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PORTUGUÊS carinho que eles jamais entenderam.

Nunca houve um
menino de engenho que não tivesse o seu carneiro –
Leia o texto abaixo e responda: quase sempre chamado Tomé...
Nós contemplávamos as cheias, do terraço da
As lembranças são inesperadas casa-grande, até o dia se apagar e as muriçocas
(Antônio Maria) chegarem para comer-nos as pernas e os braços.
Entrávamos, então, para jantar e ouvíamos falar,
Tenho três viagens para escolher: andar uns gravemente, das não sei quantas toneladas de cana
cem metros e pegar um táxi; esperar uns dez minutos perdidas na enchente diluvial. Havia sempre quem
pelo lotação; tomar aquele bonde que vem descendo a chamava atenção para o malfeito das coisas:
ladeira com sua cantiga de ferro. Vamos ao bonde. - O ano passado foi a seca que comeu a safra.
Feliz, neste mundo, de quem ainda pode andar de Este ano foi a chuva.
bonde. Não tenho pressa. Ou, melhor, já é tarde Safra. Palavra que envelheceu quatro gerações
demais para apressar-me. acima da minha e, do coração, matou muitos Araújo e
Acomodo-me num banco vazio, a tarde é clara alguns Morais. Naquele tempo, não havia infarto mas,
e quase faz frio. Sinto um começo de paz dentro de com alguma frequência, morria-se de repente. Não
mim – a paz dos bondes vazios nos bairros sem havia derrame cerebral, mas ficava-se com um lado
comércio. As casas passam, umas de azulejo, outras esquecido, para o resto da vida. E tudo por causa pelas
com jardim na frente, algumas de janelas verdes, numa apreensões causadas pelas safras.
delas uma moça no sobrado a molhar uma planta. De Na sala grande, iluminada a candeeiros,
repente e tão depressa, uma porção de coisas que eu jantávamos carne-seca, mexida com ovos, farofa de
não via há muitos anos: casas de jardins, janelas água quente, café e bolacha comum. Pelos cantos das
verdes, moça molhando planta. No bonde, uma mulher salas, perto das escarradeiras, queimavam-se farinha e
de pescoço magro, dois bancos à minha frente, a única estrume para espantar as muriçocas. Não adiantava
viajante além de mim. Pescoço escuro, onde cabelos nada. Vivíamos de pernas encalombadas, durante todos
brancos e amarelos terminam em remoinhos, os meses das férias, no engenho.
lembrando cangotes negros de algumas mulheres O bonde para e desce a mulher. Com ela vão-
magras de quando era menino. Via-as assim, nas se essas recordações que, inesperadamente, vieram-
missas, nas novenas, nos ofícios do mês de Maria. me fazer tão boa companhia. A gente nunca espera
Eram mulheres resignadas, que rezavam muito e que, como e de onde vêm as lembranças. No cangote magro
apesar disso, me davam a impressão de que não iriam da mulher do bonde, nos remoinhos dos seus cabelos
para o céu. Porque eram magras. Eu só acreditava o brancos e amarelos, no ar e na luz da tarde, eu andei
céu para as pessoas gordas, talvez porque minha mãe uns trinta anos para trás e descansei de quase toda a
e minhas tias fossem gordas e eu as tivesse na conta minha escravidão, de minha vida feita de horas e de
de santas. Agora, esta mulher do bonde me traz tantas números, onde o dever do êxito me obriga a refugiar-
lembranças e nas lembranças um bem-estar tão me na esperança de voltar um dia ao chão de nascença
inesperado que, se não parecesse exibicionismo, eu lhe e, sobre sua relva, andar de pés descalços.
pagaria a passagem. O terraço do engenho, as cheias O Globo, 02/08/1958
do Serinhaém e o cercado coberto de água até onde a
vista pudesse ir. Os meninotes faziam jangadas de Maria, Antônio. (1921-1964) Vento vadio: As crônicas
bananeira e lá se iam, água afora, matando a gente de de Antônio Maria; pesquisa, organização e introdução
inveja pela sua liberdade. Eram meninos de barrigas Guilherme Tauil. – I. ed. – São Paulo: Todavia, 2021.
enormes e umbigos saltados – mas soltos, livres, como
todo filho de senhor de engenho tinha vontade de ser. 1. Assinale a alternativa CORRETA, de acordo com o
Ficávamos no terraço cumprindo a pena da nossa texto:
riqueza. Os carneiros subiam o monte e, lá no aceiro da
mata, ficavam berrando até que as águas descessem e a Antes de entrar no bonde, o narrador pressentiu
o rebanho pudesse voltar ao cercado. Dos bois, que rememoraria lembranças de seu passado.
ninguém sabia. Via-se ao longe um ou outro, b Ao narrador as lembranças causaram
desgarrado; ou vinha um nadando na direção do curral. atormentações e angústias, ocasionadas por cenas
Nossos carneiros, os que eram de montar ou puxar os dolorosas.
carros, nós trazíamos para dentro de casa e dávamos- c O bonde foi o fator desencadeador da irrupção das
lhes de comer o milho em nossas mãos, com um lembranças.
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d A contemplação de cenas e imagens no interior do c O narrador, comovido e grato pelas lembranças, fez
bonde e na paisagem externa do percurso reverência e agradeceu à mulher magra, por ter lhe
proporcionou o surgimento das lembranças de anos proporcionado instantes tão felizes nas suas
passados, na vida do narrador. recordações.
e Os remoinhos dos cabelos brancos e amarelos d Cheias e secas podiam destruir as safras de cana-
tinham determinado a evidenciação das de-açúcar.
reminiscências recobradas pelo narrador. e Era muito comum todo menino de engenho possuir
um carneiro.
2. Coloque V para Verdadeiro e F para Falso e, em
seguida, indique a sequência CORRETA: 5. Releia e responda: “Os meninotes faziam jangadas
de bananeira e lá se iam, água afora, matando a
( ) Quando menino, o narrador acreditava que só gente de inveja pela sua liberdade.” De acordo com
as pessoas gordas iriam para o céu, mas hoje as regras de colocação pronominal, há, nesse
busca se redimir, censurando aquele fragmento, o registro de:
pensamento de outrora.
( ) O narrador reviveu, durante o trajeto do bonde, a mesóclise
quadros cênicos e ambiências de seu tempo de b próclise
infância. c ênclise
( ) As paisagens da infância do narrador eram d mesóclise e próclise
marcadas pela presença da natureza e do e ênclise e próclise
bucolismo.
( ) As enchentes sempre propiciavam, aos senhores 6. Releia e responda: “Pelos cantos das salas, perto das
de engenho e moradores das casas - grandes, escarradeiras, queimavam-se farinha e estrume para
a fertilidade do solo, a abundância da colheita espantar as muriçocas. Não adiantava nada.” Entre
e as safras satisfatórias. os dois períodos desse trecho, ocorre uma elipse de
conectivo cuja função sintática é estabelecer uma
a FVVF relação de adversidade entre duas construções
b FFVF oracionais. Identifique esse conectivo:
c FVVV
d VVFF a portanto
e VFVF b enquanto
c mas
3. Sob o ponto de vista do narrador, a palavra d somente
“liberdade” emerge na narrativa com uma e que
significação peculiar. As declarações abaixo se
reportam ao emprego dessa palavra, de acordo com 7. Releia e responda: “Acomodo-me num banco vazio,
a ótica do narrador na composição, mas apenas uma a tarde é clara e quase faz frio. Sinto um começo de
delas está CORRETA. Assinale-a: paz dentro de mim – a paz dos bondes vazios
nos bairros sem comércio.” A respeito do papel
a A liberdade era privilégio restrito apenas aos exercido pela construção sublinhada, inserta após a
animais, que pastavam tranquilamente pelo aceiro assinalação do ponto do travessão, marque a opção
dos açudes. CORRETA:
b Os meninos de engenho só tinham autorização e
liberdade para frequentar as missas e festas a A construção evidencia a prevalência significativa
religiosas. da palavra “bonde”, na narrativa.
c Aos trabalhadores do eito pesado nas fazendas era b Trata-se de um reparo semântico que o narrador faz,
negado o direito de liberdade, naqueles tempos de para evitar a ambiguidade de significação entre as
escravidão. palavras “banco”, “tarde” e “frio”.
d A liberdade do pensamento fez o narrador “viajar” c A construção faz a diferença sutil entre os planos
no tempo, recobrando o passado de sua infância. temporais de “começo” e “término” da sensação de
e De acordo com a percepção do narrador, enquanto paz que domina o narrador.
os meninos mais pobres eram soltos e livres, os mais d A construção esclarece que a sensação de paz do
abastados eram privados de tanta liberdade. narrador só se fez possível pela inexistência do
comércio nos bairros.
4. Assinale a alternativa INCORRETA, de acordo com e Trata-se de uma construção apositiva, com a
o texto: especificação explicativa do sentido semântico da
palavra “paz”.
a As lembranças fizeram bem ao narrador e o
instigaram a rememorar, nostalgicamente, 8. Releia e responda: “Vivíamos de pernas
paisagens e cenas de seu passado. encalombadas, durante todos os meses das férias,
b As paisagens revisitadas do passado exibiam um no engenho.” Aponte a classificação sintática dessa
cenário campestre, com plantações de cana-de- construção:
açúcar e casa-grande.
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a período simples, oração absoluta
b oração coordenada sindética aditiva
c período composto por subordinação
d período composto por coordenação
e oração subordinada adjetiva apositiva

9. Releia e responda: “Agora, esta mulher do bonde me traz tantas lembranças e nas
lembranças um bem-estar tão inesperado que, se não parecesse exibicionismo, eu lhe
pagaria a passagem.” A palavra grifada pertence a que classe gramatical?

a adjetivo
b substantivo
c verbo
d advérbio
e pronome

10. Releia e responda: “Eram mulheres resignadas, que rezavam muito e que, apesar disso, me
davam a impressão de que não iriam para o céu.” Encontre um sinônimo para a palavra
sublinhada:

a represadas
b intransigentes
c irresolutas
d conformadas
e inconformadas

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