Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Beatriz Berrini
PUC-SP
N'O Crime do Padre Amaro, o que predomina na área dos alimentos, a meu ver,
é o aspecto de crítica social. Os debates entre os sacerdotes à volta da mesa, o seu
comportamento de homens fartos da comezaina, permitem ao leitor uma avaliação
crítica do clero. Os padres banqueteiam-se, comendo com exagero, "como abades",
segundo o refrão popular; enquanto isso, a empregada Gertrudes, quase às escondidas,
mete uma broa no alforge de um miserável pedinte. Disse mal: meia broa. O anfitrião, o
abade de Cortegaça, confirma a existência de muitos miseráveis na freguesia e rebate a
acusação do Padre Natário, que se insurge contra a presença de bandos de mendigos na
região: muita pobreza, mas muita preguiça, dizia Natário. É o parecer dos que tudo
possuem, face à miséria e mudez dos que nada têm. Já no romance seguinte – O Primo
Basílio – a "voz do pobre" é ouvida directamente, graças ao monólogo interior
indirecto, que permite ao leitor penetrar no íntimo de Juliana e seguir os seus
pensamentos. Revolta-se Juliana perante a injustiça da sociedade, desejando pelo menos
garantir o pão da velhice, ou seja, um mínimo que lhe permita envelhecer sem cair na
extrema miséria:
1
O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre...
Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração de caldo – não poderia aparecer
nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie-gras e túbaras que são o orgulho da
civilização.
2
É o que também acontece ao requintado Jacinto, que em Paris, então o centro
urbano mais em evidência em todo o mundo, vivia mergulhado no tédio e no fastio, mas
que se "converte" ao trasladar-se para as serras do Douro. Se a sua "conversão" tem
início quando ele se depara com a "incomparável beleza daquela serra bendita", e,
atento, passa a ouvir a música das águas sussurrantes e o canto dos pássaros, é à tosca
mesa de Tormes que vemos firmar-se essa sua transformação:
Esse amor pela cozinha tradicional, a louvação aos pratos típicos portugueses,
revela o afecto de Eça pela sua terra que, desolado, via mergulhada numa decadência
progressiva, aviltada e risível.
3
Eça escreveu um ensaio específico sobre culinária, para a Gazeta de Notícias, do
Rio, intitulado: "Cozinha arqueológica". Ali, estuda sobretudo a cozinha dos romanos,
fala dos seus mais importantes chefes, dos pratos mais famosos, acabando por
apresentar, no final, algumas receitas que permitem a elaboração precisa e rigorosa de
um jantar à romana. Pesquisou, leu inúmeras obras, seleccionou e transfigurou os dados
recolhidos, oferecendo-nos depois originalíssimas páginas, que facultarão aos mais
ousados amadores da culinária, especialmente dotados para essa arte, ocasião de
confeccionar e saborear uma típica refeição à moda dos primeiros séculos da nossa era.
Não está ausente, também aqui, o mordaz espírito crítico do romancista, caricaturando
certos costumes e exageros, crítica contrabalançada pelo seu entusiasmo diante dos
saborosos pratos da Antiguidade.
1. desenvolvimento do enredo;
2. apresentação e caracterização das personagens;
3. exposição de ideias;
4. marcação de contrastes;
5. instrumento de sedução.
4
refeição, André arrebata-a em giros lentos, "com a face pendida respirando os seus
cabelos magníficos". A aproximação fora preparada por Gonçalo, interessado no apoio
de André, governador civil, à sua candidatura a deputado. O jantar, portanto, é uma
espécie de ponto de partida para o reatamento amoroso entre os antigos noivos.
Outra função importante que Eça atribui às refeições nos seus romances é a de
caracterizar as personagens. Vejamos um exemplo, partindo de considerações teóricas
por ele expostas no ensaio já citado, "Cozinha arqueológica". Eça aproveita uma frase
de Brillat-Savarin, traduzindo-a e adaptando-a aos seus fins.
Diz-me o que comes, dir-te-ei o que és. O carácter de uma raça pode ser
deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Um lombo de vaca preparado
em Portugal, em França, ou Inglaterra, faz compreender talvez melhor as diferenças
intelectuais destes três povos do que o estudo das suas literaturas.
5
romance, debatendo os convivas a colonização portuguesa em África, ou a política
local, ou outra questão qualquer.
Esses debates à volta da mesa são por vezes entremeados pela apresentação dos
pratos, à medida que vão sendo oferecidos aos convivas. Uma espécie de pausa a
quebrar um pouco as discussões em torno das ideias e posições políticas. Assim, quando
Ega anuncia a invasão espanhola, pelas fronteiras portuguesas desguarnecidas, ou o
desbarato das colónias de África, a tensão é aliviada pela intervenção do criado,
apresentando-lhe a travessa com o “poulet aux champignons”. Uma função de
contraponto sereno no meio do inflamado debate sobre a situação de Portugal. O mesmo
noutra refeição, na casa dos Condes de Gouvarinho, capítulo XIII d'Os Maias: se João
da Ega – ainda ele – esbraveja contra a maneira como África estava a ser explorada e,
num paradoxo, chega mesmo a defender a escravatura, a discussão interrompe-se
porque se serve o “jambon aux épinards”.
A expressão do sabor
Mas, sem dúvida, a maneira como Eça consegue comunicar o sabor das iguarias
degustadas pelas suas personagens é que, a meu ver, constitui a especificidade da sua
arte neste sector. Não foi ele o único a tratar da culinária nos seus romances. Lembro
por exemplo, em Portugal, mais ou menos contemporâneo de Eça, Júlio Dinis, que se
extasia perante a azáfama que vai pela cozinha nas vésperas de Natal, aludindo aos
pratos e às bebidas que serão servidos na consoada: o vinho quente, os mexidos, as
rabanadas... No entanto, entusiasmado com o espectáculo, não faz comentários sobre o
sabor. É capaz de apaixonadamente defender a cozinha regional natalícia, sem se
preocupar, no entanto, em fazer o leitor degustar o alimento através das suas palavras. É
o que faz n'A Morgadinha dos Canaviais. Não quero deter-me em enumerar outras
obras que acenam para os alimentos, mesmo que me circunscrevendo ao espaço
português. Prefiro analisar, ainda que rapidamente, a arte queirosiana de comunicar o
gosto dos pratos, a que fiz referência.
6
Mostra-nos por exemplo, a reacção das personagens perante um prato saboroso e
favorito. Assim Gonçalo, diante da sopa, momentaneamente esquece a sua importante
conversa com o Pereira e mergulha na contemplação do prato: emudece.
A queijadinha, por sua vez, em dois momentos d'Os Maias, contribui para
humoristicamente caracterizar uma personagem ou expressar a delicadeza de uma
7
situação. Cruges, o músico, do início ao final do passeio a Sintra, insiste na compra das
queijadinhas para a mãe. À volta, lembrando-se tardiamente delas, solta um berro, que
muito espanta os companheiros, embevecidos a ouvirem na noite de luar os versos
recitados pelo Alencar. O humor aflora, seja pela intermitente menção às queijadas
durante todo o passeio a Sintra, seja ao final, por contrastar com o lirismo da situação,
caracterizada pelo silêncio que cerca a audição dos versos, seja pelo contexto: uma noite
de luar.
Mas talvez o episódio cómico mais celebrado de toda a ficção queirosiana seja,
n'A Cidade e as Serras, o encalhe do peixe no elevador, entre a cozinha e a sala de
jantar do 202 de Jacinto. O episódio é uma jóia de humor e espírito crítico, com detalhes
interessantíssimos. A refeição fora ideia do anfitrião por causa de um famoso e raro
peixe da Dalmácia, oferecido pelo grão-duque, que exigira em troca uma ceia à altura
do petisco. O prato, todavia, fica retido no meio do caminho, porque o elevador dos
pratos se desarranjara. Todos correm para admirá-lo:
na treva, sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa,
ainda fumegando, entre rodelas de limão.
8
Noutros momentos da ficção queirosiana serão as memórias familiares que irão
dar relevo à iguaria. Gonçalo, na sua quinta, demonstra o seu entusiasmo perante as
"pesadas sopas de pão, presunto e legumes, que ele desde criança adorava e chamava as
palanganas". O Cruges, por outro lado, quando acompanha Carlos a Sintra, extasia-se
perante os ovos com chouriço, que lhe dão a sensação de estar na aldeia. Quer dizer:
além do contexto, tão importante, somam-se as lembranças familiares, a darem sua
contribuição para o sabor deste ou daquele prato.
Notas