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Dez Contos

Lucas Furió

Edição autônoma

1
Carnes à vontade

- Jijoca, o que é ironia?

Unção do enfermo

Sinvaldo

Sirene

Primeiro de maio

O vendedor de leques

Cotidiano

O materialista e o espiritualista

Dez contos

2
Carnes à vontade

-Senhor, veja para mim, por gentileza, um braço.

-Sim. Algo mais?

-Não, não, um braço não. Uma porção de globos oculares e uma barriga. Prefiro de asiáticos. São
criados em cativeiro?

-Temos de cidadãos comuns e de prisioneiros também. O senhor escolhe.

-Certo... Bom, olhos de comuns devem ser mais relaxados. Olhos de cidadãos comuns, por favor. A
barriga, qual a sugestão da casa?

-Olha senhor, tem saído muito a de cidadão comum. Mas sabe como é, eles comem muito
salgadinho e doce demais... Em termos de saúde, a de prisioneiro é melhor. Eles têm uma dieta
balanceada, elaborada por nutricionistas.

-É isso, então!

-Para beber?

-Um refrigerante de guaraná. Enquanto não estou preso posso beber algo que não seja suco
natural...

-Está bem. A senhora?

- Os olhos servem duas pessoas?

- Sabe como é, senhora, depende do ponto-de-vista. E do apetite, claro. São olhos de uma família
média: em torno de oito a dez olhos.

-Então quero uma porção de dedos fritos com molho agridoce.

-Excelente pedido.

-Não te perguntei nada.

-Mais alguma coisa, senhora?

-Não.

-Para beber?

-Não.

-Está bem.

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O garçom se retira, com um nó na garganta, engolindo seco a falta de trato da jovem
senhora. Assim, o casal pode continuar sua conversa, razão da impaciência dela:

- Pois então...quando eu disse a eles que achava o vegetarianismo uma coisa esquisita, sem
propósito e sem embasamento teórico, eles acharam um absurdo.

- Hum?!

-Onde já se viu, Tânia? Faz parte da nossa espécie comer carne...

-Rômulo, se é natural ou não, não sei. Mas é a opção deles. Temos que respeitar.

-Eu respeito. Mas eles que não me venham querer fechar os abatedouros e muito menos acabar
com o convênio com os cemitérios internacionais. Já pensou que desperdício? Nós merecemos isso
muito mais que os vermes.

-Concordo, concordo, Romeu. Nós somos seres civilizados, pensantes, dotados de cultura e
sentimentos. Os vermes não vêem nem ouvem, não saber o teorema de Pitágoras, não usam
dinheiro.

-Pois é... tá sentindo o cheirinho da barriga?

- Não... isso parece orelha.

-As décadas, os séculos e talvez milênios vêm e vão: as discussões são as mesmas. Alguns não
querem ser civilizados, não evoluíram. Veja: nós somos o ápice da evolução animal. Criamos a
semente transgênica, canalizamos a água, expulsamos os povos incultos e conflituosos das zonas
férteis, confinamos o gado e os criminosos. Os deuses só podiam ser mesmo astronautas.

- Pois é.

- Tô com fome. E agora me deu uma vontade comer orelha à milanesa...

- Da próxima vez que a gente vier aqui você pede.

- Tem que aproveitar enquanto a guerra tá de vento em popa. Se não já viu, o preço vai lá em cima..

-Mas sempre tem a bovina e a suína. Não são iguais à humana mas dá pro gasto.

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- Jijoca, o que é ironia?

- Caramba, não tem uma perguntinha mais fácil, não?

- A tia falou que não gosta de ironia.

- Isso é para você se comportar.

- Mas eu nem sei o que é ironia. Como eu poderia fazer uma coisa que eu não sei o que é?

- Me conta o que aconteceu.

- A tia deu exercício para a turma. Mas eu tava sem apontador. Fui até a carteira do meu melhor
amigo e pedi o apontador. Daí ela perguntou, muito brava “O que você tá fazendo aí?” e eu
respondi “Tô jogando boliche”.

- Você não limpa essa boca, não, menino?

- Ah mas que pergunta. O que eu taria fazendo? É claro que tinha ido apontar o lápis.

- Era aula de quê?

- Inglês.

- Ela é boazinha. Ela merecia uma resposta mais educada.

- Eu fiquei bravo.

- Então, Petinho, ironia geralmente é quando você não consegue dizer uma coisa e diz outra
diferente mas querendo dizer a mesma coisa.

- Não entendi nada.

- Por exemplo. Você disse que estava jogando boliche. Mas deveria ter dito algo como “não poderia
estar fazendo outra coisa senão apontando o lápis”. Mas sua linguagem não está muito
desenvolvida, então você usa ironia. E que ironia!

- Ela nunca deixa ninguém se mexer. A gente fica sentado durante quarenta minutos ou mais.

- O Gandhi disse que a violência era o recurso dos impotentes. Eu começo a achar que a ironia é o
recurso dos violentados.

- Jijoca, você fala muito difícil.

- Vamos ver o Aurélio.

Jijoca repousou a bengala ao lado do sofá e tirou o volume da estante.

- Olha aqui, “ironia”: é exatamente o que eu disse, dizer o contrário do que se pensa. Além disso,
com escárnio. Escárnio é que nem zoeira. Vá tomar um banho agora, Petinho.

5
Unção do enfermo

Alípio estendeu o braço com muita dificuldade, o peso de seu próprio braço já parecia, para
ele, insustentável e acariciou o braço de sua esposa, que sentava ao lado de seu leito no hospital. O
monitor eletrônico marcava o passo lento de seu coração, que parecia querer parar de vez. Ele era
um verdadeiro sobrevivente: câncer nos ossos, isquemia cerebral e infarto do miocárdio faziam
parte da lista enorme de atribulações que a natureza já tinha oferecido a esse senhor de quase
oitentas anos (e desta lista não vale a pena lembrar das hemorróidas, lombalgia, trombose e outros
tantos males menores).

Aposentado da SABESP, Alípio tinha um bom plano de saúde, motivo pelo qual estava
internado num hospital de primeira na capital paulista, privilégio de poucos. Tinha até televisão no
quarto! E ele não perdia o noticiário, embora as notícias, para ele, já parecessem ser sempre as
mesmas. Sua esposa acompanhava as novelas enquanto ele passava quase o tempo todo
dormindo, acordando para se alimentar e para ver o jornal da tarde. Margarete, mesmo durante as
novelas, não largava o rosário, ao qual atribuía o milagre da sobrevivência do marido.

- Alípio, se você ta aqui, é graças a Deus. É uma bênção! È um milagre! – dizia ao seu esposo.

- Maga, você ouviu o jornal? Você viu o que está acontecendo no oriente médio? Tem
criança morrendo, com bomba, com tiro. Na África, criançada morrendo de fome. Na Bolívia, o
trabalho infantil. No Brasil, gente sem terra nem para plantar, para se sustentar.

- Não venha com esse papo, seu ingrato. Você não muda nunca mesmo! Que tem o
sofrimento dos outros a ver com a bondade do Senhor?

- Você não me entende! Se eu agradecesse a Deus por estar vivo, seria a mesma coisa que
admitir que ele permite essa desgraceira. Se ele tem poder para me salvar, poderia salvar essas
crianças no meu lugar. Que deixasse esse velho descansar e salvasse um desses pequeninos...

- Alípio! Desse jeito você vai pro inferno! Não se questiona os planos do criador. Seja grato
por suas bênçãos e reze pelos que sofrem, que Deus escuta nossas preces.

- Maga, você não diz que ele é onisciente? Por que precisaria que eu rezasse para tomar
alguma providência? Ele não vê a desgraceira, não?! – Disse Alípio, em tom exaltado.

- Homem, você não tem jeito mesmo. Mas pode ficar tranquilo que estou rezando por sua
alma. E além disso, temos um combinado: quem morrer primeiro chama o padre para fazer a
última reza.

- Pode contar comigo, Maguinha.

Numa noite de terça-feira, Margarete pediu a um padre conhecido que fizesse a unção de
Alípio, para que tivesse mais força para enfrentar a doença, ao que seu esposo replicou:

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- Maga, eu já disse: pede pro padre rezar pelas crianças, eu já to nos meus últimos
momentos. Se a oração tem poder, dirija suas preces pros que precisam mais do que eu. A morte
faz parte da vida, minha querida, não há o que temer.

- Sabe, Alípio, o mistério é grande. Ninguém sabe o que passa no coração de Deus mas me
parece razoável que somos todos muito parecidos. Há boas razões para pensar que a inteligência
criadora é como a nossa. Só que não tem os bloqueios que nós temos. E se nós, limitados,
mentimos, roubamos, por um bem maior, que dirá Deus?

- Quero ouvir o padre.

- Você não é ateu, só está de mal com os desígnios insondáveis. Não estamos isentos de
pecado. Quando faz sua compra no mercado, quando escolhemos uma televisão ou uma roupa,
estamos depositando nosso voto numa cadeia produtiva. Podemos fazer nossa parte. Não é o que
se ensina nas escolas. Eles querem que a gente só pense que Deus é ruim. Assim ficamos fracos,
descrentes, perdemos a bênção do imortal.

7
Sinvaldo

Sinvaldo era um típico professor de história, nada muito diferente do padrão: gostava de
tudo que era tipo de música e gente. Claro, gostava muito de ler, fazer perguntas e observar.
Juntava seu dinheirinho com esforço, com empenho, fazendo o que podia para sobreviver e juntar
um pouquinho a mais para a “mistura”. Gostava muito de carne - chuleta e alcatra não podia faltar,
nem que fosse um pedacinho. De resto, não fumava, não bebia, não frequentava bordeis. Não
precisava de muito para manter seu estilo de vida quase espartano. Guardava em poupança,
sabendo-se idiota por isso (já que a poupança rendia menos que os juros) para comprar sua casinha
própria.

E juntava, por isso, quase metade de seu salário. Resolveu-se, com um colega, a comprar
uma casinha na periferia, dando à vista o que tinha juntado em seus treze anos de magistério e
parcelando o restante a perder de vista. Sinvaldo seguia sua vida com bastante regularidade,
fazendo o que podia para ser um homem seguidor dos bons costumes, ainda que vez por outra
questionasse o que eram de fato os bons costumes e se aquele boizinho que ele mandava para
dentro não teria gemido com as forças da terra por seu abate. Levava a vida sem arroubos e era
moderado em sala de aula com suas exposições, uma vez que o regime político não era dos mais
amigáveis e tinha muita gente desocupada querendo arruinar sua vida. Desocupada, não: mal-
ocupada.

O homem morreu aos 62 anos, acreditando ter sido um bom cristão. Como? Um acidente
de carro: foi atropelado, o velhinho. O motorista fugiu sem prestar socorro. Acidentes acontecem,
dizia sua prima. Pois é. Acidental e misteriosamente ele foi atropelado. Com marcas de chicote nas
costas, no entanto. Constatada sua morte, as autoridades apuraram que Sinvaldo tinha gostos
sexuais estranhos, como o de ser chicoteado. Mas quem o conhecia sabia que não era verdade.
Aliás, ele na cama tinha dificuldade com esse tipo de inovação. Para piorar sua biografia, alguém –
não se sabe quem, mas certamente por dinheiro – conseguiu, em uma de suas ausências de sua
casinha tão batalhada, ocultar lá alguns cadáveres, que, é claro, teriam sua autoria de morte
atribuídas ao infeliz Sinvaldo. Infeliz pensador, o professor foi tomado pela cidade toda como
pérfido masoquista e assassino em série. Como estamos no século XXI, fui obrigado a encurtar a
história toda. Mas o fato é que o difamado professor nunca tinha sequer dado um soco na cara de
alguém. Pois agora, pelas impressoras do jornal local e pelas lavras da delegacia, tinha sido
declarado tudo que não era. Meus pêsames, professor.

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Sirene

Ela nasceu de pais humanos e foi batizada Sirene.

Sirene roda a cidade sem saber o que buscar. Olha para os mendigos com desdém, se esforçando
para ver neles tudo que não seja semelhante aos humanos; quer expulsá-los das ruas, sumir com
todos. Pra ela, os sem-teto são todos iguais: seres corrompidos e amaldiçoados, drogados,
prostituídos, “mau-caráter”. A Constituição, para ela, é longa demais, iluminista, utópica e
favorecedora da vadiagem.

Sirene é solitária mas está sempre acompanhada. Passeia muito mas sempre ostentando estar a
trabalhar – de forma bem parecida com os chefes de tantas empresas, que ludibriam os
trabalhadores dando a impressão de carregarem o mundo em suas costas quando na verdade é o
trabalho dos trabalhadores (e isto não é redundância) que os carrega a todos, em suas costas. Mas
ela não é chefe, supervisora, diretora, coordenadora, bosta nenhuma. É subalterna. Mas o convívio
com tanta gente que se põe acima da população fez com que ela fosse assim.

Sirene é na verdade muito entediada e seu passatempo favorito é se mostrar heróica, valente e às
vezes defensora dos bons costumes. Mas é frequentemente, no sentido literal, completamente
imoral (ou amoral?). Imunda é melhor (eis aqui uma defesa de alguma espécie de defesa da moral,
em pleno século XXI, pós-tudo, menos pós-pós-tudo). Sirene é, muitas vezes, imunda. Não a
imundice dos mendigos, que um banho e um sabão de coco resolvem em minutos. Sua imundície é
tão profunda que nem aquele desinfetante de tom verde-radioativo poderia limpar.

Sirene faz barulho em suas andanças e assusta muita gente. Pra outros, sua estridência é como um
grito para um surdo: se faz notar mas não inquieta nem um pouco - esses já estão acostumados à
sua exaltação por receberem sua visita constantemente, alguns até diariamente.

Sirene não gosta de ambulante. Pensa que o “livre mercado” serve só para gente elegante,
perfumada e de “bons modos”. E quando não vai com a cara de algum deles ou algo foge, em suas
maquinações, do aceitável, coloca mesmo é para correr.

Sirene não gosta de manifestação. Sirene não gosta de protesto. Sirene quer ordem. Ordem e
progresso. Que ordem ela quer? Ela não sabe. Só sabe que quer ordem. E mesmo quando é tudo
autorizado pela prefeitura, como manda a letra da lei, ela acha tudo isso uma palhaçada e prefere o
som do ferro que a voz de uma família.

“Progresso? Quem não sabe o que é progresso?” Progresso é inventar o guarda-chuvas e se


esconder da garoa mais fina com ele para chegar apresentável ao trabalho, usando uma gravata
num calor de 38ºC. Isso é progresso! Esconder as vergonhas. Criar uma máquina que solta gotículas
e colocar no parque do bairro rico e ficar lá se molhando e depois ir embora do parque querendo
um guarda-chuvas para fugir da garoa. Progresso é trabalhar oito horas por dia (para quê? Pelo
progresso!!) trocentos dias por ano para depois ir para o balneário aproveitar as férias. Os
guajajaras, os crenaque, os craô, esse bando de botocudos nunca souberam o que é progresso.

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Progresso é derrubar tudo para meter gado. Sirene sempre participa, ainda que de longe, de tudo
que seja a favor do progresso,contra as trevas, contra o mal.Sirene não gosta dos índios, não: ela
gosta é de progresso. E progresso, como a gente bem sabe, é ter uma caixa que recebe ondas e
mostra imagens. Fazer parte do progresso é ver a telenovela e o jornal. Por isso ela não gosta dos
índios, nem daqueles índios que têm tevê, por que esses caras, para ela, não viram gente nunca.
Dos negão, não precisa nem falar se ela gosta: é farinha do mesmo saco.

Mas um dia, dizia ela, tinha certeza de queiria se decidir a servir a causas mui específicas e nobres:
diminuir o sofrimento, em chamas ou não. Se tornaria uma Sirene budista, cujo maior objetivo seria
diminuir o sofrimento dos seres.

- E é? Perguntava seu amigo, piloto de ambulância, indo pruma ocorrência na periferia.

- ÉÉÉ, ué! ÉÉÉ, ué! ÉÉÉ, ué! Dizia ela, esquentadinha, recusando o epíteto “imunda”.

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Primeiro de maio

Era um primeiro de maio. Ele tinha saudades do tempo de operário – a não ser pelo
cansaço. Agora, já não podia mais falar o que queria, o que mudava até seu modo de pensar, já que
o que não podemos falar passa a ser negado dentro da gente, não podia nem mesmo ter uma dor
de barriga ou uma crise existencial: era obrigado a concordar com tudo que seu superior dizia e a
jamais demonstrar a menor solidariedade por qualquer um daqueles que fossem pertencentes à
“gentalha”, como dizia o chefe, que era ajudante do superior.

Tinha sido promovido a auxiliar do ajudante do superior, que era subordinado ao


coordenador, que respondia diretamente ao gerente, que era braço direito do superintendente,
que era filho do presidente.

Era uma função honradíssima, essa sua nova: desde o primeiro dia no cargo diziam a ele que
era um “olho da empresa”, exemplo do que deveria ser feito e responsável por manter as coisas
sempre em ordem e tomar conta de todos aqueles canalhas, que viviam às custas da empresa. Isso
passou a significar, para ele, execrar sempre que possível os subordinados e elogiar ao máximo seus
superiores, sem distinção nem pudor. Era isso mesmo que esperavam dele. Resultado garantido,
sem muita complicação. Era só levar a vida, agora. A companhia pagava curso de inglês e melhor do
que isso: agora ele tinha uma carreira! Podia sonhar tranquilamente com tudo que ele queria
comprar: TV, carro, geladeira, fogão, viagem para Disney e futuramente muito mais. Até que enfim
as mentiras que ele contou sobre seus “colegas” tinham surtido efeito. Até que enfim! Na hora do
café, em vez de estudar, conversar ou fazer qualquer coisa, tinha o dever de elogiar as posições
políticas, religiosas e talvez até sexuais de seu chefinho. Mas agora seus dezessete anos como
membro da ralé tinham surtido efeito. Finalmente era reconhecido como superior. Via a si mesmo
como o mais novo membro da elite e dizia com orgulho que era agora auxiliar do ajudante do
superior, que era subordinado ao coordenador, que respondia diretamente ao gerente, que era
braço direito do superintendente que era filho do presidente. Que alegria sentia esse homem por
não precisar mais usar calçados-de-segurança e almoçar em bandeja!

Seu primeiro primeiro-de-maio sem ter que ouvir aquele “papinho furado de mais-valia”
sentindo no peito uma injustiça latente. Agora podia recriminar o jornal operário à vontade na sala
da direção, entre o café e os biscoitinhos da dona Claudete, que era a cozinheira do Raul, que era
subordinado ao coordenador, que respondia diretamente ao gerente, que era braço direito do
superintendente que era filho do presidente. “E que biscotinhos!” Com um toque de canela
imperdível. A dona Claudete era “um amor de pessoa”, dizia Raul. “Não faltava por nada, não fazia
filhos”. Mas o desconfiado Raul tinha certeza de que “um dia ela ia passar a perna nele, como
fazem todos os empregados”. O doutor Juvêncio concordava, do fundo da sala de café: “é tudo
farinha do mesmo saco”. Neste momento uma sirene tocou. Era lá do galpão. “Que merda fizeram
agora?” perguntou o superintendente. “É de acidente”, respondeu o doutor Juvêncio, que
completou “estão armando mais uma! vagabundos...” e largou o charuto no belo cinzeiro trazido
da Suécia para averigüar o que acontecia no setor. Abriu a porta de ferro gritando “que foi dessa
vez??” mas não conseguiu xingar tudo que tinha na cabeça quando viu um aprendiz da oficina com

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o olho transbordando sangue e gritando “socorro!”. Não sabia o que fazer, o doutor Juvêncio, dava
um passo para frente, outro para trás, um para o lado, outro para o outro; o olho do rapaz sangrava
muito, mesmo com o chumaço de estopa que seu colega tinha colocado em seu rosto. O doutor
Juvêncio, que era bem corpulento, resolveu pegar o menino no colo, sem medo de sujar seu terno
italiano e, com a ajuda de um operário, colocou o jovem dentro de seu próprio carro, que era o que
estava mais próximo dali. Ficou horrorizado. Tremia. O garoto perdeu a visão do olho esquerdo e
ficou internado no hospital. Triste demais.

Quando o doutor, que trabalhava junto ao superintendente, voltou à sala da direção,


transtornado, o novo auxiliar pediu desculpas por estar no banheiro no momento do ocorrido, e
por não ter podido ajudá-lo naquele difícil momento e trouxe um charuto e um copo de uísque. Sua
primeira pergunta não foi sobre o garoto e sim: “o assento de seu carro, doutor, sujou? Eu mando a
dona Vilma ir limpar”. Foi demitido.Não percebeu que o doutor Juvêncio usava olho-de-vidro. E
assim foi seu primeiro e último dia na sala da direção.

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O vendedor de leques

Faltavam duzentos e quarenta e quatro dias para acabar o ano. Era chamado de o “dia do
trabalhador”. Para boa parte das pessoas, era um dia em que se sorteavam carros e em que
aconteciam apresentações musicais (ou, sonoras) na praça pública. Para nosso protagonista, era
um dia em que não se sabia o que fazer nem no que pensar. Era feriado. Algo deveria ocupar as
horas espaçadas de seu tempo livre.

O jovem professor pensava, há tempos, em algum jeito de aumentar sua pífia renda. Não
podia ser algo que tomasse muito do seu tempo, já que tinha pouco tempo livre para fazer aquilo
de que gostava mais: ler, cuidar das plantas, observar o mundo e pensar. Precisava ganhar dinheiro
com algo rápido, como tanta gente conseguia fazer. Seu sonho era poder ter um lugar para morar.
Depois, construir um centro cultural para jovens, onde pudessem assistir teatro, ouvir “música-de-
verdade”(não subprodutos da indústria sonora), ler livros e jornais. Um lugar onde não se
precisasse pagar nada para ter um pouco de diversão útil. Pois a diversão inútil, essa muitas vezes
era totalmente gratuita, através da televisão. O professor considerava úteis aquelas diversões que
pudessem contribuir para algum tipo de mudança agradável no mundo. “O que é agradável?”
pensava o jovem, enquanto passava os olhos nas vitrines, procurando algum produto que pudesse
ser revendido a um preço justo e que desse algum retorno. E voltava a pensar que a “utilidade”
talvez não fosse o melhor critério.

Brincos, pulseiras, esmaltes, binóculos, serras-de-mão, guarda-chuvas, todas essas


pequenezas ao mesmo tempo pareciam ser passíveis de venda e totalmente vãs, ainda que muito
úteis. “O que é utilidade?!”, pensava o jovem, caminhando pelas ruas sujas do centro da cidade,
quando um senhor o surpreende:

-Vamolevá um desse pra patroa?

-Obrigado, senhor, não sou casado...

-Leva pra mamãe, então.

-Ela já morreu. Não, muito obrigado.

-Tá certo. Bom dia!

-Espere aí!

- Diga!

- Como o senhor se tornou um vendedor-de-leques?

- Achei que era uma coisa que, nesse calor insuportável, todo mundo ia querer um.

- Uma coisa útil, então?

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- Meu antigo patrão considerava útil que eu colasse cartaz nos postes. O pessoal da limpeza
urbana, não. O vendedor de ar-condicionado não deve achar muito útil, não. Mas a mulherada
gosta. Além de elegante, refresca. (disse numa toada rápida e disparada, em sotaque nordestino).

-Certo. O senhor ganhava mais para colar cartazes ou ganha mais vendendo leques?

-Olha, antes eu ganhava mais. Vender na rua é uma coisa complicada:tem dia que você faz
dinheiro, tem dia que não sai nada...

-Entendi. Obrigado pela conversa, senhor. Boas vendas!

-Não há de quê! Que graça teria a vida sem conversa? Bom dia!

A greve parecia para ele um método antigo e pouco eficaz, que expunha demais os
trabalhadores aos vitupérios dos empregadores. Como conseguiria conquistar um salário que desse
conta de seus gastos e permitisse guardar um pouco para outras coisas era o desafio do dia. Depois
de conversar com seu Adelino, o vendedor de leques, tinha caído na real de que vender nas ruas
não dava mais dinheiro do que afixar cartazes em postes... Seria esse o caminho?

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Cotidiano

O vegetariano (já sabendo o que o espera) olha o forninho meio embaçado da esquerda pra direita,
depois da direita pra esquerda, da esquerda pra direita de novo. Vê claramente quibe, coxinha,
enrolado de linguiça. Dá mais uma olhada para tirar a teima, e então pergunta:
- Bom dia, companheiro, o que vocês tem sem carne aí?
- Tem enroladinho de salsicha, coxinha, esfirra de frango (já com a pinça na mão para sacar algum
quitute do forninho engordurado).
- Ah, legal... Só de queijo tem alguma coisa (tentando ser compreendido), tirando o pão-de-queijo?
- Tem só o pão-de-queijo, responde o camarada, apontando uma bolota murcha de massa quase
branca lá no cantinho do forno, sobre um papel-toalha que aparentava ser de duas semanas atrás -
justamente o que ele não queria.
E assim ia levando o cotidiano, até aprender que comer uma banana ou uma cenoura era mais
barato (o que era mais condizente com a situação financeira da maioria da população), além de
menos trabalhoso e irritante do que dialogar com quem pensa que presunto e salsicha dão em
árvore.

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O materialista e o espiritualista

Os dois amigos, depois de anos sem se ver, desde a época da faculdade de jornalismo já discutiam, a
existência e a crença em Deus mudava o curso da história.

- Uma feijuca para nós no capricho, Paulinho! Disse o corinthiano, que não cria em divindade.

- Quer acreditemos em Deus ou não, a feijoada sempre uniu nós dois. Lembra? A gente tinha dezoito anos...
nem essa pança eu tinha! Era pinga e feijuca toda semana, disse o santista, devoto fervoroso.

A filha do corinthiano, que ainda era menor de idade, só pegava arroz, feijão e couve.

- Que é isso, menina? Não vai pegar um toucinho? uma lingüinha? o paio, olha que delícia.

- Vocês não percebem que essa discussão de vocês não leva a lugar nenhum?

- Tamo aqui só no bem-bom. Pega uma linguicinha, você vai ver que é bom, disse o corinthiano. Que
discussão?

- Até parece que eu não acompanho a discussão de vocês há anos. Um acha que nada passa da terra, o outro
faz novena todo ano.

- Não vamos estragar o almoço, disse o pai.

- Mas e então, menina, não vai pegar nem a carne seca?

- Eu virei vegetariana, disse Amanda.

- Ela agora veio com essa, meu querido. Brincadeira?

- Ah, pelo menos vai continuar magrinha.

- Não é essa a questão, vocês não percebem que a discussão de vocês não leva a lugar nenhum? O que
importa não é se o bicho tem alma. Não sei nem se a gente tem alma. O que interessa é que o bicho sofre.
Sente dor. E dor nem na religião nem na ciência é algo que alguém queira.

- Não! A única coisa que ninguém quer é passar fome, disse o corinthiano.

- Discordo, meu irmão, ninguém quer sofrer.

- E aquele povo esquisito que usa chicote e o diabo?

- Isso é doença!

- Ô corinthia, você sabia que metade dos grãos de engorda de animais salvariam a humanidade da fome?

- Ah, isso só no Brasil que tem terra boa e Sol o ano todo.

- E o mundo não tá globalizado? Ironizou Amanda.

- Bom gente, vamos comer, cada um na sua e demos graças a Deus que não falta nada, disse o santista.

16
- Dez contos?

- E aí, vai esclarecer ou não?

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ISBN

978-65-00-60466-5

Preço sugerido: 9,99

CHAVE – PIX

lufurio@hotmail.com

São Paulo – Brasil

Escrito entre 2010 e 2023

Pulicado em 09/01/2023

Quatro mil, quatrocentos e oitenta e duas palavras

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