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GRUPO I

A
Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha já um tom pálido.
Tomaram a tipoia. No Rossio, Alencar, que passava, que os viu – parou, sacudiu ardente-
mente a mão no ar. E então Carlos exclamou, com uma surpresa que já o assaltara essa manhã
no Bragança:
5 – Ouve cá, Ega! Tu agora pareces íntimo do Alencar! Que transformação foi essa?
Ega confessou que realmente agora apreciava imensamente o Alencar. Em primeiro lugar,
no meio desta Lisboa toda postiça, Alencar permanecia o único português genuíno. Depois,
através da contagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente. Além disso, havia
nele lealdade, bondade, generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita era tocante.
10 Tinha mais cortesia, melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não lhe ia mal
ao seu feitio lírico. E por fim, no estado a que descambara a literatura, a versalhada do Alen-
car tomava relevo pela correção, pela simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em re-
sumo, um bardo1 infinitamente estimável.
– E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegámos! Não há nada, com efeito, que caracterize
15 melhor a pavorosa decadência de Portugal, nos últimos trinta anos, do que este simples facto:
tão profundamente tem baixado o carácter e o talento, que de repente o nosso velho Tomás,
o homem da Flor de Martírio, o Alencar de Alenquer, aparece com as proporções de um génio
e de um justo!
Ainda falavam de Portugal e dos seus males, quando a tipoia parou. Com que comoção
20 Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janelinhas abrigadas à beira do telhado, o
grande ramo de girassóis fazendo painel no lugar do escudo de armas! Ao ruído da carrua-
gem, Vilaça apareceu à porta, calçando luvas amarelas. Estava mais gordo o Vilaça – e tudo na
sua pessoa, desde o chapéu novo até ao castão de prata da bengala, revelava a sua importân-
cia como administrador, quase direto senhor, durante o longo desterro de Carlos, daquela
25 vasta casa dos Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que ali vivia com a mulher e o
filho, guardando o casarão deserto. Depois felicitou-se de ver enfim os dois amigos juntos. E
ajuntou, batendo com carinho familiar no ombro de Carlos:
– Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolónia, fui tomar um banho ao Central e
não me deitei. Olhe que é uma grande comodidade, o tal sleeping-car2! Ah, lá isso, em pro-
30 gresso, o nosso Portugal já não está atrás de ninguém!… E Vossa Excelência agora precisa de
mim?
– Não, obrigado, Vilaça. Vamos dar uma volta pelas salas… Vá jantar connosco. Às seis!
Mas às seis em ponto, que há petiscos especiais.

QUEIRÓS, Eça de (2016). Os Maias. Porto: Porto Editora [pp. 722-724]

1. bardo: trovador; poeta. 2. sleeping-car: carruagem-cama (carruagem de comboio cujos compartimentos têm camas).

1. Localiza o excerto lido na estrutura interna de Os Maias.


2. Refere o valor simbólico da personagem Alencar, neste momento da ação.

3. Analisa estilisticamente o excerto que se segue.

“Com que comoção Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janelinhas


abrigadas à beira do telhado, o grande ramo de girassóis fazendo painel no lugar do
escudo de armas!” (ll. 19-21)
B

Deus, que leda que m’esta noite vi

Deus, que leda que m’esta noite vi,


amiga, em um sonho que sonhei!
Ca sonhava, em como vos direi,
que me dizia meu amig’assi:
5 «Falade mig’, ai meu lum’ e meu bem!»

Nom foi no mundo tam leda molher


em sonho, nem no podia seer,
ca sonhei que me veera dizer
aquel que me milhor que a si quer:
10 «Falade mig’, ai meu lum’ e meu bem!»

Des que m’espertei, ouvi gram pesar1,


ca em tal sonho avia gram sabor,
com o rogar-me, por Nostro Senhor,
o que me sabe mais que si amar:
15 «Falade mig’, ai meu lum’ e meu bem!»
E, pois m’espertei, foi a Deus rogar
que me sacass’aqueste sonh’a bem2.
João Mendes de Briteiros in Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos (eds.),

A lírica galego-portuguesa, 1.a edição, Lisboa, Editorial Comunicação, 1983, p. 299.


1
v. 11: quando acordei, tive grande pesar.
2
v. 17: que este sonho acabasse bem.

1. Divide a cantiga em dois momentos e explicita o assunto de cada parte.

2. Tendo em conta o contexto da cantiga, apresenta uma possível simbologia para o «sonho».

3. Atenta nos versos do refrão e justifica o emprego das aspas.

4. Indica duas marcas de género da cantiga de amigo.

5. Identifica os recursos expressivos presentes nos seguintes versos:


a) «que leda que m’esta noite vi, / amiga, em um sonho que sonhei!» (vv. 1-2)
b) «aquel que me milhor que a si quer» (v. 9)
5.1 Refere-te ao valor expressivo de b)
G R U P O II

Eu conheci Tomás de Alencar. Conheci-o na província, donde nunca saiu, quando ele já tinha o seu
longo bigode romântico embranquecido pela idade e amarelecido pelo cigarro, como n’Os Maias. Não
era este homem profissionalmente um poeta – quero dizer, nunca fabricara livros de versos para vender
a editores. Fazia, porém, versos, que apareciam num jornal de ***. E era ainda poeta pela sua maneira
5 especial de entender a vida e o mundo. Desde o primeiro dia que o tratei, senti logo nele uma soberba
encarnação do lirismo romântico. E desde logo tive o desejo, a fatal tendência, de convertê-lo numa
personagem. Já, com efeito, este homem perpassa n’O Crime do Padre Amaro – tão rapidamente,
porém, que o tipo vem todo condensado numa só linha. Ninguém hoje se lembra já d’O Crime do Padre
Amaro, por isso cito esse episódio. É na praia da Vieira, uma praia de banhos ao pé de Leiria, à hora do
10 banho: “As senhoras sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar palrando;
os homens, de sapatos brancos, estendidos pelas esteiras, chupavam o cigarro, riscavam emblemas na
areia – enquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só, soturno, junto à
vaga, seguido do seu terra-nova.” Mais nada.
Não volta mais em todo o livro. Mas nessa curta linha passa ele real, como era, tão vivo que o revejo
15 agora, magro, com a grenha sobre a gola, fatal e soturno, admirado das mulheres, seguido do seu terra-
-nova. E revejo-o ainda, como numa das derradeiras vezes, anos depois, passeando rente de um muro
de cemitério, ao cair da tarde, numa quieta vila de província, mais grisalho, mais soturno, falando de
versos e das tristezas da vida, com o chapéu desabado sobre os olhos, embrulhado num xale-manta
cinzento, seguido do seu terra-nova.
20 O meu trabalho n’Os Maias foi transportá-lo para as ruas de Lisboa, acomodá-lo ao feitio de Lisboa,
começando por o desembrulhar do seu xale-manta, e separá-lo do seu cão – porque estes dois atributos
não se coadunam com os costumes da capital. Completei-o também dando-lhe esse horror literário do
naturalismo, que Alcoforado nunca tivera – porque nesses tempos ditosos ainda não se parolava em
»

Portugal acerca do Naturalismo, nem o nosso bom Chagas conhecia ainda, para dele se rir, de alto para
25 baixo, o épico d’O Germinal.
Em todas as feições fundamentais, porém, ele permaneceu no romance exatamente como foi na
vida.
Era dele a solenidade do Alencar. Dele a voz cavernosa e lenta. Dele o hábito (que o ajudou a matar)
de atirar às goelas copinhos de genebra. Dele o costume de empregar o invocativo filhos! – tão invete-
30 rado que este plural vinha mesmo quando se dirigia a uma só pessoa, como se em espírito falasse a
uma descendência de espíritos. Eram dele, enfim, a lealdade, a honestidade impecável, a bondade, a
generosidade, a alta cortesia de maneiras: e é bem petulante que alguém tente à força encafuar-se den-
tro destas nobres qualidades, e procure resplandecer perante a multidão com o brilho que elas irra-
diam, repetindo assim a fábula sempre grotesca e sempre irritante da gralha que se reveste com as penas
35
melhores do pavão!
QUEIRÓS, Eça de (2000). Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil [pp. 157-159]

1.1. Neste texto, Eça de Queirós


a. apresenta uma reflexão crítica sobre as obras O Crime do Padre Amaro e Os Maias.
b. caracteriza minuciosamente, em termos físicos, psicológicos e sociais, a entidade real que deu
origem à personagem Alencar.
c. critica asperamente o perfil psicológico dos poetas Carlos Alcoforado e Alencar.
d. dá a conhecer a génese da personagem Alencar.
1.2. No primeiro parágrafo, Eça de Queirós refere-se a
a. um poeta real.
b. uma entidade marcada pela veia romântica.
c. um artista de renome no século XIX.
d. uma personagem fictícia, de nome Tomás de Alencar.
1.3. Na linha 7, o conector “com efeito” desempenha uma função
a. contrastiva.
b. de confirmação.
c. contra-argumentativa.
d. de retificação.
1.4. O discurso reproduzido nas linhas 9 a 13 é apresentado sob a forma de
a. discurso direto.
b. discurso indireto.
c. discurso indireto livre.
d. citação.
1.5. Com a expressão “Completei-o também dando-lhe esse horror literário do Naturalismo” (ll. 22-23),
Eça de Queirós
a. demonstra a sua repulsa pelo Naturalismo.
b. atribui uma característica psicológica à personagem Alencar.
c. alude a Carlos Alcoforado como poeta que segue a estética do Naturalismo.
d. faz referência à crítica ao Naturalismo feita pela sociedade da época.
1.6. Na linha 30, a conjunção “que” introduz uma oração
a. coordenada explicativa.
b. subordinada adverbial comparativa.
c. subordinada adverbial consecutiva.
d. subordinada substantiva completiva.

1.7. Na última frase do texto, a referência à “gralha” e ao “pavão” baseia-se


a. na metáfora.
b. no eufemismo.
c. na sinestesia.
d. na aliteração.
2. Considerando a frase abaixo, faz corresponder a cada constituinte frásico (coluna A) a respetiva
função sintática (coluna B).

O meu trabalho n’Os Maias foi transportá-lo para as ruas de Lisboa, acomodá-lo ao feitio de
Lisboa, começando por o desembrulhar do seu xale-manta, e separá-lo do seu cão – porque estes
dois atributos não se coadunam com os costumes da capital. Completei-o também dando-lhe
esse horror literário do naturalismo, que Alcoforado nunca tivera – porque nesses tempos ditosos
5 ainda não se parolava em Portugal acerca do naturalismo, nem o nosso bom Chagas conhecia
ainda, para dele se rir, de alto para baixo, o épico d’O Germinal. (ll. 20-25)

Coluna A Coluna B
a. “lo” (l. 1) 1. Sujeito
b. “estes dois atributos” (ll. 2-3) 2. Complemento direto
c. “que Alcoforado nunca tivera” (l. 4) 3. Complemento indireto
d. “em Portugal” (l. 5) 4. Complemento oblíquo
e. “dele” (l. 6) 5. Modificador (do grupo verbal)
6. Complemento do nome
7. Modificador apositivo do nome

G R U P O III

Tendo em conta as questões ambientais, faz uma apreciação


crítica (entre 180 e 200 palavras) ao cartoon apresentado ao
lado.

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