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Heliocentrismo
Por Antônio Furtado

HIV, Aids, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Rea-


gente, apenas essa palavra, e um destino selado. Um frio na bar-
riga e uma sensação de pânico. As mãos começam a suar, o co-
ração bate mais forte. Dava para sentir na garganta.
O médico do hemocentro perguntou se ele tinha plano de
saúde e disse que ele mesmo podia indicar um amigo infectolo-
gista. Mas Hélio não ouvia, quer dizer, ouvia, mas não escutava,
parecia não prestar atenção.
Há quatro semanas doou sangue pela primeira vez na vida,
em campanha promovida por um amigo de bola, cujo tio des-
cobriu recentemente uma leucemia. Sentiu medo, pensou em
dizer que não podia doar, que teve hepatite quando criança. Só
que não queria ficar com fama de covarde, não com esses ami-
gos.
A doação não foi tão ruim quanto imaginava. Apesar da es-
pera ter sido enfadonha, a entrevista até que foi engraçada…

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— O senhor tem parceiro fixo?
— Minha esposa.
— Além dela? Prostitutas, travestis...
Quem é que fala a verdade para essas perguntas?
Até parece que alguém vai responder “Eu traio a minha es-
posa regularmente, doutora”. Francamente viu... Às vezes...
bem... o homem precisa se libertar... É coisa de homem, como
ela iria entender?
Respondeu apenas que não.
Duas semanas depois da doação veio a ligação, pedindo
para ele comparecer ao hemocentro, pois havia tido um pro-
blema com a testagem sanguínea. Pensou em não ir. A pessoa
do outro lado da ligação pareceu ler a sua mente e complemen-
tou de forma um tanto quanto carinhosa. “É pela sua saúde”.
Essa frase ficou em sua mente o resto do dia, atrapalhando todo
e qualquer pensamento.
À noite, antes de dormir, esse “É pela sua saúde” ocupava
o espaço de outdoor iluminado em neon. Era tão grande que não
dava espaço nem para a sua esposa, não dava espaço para nada.
Não era a frase em si, mas a forma como foi dita, com um certo
carinho, que quebrava a típica formalidade ríspida dos órgãos
públicos. Entre as palavras existiam dó e preocupação.
No dia seguinte, Hélio adentrou o hemocentro como um
condenado que vai à guilhotina. De manhã mal tomou café. Per-
guntou às enfermeiras o porquê do procedimento de testagem
sanguínea novamente, mas elas o tranquilizaram dizendo que
às vezes um tubo pode cair no chão ou um equipamento “dar
pau”.

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O discurso das enfermeiras foi convincente, e ele conse-
guiu recobrar o ânimo. Porém a espera do resultado daquele
teste o acompanhou, como uma irritação estomacal, um pe-
queno incômodo que não passa, um zumbido longínquo, que
podia passar despercebido ao longo do dia, mas parecia mais
alto à noite... alto e nítido.
Hélio não procurou a sua mulher naquelas duas semanas,
não foi jogar bola, não bebeu, não se masturbou, mal lavava o
pinto direito. Checava seus e-mails de forma compulsiva. Um
dia, a ligação, uma voz mais séria de homem o convidava para o
hemocentro, naquele mesmo dia, para discutir os seus exames.
— Não dá para falar pelo telefone?
— Eu realmente gostaria que o senhor viesse.
Os exames não foram discutidos, não havia o que debater,
o vírus não tinha opinião, argumento ou tese, ele estava lá, qui-
sesse Hélio ou não. De certa forma, mesmo estando sem chão,
ele ficou aliviado, pois o não saber era mais dolorido que o sa-
ber. A esperança causa mais angústia que o problema.
O médico acabou o acalmando. A infecção foi descoberta
no início, os tratamentos estavam avançados. Hoje existem pes-
soas soro positivo que têm uma carga viral tão baixa, que é in-
detectável. Aos poucos as palavras do doutor clareavam o seu
dia... Mas isso durou um breve momento.
De repente, ele se sentiu novamente em queda livre.
— Oi?
— Esposa? O senhor é casado?
— S-sim... casado... eu sou casado... Dora... digo: sim.

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“Dora! Dorinha! Teria de contar a Isadora, teria de explicar
a ela, teria de explicar a todos, teria de... meu deus... o que vão
pensar de mim?”
— Sr. Hélio? O senhor tem relações com outras pessoas
fora do casamento?
— Eu... às vezes... eu saio para beber com algumas amigas.
Ele responde quase sem voz. Bebe um gole da água. Seu
coração parece um cavalo de corrida, ele o sente nos ouvidos...
— É muito importante que sua esposa também faça o teste.
Também é importante contatar as pessoas com quem o senhor
teve relação. O vírus pode demorar até 10 anos para se mani-
festar. No seu caso ele ainda não se manifestou.
Hélio era casado há quase 20 anos. 3 filhos, um aparta-
mento, um carro, um emprego público com um salário respei-
tável. Um cidadão de bem que não tinha nenhum vício. Só que
às vezes... um homem tem de se libertar.
Entrou no carro e imediatamente começou a dirigir, não
ligou o rádio, não abriu os vidros e nem ligou o ar. Tão pouco
foi para casa, apenas dirigiu. A angústia de contar para os ou-
tros, contar para a esposa, contar até para os amigos da bola,
era demais para ele.
Dos seus cabelos escorria um leve suor frio. Lembrou de
ligar o ar. “O que a Isadora ia falar? O que ela ia fazer? Mas quem
garante que foi ele que passou para ela e não o contrário? Do-
rinha casou virgem. Mas e aí? Ela pode muito bem ter procu-
rado outro, pode muito bem ter me sujado. Será?”. De repente,
viu uma raiva crescer contra a mulher.

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“Não, Dorinha não é mulher de procurar outro tendo o
marido em casa. Não, ela não é mulher disso”. Parou o carro em
uma conveniência de posto. Comprou um maço de cigarros. Há
mais de 15 anos sem fumar... Sentou ao lado de fora e passou a
acender um cigarro atrás do outro. Havia chegado sem querer
à autoestrada, na saída da cidade. O movimento na BR era in-
tenso.
Resolveu caminhar. Caminhou, um vagar cansado com
medo. Medo de contar para mulher, medo da bronca que iria
levar dela. Medo de contar para Dora e ela falar que já sabia, que
foi ela que passou para ele, que ele era corno... Corno não...
Hélio se sentia como uma criança que perdera um brin-
quedo novo e que agora tinha de enfrentar a tarefa de contar
para os pais. O HIV não o assustava mais que a ideia de viver
sobre o constante julgamento daqueles que sabem a verdade.
Julgamento que até uns dias atrás ele mesmo endossaria: “Nin-
guém pega isso fazendo coisa certa”, ele diria. A perspectiva de
viver sobre tamanha vergonha o afligia. Uma vida doente é uma
coisa, mas uma vida envergonhado...
De repente, teve um estalo! Levantou a cabeça, parou, e seu
olhar mirou uma passarela. Hélio a observava como se somente
ele a pudesse ver, como se o seu cérebro não conseguisse en-
tender o porquê de uma passarela estar lá. Era alta, bem alta.
Bastante alta, alta o bastante...
Ele subiu. Viu carros, ônibus e caminhões. Trânsito rá-
pido, pesado e intenso. Eles deveriam fazer essas muretas mais
altas. Alguém pode cair. Hélio se viu sorrindo para o horizonte,
viu a possibilidade de não viver sobre a vergonha constante, so-
bre o eterno julgamento.

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Hélio viu uma saída.
Apagou a bagana de cigarro e a largou rente à mureta. Viu
o filtro cair sem atingir o chão, quase em câmera lenta. Ele
acendeu outro cigarro, se encostou na mureta e olhou para o
céu. Fazia um pôr do sol bonito de se ver, bem bonito…

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Dia Especial
Por Juliana Sampaio

Dona Lúcia era uma aristocrata que vinha de família nobre,


descendente dos portugueses que desembarcaram junto com a
corte de João VI. A mulher já estava em idade madura e vivia
sozinha em sua propriedade. Nunca casou, pois durante toda a
vida nunca encontrara um homem digno de sua mão. Suas ocu-
pações e robes resumiam-se em organizar chás para receber os
amigos, comer como se não houvesse um amanhã, e dar ordem
para seus criados, sobretudo a uma escrava jovenzinha que fi-
cara no lugar da mãe recém-falecida.
Em uma manhã, logo nos primeiros dias de agosto, Lúcia
acordou eufórica. Era o dia da Missa de Ordenação Sacerdotal
de seu sobrinho. Mais um padre para a família. Ah! Que deleite
sentia dona Lúcia. Ainda mais sendo o seu sobrinho favorito,
filho mais novo de seu querido irmão.
Ao levantar da cama gritou logo pela criada, pois queria
que tudo estivesse impecável: vestido, sapatos, chapéu, luvas,

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bolsa. A jovem negra, atarefada como sempre, levou alguns mi-
nutos para atender a convocação. Foi o suficiente. A ira da se-
nhora inflamou. – Ela precisa ser castigada – pensou consigo a
senhora, imaginando o que poderia fazer com a criada. Entre-
tanto, lembrou-se da solenidade do dia e, assim, contentou-se
em apenas ditar uma longa lista de afazeres. E, enfim, desceu
para o café.
Tamanha foi a sua surpresa ao ver em cima de sua preciosa
torta, disposta sobre a mesa, aquele maldito gato preto de olhos
amarelos que comia e ronronava sem preocupações.
Ao se encararem, gritaram juntos – a velha, de raiva; o
gato, de medo. A senhora começou a debater-se e, apontando
para a mesa, ordenava que o animal fosse retirado de cima do
prato imediatamente. A escrava espantou o bicho e começou a
limpar a bagunça enquanto, numa atitude de temor, tentava
justificar-se e pedia perdão à senhora por aquele acidente.
— Agorinha eu vô trazê outro cumê, sinhá.
Mas Dona Lúcia já subia as escadas e bradava a plenos pul-
mões:
— Tu abusas de mim, menina. Me fazes de boba. Deixei-te
ficar com este gato e me aprontas isto? Me fizestes perder a
fome. Tens sorte de ter sido hoje, ah, mas tem...
A boa senhora agora passaria o dia de mau humor, lem-
brando-se dessa ingrata que não via sua bondade e não se im-
portava com nada. Mas se esforçaria para fazer a caridade de
não castigar a insolente neste dia tão importante.
As horas passaram e o relógio da Igreja anunciou o Ange-
lus. Dona Lúcia, de súbito, levantou-se e gritou para a criada ir
vesti-la. A missa começaria às oito horas da noite.

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Para a ocasião, encomendara um vestido de tafetá com
muitos babados, numa cor roxa berrante – que a negrinha teve
muita dificuldade para fechar, mesmo com a senhora jurando
que tinha perdido muitas medidas no último mês e atribuindo
a dificuldade à incompetência da menina. O chapéu era grande,
da mesma cor do vestido, com um pequeno véu que cobria os
olhos, grandes penas ornamentando um lado, e laços ornamen-
tando o outro. Tudo fora feito sob medida, conforme seus gos-
tos e caprichos, e sem economias.
Dona Lúcia já estava em seu cabriolé, dirigindo-se para a
Igreja Nossa Senhora do Rosário, quando o relógio soou anun-
ciando as sete horas. E, no caminho, continuava com o gato e a
ingratidão da escrava a martelarem sua justa consciência.
Chegando a seu destino, ao subir a escadaria da Igreja, um
homem puxou seu vestido a fim de pedir uma esmola. A mulher,
desvencilhando-se rapidamente, percebeu que a mão do pe-
dinte sujou a ponta de seu vestido e exasperou-se ainda mais.
Ora, aquele pobre diabo não deveria estar na porta da igreja em
um dia tão importante. Era um absurdo que ninguém cuidasse
disto. Era sempre ela que tinha que resolver tudo.
Não obstante, Dona Lúcia disfarçou a ira e entrou pompo-
samente na Igreja, sentou no primeiro banco, reservado para a
família do futuro sacerdote, e pôs-se a rezar piedosamente
numa postura que nem mesmo A Madona do altar possuía. E
numa atitude de autocomiseração, perguntava-se sobre o que
mais poderia dar errado e que outras provações teria de supor-
tar naquele dia.
Às oito horas em ponto, ressoou do órgão o primeiro
acorde. O coral entoava, angelicalmente, a Marcha da Igreja en-
quanto a procissão avançava; o turíbulo, à frente, exalava um

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delicado aroma de rosas; o sobrinho, logo atrás, derramava lá-
grimas de felicidade; o Reverendíssimo Bispo vinha por último,
abençoando os fiéis. O devoto coração da boa Dona Lúcia apa-
ziguou-se com este momento.
Por ora, decidiu deixar para trás todos os infortúnios do
dia e concentrar-se apenas na Missa. Esqueceria a ingratidão
da escrava, o gato asqueroso e o mendigo que sujara seu preci-
oso vestido. E, com toda sua altivez, pôs-se a rezar devota-
mente.
Ao fim da solenidade formou-se um alvoroço. Todos foram
oferecer seus cumprimentos e pedir a benção ao novo padre.
Um grande banquete foi oferecido aos amigos, à família e ao
clero presente. Tudo custeado por Dona Lúcia, que fez questão
de dedicar este presente ao sobrinho. Ela estava transcendendo
de felicidade, mas algo ainda a perturbava.
Voltando para casa, a senhora sentia-se constrangida ao
reviver todos os acontecimentos do dia. Como pudera ter agido
daquela forma? Será que fora levada pelas emoções do mo-
mento? O que ela poderia fazer para compensar as injustiças?
Atormentada por sua consciência, percebeu que deveria
tomar uma atitude o mais rápido possível, e decidiu que,
mesmo sendo tão penoso para ela, seus deveres para com a so-
ciedade deveriam ser devidamente cumpridos.
Logo nas primeiras horas da manhã seguinte, acordou
obstinada a iniciar reparação daquilo que maculara o dia ante-
rior. Assim, a câmara municipal, através da solicitação de uma
dama da sociedade, retirou um mendigo da cidade; ninguém ja-
mais ouviu novamente o miado de um certo gato; e uma escrava
foi para o tronco.

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Aos Primários
Por Salomão Efima

prólogo
amei filipe como você amou o seu primeiro amor, que se
chamava marcos ou gustavo. como douglas amou maycon, e
como yasmin amou aian. amei como isabela amou matheus, ou
como lucas amou íris. como lorena amou gabriel, e como hen-
rique amou ícaro. amei como christian amou vitor, como lucca
amou andrei, ou giovanna amou joão. como priscila amou lucas,
e como eduardo amou salomão, o autor deste conto que está
para nascer.

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informe meteorológico:
a temperatura deste conto nunca estará abaixo dos 32°C
umidade relativa do ar: jamais abaixo de 75%
ventos: correm a 13km/h
os rios contornam essas palavras

a filipe, a victor, a eduardo,


aos primários.

1. amor,

faz calor, mas não importa. ainda é meio-dia, te telefono


três, quatro, cinco, seis vezes, e tu já não me retorna. deixe seu
recado após o sinal. bip. bip. bip. tente novamente mais tarde.
devo ter escutado isso por pelo menos umas 3 semanas, en-
quanto ainda te procuro. faz calor, mas não importa. bip. bip.
bip. ainda estou baqueado. essa cidade quente, úmida, foi palco
desse amor primário. agora lembro das mangueiras, das tardes
quentes assolando o imaginário; a chuva morna caindo dos
céus, tua pele reluzindo ao pôr do sol, teus lábios contando as
gotas que pulam e brincam na dança da chuva. corrias feito um
moleque, sujo por barro, com os pés cheios de lama, o cheiro de
infância no ar. na primeira vez que te vi, fui contando sobre lima
barreto, atrás das muretas de arte, entre as calçadas. o corpo

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pedia sexo. a fala se soltava. nosso encontro era ambivalência.
amor é prosa, sexo é poesia. às vezes sonhava com a pureza. às
vezes sonhava com o pecado. sexo precisa do pecado, pulsão,
desejo, encontro, toque, ciúme, poder. era a forma que tu me
tinhas. entrelaçado a ti. diminuiu o calor, mas não importa. são
16h, ainda não fiz nada, a não ser escutar essa caixa postal sem
destinatário. o cheiro desse quarto tá abafado como a cidade
fica após a chuva numa tarde quente, uma estufa no meio do
caos. vou me levantar, arrumar os lençóis, tirar o ar que circula
entre esses cômodos. tenho que descer e comprar algumas coi-
sas de casa.
já faz uma semana, talvez, duas ou três. primeiro banho,
corta o tempo, desce as escadas do manoel pinto, olha a praça:
domingo. os ambulantes com cocos, cds, vinis e seus livros en-
fileirados feito memórias sem ordem. em cada barraca daquela
tem mais história do que nas enciclopédias modernas de inter-
net. caminho um pouco, me atravesso pelo som de bethânia.
pensei que pudesse esquecer nossos velhos costumes, que já
nem me lembrasse de coisas passadas, que pudesse enganar a
mim mesmo. mas te vejo na banca do seu sérgio, nos toques que
aqueles livros tiveram teus, segurando a estante, ajeitando pra
eu não me perder. estar contigo era uma eterna procura, mas
eu sempre pensava saber aonde me ia, te encontrava naquelas
palavras. agora, vez ou outra, me pego abrindo ruy barata, me
sento na praça, com um guaraná gelado, apenas vendo o teu
resto de sol no mar. como fazem falta as tuas poucas palavras,
o teu beijo informal num fim de tarde ainda te guardo naquele
batuque que achei de bruno de menezes, edição de 1998. tu foste
vida, alegria, canção. tu... foste meu.

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