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EÇA DE QUEIROZ E OS PRAZERES DA MESA

Beatriz Berrini
PUC-SP

Parecerá talvez estranho a muitos que eu me tenha disposto a escrever um texto


a respeito de alimentação, para uma reunião que congrega trabalhos literários. Médicos,
esteticistas, especialistas em regimes e outros abordam naturalmente o assunto. Mas um
romancista como Eça de Queirós que tem que ver com o comer e o beber das suas
personagens? Forster [1], com efeito, afirmou que o alimento na ficção tem sobretudo
uma função social, uma vez que as personagens raramente sentem fome ou saboreiam
especialmente os alimentos.

O contrário acontece com os textos queirosianos. Aliás, sempre me


impressionaram pela especial ênfase dada à alimentação. Ou seja: alimentos e bebidas,
nos romances de Eça, valem por si mesmos. Mencionam-se e louvam-se determinados
pratos, degusta-se o bom vinho, o leitor encanta-se com a descrição das mesas,
compartilhando o prazer dos convivas... Foi isso que me levou a organizar a edição e a
redigir a introdução do livro Comer e beber com Eça de Queiroz, que hoje está a ser
lançado no Rio de Janeiro.

Vou limitar-me a recordar, nesta minha participação, as várias funções literárias


que a alimentação assume na ficção queirosiana, o que é possível constatar desde o seu
primeiro grande romance, O Crime do Padre Amaro. Quem não se lembra, por
exemplo, do célebre jantar do abade de Cortegaça oferecido aos seus colegas do clero: o
caldo de galinha, a famosa cabidela, invenção ímpar do abade, – "um divino
artista" – mais a sobremesa, o quase infalível arroz doce? Sem mencionar o vinho do
Porto de 1815 e os debates que acompanham a degustação dos pratos. Esse prazer em
falar a respeito da alimentação é uma característica que acompanhou o nosso romancista
por toda a sua vida, algo sempre presente na sua ficção, do primeiro até aos últimos
romances, A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras.

Funções críticas da alimentação

N'O Crime do Padre Amaro, o que predomina na área dos alimentos, a meu ver,
é o aspecto de crítica social. Os debates entre os sacerdotes à volta da mesa, o seu
comportamento de homens fartos da comezaina, permitem ao leitor uma avaliação
crítica do clero. Os padres banqueteiam-se, comendo com exagero, "como abades",
segundo o refrão popular; enquanto isso, a empregada Gertrudes, quase às escondidas,
mete uma broa no alforge de um miserável pedinte. Disse mal: meia broa. O anfitrião, o
abade de Cortegaça, confirma a existência de muitos miseráveis na freguesia e rebate a
acusação do Padre Natário, que se insurge contra a presença de bandos de mendigos na
região: muita pobreza, mas muita preguiça, dizia Natário. É o parecer dos que tudo
possuem, face à miséria e mudez dos que nada têm. Já no romance seguinte – O Primo
Basílio – a "voz do pobre" é ouvida directamente, graças ao monólogo interior
indirecto, que permite ao leitor penetrar no íntimo de Juliana e seguir os seus
pensamentos. Revolta-se Juliana perante a injustiça da sociedade, desejando pelo menos
garantir o pão da velhice, ou seja, um mínimo que lhe permita envelhecer sem cair na
extrema miséria:

1
O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre...

Muitas personagens queirosianas irão amargar a situação de não terem o


suficiente para comer bem. Teodorico, por exemplo, rejeitado pela tia Patrocínio, tem de
se preocupar com o "pão de cada dia". Mais para a frente – outro exemplo – Zé
Fernandes, em A Cidade e as Serras, é quem explica, de forma incisiva e eloquente, ao
primo Jacinto, que é o labor incansável dos miseráveis que proporciona a abundância
dos mais ricos:

Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração de caldo – não poderia aparecer
nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie-gras e túbaras que são o orgulho da
civilização.

Para que os Jacintos deste mundo possam comer os alimentos mais


requintados - morangos gelados em champanhe, por exemplo - "um povo chora de
fome, e da fome dos seus pequeninos". A melhor referência desse espírito de crítica
social na ficção queirosiana, o símbolo que melhor expressa a oposição
escassez/abundância, – será, talvez, o palácio de Sintra. Tem um nobre semblante, bem
assentado entre o casario da vila, com as belas janelas manuelinas, o vale aos pés
"frondoso e fresco"; mas sobretudo, no alto, lá estão...

[...] as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essa


residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que
cada dia come todo um reino [2] (Os Maias).

Além dessa dualidade opositora abundância/escassez, que permite ao escritor


expor as suas restrições apaixonadas contra a má organização da sociedade da sua
época, outros binómios estão presentes na sua ficção na área da gastronomia: ao lado da
cozinha ocidental, Eça mostra-nos a cozinha exógena, como a da China n'O Mandarim;
ou descreve os alimentos da Palestina, ao narrar a viagem de Teodorico na Terra Santa
do tempo de Cristo, n'A Relíquia. Neste romance, percebe-se a presença de mais uma
oposição, agora entre o presente e o passado, contrastando o autor a alimentação do seu
tempo com os manjares e bebidas oferecidos na Jerusalém do primeiro século na nossa
era.

Curiosamente, se analisarmos as refeições saboreadas pela aristocracia autêntica,


verificaremos que os pratos mais louvados são os mais tradicionais, em oposição à
cozinha afrancesada, cultivada pelas classes abastadas dos burgueses enriquecidos. Sob
a direcção de chefes importados do estrangeiro, confeccionam-se "pratos lúgubres,
traduzidos do francês para o calão como as comédias do Ginásio!", como João da Ega
comenta, referindo-se sobretudo aos pratos oferecidos nos hotéis e restaurantes. Se isso
é verdade em Lisboa, se na capital é possível encontrar uma cozinha afrancesada e outra
autenticamente portuguesa, a valorização dos pratos tradicionais ainda é mais evidente
na província. Gonçalo Mendes Ramires encanta-se, por exemplo, com um simples caldo
de galinha, da mesma forma que, na ceia com os amigos, no Gago, devora seguidamente
a pratada de ovos com chouriço, a tainha assada, o seu "frango de doente" – já que
amanhecera mal disposto – a salada de pepino, mais "um montão de ladrilhos de
marmelada", que esmaga no copo de Alvaralhão. Somente assim consegue satisfazer a
sua "fome ramírica"... A sua gula afina-se com aquela gula real, sugerida pelas colossais
chaminés do palácio de Sintra.

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É o que também acontece ao requintado Jacinto, que em Paris, então o centro
urbano mais em evidência em todo o mundo, vivia mergulhado no tédio e no fastio, mas
que se "converte" ao trasladar-se para as serras do Douro. Se a sua "conversão" tem
início quando ele se depara com a "incomparável beleza daquela serra bendita", e,
atento, passa a ouvir a música das águas sussurrantes e o canto dos pássaros, é à tosca
mesa de Tormes que vemos firmar-se essa sua transformação:

Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou –


e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam,
surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu
com espanto: - Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três
vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.

Zé Fernandes continua o seu relato, contando-nos o prazer de Jacinto ao ingerir


o arroz de favas e o louro frango no espeto, mais a salada temperada com azeite da
serra. Na verdade, ali na sua propriedade de Tormes, num contexto rude – sobre uma
toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata, com pratos de louça amarela e
garfos de ferro – Jacinto consegue saciar a sua "velhíssima fome", que permanecera
insatisfeita no luxo do 202 da Avenida dos Campos Elíseos, em Paris. E louva então a
serra e a arte perfeita daquele bando de mulheres alvoroçadas, responsáveis pelo divino
jantarinho.

Esse amor pela cozinha tradicional, a louvação aos pratos típicos portugueses,
revela o afecto de Eça pela sua terra que, desolado, via mergulhada numa decadência
progressiva, aviltada e risível.

Outro exemplo expressivo dessa exaltação nacionalista da terra e dos seus


costumes tradicionais – não dos habitantes – nós vamo-lo encontrar nessa personagem
cosmopolita e requintadíssima de Fradique Mendes. Nos seus périplos, Fradique
recolhera imensos conhecimentos, em variadíssimas culturas, e no entanto abriga a
firme convicção da superioridade do Portugal português. E por apreciar o pato com
macarrão do século XVIII, a almôndega indigesta e divina do tempo das descobertas, a
maravilhosa cabidela de frango...

[...] petisco dilecto de D. João IV de que os fidalgos ingleses, que vieram ao


reino buscar a noiva de Carlos II, levaram para Londres a surpreendente notícia.

Fradique lamenta a perda irremediável da tradição, que jazia esquecida: "tudo


estragado!" A degeneração das coisas "mais deliciosas de Portugal – o lombo de porco,
a vitela de Lafões, os legumes, os doces, os vinhos, enfim, pratos e bebidas veneráveis
de Portugal – insipidaram". Foi indispensável empregar o verbo inusitado para bem
expressar a decadência das boas coisas nacionais. Em Fradique Mendes estão presentes
a nostalgia e o amor pelo Portugal antigo, sobretudo, e, em consequência, "o ódio à
universal modernização que reduz todos os costumes, crenças, ideias, gostos, modos".
Igual opinião manifesta João da Ega, que censura a "mania francesa e burguesa de
reduzir todas as raças ao mesmo tipo de civilização". Isso, diz ele, torna o mundo duma
insipidez abominável. Qual seria a sua opinião, se tivesse podido vislumbrar e avaliar o
mundo de hoje?

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Eça escreveu um ensaio específico sobre culinária, para a Gazeta de Notícias, do
Rio, intitulado: "Cozinha arqueológica". Ali, estuda sobretudo a cozinha dos romanos,
fala dos seus mais importantes chefes, dos pratos mais famosos, acabando por
apresentar, no final, algumas receitas que permitem a elaboração precisa e rigorosa de
um jantar à romana. Pesquisou, leu inúmeras obras, seleccionou e transfigurou os dados
recolhidos, oferecendo-nos depois originalíssimas páginas, que facultarão aos mais
ousados amadores da culinária, especialmente dotados para essa arte, ocasião de
confeccionar e saborear uma típica refeição à moda dos primeiros séculos da nossa era.
Não está ausente, também aqui, o mordaz espírito crítico do romancista, caricaturando
certos costumes e exageros, crítica contrabalançada pelo seu entusiasmo diante dos
saborosos pratos da Antiguidade.

Aspectos literários da cozinha e adega na ficção de Eça

Na verdade, embora o romancista considerasse que "a cozinha e adega exercem


uma larga e directa influência sobre o homem e a sociedade", o que para nós tem
importância especial são as funções literárias que o escritor atribui aos seus episódios
gastronómicos.

Enumeremo-las. Podemos dizer que as considerações em torno das refeições


contribuem para:

1. desenvolvimento do enredo;
2. apresentação e caracterização das personagens;
3. exposição de ideias;
4. marcação de contrastes;
5. instrumento de sedução.

Em toda a obra ficcional de Eça de Queirós a refeição de maior importância,


parece-me, é o jantar do Hotel Central, n'Os Maias, com múltiplas funções, entre elas, a
de contribuir, de forma extraordinária aliás, para o desenvolvimento da trama amorosa.
Ao entrarem no Hotel, Carlos e Craft vêem passar à sua frente a ainda desconhecida
Maria Eduarda. Ambos se impressionam com aquela visão de uma bela mulher. Ambos
depois, findo o jantar, ao regressar ao Ramalhete, Carlos, naquele entreacto da vigília
para o sono, recordam o encontro, lembrança que se entrelaça com memórias da
infância de Carlos, quase um presságio do que irá futuramente acontecer. Vê de novo à
sua frente a deusa que cruzara o seu caminho.

E apenas adormecera na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um belo


dia de inverno [...]. Uma mulher passava, com um casaco de veludo branco de Génova,
mais alta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens...

Habilmente, antes e depois do jantar, insinua-se a visão de Maria Eduarda na


memória e fantasia de Carlos, involuntariamente associada a recordações da infância
que Alencar, durante a refeição, trouxera à tona. O mesmo é possível observar durante o
jantar oferecido a André Cavaleiro, por Barrolo e Gracinha, nos Cunhais. Gracinha
apresenta-se vestida de branco, o que "remoçava a sua graça virginal". Ela surge assim
quase como a antiga noiva do Cavaleiro, na verdade. Os pratos servidos têm
importância, em especial a sobremesa de "belos ovos queimados", que outrora tinham
deliciado André e que, por isso, feitos por Gracinha, comparecem neste jantar. Após a

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refeição, André arrebata-a em giros lentos, "com a face pendida respirando os seus
cabelos magníficos". A aproximação fora preparada por Gonçalo, interessado no apoio
de André, governador civil, à sua candidatura a deputado. O jantar, portanto, é uma
espécie de ponto de partida para o reatamento amoroso entre os antigos noivos.

Outra função importante que Eça atribui às refeições nos seus romances é a de
caracterizar as personagens. Vejamos um exemplo, partindo de considerações teóricas
por ele expostas no ensaio já citado, "Cozinha arqueológica". Eça aproveita uma frase
de Brillat-Savarin, traduzindo-a e adaptando-a aos seus fins.

Diz-me o que comes, dir-te-ei o que és. O carácter de uma raça pode ser
deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Um lombo de vaca preparado
em Portugal, em França, ou Inglaterra, faz compreender talvez melhor as diferenças
intelectuais destes três povos do que o estudo das suas literaturas.

A tradução do nosso romancista do quarto aforismo de


Brillat-Savarin, - "Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es" - permite entender
o recurso queirosiano de utilizar a alimentação para caracterizar alguma personagem.
Alencar, por exemplo, insiste para que Carlos saboreie o seu bacalhau: o prato tão
português mostra-nos o poeta Alencar como alguém empenhado nas tradições da sua
terra, e a sua rejeição – até certo ponto, pelo menos, – das sofisticações estrangeiradas
das cozinhas abastadas de Lisboa. Por tal razão, no final do romance, veremos Ega, que
tanto literariamente o combatera, confessar que "agora apreciava imensamente o
Alencar", pois permanecia "o único português genuíno", de uma honestidade resistente,
cheio de bondade. Mesmo na sua literatura havia um resto de sincera emoção. "Em
resumo, um bardo infinitamente estimável", que o criador do bacalhau, feito à sua moda
especial, já fizera prever.

Se Gracinha, n'A Ilustre Casa de Ramires, confeccionara os ovos queimados,


com o intuito de agradar o Cavaleiro, reconquistando assim o antigo noivo, nessa
mesma obra observamos a artimanha sedutora de D. Ana Lucena, oferecendo ao Fidalgo
da Torre de Sta. Ireneia, através da amiga e prima de Gonçalo, Maria Mendonça, um
cesto com os perfumados pêssegos da Feitosa. Frutas que têm a mesma função de atrair
e agradar a pessoa desejada: de sedução.

Tais funções frequentemente se mesclam entre si, e um mesmo episódio pode


servir vários objectivos. Assim, as conversas em torno de uma mesa podem ser
utilizadas para exposição de ideias, debates de toda a ordem. O jantar do Hotel Central,
já citado de início, é palco de importantes discussões: políticas, como por exemplo a que
se trava a respeito da decadência de Portugal e uma possível invasão do país pela
Espanha. Ou então, o debate, encabeçado por Alencar e João da Ega, sobre as estéticas
do Romantismo e do Naturalismo, – talvez a polémica literária mais importante de toda
a ficção queirosiana. N'A Ilustre Casa de Ramires, ainda durante o jantar oferecido a
André Cavaleiro, assiste-se a considerações em torno do progresso do partido
republicano em Portugal. Anuncia-se a publicação de mais um periódico político para
propaganda do ideal republicano. Mesmo em Oliveira, onde outrora existiam apenas
dois republicanos, agora havia comité, dois jornais... Mas o advento da República,
consideravam todos, "ainda vem longe, muito longe... Ainda nos dá tempo de comermos
estes belos ovos queimados". Outras discussões ideológicas comparecem nesse mesmo

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romance, debatendo os convivas a colonização portuguesa em África, ou a política
local, ou outra questão qualquer.

Esses debates à volta da mesa são por vezes entremeados pela apresentação dos
pratos, à medida que vão sendo oferecidos aos convivas. Uma espécie de pausa a
quebrar um pouco as discussões em torno das ideias e posições políticas. Assim, quando
Ega anuncia a invasão espanhola, pelas fronteiras portuguesas desguarnecidas, ou o
desbarato das colónias de África, a tensão é aliviada pela intervenção do criado,
apresentando-lhe a travessa com o “poulet aux champignons”. Uma função de
contraponto sereno no meio do inflamado debate sobre a situação de Portugal. O mesmo
noutra refeição, na casa dos Condes de Gouvarinho, capítulo XIII d'Os Maias: se João
da Ega – ainda ele – esbraveja contra a maneira como África estava a ser explorada e,
num paradoxo, chega mesmo a defender a escravatura, a discussão interrompe-se
porque se serve o “jambon aux épinards”.

A expressão do sabor

Mas, sem dúvida, a maneira como Eça consegue comunicar o sabor das iguarias
degustadas pelas suas personagens é que, a meu ver, constitui a especificidade da sua
arte neste sector. Não foi ele o único a tratar da culinária nos seus romances. Lembro
por exemplo, em Portugal, mais ou menos contemporâneo de Eça, Júlio Dinis, que se
extasia perante a azáfama que vai pela cozinha nas vésperas de Natal, aludindo aos
pratos e às bebidas que serão servidos na consoada: o vinho quente, os mexidos, as
rabanadas... No entanto, entusiasmado com o espectáculo, não faz comentários sobre o
sabor. É capaz de apaixonadamente defender a cozinha regional natalícia, sem se
preocupar, no entanto, em fazer o leitor degustar o alimento através das suas palavras. É
o que faz n'A Morgadinha dos Canaviais. Não quero deter-me em enumerar outras
obras que acenam para os alimentos, mesmo que me circunscrevendo ao espaço
português. Prefiro analisar, ainda que rapidamente, a arte queirosiana de comunicar o
gosto dos pratos, a que fiz referência.

Tal capacidade estilística, antes de mais nada, deve-se ao seu temperamento e


expressa-se graças às peculiares características do seu estilo. Guerra da Cal, no seu
estudo a respeito da escrita queirosiana, faz notar que outra faceta anímica que
transparece através do seu estilo é uma sensibilidade sensorial, que atinge o voluptuoso.
É evidente o predomínio das sensações físicas – e das psíquicas que delas derivam
imediatamente – sobre toda outra classe de percepções. E não é somente na selecção e
tratamento dos temas, mas também na eleição e no uso das imagens, inclusive no
vocabulário, que vemos manifestar-se imperativamente esta aguda sensibilidade. [3]

Apaixona-se Eça pela formosura do concreto, que os seus sentidos captam; a


essa característica alia-se uma grande sensibilidade poética. Depois, procura representar
com as palavras o efeito que as sensações provocam nele e nas personagens (e não as
próprias coisas em si), o que constitui aquilo que Guerra da Cal denomina de
impressionismo do seu estilo; algo, como o eminente estudioso mostra, que está
profundamente enraizado no seu espírito. Junte-se a ironia e a subjectividade, sempre
presentes nos seus textos. Sem esquecer, no caso presente, o seu gosto pessoal pelos
bons pratos portugueses, que a sua correspondência revela. A partir destas premissas,
rapidamente expressas, vejamos algumas das suas características estilísticas, na área dos
alimentos.

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Mostra-nos por exemplo, a reacção das personagens perante um prato saboroso e
favorito. Assim Gonçalo, diante da sopa, momentaneamente esquece a sua importante
conversa com o Pereira e mergulha na contemplação do prato: emudece.

Mais palpável é a reacção de Leopoldina, diante do bacalhau servido por Juliana:


primeiramente, como o texto esclarece, faz-lhe "uma ovação"; a seguir toca-lhe com a
ponta dos dedos, gulosa: "vinha louro, um pouco tostado, abrindo em lascas". Depois
pede a Juliana que lhe traga alho:

Esfregou-o em roda do prato esborrachado, regou as lascas do bacalhau com


um fio mole de azeite com gravidade. Divino! - exclamou.

A adjectivação, sacralizando o prato, diz tudo. Também Fradique Mendes exige


unção para saborear uma iguaria de sua predilecção. Numa taverna da Mouraria, diante
de um prato complicado e profundo de bacalhau com pimentos e grão-de-bico, ao ouvir
o nome de Renan, que alguém lançara, protesta com paixão:

- Nada de ideias! Deixem-me saborear esta bacalhoada em perfeita inocência


de espírito, como no tempo do senhor Dom João V.

Diante das iguarias, as personagens têm um comportamento devoto: silêncio,


gestos discretos e expressivos de gula e agrado, degustação lenta e embevecida,
concentração... Adjectivos e advérbios comunicam a reacção das personagens diante
dos pratos favoritos, preparados com arte e experiência. Eça emprega também, com tal
finalidade, comparações e metáforas, hipérboles, além do emprego muito particular de
adjectivos e, também, de advérbios.

- Sim senhor, famoso! Disto nem no Céu! Bela coisa!

Os manjares da terra, elevados às maravilhas divinas, por sacerdotes – eis um


recurso hiperbólico. Os verbos que traduzem a ávida gula de Gonçalo na ceia saboreada
no Gago, com os amigos, são expressivos: devorar, devastar, clarear o prato... Ou então
o autor reveste-os de uma carga afetiva: "o seu perfume enternecia" – diz Zé Fernandes
a respeito do caldo de galinha.

O que sobretudo está sempre presente é a ironia ou a complacência impregnada


de humor, da voz que narra. A narração e as descrições tornam-se leves, a crítica
aligeira-se e desperta sorrisos divertidos no leitor. Assim, no jantar do Barrolo a André
Cavaleiro, o primeiro confunde-se numa prévia conversa com Gonçalo, e afirma que o
vinho que irá oferecer datava dos tempos de Dom João II.

- Dom João II? - rosnou Gonçalo. - Está estragado!


Barrolo hesitou:
- Dom João II ou Dom João VI... Um desses reis. Enfim, um vinho único, do século
passado...

A queijadinha, por sua vez, em dois momentos d'Os Maias, contribui para
humoristicamente caracterizar uma personagem ou expressar a delicadeza de uma

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situação. Cruges, o músico, do início ao final do passeio a Sintra, insiste na compra das
queijadinhas para a mãe. À volta, lembrando-se tardiamente delas, solta um berro, que
muito espanta os companheiros, embevecidos a ouvirem na noite de luar os versos
recitados pelo Alencar. O humor aflora, seja pela intermitente menção às queijadas
durante todo o passeio a Sintra, seja ao final, por contrastar com o lirismo da situação,
caracterizada pelo silêncio que cerca a audição dos versos, seja pelo contexto: uma noite
de luar.

Na visita de João da Ega ao Ramalhete, também, quando ele se encontra de


chofre com Maria Eduarda, pela primeira vez: sente-se ele a princípio assombrado,
intimidado. Tem na mão um embrulho pardo mal atado de queijadinhas, que escapam
das suas mãos no momento em que se defronta com a jovem e espalham-se pelo tapete.
E todo o embaraço finda ali, numa risada alegre...

Mas talvez o episódio cómico mais celebrado de toda a ficção queirosiana seja,
n'A Cidade e as Serras, o encalhe do peixe no elevador, entre a cozinha e a sala de
jantar do 202 de Jacinto. O episódio é uma jóia de humor e espírito crítico, com detalhes
interessantíssimos. A refeição fora ideia do anfitrião por causa de um famoso e raro
peixe da Dalmácia, oferecido pelo grão-duque, que exigira em troca uma ceia à altura
do petisco. O prato, todavia, fica retido no meio do caminho, porque o elevador dos
pratos se desarranjara. Todos correm para admirá-lo:

na treva, sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa,
ainda fumegando, entre rodelas de limão.

Tentam em vão pescá-lo, todos considerando, depois de inúmeras tentativas, que


era melhor desistir e retornar à mesa. Acabam por concluir que "fora mais divertido
pescá-lo do que comê-lo".

Importante também a contextualização dos alimentos, seja no ambiente rústico


ou no aristocrático. O contexto contribui eficazmente para acentuar o sabor das iguarias
e dos vinhos. Veja-se por exemplo este excerto, extraído de um conto de Eça, "Um dia
de chuva", em que é descrita uma refeição campestre.

Mas o caseiro entreabriu a porta, anunciando a sopa. E quando entrou na sala,


José Ernesto teve uma sensação de conforto e de apetite, diante da pequena mesa,
nessa noite bem alumiada, com a toalha muito branca, o prato de azeitonas lustrosas,
as duas canecas onde o vinho ainda tinha espuma. A sua cadeira era a de braços; a
chuva fora cantava mais pesada; a sopa recendia.

Somente um adjectivo – lustrosas – e apenas um verbo – recendia – foram


criados para directamente expressar o sabor do que estava a ser servido. Da mesma
forma que José Ernesto, o leitor, aqui, sente também o apetite despertado sobretudo pela
contextualização. Sofisticada é, num outro contexto, a mesa preparada para o jantar dos
Cunhais, em homenagem a André Cavaleiro: louça da China, os famosos talheres
dourados da baixela do tio Melchior, e duas jarras de Saxe transbordantes de cravos
brancos e amarelos, as cores heráldicas dos Ramires... O mesmo cuidado, nesse
episódio, em relação à descrição dos trajos dos convivas. Grava o leitor na memória a
lembrança de um grande jantar queirosiano; no entanto, desconhecemos quais os pratos
que foram servidos nesse jantar, que nem sequer são nomeados...

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Noutros momentos da ficção queirosiana serão as memórias familiares que irão
dar relevo à iguaria. Gonçalo, na sua quinta, demonstra o seu entusiasmo perante as
"pesadas sopas de pão, presunto e legumes, que ele desde criança adorava e chamava as
palanganas". O Cruges, por outro lado, quando acompanha Carlos a Sintra, extasia-se
perante os ovos com chouriço, que lhe dão a sensação de estar na aldeia. Quer dizer:
além do contexto, tão importante, somam-se as lembranças familiares, a darem sua
contribuição para o sabor deste ou daquele prato.

Pretenderam estas breves considerações mostrar a importância do alimento na


ficção de Eça. Elemento fundamental caracterizador de qualquer cultura – e portanto
também da portuguesa – ocupa nas páginas literárias do escritor um espaço maior que o
usual, distinguindo-se quer pela frequência das referências, quer sobretudo pelas
funções que o escritor lhe atribui, literárias e simbólicas, quer ainda pela maneira
saborosa com que fala de manjares e bebidas.

Notas

FORSTER, E. M, Aspectos do romance, Porto Alegre: Globo, 1969.

As citações dos romances de Eça de Queirós foram todas extraídas da edição da


Aguilar, Rio, 1970, em dois volumes.

GUERRA DA CAL, Ernesto, Língua e estilo de Eça de Queiroz, Coimbra: Almedina,


1981, p. 82 e segs.

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