consonância, e chegando nos séculos
XII-XIII a influência da filosofia pitagórica
conheceu uma nova expansão através da
obra dos membros da Escola de Notre-
Dame, da Ars antiqua, quando as
proporções matemáticas foram
aplicadas consistentemente à definição
do ritmo musical de maneira
independente da métrica poética, como
uma dimensão autônoma da arte
musical sujeita a regras proporcionais e
requerendo uma coordenação exata com
os tempos da música, até então
concebidos de uma forma bastante
elástica e imprecisa.[32]

Análise estrutural do moteto a três vozes Entre


Copin-Je me cuidoie-Bele Ysabelos, a partir da
oferecida pelo pesquisador Manuel Ferreira.[33]
Em meados do século XIII, em um
comentário dos Elementos de Euclides
escrito por Campano da Novara, a
aritmética foi submetida à geometria, a
qual, por tratar de planos contínuos no
espaço, admitia não só proporções
racionais mas também irracionais. A
consequência disso para a música foi
que a libertou da necessidade de
conceber o tempo musical como uma
adição sucessiva de unidades de tempo
invariáveis, e introduziu na concepção
rítmica o uso de uma proporção
específica, a Seção áurea, onde o termo
menor está para o maior assim como o
termo total está para a soma dos termos
maior e menor - a:b::b:(a+b), uma
proporção também carregada de
significados místicos e teológicos.
Segundo Ferreira, quando o moteto, já no
século XIV, assumiu a posição de forma
musical mais importante, passou a ser
concebido como um todo temporal
dividido em partes congruentes,
tentando-se capturar em sua
organização temporal tanto a tradição
pitagórica racional como esta proporção
irracional tão significativa. Ambas foram
usadas para se determinar a posição
relativa de módulos temáticos e rítmicos,
de intervalos especialmente marcantes,
de divisões formais, de palavras
importantes, de deslocamentos rítmicos
e de vários outros elementos musicais
que deviam chamar uma atenção maior.
A ilustração acima traz uma análise
estrutural de um moteto anônimo. Os
triângulos vermelhos assinalam as três
aparições da palavra Deus, entre a
metade exata e o ponto da Seção áurea.
A área sombreada assinala um trecho na
técnica do hoquetus, com alternâncias
rápidas de fragmentos melódicos entre
as vozes, e ocupa o espaço que, no limite
anterior, reflete o intervalo de quinta
(2:3), e no limite posterior, o de quarta
(3:4). O espaço correspondente ao
intervalo de oitava, 1:2, a metade exata
da estrutura, é o ponto da primeira
aparição da palavra Deus. As três
palavras Deus aparecem, finalmente, em
pontos que formam um triângulo, um
símbolo da Santíssima Trindade. Outro
exemplo típico é encontrado no moteto
de Vitry Firmissime-Adesto-Alleluia, que
trata da Santíssima Trindade. O ponto da
Seção áurea cai exatamente quando são
ditas as palavras personis tribus (três
pessoas). O tenor está construído de
forma que a primeira exposição da
melodia ocupa três vezes o tempo da
segunda exposição, e a mesma
proporção de 3:1 se aplica entre suas
respectivas divisões rítmicas.[34]
Fragmento do Kyrie isorrítmico da Messe de Nostre
Dame de Machaut. Uma color de 28 notas é

construída com uma talea de quatro notas que se


repetem sete vezes.

Nesses esquemas rítmicos foi de


especial importância o isorritmo, uma
evolução do sistema dos modos rítmicos
que combina uma sequência de notas
com um padrão rítmico fixo, donde seu
nome, de iso, igual. Cada célula rítmica
era chamada de talea, e ao se repetirem
em várias combinações as taleae
formavam uma melodia definida,
chamada de color, a qual por sua vez
podia ser usada como uma macrocélula
a ser repetida em outras combinações.
Philippe de Vitry e Guillaume de Machaut
foram grandes popularizadores da
técnica. A talea, nas primeiras
composições isorrítmicas, era
usualmente uma pequena sequência de
poucas notas, correspondendo,
normalmente, a um modo rítmico. No
decorrer do século XIV as taleae se
tornaram muito mais longas e
elaboradas e foram usadas para
estruturar obras de dimensões muito
maiores, onde cada color constituía uma
seção estrutural substancial da
composição, medindo vários
compassos. Por volta de 1400 a técnica
de diminuição no moteto tornou-se
comum: uma longa color do tenor era
repetida várias vezes de acordo com
diferentes regras de mensuração,
tornando o tempo de sua execução cada
vez mais rápido, de forma
proporcional.[35][36]

Ainda que de modo geral o sistema de


consonâncias e dissonâncias durante a
Ars nova tenha permanecido em
essência o mesmo das primeiras fases
da Idade Média, houve alguma mudança
no sentido de uma maior definição do
senso de tonalidade, afastando-se
progressivamente do sistema modal,
mas é preciso advertir que a música Ars
nova não é "harmônica" no sentido em
que hoje se concebe o termo, e sua
harmonia deriva mais da coincidência
entre as notas das linhas polifônicas
horizontais do que de uma organização
intencional em acordes verticais e
progressões tonais. A causa deste
fenômeno foi a multiplicação das vozes
polifônicas, com a consequência de
aparecerem simultaneidades de três
notas diferentes, as tríades, com mais
frequência. Contudo, ainda permanecia
em uso os intervalos de consonâncias
perfeitas derivadas da filosofia
pitagórica. Isso não impedia que se
usassem outros intervalos, dissonantes,
aliás estes apareceram muito na Ars
antiqua em notas de passagem, muitas
vezes dissonâncias duras como o
intervalo de segunda menor e nona, mas
eram sempre resolvidas em
consonâncias. Na Ars nova o uso de
dissonâncias duras foi minimizado, e
apareciam de preferência em posições
rítmicas fracas. Quanto aos intervalos de
quarta, sexta e terça, às vezes eram
considerados consonantes e às vezes
dissonantes, dependendo de como
surgiam na peça, mas mesmo quando
tinham uma função de consonância ele
não eram considerados perfeitos.[37]
Notação

Equivalências de notas e valores.

As quatro prolationes. Na indicação de metro os


círculos e semicírculos assinalam o tempo, e o
número de pontos se refere a cada prolação.
Transcrição de um trecho de música para a notação
moderna.

Ao longo da Ars nova, como já foi dito,


ocorreu uma rápida dissolução dos
modos rítmicos tradicionais,
substituídos por novos esquemas. A
medida da duração das notas se tornou
progressivamente mais definida e as
indicações de metro no início da pauta
se multiplicaram, possibilitando várias
combinações e relacionamentos entre os
vários valores das notas e os padrões
métricos. O sistema só apareceu
plenamente desenvolvido nas obras de
Guillaume de Machaut. O pulso básico
era naquele tempo algo em torno de 80
no metrônomo moderno, mas eram
reconhecidas velocidades alternativas
como rápido, moderado e lento,
denominadas então variavelmente como
cita, media e morosa; ou velociter, medie
e tractim; ou lascivo, mediocre e longo, ou
minimum, medium e maius, mas em
qualquer velocidade a notação
permanecia idêntica.[38]

Havia quatro relações métricas


principais nesse período, sistematizadas
por Johannes de Muris, chamadas
maximodus, modus, tempus e prolatio,
relacionadas às formas perfeitas,
imperfeitas e alteradas, resultando em
doze esquemas básicos. A prolatio,
segundo Vitry, podia ser subdividida em
quatro outras modalidades. No primeiro
grau, maximodus, que relacionava as
proporções entre os três tipos de nota
longa, a longa tripla ou longuíssima (81
unidades), a longa dupla (54 unidades), e
a longa simples (27 unidades); no
segundo grau, modus, que relacionava a
longa com a breve, estavam a longa
perfeita (27 un.), longa imperfeita (18
un.) e a breve (9 un.); no terceiro grau,
tempus, relacionando a breve com a
semibreve, estavam a breve perfeita (9
un.), a breve imperfeita (6 un.) e a
semibreve menor (3 un.); e no último
grau, prolatio, relacionando a semibreve
com a mínima, estavam a semibreve
perfeita (3 un.), a semibreve imperfeita (2
un.) e a mínima (1 un.). Todas essas
divisões, como ocorria na harmonia e
ritmo, estavam intimamente ligadas às
proporções pitagóricas, e, em menor
grau, às postuladas por Ptolomeu.[39] A
longa tripla não foi encontrada em
nenhuma peça de música, seu valor só
aparece sob forma da pausa
correspondente, e sua inclusão no
tratado de Muris possivelmente se deveu
a razões antes de tudo estéticas, em prol
de uma simetria no esquema. Contudo,
esse esquema não era um consenso
absoluto, outros teóricos propuseram
divisões e nomes alternativos, e nenhum
dos grandes tratados do século XIV, nem
os franceses, nem os italianos,
conseguiu unificar todas as linguagens
musicais; mesmo os valores
consagrados nos livros podiam ser
modificados através de uma
multiplicidade de combinações pelas
preferências pessoais de cada
compositor. De consenso realmente
havia pouca coisa num tempo de
multiplicação dos estudos teóricos, mas
foi aceita de maneira mais ou menos
geral a mínima como a unidade básica
de medida. Mas esta unanimidade
também não durou muito, e logo a
mínima foi substituída na prática pela
semínima, esta recebeu ainda outras
subdivisões, na colcheia e por fim na
semicolcheia, cada subdivisão com valor
menor que o da nota precedente, ainda
que os valores menores que a mínima
não fossem sistematizados nos tratados
de Muris e Vitry em vista do seu
rigorismo terminológico - nada podia ser
menor do que o que já era
"mínimo".[40][41][42] Mas outros autores,
nomeadamente Jacques de Liège e
Theodoricus de Campo, perceberam que
todo esse processo, ainda que tivesse
introduzido mudanças efetivas, tinha
muito de uma simples troca nominal.
Campo disse que era indiferente chamar-
se a nota de menor duração de
semibreve, mínima ou semínima, sendo
relativos todos os seus valores reais, e
assinalou que se a voz humana se
dispusesse a se mover mais rápido, até a
semínima poderia ser facilmente
subdividida. Liège escreveu dizendo que
era mais útil se prestar atenção à coisa e
não ao nome, claramente demonstrando
com exemplos musicais que as relações
de tempo no sistema antigo e no novo
permaneciam as mesmas.[43]

Acima estão quadros ilustrativos da


notação Ars nova, conforme
apresentados pelos pesquisador Lloyd
Ultan. O primeiro traz as divisões da
longa, breve e semibreve, junto com sua
equivalência moderna. Abaixo, as quatro
prolationes, que refletem os
agrupamentos possíveis de mínimas,
com resultados diversos no que diz
respeito à leitura do metro, e a
denominação "perfeito" e "imperfeito" se
referem a ritmos respectivamente
ternários e binários. A última imagem é
uma transcrição de um trecho de música
para o sistema moderno, ilustrando o
uso da cor vermelha, várias formas de
notas e o uso do punctus additionis. O
círculo branco logo no início é um sinal
de mudança de prolatio.[44]
Com a introdução de ritmos novos,
apareceu a síncope, que é um
deslocamento do pulso rítmico padrão,
conseguido graficamente por vários
meios, dos quais o mais usual era a
aplicação de um ponto em seguida a
uma dada nota, o punctus additionis,
ainda em uso hoje em dia para adicionar
à nota metade de seu valor. Outro ponto
era o punctus divisionis, retirando da nota
metade de seu valor. Muitas vezes
ambos são indistinguíveis, e só uma
leitura sensível da peça pode sugerir qual
é qual. A síncope teve um emprego
generalizado durante esse período, e se
tornou uma das características mais
típicas da Ars nova. Outro recurso gráfico
usado para indicar alterações nos
valores era a cor. As notas vermelhas
surgiram pouco antes do século XIV, e
permaneceram em uso por todo o
século. Tinham diversos significados,
mas o principal era indicar um
deslocamento rítmico. Um dos fatores
que levaram à sua adoção foi o
desenvolvimento do conceito da
hemíola, ou a substituição de dois
valores iguais por três valores iguais no
mesmo espaço de tempo. Essa
substituição, na escrita a várias vozes,
muitas vezes originava relações de 3:2,
com interessantes efeitos. Esses
esquemas básicos podiam ser refinados
com o acréscimos de outros sinais,
como notas ocas e cheias, partidas ou
inteiras, com traços e caudas, nas cores
branca, preta ou vermelha, em
numerosas combinações.[45]

Uma questão difícil de ser perfeitamente


elucidada pelos pesquisadores
modernos é a dos acidentes. O
tratamento dos acidentes na Idade
Média divergia bastante do uso atual,
não havia uma distinção clara entre
armadura de clave e acidentes
ocasionais, e mesmo quando um
acidente aparecia no início da peça, para
indicar uma armadura definida para toda
ela, aquele acidente só se aplicava para a
nota alterada naquela altura específica,
não interferindo com as mesmas notas
em outras oitavas. Para complicar, em
peças a várias vozes podiam ser usadas
armaduras diferentes para cada voz, e os
acidentes eventuais podiam aparecer
muito antes da nota que pretendiam
modificar, em outras posições na pauta
ou acima ou abaixo da nota respectiva,
dando margem a muitas dúvidas para
sua leitura moderna. Um bemol podia ser
cancelado não com um bequadro, mas
com um sustenido, da mesma forma que
um sustenido podia ser cancelado com
um bemol, além de haver muitas vezes
problemas para distinguir nos
manuscritos entre bequadros e
sustenidos, cujas formas podiam ser a
mesma.[46] Por fim, muitos dos acidentes
não eram assinalados de forma
nenhuma, pois se esperava que o
intérprete os suprisse, mesmo não
estando indicados na pauta. Isso era
necessário quando ocorriam intervalos
dissonantes indesejados, então era
imperativo alterar uma das notas do
acorde com um cromatismo não previsto
na escala ou modo original em que se
compunha uma peça. Essa prática era o
que se chamava de musica ficta, música
falsa, significando tanto as alterações da
escala quanto os acidentes não
anotados. Hoje se torna difícil
determinar quando uma nota era ficta ou
não, pois se muitos intervalos eram
vedados, dissonâncias eram comuns em
notas de passagem de tempos fracos e
apareciam mesmo em cabeças de
compasso de forma premeditada, daí
que distinguir o que era ou não
intencional fica problemático. Mas suas
implicações eram mais amplas do que
uma mera correção auditiva, pois
significava uma mudança conceitual,
alterando todo o tetracorde envolvido.
Em edições modernas usa-se assinalar
as notas supostas como fictae com
acidentes entre parênteses ou acima ou
embaixo da nota, fora do
pentagrama.[47][48]
Partitura do rondeau Belle, bonne, sage, de Baude
Cordier. Codex de Chantilly, Museu Condé, Chantilly.

O interesse pelas técnicas notacionais


durante o século XIV se tornou quase um
fim em si mesmo, e os compositores em
geral davam tanta atenção ao aspecto
gráfico-visual de suas obras quanto ao
seu conteúdo musical. Isso ficou
particularmente óbvio na fase final da
Ars nova, chamada de Ars subtilior, com
partituras muito complexas e de difícil
transcrição moderna. A leitura dessas
peças se complica quando se sabe que
em vários exemplos musicais as
indicações notacionais são escassas,
mesmo quando o contexto da peça
sugere uma complexidade maior do que
a que aparece à primeira vista, e deve-se
levar em conta usos de domínio público
daquele tempo que para eles não
necessitavam indicações explícitas.
Nesses casos, é imprescindível da parte
do músico moderno que ele tenha um
conhecimento profundo das práticas
musicas gerais da Ars nova a fim de
detectar sutilezas ocultas em uma dada
partitura.[49]
Cabe ainda uma rápida análise do
sistema italiano de notação, ainda que
ele tenha conhecido um uso mais
limitado, como já foi dito, e tenha
derivado em parte do francês. O primeiro
teórico da notação italiana foi Marchetto
de Pádua, que escreveu seu tratado
Pomerium in arte musica mensurata no
início do século XIV, mas a súmula do
sistema só apareceu com os vários
tratados de Prosdocimo de' Beldomandi,
do qual possivelmente o mais
importante foi o Contrapunctus, de
1412.[50] Ao contrário de seus
contemporâneos, Prosdocimo não
apenas expôs as regras, mas as
justificou, tornando sua contribuição
uma mas mais notáveis obras sobre a
Estética da Ars nova.[51] A notação
italiana era baseada em um sistema de
divisiones, que representam metros de
vários tipos, uma continuação de uma
proposta de Petrus de Cruce que foi logo
ultrapassada na França. A unidade
básica de medida era a breve, de valor
invariável, a partir da qual todas as
subdivisões, definidas por pontos
adicionais, se organizavam. O ponto
tinha ainda a função de barra de
compasso, e dentro de cada compasso
era possível obter uma grande variedade
de ritmos. As suas divisiones eram a
quaternaria, a senaria imperfecta, a
octonaria, a senaria perfecta, a novenaria
e a duodenaria, que correspondiam
respectivamente aos metros de 2/4, 6/8,
4/4, 3/4, 9/8 e novamente 3/4. Os
nomes das divisiones indicavam o
número máximo de unidades mínimas
dentro de cada compasso. Mudanças de
divisiones ao longo de uma peça eram
indicadas com letras específicas,
respectivamente q, i, o, p, n, d. Quando
não aconteciam mudanças, era comum
não aparecer qualquer indicação, e seu
ritmo era deduzido do conteúdo musical.
Na maior parte das vezes as divisiones
não completavam o número máximo de
unidades mínimas, gerando ritmos
quebrados ou incompletos, o que se
tornou um traço característico da forma
italiana.[50] Outras características do
sistema italiano eram que ele adotara as
divisões binárias antes dos franceses, já
no fim do século XIII, e que a semibreve
podia ser subdividida em valores
desiguais dentro de um mesmo
compasso - se houvesse duas
semibreves em um tempo imperfeito,
teriam valores iguais; se houvesse
quatro, também seriam de valores iguais,
mas se houvesse três, a última seria
duas vezes mais longa que as primeiras;
se houvesse seis, as duas últimas
valeriam o dobro das outras, e se o
compositor desejasse que a primeira
fosse mais longa, acrescentava-lhe uma
haste descendente. Outras notas podiam
ter seus valores aumentados com uma
haste para baixo e diminuídos com uma
haste para cima. O problema desse
sistema era que vários desses valores
diferentes eram grafados com sinais
iguais e não se permitia que as síncopes
ultrapassassem o valor da breve, o que
provavelmente foi a causa de o sistema
francês acabar prevalecendo.[52]

Formas
Sacras
Manuscrito do Agnus Dei da Missa Barcelona.
Biblioteca da Catalunha, Barcelona.

A origem da missa como forma musical


já foi abordada antes, e resta dizer que
seu desenvolvimento durante a Ars nova
tendeu a torná-la uma forma cada vez
mais unificada, quando antes a
musicalização dessa cerimônia era feita
em fragmentos avulsos sem maior
relação musical entre si. As primeiras
missas polifônicas a mostrarem um
sentido de unidade maior foram obra de
compositores anônimos, com seções de
autoria de compositores diferentes mas
que mostraram uma preocupação de
criar elos musicais perceptíveis entre
elas. Entre essas peças primitivas estão
as célebres Missa Tournai e a Missa
Barcelona, cujo conteúdo musical é de
grande qualidade. A obra seguinte nesse
gênero que merece nota foi composta
por Guillaume de Machaut, intitulada
Messe de Nostre Dame, que foi a primeira
a ser toda composta pelo mesmo autor,
é praticamente a única outra missa do
século XIV que atingiu um nível elevado,
e de fato sendo o maior monumento
individual da Ars nova. Sua unidade é
muito maior do que as missas
precedentes, conseguida através do uso
de células musicais e rítmicas que
recorrem ao longo de toda a
composição, além de todas as seções se
desenvolverem dentro de modos
afins.[53]

Mistas

O moteto surgiu, como já foi aludido,


durante a segunda metade do século XIII,
a partir de trechos de texto e música
interpolados em composições pré-
existentes. As primeiras interpolações
aconteceram no canto gregoriano
simples, e foram chamadas de tropos e
sequências. Quando este princípio se
aplicou aos primitivos organa a duas
vozes, o resultado foram as cláusulas, e
se tornou comum que os músicos
enriquecessem seus organa inserindo
cláusulas de um organum para outro.
Quando isso era feito, o texto da cláusula
naturalmente apareceria deslocado em
sua nova posição, enxertado dentro de
um texto diferente, e assim o texto da
cláusula era descartado e a música
restante era interpretada sob a forma de
uma vocalização sem palavras. O passo
seguinte foi a adição de novas palavras
para aquele fragmento de música,
dando-se-lhe o nome de motetus, uma
vez que mot significa palavra em francês.
Porém, mesmo quando a composição
era em latim, esse novo texto era
rotineiramente em vernáculo, e seu
conteúdo comentava o texto do tenor em
latim. A próxima fase evolutiva do
moteto foi o acréscimo de uma terceira
voz ao motetus e ao tenor, formando um
tecido sonoro em que o tenor mantinha a
linha do canto gregoriano em notas
longas, o motetus cantava em francês e
em notas mais rápidas, e acima dele o
superius seguia num tratamento ainda
mais melismático, podendo trazer um
texto latino, francês ou ainda em outra
língua.[54]
Constituído dessa maneira, o moteto
logo perdeu sua colocação dentro da
liturgia e se tornou um gênero profano,
largamente cultivado, fazendo
desaparecer o organum e se tornando o
campo experimental por excelência dos
compositores de vanguarda. O texto
sacro do tenor passou então a ser
contraposto a textos das mais diversas
origens, alguns até de caráter erótico, e
no início do século XIV ele já era um
gênero praticamente todo secularizado,
recebendo inclusive versões
inteiramente instrumentais. Continuando
a evoluir, o moteto, originalmente uma
peça em miniatura, adquiriu maiores
proporções e passou a aplicar os
princípios rítmicos da Ars nova em
plenitude. A principal modificação nesse
período foi a adoção do isorritmo. Com
isso a percepção clara do ritmo do tenor
acabou se perdendo, e só era
compreensível através da inspeção
visual da pauta. Sua descaracterização
se acentuou quando foi acrescentada
uma outra voz abaixo dele, o contratenor
- não confundir com o significado
moderno do termo - que foi submetida
também ao esquema isorrítmico, junto
com as duas vozes superiores, o que
veio a alterar significativamente o
equilíbrio sonoro do conjunto e deu-lhe
uma forma bastante unificada.[55]
Profanas

Madrigal anônimo In un broleto, al'alba. Codex Rossi,


Biblioteca Musical G. Greggiati, Ostiglia.

A canção foi extensivamente praticada


no século XIV, e se dividia em várias
formas. Sua estrutura musical dependia
em grande medida da forma da poesia
sobre a qual se estruturava. Uma das
mais estimadas formas de canção
durante a Ars nova foi a balada, chamada
de ballade pelos franceses e ballata
pelos italianos, mas seus significados
práticos eram bem diferentes nos dois
países. Como o nome sugere,
originalmente era uma peça vocal
dançada ("bailada") de uso popular, mas
desde cedo foi adotada pelos
compositores eruditos e refinada para
uso nas cortes. A ballata surgiu no
século XII e perdurou até o século XV;
podia ser homofônica ou, depois de
1360, polifônica, a duas ou três vozes, ou
com uma voz solo com
acompanhamento instrumental, e todas
essas formas vocais podiam ser
interpretadas em versões apenas
instrumentais. Sua forma típica era
ABBAA, cada seção denominada
respectivamente de ripresa (A), dois piedi
(BB), volta (A) e ripresa (A). Seu maior
cultivador foi Francesco Landini, e esta
forma profana tinha uma contrapartida
espiritual nos laude, cujo texto era
sacro.[28] A ballade tinha uma estrutura
bem distinta, era baseada em poemas
com três estrofes de oito versos cujo
último verso era repetido em todas as
estrofes como um refrão, e o final era
uma estrofe chamada de envoy, também
com o mesmo refrão, resultando na
forma ArBrCrDr.[56] O que mais se
parecia com a ballata na França era o
virelai, cujas estrofes tinham duas rimas
e uma estrutura em geral ABBA, mas
adotou em geral uma escrita polifônica
isorrítmica.[57] O lai era em forma
semelhante ao virelai e derivou dos
versículos duplicados da sequentia, e às
vezes usava três ou mais versículos. Sua
música era basicamente homofônica,
sua prosódia musical era silábica ou
quase isso, e empregava a repetição de
trechos melódicos em alturas diferentes.
Um versículo usualmente não
ultrapassava uma nona, mas toda a peça
podia chegar a duas oitavas em
extensão. Era na maior parte das vezes
isorrítmico e o início e final da peça
usavam a mesma melodia na mesma
oitava. Em alguns casos as melodias
podiam ser cantadas em cânone. Na
época de Machaut o lai foi fixado numa
estrutura de doze estrofes, todas
diferentes entre si, salvo a primeira e a
última. O rondeau, que tinha um similar
no rondello italiano, era também uma
forma repetitiva com alguns pontos de
contato com o virelai. Podia chegar a
cinco vozes, e sua forma se estruturava
como ABaAabAB, com alternâncias de
passagens em coro e em solo.[58]

Outra forma importante no século XIV foi


o madrigal, uma invenção italiana. Foi
descrito pela primeira vez por Francesco
da Barberino em sua glosa latina de sua
própria obra em vernáculo Documenti
d'amore (c. 1315), e parece fazer uma
referência a uma prática mais antiga.
Nessa época o madrigal seguia um texto
geralmente pastoral dividido em estrofes
cujo metro era de sete ou onze sílabas,
postas em música a duas ou três vozes,
com um tenor em notas longas e as
outras em figurações mais rápidas
ricamente ornamentais. Seu tempo era
ternário ou perfeito, e usava a divisão
duodenaria, misturando passagens em
divisão novenaria especialmente no
refrão ou ritornello. A fonte mais
importante de madrigais Ars nova é o
Codex Rossi (c. 1350), que transmite
obras de cerca de vinte anos antes. A
grande disparidade de detalhes em
manuscritos que trazem peças idênticas
sugere um uso prático de improvisação
para as vozes superiores. Depois de
1360 a popularidade do madrigal
declinou, embora continuassem a
aparecer alguns exemplos até o século
XV, ora com textos moralizantes,
autobiográficos ou laudatórios.[28]
Contudo, no século XVI o madrigal foi
ressuscitado com sucesso e atingiu
níveis de complexidade muito altos,
tornando-se uma das formas de eleição
para a música de vanguarda.[59]

Instrumental
O Rei David com escribas e músicos, uma iluminura
da Weltenchronik de Rudolf von Ems, c. 1340.
Biblioteca Central de Zurique. À esquerda o Rei toca
um saltério, e ao lado dele, acima, um músico com
uma rabeca. Na parte inferior da imagem aparecem
outra rabeca, uma viela de roda, uma cítara e uma
lira.

Alguns dos instrumentos usados no


século XIV tinham uma origem muito
antiga. Entre eles estavam a harpa, a lira,
a cítara, o órgão, a flauta, a gaita de fole,
o tamborim, o alaúde, o tambor, a rabeca
ou viela, o trombone, o trompete, os
sinos, a sacabuxa, címbalo e o saltério,
que remontavam à Antiguidade. Outros
eram de aparição mais recente, como a
viela de roda, o corneto, a viola. No fim
do século XIV começaram a ser
descritos os recém-chegados: a
bombarda e o órgão com pedal. Nessa
época a maioria deles não ultrapassava
duas oitavas, e eram agrupados pelo
volume de som que eram capazes de
produzir, divididos entre "altos" e
"baixos", e pelo timbre. Múltiplas
combinações podiam ser organizadas a
partir dessa orquestra, as crônicas
sugerem que já nessa época havia um
fino senso de orquestração, produzindo
pequenos grupos de câmara com
sonoridades delicadas para
acompanhamento de canções em
performances domésticas até grandes e
barulhentos conjuntos festivos usados
em cerimônias públicas ao ar livre, e um
cronista chegou a dizer que nessas
ocasiões havia tanta música no ar que
mesmo se houvesse uma tempestade os
trovões não seriam ouvidos. Muitas
vezes os coros polifônicos eram
dobrados com uma variedade de
instrumentos.[60]

Principais representantes
Antes de se abordar em especificidade
alguns nomes notáveis do período, cabe
advertir que os exemplos musicais
oferecidos, na impossibilidade de se
suprir ilustração com gravações ao vivo,
foram realizados todos como versões
instrumentais computadorizadas. Se por
um lado isso pode dar uma ideia geral da
estrutura, dos perfis melódicos e das
relações intervalares das peças, não
pode substituir uma performance
autêntica, e por isso se encarece ao
leitor que procure exemplos gravados
para construir uma imagem mais
verdadeira da música Ars nova.
Gravações qualificadas de obras
integrais, de fácil acesso via internet,
podem ser encontradas em quantidade,
por exemplo, no website YouTube, e em
menor número no MySpace.

Jehannot de Lescurel

Jehannot de Lescurel (morto em c. 1304)


merece uma nota aqui não por ter sido
um compositor especialmente
importante, mas por ter sido
possivelmente o primeiro a usar recursos
claramente distintos da Ars antiqua. Suas
obras conhecidas estão no manuscrito
francês do Romance de Fauvel, ilustrado
na abertura do artigo, e compreendem
uma canção a três vozes e 31 outras
monofônicas, que são mais
ornamentadas e ritmicamente variadas
do que exemplos do mesmo gênero do
século XIII. Seus textos já são quase
todos profanos e a forma das peças são
inspiradas em tempos de dança, sendo
um dos precursores dos gêneros da
ballade, do rondeau e do virelai.[1]

Philippe de Vitry

O trabalho de Philippe de Vitry (1291 —


1361) como teórico já foi citado antes e
não é necessário voltar ao tema. Mas
além de tratadista, Vitry foi filósofo,
moralista, diplomata, alto funcionário da
corte francesa e conselheiro de três reis,
matemático, bispo e poeta, uma das
mais brilhantes mentes de sua geração.
Foi um humanista imbuído da tradição
da Antiguidade clássica, o que provou
fazendo uma versificação no vernáculo
das Metamorfoses de Ovídio e
escrevendo muitos dos textos para suas
obras musicais, onde ele revelou grande
habilidade poética, sendo louvado por
Petrarca em termos altamente elogiosos,
chamando-o de o único verdadeiro poeta
da França.[61] Apesar de sua imensa
fama, a maior parte de sua música se
perdeu, e atualmente lhe são atribuídos
apenas cerca de dezesseis motetos, dos
quais apenas cinco têm uma autoria fora
de dúvida; também de suas poesias
pouco restou. Os textos dos motetos
sobreviventes tratam de uma variedade
de assuntos, o amor cortês, cenas
pastorais, mensagens patrióticas, a
piedade cristã, libelos contra os vícios e
laudações a personalidades da época.[62]

Foi um dos primeiros a usar os ritmos


binários e um dos grandes agentes da
evolução do moteto isorrítmico. Ao
contrário dos motetos isorrítmicos
primitivos, nascidos do organum com
voces organales de livre elaboração onde
muito era deixado ao improviso do
intérprete, cabendo ao tenor manter um
padrão rítmico constante, o moteto
isorrítmico de Vitry enfeixava as voces
organales dentro também de esquemas
isorrítmicos, dando-lhe uma estrutura
mais coesa e forte. A uma primeira
audição o efeito de suas obras, no
aspecto rítmico, é intermediário entre o
estilo mais ou menos estático de Pérotin
e o dinamismo de Machaut, mas numa
análise mais detida nota-se que as
relações internas entre as vozes são
mais complexas que as estabelecidas
pelos outros dois mestres, pois seu
caráter matemático é mais definido e ele
provê pontos de clímax cuidadosamente
planejados. Outro traço distintivo de sua
obra é que o tenor funciona como um
claro elo de unidade estrutural ao longo
de toda a construção, sobre o qual as
outras vozes não apenas tecem
desenhos ornamentais, mas encontram
um sólido apoio. Quanto ao caráter das
vozes superiores, estão fortemente
encadeadas na estrutura geral e sua
presença é sempre convincente e
necessária, ao contrário de um uso
comum da época de deixar ao cargo do
executante optar por uma interpretação
completa da peça ou selecionar somente
algumas vozes, ou mesmo improvisar
vozes novas em substituição das pré-
existentes. Também é característico de
sua produção o uso de dois textos
diferentes em simultâneo, embora isso
não seja uma exclusividade sua, mas
teve a particular capacidade de criar um
tecido sonoro em que ambos
permanecem inteligíveis. Como um
literato ele mesmo, teve a preocupação
de musicar os poemas de modo que o
discurso musical acompanha de perto a
estrutura, articulação e a fluência do
texto, e nesse sentido ele foi um
precursor do madrigal descritivo da
Renascença.[63]

Gratissia Virginis (versão instrumental


midi)

Vos qui admiramini (versão


instrumental midi)
Uma excelente gravação ao vivo do
moteto Cum statua de Vitry está
disponível aqui .

Guillaume de Machaut

Guillaume de Machaut em uma miniatura francesa,


uma cena alegórica na qual a Natureza oferece a
Machaut três de seus filhos: a razão, a retórica e a
música.

Guillaume de Machaut (1300 - 1377) é


considerado um dos maiores poetas
franceses de seu tempo, influenciando
até mesmo Chaucer. Compôs
numerosos poemas líricos sobre o tema
do amor cortês e sobre a oposição entre
a Esperança e a Fortuna, inspirados na
tradição clássica e com uma qualidade
ao mesmo tempo intimista e formalista,
o que lhes empresta um caráter
atemporal, além de ter deixado crônicas
em prosa. Foi o maior nome da música
do século XIV europeu e o autor da
afamada Messe de Nostre Dame.
Graduado pela Universidade de Paris,
serviu aos reis da Boêmia, Navarra e
França, e com eles percorreu a Europa.
Em 1337 foi feito cônego de Reims.
Machaut é frequentemente citado como
um inovador; o foi, mas não descartou
formas consagradas pela tradição, e as
empregou com maestria, introduzindo
nelas variações sutis que permitiram-lhe
expressar ideias muito pessoais e obter
um efeito mais dramático. Ainda que a
Igreja tivesse banido o estilo da Ars nova
da música litúrgica, foi um mérito de
Machaut compor a maior obra sacra do
século, a missa sobredita, que é também
a sua única obra sacra de vulto, fazendo
uso desse mesmo estilo de um modo
que resultou aceitável para o
clero.[64][65][66]

No território profano foi muito prolífico;


dele sobrevivem mais de vinte motetos a
três e quatro vozes e cerca de cinquenta
peças entre virelais e lais, algumas
polifônicas e outras monofônicas, que
revelam um artista de amplos recursos
técnicos, com facilidade de transitar
entre vários estilos regionais, grande
inventividade e uma fina veia lírica. Suas
canções monofônicas representam a
última floração da linhagem dos
trovadores, e as perto de quarenta para
voz solo com acompanhamento
polifônico, nas formas do rondeau e da
ballade, foram os modelos para várias
gerações depois dele. O que as torna tão
eficientes é sua grande eloquência e
uma associação naturalista entre texto e
música, além de sua graça intrínseca,
seu melodismo rico e elegante e sua
sofisticação rítmica. Supervisionou
pessoalmente a manufatura de grande
parte dos manuscritos que preservam
sua obra, e esse cuidado fez com que
sua produção represente boa parte do
que hoje se conhece de música do
século XIV. Sua obra circulou por toda a
Europa, chegou até Chipre, às portas da
Ásia, e ele foi chorado por reis, artistas e
intelectuais quando morreu.[64][66]

Kyrie da Missa de Notre-Dame (versão


instrumental midi)

Balada Riches d'amour et mandians


d'amie (versão instrumental midi)
Francesco Landini

Landini tocando um organetto. Codex Squarcialupi,


Biblioteca Medicea Laurenziana, Florença.

Cego desde pequeno por causa da


varíola, Francesco Landini (1325 - 1397)
desde logo devotou-se à música e
dominou vários instrumentos, o canto, a
poesia e a composição. A ele se atribui a
invenção de um instrumento chamado
syrena syrenarum, que combinava
características do alaúde e do saltério.
Crônicas de época contam que ele
recebeu como prêmio por seu talento
uma coroa de louros do rei de Chipre, e
outras referem que sua música era tão
tocante que os corações saltavam no
peito dos ouvintes. Landini foi o mais
notável compositor da Ars nova italiana e
também um integrante da escola Ars
subtilior. Da sua produção nos chegaram
exclusivamente peças seculares, embora
haja registro de ter composto também
obras sacras. Se conhecem cerca de 90
baladas para duas vozes, 40 baladas
para três vozes, e outras que existem em
versões para duas e três vozes. Também
deixou alguns madrigais, um virelai e
uma caccia. Aparentemente ele mesmo
escreveu os textos para boa parte de
suas músicas. Sua produção, preservada
principalmente no Codex Squarcialupi,
representa quase um quarto de toda a
música italiana do século XIV que
sobreviveu. Landini emprestou seu nome
para a Cadência Landini, uma fórmula
musical onde o sexto grau da escala
diatônica é inserido entre a sensível e a
tônica. Embora não tenha sido o criador
deste recurso nem seu único utilizador,
ele é encontrado de forma consistente
em sua produção, o que justifica a
homenagem.[67][68] Em sua música a voz
superior é quase sempre a de maior
importância e têm um perfil vocal bem
caracterizado, sendo muito
ornamentada. Suas texturas polifônicas
são complexas e límpidas, mas suas
peças carecem de uma forte ligação
entre texto e música; em contrapartida
sua atmosfera é vivaz, elegante e
alegre.[69]

Balada Ecco la primavera (versão


instrumental midi)

Balada Si dolce non sono (versão


instrumental midi)
Johannes Ciconia

Nascido em Liège, Johannes Ciconia


(c.1365 - 1412) foi o maior músico do
norte ativo na Itália, estabelecendo-se
em Pádua a partir de 1401 até sua
morte. Compositor celebrado, sua obra
foi muito conhecida em outros países,
influenciando compositores até o século
XV, e compreende cerca de trinta
motetos, dez madrigais, sete ballate e
cerca de dez movimentos de missa, que
integram os estilos francês e italiano e
absorvem a estética da Ars subtilior.
Muitas de suas obras seculares são
festivas, criadas para eventos cívicos e
como homenagens a personalidades da
política local. Além de sua produção
musical deixou três tratados teóricos.[28]
Seus motetos trazem complexas
relações polifônicas, fazendo uso do
isorritmo, e foi um dos introdutores
dessa forma na Itália. Em seus
movimentos de missa deu grande
liberdade às vozes superiores e
estabeleceu claras divisões em seções
para solos e outras para o coro. É
considerado um dos fundadores na
música do estilo do Gótico internacional
do século XV, e sua estatura como
compositor introduziu uma moda na
Itália de se contratar mestres
estrangeiros.[70]

Moteto O Padua, sidus praeclarum


(versão instrumental midi)

Ars subtilior
A derradeira floração da corrente
principal da Ars nova foi a escola que
Ursula Günther nos anos 60 denominou
de Ars subtilior, "a arte mais sutil",
surgida a partir da segunda metade do
século XIV. Justifica-se o uso deste
termo, pois se os primeiros
compositores do século XIV
desenvolveram uma rica variedade de
técnicas compositivas e notacionais,
seus últimos representantes levaram
essa complexidade ao seus extremos.
Isso fica evidente tanto na sua música
como em seus manuscritos, alguns com
pautas em formas exóticas como o
círculo, a espiral e o coração, presente
em peças de Baude Cordier e outros. A
principal fonte documental dessa
produção é o Codex de Chantilly, que faz
uso dos sistemas de notação francês e
italiano em misturas variáveis. A música
da Ars subtilior é altamente refinada,
complexa e difícil de executar, e
originalmente pode ter sido destinada a
círculos de especialistas. Tratava de
temas profanos em sua grande maioria,
como o amor, cavalaria, guerra e elogios
a personalidades. Por sua técnica
avançada constituía a vanguarda da
época, e muitas vezes por suas
abstrações formais e singularidades
técnicas esta escola é comparada com a
produção contemporânea de música
experimental. Apesar de sua erudição
por vezes hermética, seus integrantes
eram largamente conhecidos e suas
músicas tiveram significativa circulação,
ainda que este estilo não tenha gerado
uma descendência direta. O centro inicial
de difusão foi Avinhão, nesta época sede
do papado. Dali se irradiou para Paris,
penetrou na Espanha e atingiu Chipre,
que era um centro diretamente
influenciado pela França. Mais tarde o
estilo chegou à Itália e também produziu
alguns frutos. A Ars subtilior nasceu
como uma derivação da escola de
Machaut, levada a cabo por
compositores como Francesco Landini,
Jacob Senleches, Johannes Ciconia,
Matteo da Perugia e Solage. Alguns
exemplos, como a célebre ballade
Fumeux fume par fumée de Solage,
mostram uma escrita harmônica muito
avançada para sua época, com
cromatismos ousados, progressões
deceptivas e cadências falsas, além de
um ritmo dinâmico e entrecortado.[4]
Muitas das obras da Ars subtilior
representam quebra-cabeças musicais,
com partes de mesma melodia notada
de formas diferentes, com notas
pontuadas ou vermelhas que alteram
outras notas pontuadas e vermelhas,
formas de notas não sistematizadas em
compêndios e notas conhecidas
interpretadas de formas arbitrárias,
notas coloridas em pelo menos quatro
cores diferentes, tessituras impossível
para as vozes humanas e a maior parte
dos instrumentos usuais na época, e
ritmos que se modificam a cada
compasso ou são superpostos em
metros diferentes, além de várias peças
trazerem textos metalinguísticos e
outras fazerem uso de recursos
polifônicos intrincados como o cânone
retrógrado ou em espelho. Esses
elementos em conjunto produzem à
audição um efeito quase
impressionístico. Por tantos motivos sua
transcrição moderna é a mais crivada de
dificuldades de todo o repertório Ars
nova, e em não raros casos sua
reconstituição é no máximo conjetural.[4]
Trecho inicial da ballade Fuions de ci, de Jacob de
Senleches, para ilustrar a complexidade rítmica da
Ars subtilior. Esta reconstituição da partitura se deve
à pesquisadora Lucy Cross

Jacob de Senleches - balada Fuions de


ci (versão instrumental midi)

Solage - balada Fumeux fume par


fumée (versão instrumental midi)

Ars nova na Inglaterra,


Alemanha e Espanha
A influência dos modelos continentais se
fez sentir com muito atraso na Inglaterra.
Somente entre 1350 e 1360 o impacto da
Ars nova francesa suplantou a tendência
ao tradicionalismo notacional, e
rapidamente a notação local evoluiu para
acompanhar as várias novas subdivisões
práticas da unidade de medida básica e
registrar as pesquisas rítmicas mais
avançadas. Não apareceu nenhum
compositor de vulto no século XIV inglês,
a maior quantidade de obras provêm de
autores anônimos ou obscuros em
compilações coletivas, das quais a mais
importante é o Manuscrito de Old Hall, e
muitas das peças conhecidas na
Inglaterra são de origem incerta,
podendo ser importações francesas.
Curiosamente, em termos de estilo
permaneceram vivas ao longo do século
XIV tradições arraigadas como o
fabordão, o organum e o discantus
improvisado, ao mesmo tempo em que
os compositores da vanguarda já
trabalhavam com o isorritmo e a criação
de peças de grande unidade estrutural.
Segundo John Caldwell grande parte da
música inglesa do século XIV não
chegou a níveis superiores de qualidade,
comparáveis à poesia do mesmo período
ou a mestres continentais como
Machaut e Landini, e toda essa produção
ocupou um papel secundário na vida
cultural do país. Compositores
importantes que fizeram uso de técnicas
Ars nova só floresceram no século
seguinte, destacando-se entre todos
Leonel Power e John Dunstable, que
dominaram a cena musical inglesa da
primeira metade do século XV e se
tornaram conhecidos no resto da Europa.
Embora devedores da música francesa,
desenvolveram um estilo bastante
eclético, ao mesmo tempo individual e
tipicamente inglês, misturando
livremente arcaísmos a inovações, mas
deixando obras avançadas
especialmente na forma de motetos
isorrítmicos e na missa cíclica, que usa
um mesmo motivo gregoriano de base
para todos os movimentos. Também
fizeram um uso hábil e extenso dos
intervalos de sexta e terça, o que deu à
sua música um caráter melífluo original,
aproximando-os da estética
renascentista e influenciando muitos
músicos do continente.[71]

Leonel Power - Ave Regina (versão


instrumental midi)

John Dunstable - moteto O rosa bella


(versão instrumental midi)
Na Alemanha a única figura importante a
ser citada é a de Oswald von
Wolkenstein, poeta, compositor e
diplomata. Tinha uma mente
excepcionalmente aberta a inovações e
foi um dos primeiros poetas alemães a
estabelecerem fortes relações entre
texto e música. Fez muitas experiências
com os recursos da Ars nova e obteve
efeitos surpreendentes, e demonstrou
possuir um estilo muito individual, a
meio caminho da estética da Idade
Média e do Renascimento.[72] Na
Espanha parece ter havido desde o início
grande interesse nos procedimentos da
Ars nova. Como já foi mencionado, entre
as primeiras missas completas
compostas nessa técnica estava a Missa
Barcelona, e as evidências encontradas
em vários manuscritos musicais, entre
eles o Llibre Vermell de Montserrat,
indicam uma forte dependência da
França. O principal centro de cultivo foi o
antigo reino de Aragão, que em sua
origem fora um condado franco, e
especialmente durante a segunda
metade do século XIV, até o início do
seguinte, a estética Ars subtilior foi
bastante apreciada.[73] Especialmente o
rei João I era um ardoroso francófilo, e
foi provavelmente para a sua corte que
foi compilada a maior fonte de música
Ars subtilior existente, o Codex de
Chantilly. Essa hipótese não é um
consenso, mas o conteúdo textual das
peças do Codex traz muitas referências
explícitas a personagens relacionados
àquela corte, inclusive o próprio rei, e
erros de transcrição do francês apontam
claramente para um escriba espanhol.[74]

Fortuna crítica

Simone Martini: Músicos com charamelas e um


alaúde, em uma das Cenas da vida de São Martinho
de Tours, 1322-1326. Basílica de São Francisco de
Assis, Assis.

A estética Ars nova começou a


desaparecer com o declínio da escola
Ars subtilior e a migração do principal
centro de atividade musical de Avinhão e
Paris para a Borgonha no início do
século XV, onde floresceu a Escola da
Borgonha, considerada a primeira etapa
da música do Renascimento.[75] A
notação Ars nova, contudo, continuou em
vigor pelo menos até a metade do século
XV, mas se o uso de proporções
matemáticas ampliou as possibilidades
de escrita e redefiniu a estética da
música, terminou por exacerbar as
ambiguidades da notação, criando por
fim o resultado oposto ao desejado
pelos teóricos, que havia sido o de
clarificar a notação, e o que se produziu
foi uma confusão inextrincável. Por
exemplo, os sinais de adição ou
subtração nem sempre eram uma
indicação clara de em que quantidade a
nota devia ser alterada, quando havia
justaposição de tempos perfeitos e
imperfeitos a unidade de medida básica
tinha um valor indefinido, numa linha
total de valores os valores relativos não
podiam ser quantificados com exatidão,
já que não era claro se as proporções
cumulativas surgiam em cascata ou se
referiam sempre ao valor inicial, e assim
por diante. Com o crescimento
exponencial de novas e complexas
relações mensurais e com a igualmente
desesperadora multiplicação de sinais
para indicar essas relações, que
variavam segundo as escolas regionais,
as preferências pessoais dos
compositores e as muitas tradições
teóricas, em meados dos século XV o
panorama notacional europeu já se
tornara uma Babel, e foi necessário que
surgisse um vulto capaz de unificar toda
essa diversidade, Johannes Tinctoris.[76]
Além disso, as próprias bases filosóficas
da música estavam passando por um
processo de mudança e, por assim dizer,
dessacralização. O mesmo Tinctoris, em
seu tratado Liber de arte contrapuncti de
1477, sinalizou a mudança:

"Não esconderei o fato de ter


estudado o que os antigos filósofos,
como Platão e Aristóteles, assim
como seus sucessores, Cícero,
Macróbio, Boécio e Isidoro,
escreveram sobre a harmonia das
esferas. Visto que descobri que eles
diferem em seus ensinamentos,
voltei-me desde Aristóteles até o
mais moderno dos filósofos, e
nenhum deles me fez crer que as
consonâncias musicais surgem do
movimento dos corpos celestes, pois
elas só podem ser produzidas por
instrumentos terrestres".[77]

Quando ele publicou este e vários outros


tratados, a Ars nova já havia
desaparecido, e permaneceria esquecida
até o fim do século XVIII, quando na
esteira do movimento romântico e do
nascimento dos estudos medievalistas
reapareceu um interesse pela música Ars
nova, que foi estudada sem
especificidade no contexto maior da
música medieval por historiadores e
musicólogos como Martin Gerbert,
Charles Burney e Johann Nikolaus
Forkel. Mas nessa altura o conhecimento
das práticas medievais havia se perdido
inteiramente, o instrumental usado
naquela época havia desaparecido quase
todo e o sistema notacional Ars nova
ainda era para os românticos quase um
completo mistério, e quando decifrado, a
música resultante em boa parte não
fazia sentido nem para os eruditos. Para
eles o que as partituras diziam aparecia
como impossível de ser cantado, e então
se tentou reconstruir e rearranjar as
composições aplicando-lhes
arbitrariamente critérios modernos, o
que deu margem a uma série de grandes
equívocos.[78] Progressos importantes
foram feitos somente no início do século
XX, quando vários pesquisadores
puderam oferecer transcrições de um
grande número de composições e
Johannes Wolf publicou entre 1904 e
1905 seu Geschichte der
Mensuralnotation, que disponibilizou pela
primeira vez uma significativa coleção de
peças do século XIV. Outra contribuição
essencial foi a de Hugo Riemann, com
seu Handbuch der Musikgeschichte, da
mesma época, já fazendo uma distinção
entre os estilos francês e italiano e
reconhecendo a importância de Philippe
de Vitry, chamando-o de o criador da Ars
nova. Ambos os trabalhos lançaram os
fundamentos da musicologia medieval,
mas ainda pairava uma imensidade de
dúvidas sobre todos aspectos da música
da Idade Média e sua apreciação dela
continuava contaminada por uma
invencível tendência de analisá-la através
da perspectiva estética e técnica das
escolas clássica e romântica. A partir
disso, editaram as composições
mudando seus textos de lugar para se
adequarem ao senso moderno de
prosódia, os ritmos foram transcritos
dentro de compassos padronizados,
perdendo-se toda a percepção visual de
suas sutilezas, as vozes superiores
foram despidas de suas figurações
rápidas, e o esqueleto restante estudado
no contexto da harmonia vertical e das
progressões harmônicas típicas do
sistema de temperamento igual,
obviamente levando a conclusões
altamente desfavoráveis.[79] Um trecho
de outro estudioso, François-Joseph
Fétis, é ilustrativo da resposta romântica
à música medieval:

"Os monges Huchbald de Saint-


Amand e Odon de Cluny, escrevendo
no século X, são os primeiros da falar
de diafonia e organum. Gradualmente
as pessoas ficaram mais audazes e
escreveram harmonias a três e quatro
vozes que chamaram de trifonia e
tetrafonia, mas, santo Deus, que raios
de harmonia! Todo mundo sabe que
as sucessões de quintas ou oitavas
paralelas hoje são proibidas por
causa do seu efeito duro e rude. Os
ouvidos franceses de nossos
ancestrais deviam ser mais
endurecidos pelos gritos das
batalhas do que os nossos, pois suas
tetrafonias consistem em cadeias de
quintas, quartas e oitavas que eram
ouvidas ao longo de toda uma
antífona ou litania. Ademais, eles se
deleitavam tanto nessa cacofonia
que aqueles que encomendavam
missas cantadas voluntariamente
pagavam seis deniers pelo prazer de
ouví-las, enquanto que davam
somente dois deniers pelas de canto
gregoriano".[80]

Outro, François-Louis Perne, disse sobre


a Messe de Nostre Dame, de Machaut:
"Não há como negar que a harmonia
de sua Missa não tem nenhum
atrativo para um ouvido refinado. Seu
efeito é duro e selvagem, a cada
passo o som é traído por falsas
relações, por quintas e oitavas
paralelas que se sucedem aos saltos.
Os fundamentos dessa harmonia são
compostos nada mais nada menos
do que por quartas, quintas e oitavas.
Raramente aparece uma terça ou
uma sexta para suavizar a dureza que
resulta desse arranjo bizarro.
Devemos acrescentar que o ritmo
desta composição não é mais digno
de nota do que sua harmonia. Assim
os modernos devem julgar essas
peças como monstruosidades. …
Mas deve-nos surpreender a
grandeza do gênio exigido para
compor uma Missa inteira em quatro
partes sem empregar nada além de
quintas, quartas e oitavas, e formar
em cada voz uma melodia similar ao
cantochão principal".[81]

As visões editoriais e estéticas de Wolf,


Riemann e outros que seguiam os
mesmos princípios se tornaram
populares, a ponto de se criar uma noção
de música medieval que era na prática
um arranjo moderno para satisfazer os
gostos modernos, um erro básico que
originou por sua vez uma tradição
fundamente arraigada difícil de superar
mais tarde, que ecoa ainda nos dias de
hoje, a despeito de seus numerosos
equívocos já terem ficado patentes e
terem sido corrigidos pela pesquisa mais
atualizada.[79]

Em torno de 1910-1920, Arnold Schering


começou a desenvolver outra linha de
abordagem, entendendo melhor o caráter
contrapontístico e a linearidade
horizontal da música medieval.
Oportunamente, ele escreveu dizendo
que "a atenção não está tanto no soar
simultâneo das vozes, mas sim em seu
desenvolvimento horizontal e em sua
fluência natural umas ao lado das outras.
Pois no tempo de Machaut os acordes
não eram encadeados uns aos outros,
mas livres, uma peculiaridade que
aproxima sua música da música
contemporânea". Na mesma época
Rudolf Ficker expressava uma opinião
semelhante, procurando contextualizar a
prática musical contra o pano de fundo
da sociedade da época, reconhecendo
que as valorações estéticas mudam de
acordo com os tempos e dizendo que o
estudo da música medieval era uma
chave para a compreensão global
daquele período, ainda que ele fosse
mais um elucubrador fantasioso sem
grandes bases factuais; mesmo assim
sua posição procurava respeitar a
autenticidade histórica. Um passo
adiante foi dado pouco mais tarde por
Heinrich Besseler, que estava
primariamente interessado no
desenvolvimento das linguagens
musicais harmônicas ao longo da
história, e já dispunha de dados
concretos muito mais ricos do que seus
predecessores sobre onde trabalhar,
além de depositar grande importância no
estudo da história da performance e da
interpretação como uma entidade
autônoma dentro da musicologia,
construindo uma interessante teoria da
percepção da música medieval. Para
Besseler a música medieval era antes de
tudo um objeto funcional, a ser estudado
no contexto da vida cotidiana, a não o
produto de uma suposta "espiritualidade
mística", como era uma opinião ainda
comum nos anos em que escreveu, e
assim, conhecer seus meios de
produção era uma via de acesso à sua
correta contextualização histórica e à
sua compreensão em termos puramente
musicais. Entretanto, analisando
exemplos de música Ars nova, centrando
seus estudos na evolução do
pensamento harmônico, ele ainda tendia
a interpretá-los através de uma óptica
teleológica, vendo a Ars nova como uma
fase inicial de uma arte em busca de
uma maior sofisticação, e lendo-a
através da técnica da progressão de
acordes, mas seu diferencial em relação
aos seus antecessores era que foi capaz
de não apenas ter prazer na sua audição,
mas teve também seu entusiasmo
desperto, reconhecendo que estava
diante de um estilo já íntegro e que
possuía suas próprias leis. Enfim, ele
pensava que para o ouvinte moderno ser
capaz de apreciar a música da Ars nova
em seu próprio direito, era preciso que se
educasse em uma nova forma de
percepção do fenômeno sonoro,
abandonando os preconceitos
românticos ainda prevalentes.[82]
Niccolò da Bologna: Festa de casamento, c. 1350.
National Gallery of Art, Washington D.C..

Logo depois da II Guerra Mundial outra


contribuição importante foi dada nos
Estados Unidos pelo emigrado alemão
Willi Apel, trabalhando com a questão da
notação das armaduras de clave e
acidentes em sua tese de doutorado e
em estudos posteriores, que foram em
conjunto a primeira pesquisa substancial
nessa área depois da publicação de Wolf
no início do século, e supriram uma
premente necessidade da musicologia
norteamericana de seu tempo, que
estava sendo rapidamente desenvolvida
com o afluxo de vários musicólogos
alemães e austríacos refugiados da
guerra.[83] Depois dele o terreno
começou a se expandir, apareceram as
primeiras gravações de peças de
Machaut e sua obra integral foi editada,
alguns outros compositores como Vitry
também tiveram obras publicadas, mas
não foi antes da década de 1960 que a
música medieval começou a penetrar no
repertório de concerto, até ali
permanecendo ainda um domínio dos
musicólogos e historiadores, e sua
ressurreição definitiva se deveu em parte
aos compositores contemporâneos,
entre eles Igor Stravinsky, Peter Maxwell
Davies, Olivier Messiaen e Harrison
Birtwistle, que estavam tão à margem da
grande corrente clássico-romântica
quanto os medievais. Segundo Mark
Delaere, eles perceberam o potencial
subversivo tanto da música medieval
quanto da contemporânea, que se
tornaram então parceiras no "crime" de
tentar fundar uma contracultura. Para os
novos músicos, as inovações da Ars
nova soavam tão radicais quanto as
propostas da sua própria vanguarda,
libertando a notação, o pensamento e a
linguagem musicais, especialmente o
contraponto, das amarras dos seus
respectivos períodos precedentes,
substituíram esquemas antes tidos
como universais por procedimentos com
capacidades novas aparentemente
infinitas, e da mesma forma ambas as
liberdades totais tiveram de ser
organizadas em esquemas limitantes
como o isorritmo e o serialismo.
Identificando essas similaridades,
tornou-se natural que vários dos novos
compositores passassem a fazer uso de
recursos inspirados na Ars nova para
suas próprias composições e fizessem
arranjos de peças medievais para serem
executados por grupos de música de
vanguarda, e nos anos 1970 concertos
com peças antigas e modernas no
mesmo programa se tornaram comuns.
O que lhes parecia mais atraente, em
termos práticos, era a maneira pela qual
os compositores Ars nova lidavam com o
ritmo como um componente
relativamente autônomo e como o
relacionavam com os intervalos e as
proporções matemáticas.[7][78][84] De
fato, Ernst Krenek apontou os esquemas
rítmicos e proporcionais da Ars nova
como uma inspiração direta para o
nascimento do serialismo.[8]

Atualmente situação da Ars nova na cena


musical internacional é em geral muito
favorável. Já existe uma grande
discografia qualificada circulando, os
concertos exclusivamente devotados a
ela também são numerosos, e as
publicações teóricas se multiplicam,
evidenciando que o seu estilo e suas
concepções estéticas exercem um
grande apelo para o público de hoje,
tanto de especialistas como de leigos.
Mas apesar desse avanço considerável,
ainda permanecem muitos aspectos
obscuros no conhecimento moderno das
práticas musicais daquele tempo,
refletindo-se tanto no terreno da
decifração da notação como na
editoração e interpretação prática
daquele acervo musical, a ponto de
Theodore Karp dizer que a disciplina
ainda está na sua infância.[78][85][86]
Contudo, alguns críticos não sustentam
uma opinião muito favorável sobre ela e
refutam seus pressupostos. Joscelyn
Godwin acusou os compositores e
teóricos da Ars nova de se inserirem
numa corrente de desespiritualização da
música e de erguerem seu edifício
conceitual sobre bases vazias de
vitalidade verdadeira, consistindo em
suma apenas num modismo irrelevante
alheio aos interesses mais profundos do
ser humano.[87] John Winsor, em seu
ataque à música contemporânea,
aproveitou para criticar a música Ars
nova chamando-a, como à outra, de
equivocada, e dizendo que os seus
compositores se perderam em
intrincadas arquiteturas rítmicas, de
apelo essencialmente textual, intelectual
e matemático, sem um princípio
organizador sólido, e pela sua
complexidade excessiva excluíam o
ouvinte da participação, além de eles
serem incapazes de estabelecer um
contexto estável para a criação de
estruturas complexas de valor perene,
vendo em suma a produção Ars nova
apenas como uma curiosidade
histórica.[88] Mas declarações como
estas são minoritárias, e a maior parte
da bibliografia assinala o caráter
dinâmico e inovador da Ars nova,
reiterando a importância de sua reforma
do sistema notacional e vendo seu
espírito de pesquisa como a marca de
um dos períodos mais movimentados e
interessantes da história da música do
ocidente, que em pouco mais de um
século foi capaz de mudar radicalmente
um panorama conceitual, metodológico,
formal e estético que permanecia mais
ou menos imóvel há mil anos, sendo
comparada muitas vezes à revolução da
música moderna e contemporânea pela
largueza e profundidade das inovações
que introduziu.[3][78][89]

Ver também
História da música
Música medieval
Música renascentista
Teoria musical
Polifonia
Contraponto
Música sacra

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